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Page 1: Carval Hope Nagar Anti As

PENA E GARANTIAS

Page 2: Carval Hope Nagar Anti As

SALO DE CARVALHO

AdvogadoMestre (UFSC) e Doutor (UFPR) em Direito

Professor Titular de Direito Penal e Criminologia da PUCRSProfessor Convidado do Doutorado ‘Derechos Humanos

y Desarrollo’ da UPO (Sevilha)Coordenador de Pesquisa do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais

PENA E GARANTIAS

3a edição, revista e atualizada

A CRISE DO DIREITO E DO PROCESSO PENAL

O GARANTISMO JURÍDICO

AS TEORIAS DA PENA

OS SISTEMAS DE EXECUÇÃO

A LEI DE EXECUÇÃO PENAL

OS CONFLITOS CARCERÁRIOS

OS DIREITOS (DE RESISTÊNCIA) DOS PRESOS

EDITORA LUMEN JURIS

Rio de Janeiro2008

www.lumenjuris.com.br

EDITORESJoão de Almeida

João Luiz da Silva Almeida

CONSELHO EDITORIAL

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CONSELHO CONSULTIVO

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Espírito SantoRua Constante Sodré, 322 – Térreo CEP: 29055-420 – Santa Lúcia Vitória - ES.Tel.: (27) 3235-8628 / 3225-1659

Page 3: Carval Hope Nagar Anti As

Mas, quando os príncipes, por se tornarem soberanos,espezinham, sem remorso ou vergonha, os mais sagradosdireitos do povo, a atenção é desperta pelo menor dos obje-tos, e mesmo a voz de um homem tão isolado como eu podeproduzir algum efeito sobre os pensamentos do público. Seao reunir num só ponto de vista, sob vossos olhos, as medi-das perversas preparadas pelo Príncipe para alcançar oimpério absoluto, e as cenas lúgubres sempre associadasao despotismo, puder vos inspirar o horror da tirania e rea-vivar em vossos peitos a chama sagrada da liberdade quequeimava em vossos antepassados, poderei considerar-meo mais feliz dos homens.

Jean Paul MaratChains of Slavery

Copyright © 2008 by Salo de Carvalho

Categoria: Processo Penal

1a edição: 2001

Esta edição tem o apoio doInstituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (!TEC)

PRODUÇÃO EDITORIAL

Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA.não se responsabiliza pelas opiniões emitidas nesta obra.

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características

gráficas e/ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art. 184 e §§, e Lei no 6.895,

de 17/12/1980), sujeitando-se a busca e apreensão e indenizações diversas (Lei no 9.610/98).

Todos os direitos desta edição reservados àLivraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Impresso no BrasilPrinted in Brazil

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Nota do Autor à 1a Edição

O presente trabalho é fruto de pesquisa realizada entre os anos de1995 e 1999, antes e durante a realização de curso de Pós-Graduação.A tese foi defendida no Doutorado em Direito da Universidade Federaldo Paraná, em março de 2000. Intitulado originariamente Garantismo eSistema Carcerário: crítica aos fundamentos e à execução da pena pri-vativa de liberdade no Brasil, foi apresentado à banca examinadoracomposta pelos Professores Dr. Jacinto Coutinho (UFPR), Dr. LuizAlberto Machado (UFPR), Dr. Lenio Streck (UNISINOS/RS), Dr. SérgioSalomão Schecaira (USP) e Dr. Nilo Batista (UERJ), sendo aprovado comnota máxima e, ainda, atribuído voto de louvor ao signatário e à tese.

Em decorrência do volume, inúmeros cortes foram realizados, semdescaracterizar, contudo, a essência do trabalho.

Importante ressaltar, de imediato, a profunda colaboração doProfessor Dr. Jacinto Coutinho (orientador), bem como da ProfessoraDra. Aldacy Coutinho, no resultado final ora apresentado ao público. Noentanto, outras vozes silenciosas devem ter aqui a devida, e justa,menção. Contribuíram de forma substancial ao trabalho os ProfessoresDrs. Lenio Streck e Geraldo Prado, os Mestres Alexandre Wunderlich eNey Fayet Jr. e o Desembargador Amilton Bueno de Carvalho. Registre-se, pois, meu profundo agradecimento e gratidão.

O problema abordado na tese pode ser expressado na afirmaçãode que o debate atual sobre o sistema carcerário no Brasil consensua-liza uma falsa idéia. É corrente, nos meios acadêmicos e profissionais,ouvir que o grande nó existente na execução penal é decorrente da ina-dimplência do Poder Executivo, ou seja, de que a violação aos direitosfundamentais dos presos decorre, exclusivamente, da incompetênciada administração pública em cumprir sua legalidade. Parte-se do pres-suposto de que, se o Estado prestasse seus serviços (infra-estruturamaterial), os direitos dos apenados estariam plenamente garantidos.

O objetivo da tese é desmistificar tal afirmação, procurando perce-ber o nível de (co)responsabilidade do jurista na barbarização da exe-cução da pena, viabilizando mecanismos prático-teóricos que justifi-quem as ações de resistência dos presos no resgate de seus direitos.

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Page 5: Carval Hope Nagar Anti As

Nota do Autor à 2a Edição

Aprendi com Ruth Gauer que todo texto é datado.Desta forma, me senti legitimado a efetuar inúmeras alterações no

livro apresentado em 2001.Em realidade, procurei, com a nova versão, deixar a redação

‘menos tese’ (acadêmica) e mais livro, suavizando a leitura de umatemática em si extremamente desgastante.

Todavia, as alterações não foram apenas de cunho formal, mas,sobretudo, no conteúdo.

As (inúmeras) modificações que o leitor encontrará foram fruto deum processo de amadurecimento que me obrigou a reler meu própriopensamento. Este processo, sempre doloroso e fatigante, é decorrênciade inúmeras causas. Uma delas foi a militância, nos últimos quatroanos, na advocacia criminal, com o precioso ‘compañero’ de lutaAlexandre Wunderlich. Aliou-se ao cotidiano da advocacia o período napresidência do Conselho Penitenciário do Estado do Rio Grande do Sule os profundos debates realizados nos Programas de Pós-graduação daPUCRS, UNISINOS e UPO (Universidad Pablo de Olavide – Sevilha).

Neste período, foi possível visualizar o impacto da tese na realida-de, verificando ingenuidades e defeitos, bem como algumas virtudesque possui.

O leitor encontrará, portanto, um texto relativamente novo, diver-so daquele publicado na primeira edição e, esta é a minha esperança,mais consciente de seus limites e possibilidades.

A trajetória que finda nesta segunda edição teve inúmeros interlo-cutores que merecem a devida homenagem e o imenso agradecimento.

Antes de tudo, fundamental para conclusão das ‘revisões’ o apoiodo ‘pessoal do escritório’. Assim, meus agradecimentos aosWunderlich’s, e à tolerante e paciente equipe de trabalho formada porRogério Maia Garcia, Camile Eltz, Rita de Cássia Branco Silveira, LizeteFlores e Eduardo Sanz de Oliveira e Silva.

Natalie R. Pletsch e Liliana Carrard, muito embora componham ogrupo do escritório, merecem uma referência diferenciada, não apenaspela constante cobrança na finalização desta edição, mas pelo primo-roso trabalho de revisão e crítica do ‘rascunho’.

ix

Os argumentos que compõem o trabalho pendem entre a deslegiti-mação do modelo ressocializador e a incapacidade garantidora do pro-cesso de execução moldado pela Lei de Execução Penal (LEP). São obje-tivados, assim, em três hipóteses: (1a) a ideologia do tratamento (discur-so que perpassa a LEP) não apresenta conteúdo mínimo que possa afir-mar sua harmonia com os valores e princípios constitucionais; (2a) o pro-cesso de execução penal não possui instrumentalidade adequada paraefetivar os direitos dos apenados; e (3a) da falta de instrumentalidadeprocessual para assegurar os direitos exsurge, quando da constataçãode situações de violência institucional, o direito de resistência comomanifestação legítima de desagravo pela massa carcerária.

A opção científica é pela teoria do garantismo jurídico-penal.Procurou-se, desde esse marco doutrinário, construir um discursocoeso, revificando os princípios ilustrados da secularização e da tole-rância – concebidos como justificação antropológica e racionalista àintervenção estatal –, e negando o falso ‘humanismo’ que recobre omito da recuperação. Assim, o instrumental adotado encontra-se emperspectiva diametralmente oposta ao modelo ressocializador, inten-tando deslegitimar os fundamentos jurídicos da pena para, num segun-do momento, direcioná-la ao seu local de origem: a esfera política,como ensinava Tobias Barreto.

Após conjugar os argumentos apresentados, conclui-se que aestrutura da execução da pena privativa de liberdade em regime fecha-do no Brasil é inquisitorial, visto que impõe ideologicamente ao conde-nado tratamento ressocializador; impede a ‘massa carcerária’ usufruirdireitos primários; e criminaliza qualquer manifestação contrária a esseestado de coisas.

O discurso garantista proporciona desconstituir o fundamentoterapêutico, diagnosticar as falhas de instrumentalidade processual e,ao relocar o problema da pena à esfera política, legitimar atos de rebel-dia dos presos quando da reivindicação de seus direitos sonegados.

Dessa forma, a intenção do trabalho é possibilitar, ao jurista com-prometido com os direitos humanos e com a radicalização da democra-cia, uma nova visão sobre o fenômeno da sanção penal, intentando, naesteira waratiana, desvendar as falácias que encobrem o visível apa-rente.

Porto Alegre, verão de 2001.

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Nota do Autor à 3a Edição

A presente edição é lançada após modificações significativas nalegislação punitiva brasileira. O diagnóstico, infelizmente, é o do brutalenrijecimento das modalidades de sanção, demonstrando a adequaçãodo Brasil ao que a literatura social denominou Estado penal.

A institucionalização do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD)pela Lei 10.792/03 poderia, portanto, exigir mudanças no texto da 2a

edição do livro. Contudo, o que foi possível constatar desde 2003 foi apotencialização da idéia de disciplina prevista na Lei de ExecuçãoPenal com a adoção explícita do sentido retributivo e neutralizador dapena, típico do pensamento penal autoritário contemporâneo refletidonas teorias funcionalistas do direito penal do inimigo.

De outra parte, a Lei 10.792/03 revogou a necessidade do examecriminológico para que o apenado alcançasse os direitos previstos nosincidentes de execução, notadamente progressão de regime e livra-mento condicional. Contudo, apesar de revogado o requisito subjetivo,a jurisprudência – amparada por parte substancial da doutrina –, a par-tir de interpretação nitidamente inconstitucional, reviveu o texto, res-tabelecendo o antigo critério.

Assim, são mantidas na integralidade as críticas direcionadasaos fundamentos e à execução das sanções judiciais e administrati-vas, ao trabalho do corpo técnico criminológico na legitimação dosistema punitivo e ao suplício gótico que constitui o universo carce-rário nacional.

Neste quadro, entende-se que a manutenção do conteúdo da 2a

edição é justificada. Todavia, para que o leitor possa ter compreensão detalhada do

entendimento do autor sobre as recentes alterações no quadro puniti-vo, fato que atinge os principais problemas tratados no livro, foi acres-cido, em posfácio, artigo específico sobre o tema.

Importante referir, ainda, o apoio da Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação, da Faculdade de Direito, do Departamento de Direito Penale do Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifícia

xi

Amilton Bueno de Carvalho, Jacinto Coutinho, David SánchezRubio, Lenio Streck, Geraldo Prado, Ruth Gauer, Aury Lopes Jr., MariaPalma Wolff e Miriam Guindani continuam sendo minha referência pri-meira, meu ‘socorro’ nos momentos em que teoria e prática pareceminconciliáveis.

Imprescindível, também, o apoio de Paula Gil Larruscahin, NatáliaGimenez, Lenora Oliveira, Rainer Hillmann, Mariana de Assis Brasil eWeigert, Rafael Rodrigues da Silva Pinheiro Machado, Roberta Longonide Vasconcellos, Renata Jardim da Cunha, Raffaella Pallamolla,Eduardo Rauber, Roberto Rocha Rodrigues, Fernanda Juliano Pasqualie Caroline Eskenazi, integrantes do grupo de pesquisa emCriminologia e Execução Penal da PUCRS, que realizaram inestimáveltrabalho de investigação, o qual, aliado aos férteis debates, deu consis-tência a inúmeras mudanças presentes nesta edição.

Alexandre Wunderlich, Felipe Cardoso Moreira de Oliveira, Gus-tavo de Moraes Trindade, Daniel Gerber e José Carlos Moreira da SilvaFilho, amigos valiosíssimos que, pela proximidade e intenso convívio,sempre auxiliam de forma pertinente com críticas e sugestões. De igualmodo Gabriela Koetz da Fonseca, que acompanhou este processo.

Liane Pessin continua fornecendo o necessário apoio psicanalítico. Por fim, Gabriela de Carvalho, Amilton Bueno de Carvalho, Néder

Lopes da Rosa e Diego de Carvalho continuam sendo elementos desustentação do meu cotidiano, auferindo sentido à caminhada.

Porto Alegre, outono de 2003.

x

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Universidade Católica do Rio Grande do Sul no financiamento e noestabelecimento das condições materiais que possibilitaram o prosse-guimento da investigação.

Porto Alegre, agosto de 2007.Salo de Carvalho

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Sumário

Prefácio....................................................................................................... xvii

Introdução.................................................................................................. xxiii

Capítulo I – A Constituição do Paradigma Garantista.......................... 11.1. Garantismo e inquisitorialismo: modelos paradigmáticos em

tensão .................................................................................................. 11.2. O paradigma da intolerância: o modelo jurídico inquisitorial...... 4

1.2.1. Esclarecimento necessário: o porquê do medievo ............... 41.2.2. Antecedentes históricos do modelo inquisitorial ................. 61.2.3. A instrumentalização dos Tribunais ...................................... 101.2.4. A estrutura jurídico-penal ....................................................... 141.2.5. A barbárie jurídica: os mecanismos do método inquisitorial . 19

1.3. O processo de secularização e a invenção da tolerância .............. 221.3.1. A conquista do homem e do mundo ...................................... 221.3.2. A natureza liberta: oposição à servidão................................ 241.3.3. O pacto e os direitos do homem............................................. 281.3.4. O direito à perversidade.......................................................... 331.3.5. Os fundamentos do direito de resistência............................. 36

Capítulo II – O Garantismo Jurídico-Penal: Gênese e Crise(s) ............ 392.1. Recepção do contratualismo pelo direito penal.............................. 39

2.1.1. Unidade e existência da ‘Escola Clássica’ ............................ 392.1.2. A Accademia dei Pugni ........................................................... 422.1.3. A versão revolucionária do contratualismo........................... 452.1.4. O contratualismo no direito penal brasileiro......................... 50

2.2. O refluxo do pensamento garantista................................................ 542.2.1. O paradigma etiológico e a estética do mal ......................... 562.2.2. A matriz etiológica no direito penal brasileiro e o saber de-

fensivista colonizado(r)............................................................ 622.2.3. O defensivismo contemporâneo: a Nova Defesa Social ....... 68

Capítulo III – As Razões do Garantismo ................................................ 773.1. O Programa político-criminal garantista ......................................... 77

3.1.1. Garantismo: reivindicação ou superação do iluminismo ju-rídico-penal? ............................................................................. 77

3.1.2. Regressão irracionalista: desregulamentação dos procedi-mentos, pluralismo de fontes e inflação legislativa ............. 79

xiii

Page 8: Carval Hope Nagar Anti As

5.3.1. Fundamentos ideológicos da LEP e suas conseqüênciasnormativas ................................................................................ 176

5.3.2. A retórica disciplinar ............................................................... 1795.3.3. O controle da identidade do preso: laudos e perícias crimi-

nológicas: discurso oficial ....................................................... 1825.3.4. O controle da identidade do preso: laudos e perícias crimi-

nológicas: funções reais .......................................................... 1845.3.5. O controle da ‘massa carcerária’: regime meritocrático ...... 189

5.4. Garantismo e execução penal: proposições .................................... 1925.4.1. A volatilidade da pena ............................................................ 1935.4.2. As relações entre os discursos disciplinar e jurídico: pro-

cesso penal e procedimentos executivos .............................. 1975.4.3. A função dos técnicos (criminólogos) .................................... 2015.4.4. O controle do tempo das decisões judiciais: resolução ficta. 2045.4.5. Da necessidade de recodificação ........................................... 2055.4.6. A cominação penal em abstrato............................................. 2075.4.7. A responsabilização dos agentes públicos pela violação

dos direitos fundamentais dos apenados.............................. 209

Capítulo VI – Garantismo e Conflitos Carcerários: Fugas, Rebeliõese Motins............................................................................................... 213

6.1. As novas funções da pena ................................................................ 2136.1.1. A crise do Estado social e a emergência do Estado peni-

tência: mirada ao centro.......................................................... 2136.1.2. O carcerário: perspectiva periférica ....................................... 218

6.2. A ilicitude dos conflitos carcerários................................................. 2206.2.1. A admistrativização dos conflitos carcerários ...................... 224

6.2.1.1. Falta grave: previsão legal......................................... 2246.2.1.2. Falta grave: sanção..................................................... 225

6.2.2. A criminalização dos conflitos carcerários............................ 2276.2.2.1. Evasão violenta........................................................... 2276.2.2.2. Motim........................................................................... 2296.2.2.3. Fuga e motim: análise crítica .................................... 231

6.2.2.3.1. Crítica de lege lata .................................... 2316.2.2.3.2. Crítica de lege ferenda.............................. 234

6.3. Conflitos carcerários e direito de resistência.................................. 2356.3.1. A ineficácia do modelo liberal-legal para resolução dos

conflitos contemporâneos ....................................................... 2356.3.2. Direito de resistência: notas conceituais............................... 2396.3.3. Direito de resistência, legítima defesa e estado de necessi-

dade: aproximações e diferenças ........................................... 2426.3.4. Direito de resistência: condições de possibilidade da des-

criminante supralegal .............................................................. 248

xv

3.1.3. Direito penal mínimo e direito penal máximo....................... 823.1.4. Direito penal mínimo e princípio da legalidade.................... 843.1.5. Teoria garantista da lei penal: critérios de deflação legis-

lativa .......................................................................................... 893.1.6. O Projeto Minimalista: A Lei do Mais Fraco.......................... 93

3.2. A teoria geral do garantismo ............................................................ 953.2.1. Garantismo e teoria crítica do direito: a validade das nor-

mas e o papel do jurista .......................................................... 983.2.2. Garantismo e Estado de direito: as visões da democracia . 1043.2.3. Garantismo e filosofia política: teoria heteropoiética: tole-

rância e resistência à opressão .............................................. 108

Capítulo IV – O Modelo Garantista de Limitação do Poder Punitivo.. 1154.1. A pena nas sociedades modernas: introdução............................... 1154.2. Esboço dos modelos justificacionistas da ilustração.................... 117

4.2.1. As justificações retributivistas ............................................... 1184.2.2. O modelo intimidatório ............................................................ 1224.2.3. A perspectiva política de prevenção social .......................... 126

4.3. A justificativa etiológica de prevenção especial: fundamentos eprograma político-criminal ................................................................ 128

4.4. A crítica garantista ao modelo periculosista e à subjetivaçãoprocessual ........................................................................................... 137

4.5. O garantismo e a negação da legitimidade jurídica da pena ...... 1404.5.1. Da necessidade de uma teoria da pena ................................ 1404.5.2. A proposta garantista de limitação do poder punitivo........ 145

Capítulo V – Os Sistemas de Execução e o Garantismo Penal............ 1515.1. Valores e princípios penalógico-constitucionais............................. 151

5.1.1. O condenado e o status ‘apátrida’ ......................................... 1515.1.2. As instituições totais e a Constituição de 1988 ................... 1535.1.3. Valores constitucionais informadores .................................... 1555.1.4. Princípios constitucionais informadores................................ 1575.1.5. Princípios penalógico-constitucionais ................................... 1595.1.6. A ‘Constituição penal’ e a restrição de direitos fundamen-

tais do preso ............................................................................. 1605.2. Sistemas de execução penal ............................................................. 162

5.2.1. Sistemas de execução penal: escorço histórico.................... 1625.2.2. O sistema de execução instituído pela LEP.......................... 1665.2.3. Os princípios relativos aos sistemas processuais e o diag-

nóstico do processo de execução penal brasileiro ............... 1705.3. Direitos versus Disciplina(s): o controle do indivíduo e da ‘massa

carcerária’............................................................................................ 175

xiv

Page 9: Carval Hope Nagar Anti As

Prefácio

A estrutura da Pós-graduação no Brasil ganhou um grande alentonos últimos anos. A criação de um sistema sofisticado e bastante rigo-roso de avaliação de Cursos e Programas, em um primeiro momento,assim como, depois, a exigência de um certo percentual de professorestitulados compondo o corpo docente dos Cursos de Graduação e a insu-portável ampliação do número deles levou, entre outros motivos, aoglamour em que se encontra. Surgiu, como era sintomático, a corridapelos títulos. Quem não tem um deles, hoje, da Pós-graduação strictosensu (mestre ou doutor), tem sido objeto de discriminação, porque ostatus ganhou a ordem do dia, o patamar de regra do jogo. Certo ouerrado (é despicienda a discussão), a verdade é que se tem grandesprofessores sem qualquer título, mas não é menos verdade que eles,salvo exceções, são autodidatas, não raro dotados de um dom que senão pode obter por estudo ou treinamento, ou seja, algo incompatívelcom as exigências de um país carente, muito carente, de bons profes-sores. Prepará-los, então, satisfatoriamente, é uma das missões da Pós-graduação, o que tem sido obtido com um sucesso surpreendente, emface das parcas condições, materiais e pessoais, com as quais tem-seoperado. Tem o país, assim, um bom motivo para orgulhar-se, mormen-te porque o modelo segue um tanto quanto na contramão da históriarecente, marcada pela impiedosa destruição neoliberal de uma certainteligência nacional muito propícia a tudo questionar, dado ser neces-sário, que siga lutando pelo espaço democrático de todos, não só dosincluídos. Além do mais, o modelo tem sido referência internacional(são poucos os países com uma estrutura semelhante e em alguns temservido de suporte a mudanças), inclusive pela sua produção, emborauma avaliação mais segura e sem muitos riscos de erro só se vai poderter em um lapso temporal mais longo, quando os egressos dos Cursose Programas comecem, em larga escala, a fazer eco na vida, por seusalunos. A produção jurídica, sem um pé na realidade, é feu follet.

A questão, agora, passa do bônus ao ônus, projetando o calcanhar-de-aquiles da estrutura. Não basta, sabe-se bem, produzir; é precisoque seja com qualidade. Para tê-la, faz-se mister um apurado sistemade orientação, ainda não alcançado no país. Em primeiro lugar, os pro-

xviixvi

6.3.5. Direito de resistência: efeitos jurídicos ......................................... 251

Conclusões ................................................................................................. 257

Referências Bibliográficas ....................................................................... 265

Posfácio Tântalo no Divã ......................................................................... 285

Page 10: Carval Hope Nagar Anti As

atual: resistência à globalização; as reformas penais atuais e a desca-racterização do garantismo penal: a falácia das “penas alternativas” ea continuidade do projeto defensivista; a crítica do abolicionismo aosistema de penas: resposta negativa ao ius puniendi, entre outros demuita importância, mas que cabem perfeitamente em textos isolados),aterra, pela primeira vez no mundo jurídico-criminal brasileiro de formasistemática, o pensamento de Luigi Ferrajoli, tomado como marco teó-rico. Por evidente, não se pode desconhecer a primorosa tese de douto-ramento do Prof. Sergio Cadermatori, apresentada e aprovada, em1998, na Universidade Federal de Santa Catarina, com o título “Estadode Direito e legitimidade: uma abordagem garantista”, entre outros tra-balhos quiçá de menor fôlego. Faltava, porém, pouco mais de dez anosapós a primeira edição de Diritto e Ragione: teoria del garantismo pena-le (Laterza, Roma-Bari, 1989, 1034p.), que alguém tivesse a ousadia dedestrinchar o garantismo de Ferrajoli e ler a pena e sua execução, noBrasil, a partir daquele lugar. Pois foi o que fez Salo de Carvalho; e deforma primorosa.

Está o texto estruturado em duas partes, respondendo a primeirapelas fontes e razões da teoria garantista. Tem-se, aí, o necessário paraentender-se o que Ferrajoli quis dizer quando afirmou que “il modellopenale garantista, benché recepito nella Costituzione italiana come inaltre Costituzioni quale parametro di razionalità, di giustizia e di legiti-mità dell’intervento punitivo”, para concluir que “L’orientamento che daqualche anno va sotto il nome di ‘garantismo’ è nato in campo penalecome una replica allo sviluppo crescente di tale divario [refere-se àdivergência entre a normatividade do modelo em nível constitucional esua ausência de efetividade nos níveis inferiores] nonché alle culturegiuridiche e politiche che l’hanno avallato, occultato e alimentato, quasesempre in nome della difesa dello stato di diritto e dell’ordinamentodemocrativo” (Diritto..., p. 891).

No que toca com as fontes, em um primeiro momento estuda asecularização (já observada de modo brilhante em outro livro, recém-lançado em conjunto com Amilton Bueno de Carvalho sob o título“Aplicação de pena e garantismo”, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001,onde escreve sobre a “Aplicação da pena no Estado Democrático deDireito e garantismo: considerações a partir do princípio da seculariza-ção”) e a tolerância, ambas tomadas como valores estruturais do para-digma garantista. Em seguida, mergulha na recepção da teoria contra-tual pela nascente ciência penal, onde o resgate de Jean Paul Maratparece ser o ponto alto, mormente por seu “Disegno di legislazione cri-

Pena e Garantias

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fessores mais antigos, que não vieram dos Cursos e Programas de Pós-graduação, têm visível dificuldade na condução da operacionalizaçãodas dissertações (de mestrado) e das teses de doutorado. É difícil,reconheça-se, ensinar, o que se não teve a possibilidade de aprender.Depois, pela falta de um corpo docente mais amplo, não se tem umamaior especialização, o que obriga a um esforço muito maior, com fre-qüência fazendo do orientador um cúmplice do orientando nas desco-bertas e decepções. Além do mais, o sistema, por vários motivos, ummais absurdo que o outro, transformou o mestrado em passagem obri-gatória para o doutorado, confundindo conceitos de um modo inaceitá-vel; e o reflexo disto projeta-se como um raio na produção.

Afinal, tem-se pleno domínio do sentido de recapitulação – e emque pese a originalidade de muitas delas – ensejado pela dissertação,fato de extrema relevância quando em questão está a formação de umprofessor. À tese, porém, não se reserva, nem se pode reservar, umahipótese do gênero, porque seria a sua banalização, desde que seuescopo é um texto originário, inovador, calcado na alteração da baseprincipiológica e, portanto, voltado, pelo menos no seu ponto de parti-da, às causas. Em suma, não se trata de produzir uma monografia oumanual qualquer, desses que tiranizam o saber dos alunos daGraduação, robotizando-os sem dó, mas um trabalho marcado peloconhecimento mais amplo – e lastreado nas disciplinas fundamentais ebásicas – desde o ponto de partida para, paulatinamente, seguindo-seum fio condutor e em constante afunilamento, chegar-se a um marcoespecífico, por certo inovador. Se não se levar a sério tais premissas,aqui alinhavadas de modo primário, logo ter-se-á, pelas dificuldadesindividuais (para não radicalizar e dizer mediocridade, porque seriainjusto dado não ser geral), doutores sem viço, massificados pela pro-dução em série, just-in-time.

A tese de doutoramento do Salo de Carvalho no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná que agora,seguindo a recomendação da Banca Examinadora (ProfessoresDoutores Nilo Batista, Sérgio Salomão Schecaira, Lenio Luiz Streck,Luiz Alberto Machado e Jacinto Nelson de Miranda Coutinho), chegaàs livrarias com o título “Pena e garantias: uma leitura do garantismode Luigi Ferrajoli no Brasil”, não só é um motivo de orgulho para oPrograma como, também, há de servir de exemplo do que é, em verda-de, uma tese; e de inestimável valor.

Nela, expurgada de alguns excessos quando em questão está apublicação de um livro (garantismo e conjuntura político-econômica

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perdoa o status alienado do jurista, atribuindo-lhe parcela de responsa-bilidade – com toda razão – pela barbarização da execução da pena.

Por outro lado, é refinada a interpretação que dá o Salo ao “utilita-rismo penal reformado” de Ferrajoli, argutamente percebido porNorberto Bobbio: “Le proposte di riforma avanzate, particolarmenteinnovative quelle riguardanti la pena, sono una diretta conseguenzadella teoria liberale dei rapporti fra individuo e stato, e lo stato non è maiun fine in se stesso perché è, o deve essere, soltanto un mezzo che ha perfine la tutela della persona umana, dei suoi diritti fondamentali di liber-ta e di sicurezza sociale” (Prefácio de Diritto e ragione..., cit., p. XIII).Com isto, torna-se possível, na tese, um retorno da pena ao espaço polí-tico para, a partir dele, reconhecer direitos dos presos que estão esca-moteados na verborréia jurídica, sem dúvida ideológica.

Em suma, tem muito claro o Salo, mais que ninguém, ser o garan-tismo de Ferrajoli e sua proposta de direito penal mínimo não uma teo-ria da pena mas, sobretudo, uma doutrina normativa sobre os limitesda pena. Deste patamar, a tese é de uma coragem ímpar, na melhor tra-dição de um bom gaúcho, justo porque, ao invés de transitar por umtema docilizado pelo senso comum, a começar por aqueles que levamo “de acordo” do egrégio Supremo Tribunal Federal, vai ao cerne dotumor do direito penal, ou seja, a pena e sua execução. Para quem nãoabre mão dos direitos humanos e da radicalização democrática, éimprescindível, como faz o Salo, pensar nas estruturas não por aquiloque elas têm de mera maquilagem. Vai daí que, a partir do modelo-limi-te garantista, chega, entre outras coisas, à conclusão de que “Emmatéria penal/penitenciária, o legado ainda presente da concepçãoadministrativista de execução na qual o detento é visto como meroobjeto e não cidadão, aliado à dificuldade de percepção dos direitostransindividuais, inviabiliza solução pacífica dos conflitos. A conse-qüência desta miopia da dogmática brasileira, cuja estrutura teóricanão permite conceber os detentos como sujeitos de direitos, é o resga-te crítico do direito de resistência como possibilidade estratégica decurto e médio prazo para o resgate de sua cidadania”.

Com esta tese – e seu livro – o Salo insere-se, em definitivo, na his-tória dos grandes nomes do direito penal do Rio Grande do Sul, tradi-ção de ponta no Brasil que passa por Salgado Martins, Alberto Rufino,entre tantos outros. Com ele – é impressionante – há um grupo dejovens penalistas gaúchos de extrema qualidade e um futuro que vaidar ainda muitos frutos e orgulho ao mundo jurídico-penal brasileiro.Em larga escala vinculados ao !TEC (Instituto Transdisciplinar de

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minale. Trad. de Marco Antonio Aimo, Milano-Varese: Cisalpino, 1971,184p.), talvez propositadamente esquecido, como “forma de combatede suas idéias pelo ‘ostracismo’”, como sustenta a tese. Depois, os fun-damentos da teoria garantista ganham espaço; e se compreende o por-quê da formulação de Ferrajoli.

Desde essa base, parte o autor à crítica aos fundamentos e à exe-cução da pena privativa de liberdade no Brasil; e o garantismo assumeum sabor verde e amarelo. Primeiro, pela avaliação crítica do modelopenalógico. Segundo, pela execução penal brasileira enquanto sistema,diante do modelo garantista. Por fim, o encontro com a realidade nacio-nal onde, como não podia deixar de ser, eclode a tese, com respostasfortes, porque não poderia ser diferente.

Soube o Salo, de maneira privilegiada, ler o garantismo deFerrajoli, tornando-o palatável à racionalidade jurídico-penal brasileiraque se não seduz com espelhinhos teóricos. A questão, neste aspecto,é simples: ou se trata de domesticar o pensamento eurocentrista ou aigreja não se faz povo, como disse Boff. Assim, a tese percebe a reco-mendação que Roberto Bergalli havia feito em um texto precioso,“Fallacia garantista nella cultura giuridico penale di língua ispanica”,publicado quiçá no melhor trabalho sobre a teoria de Ferrajoli, “Leragioni del garantismo: discutendo con Luigi Ferrajoli (LetiziaGianformaggio (Org.). Torino: Giappichelli, 1993)”: “Così l’esame chedovrà compiersi nell’ambito giuridico ispanico-latino-americano perverificare se le tesi di Ferrajoli sono trasferibili alla critica dei sistemipenali di queste culture, consisterà nel constatare se i principi costitu-zionali, le tradizioni legislative e la prassi applicativa che li caratterizza-no contengano quei tratti che Ferrajoli indica come propi dei sistemi diStato di diritto... Ma alcuni dei lavori che ho citato sopra hanno avuto ilmérito di abbraciare se non tutti almeno una buona parte degli aspettidel sistema penale spagnolo e di altri paesi latino-americani; e sulla basedi questi lavori è possibile dubitare della capacita di quegli Stati di assi-curare ai loro cittadini un diritto penale conforme al modelo normativo‘garantista’” (p. 197). Não cabe, todavia, uma postura maniqueístaembora, em tempos de globalização, mais do que nunca o escopo seja,como não poderia ser diferente diante da sua lógica, um “pensamentoúnico”, segundo Ignacio Ramonet, que parte do axioma de PaulWatzlawick: “De todas as ilusões, a mais perigosa consiste em pensarque não existe senão uma só realidade”. Não há espaço, portanto, paradeslizar no imaginário. Nesta dimensão, a tese agiganta-se, porque não

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Introdução

...não pensem que, só porque estou em silêncio, fuisuprimido. Estou bem vivo e atento a tudo que se passa.Não se iludam nem por um momento. Não é porque pareçoindiferente que meus sofrimentos cessaram. Não.

Samuel BecketAll That Fall

01. No prefácio da obra Fundamentos da Sociologia do Direito,publicada em 1912, Eugen Ehrlich afirma que deve ser possível resumiro sentido de um livro em uma única frase.1

Ao enfrentar a difícil tarefa proposta pelo autor, tem-se que o con-teúdo do presente trabalho pode ser sintetizado no seguinte enuncia-do: a inquisitorialidade (fática e normativa) do processo de execuçãopenal estabelece uma relação perversa, na qual os direitos e as garantiasdos apenados acabam reféns dos discursos clínico-criminológico e admi-nistrativo-disciplinar.

02. Antes, porém, de iniciar a abordagem central, algumas obser-vações são importantes.

Se fosse possível mensurar o grau de civilidade de determinadacomunidade, tarefa irrealizável empiricamente e inconcebível cientifi-camente, um dos principais critérios utilizados seria a avaliação do sis-tema penal em sentido amplo. A pauta de pesquisa poderia ser defini-da a partir do processo de seleção legal de condutas (criminalizaçãoprimária), passando pelo índice de incidência do sistema nos desvian-tes e no decorrente processo de rotulação (criminalização secundária)para, finalmente, direcionar o estudo ao ponto culminante do controlesocial formal: o sistema penitenciário.

Todavia, além do mecanismo formal de controle, sua relação como senso comum do ‘homem da rua’ seria fundamental, especialmenteporque o processo de criminalização primária inexoravelmente advémdas representações deste público consumidor em relação simbiótica

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1 Ehrlich, Fundamentos da Sociologia do Direito, p. 07.

Estudos Criminais), têm no Salo um pouco a figura do Captain, e não édesmerecido, embora ele nunca tenha sonhado em admitir tal hipóte-se, pelo respeito incondicionado que tem pela diferença e pelos amigosda “chusma”. Lugar do gênero, sabe-se pela psicanálise, conquista-se,domando-se, no que for possível, o Nome do Pai de Lacan, com muitasublimação, ou seja, o preço a pagar.

Para produzir trabalho de tamanha qualidade foi necessária umapesquisa imensa (incluindo nela um estágio entre Roma e Camerino,nos rastros de Ferrajoli, que se mostrou sempre muito solícito, é bomreconhecer), com muita meditação e a imprescindível humildade paraescutar as vozes discordantes, ou seja, o passaporte necessário para aentrada no rol daqueles que se quer ouvir. Veio à luz, assim, um livroque é um primor, do qual a leitura é tarefa inarredável.

Quem conheceu o Salo na “aborrescência” sabe existir Algo maisa mexer no destino, mormente quando a encruzilhada se apresenta.Poderia ter pensando nele Helena Kolody, nossa grande poeta, quandoescreveu Gestação:

“Do longo sono secretona entranha escura da terra,o carbono acorda diamante”.

Prof. Dr. Jacinto Nelson de Miranda CoutinhoCoordenador eleito do Programa de Pós-graduação

em Direito da UFPR

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cesso público de racionalização dos conflitos, invadindo, inclusive, oimaginário dos operadores do direito. Estes, formados para solucionarrazoavelmente os litígios, neutralizar o ímpeto de vendeta e sublimar aretaliação, acabam por internalizar e intermediar o ódio comunitário,sendo cooptados por disciplina social extremamente autoritária, legiti-madora de verdadeira política criminal do terror.

O jurista, neste cenário, transforma-se cada vez mais em vingadorprivado, negando seu papel de prestador público de justiça.

A afirmação transparece no principal momento da intervençãoestatal na sociedade: o processo de execução penal. Se o operador dodireito, narcotizado pelo discurso defensivista, exigiu o máximo dalegalidade até a sentença condenatória, neste momento crucial se cala,esquece o direito positivo como se acometido de terrível amnésia téc-nica. E, assim, por ignorância, ingenuidade ou má-fé, torna-se (co)res-ponsável pelo genocídio em massa produzido nas instituições carcerá-rias; transforma-se em agente legitimante e (re)produtor da selvageriagótica que assola a execução da pena privativa de liberdade, principal-mente aquela cumprida em regime fechado.

A tese obtém comprovação no tratamento acadêmico da ExecuçãoPenal. Ao avaliar os programas das Faculdades de Direito, nota-se quesequer existe previsão da disciplina no currículo mínimo da grandemaioria dos cursos jurídicos do país. Logo, se a tendência na esfera daexecução da pena é a invasão de inúmeras ciências diversas, cada umacom seus signos e linguagens próprias, consolidando verdadeira ‘torrede Babel’, aos juristas a tarefa passa a ser extremamente árdua, vistoque sequer conhecem razoavelmente o tema. Como conseqüência, aprática jurídica passa a ser superficial pois, ao ignorar a matéria, osproblemas são mal colocados e as respostas, logicamente, inexisten-tes, irrisórias ou ineficazes.

A ingenuidade do operador do direito em sede de execução penaldeterminou premissas que impedem a efetiva busca de soluções. Aprincipal é a afirmação de que o problema da execução reside exclusi-vamente no Estado-administração, ou seja, de que a violação aos direi-tos dos presos decorre da incompetência do Estado ao não cumprir aLei de Execução Penal. Sustenta-se que, se o Executivo prestasse seusserviços, os direitos dos apenados estariam plenamente garantidos.

Entende-se, porém, que a utilização deste recurso retórico servepara neutralizar omissões. Direcionando toda responsabilidade aoEstado-administração, o operador do direto redime sua (enorme) parce-la de responsabilidade.

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com a imprensa (marrom). Umberto Eco, ao problematizar sobre asnovas maneiras de formação do consenso, bem como sua relação como público espectador, adverte que, cada vez mais, são produzidos anal-fabetos lobotomizados pelo mass media.2

Ensina Gizlene Neder que, muito além de deflagrar processos for-mais de controle (criminalização), o mass media vincula procedimentosinformais: esta imprensa sensacionalista está a cumprir um papel inibi-dor-repressivo, exibindo um horror cotidiano. Com a produção imagéti-ca do terror apresentando diariamente mutilações e com a presença deum discurso minudente, detalhista, das atrocidades sofridas pelo ‘con-denado’, a banca de jornal como a praça oferece às classes subalternas,comprovadamente consumidoras preferenciais desta imprensa sensacio-nalista (de mau gosto para as elites), elementos de controle social infor-mal, de alguma forma eficaz.3

No Brasil, é possível afirmar que ambos níveis de resposta (contro-le formal e informal) aos fenômenos crime e violência estão envoltospor atmosfera doentia.

As respostas político-criminais à violência têm sua gênese invaria-velmente ligada a fatos e situações-limite, contingenciais. A discussãosobre a realidade carcerária é freqüentemente precedida de situaçõesde enorme violência nas instituições – v.g. fugas, rebeliões e motins.Propagados e explorados fervorosamente pelos meios de comunicaçãode massa, tais fatos pulverizam discursos estruturados em pressupos-tos maniqueístas e segregadores, quando não belicistas.

O debate, inequivocamente, é povoado pelo trivial: da banalizaçãofestiva da violência decorre a vulgarização rústica da resposta estatal.Observe-se que, em última instância, sob o argumento dos altos custosde manutenção do presidiário, da descrença em sua recuperação, apóia-se veladamente o extermínio.4

O efeito da miserabilização do tema violência, ofuscando as possi-bilidades de seu controle pacífico, é a barbarização do cotidiano, a con-fusão entre política pública de segurança e vingança privada, obtendo-se, como subproduto trágico, o vilipêndio do núcleo rígido daConstituição que são os direitos e garantias fundamentais.

A proliferação desses desejos ébrios de vingança, do sadismocoletivo mascarado, sobrepõe o sentimento individual emotivo ao pro-

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2 Eco, Postile a ‘Il nome della rosa’, p. 537.3 Neder, Em Nome de Tânatos, p. 20.4 Neder, ob. cit., p. 14.

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constitucionais, é idôneo para conter o poder e pôr os direitos funda-mentais a salvo dos desvios.

Frise-se, pois, que os sistemas jurídico e político não podem, por sisó, garantir absolutamente nada. Lembra Ferrajoli que a experiênciaensina que nenhuma garantia jurídica pode sustentar-se somente sobrenormas; que nenhum direito fundamental pode concretamente sobrevi-ver se não é sustentado por uma atuação por parte de quem é seu titular,e pela solidariedade das forças políticas e sociais para com essa atuação.6

03. Para fundamentar uma prática emancipatória, que compreen-da o apenado como sujeito de direitos, optou-se pela matriz teórica dogarantismo jurídico-penal.

O discurso garantista tem sua gênese no movimento do uso alter-nativo del diritto, surgido na década de sessenta/setenta no interior daAssociação da Magistratura Italiana. É desenvolvido a partir da críticaao direito penal, adquirindo atualmente pretensões generalistas, isto é,nasce como discurso de deslegitimação do sistema penal e alça seupotencial à estruturação de nova concepção sobre a teoria geral dodireito e do Estado (teoria política).

O primeiro e mais sensível efeito da adoção do modelo penal degarantias é a negação, a priori, das teorias de prevenção especial posi-tiva (ressocializadoras) como argumento justificacionista da pena, e,posteriormente, das próprias justificações jurídicas às sanções.

A legitimidade da pena é o epicentro do problema jurídico-penale, por que não dizer, da fundamentação política do Estado moderno. Noentanto, se em seu nascedouro a sanção penal obteve justificativa uti-litarista, desde as teorias retributivas e os modelos de prevenção geralnegativa sob a égide do discurso contratualista, com o advento daEscola Positiva italiana passa a ser moldada pela ideologia do trata-mento. A concepção profilática da pena perpassou todo o século XX eainda demonstra fortes sinais de manutenção, principalmente pelarelegitimação operada pelo neo-positivismo criminológico da correntepolítico-criminal da (Nova) Defesa Social.

O discurso garantista, porém, encontra-se em perspectiva diame-tralmente oposta ao modelo ressocializador, procurando deslegitimaros fundamentos jurídicos da pena, direcionando-a ao seu local de ori-gem: a esfera política. Constrói seu arcabouço teórico a partir dos prin-cípios ilustrados da secularização e da tolerância, concebendo justifi-

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6 Ferrajoli, ob. cit., p. 986.

Evidente que a afirmação é válida quanto ao aspecto material(infra-estrutural), isto é, efetivamente a Administração Pública colocaos apenados em situação de violência permanente ao não cumprir como dever de assegurar o mínimo de dignidade durante o período deexpiação da pena. Alerta-se, contudo, que os direitos do apenado vãomuito além dessa proclamada ‘qualidade de vida doméstica’ consigna-da no ‘Estatuto Social do preso’ (normas de execução que regulam seu‘bem-estar’).

No momento da condenação de uma pessoa ao sistema peniten-ciário exsurge uma série de direitos e garantias processuais que permi-tem a diminuição do período de cumprimento da pena e, por óbvio, depermanência no sistema: são os chamados incidentes da execução. Háuma série de direitos primários, exclusivos da condição de apenado,que devem ser respeitados pelo Poder Público, principalmente peloJudiciário (v.g. remição, progressão de regime, substituição de pena,detração, livramento condicional, comutação, indulto et coetera).

No entanto, a efetividade desses direitos somente é possível sehouver instrumentalidade processual (garantista), se o artesão dodireito possuir conhecimento mínimo para exigir a prestação jurisdicio-nal. O déficit de saber técnico-dogmático, porém, predomina, e as crí-ticas acerca da inefetividade dos direitos são, invariavelmente, direcio-nadas ao Poder Executivo.

A postura do jurista identificado com a perspectiva crítica, entre-tanto, não pode ser de ocultação dessa cruel realidade; pelo contrário,sua função é denunciar as ilegalidades do sistema, sejam normativasou referentes à prática cotidiana.

Nesse sentido, imprescindível desenvolver severa crítica à ‘faláciapoliticista’, pensamento predominante na esfera da execução penalbaseado na idéia de que é suficiente a ação do Poder Público, ou seja,de que basta um ‘poder bom’ para satisfação dos direitos. Como adver-te Ferrajoli,5 é ilusório pensar que pode existir um ‘bom poder’ capaz detutelar direitos sem a mediação de complexos sistemas normativos degarantias com capacidade de limitá-lo, vinculá-lo, instrumentalizando-o e, se necessário, deslegitimá-lo e neutralizá-lo. Não obstante, alertaimportante não incorrer-se em uma ‘falácia garantista’, ou seja, naconstrução de um discurso baseado na idéia de que a existência de um‘bom direito’, dotado de sistemas avançados e atualizados de garantias

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5 Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 985.

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ao relocar o problema da pena à esfera política, legitimar atos de resis-tência dos apenados (se presentes requisitos mínimos), visto que,como afirma Gizlene Neder, as prisões (em todo o país) escancaram umapodridão que ressalta a arrogância e o descaso das elites e dos gover-nantes em relação aos direitos (em geral), mas, sobretudo, aos direitoshumanos das classes subalternas.7

04. A constante publicização do abuso do poder público nas insti-tuições penitenciárias permite a visualização das hipótese elencadas.

Eduardo Galeano, observando a realidade de um ‘mundo aoavesso’, percebe nele a existência de cárceres imundos, nos quais osprisioneiros, em sua grande maioria pobres e sem condenação, sãomantidos como ‘sardinha em lata’ – se se comparasse, o inferno deDante pareceria algo de Disney. Continuamente estalam motins nessasprisões que fervem. As forças da ordem liquidam a balaços os desordei-ros e, de quebra, matam todos que encontram pela frente, atenuando oproblema da falta de espaço.8

O jornalista uruguaio abdica, contudo, de escrever sobre o irreal econstata que, em 1992, houve mais de cinqüenta motins (segundocifras oficiais extremamente otimistas) nos presídios latino-america-nos, cujo saldo foi de, no mínimo, novecentos mortos, quase todos exe-cutados a sangue-frio. Todos estes presídios padeciam de graves pro-blemas de superlotação.

Segundo a Secretaria de Segurança Pública do Estado de SãoPaulo, só no ano de 1997 ocorreram 195 rebeliões nas instituições car-cerárias. No ano anterior, tinham sido constatadas 71. Em 1996, houve589 evasões, com 3.957 foragidos; em 1997, 3.663 pessoas deixaram ascadeias em 638 fugas; foram registrados, em 1996, 341 casos de tenta-tiva de fuga contra 417 em 1997.

O advento de fugas, rebeliões e motins (conflitos carcerários), alia-do à ampla cobertura da imprensa, transforma o tema em pauta diáriade discussão. É, pois, nas significações dos conflitos na esfera do direi-to que se procurará comprovar a tese de que, tanto em nível normativoquanto executivo, o universo da execução da pena privativa de liberda-de no Brasil é regido por modelo inquisitorial.

A partir dos discursos (sobretudo jurídicos) sobre a maior violaçãoaos direitos humanos em casas prisionais no país, o ‘massacre do

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7 Neder, ob. cit., p. 12.8 Galeano, De pernas pro ar, p. 94.

cação antropológica à intervenção estatal, desmistificando o falso‘humanismo’ que recobre o mito da recuperação.

Assim, o garantismo apresenta-se como modelo interpretativo dosistema penal, como recurso heurístico de legitimação e/ou deslegiti-mação das normas e práticas do controle social formal.

Ao fundar sua doutrina na secularização e na tolerância, e des-construir o argumento ressocializador da resposta penal ao desviopunível, a teoria do garantismo impõe uma série de condições necessá-rias ao discurso jurídico, isto é, deriva inúmeras implicações teóricasque devem ser respeitadas.

Assumindo, pois, a perspectiva garantista, procurou-se tensionarseu discurso ao máximo, utilizando como objeto de análise a execuçãoda pena privativa de liberdade cumprida em regime fechado no Brasil.O trabalho não recai, pois, somente sobre as teorias da pena mas, esobretudo, sobre a estrutura normativa e a realidade da execução penal.

Trabalhou-se com a hipótese de que o modelo de execução da penaconfigura um sistema totalitário inquisitivo, devido ao fato de, na esfe-ra pública, reduzir o acesso à jurisdição, e, na esfera privada, impor umpadrão moral como forma de justificar um sistema meritocrático.

Portanto, os argumentos que perpassam o trabalho oscilam entrea deslegitimação do modelo ressocializador e a incapacidade garanti-dora do processo de execução penal. São objetivados em três premis-sas: (1a) o modelo da ressocialização, além de inviabilizar no cotidianoda execução o gozo pleno dos direitos pelos apenados, não apresentaconteúdo mínimo que possa afirmar sua harmonia com os valores cons-titucionais da secularização e da tolerância; (2a) o processo de execu-ção penal, muito longe de estar preparado para garantir os direitos dosapenados, não possui instrumentalidade mínima em decorrência desua subordinação à estrutura do direito penitenciário; e (3a) da falta decapacidade processual do direito em assegurar os direitos, quando daconstatação de situações de violência institucional (lesão aos direitosfundamentais), exsurge o ius resistentiae como manifestação legítimade desagravo pela massa carcerária. Agregando os argumentos, advo-ga-se que a estrutura da execução da pena no Brasil adquire feiçõesinquisitoriais, visto que impõe aos apenados reforma moral, impede amassa carcerária de usufruir direitos primários positivados no ordena-mento jurídico e, finalmente, sanciona (administrativa ou penalmente)qualquer manifestação contrária a este estado de coisas.

O discurso garantista proporciona desconstituir o fundamentoterapêutico, diagnosticar as falhas de instrumentalidade processual e,

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o inferno carcerário como o que persiste no Brasil, uma das nossas tan-tas emergências sem solução.11

Procurou-se, pois, construir possibilidades de resgate dos direitosdos apenados neste cenário no qual a fatalidade, que também invadeo discurso jurídico, tudo explica e justifica. Buscou-se resgatar, namedida das limitações, tanto pessoais como impostas pelo muro da pri-são, a fala destes sujeitos esquecidos; a preocupação é dar voz aos dife-rentes sujeitos que fazem parte desse espaço prisional.12

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11 Veríssimo, Os Usos da Fatalidade, p. 03.12 Guindani, Violência e Prisão, p. 147.

Carandiru’, surgem algumas indagações, pois o massacre do Carandirué uma forma figurada de se falar sobre outras coisas: é uma metáfora dequestões candentes, e não resolvidas, na construção truncada de umEstado Democrático de Direito que formalizou-se juridicamente semassegurar cidadania efetiva. A intensa cobertura jornalística ressaltouos conflitos humanos e os terrores mal articulados no imaginário dasociedade: das mulheres que junto ao portão do presídio gritavamnomes dos presidiários na esperança de uma resposta dos internos sobresua vida ou morte de seus filhos e parentes até o terror de contaminaçãodos policiais pelo sangue que jorrava de presos supostamente aidéticos.No centro da discussão da imprensa permanecia latente a questão: Éjusto se exterminar excluídos que foram tidos como perigosos ou rebel-des? Ou o Estado se torna delinqüente quando policiais militares massa-cram presos?9

A grande questão oculta que permeia o debate jurídico sobre oscasos de conflito carcerário no Brasil relaciona-se ao fato de ser ou nãoo Estado responsável pelo zelo da integridade física e moral do apena-do e de, ao descumprir esta obrigação constitucional, dever ou nãoarcar com as responsabilidades decorrentes.

Muito mais que um motivo para debate, os conflitos carceráriosrefletem o sentir (sentido/sentimento) sobre a pessoa presa, sobre seusdireitos e, principalmente, sobre a forma de exercê-los. Mais, se sepode conceber e garantir aos detentos, no caso de violação sistemáti-ca aos seus direitos fundamentais (casos emergenciais), mecanismosde (re)ação legítima.

Infelizmente, a conclusão que sobressalta no universo jurídico-político é negativa, pois parece que suas vidas não importam; seusdireitos (humanos) também não. O ‘Massacre do Carandiru’ é a provaeloqüente disto.10

Luis Fernando Veríssimo, notável crítico do cotidiano, percebe quea situação carcerária no Brasil é um teatro de permanente purgação,uma realidade construída aos poucos por homens conscientes – ‘obrade gerações’ –, resultado de anos e anos de decisões adiadas, de omis-sões e desconversas. Cenário de martirização na carne cuja fatalidadeé o álibi; a fatalidade é a desculpa; a fatalidade, no fim, é a explicaçãode tudo – só um fatalismo congênito, ou uma cultura fatalista, justifica

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9 Caldeira, Caso Carandiru, p. 55.10 Neder, ob. cit., p. 23.

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Capítulo IA Constituição do Paradigma Garantista

1.1. Garantismo e inquisitorialismo: modelos paradigmáticos em tensão

Para realizar uma digressão histórica com intuito de fundar os pres-supostos do modelo jurídico-penal de tutela dos direitos fundamentais,é mister preocupar-se com a afirmação de alguns valores e categoriasque serão lapidares no processo de construção dos direitos humanos,entendidos estes, desde uma perspectiva garantista, como elementosde legitimação externa dos Estados democráticos de direito.

Os valores elencados para o estudo ora proposto são a seculariza-ção e a tolerância, frutos da concepção ilustrada do direito e do Estadoa partir da laicização do saber filosófico e jurídico.

É necessário ressalvar, todavia, que tal eleição fornecerá elemen-tos justificadores de um modelo jurídico-penal contratualista e liberal,tendo em vista que a especificidade histórica da ilustração é caracteri-zada pela intensa busca de limites ao Estado frente à liberdade indivi-dual, bem como pela elaboração de critérios de participação do cida-dão no espaço público. Assim, pode-se afirmar que as principais mani-festações do direito no câmbio do Ancien Régime à modernidadeencontram-se no direito e processo penal e nos direitos políticos.

Nesse contexto, o direito penal e o direito processual penal atua-riam como parâmetros de tutela à liberdade, sendo que os direitos polí-ticos possibilitariam os canais de acesso do cidadão às decisões sobreas ‘regras do jogo’. Este rol de direitos e garantias asseguradas pelopensamento ilustrado propiciou a noção contemporânea de direitos deprimeira geração (direitos individuais), estruturando a base de legiti-midade do garantismo jurídico.1

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1 Registre-se, de imediato, que, muito embora seja utilizado em alguns momentos do textoa divisão Direitos Humanos em gerações (eras), compartilha-se da Teoria Crítica dosDireitos Humanos, principalmente da perspectiva desenvolvida nas investigações doPrograma de Doutorado Derechos Humanos y Desarrollo, da Universidad Pablo de Olavide

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Ferrajoli opõe o Estado democrático de direito ao Estado autoritá-rio e, como conseqüência, o modelo jurídico garantista ao modelo inqui-sitorial. O autor cria, a partir da terminologia weberiana, tipos ideais deEstado e de direito, ou seja, recursos heurísticos tendenciais e irreali-záveis, que servem de parâmetros à (des)legitimação e/ou (des)cons-trução de sistemas de saber/poder.3

Tomar-se-ão, pois, as categorias fornecidas por Ferrajoli para cons-truir um modelo paradigmático de direito cuja denominação será direi-to de garantias ou simplesmente garantismo.

A ênfase no penal não decorre unicamente do interesse acadêmi-co na disciplina mas, e sobretudo, devido às manifestações de van-guarda que este ramo jurídico proporcionou no período da ilustração.

Leciona Carnelutti que el primado histórico pertenece al derechopenal. Cuando el derecho nace, nace como derecho penal.4 Pode-se afir-mar, portanto, que um dos principais motivos da racionalização ehumanização do direito foi a resistência imposta pelo pensamento filo-sófico-jurídico às manifestações de barbárie dos Tribunais do SantoOfício da Inquisição.

Neste processo de (re)construção do garantismo como possibilida-de de fundar um modelo de tutela dos direitos fundamentais, a avalia-ção da matriz iluminista é por demais importante, visto que la crítica alderecho penal y processal en el siglo XVIII, que ocupa una buena partede los esfuerzos de la filosofia ilustrada, puede hoy presentarse como unde los capítulos principales de la génesis ideológica de los derechos fun-damentales.5 Dessa forma, a aparição do penal/carcerário no corpodeste texto viabiliza manifestações paradoxais de paradigmas emconstrução e em crise.

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as críticas não apenas são possíveis como necessárias. Neste sentido, importantes ascolocações de Sousa Santos, Um Discurso sobre as Ciências, pp. 36-58.

3 Importante lembrar o ambicioso processo de poder inserido nesta disputa pelo locus dafala científica. Para Foucault, a imposição de um saber delega às demais análises sobreo mesmo fenômeno o posto de ‘saberes dominados’, saberes desqualificados como nãocompetentes ou insuficientemente elaborados: saberes ingênuos, hierarquicamente infe-riores, saberes abaixo do nível requerido de conhecimento ou cientificidade (Foucault,Genealogia e Poder, p. 170). A propósito, reitera Foucault que temos que admitir que opoder produz saber (e não simplesmente favorecendo-o porque o serve ou aplicando-o por-que é útil); que poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de podersem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não cons-titua ao mesmo tempo relações de poder (Foucault, Vigiar e Punir, p. 30).

4 Carnelutti, Cuestiones sobre el Processo Penal, p. 45.5 Sanchís, La Filosofia Penal de la Ilustración, p. 288.

Para caracterizar os fundamentos destes direitos incipientes, co-mungou-se da tipologia proposta por Luigi Ferrajoli em sua obra Dirittoe Ragione: Teoria del Garantismo Penale, a qual fornece dois modelosdicotômicos de Estado e de direito, por meio dos quais formular-se-ãoestruturas paradigmáticas de direito e processo penal.2

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(Sevilha/ES) coordenado por Joaquín Herrera Flores e David Sánchez Rúbio. Neste senti-do, conferir Sánchez Rúbio, Acerca de la Democracia y los Derechos Humanos, pp. 63-99;Herrera Flores, Hacia una visión compleja de los Derechos Humanos, pp. 19-78; e Senentde Frutos, Notas sobre una Teoría Crítica de los Derechos Humanos, pp. 117-129. Sobre aintersecção da matriz garantista com a perspectiva crítica dos Direitos Humanos, confe-rir Wunderlich, Sociedade de Consumo e Globalização, pp. 41-61.

2 A opção pela teoria dos paradigmas advém do fato de entender inexistir ‘a’ ciência comoatividade unívoca e homogênea para todas as épocas e sociedades. Partilhou-se do ensi-namento de Thomas Khun no qual a realização, produção e reprodução da ‘ciência’ estásempre restrita ao consenso ou conjunto de compromissos teóricos básicos existentesnuma comunidade científica. Há ciência apenas quando um pesquisador (sujeito com-prometido com um paradigma) utiliza os instrumentos de pesquisa oferecidos pelomodelo vigente, compartilhando de seu objeto, métodos e fins: um paradigma é aquiloque os membros de uma comunidade científica partilham. E, inversamente, uma comuni-dade científica consiste em homens que compartilham de um paradigma... Um paradigmagoverna, em primeiro lugar, não um objeto de estudo, mas um grupo de praticantes daciência (Khun, A Estrutura das Revoluções científicas, pp. 219-224).Ao estar consolidado no universo da comunidade, o paradigma passa a ser irrefletida-mente repassado aos demais pesquisadores por meio de um específico modo de produ-ção do saber. Essa ‘ciência normal’ acaba por determinar o que é lícito ou ilícito, o que éou não admissível em determinada disciplina, dirigindo e impondo os resultados finais,bem como constituindo as formas e os campos possíveis do conhecimento (Foucault,Vigiar e Punir, p. 30). Todavia, a partir do momento em que a comunidade científica iden-tifica objetos estranhos que não deveriam ali estar sendo estudados ou que suas respos-tas não correspondem às expectativas do grupo, estamos diante de uma ‘criseparadigmática’. A crise se processa no interior do universo de análise pré-constituído,pois se percebe que elementos que deveriam ser objeto de pesquisa estão fora da lupadeste parâmetro oficial de realização de ciência que não mais consegue responder satis-fatoriamente aos interesses da comunidade (científica). Há crise paradigmática nestemomento intermediário em que o paradigma vigente não consensualiza mais a comuni-dade científica e o novo modelo instrumental ainda não logrou plena aceitação (ou nãoatingiu aceitável maturidade). A atividade de identificação dos elementos externos nãoabsorvidos, ou internos desconfortantes, no paradigma vigente é fruto de verdadeira ati-vidade subversiva, marginal e sediciosa desde a perspectiva da ciência normal, configu-rando, pois, uma ‘ciência extraordinária’, alternativa.Logicamente, o objetivo da ciência extraordinária é impor novos limites, métodos e finsà ciência, isto é, instaurar-se como o novo paradigma dominante. Tal processo é definidopor Khun como ‘revolução científica’ e é o que permite a eterna modificação e o constan-te aperfeiçoamento da humanidade em uma verdadeira ‘ciranda da ciência’. Ressalve-se,porém, que da crise não resulta necessariamente a substituição de um paradigma poroutro, podendo ocorrer redimensionamentos e relegitimações do modelo que anunciavasinais de enfermidade.Registre-se ainda que, muito embora a estrutura khuneana seja pensada para as ‘ciên-cias naturais’, existem possibilidades de sua apropriação pelas ‘ciências sociais’. Assim,

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cada estrutura de pensamento político elabora formas de compreensãosobre o desvio, o delito, o juízo e a pena. Percebe Zaffaroni que cada ‘-jusnaturalismo’ histórico tuvo su criminología, o sea, su sistema de ideasacerca de lo que se debe ser el delito y la pena; toda sociedad tuvo su dis-curso criminológico que explicaba el poder y el delito.8

Todavia, o complexo de idéias nascidas a partir do modelo contra-tualista do iluminismo funda a estrutura do direito penal moderno, dapolítica criminal contemporânea e da atual criminologia, estruturandoos pressupostos científicos e ideológicos conformadores do saber oci-dental sobre a criminalidade, transnacionalizados historicamentedesde o centro à periferia. Logo, lo que surge con el Iluminismo no es lacriminologia misma, sino la criminologia europea moderna, es decir, lapresentación de la criminologia en la forma que los europeos la concibeny a partir de entonces la difundem por el mundo.9

A afirmação é de fundamental importância, pois revela a estrutu-ra do saber-poder eurocentrista imposta ao Novo Mundo desde a des-coberta, matriz cuja base permanece inabalada, ainda que modificadaem alguns aspectos de sua apresentação ao público consumidor do sis-tema penal.

A tradição acadêmica, diversamente, reconhece o estudo do ilumi-nismo penal tão-somente a partir das promessas de racionalidade(legalidade e certeza) e proporcionalidade das penas, conformando osideais de ‘segurança jurídica’.

Agora, se é decisivo o pleno entendimento da estrutura penal e filo-sófica do iluminismo sob pena de incompreensão das funções do siste-ma jurídico-penal da modernidade, a exclusão do status quo ante impos-sibilita a avaliação das conseqüências dos discursos jurídicos fragmen-tadores do modelo clássico. Olvidar o modelo jurídico do medievo signi-fica, fundamentalmente, ignorar as possibilidades e as armadilhas gera-das pela assunção de saberes opostos e conflitantes ao garantista.

Existe um saber construído e consolidado no período da BaixaIdade Média cujas características indicam a formação de um núcleomínimo de elaboração paradigmática. Este saber não é ingênuo nemaparente, mas real e coeso, fundado em pressupostos lógicos e coeren-tes, nos quais grande parte dos modelos jurídicos autoritários contem-porâneos, alguns ainda em vigor, busca(ra)m inspiração. Mais, em

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8 Zaffaroni, Criminología, p. 101.9 Zaffaroni, ob. cit., p. 101.

A partir destas considerações, o trabalho é desenvolvido na confi-guração do saber (paradigma) inquisitorial e do saber (paradigma)garantista, identificando suas características, princípios e valores fun-damentais, o processo de crise e substituição paradigmática, bemcomo seu legado à teoria do direito e às relações de poder existentesem sua conformação e declínio. Paralelamente, procurou-se demonstrarque esta mudança de paradigmas na esfera jurídica correspondeu tam-bém a uma mudança paradigmática nas ciências em geral, especifica-mente na filosofia e na política, já que a substituição do paradigma teo-lógico pelo paradigma antropológico descentralizou, descobriu, con-quistou e ‘humanizou’ o homem.

1.2. O paradigma da intolerância: o modelo jurídico inquisitorial

1.2.1. Esclarecimento necessário: o porquê do medievo

Sabe-se que inúmeras leituras são possíveis da estrutura jurídico-política do medievo. A complexidade desse período histórico indica ariqueza e a pluralidade da matéria. Segundo Francisco Bethencourt,6 asInquisições são estudadas, geralmente, não como um problema, mascomo tema consagrado de pesquisa, permitindo todos os cortes espa-ço-temporais e todas as apropriações discursivas. Por isso UmbertoEco, antes de tematizar as inúmeras formas de conceber o medievo,ensina que como todos os sonhos, também o da Idade Média corre orisco de ser ilógico, e fonte de admiráveis deformidades. Muitos no-lo dis-seram, e talvez isto bastasse para não induzir-nos a tratar de modohomogêneo o que não é homogêneo.7

No direito, a doutrina tradicional limita as questões do modeloinquisitorial às (importantes) modificações processuais (do modeloacusatório-ordálio privado ao modelo inquisitivo) ou à criação da primascuola, a denominada ‘Escola Clássica’ do direito penal, marco genea-lógico da ciência criminal moderna (direito penal, processo penal, cri-minologia e política criminal).

No entanto, fundamental observar que sempre houve, e semprehaverá, um determinado saber sobre o crime e a criminalidade, ou seja,

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6 Bethencourt, História das Inquisições, p. 09.7 Eco, Dez Modos de Sonhar a Idade Média, p. 74.

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penal material. Segundo o processualista argentino, tal constataçãopode ser observada plenamente no processo histórico de construçãodo modelo processual inquisitivo. Apesar de ser um sistema processualcujos primeiros vestígios apareceram no Império Romano, posterior-mente desenvolvido pelo Direito canônico e recebido na legislaçãolaica da Europa continental através do fenômeno conhecido como‘recepção’ do Direito romano-canônico, verifica-se que su nacimiento,desarrollo y recepción fueron el resultado de la necessidad política con-creta de apoyar un poder político central y vigoroso, cuya autoridad yfundamento no podía discutirse (autoritarismo). Para ello resultó nece-sario postergar los intereses individuales y elevar a principio el aforismosalus publica suprema lex est.15

As primeiras manifestações do processo inquisitorial ocorreram naRoma Imperial, após a introdução dos delitos de laesae maiestatis (sub-versão e conjura), nos quais o ofendido era o soberano.

Na Grécia e na Roma republicana, porém, o processo era fundamen-talmente acusatório, dado o caráter privado da acusação (nos delitos nosquais o Estado não era ofendido/interessado) e a natureza arbitral dojuízo.16 Esclarece Tornaghi que na Antiguidade a forma de processoconhecida foi a acusatória, cujo princípio orientador pode ser observadono fato de que ninguém poderia ser levado a juízo sem acusação.17

No sistema da República romana, o processo iniciava com a accu-satio do ofendido ou do seu representante. Após a accusatio havia oprocedimento de pesquisa da materialidade e autoria pelo acusador napresença do acusado. A legitimidade da investigação era fornecidapelo magistrado através de uma lex que delegava poderes para proce-

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15 Maier, Derecho Procesal Penal, p. 261.16 Segundo Geraldo Prado, o prestígio do modelo ateniense de persecução penal derivou

exatamente do sistema de acusação popular, em relação aos crimes públicos, faculdadedeferida a qualquer cidadão, de um modo geral pela Assembléia do Povo, para em nomedo próprio povo sustentar a acusação. Assim, o ofendido ou qualquer cidadão apresenta-va e sustentava a acusação perante o Arconte e este, conforme se cuidasse de delitopúblico, convocava o Tribunal, cabendo ao acusado defender-se por si mesmo (em algu-mas ocasiões era auxiliado por certas pessoas). As partes apresentavam suas provas eformulavam suas alegações, não incumbindo ao Tribunal a pesquisa ou aquisição de ele-mentos de convicção. Ao final a sentença era ditada na presença do povo (Prado, SistemaAcusatório, p. 79). A forma acusatória adotada na época era dominada integralmente pelocontraditório, cumprindo às partes pesquisarem e produzirem as provas de suas alega-ções. Tratava-se de um modelo de processo público e oral, cujos debates formavam o eixocentral, dos quais derivava o fundamento da decisão. Neste paradigma processual as par-tes tinham, via de regra, a disponibilidade do conteúdo do processo (Prado, ob. cit., p. 82).

17 Tornaghi, Instituições de Processo Penal, pp. 470-471.

matéria penal e processual penal, a elaboração desta matriz foi tãogenial que permanece vigente nos tempos atuais.10

Assim, caracterizar o ‘paradigma inquisitorial’ não representamero exercício lúdico de academia, mas sim identificar possibilidadesconcretas de sistemas jurídicos desvirtuados (autoritários) – mudam ossinais, mas não a lógica de um sistema totalitário e por isso repressivode toda e qualquer diferença.11 Para tanto, propõe-se a (re)construçãogenealógica do modelo para, em momento posterior, caracterizá-lo emsua principiologia, pois na Inquisição está o modelo ideal da implanta-ção de regimes totalitários, dos seus métodos de tortura, de como sãotratados dissidentes políticos e sociais, de como isolar milhares de pes-soas proibidas de conhecer suas origens culturais, da miséria dos conde-nados ao silêncio e à incomunicabilidade, do racismo mascarado emnovas ideologias e da apropriação de bens como fiança desses crimes.12

O medievo representa, pois, segundo Umberto Eco, a infância dacivilização, à qual é necessário sempre retornar para fazer anamnese.13

Dito de outro modo, a Idade Média representa o crisol da Europa e dacivilização moderna. A Idade Média inventa todas as coisas com asquais ainda estamos ajustando as contas.14

Se a afirmação é verídica, ou seja, de que o olhar sobre o medievopossibilita aos europeus diagnóstico de problemas atuais em decorrên-cia das constantes tendências de retorno à infância civilizatória pelaretomada de práticas bárbaras, na realidade periférico-marginal latino-americana tal análise, mais que diagnóstico de possibilidades de retor-no histórico, afirma e desnuda relações vivas e pulsantes, caracteriza-doras de uma sociedade na qual coabitam práticas sociais e institucio-nais pré e pós modernas (trans-modernidade).

1.2.2. Antecedentes históricos do modelo inquisitorial

Julio Maier, ao avaliar o processo penal como fenômeno da cultu-ra, afirma que entre o sistema político imperante e o conteúdo do direi-to processual penal existe uma direta e imediata relação, de visibilida-de mais intensa, inclusive, que o nexo entre história política e direito

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10 Nesse sentido, conferir Coutinho, Jurisdição, Psicanálise e Mundo Neoliberal, p. 47.11 Boff, Inquisição: um espírito que continua a existir, p. 20.12 Novinsky, Inquisição: Rol dos Culpados, p. XI.13 Eco, Postile a ‘Il nome della rosa’, p. 537.14 Eco, Dez modos de sonhar a Idade Média, p. 78.

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ordálias, praticadas nos ‘baixos níveis sociais’, eram presentes os due-los, procedimentos típicos para resolução dos conflitos com e contra anobreza. Todavia, como nota acuradamente Franco Cordero, o séculoXII é um século burguês, aberto a desencantados interesses intelectuais,sendo intoleráveis máquinas judiciárias tão rudimentares.23

A modificação do ambiente do século XIII provoca uma profundaalteração na consciência social e na estrutura organizacional: tudo erarelativamente fácil (aos que faziam parte da elite, é claro); cada pessoaera um ser segundo sua classe e seu sobrenome, uma ‘virtus’ medidapelas ações heróicas; a economia monetária desorganizou os valoresintroduzindo uma variável insensata; o ser constituía um dado estável; ohaver flutua; agora, cada um é aquilo que possui... Estamos em um sécu-lo de alto nível cultural: não é mais o tempo do êxtase fantástico; pesqui-sadores indagavam sobre os mecanismos causais; muito úteis os conta-tos com o mundo árabe, evoluído em relação à Europa feudal; da alqui-mia à psicologia, florescem interesses experimentais; Aristóteles oferecemapas enciclopédicos. Esse gosto sofisticado rejeita os processos-espe-táculo onde um único e agonístico ato liquida todo o jogo: duelos, jura-mentos, ordália, não dizem o que aconteceu; muito menos respondem aum conhecimento histórico adequado os vereditos emitidos pelo pettyjury, como vox patriae ou voix du pays. O saber técnico imposto pelasfontes romanas exige novas máquinas instrutórias; se alguém deve ounão ser punido é assunto cientificamente regulável; em primeiro lugar,devem ser reexaminados os fatos, com métodos adequados à culturadominante; depois conhecedores do Corpus Iuris ou dos cânones dirãoquanto vale in iure o acontecido. Os antigos rituais não distinguiam asduas questões, facti e iuris.24

Durante o Concílio de Verona (1184), a Igreja conclui necessáriasprovidências contra qualquer manifestação cismática, sendo gestado odiscurso de fundamentação dos futuros tribunais repressivos do clero(Tribunais do Santo Ofício da Inquisição). Em Verona, o Papa Lúcio III eo Imperador Frederico Barbaroxa, impressionados com os crimes doscátaros no sul da França (onde eram conhecidos como albigenses) e naItália setentrional, decidiram ordenar aos bispos que visitassem uma ouduas vezes por ano as paróquias de sua diocese, pessoalmente ou por

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tendores a uma espécie de jogo, através do qual se manifestava a interferência divina nasolução do conflito (Gomes Filho, Direito à Prova no Processo Penal, p. 20).

23 Cordero, Guida alla Procedura Penale, p. 40.24 Cordero, ob. cit., pp. 43-44.

der à busca das provas (inquirição de testemunhas, exame de docu-mentos et coetera). O acusado, ou seu comesmis, podia fiscalizar osatos do acusador de modo que este não podia sequer pensar coisa algu-ma que ao outro não fôsse conhecida.18 Logo, o processo acusatóriocaracterizou-se, desde o princípio, como actus trium personarum,público, oral e contraditório, no qual o juiz não tomava a iniciativa deapurar coisa alguma, e onde o réu aguardava, em regra, a sentença emliberdade. Importante lembrar que a ação popular (pública) nasceuposteriormente, com a introdução dos delitos contra a coletividade.

O processo inquisitório foi subsidiário ao acusatório, coexistindodurante muitos séculos com este e tomando gradualmente as feiçõesatualmente conhecidas. Ressalta Julio Maier que a mudança da estru-tura acusatória para a inquisitiva se operó gradualmente, penetrandosiempre al antiguo sistema a las instituciones posteriores y adquiriendoel nuevo sistema, al comienzo, carácter de excepción frente al anterior,como intento natural de subsanar deficiencias de la antigua fórmula enla práctica o según las necesidades proprias de la nueva organizaciónpolítica, que termina por imponerse y ordinarizarse.19

Em sua instrumentalização, a inquisitio se dividia em duas fases. Naprimeira, chamada de inquisitio generalis, o fato era pesquisado em suamaterialidade, sem atentar à autoria. Apurada a existência do fato, pas-sava-se à investigação da culpa, perquirindo-se sobre o autor. Estesegundo momento era denominado de inquisitio specialis.20 Nasceuassim – afirma Ferrajoli –, com a cognitio extra ordinem, o processo inqui-sitório, realizado e decidido ex officio, em segredo e com documentos escri-tos por magistrados estatais delegados pelos príncipes (os irenarchi, oscuriosi, os stationanii), baseado na detenção do acusado e na sua utiliza-ção como fonte de prova, e acompanhada imediatamente pela tortura.21

Durante a Alta Idade Média, o processo retomou sua característi-ca acusatória de natureza privada, sendo que o sistema inquisitivo rea-parece na Baixa Idade Média, mais precisamente no século XII.

As práticas acusatórias medievais (iudicium Dei), fundamentadasem procedimentos ordálios como o iudicium ferri candentis, eram dire-cionadas contra a constância dos procedimentos causais.22 Junto às

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18 Tornaghi, ob. cit, pp. 470-471.19 Maier, ob. cit., p. 273.20 Tornaghi, ob. cit., pp. 474-475.21 Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 577.22 Leciona Magalhães Gomes Filho que os mecanismos de prova utilizados (duelos, jura-

mentos, ordálias etc.), herdados dos costumes judiciários germânicos, submetiam os con-

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força no final do século XII e início do XIII, fundamentalmente com a eclo-são dos movimentos dos cátaros e valdenses.30 Mas é a partir de 1232que se inicia o processo formal de controle do pensamento ‘herético’,sobretudo com a legitimação fornecida pelos consigli da Igreja Católica.

As versões otimizadas do modelo inquisitorial ocorreram princi-palmente na Península Ibérica no final do século XV, quando da forma-ção do Império de Espanha sob o reinado de Fernando de Aragão eIsabel de Castela, sendo que as últimas manifestações de processosinquisitoriais ‘puros’, no sentido de sua relação primária com osanseios eclesiásticos, ocorrerão somente do século XIX – Portugal(1821) e Espanha (1834).

Na versão espanhola, destina-se aos procedimentos de ‘limpieza’,nome que utilizaram para justificar as perseguições contra mouros ejudeus.31 O Tribunal Inquisitorial de Castela e Aragão, representadopelas figuras clássicas de Antônio de Torquemada e Bernardo Guido, foiinstrumentalizado pelo Directorium Inquisitorum (1376), redigido peloinquisidor-geral, o dominicano Nicolau Eymerich – sua edição foi revisa-da e ampliada, em 1578, por Francisco de La Peña – o qual, agregado aoMalleus Maleficarum (1489), representou uma verdadeira diretriz doutri-nária de aplicação do Corpus Iuris Canonici.32 A importância destes doismanuais clericais é imensurável. O Directorium Inquisitorum foi, duran-

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30 Como atacavam dogmas muito respeitados, a primeira resposta que lhes deram foi jogá-los na fogueira... Os habitantes de Mérindol e Cabriéres, até então desconhecidos, eramculpados, certamente, por terem nascidos valdenses; era sua única iniqüidade(Voltaire,Tratado sobre a Tolerância, pp. 20- 21).

31 Blaya Pérez, O Castigo do Crime versus o Crime do Castigo, p. 53.32 Leciona Nilo Batista que, até a reforma gregoriana, a estrutura descentralizada da Igreja

produzia um direito eclesiástico inorgânico, pois as compilações de leis eclesiásticas doperíodo consistem em justaposições de materiais normativos. O Corpus Iuris Canonicicomeça a ser composto no século XII, em Bologna. A alusão à obra de Justiniano é umadas simbolizações do processo histórico de ‘recepção’ do direito romano, dada a (re)des-coberta dos livros do Imperador. O Corpus Iuris Canonici é, pois, integrado pelas seguin-tes coleções: (1) Decretum Gratiani (1140); (2) Decretais de Gergório IX ou Liber Extra(1234); (3) Liber Sextus (1298); (4) Constitutiones Clementinae (1317); (5) Extravagantesde João XXII (1325); (6) Extravagantes Comuns (1484). Lembra Nilo Batista que as pri-meiras edições privadas do Corpus Iuris Canonici são do início do século XIV, porém aversão impressa oficial data de 1582, vigorando até o século XX, com sua substituição,por Pio X, em 1917, pelo Codex Iuris Canonici (Batista, Matrizes Ibéricas do Sistema Penalbrasileiro, pp. 189-193. Michel Foucault demonstra que a reativação do Direito Romanono século XII foi o grande fenômeno em torno e a partir do qual reconstruiu-se o edifíciojurídico desagregado após a queda do Império. A ressurreição do Direito Romano forne-ceu um dos instrumentos técnicos e constitutivos do poder monárquico autoritário, admi-nistrativo e, finalmente, absolutista (Foucault, Soberania e Disciplina, pp. 179-191).

intermédio de legados, e investigassem quando houvesse suspeitas demalefícios ou conspirações e punissem os culpados.25

A Bula Vergentis in senium (1199), de Inocêncio III, propicia o iní-cio das modificações processuais. Seu papado (1198-1216) é marcadopelo militarismo e dedicação às Cruzadas, sendo durante seu mandatoque a repressão canônica prepara a equiparação das heresias aos crimesde lesa majestade,26 visto o fracasso das medidas repressivas contra osalbigenses.

No ano de 1215, as deliberações do Concílio de Verona são reafirma-das pelo Concílio de Latrão, o qual estabelece a obrigatoriedade da con-fissão privada, o caráter supérfluo da acusação formal e a supervaloriza-ção das suspeitas e dos indícios. Em 1231, o Imperador Frederico II pro-mulga editos de perseguição aos cátaros, receando divisões no reinado.Em resposta à ação do Imperador, o Papa Gregório IX nomeia inquisido-res e reivindica a tarefa repressiva. Neste ano é instituído, sob o cuidadoda recém-criada ordem dos Dominicanos, o Tribunal da Inquisição,exsurgindo como modelo refinado e severo de controle social. Após, oTribunal obtém novos impulsos e legitimações em diversos documentospontifícios, para ter sua consolidação na Bula Ad Extirpanda, deInocêncio IV – as estruturas emergem lentamente: no princípio são osdelegados do Papa que inquirem; depois entram em cena os dominicanos;primeira aparição em Firenze, 20 de junho de 1227; quando Inocêncio IVemite a bula ‘Ad extirpanda’, 25 de maio de 1252, o aparato assume figu-ras definitivas.27 Com a Bula de Inocêncio IV institucionaliza-se a arte datortura como mecanismo de prova. Desta forma, adquirida ao arsenaljudiciário, a tortura aí permanece durante cinco séculos.28

Assim, a estrutura inquisitorial origina-se no seio da IgrejaCatólica, como uma resposta defensiva contra o desenvolvimento daqui-lo que se convencionou chamar de ‘doutrinas heréticas’. Trata-se, semdúvida do maior engenho jurídico que o mundo conheceu, e conhece.29

1.2.3. A instrumentalização dos Tribunais

Mister lembrar que mesmo antes da edição das Bulas Papais exis-tiam esforços no incremento da repressão às doutrinas que ganhavam

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25 Tornaghi, ob. cit., p. 487.26 Coutinho, O Papel do Novo Juiz no Processo Penal, p. 37.27 Cordero, ob. cit., p. 46.28 Idem, p. 50.29 Coutinho, ob. cit., p. 36.

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lo inquisitorial nas terras lusitanas culmina com a insurreição do Portode 1820 e o início do processo codificador.

Com o ‘achamento’37 e a colonização, nota-se claramente a trans-posição desta máquina judiciária para o Brasil, a qual possibilitou nãoapenas a repressão política dos ‘hereges’, mas o controle dos dissiden-tes políticos e das classes subalternas,38 inclusive com o genocídio dospovos nativos.39

Se as Ordenações Afonsinas (1446) e Manuelinas (1521) não tive-ram ampla aplicação na terra brasilis, as Ordenações Filipinas (1603)representaram o complexo legislativo do modelo jurídico-penal daInquisição. No Livro V das Ordenações Filipinas encontra-se a codifica-ção penal e processual penal da Colônia, que refletia o espírito pré-secular de ausência de distinção entre direito, moral e religião.40 Apalavra pecado abunda nos tipos penais e os crimes contra a fé católi-ca eram penalizados pelo Estado sem ter uma separação efetiva entre asatribuições de um ou de outro no que diz respeito ao ato de punir.41

Mister notar a força do estatuto repressivo inquisitorial que perdu-ra, mesmo após a proclamação da Independência (1822) e a outorga daConstituição de 1824, até o Código Penal de 1830 e o Código deProcesso Criminal de Primeira Instância de 1832 – em 1823 foi editadaLei que mantinha a vigência das Ordenações Filipinas. A ruptura como jusnaturalismo teológico, que ocorreu em 1830 com a publicação doestatuto liberal, representa o amadurecimento do processo de reformapenal que o século XIX vai dinamizar no Ocidente.42-43

Fundamental frisar que as fragmentações históricas aqui realiza-das sobre a Inquisição, o inquisitorialismo e os Tribunais do SantoOfício têm como única função a elaboração de um motivo histórico-con-

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37 O termo é utilizado por Bornheim, A Descoberta do Homem e do Mundo, p. 18.38 Nesse sentido, conferir Novinsky, Inquisição: rol dos culpados, pp. VII-XIX; e Novinsky &

Carneiro (orgs.), Inquisição: Ensaios sobre Mentalidades, Heresias e Arte, pp. 03-10, 97-159, 337-439.

39 Ver Silva Filho, Da ‘Invasão’ da América aos Sistemas Penais de Hoje, pp. 279-329.40 Toledo, Princípios Básicos de Direito Penal, p. 56.41 Silva, Do império da Lei às Grades da Cidade, p. 82.42 Silva, ob. cit., p. 85.43 Sobre a evolução histórica do direito penal e processual penal brasileiro, seu vínculo com

a estrutura inquisitiva, bem como a influência do pensamento liberal lusitano nas refor-mas, conferir Pierangelli, Processo Penal: evolução histórica e fontes legislativas, pp. 21-212; Pierangelli, Códigos Penais do Brasil: evolução histórica, pp. 41-93; Thompson,Escorço histórico do Direito Criminal Luso-brasileiro, pp. 77-132; Batista, ob. cit., pp. 163-270; Neder, Iluminismo Jurídico-penal Luso-brasileiro, pp. 101-200; Gauer, A construçãodo Estado-nação no Brasil, pp. 147-198.

te o século XVI, depois da Bíblia (o livro dos salmos data de 1457), umdos primeiros textos a serem impressos. Há edição em Barcelona (1503),seguida de reedições em Roma (1578, 1585 e 1587) e Veneza (1595 e1607), tornando-se livro de referência. O Malleus Maleficarum, aprovadopor Bula de Inocêncio VIII, é direcionado às regiões da Alemanha doNorte e aos territórios que margeavam o Reno, visto serem os locais deatuação da Inquisição romana.

Entretanto, para além de um mero instrumental jurídico, osTribunais forneceram, ao saber oficial, um aparato político otimizado –quando o cristianismo se transformou em religião oficial do Império, aquestão virou política33 –, visto que a excomunhão dos ‘diversos’ ocor-ria via procedimento inquisitorial. Em realidade, o fato revela a conota-ção política do processo penal no medievo.

Se politicamente o incremento da máquina inquisitorial ganha fun-cionalidade com a popularização de doutrinas pagãs e do calvinismo eluteranismo, maximizando a persecução daqueles que contrariavam omodus vivendi católico, juridicamente o modelo inquisitorial estruturauma nova economia de poder cujas manifestações são presentes até osdias atuais, sobretudo por ser um sistema fundado pela busca de uma‘verdade real’. A ausência de freios à investigação da verdade (real) gerauma verdadeira obsessão do inquisidor; daí ser natural, nessa perpectiva,a utilização do saber do próprio acusado como fonte de informação.34

No Brasil, o Tribunal do Santo Ofício iniciou sua atividade em 1572,permanecendo ativo até a Independência. Apesar de centralizar a per-secução no Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia e Paraíba, chegou a pro-ceder prisões até no Amazonas – na verdade, o Santo Ofício interferiuprofundamente na vida colonial, durante mais de dois séculos, perse-guindo portugueses, brasileiros, índios e africanos nos quatro cantos doBrasil.35 O fato é explicado pela instalação deste aparato judiciário-cle-rical em Portugal no ano de 1536, tendo lá perdurado até 1821, com aruptura imposta pela revolução constitucionalista. Gestada na Lei daBoa-Razão (1769), que seculariza o direito pela restrição à soberaniadas fontes do Direito Canônico, e na reforma pombalina, que cria con-dições de formação de um novo caldo de cultura,36 a cisão com o mode-

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33 Boff, Leonardo, ob. cit., 13.34 Gomes Filho, ob. cit., p. 21.35 Fernandes, A Inquisição e as etnias, p. 232.”36 Sobre o tema, conferir Gauer, A Modernidade Portuguesa e a Reforma Pombalina de 1772,

pp. 63-86.

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fato (pré)determinado pela lei penal válida mas, ao contrário, seria diri-gida à personalidade da pessoa classificada como perversa, perigosa,herética. A conduta imoral ou anti-social e o resultado produzidoseriam frutos da exteriorização da maldade do autor. Esta concepçãofoi traduzida na história da humanidade em inúmeras versões, das dou-trinas moralistas que identificam no crime um pecado às naturalistasque vêem no crime um sinal de anormalidade ou patologia psicofísica dosujeito, até aquelas pragmáticas e utilitaristas que a este conferem rele-vância somente quando se mostra como sintoma especial e alarmante dapericulosidade do seu autor.46

No medievo, o instrumental normativo de definição do desvio éconstruído com a coligação entre as noções de direito e moral, perfazen-do uma estrutura híbrida de ilícito parcialmente civil (terreno) e parcial-mente eclesiástico, cuja ofensa manifesta-se simultaneamente contraDeus e o Príncipe.47 Desta natureza ‘mista’ do desvio punível obtém-seo tipo de lesa-majestade divina. A classificação do desviante como here-ge indica a tendência de criminalização do ser do ‘Outro’ que se recusaa repetir o discurso da verdade. Assim, o herege passa a ser fundamen-talmente um opositor de consciência, um divulgador de verdades inad-missíveis, pois geradas fora da concepção teocêntrica e monoteísta.Nas palavras de Francisco de La Peña, comentando a obra de Eymerich,o crime de heresia é concebido no cérebro e fica escondido na alma.48

Na configuração dos elementos indicadores da incidência do sis-tema repressivo sob o desvio, a concepção substancialista é conse-qüência lógica desta fusão entre direito e moral e/ou entre direito enatureza. Reduzem-se os níveis de garantias fornecidos pela proibiçãoformal da conduta representada pelo princípio da legalidade (mala pro-hibita), substituindo-o pela noção de autor/conduta intrinsecamentemau/má (mala in se).

No interior do modelo antigarantista toda e qualquer conduta per-versa é tida como ilícita, visto que as zonas de valoração moral e jurí-dica são simétricas. Logo, se a sanção no modelo garantista é uma res-posta jurídica à violação da norma (quia prohibitum), no modelo inqui-sitivo traveste-se em resposta quia peccatum, punindo-se o infrator

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46 Ferrajoli, ob. cit., p. 14.47 Segundo o Malleus Maleficarum, a heresia não poderia ser tratada como crime puro e

simples, mas de crime parcialmente eclesiástico e parcialmente civil (Kramer &Sprenger, O Martelo das Feiticeiras, p. 444).

48 Eymerich, ob. cit., p. 138.

ceitual, um recurso interpretativo sem qualquer pretensão de estabele-cer uma linearidade histórica razoavelmente estável. Até porque, comofoi sublinhado desde o início, o medievo, e a Inquisição como o princi-pal foco de análise no texto, constitui um terreno volátil de alta comple-xidade, não podendo ser enclausurado em modelos academicistas cer-rados. Sequer os Tribunais do Santo Ofício e o próprio ‘pensamentooficial’ da Igreja Católica são passíveis desta redução, visto a heteroge-neidade e a falta de harmonia das práticas e das doutrinas.

Importante aqui é ressaltar, na construção deste modelo proces-sual persecutório de investigação e busca (conquista) da verdade juri-dicamente válida, sua proliferação em dimensões extraordinárias,44

muito em decorrência de uma característica trans-histórica e de suaalta funcionalidade para manutenção/legitimação de máquinas judiciá-rias autoritárias fundadas no signo do defensivismo.

1.2.4. A estrutura jurídico-penal

A aproximação entre o incipiente Estado moderno e a Igreja, estafornecendo legitimidade (jusnaturalismo teológico) ao poder do sobera-no e aquele proporcionando a utilização dos quadros burocráticos eadministrativos, consolida um modelo jurídico-político no qual a intole-rância – modelo de eliminação da alteridade pela submissão do ‘Outro’ao ‘Um’ – é uma das principais características.

A estrutura totalitária do modelo penal inquisitivo possibilita aconformação de um paradigma verificável em inúmeros modelos dedireito e processo penal: dos esquemas pré-modernos da Inquisição àsmodernas teorias da prevenção especial, ou da defesa social, ou do tiponormativo de autor, nas suas múltiplas variantes eticistas, antropológi-cas, decisionistas, eficientistas.45

Ferrajoli, para caracterizar a epistemologia inquisitiva, propõe aidentificação de elementos assimétricos ao da epistemologia garantis-ta que poderiam ser encontrados na definição normativa (direitopenal), na comprovação judicial do desvio penalmente relevante (pro-cesso penal) e nas formas de sanção (execução da pena).

O primeiro aspecto da epistemologia inquisitiva seria uma concep-ção ontológica de delito. A análise do sistema penal não recairia sobre

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44 Nesse sentido, fundamental verificar Foucault, A Verdade e as Formas Jurídicas, pp. 53-78 e Coutinho, ob. cit., pp. 36-39.

45 Ferrajoli, ob. cit., p. 13.

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lhe são essenciais, pois o que distingue a forma acusatória da inquisiti-va é que, na primeira, as funções de acusar, defender e julgar estão atri-buídas a três órgãos diferentes (acusador, defensor e juiz), sendo que nosegundo modelo as três funções estão confiadas a um mesmo órgão – enel proceso inquisitorio se considera al juez como una triple persona.53

Todavia, apesar da importância de um processo de partes na adje-tivação dos sistemas, a gestão da prova ainda é o elemento que melhoro define. Claus Roxin, avaliando a posição jurídica dos sujeitos proces-suais, sustenta que o processo inquisitivo é baseado en el principio deque la investigación de la verdad está em manos del juez: él reúne, desdeel principio en material probatório, interroga al imputado, dirige el jui-cio y dicta la sentencia.54

Barreiros,55 ao traçar as características dos sistemas, sustenta queno sistema acusatório o julgador é representado por assembléia oucorpo de jurados populares; o juiz é árbitro sem iniciativa na investiga-ção; a ação é popular (delitos públicos) ou compete ao ofendido (delitosprivados); o processo é oral, público e contraditório; a prova é valoradalivremente; a sentença faz coisa julgada; e a regra nas medidas cautela-res é a liberdade do argüido. Na antípoda, o julgador é permanente; ojuiz investiga, dirige, acusa e julga numa posição de superioridade faceao imputado; a acusação procede ex officio, admitindo-se denúnciasecreta; o processo é escrito, secreto e não-contraditório; a prova élegalmente tarifada; a sentença não faz coisa julgada; e a característicadas medidas de cautela é o aprisionamento. Dessa forma, enquanto aosistema acusatório convém um juiz espectador, voltado sobretudo à obje-tiva e imparcial avaliação dos fatos, e portanto mais sábio que ilustrado,o rito inquisitório exige um juiz ator, representante do interesse punitivo,e por isso legalista, versado nos procedimentos e dotado de capacidadeinvestigativa.56 Trata-se, como frisa Ferrajoli, de uma opção entre juízes-cidadãos e juízes-magistrados, respectivamente.

O sistema inquisitivo, portanto, exclui o contraditório, limita aampla defesa e obstaculiza, quando não inviabiliza, a presunção deinocência, cuja comissividade é o postulado básico do garantismo pro-cessual.57 Recorde-se que no processo penal inquisitório a insuficiência

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53 Feuerbach, Tratado de Derecho Penal, p. 372.54 Roxin, Derecho Procesal Penal, p. 122.55 Barreiros, Processo Penal, p. 12.56 Ferrajoli, ob. cit., p. 588.57 Sobre a importância do princípio da presunção de inocência no processo penal garantis-

ta, conferir Ibáñez, Garantismo y Proceso Penal, pp. 52-55.

não pelo resultado danoso produzido, mas por quão perigoso ou perver-so é. Da conduta comissiva ou omissiva exterior, o sistema repressivoinvade a interioridade e a alma do autor.

O segundo elemento da epistemologia inquisitiva é o decisionismoprocessual, tanto no que diz respeito ao juízo quanto à execução dapena. O juízo inquisitorial abdica da cognição e, como efeito da falta decritérios objetivos, subjetiva a decisão e a aplicação/execução da penadesde uma perspectiva potestativa. Segundo Ferrajoli,49 o efeito destasubjetivação é a perversão do processo, dirigindo-o antes da compro-vação de fatos objetivos à análise da interioridade da pessoa julgada;antes da constatação processual sustentada empiricamente a conven-cimentos incontroláveis do julgador sustentados por signos de ‘verda-de material’.

Em matéria processual penal, a tensão entre os tipos ideais indicaa dicotomia entre os sistemas acusatório e inquisitivo. No que diz aodireito penal material, os modelos capacitam versões de direito penaldo fato-crime e direito penal do autor, tendendo a direcionar político-criminalmente a construção de modelos minimalistas e maximalistas.

A caracterização dos modelos processuais será realizada de acor-do com a posição do magistrado no processo. No sistema acusatório,regido pelo princípio do juiz espectador, o magistrado é um sujeito pas-sivo tanto no que concerne à iniciativa da ação quanto à gestão daprova, estando, em conseqüência, rigidamente separado das partes,principalmente do órgão acusador, para assegurar a imparcialidade.50

Neste juízo oral e público, a decisão cabe ao juiz segundo seu livre con-vencimento, sendo impossível, pois, qualquer manifestação ex officiopara instauração do processo e/ou investigação de fatos a serem valo-rados futuramente como prova. Assim, a radical separação entre juiz eacusação é o mais importante de todos os elementos do modelo acusa-tório. Por outro lado, o sistema processual no qual o juiz procede àbusca e valoração das provas, chegando à decisão após instruçãoescrita e secreta, denomina-se sistema inquisitivo.51

Alerta Tornaghi52 que, apesar de no modelo ideal o sistema inqui-sitório ser caracterizado pela forma escrita e sigilosa, essas formas não

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49 Ferrajoli, ob. cit., pp. 15-16.50 Segundo Luigi Ferrajoli, a postura imparcial dos julgadores nos modelos acusatórios resul-

ta caracterizada pela sua posição fora do sistema político e pela sua posição fora dos inte-resses particulares das pessoas em causa (Ferrajoli, Giurisdizione e Democracia, p. 293).

51 Interessante descrição dos sistemas em Lima, A Tradição Inquisitorial, p. 68.52 Tornaghi, ob. cit., p. 465.

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Os dois extremos da resposta processual penal descritos apresen-tam, inexoravelmente, escopos diferenciados. O modelo garantista acu-satório vincula-se à racionalidade do juízo, tendo como objetivo princi-pal a máxima tutela das liberdades contra os poderes. O modelo irracio-nalista inquisitivo é isento de instrumentos de contenção à intervençãodo poder punitivo, gerando sistema incerto e ilimitado. A finalidade dasdiferentes sistemáticas é relativa à opção em sacrificar ou não a liberda-de individual frente à possível inaplicabilidade da lei penal. O pensa-mento penal clássico antecipou as assertivas do garantismo penal con-temporâneo com as lições de Pietro Verri, cujo ensinamento demonstra-va que mais valeria perdoar vinte culpados do que sacrificar um inocen-te,64 e de Cesare de Beccaria, ao propor que um homem não pode serconsiderado culpado antes da sentença do juiz; e a sociedade só lhe poderetirar a proteção pública depois que seja decidido ter ele violado as con-dições com as quais tal proteção lhe foi concedida [contrato social].65

A propósito, quando se trata de confrontar a composição dos sis-temas com o núcleo de garantias, urge lembrar as pertinentes e insti-gantes observações de Montero Aroca, para quem el denominado pro-ceso inquisitivo no fue y, obviamente, no puede ser, un verdadero proce-so. Si éste se identifica como actus trium personarum, en el que ante untercero imparcial comparecen dos partes parciales, situadas en pie deigualdad y con plena contradicción, y plantean un conflicto para queaquél lo solucione actuando el Derecho objetivo, algunos de los caracte-res indicados como propios del sistema inquisitivo llevan ineludiblemen-te a la conclusión de que ese sistema no puede permitir la existencia deun verdadero proceso. Proceso inquisitivo se resuelve así en una contra-dictio in termins.66

1.2.5. A barbárie jurídica: os mecanismos do método inquisitorial

A percepção do mundo até o século XV, fundamentalmente até o‘achamento’ e conquista do Novo Mundo, é caracterizada pelo eurocen-trismo, estruturada desde uma perspectiva teocêntrica, difundida nojurídico pelos jusnaturalismos de Tomás de Aquino e Agostinho.

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64 Verri, Observações sobre a Tortura, p. 106.65 Beccaria, Dos Delitos e das Penas, p. 65.66 Montero Aroca, Princípios del Proceso Penal, pp. 28-29. No mesmo sentido, Montero

Aroca, El Derecho Procesal en el Siglo XX, pp. 106-107.

de provas e sua conseqüente dubiedade não gerava imperiosa absolvi-ção; mas, ao contrário, o mero indício equivalia a uma semi-prova, quecomportava um juízo de semi-culpabilidade e uma semi-condenação.58

De forma mais elaborada, seguindo a trilha do processualista ita-liano Franco Cordero,59 pode-se identificar o estilo inquisitivo a partirde duas constatações: (1a) a sobrevalorização da imputação em relaçãoà prova, configurando o primado das hipóteses sobre os fatos; e (2a) aconversão do processo em psicoscopía, ao estabelecer rito fatigante eisento de forma rígida. O modelo estabelece, pois, no magistrado, qua-dros mentais paranóicos e tendências policialescas, visto que, ao invésde o juiz se convencer através da prova careada para os autos, inversa-mente, a prova servia para demonstrar o acerto da imputação formula-da pelo juiz-inquisidor.60 Conclusão idêntica é a de Roxin, para quem adesvantagem fatal do processo inquisitivo, resultado da união dospapéis processuais de perseguidor penal e sentenciante na pessoa dojuiz, significa uma sobreexigencia psicológica: el que por si mismo háreunido el material de cargo, por lo general, ya no resulta tan imparcialfrente al resultado de la investigación como es indispensable para dictaruna sentencia fundada em valoraciones equitativas.61

Assim, o réu, longe de ser um sujeito (de direito) processual, é ummero objeto de investigação: o imputado detém com exclusividade averdade histórica (material) – o inquisidor investiga, procurando buscarsignos do delito, e trabalho sobre os acusados, porque, culpados ou ino-centes, sabem tudo o que se requer para decisões perfeitas; tudo se resu-me a fazê-lo dizer.62 E se é o único detentor de uma ‘verdade’ não maispassível de experimentação empírica, ou ainda de uma verdade unica-mente sua, necessária seja exposta, sem reservas – o estilo inquisitóriomultiplica os fluxos verbais: é preciso que o imputado fale; o processo setransforma em sonda psíquica. O inquisidor trabalha livremente, indife-rente aos limites legais, mas recolhe toda sílaba: a obsessão micro-ana-lítica desenvolve um formalismo gráfico; nenhum fato é realmente umfato enquanto não figure no papel.63

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58 Quanto ao regime probatório da Inquisição e a formulação de juízos de semi-culpabilida-de pelos indícios, verificar Foucault, Vigiar e Punir, pp. 11-61.

59 Cordero, ob. cit., p. 51.60 Jardim, Ação Penal Pública, p. 24.61 Roxin, ob. cit., p. 122.62 Cordero, Procedura Penale, p. 580.63 Cordero, ob. cit., p. 329.

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forma, o Juiz-acusador formula uma hipótese e realiza a verificação. Averdade admitida como ‘adaequatio rei et intellectus’ é atingível e deveser alcançada. Esta verdade, verdade material, já existente como hipó-tese na mente do Juizacusador, deve, por outro lado, ser atingida solip-sisticamente. O contraditório perturba esta investigação. A poluição daprova daquela verdade já postulada é o maior de todos os perigos. Daíresulta o sigilo do processo, a ausência do indiciado ou do seu defensorna aquisição da prova que poderá servir para fundamentar a sentençade condenação.71

Percebe Pietro Verri72 que a lógica orientadora das práticas inqui-sitoriais pode ser expressa pelo princípio no qual é plenamente aceitá-vel sacrificar ao horror dos males um homem apenas suspeito em prolda defesa social.

A identidade entre juiz e acusador e a sacralização do procedi-mento em sigilo minimizam sobremaneira as garantias do imputado.Desta forma, aliado à ausência de plena defesa e à necessidade da con-fissão, o acusado é reduzido a objeto privilegiado do saber – o instru-mento inquisitório desenvolve um teorema óbvio: culpado ou não, o indi-ciado é detentor das verdades históricas; tenha cometido ou não o fato;nos dois casos, o acontecido constitui um dado indelével, com as respec-tivas memórias; se ele as deixasse transparecer, todas as questõesseriam liquidadas com certeza; basta que o inquisidor entre na sua cabe-ça. Os juízos tornam-se psicoscopia.73

Desde esta lógica defensivista, o labor jurídico importa clara mani-festação de profilaxia social: os juízes, que no século passado condena-vam as feiticeiras e os magos à fogueira, também acreditavam estar lim-pando a terra de muitos inimigos ferozes.74

O modelo estruturado na negação do contraditório e na fusão dospapéis de acusação e julgamento desenvolve, como salientado, umprimado das hipóteses sobre os fatos. Dotado de uma hipótese, oinquisidor procede à busca incessante de sua afirmação, independen-temente do material fático que lhe é apresentado – a solidão na qualtrabalham os inquisidores, nunca expostos ao contraditório, alheios àdialética, pode ser útil ao trabalho policialesco, mas desenvolve quadrosmentais paranóicos. Poderíamos chamar ‘primado das hipóteses sobre

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71 Bettiol, & Bettiol, ob. cit., p. 129.72 Verri, ob. cit., p. 06.73 Cordero, ob. cit., pp. 48-49.74 Verri, ob. cit., p. 06.

Bartolomé Bennassar percebe que no final dos quatrocentos exis-tia uma visão ‘científica’ do mundo, cujos detentores eram os geógra-fos, matemáticos e filósofos, a qual foi progressivamente corrigidapela experiência dos marinheiros e cartógrafos; e uma visão ‘mítica’,elaborada a partir dos textos sacros, fornecida principalmente pelasleituras literais e não-simbólicas da Bíblia e por um conjunto de len-das e relatos fantásticos de tradições que constituíam uma chave deleitura do mundo.67

A crença na divindade e o misticismo, aliada às difíceis condiçõesde vida, propicia a dicotomização da realidade entre o sagrado (santo,puro, límpido e saudável) e o profano (demoníaco, perverso, negro epestilento). Tal fragmentação maniqueísta institucionaliza e legitimaum modelo político de controle social estruturado em termos de elimi-nação, estabelecendo verdadeira ‘guerra santa’ contra a heresia.

O processo judiciário envolto pelas idéias confessionais conformaum corpo unívoco altamente eficaz à persecução, singularmente opera-cionalizado na busca da regina probatio: a confissão – a confissão éprova privilegiada e resolve pela raiz qualquer conflito probatório.68

Considerada a prova suprema, a confissão assemelha-se ao ato priva-do no qual o pecador admite a falta, sujeitando-se aos seus efeitos vistoo escopo de redenção. O processo, pois, na incessante conquista daverdade histórica cujo detentor é o herege, transforma-se em um afazerterapêutico.69

Diferentemente do modelo acusatório, qualquer informação sigilo-sa poderia gerar um processo. Lembra Feuerbach que na estruturainquisitiva quatro poderiam ser as fontes para obtenção de uma basede investigação: a percepção do julgador; a denúncia oral ou escrita(testemunhos, suspeitas ou indícios); o rumor público; e a auto-denún-cia.70 Desta forma, o magistrado, dotado da informação, assume umapostura persecutória e atua na produção da prova, daí serem, porexemplo, os interrogatórios sugestivos, monótonos e cansativos. O pro-cesso inquisitivo é infalível, visto ser o resultado previamente determi-nado pelo próprio juiz. A sentença é potestativa e plena, e, na maioriadas vezes, não admite recurso, pois, se sua legitimidade é divina, nãopoder haver contradita, ou seja, o ato é insuscetível de erro. Dessa

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67 Bennassar, Dos Mundos Fechados à Abertura do Mundo, p. 86.68 Bettiol, & Bettiol, Instituzioni di Diritto e Procedura Penale, p. 130.69 Cordero, Guida alla Procedura Penale, p. 47.70 Feuerbach, ob. cit., pp. 373-374.

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de, o descentramento do homem e inexoravelmente o questionamentode Deus – se o homem é feito à Sua imagem e semelhança, deveria ocu-par papel privilegiado na geografia universal.

Não obstante a revolução copernicana, Colombo, chancelado pelaprópria Igreja, comprova a tese heliocêntrica e revela a existência deculturas cujos mitos demonstravam um modus vivendi totalmenteoutro. Alheios à servidão tirânica imposta pela ordem medieval, nas-cem povos em pleno ‘estado de natureza’.

Para Novaes, o momento das descobertas foi também o momentodas rupturas. Ao lado das invenções técnicas, que permitiram as aven-turanças dos navegantes, transformações nas estruturas materiais ementais deram início ao que a filosofia e a história chamam de ‘liberta-ção do indivíduo’, tirando-o do anonimato medieval: ‘divinização dohomem e humanização de Deus’. Com o nascimento da idéia de indiví-duo, surge um novo homem que se pretende autônomo. É essa autono-mia que permite a construção, por meio da experiência, de uma novaordem econômica e política [e jurídica] que se contrapõe, no plano dasidéias, ao caráter ideológico dominante.79

A experiência é altamente relevante, pois o homem, ao voltar-se asi mesmo, adquire novas concepções sobre sua existência, iniciandogradual abandono da metafísica cosmológica e teológica. O pensamen-to hipostasiado, voltado para além de physis, é questionado. No direi-to, o jusnaturalismo teológico começa a ceder terreno a uma justificati-va antropológica, num verdadeiro giro interpretativo.

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Ao longo da evolução cultural, o homem, segundo o psicanalista, auto-intitulou-se sobe-rano de todos os seres que habitavam a Terra, negou-lhes razão e atribuiu-se uma almaimortal e uma origem divina que lhe permitiu romper os laços com a animalidade. Noentanto, as investigações de Darwin puseram fim à ‘exaltação do homem’: el hombre noes nada distinto del animal ni algo mejor que él; procede de la escala zoológica y está pro-ximamente emparentado a unas espécies, y más lejanamente, a otras. Sus adquisicionesposteriores no han logrado borrar los testimónios de su equiparación, dados tanto en suconstitución física como en sus disposiciones anímicas. Esta es la segunda ofensa – la ofen-sa biológica – inferida al narcisismo humano (Freud, ob. cit., p. 2.434).A última, e segundo Freud mais sensível, ferida narcísea seria a de natureza psicológica.Com a noção de inconsciente, o reduto da superioridade humana, a consciência, é des-tronado. Para Freud, a consciência não é soberana na estrutura psíquica do indivíduo eo eu não seria autônomo no funcionamento psíquico. Desta maneira, o descentramentodo sujeito implicaria pelo menos três descentramentos: o descentramento da consciênciapara o inconsciente; o descentramento do eu para o outro; e o descentramento da cons-ciência, do eu e do inconsciente para as pulsões (Birman, Estilo e Modernidade emPsicanálise, pp. 19-20).

79 Novaes, Experiência e Destino, p. 10.

os fatos’.75 Lembre-se que o trabalho do inquisidor era orientado porregras do Direito canônico que impunham instrumentos de gerencia-mento, produção e valoração da prova, cujo resultado é apenas a rati-ficação das hipóteses previamente acordadas.

Eficiente e cômoda, portanto, a utilização da tortura como meca-nismo de cognição. A propósito, convém assinalar que a Inquisição nãoinventou a tortura, mas o meio quase perfeito para justificá-la: os meca-nismos do sistema inquisitivo.76 Este sistema de distribuição de dor, noqual a tortura é instrumento configurador, será transnacionalizado portodos os povos de cultura jurídica romano-germânica, inclusive aAmérica Latina com processos de evangelização.77

1.3. O processo de secularização e a invenção datolerância

1.3.1. A conquista do homem e do mundo

Até o final do século XV, os signos do mundo ocidental eram defini-dos desde a perspectiva teo e eurocêntrica; a terra figurava como centrodo universo e o homem, centro de todas as coisas, vislumbrava-se comoimagem e semelhança de Deus. O saber era (re)produzido no interior dosmonastérios, sendo acessado apenas pelos iniciados, e a cultura eradevota à divindade, cuja existência era concebível como una/indivisível.

Todavia, o processo de conhecimento, fruto da experiência doNovo Mundo, corrompe as sólidas bases nas quais a estrutura do poderestava alicerçada. A primeira ferida narcísica da cultura ocidental – odescentramento da Terra operado por Copérnico78 –, indica, em realida-

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75 Cordero, ob. cit., p. 51.76 Coutinho, ob. cit., p. 39.77 Gerd Bornheim indaga o que buscava a ‘evangelização’. Sugere que os procedimentos

evangelizadores abrigavam métodos calculados de ‘descaracterização’, sendo plena-mente passíveis de sinonímia com a palavra genocídio (Bornheim, ob. cit., p. 24).

78 Freud, em um ensaio publicado em 1917, na Hungria, enunciou as graves ofensas que ainvestigação científica produzira no narcisismo geral (amor próprio da Humanidade).Segundo o autor, o homem, seguindo suas impressões sensoriais, acreditava que a Terra,sua sede, se encontrava em repouso no centro do Universo, e o Sol, a Lua e os planetasgiravam ao seu redor – la situación central de la Tierra le era garantia de su función pre-dominante en el Universo, y le parecia muy de acuerdo con su tendência a sentirse dueñoy señor del Mundo (Freud, Una Dificultad del Psicoanalisis, p. 2.434). Com os trabalhos deCopérnico, ocorre a destruição desta ‘ilusão narcisista’, e o amor proprio humano sufriósu primera ofensa: la ofensa cosmológica (Freud, ob. cit., p. 2.434).

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relações sociais e de poder numa verticalidade descaracterizante de-corrente da divisão e da estratificação.

A pluralidade, o politeísmo e a heterodoxidade cultural colocam ohomem diante do seu próprio ‘eu’, pois, se a descoberta da ‘liberdadenatural’ abre novos horizontes e perspectivas, representa também aconstatação da condição servil, covarde, de doação total ao ‘Um’.Proporciona, fundamentalmente, a percepção de que a estrutura socialvigente não era natural e eterna como queriam os advogados da ordem,e fatalmente, sendo artificial, poderia ser modificada.

Na construção da metodologia da ‘transparência’, como um dosefeitos proporcionados pela experiência das descobertas, Bornheimdesvenda o impacto do encontro com a alteridade: o contraste é o outroda sociedade, no reverso que constrói a utopia; e é o outro do homem, noreverso que cria o bom selvagem.83

Salutar neste momento perceber a importância histórica de ODiscurso da servidão voluntária ou O contra Um (1548), do jovem estu-dante de direito Etienne la Boètie. No artigo notam-se as primeirasmanifestações da modernidade contra os regimes autoritários, comcomo a presença da idéia que será revolucionária e propulsora dosmovimentos iluministas: a liberdade inata do humano. Em Boètie pro-curar-se-á identificar o sentido moderno do termo liberdade: liberdadeem sentido negativo, que reflete um estado que se opõe a qualquerforma de escravidão; liberdade como recusa à servidão, como ausênciade impedimentos externos para satisfação dos desejos.

Não obstante a trans-historicidade do pensamento boètiano,84

impossível seria deslocá-lo da influência de seu século: a primeirametade dos quinhentos. Pierre Clastres, ao comentar a obra do filóso-fo, visualiza com perfeição o impacto da ‘experiência’ no pensamentodo homem europeu e, em conseqüência, na estrutura doutrináriadaquele que lançou as bases filosóficas da teoria do direito de resistên-

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83 Bornheim, ob. cit., p. 36.84 Pierre Clastres, Claude Lefort e Marilena Chauí, nos comentários ao Discours, sustentam

a trans-historicidade do pensamento de Boètie. Afirma Clastres que a história local emomentânea é, quando muito, para Boètie, oportunidade e pretexto, visto colocar umaquestão totalmente livre porque absolutamente desprendida de sua territorialidadesocial e política – a construção de Boètie impede qualquer tentativa de aprisioná-lo noséculo; não é um pensamento familiar, na medida em que se desenvolve precisamente con-tra o que há de tranqüilizador na evidência naturalmente inerente a todo pensamentofamiliar. Pensamento solitário, pois, esse do Discours, pensamento rigoroso, que só se nutrede seu próprio movimento, de sua própria lógica (Clastres, Liberdade, Mau Encontro,Inominável, p. 118).

Apesar da heresia metodológica, visto que a afirmativa foi elabo-rada para outro período histórico em conseqüência de outra ‘revoluçãocopernicana’, ousa-se colocar na boca dos humanistas e racionalistasda época: tudo o que é sólido e estável se volatiliza, tudo o que é sagra-do é profanado.80

Na redescoberta do homem como medida de todas as coisas, como ingresso do ‘Novo Mundo’ no cenário histórico, e com a visualizaçãode um novo estado de coisas no qual liberdade e igualdade se opõemà servidão, o impulso da laicização das ciências torna o processo secu-larizador inevitável. Da exclusão do diverso nasce a idéia de tolerância,da barbárie inquisitiva afloram teorias civilizatórias. Surge o racionalis-mo, e a capacidade crítica do homem é revelada.

Segundo Adauto Novaes, o mundo das descobertas mostra, dealguma maneira, que a política européia, dominada pela Escolástica,pensava de olhos fechados: por meio da experiência concreta, além dadescoberta do mundo, o homem também se descobre, funda a filosofiada autoconsciência, isto é, põe no lugar do ser ‘unicamente pensado’, nolugar de Deus, do ser supremo e último de toda a filosofia escolástica, oser pensante, o Eu, o espírito autoconsciente. A revolução inauguradano século XVI consiste na derrocada da ‘bela unidade medieval’, quetinha no divino o mediador de todas as coisas.81

1.3.2. A natureza liberta: oposição à servidão

Se a conquista do ‘paraíso terrestre’ – expressão utilizada porColombo em sua terceira viagem à América – gerou profunda crise nopensamento medieval, proporcionou, outrossim, o nascimento deidéias direcionadas à construção do processo civilizatório. O descobri-mento representou não somente a criação de uma experiência inéditade universalidade mas, inclusive, uma universalidade que soube dei-xar-se perpassar pela prática da invenção de um espírito crítico tam-bém ele inédito.82

A descoberta das Índias Ocidentais possibilita o renascer da liber-dade do homem em seu estado primitivo. O velho homem europeu,sujeitado à opressão, depara-se com uma nova postura deontológicaque, apesar de conhecer o sentido da autoridade, não estrutura suas

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80 Marx, & Engels, Manifesto do Partido Comunista, p. 63.81 Novaes, ob. cit., p. 08.82 Bornheim, A Descoberta do Homem e do Mundo, p. 20.

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vereis como um grande colosso, de quem subtraiu-se a base, desman-char-se com seu próprio peso e rebentar-se.89

Ao sustentar a historicidade da servidão, o jovem instaura ogerme de um pensamento político revolucionário, radicalmente opostoao do estado de coisas imperante.

A naturalidade do servir advinha, segundo a tradição, da divisãosocial hierarquizada. O homem nascia servo e assim morreria porqueestava determinado pela Igreja, detentora do local da fala interpretati-va das palavras do Senhor. Ao reconhecer o sentido histórico da domi-nação, Boètie indica sua momentaneidade e abre espaço para o ras-treamento do ponto de conversão da liberdade em servidão; e aqui,novamente, encontra-se sedimentada a base da ilustração, mais espe-cificamente a noção de estado de natureza.

Com entendimento extremamente peculiar, Boètie avalia o proces-so de desnaturação. Os homens, como os animais, nasceriam livres,iguais e fraternos entre si. Entretanto, há o momento da ruptura, dasubstituição do estado ideal de liberdade pelo servil: que mau encontrofoi esse que pôde desnaturar tanto o homem, o único nascido de verda-de para viver francamente, e fazê-lo perder a lembrança de seu primeiroser e o desejo de retomá-lo?90

A perda do estado natural é representada no ‘mau encontro’ dohomem com o Estado, notadamente na estrutura hierarquizada dos gover-nos monárquicos. Boètie intui a noção de estado de natureza, pois somen-te na avaliação da ausência do Estado é que se visualiza sociedades pri-mitivas igualitárias, isentas de relações formais de poder. Interessante,portanto, a percepção do autor quanto à estrutura social e à virtude dohomem, visto ser desde esta ótica a fundação dos pressupostos basilaresdo garantismo clássico: livre-arbítrio e o direito de resistência.91

Esquecido por longo tempo – e o ‘ostracismo forçado’ é uma dasmais pérfidas formas de combate –, o Discours de Boètie voltaria ao cená-rio político da França às vésperas da Revolução, transformado em panfle-to por Jean Paul Marat e recebendo versões pacifistas com Tolstói.

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89 Novaes, ob. cit., p. 16.90 Clastres, ob. cit., p. 19.91 Apesar de ser considerado um dos maiores ícones na estruturação teórica do direito de

resistência, alguns autores da época já levantavam o problema da desobediência. Entreeles, pode ser citado o pensador italiano Colucio Salutati (1331 – 1406). Em seu tratadoSobre o Tirano, já indagava se é lícito insurgir-se contra o senhor ou o príncipe que, aindatendo direito de governar, tenha por soberba começado a abusar do poder (Salutati, ODireito de Resistência, p. 76).

cia à opressão. Lembra Clastres que parece-nos esquecer com muitafreqüência que se o século XVI é o da Renascença da cultura da Anti-güidade greco-romana, ele também assiste à produção de um aconteci-mento que, por seu alcance, vai transformar radicalmente a figura doOcidente, a saber, a descoberta e a conquista do Novo Mundo. Retornoaos antigos de Atenas e de Roma, é claro, mas também irrupção daqui-lo que até então não existia, a América. Pode-se medir a fascinação quea descoberta do continente desconhecido exerceu sobre a Europa oci-dental pela extrema rapidez de difusão de todas as notícias provindas de‘além-mar’.85

E é em forma de indagação que Boètie, ao aludir à América, nomi-na ‘o’ problema, fazendo-se um homem de seu tempo: a propósito, seporventura nascesse hoje alguma gente novinha, nem acostumada àsujeição, nem atraída pela liberdade, que de uma e de outra nem mesmoo nome soubesse, se lhe propusessem ser servos ou viver livres, com queleis concordaria?86

A condição natural do homem seria a liberdade. Sustenta o autorque não haveria dúvida na aceitação espontânea da liberdade emdetrimento do servir. Aliada à sua natureza livre, ao homem correspon-deriam as virtudes da igualdade e da fraternidade.87 Desta forma, nopensamento de Boètie estão presentes os pilares fundamentais damodernidade.

No entanto, questiona o autor que fascínio, que imperfeição, queinfortúnio é esse a cujo jugo o homem, mesmo sendo livre em sua natu-reza, se submete, enfeitiçado e encantado pelo nome de apenas ‘Um’,no mais das vezes o mais fraco e covarde da nação. Que mal induziriao ser humano a recusar sua própria liberdade, colocando-se em posiçãode submissão, sendo que não é preciso sequer rebelar-se para (re)con-quistar sua condição88 – decidi não mais servir e sereis livres; não pre-tendo que o empurreis ou sacudais, somente não mais o sustentai, e o

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85 Clastres, ob. cit., p. 119.86 Boètie, Discurso da Servidão Voluntária, p. 19.87 Mas, por certo se há algo claro e notório na natureza, e ao qual não se pode ser cego é que

a natureza, ministra de Deus e governante do homem, fez-nos todos da mesma forma e, aoque parece, na mesma fôrma, para que nos entreconhecêssemos todos como companhei-ros, ou melhor, como irmãos (Boètie, ob. cit., p. 17).

88 Nota Novaes que Boètie mostra como o povo é parte do poder, como atua na fabricaçãodo tirano, e que entre o tirano e o povo não existe necessariamente uma relação de anta-gonismo pois o povo faz corpo com o tirano (daí vem sua força), produzindo e reprodu-zindo a dominação (Novaes, ob. cit., p. 13).

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Afirma que, para atingir plena compreensão sobre o poder políti-co, deve-se considerar o estado natural dos homens, um estado de per-feita liberdade para ordenar-lhes as ações e regular-lhes as posses e aspessoas conforme acharem conveniente, dentro dos limites da lei danatureza, sem pedir permissão ou depender da vontade de qualqueroutro homem.95 Trata-se de um estado de igualdade plena cujos pode-res e composições (resoluções dos conflitos) são exercidos pelos pró-prios indivíduos. Tal liberdade, contudo, não representaria ‘licenciosi-dade’; apesar de natural, é determinada por uma lei que obriga a todos:a razão. A razão ensinaria aos homens que nenhum deles deve prejudi-car a vida, a saúde, a liberdade ou as posses de outrem. É um estadoideal de seres racionais comandados pela lei natural sem o auxílio oututela das leis civis.

Neste estado pleno de realização da liberdade e da igualdade, apreservação dos direitos contra as moléstias se encontraria nas mãosde todos os homens; assim, qualquer um tem o direito de castigar ostransgressores dessa lei em tal grau que lhe impeça a violação, pois a leida natureza seria vã, como quaisquer outras leis que digam respeito aohomem neste mundo, se não houvesse alguém nesse estado de naturezaque não tivesse poder para pôr em execução aquela lei e, por esse modo,preservasse o inocente e restringisse os ofensores.96

O poder/direito de execução das sanções não seria, porém, umpoder absoluto ou arbitrário, mas restringido pelos ditames da ‘razãocalma e da sã consciência’, ou seja, desde um critério de proporciona-lidade entre a transgressão e a penalidade.

Locke, conforme as lições de Bobbio,97 encontrara-se frente a fren-te com duas soluções possíveis sobre o estado de natureza. A primei-ra, hobbesiana, na qual o estado de natureza é estado de guerra carac-terizado pela violência, pois dominado pelas paixões, pelos instintos epelo egoísmo.98 A segunda, derivada do pensamento de Pufendorf, em

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95 Locke, Segundo Tratado sobre o Governo Civil, p. 35.96 Locke, ob. cit., p. 36.97 Bobbio, Locke e o Direito Natural, p. 179.98 Segundo Hobbes, os ‘desejos’, em confronto com a escassez dos bens da vida, fazem com

que os homens estabeleçam convívio bélico. Agostinho Ramalho Marques Neto, avalian-do a concepção de direito em Hobbes, percebe que, se os homens são iguais quanto àcapacidade, são iguais também quanto à esperança de atingir seus fins, ou seja, todospodem desejar igualmente os mesmos fins e os meios para sua obtenção. Dessa forma,a luta para a obtenção desses meios (considerando-se que os desejos são ilimitados) levainevitavelmente os homens a competir uns com os outros. Logo, a guerra de todos contratodos é inevitável e decorre sobretudo do caráter infinito do desejo, articulado à necessi-

Mister ainda, para encaminhar a próxima tese, verificar, desdeoutro local, um mito fundante do discurso da modernidade: o ‘bomselvagem’. O método da transparência permite corrigir o erro quedenuncia o homem moderno como bom selvagem: o homem modernonão é o bom selvagem, mas ele se deixa medir a partir do selvagem, o sel-vagem é o que lhe falta e por isso configura um certo paradigma. Decerto modo, todo esse imaginário vive da negação do outro que ogerou.92 A consciência, mesmo mitológica, do diverso (selvagem) é quepossibilita nova justificação do homem e das relações de poder.

1.3.3. O pacto e os direitos do homem

Se o pensamento político do século XVI acrescentou ao saber apossibilidade de rememorar a natureza perdida do homem, questionan-do toda a estrutura do medievo, impossível à ordem permanecer sus-tentando um sistema de poder repressivo sacrificialista e intolerantedirecionado ao sancionamento do ‘ser’. Como sustentar uma filosofiateocêntrica calcada em um direito natural metafísico se o homemexsurge como parâmetro? A liberdade, valor inato ao homem, deveriaser recuperada e tutelada contra qualquer forma de violação irracional,pública ou privada.

A noção de estado de natureza, encontrada no pensamento deBoètie, é uma variável constante em todos os pensadores da Ilustração,sobretudo porque sustenta o mito contratualista.

Em assumindo a postura garantista de direito e processo penal, aleitura do contrato que mais interessa ao trabalho é aquela formuladapor Locke, visto que o Segundo Tratado sobre o Governo Civil (1690)pode ser considerado como a primeira e mais completa formulação doEstado Liberal,93 em que pese a ciência da inversão ideológica em rela-ção aos Direitos Humanos produzida pelo autor.94

Locke, diferentemente de Boètie, não compartilha da tese quantoao momento de transição do estado de natureza à formação do Estado(entidade artificial) pelo contrato. Em conseqüência, o escopo, os direi-tos e os deveres das partes são diversos. Não aceita, pois, a tese do‘mau encontro’.

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92 Bornheim, ob. cit., p. 36.93 Bobbio, Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant, p. 37.94 Hinkelammert, La Inversión de los Derechos Humanos, pp. 79-113

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como um estado de paz, boa vontade, assistência mútua e preservaçãode um estado de inimizade, malícia, violência e destruição mútua.Quando os homens vivem juntos conforme a razão, sem um superiorcomum na terra que possua autoridade para julgar entre eles, verifica-se propriamente o estado de natureza. Todavia, a força, ou um desígniodeclarado de força, contra a pessoa de outrem, quando não existe qual-quer superior comum sobre a terra para apelar, constitui um estado deguerra... A falta de um juiz comum com autoridade coloca todos oshomens em um estado de natureza; a força sem o Direito sobre a pessoade um homem provoca um estado de guerra não só quando há comoquando não há juiz comum.102

Posto desta forma, o raciocínio de Locke desenvolve-se em quatroassertivas: (1a) as leis naturais podem ser violadas; (2a) as violaçõesdas leis naturais devem ser punidas e os danos reparados; (3a) o poderde punir e de exigir reparação cabe, no estado de natureza, à própriapessoa vitimada; e (4a) quem é juiz em causa própria habitualmentenão é imparcial e tende a vingar-se em vez de punir.103

Para evitar a corrupção do estado de paz pelo estado beligerante,a única solução razoável seria a criação da sociedade política e, conse-qüentemente, do estado civil: evitar o estado de guerra – no qual não háapelo senão para o céu – é a razão decisiva para que os homens se reú-nam em sociedade deixando o estado de natureza; onde há autoridade,poder na Terra do qual é possível conseguir amparo mediante apelo,exclui-se a continuidade do estado de guerra, decidindo-se a controvér-sia por aquele poder.104

A passagem do estado de natureza para o estado civil representa-ria a transferência do poder privado ao poder público, designando asaída da barbárie e a opção pela civilidade, visto que o gozo incontro-lado dos direitos e privilégios da lei da natureza acabaria por lesar osdireitos do outro. Na renúncia ao exercício das próprias razões, e naconstituição do Estado (civil), exsurge o pensamento iluminista consa-grado no consenso, sepultando o velho paradigma do medievo.

O que diferencia substancialmente os dois estados é o (re)conhe-cimento da Lei, livremente consentida e tutelada por um sujeito que, aoabdicar das paixões, torna-se racional na resolução do conflito.105 O

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102 Locke, ob. cit., p. 41.103 Bobbio, Locke e o Direito Natural, p. 181.104 Locke, ob. cit., p. 42.105 Segundo Locke, sempre que, portanto, qualquer número de homens se reúne em uma

sociedade de tal sorte que cada um abandone o próprio poder executivo da lei de nature-

que o estado de natureza corresponderia a um estado de paz, emborade pobreza. A saída encontrada pelo autor foi percebê-lo como estereó-tipo, especificando seus inconvenientes, pois ontologicamente nãoseria mau.99

Para explicar a passagem do estado de natureza para o estadocivil, Locke distingue aquele do estado beligerante: o estado de guerraé um estado de inimizade e destruição, porque os homens não estãosubordinados à lei comum da razão, não tendo outra regra que não a daforça e a da violência.100

O estado de natureza, que tenderia a ser um estado de ‘pazperpétua’,101 acabaria resultando num ‘estado de guerra’ pois, devidoà falta de poder hierarquicamente postado, a resposta às lesões dosbens da vida caberia ao indivíduo que assume papel de juiz em causaprópria. Não havendo imparcialidade, ou seja, distanciamento da con-tenda, o indivíduo reagiria emotiva e vindicativamente. Portanto, oestado de natureza não se confunde com o estado de guerra, este seriaa adulteração daquele pela necessidade de resposta à violação da leinatural. Tem-se, desta forma, a clara diferença entre o estado de natu-reza e o estado de guerra que, muito embora certas pessoas tenham con-fundido [provável alusão a Hobbes], não estão distantes um do outro

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dade de garantir, de uma vez por todas, os meios para realização dos desejos futuros(Marques Neto, A Concepção de Direito em Hobbes, p. 564). Hobbes esclarece o estado deguerra com a seguinte formulação: se dois homens desejam a mesma coisa, que ao mesmotempo é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E, no caminho paraseu fim (que é principalmente sua própria conservação, e às vezes apenas seu deleite) esfor-çam-se por se destruir ou para subjugar um ao outro (Hobbes, Leviatã, pp. 74-75). Assim,durante todo o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os mantera todos o respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guer-ra que é de todos os homens contra todos os homens. Pois a guerra não consiste apenas nabatalha, ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de tra-var batalha é suficientemente conhecida (Hobbes, ob. cit., p. 75). Em decorrência, a natu-reza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durantetodo o tempo de que não há garantia do contrário (Hobbes, ob. cit, p. 76).

99 Para Hobbes, o estado de natureza é um estado de guerra (ontologicamente mau) devi-do ao fato de a maldade ser inerente ao homem. Hobbes, nos primeiros parágrafos do DeCive (apud Bobbio, ob. cit., pp. 172-174), sustenta que a igualdade, na natureza, é consi-derada como desejo recíproco de fazer o mal, tornando o estado de natureza instável epenoso. Ao negar os postulados hobbesianos, sustentando o estado de natureza comoestado de paz sujeito aos inconvenientes da falta de autoridade, Locke desloca a natu-reza do homem ‘para além do bem e do mal’. Parece, pois, que Locke ‘humaniza’ a natu-reza do homem, distanciando de qualquer visão substancialista, concebendo-o apenascomo humano, sujeito com virtudes e perversões.

100 Locke, Segundo Tratado sobre o Governo Civil, p. 40.101 Bobbio, Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant, pp. 37-38.

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1.3.4. O direito à perversidade

No rito de passagem do estado de natureza para o estado civil, osindivíduos, segundo a matriz filosófico-política exposta, não renuncia-riam seus direitos naturais, muito menos permitiriam ao Estado inge-rência plena nas esferas de sua liberdade.

Bobbio percebe esta questão ao diferenciar o pensamento deLocke e de Hobbes. O ponto de controvérsia encontra-se no fato deque em Hobbes há ampla renúncia e alienação total dos direitos natu-rais ao Estado, ao passo que, para Locke, o estado civil e a nomeaçãoda autoridade teria como fim a garantia daqueles direitos naturais,não havendo renúncia. Em Hobbes o estado civil coloca-se acima doestado natural, suprimindo-o; para Locke, o estado de natureza é con-servado e melhorado com o estado civil, representando sua plena e efi-caz consolidação. Isso explica por que Hobbes elabora uma teoria doEstado absoluto, e Locke, a de um Estado limitado; o Estado de Hobbesprecisa cancelar os últimos resíduos do estado de natureza, enquantopara Locke o Estado é pura e simplesmente uma instituição com o obje-tivo de tornar possível a convivência natural entre os homens. Como naconcepção de Hobbes o mal é radical, o remédio deve ser igualmenteradical: o estado de natureza deve ser suprimido e, em lugar da lei natu-ral, deve vigorar a lei positiva. Na concepção de Locke, contudo, o esta-do de natureza deve ser pura e simplesmente corrigido e posto em con-dições de continuar vivendo, com todas as suas vantagens, no estadocivil, mediante um aparelho executivo que tenha condições de obrigara respeitar as leis naturais.107

Ao pactuar, o indivíduo não aliena todos os seus direitos à entida-de garante, mas mantém uma esfera de liberdade na qual a interferên-cia do Estado é ilegítima: a esfera da liberdade de pensamento e deconsciência.

Desta maneira, o pacto se constitui como instrumento de deverese de direitos recíprocos. Ao poder do soberano de regular a sociedadecom suas leis corresponde o dever de garantir a ‘segurança’ dos bens.Ao dever de obediência às leis por parte do cidadão corresponde odireito de exigir as garantias pactuadas. Ressalte-se o fato, porém, deque a liberdade de consciência e a vida, bem como a plenitude da liber-dade de locomoção (ir, vir e permanecer), não estão entre os bens dis-

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107 Bobbio, Locke e o Direito Natural, p. 183.

que funda o status civitas é a renúncia do gozo ilimitado, a imposiçãode limites e a sanção da violência ao outro. O custo da renúncia em fruire dispor ilimitadamente seria minimizado/compensado pela promessade segurança.

Consagra-se, portanto, um Estado com o fim precípuo de assegu-rar a preservação da dignidade e das propriedades do homem contraos poderes passionais ilimitados. O Estado, racionalizador imparcial dodesejo de vendeta (direito natural do homem quando lesado em seusdireitos), apropria-se do poder de autotutela, tomando para si o direitode punir, com escopo de assegurar a proporcionalidade na resolução dacontenda.

A perspectiva contratualista, portanto, fornece o solo fértil aopensamento garantista, visto que assentada na limitação dos pode-res pela legalidade: a tutela dos direitos do homem contra os pode-res privados com a negação do estado de natureza e a opção peloestado civil; a proteção dos direitos do cidadão contra o abuso dospoderes públicos, desde uma perspectiva limitadora do exercício daviolência estatal.

A transferência do poder privado à violência ao Estado é o pressu-posto de ordem, típico do pensamento ocidental fundado no mito. Porisso, em se tratando de mito (motivo conceitual),106 sua constataçãoempírica, ou mesmo sua possibilidade de ocorrência, é absolutamenteirrelevante.

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za, passando-o ao público, nesse caso somente nela haverá uma sociedade civil ou políti-ca... Por esse meio autoriza a sociedade ou, o que vem a dar no mesmo, o poder legislativodela a fazer leis para ele conforme o exigir o bem público da sociedade, para a execuçãodas quais pode-se pedir-lhe o auxílio, como se fossem decretos dele mesmo. E por estemodo os homens deixam o estado de natureza para entrarem no de comunidade, estabe-lecendo um juiz na terra, com autoridade para resolver todas as controvérsias e reparar osdanos que atinjam a qualquer membro da comunidade; juiz esse que é o legislativo ou osmagistrados por ele nomeados (Locke, ob. cit., pp. 67-68).

106 Sobre a importância do ‘mito’ na cultura ocidental, Jacinto Coutinho, fundado em ClaudeLévi-Strauss, Carlo Ginzburg, Sigmund Freud, Jacques Lacan e Pierre Legendre, leciona:sempre se teve presente que há algo que as palavras não expressam; não conseguem dizer,isto é, há sempre um antes do primeiro momento; um lugar que é, mas do qual nada sesabe, a não ser depois, quando a linguagem começa a fazer sentido. Nesta parca dimen-são, o mito pode ser tomado como a palavra que é dita, para dar sentido, no lugar daqui-lo que, em sendo, não pode ser dito. Daí o big-bang à física moderna; Deus à teologia; o paiprimevo a Freud e à psicanálise; a Grundnorm a Kelsen e um mundo de juristas, só parater-se alguns exemplos. O importante, sem embargo, é que, seja na ciência, seja na teoria,no principium está um mito; sempre! (Coutinho, Introdução aos Princípios Gerais doDireito Processual Penal Brasileiro, pp. 26-27).

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ria da humanidade: a tolerância, identificada com a secularização –ruptura entre os juízos individuais internos (moral) e externos (direito).

O conceito tolerância tem como precursor Marcílio de Pádua(Defensor Pacis, 1324), onde admitia que os infiéis e hereges deveriamser punidos pelos tribunais seculares se transgressores da lei civil, masnunca pelos juízos eclesiásticos.111 É Locke, no entanto, assentadonum dos principais temas políticos da época (liberdade religiosa) que,ao sustentar a radical separação entre as funções do Estado e da Igreja,rompe os vínculos entre direito e moral. Em conseqüência, cinde anoção híbrida, prevalente no modelo inquisitorial, de delito (mala pro-hibita) e pecado (mala in se), instituindo a tolerância como fundamen-to dos processos de laicização.

Na Epistola de tolerantia (1689), o autor afirma os limites da atua-ção da intervenção estatal, advogando que a violação das leis civisdeve ser reprimida somente pelo Estado. A resposta ao delito consisti-ria não na punição generalizada com escopo de salvar almas, mas naprivação dos bens civis dos quais o indivíduo podia e devia dispor.Logo, em contraponto à concepção inquisitiva, ilícita a pretensão esta-tal de ingressar na esfera da consciência individual, da alma, dos dese-jos e das paixões (foro interno), pois barreiras intransponíveis.

Esclarece que a intervenção do magistrado civil não pode ocorrerna esfera da interioridade devido ao fato do seu poder consistir tão-somente na coerção, ou seja, ser ‘deste mundo’. Apenas atuação sacer-dotal é baseada na persuasão do espírito.112

Lançada a base teórica da tolerância desde a Europa insular, aidéia encontrará guarida e difusão no continente com Voltaire. O pen-sador, após permanência na Inglaterra, inflama-se com o respeito àdiversidade de religiões, encontrando em Locke a fundamentaçãonecessária para sua prática política denunciatória. Locke será o gran-de inspirador pelo qual Voltaire nutrirá profunda admiração.113

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111 Apud Bobbio et alli, Dicionário de Política, pp. 1.245-1.247.112 Sustenta o autor: poderão afirmar, porém, que, sendo a idolatria um pecado, não pode ser

tolerada. Se disserem que a idolatria é um pecado e, portanto, deve ser escrupulosamenteevitada, esta inferência é correta; mas não será correta se disserem que é um pecado e,portanto, deve ser punida pelo magistrado. Não cabe nas funções de magistrado punircom leis e reprimir com a espada tudo o que acredita ser um pecado contra Deus (Locke,Carta Acerca da Tolerância, p. 18).

113 Como Locke, Voltaire é ardente defensor do processo secularizador e da precisa defini-ção dos papéis da Igreja e do Estado. Alguns autores, porém, sustentam sutil, mas subs-tancial, diferença entre os pensadores. Ao tratar dos limites hierárquicos entre os pode-res temporais e eclesiásticos, Locke diferencia a comunidade política e a sociedade reli-

poníveis ao indivíduo pactuar, visto serem inalienáveis, anteriores enão suscetíveis de pacto, pois são o seu pressuposto. É que um pactoefetuado sobre estes bens e nesses termos (restrição ou ampla suspen-são da vida e das liberdades) não seria realizado pelo cidadão, pois nãotraria benefícios e vantagens maiores ao indivíduo do que as que ele jápossui no estado de natureza.108 Assim, deslegitimadas na esfera pe-nal as sanções cruéis, dado ao fato de que não há disposição, por partedo cidadão, de seus bens fundamentais.

O consenso limita o poder estatal, vinculando-o ao princípio dalegalidade e garantindo ao cidadão direitos supra-estatais. Nesses ter-mos, a violação dos direitos do cidadão por parte de outrem permite aoEstado a punição legítima. De outra parte, a violação desses mesmosdireitos por parte de um dos três poderes constituídos (exercício alémdo direito que configura a tirania) deslegitima a entidade garantidora,nascendo novos direitos e obrigações sob pena de retorno ao estado denatureza. O Estado é, pois, poder que não tem outro objetivo senão apreservação e, portanto, não poderá ter nunca o poder de destruir, escra-vizar ou propositalmente empobrecer os súditos.109

Em não sendo pactuada a liberdade de pensamento (foro íntimodas convicções, paixões e emoções) permanece o ‘ser’ como núcleoinviolável, como reserva de direitos do cidadão na qual o Estado nãopode interferir. Os limites estabelecidos pelo consenso não permitem aingerência e a lesão desse direito. A consciência permanece libertamesmo se direcionada ao ilícito. A propósito, Schopenhauer110 susten-tará que o Estado não pode impedir ninguém de nutrir, por exemplo,um constante propósito de homicídio ou de envenenamento. AoEstado, o que interessará é o fato correspondente à lei. As intenções evontades não serão consideradas senão como explicativas da naturezae do significado do fato ilícito.

Nasce, nesse momento de concepção altamente limitada doEstado, uma das teses fundamentais do pensamento político da histó-

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108 Locke advoga que, embora supremo, o legislativo não poderia ser absolutamente arbitrá-rio sobre a vida e a fortuna das pessoas, porquanto o direito cedido não pode ser maisdo que essas pessoas tinham no estado de natureza, porque ninguém pode ceder aoutrem mais poder do que possui, e ninguém tem poder arbitrário e absoluto sobre simesmo ou sobre outrem, para destruir a própria vida ou a propriedade de outrem (Locke,ob. cit., pp. 86-87).

109 Locke, ob. cit., p. 87.110 Apud Ferrajoli, ob. cit., p. 485.

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natureza – os dois estados, natural e civil, estão intimamente interliga-dos: um é o remédio do outro.117

Demonstra Locke que três seriam os casos em que haveria rompi-mento do contrato e retorno ao estado de natureza: usurpação, tiraniae dissolução do governo – excetuando-se os casos de degeneração dasociedade civil por fatores externos (v.g. conquista).

A usurpação (tirania ex defectu tituli) consistiria numa conquistainjusta desde dentro do Estado, uma alteração interna decorrente deum golpe ou revolução. Nos casos de tirania (tirania quoad exercitum),haveria uma corruptela no exercício do poder soberano, quando estenão mais direciona a ação estatal à satisfação das necessidades funda-mentais da comunidade. Em ambos os casos, haveria ruptura obriga-cional e o respeito ao poder instituído pelo cidadão não seria mais obri-gatório: a tirania é o exercício do poder além do Direito, o que não podecaber a pessoa alguma. E esta consiste em fazer uso do poder quealguém tem nas mãos, não para o bem daqueles que lhes estão sujeitos,mas a favor da vantagem própria, privada e separada.118

Para além da usurpação e da tirania, outro motivo de desagregaçãodo Estado civilmente constituído seria a alteração do poder legislativopela ação centralizadora do executivo ou a ação isenta de razão dopoder legiferante. Para Locke, a constituição do legislativo é o primeiroe fundamental ato da construção racional e civilizada da sociedade.Assim, se o Príncipe chamar a si a elaboração das leis ou obstruir suaplena execução, ou se o legislativo atuar além de sua limitação genea-lógica, restringindo direitos aos quais não lhe é lícito intervir, o governocivil declararia guerra contra a sociedade que o constituiu, rompendo-se, pois, os basilares fundamentos da civilidade.119 Idêntico o processoem relação ao executor das leis que age contra a vontade da sociedade.

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117 Bobbio, Locke e o Direito Natural, p. 239.118 Locke, ob. cit., p. 113.119 Segundo Locke, sempre que os legisladores tentam tirar e destruir a propriedade do povo,

ou reduzi-lo à escravidão sob poder arbitrário, entram em estado de guerra com ele, que-fica assim absolvido de qualquer obediência mais, abandonando ao refúgio comum queDeus providenciou para todos os homens contra a força e a violência. Sempre que, portan-to, o legislativo transgredir esta regra fundamental da sociedade, e por ambição, temor,loucura ou corrupção procurar apoderar-se ou entregar às mãos de terceiros, o poder abso-luto sobre a vida, liberdade e propriedade do povo perde, por esta infração ao encargo, opoder que o povo lhe entregou para fins completamente diferentes, fazendo-o voltar aopovo, que tem o Direito de retomar a liberdade originária e, pela instituição de novo legis-lativo, conforme achar conveniente, prover à própria segurança e garantia, o que consti-tui o objetivo da sociedade (Locke, ob. cit., p. 121).

Como ressalva René Pomeau,114 Voltaire não foi propriamente umfilósofo, pois detestava a especulação abstrata e a reflexão analítica. Li-mitava-se à (brilhante) exposição e defesa do pensamento dos outros.Diferentemente de Locke, que redigiu sua Epistola em latim, Voltairepopularizaria as idéias do pluralismo religioso, direcionando críticasincisivas e nominais à Inquisição.

Em Tratado sobre a Tolerância (1763), Voltaire, assim como fezPietro Verri no caso das unções pestíferas de Milão, critica as funções,o método, o procedimento e o desiderato do sistema inquisitivo, a par-tir de um processo judicial condenatório.

Ao descrever a forma de manipulação probatória pelo magistrado,Voltaire percebe o irracionalismo do ‘direito da intolerância’,115 encon-trando guarida nos membros da Academia dei Pugni, principalmenteem Beccaria, cuja tradução da obra Dei Delitti e delle Pene será prefa-ciada e comentada pelo autor.116

Parece, pois, ressalvada a ousadia na sustentação, que Locke eVoltaire estão para a filosofia política iluminista, pelo conteúdo e pelaestrutura metodológica das obras, como Beccaria e Verri estão para odireito penal ilustrado. Todos, contudo, conformando o universo teóri-co-prático denominado garantismo ilustrado.

1.3.5. Os fundamentos do direito de resistência

Como sucedâneo lógico da teoria limitada do poder estatal, a filo-sofia ilustrada fundamenta a teoria do direito de resistência como meca-nismo de garantia do cidadão contra o Estado, visando a impedir oabuso dos poderes Executivo (tirania), Legislativo e/ou Judiciário.

Leciona Bobbio que o estado de natureza e o estado civil não sãomomentos definitivos na história da humanidade (a história não temmomentos definitivos). Assim, como da crise do estado de naturezanasce o estado civil, a crise deste torna possível o retorno àquele: afalência do estado civil faz com que o homem retorne ao estado de

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giosa, separando a competência funcional de Estado e Igreja, ao passo que Voltaire vêna subordinação da Igreja ao Estado a única como forma de tutelar a tolerância.

114 Pomeau, Introdução ao Tratado sobre a Tolerância de Voltaire, p. XXIV.115 O Direito da intolerância é, pois, absurdo e bárbaro; é o Direito dos tigres, e bem mais hor-

rível, pois os tigres só atacam para comer, enquanto nós exterminamo-nos por parágrafos(Voltaire, Tratado sobre a Tolerância, p. 35).

116 Voltaire, Comentários Políticos, pp. 117-176.

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Capítulo IIO Garantismo Jurídico-Penal:

Gênese e Crise(s)

2.1. Recepção do contratualismo pelo direito penal

2.1.1. Unidade e existência da ‘Escola Clássica’

A doutrina tradicional comumente opõe ao pensamento jurídico-penal do medievo um ‘período humanitário’ consagrado pela chamada‘Escola Clássica’ do direito penal. Dita ‘escola’ teria gênese no pensa-mento filosófico-penal de Beccaria, seguida de um momento sistematiza-dor sustentado por Francesco Carrara, principal ícone da fase jurídica.

Indubitavelmente, a fase ‘deliciosamente filosófica’1 é marcadapelo advento da obra Dei delitti e delle pene; e não é lícito questionarsua importância como elaboração doutrinária do direito penal, da polí-tica criminal e da criminologia moderna. Todavia, parece errôneo redu-zir período tão fértil de construção do discurso sobre o delito, o juízo ea pena à obra exclusiva do autor, e procurar enquadrar bruscamentetodo o pensamento penal ilustrado sob o rótulo de ‘Escola Clássica’. Talencaminhamento pressuporia, no mínimo, uma unidade metodológica,o que não parece ser possível sustentar.

No entanto, se inexiste no interir do ‘classicismo’ consenso sobrealguns temas basilares da questão penal,2 percebe-se nítida aproxima-

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1 Baratta, Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, p. 26.2 Lembra Zaffaroni: es necesario señalar que estas ideologías, más otras en las que no nos

detenemos ahora, jamás pueden ser colocadas bajo el rótulo de una ‘escuela’, porque la‘escuela clásica’ nunca existió, sino que la inventó Enrico Ferri, como denominación comúnpara todo lo que fue anterior al positivismo. En varias ocasiones hemos demonstrado queno puede ser una ‘escuela’ el conjunto de opiniones de los pensadores del tema político-cri-minal durante más de un siglo, vertidas desde las ideologías más dispares (kantismo,hegelianismo, idealismo romántico, utilitarismo, vueltas parciales al aristotelismo, pensa-miento iluminista, etc.). Además, la circunstancia de que estos autores, justamente, hayansido quienes al plantear la cuestión político-criminal dieran origen a la presentación actu-al de la criminología, nos exime de cualquier comentario acerca de su tradicional asigna-ción al terreno del derecho penal. Más aún: consideramos que su ubicación en el ámbito

Após conceituar e deslegitimar as formas de lesão ao estado civil,Locke indaga se nestes casos o cidadão poderia opor-se às ordens doPríncipe, se poderia resistir-lhe tantas vezes julgasse agravado pela injus-tiça. Responde que a resistência é legítima se os atos do detentor do poderforem exercidos à revelia da lei. Neste instante, cria duas categorias diver-sas, apesar de similares: desobediência e resistência. A resistência impli-caria uma conduta comissiva de manifestação contra o poder, ao passoque a desobediência caracterizar-se-ia por uma atitude passiva, um não-fazer. Os conceitos, apesar de diversos, não são opostos; pelo contrário, asmanifestações seriam simbióticas na deslegitimação do poder abusivo.Conclui: quem quer que use força sem Direito, como o faz todo aquele quedeixa de lado a lei, coloca-se em estado de guerra com aqueles contra osquais assim a emprega; e neste estado cancelam-se todos os vínculos, ces-sam todos os outros direitos, e qualquer um tem o Direito de defender-se ede resistir ao agressor... Nem toda resistência ao príncipe é rebelião.120

Quando da ruptura e quebra dos vínculos originários, o homem reto-maria os direitos alienados ao Estado; colocar-se-ia, como no princípio,em estado natural, recuperando os poderes legislativo, judiciário e exe-cutivo. Como percebe Bobbio,121 as últimas páginas do Segundo Tratadoconstituem uma fervorosa defesa dos oprimidos contra os opressores,em favor da liberdade contra a ordem, numa afirmação da soberania dopovo. Poder-se-ia, inclusive, sustentar que se trata de uma clara manifes-tação de prevalência hierárquica dos direitos contra os poderes.

Muito embora Locke seja considerado o idealizador do Estadoliberal (limitado), podendo fundar um discurso coeso de tutela dosdireitos fundamentais, errôneo seria desprezar sua historicidade, tra-balhando seu discurso como se de ruptura fosse. Lógico que o discur-so exposto vincula-se a um determinado locus, como forma de legitimardeterminadas práticas, ou seja, não se está a trabalhar desde umaperspectiva romântica do texto. Sabe-se que, na relação entre o podereuropeu e os das ‘colônias’, a fala de Locke proporcionou, como anteci-pado, uma ‘inversão ideológica’ do discurso dos direitos fundamentais,legitimando práticas bárbaras, assim como aquela de Ginés deSepúlveda em sua célebre discussão com Bartolomé de las Casas.122

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120 Locke, ob. cit., p. 125.121 Bobbio, ob. cit., pp. 244-245.122 Sobre o debate de Valladolid (1550), além da leitura de Las Casas, O paraíso destruído;

verificar Dussel, Bartolomeu de las Casas; Dussel, Núcleo simbólico lascasiano como críti-ca profética ao imperialismo europeu; e Dussel, Cristandade moderna frente ao outro, pp.135-161.

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de e livre manifestação da vontade do homem. Inexistindo tais condi-ções fáticas, o pacto é nulo.

Estabelecidas as regras de convivência social e os papéis (direitose deveres) das partes (cidadão e Estado), a norma penal é externamen-te limitada, de forma negativa (excludente), pela moral. Decorrente doprocesso de secularização implícito às teorias contratuais, não cabe aoEstado ingerência alguma na esfera interior. A intervenção é legítimasomente quando a conduta (ativa ou omissiva) causar perceptível danoexterno. Com a laicização do Estado e do direito, o crime não corres-ponde mais à violação do divino, mas à livre e consciente transgressãoda norma jurídica promulgada pelo Estado, submetendo o infrator àpenalidade retributiva decorrente do inadimplemento: para os clássicoso crime é um fato do homem, não no seu pensamento (de internis noncurat praetor) ou no seu modo de ser (periculosidade do indivíduo quecomete um crime).5

Os fundamentos do direito penal moderno são lançados em blocopela Ilustração, tendo em vista a coerência de suas proposições: a leipenal – geral, anterior, taxativa e abstrata (legalidade) – advém de con-trato social (jusnaturalismo antropológico), livre e conscientementeaderido por pessoa capaz (culpabilidade/livre arbítrio), que se subme-te à penalidade (retributiva) em decorrência da violação do pacto poratividade externamente perceptível e danosa (direito penal do fato),reconstituída e comprovada em processo contraditório e público, orien-tado pela presunção de inocência, com atividade imparcial de magis-trado que valora livremente a prova (sistema processual acusatório).

Assim, percebe-se claramente um programa de intervenção penallimitada cuja centralidade é a tutela dos direitos individuais contra ospoderes irracionais, públicos (Estado) e/ou privados. Sem embargo, talconcepção possibilita um entendimento, ainda que não explícito, pes-simista do poder estatal, pois geneticamente propenso à violação dosdireitos fundamentais da pessoa humana.

Decorrente do pressuposto liberdade, fundante da teoria obriga-cional, existiriam canais de ruptura e resistência às violências ilimita-das. No caso de o cidadão ser sujeito passivo de violência privada, res-tar-lhe-ia unicamente o direito à legítima defesa, tendo em vista aausência do Estado em sua função tutelar. O Estado consentiria, valo-rando a conduta como lícita, quando o indivíduo, em situação de vio-lência, resistisse à ação ilegítima com força (proporcional), como se em

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5 Bettiol & Bettiol, Instituzioni di Diritto e Procedura Penale, p. 23.

ção teórica quanto à fundamentação filosófico-política do Estado. Talagregador, até a antecipação do tecnicismo por Francesco Carrara, seráa teoria do contrato social. Desta forma, compartilha-se da perspectivade Zaffaroni3 quando identifica ‘movimentos penais ilustrados’ sob aégide do contratualismo. Da transposição das mais diferenciadasidéias contratuais, do plano filosófico-político à esfera do jurídico,pode-se propor uma relativa categorização dos movimentos da época.

Notórias, pois, algumas considerações de ordem preliminar comintuito de caracterizar o núcleo de tal pensamento.

Como visto, a teoria do contrato social representa a possibilidadede alteração na imutável ordem estabelecida pelo medievo. Ao proporque a sociedade seria composta artificialmente por um pacto simbóli-co e fundante, os teóricos dos setecentos e oitocentos sustentam acapacidade modificadora e crítica do homem. Se o contrato é artificial,o homem livre e autônomo pode a qualquer momento questionar suavalidade. A concepção organicista da sociedade, reveladora de papéispré-definidos por Deus, justificava a hegemonia e o poder político danobreza, sendo que a este discurso legitimador de la posición hegemó-nica de la nobleza en función de la concepción de la sociedad como orga-nismo ‘natural’, la burguesia debía oponer otro discurso, que atacase esaconcepción de la sociedad. Esse fue el discurso contratualista. En tantoque el organismo es algo ‘natural’, el contrato es ‘artificial’, hecho por elhombre. Si la sociedad es una creación ‘artificial’ – contractual – lanobleza puede ser desplazada de su posición hegemónica por una modi-ficación del contrato.4

De uma postura contemplativa e coadjuvante perante o poder doEstado, o homem passa a ser protagonista de outro modus vivendi. Opólo de legitimidade externa do poder é deslocado do teológico aoantropológico. A vida terrena passa a ser estabelecida nas relaçõesharmônicas convencionadas pelos homens, e não mais como transpo-sição de vontades metafísicas hipostasiadas. O homem é autônomo, opoder é ‘deste mundo’.

A autonomia e a liberdade são, portanto, conceitos inerentes àteoria do contrato social. A possibilidade do pacto pressupõe capacida-

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exclusivo del derecho penal con un rótulo unitario – y su consiguiente exclusión del ámbitocriminológico – es un modo de minimizar su importancia y de prevenir-se contra el efectodeslegitimador que puede tener el discurso contractualista (Zaffaroni, Criminología, p. 128).

3 Zaffaroni, ob. cit., pp. 99-130.4 Idem, p. 113.

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Faziam parte desse seleto grupo milanês, dentre outros, GiuseppeVisconti di Saliceto, Luigi Lambertenghi, Antonio Menafoglio, AlfonsoLongo, Giovan Battista Biffi, Pietro Secchi-Comnemo (‘il signorefilosofiche’), a bela Antonia Belgioioso e, logicamente, Cesare deBeccaria e os irmãos Alessandro e Pietro Verri.

Essa agremiação de pensadores da vida cultural e civil, organiza-da pelo fundador Pietro Verri, embriagada pelo enciclopedismo deDiderot e d’Alambert e pelas obras de Montesquieu, Voltaire eRousseau, passa a divulgar surpreendente produção literária, entre asquais estão Meditazioni sulla felicità (1763), de Pietro Verri; Dei delitti edelle pene (1764), de Beccaria; e Il Caffé, periódico criado e dirigido porPietro Verri, publicado entre os anos de 1764 e 1766, cujo intuito erafazer uma guerra perene e incessante para melhorar as pessoas.9

A base teórica compartilhada pela École de Milan demonstra aaceitação da matriz contratualista, estando presente a idéia da cons-trução do processo civilizatório como superação de um ‘estado deguerra’.10 Para os acadêmicos, o contrato social simbolizaria o ato dealienação da liberdade individual ao Estado em troca de segurança,sendo que o conjunto destas ‘pequenas porções de liberdade’ funda-mentaria o ius puniendi.

A formulação filosófica dos pensadores no que tange à disciplinapenal encontrará, inexoravelmente, guarida na concepção liberal doEstado moderno. Ao fundir princípios utilitaristas com a teoria da limi-tação dos poderes, objetiva-se a construção de uma filosofia da dor, doprazer e da felicidade, temas clássicos na filosofia setecentista.

Pietro Verri, além de Meditazioni sulla felicità (1773), publica nomesmo ano Idee sull’indole del piacere e, em 1781, apresenta as ediçõesdefinitivas de Discorso sull’indole del piacere e del dolore e do Discorsosulla felicità. É também no ano de 1781 que edita Meditazioni sulla eco-nomia politica, considerado ‘capolavoro’ dos estudos italianos sobreeconomia no século XVIII. A temática fundamental das meditações é aconquista, sob a chancela da razão, de uma renovação capaz de mudar

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9 Cerpa, Introduzione: Lettere al fratello e agli amici, p. 09.10 As leis foram as condições que reuniram os homens, a princípio independentes e isolados,

sobre a superfície da terra. Cansados de só viver no meio de temores e de encontrar inimi-gos por toda parte, fatigados de uma liberdade que a incerteza de conservá-la tornava inú-til, sacrificaram uma parte dela para gozar do resto com mais segurança. A soma de todasessas porções de liberdade, sacrificadas assim ao bem geral, formou a soberania da nação;e aquele que foi encarregado pelas leis do depósito das liberdades e dos cuidados da admi-nistração foi proclamado o soberano do povo (Beccaria, ob. cit., p. 32).

estado de natureza estivesse.6 Na hipótese de violência pública ilegíti-ma, da ação lesiva nasceria o direito de resistência. Logo, se o(s) sujei-to(s) em situação de violência, na qual o sujeito ativo é o poder estatal,resiste(m), é(são) amparado(s) por nova descriminante genérica: o iusresistentiae. Se a finalidade do Estado é tutela e garantia dos direitos,inadmissível ato (comissivo ou omissivo) lesivo.

Esta é, no entender de Zaffaroni, la clave central de la teorizacióncontratualista: los hombres devenían libres para contratar, con derechosanteriores a los de la sociedad y que no podían ser negados por esta. Elburgués ‘libre’ podría oponerle a la nobleza sus derechos anteriores alcontrato y modificar el contrato desplazando la nobleza. Aún podía lle-garse más lejos y oponerle a la nobleza un derecho de resistencia y hastaun derecho a la revolución.7

Percebe-se, juntamente com Vera Andrade,8 uma unidade ideoló-gica no inequívoco significado liberal e humanitário do paradigma, poisa problemática central que preside seus momentos fundacionais e atra-vessa seu desenvolvimento é a dos limites do poder de punir face àliberdade individual, empreendendo uma vigorosa racionalização dopoder punitivo em nome da necessidade de garantir o indivíduo contratoda intervenção arbitrária. Daí por que a denominação de ‘garantismo’é a que melhor espelha o seu projeto racionalizador.

2.1.2. A Accademia dei Pugni

O pensamento jurídico-penal do maior representante da ‘EscolaClássica’, Cesare de Beccaria, não nasce de forma afoita ou desvincu-lada de um imaginário sobre o direito penal. Beccaria, laureado emdireito no ano de 1758 pela Universidade de Pavia, foi, e aqui se expres-sa toda a sua qualidade, o maior divulgador das idéias penais dos‘reformadores lombardos’, coletivo de jovens idealistas que se autopro-clamavam Accademia dei Pugni.

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6 La agresión antijurídica funda el derecho de defensa y cancela inmediatamente todo dere-cho en el agresor, su lesión es una condición necessaria para la conservación de los pro-prios derechos del agredido. Pero, dado que el ciudadano necessariametne ha transferidoal Estado su derecho al uso de la fuerza privada, dentro del estado la adecuación a dere-cho de la defesa propria presupone, además de las condiciones de la defensa en general,un caso que no pueda haber quedado abarcado dentro de la enajenación de la fuerza pri-vada hecha al Estado. Dicho caso es cuando el poder público no puede proteger(Feuerbach, Tratado de Derecho Penal, p. 72).

7 Zaffaroni, ob. cit., p. 113.8 Andrade, Dogmática e Sistema Penal, pp. 109-110.

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lidade da obra, é Dei delitti e delle pene que representará a Escola deMilão, pois o livro de Verri sobre a questão penal (Osservazioni sulla tor-tura) somente será publicado, por questões pessoais, alguns anos apóssua morte, em 1797.

A obra de Beccaria apresenta não somente uma incisiva crítica dogrupo ao status quo ante, mas sobretudo um plano de construção deum novo modelo jurídico-penal. Como acentua Vera Andrade,15 não setratava mais de combater a antiga justiça penal, mas de consolidar juri-dicamente os princípios básicos do novo direito penal já positivado ouem vias de positivação.

O impacto do pensamento milanês é perceptível nos processos decodificação europeu dos séculos XVIII e XIX,16 bem como pela forma deinterpretação destes textos divulgada pela nascente Escola daExegese.

2.1.3. A versão revolucionária do contratualismo

Sem desmerecer a importância já acentuada das obras de Verri eBeccaria, procurar-se-á otimizar o pensamento penal da ilustração emautores que melhor potencializaram os valores de formação do núcleooriginário do garantismo. Secularização e tolerância, e a admissibilida-de do ius resistentiae, serão intrumentalizados neste marco conceitualpor uma série de princípios do direito e do processo penal da moderni-dade. Sob este entendimento, inevitável o direcionamento das aten-ções às propostas de Feuerbach e Marat.

Feuerbach e Marat, diferentemente dos demais autores elencadoscomo representantes da prima scuola, explicitam o entendimento do

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bom amigo, sabe que depois de ter eu conhecido esta funesta verdade não posso mais terpor ele os sentimentos que tinha antes. Se eu tivesse vindo a Paris em triunfo como veioBeccaria (por um livro cujo projeto lhe foi dado por mim, cujo início, desenvolvimento e fim,a publicação e até a cópia feita pela minha mão são efeitos da minha infatigável amizade),eu não teria certamente perdido a ocasião de fazer conhecer, com meus discursos, o amigoobscuro que havia deixado na pátria; ele, bem longe disso, na sua volta não me trouxesenão os cumprimentos do senhor Watele, que tive a honra de conhecer por mim mesmoem Milano (Verri, Lettere al Fratello e Agli Amici, pp. 51-52).

15 Andrade, ob. cit., p. 115.16 Lembremos que a publicação da Riforma della legislazione criminale toscana, também

conhecida como Reforma Leopoldina, eis que promovida pelo Granduca Pietro Leopoldo diLorena, data de 30 de novembro de 1786. Esta legislação, segundo Fabrizio Ramacci, repre-senta o primeiro sinal de realização dos ideais iluministas. A Leopoldina, prossegueRamacci, ainda representa o coágulo legislativo de um fermento de idéias inspiradas naescola do direito natural e na filosofia do iluminismo (Ramacci, Corso di Diritto Penale, p. 47).

os costumes e a cultura, isto é, que opere nas raízes da convivênciahumana,11 na busca da felicidade e da igualdade possíveis. Notória,pois, a presença do utilitarismo, cujo entendimento penal fundamenta-rá o mínimo sacrifício necessário da liberdade do cidadão que violou ocontrato social.

O sucesso da produção literária (econômica, social, política, jurídi-ca e de costumes) dos autores da Accademia levou-os ao merecidoreconhecimento intelectual, fundamentalmente pelos pensadores fran-ceses que, em 1766, convidam os intelectuais a dirigirem-se a Parispara divulgação de suas publicações.

Essa importante viagem na história do pensamento jurídico-penalprovavelmente explica o porquê da ausência do intelectual (‘dificilmen-te classificável’) Pietro Verri dos livros de direito penal. Diferentementede Beccaria, Verri sempre se ocupou de intenso trabalho jornalístico epolítico-econômico aplicado à construção viável de um projeto de refor-ma da Administração do Estado milanês, acompanhando as transforma-ções em andamento na Europa ocidental tendentes a desmantelar osresíduos feudais que impediam a plena afirmação de uma sociedadeindustrial e dinâmica.12 Por uma inqualificável coincidência histórica,no ano de 1766 é nomeado funcionário da administração austríaca comescopo de reestruturar a política econômica milanesa. Percebe, assim,a possibilidade de colocar em prática suas idéias. Nega o convite dosenciclopedistas e envia seu irmão menor, Alessandro Verri, tambémarticulista do Il Caffé, para acompanhar Beccaria. Todavia, organiza edirige minuciosamente toda a viagem, desde os contatos e despesas àhospedagem.

Apesar de a gloriosa peregrinação13 de Beccaria e AlessandroVerri representar um dos marcos fundamentais no processo de difusãodo iluminismo lombardo, significa também o momento da ruptura entreos pensadores. Beccaria é ovacionado pelo público e inflama-se pelatranspiração filosófica parisiense, instigando o processo de separaçãocom Verri que passa, inclusive, a questionar a originalidade de DeiDelitti e delle Pene.14 Independentemente das disputas sobre a origina-

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11 Cerpa, ob. cit., p. 05.12 Cerpa, ob. cit., p. 21.13 Expressão usada por Verri em carta a Beccaria datada de 13 de novembro de 1766.14 Em carta a Paolo Frisi (21 de janeiro de 1767), escreve Verri: Beccaria mostra-se claramen-

te não apenas desinteressado em fazer por nós aquilo que cordialmente fizemos por ele,mas com uma constante disposição de ânimo para usurpar-nos aquele pequeno louvor ouaquela pequena glória que de direito são nossos. Caro Frisi, o senhor que sabe ser justo e

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hegemonia senhorial), mas que admitisse o direito de resistência (paraameaçar a classe senhorial) e concebesse o delito como ação livre (paraeliminar toda atenuante que dificultasse o controle e a disciplina dasclasses marginais).

Os direitos (subjetivos) para Feuerbach seriam externos, ou seja,direitos naturais anteriores ao Estado e que com ele não desaparece-riam. Assim, cria condição para o seu respeito e garantia, ficando apossibilidade de resistência como alternativa em caso de sua violaçãopor parte do ente público. Na trilha de Locke, os ‘direitos naturais’ nãoestariam, como em Hobbes, Kant e Rousseau, totalmente alienados aoEstado pelo rito de passagem da natureza à civilização. Tanto emFeuerbach, como em Marat, os indivíduos preservam a esfera da perso-nalidade que, além de impedir a ingerência do Estado (v.g. a liberdadede consciência religiosa), permite o rompimento do contrato caso estedescumpra sua função. Se do delito, descumprimento contratual porparte do indivíduo, surge o poder do Estado em punir, evitando assimo mal maior da vingança privada, do abuso do poder público nasce odireito de resistência, pois rompido o elo fundante.

A tensão do posicionamento de Feuerbach em relação à tradiçãofilosófica germânica situa-se nos efeitos daquilo que Boètie definiracomo processo de desnaturação: momento de fundação da civilizaçãoe o encontro com o Estado. Se em Hobbes, Kant e Rousseau o encontrorepresenta a total perda da independência e da autonomia, para Locke,Feuerbach e Marat, o cidadão preserva direitos naturalmente inaliená-veis, daí o direito de desobedecer. O pensamento jurídico-penal encon-tra neste ponto sua grande divergência, impossibilitando a classifica-ção precipitada sob um único e exclusivo rótulo (‘Escola Clássica’).

Contudo, não se encontra em Feuerbach a versão mais revolucioná-ria da teoria contratualista. Apesar de o autor proporcionar justificativaidônea ao direito de resistência, é Jean Paul Marat, l’ami du peuple, queincluirá novos e renovados direitos à teoria contratualista, projetando ogarantismo contemporâneo representado pela máxima Estado e direitomínimos na esfera penal, Estado e direito máximos na esfera social.

A discussão sobre o direito (penal) contratualista até Marat limita-va-se ao plano dos direitos e garantias individuais. O autor propõe umainversão, um giro metodológico na interpretação do pacto.

Figura demonizada, de referência quase inexistente nas letras jurí-dicas contemporâneas, Jean Paul Marat tem suas idéias combatidaspelo ‘ostracismo’. Trata-se do mesmo fenômeno que assola a teoriapolítico-antropológica de Boètie. O curioso, nesta triste ‘coincidência’,

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poder estatal como intrinsecamente mal, como (pré)destinado à viola-ção dos direitos fundamentais, sendo necessária sua limitação.

Feuerbach representou importante corrente garantista para o pen-samento penal e filosófico do final dos setecentos e início dos oitocen-tos, simbolizando a doutrina racionalista germânica. Autor de Anti-Hobbes (1797), militou pelos processos de codificação, elaborando aparte geral do Código Penal do Reino da Baviera (1813), texto quepuede considerarse la primera estructuración de una parte general delderecho penal en sentido moderno.17

Ao sistematizar o pensamento penal alemão, Feuerbach aderiuradicalmente ao processo de secularização do direito penal, impondo-lhe atualíssimo sentido antropológico ao defender a DeclaraçãoFrancesa dos Direitos do Homem e do Cidadão – Feuerbach fundó losderechos de modo totalmente separado de la moral, pretendiendo echarlas bases de una ciencia o saber de los derechos naturales separado deésta. Aquí se observa la incuestionable influencia del pensamiento revo-lucionario francés, traducida praticamente en la defensa que hace delderecho de resistencia, rotondamente negado por el pensamiento ilus-trado de Kant.18

O autor opõe-se totalmente à matriz do pensamento kantiano,19

viabilizando nova versão ao contratualismo tedesco.20 AssinalaZaffaroni21 que a burguesia alemã necessitava, ao contrário do que pro-pugnava Kant, uma teoria que fosse contratualista (para questionar a

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17 Zaffaroni, Anselm v. Feuerbach, p.18.18 Zaffaroni, ob. cit., p. 20.19 Em Anti-Hobbes, Feuerbach desenvolve, a partir da indagação em que medida sua obra

é também um Anti-Kant?, sua crítica ao kantismo, tendo como motivo a (in)admissibili-dade do direito de resistência, tema no qual encontrar-se-ão em frontal oposição(Feuerbach, Anti-Hobbes, pp. 57-81). Não podemos olvidar que para Kant o Estado (direi-to) é a garantia externa do imperativo categórico (moral) no caso de lesão. No entanto,se o Estado é o violador, impossível é a concepção de um direito de resistência, visto queromperia com a condição instrumental de garantia. O criminoso político, ou o rebelde quese manifesta contra a lei ou a autoridade constituída, corresponde, assim, ao pior dosindivíduos, pois intenta romper com os laços básicos da estrutura social. Os ‘direitosnaturais’, ao serem totalmente alienados pelo indivíduo ao Estado na realização dopacto, ficam à mercê da vontade do soberano. Esta concepção gera autoritarismo, con-cebendo o poder (Estado) como tendente à garantia dos direitos e não à sua violação.Mais, inviabiliza ao cidadão qualquer válvula de escape contra os poderes pois, por maloque fuesse el Estado, siempre sería mejor que el caos, que sería la dissolución del contra-to social (Zaffaroni, Criminologia, p. 118).

20 El Estado feuerbachiano es inútil y despreciable quando no garantiza los derechos; elEstado kantiano debe ser respetado, aún cuando no garantice, porque sólo dentro de élpoden tener lugar los derechos (Zaffaroni, ob. cit, p. 21).

21 Zaffaroni, Criminología, pp. 118-119.

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intuito do cidadão em delegar ao poder público o poder punitivo e, aoadquirir o status civil, assegurar a segurança na fruição dos mesmos.25

No entanto, significativa é a virada interpretativa operada na baseteórica contratualista. Marat avança no pensamento ilustrado, supe-rando o contratualismo clássico de Beccaria, Verri e Feuerbach, anteci-pando, inclusive, a crítica da Criminologia Radical dos anos setenta doséculo XX. Para Marat, a garantia do indivíduo contra os poderes cor-responderia àquela atitude omissiva em relação à liberdade individual.E, para garantir igualdade numa sociedade cujos bens da vida sãodesigualmente distribuídos, seria imperativo ao Estado uma atitudecomissiva na prestação de serviços para redução dessas desigualda-des. A distribuição desproporcional dos bens da vida pelo Estado cons-tituído, dicotomizando a estrutura social entre ricos e miseráveis,representaria uma violação das obrigações originárias. Logo, o deverde respeitar as leis em situações de profundas desigualdades seria ine-xeqüível, devido à violação do pacta sund servanda pela inadimplênciado poder público na esfera social.26

A sociedade deveria assegurar os meios necessários de sobrevi-vência dos cidadãos. Se não o faz, instiga-os a serem criminosos, vistoque o autor justifica todo ladrão como um ser compelido pela miséria, aqual significa sempre um fracasso da sociedade.27 Daí que o crime con-tra a propriedade, no interior de uma sociedade corroída pela pobreza,seria legítimo, e a pena, tirânica.28 Desta maneira, se no plano dos

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25 Os homens não se reuniram em sociedade senão por seu interesse comum; eles não fizeramleis senão para fixar os respectivos direitos, e não estabeleceram um governo senão paraassegurar a si mesmos o gozo desses direitos. Se renunciaram a vingar-se pessoalmente,fizeram-no para transferir essa responsabilidade ao braço público; se renunciaram à liber-dade natural, fizeram-no para adquirir a liberdade civil; se renunciaram à comunhão pri-mitiva dos bens, fizeram-no para possuir pessoalmente uma parte desses bens (Marat,Disegno di Legislazione Criminale, p. 72).

26 Em uma terra coberta de propriedades alheias e onde não têm possibilidade de se apro-priar de nada, ficam reduzidos a morrer de fome. Ora, não pertencendo à sociedade emrazão das desvantagens que esta comporta, são estes obrigados a respeitar as suas leis?Indubitavelmente não. Se a sociedade os abandona eles voltam ao estado natural, e quan-do reivindicam com a força aqueles direitos aos quais renunciaram com a única finalida-de de garantir para si maiores vantagens, qualquer autoridade que lhes opõem obstácu-los é tirânica e o juiz que os condena à morte não é outro senão um infame assassino(Marat, ob. cit., p. 72).

27 Coquard, ob. cit., p. 96.28 A sociedade não tem o direito de punir aqueles que violam suas leis, se não tiver se orga-

nizado de modo a cumprir as suas próprias obrigações em relação a todos os seus mem-bros... O zelar pela própria sobrevivência é o primeiro dever do homem e os senhores mes-mos não conhecem outros deveres acima deste: quem rouba para viver, desde que não

é exatamente a sintonia do pensamento de ambos autores, pois éMarat que ressuscitará o texto de Boètie, tornando-o manifesto contrao despotismo no período revolucionário francês.

Marat, antes de propor seu Plano de Legislação Criminal (1790) –importantíssimo documento até hoje não devidamente valorizado, comoargutamente percebe Ney Fayet Jr.22 – publica dois importantes traba-lhos que configurarão seu pensamento político e filosófico. O primeiro,Essay on the Human Soul (1772), indica clara influência do pensamen-to hobbesiano, recusando a idéia de um estado de natureza inocente eo mito do ‘bom selvagem’.23 Em 1774, publica seu primeiro trabalhopolítico, Chains of Slavery, um explícito manifesto contra o despotismo.A relativa notoriedade alcançada pela obra, aliada à obtenção do títu-lo de doutor em medicina pela Universidade de St. Andrew (1775), levaMarat à sua primeira tentativa acadêmica.

O ativista redige o Plano de Legislação Criminal (1790) a partir deum concurso público divulgado pelo jornal Gazette de Berne, o qualconclamava a comunidade acadêmica para redigir um projeto de legis-lação penal sob o ponto de vista dos crimes, das penas e do juízo.Apesar de não ser classificado como vencedor do concurso, seu planoé publicado e adotado pela Assembléia Nacional francesa como proje-to do Código dos Delitos e das Penas. Preocupado com a tutela da liber-dade individual contra os abusos do poder, cria sistemas taxativos dedelitos (princípio da publicidade), precisos de penas (princípio da pro-porcionalidade, pessoalidade e culpabilidade) e de juízos equânimes(princípio da imparcialidade). Diferentemente das obras tradicionaissobre a justiça penal da época, que privilegiavam a estrutura proces-sual em detrimento da material, o autor centralizará seus estudos nanatureza e espécie dos delitos, suas formas de prevenção e sua justifi-cativa em sociedades desiguais.24 Todavia, o projeto não foi transfor-mado em lei.

A premissa pactual é quase um imperativo nas obras da época, edesta Marat não se furtou. O autor funda no contrato social sua teoriapolítica, justificando seu modelo penal. A renúncia da vingança priva-da, da liberdade natural e da comunhão primitiva dos bens advém do

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22 Fayet Jr., A Evolução Histórica da Pena Criminal, p. 249.23 Coquard, Marat: o Amigo do Povo, p. 57.24 Sobre o plano de Marat, seus princípios e a resposta recebida pela comunidade acadê-

mica, conferir Machado, Direito Criminal, pp. 26-27.

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Percebe Ruth Gauer32 que os egressos da Faculdade de Direito deCoimbra fomentaram o racionalismo jurídico no Brasil, cujo papel foidecisivo na construção do Estado-nação, visto que vieram a compor aelite pensante e o corpo técnico da burocracia nacional. A reforma doensino realizada pelo Ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, oMarquês de Pombal, em 1772, resultado direto da Lei da Boa-Razão(1769), possibilitou a ruptura com a tradição acadêmica da intelectua-lidade portuguesa, e conseqüentemente brasileira, dominada pela for-mação jesuíta. O ‘atraso’ do pensamento luso-brasileiro em relação àsidéias ilustradas que já estavam sedimentadas na Europa explica-sepelos dois séculos de influência canônica no ensino português. A refor-ma pombalina possibilita a secularização dos currículos e a recepçãodos postulados iluministas – a reforma do estatuto da Universidade deCoimbra sintetiza o desenvolvimento do Iluminismo português. Formaas bases do direito positivo moderno que originará os códigos jurídicosposteriores. A reforma abre caminho para a formação de uma culturajurídica portuguesa e para a aceitação do sopro revolucionário francês.33

Os ventos do iluminismo enciclopédico foram recepcionados emPortugal, transformando-se em ação com Mello Freire, professor daUniversidade de Coimbra, nomeado vogal, em 1783, da comissão denotáveis do projeto de revisão do Livro Quinto das Ordenações. O tra-balho foi concluído em 1789, quando apresentou dois projetos de refor-ma legislativa (projeto de Código de Direito Público e Código de DireitoCriminal). Submetido a revisão, o projeto foi posteriormente censurado.

Todavia, Mello Freire deixa consignado em suas Instituições deDireito Criminal Português o alcance da teoria contratualista no pensa-mento penal lusitano, apontando como principal influência Beccaria,não obstante citações de Locke, Grócio, Pufendorf, Montesquieu,Tomasius e Filangieri – os debates parlamentares e os textos jurídicosque comentam o Código Criminal de 1830 atestam a penetração desteideário na formação ideológica brasileira.34

Ao alinhar treze axiomas como súmula dos pontos de vista queperpassaram a elaboração do Projeto de Código Criminal,35 Mello Freire

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32 Gauer, A construção do Estado-Nação no Brasil, p. 25.33 Silva, Mozart Linhares. Ob. cit., p. 75.34 Neder, Absolutismo e Punição, p. 204.35 “1 – É melhor deixar impune um crime que condenar um inocente; por isso, maior o dano

vem à sociedade da condenação dum inocente que da absolvição dum culpado. 2 – Antesda sentença condenatória o réu deve ser tido como inocente. 3 – No foro criminal apenasse deve admitir a prova plena e perfeita. 4 – Quanto maior e mais grave for o delito, tanto

direitos individuais assume nova e agudizada postura, admitindo comolícita a violação da lei, no plano coletivo a conseqüência é o resgate dateoria do direito de resistência – trilhando os passos de Chains ofSlavery, sustenta que os delitos de lesa majestade seriam impuníveis,pois a sedição constitui, na maioria dos casos, uma luta do indivíduocontra o despotismo.29

Conclui-se que, ao irromper um giro metodológico na estrutura dopensamento liberal contratualista, incluindo como direitos fundamen-tais os direitos sociais, e ao sugerir uma práxis republicana e constitu-cionalista, Marat antecipa o pensamento ‘liberal-socialista’.Representa, portanto, versão otimizada do garantismo clássico, obscu-recido, porém, pelas teorias ilustradas moderadas e pelo pensamentoetiológico defensivista vindouro. Não obstante, estrutura a primeiraversão da criminologia radical.30

2.1.4. O contratualismo no direito penal brasileiro

Impensável (re)escrever a história do pensamento penal liberalbrasileiro sem pensar na influência da reforma pombalina,31 fundamen-talmente aquela ocorrida na Administração da Justiça e nos currículosda Universidade de Coimbra – ambas gerando uma nova cultura e umnovo modus de operar o jurídico.

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possa agir de outra maneira, não faz mais do que exercer os seus direitos (Marat, ob. cit.,pp. 73- 74).

29 No capítulo que versa sobre os Crimes contra o Estado, Marat afirma que a autoridadeconfiada aos príncipes tem como escopo a realização do bem-comum. Se reinam comeqüidade e respeito às leis, sempre será possível reclamar justiça e protestá-la quandonão se a obtém. Entretanto, se as leis promulgadas ou as decisões tomadas são injustas,a autoridade do príncipe e/ou do juiz são ilegítimas, nascendo o direito de resistência àopressão – a desobediência a ordens injustas e a resistência a atitudes ilícitas não podemser consideradas crimes (Marat, ob. cit., p. 94).

30 Zaffaroni, Criminología, p. 120.31 Nota Gizlene Neder que, a partir do século XVIII, ocorreu um recrudescimento do rigor do

sistema penal da coroa, observável através do aumento da freqüência da aplicação dapena de morte e, sobretudo, na mais visível funcionalização desta aplicação. Decorre daí anecessidade da política iluminista de definir como objetivo a reforma da justiça, paraaumentar sua eficácia. Em Portugal, as medidas pombalinas apontavam esta tendência: acertificação das fontes de direito e a disciplina da jurisprudência, através da Lei da BoaRazão de 1769; a sistematização da formação jurídica e a disciplina do discurso dos juris-tas, impulsionadas pela reforma dos Estatutos da Universidade de Coimbra; sistematiza-ção do direito legislativo, através da tentativa do novo Código; a reforma da organizaçãojudiciária senhorial de 1790 e 1792 (preparatória de medidas mais amplas de reorganiza-ção judiciária, como a da reforma das Comarcas); a criação da Intendência Geral da Polícia(Neder, Iluminismo Jurídico-penal Luso-brasileiro, p. 159).

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Forjado o modelo legislativo penal material desde a matriz liberaladvinda da modernidade portuguesa – apesar da manutenção do regi-me escravocrata e da incompatibilidade discursiva que tal contradiçãogerava –, fundamental era a elaboração de estatuto processual quegarantisse instrumentalidade à aplicação dos direitos.

Redigido por Alves Branco, viu-se logo que era imenso o salto do L.V das Ordenações Filipinas para o liberalíssimo regime do Código deProcesso.40 Em vigor com a promulgação da Lei de 29 de novembro de1832,41 enraíza na codificação processual penal brasileira a influênciaautoritária do modelo Napoleônico do Code d’Instruction Criminelle de 17de novembro de 1808, fundamentalmente no que tange à construção deum sistema misto de persecução penal (primeira fase inquisitiva, segui-do de procedimento acusatório), cuja estrutura permanece em vigor atéos dias atuais – o Código de Processo Criminal do Império adotou o pro-cedimento misto ou eclético, muito embora o submetesse à regra da inqui-sitividade. Nosso legislador de 1832 ficou, portanto, num meio termo entreo procedimento acusatório, então vigente na Inglaterra, e o misto, adota-do na França, este inquisitivo na fase instrutória e acusatório na fase dejulgamento, mas, induvidosamente, o nosso Código era muito mais liberal,pois, no modelo francês, o acusado era colocado em uma situação de infe-rioridade em relação ao acusador oficial e o juiz exercitava uma atividadede produção de prova, valendo-se, para esse fim, até mesmo da tortura.42

Note-se, contudo, que, apesar da alteração no procedimento, fatoque desencadeou inúmeros elogios,43 o sistema (misto) napoleônico

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40 Almeida Jr., O Processo Criminal brasileiro, p. 176.41 O Código de Processo Criminal de 1832 vigorou até 1841 em todo o território nacional,

sendo a primeira realização para federalizar o processo penal (Lyra, Direito Penal norma-tivo, p. 44).

42 Pierangelli, Processo Penal, p. 103.43 Veja-se, por exemplo, o diagnóstico apresentado por João Mendes de Almeida Jr. em

relação ao ‘liberalíssimo’ estatuto: o código de Processo alterou completamente as formasdo procedimento criminal. As devassas gerais, que já tinham sido abolidas em Portugaldesde 1821, as devassas especiais, as querelas e as denúncias, conforme os requisitos dasOrdenações – foram eliminadas: as querelas, tomando nova forma, passaram a denominar-se – queixas e a competir sòmente ao ofendido, seu pai, mãe, tutor, curador, cônjuge; adenúncia passou a ser o meio de ação do ministério público ou da ação pública de qual-quer do povo; o procedimento ex-officio foi autorizado em todos os casos em que cabedenúncia, ainda que denúncia não houvesse. A formação de culpa, desde o corpo de deli-to até o interrogatório, foi feita em sumário, a que só podia proceder-se em segredo sòmen-te quando a ela não assistisse o delinqüente e seus sócios; a acusação e o julgamento, noscrimes de pena maior que seis meses de prisão ou degredo, passaram a ser feitas em pro-cesso público e oral perante o júri. O júri era constituído de dois conselhos: o primeiro, paradeclarar se havia motivo para a acusação; o segundo, que era o júri da sentença. Foram

consolida um modelo penal com a estruturação racional codificada, aadoção do princípio da reserva legal, do sentido humanista das penas,sua suavização, o repúdio à aplicação de pena sem culpa, a eliminaçãodos resquícios de vingança privada, a busca de uma proporcionalidadeentre o castigo e a infração, a regra da presunção de inocência comumao réu não condenado, e a abolição dos tormentos e das ordálias.36

Embora alterada em inúmeros pontos, alguns inclusive essenciais,a obra de Mello Freire orienta o processo de codificação português,notadamente o Código Penal de 1852, a Reforma Judiciária de 1826 a1837 e a Novíssima Reforma Judiciária de 1841. Indelével, igualmente,sua marca na codificação penal e processual penal brasileira.

Lembra Roberto Lyra37 que o artigo 179, no 18, da Constituição de1824 prometeu um Código Criminal fundado nas sólidas bases da jus-tiça e eqüidade. Em 04 de maio de 1827, Bernardo Pereira de Vascon-cellos apresentou um projeto de Código Penal, sendo que, no dia 16 domesmo mês, outro projeto foi protocolado pelo Deputado ClementePereira – ambos autores egressos da Faculdade de Direito de Coimbra,sendo que o responsável direto pelo Código fora aluno de MelloFreire.38 Encaminhados à respectiva Comissão, o projeto de Pereira deVasconcelos foi aprovado. Assim, o Brazil antecipava-se, com a codifica-ção das leis penaes, a Portugal, a Hespanha e a diversas republicas ame-ricanas, e ainda, salientemente, porque, attendendo á época e ao estadoda sciencia, o código se destacava como um monumento legislativo,onde até originalmente se crystallisáram principios ora patrocinadospela escola criminal italiana, ou por ella apontados como fundamento datheoria positiva da repressão, taes como a satisfação do damno ex delic-to, como matéria própria do juízo criminal, a co-delinquencia considera-da em si mesma como aggravante.39

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maior deve ser a prova. 5 – A pena a ser inflingida deve ser inteiramente proporcionada àquantidade e gravidade do delito e à maldade do delinqüente. 6 – Não há delito nenhumsem vontade certa de delinqüir. 7 – A sua medida é o mal causado à humanidade. 8 – Naimposição das penas somente se deve olhar à utilidade pública. 9 – As penas foram esta-belecidas, não tanto para punir, como para prevenir os crimes. 10 – Somente se devem cas-tigar os verdadeiros delinqüentes ou os quase delinqüentes. 11 – É justa a pena que impe-de o criminoso de voltar a fazer o mal. 12 – E é, pelo contrário, injusta a que for inútil oucruel. 13 – A atrocidade das penas gera impunidade e a indulgência do delito, que são ascoisas mais funestas que há para a saúde pública” (Apud Thompson, Escorço histórico doDireito Criminal Luso-Brasileiro, pp. 121-122).

36 Thompson, Augusto. Ob. cit., p. 131.37 Lyra, Direito Penal normativo, p. 42.38 Gauer, ob. cit., p. 307.39 Siqueira, Direito Penal brazileiro, p. 10.

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desvincular direito e natureza, legado da primeira grande crise do pen-samento garantista decorrente do paradigma etiológico.

Como se procurou demonstrar, a formação do paradigma garan-tista ocorre sob ampla assunção da filosofia iluminista, elevando arazão como instrumento de resistência à barbárie e ao irracionalis-mo inquisitorial. É claro que o paradigma garantista, em se tratan-do de tipo ideal, nunca foi (nem será) realizado em sua plenitude.Seu objetivo é demonstrar, e aqui reside sua virtude, a constantetensão entre dois modelos diversos e assimétricos de percepção darealidade jurídica (e política). A função precípua do pesquisadoridentificado com as razões garantistas, portanto, é a de expor criti-camente a diafonia existente entre os modelos (garantistas e inqui-sitoriais), procurando otimizar ao máximo a estrutura de tutela dosdireitos fundamentais, tanto em perspectiva de lege lata, através do‘uso alternativo do direito’, quanto de lege ferenda, via políticas cri-minais alternativas.

A primeira crise do garantismo ocorre durante a transformação damatriz do Estado moderno, ou seja, no câmbio do Estado Liberal aoEstado Intervencionista, a partir de meados do século XIX, com a con-solidação da burguesia no poder.

Se o discurso liberal proporcionou o rompimento com a imutávelordem social do medievo, possibilitando a ascensão da burguesia, nomomento em que esta se solidifica no poder há clara transposição ideo-lógica do discurso. Busca-se estabelecer uma nova racionalidade quejustifique e legitime este poder arduamente conquistado. (Re)Definidosos lugares após a modernidade, renova-se a necessidade de uma legi-timidade naturalística da estrutura social.

O modelo penal clássico é identificado fundamentalmente comoum modelo restrito de intervenção, visto entender de forma limitada asfunções estatais. A impossibilidade de conjugar sob o mesmo modeloas diversas correntes do garantismo ilustrado decorre, como visto, dadiversidade doutrinária no que diz respeito à sua base estrutural: ocontrato social. Assim, se em Marat e Feuerbach se percebe versão oti-mizada e revolucionária, quiçá subversiva da noção contratualista, naAccademia dei Pugni, principalmente em Beccaria, vislumbra-se umgarantismo penal moderado, conservador de noções fragmentárias emaniqueístas da realidade no que tange ao crime e ao criminoso, ver-são esta que imperou e foi transnacionalizada como ‘o’ modelo penal dopensamento da modernidade. Tal fato explica a razão, mesmo no inte-rior do discurso penal liberal, da ‘demonização’ do delito e do delin-

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importado pelo legislador nacional mudou apenas a forma do processodo antigo regime das ordenações, mantendo inalterada a sua essência(inquisitorialidade), fundamentalmente porque, na impossibilidadeprática de conjunção dos dois sistemas (inquisitivo e acusatório), aestrutura autoritária prevaleceu sobre a tendência liberal – da maneiracomo se pretende, os sistemas inquisitório e acusatório não podem con-viver não só porque a ‘contaminatio’ é irracional no plano lógico, comotambém porque a prática desaconselha uma comistão do gênero.44 Apropósito, nada melhor para manter a aparência/virtualidade garantis-ta de um sistema jurídico, impedindo o gozo dos direitos fundamentais,que desestabilizar inquisitorialmente o mecanismo processual, nãoobstante um estatuto material humanitário.

Com a elaboração dos Códigos nacionais a partir dos ensinamen-tos de Coimbra e da influência do pensamento francês, aflora a neces-sidade de o ‘Brasil independente’ produzir sua própria elite intelectuale burocrática, bem como criar uma identidade jurídico-política autôno-ma. Assim, em 1826 foi autorizada a instalação dos cursos jurídicos nopaís: Faculdade de Direito de Olinda (1828), posteriormente transferidapara Recife (1856), e Faculdade de Direito de São Paulo (1827). E é daFaculdade de Direito de Recife que surgirão as primeiras elaboraçõesteóricas genuinamente nacionais em matéria penal.

Com a formação da Escola do Recife, o pensamento nacional assu-mirá o discurso penal diverso do liberal, aderindo os cânones da crimi-nologia positivista italiana.

2.2. O refluxo do pensamento garantista

Se o marco do garantismo penal contratualista foi construído soba égide da laicização do direito e do Estado, rompendo os laços entre odireito (delito) e a moral (pecado), atualmente a teoria garantista inten-ta realizar outro, e não menos importante, processo de cisão, qual seja,

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regulados os recursos ordinários e o recurso, denominado extraordinário, do habeas-cor-pus (Almeida Jr., ob. cit., pp. 175-176).Não distante os dizeres de Frederico Marques, para quem o Código de Processo era a sín-teses dos anseios humanitários e liberais que palpitavam no seio do povo e da nação, pois,graças a ele, perdurou, nas leis nacionais um acentuado espírito antiinquisitorial que nospreservou o processo penal, de certos resíduos absolutistas que ainda existem nos códigoseuropeus (Apud Pierangelli, ob. cit., p. 98).

44 Coutinho, O papel do novo juiz no processo penal, p. 41.

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Estado leva a uma substancial, e substancialista, mudança no discur-so jurídico-penal da periferia.

Se a característica do Estado liberal é o absenteísmo, e daí seuprograma minimalista, o Estado intervencionista vem afirmar sua atua-ção, interferindo ao máximo nas esferas de controle social com escopode combater com eficácia a criminalidade.

Embriagada pelo discurso evolucionista das ciências naturais epela mudança nas funções do Estado, a Escola Positiva agrega os cien-tistas que pesquisam o fenômeno delitivo. Sob a inspiração de Ferri,sustenta a nova ‘ciência’ que a missão dos ‘clássicos’ de diminuiçãodas penas estava cumprida; todavia, sua atuação no combate à crimi-nalidade tinha sido irrisória devido à excessiva preocupação com odelito (ente jurídico), reduzindo o saber à esfera do direito,47 e olvidan-do o verdadeiro protagonista na relação delitiva: o homem criminoso –objeto de investigação que intitula a obra de Lombroso, marco teóricodo paradigma etiológico (L’uomo delinquente, 1886).

Segundo Zaffaroni,48 é praticamente impossível compreender osurgimento deste saber se não se compreende o sentido geral do posi-tivismo e o jogo dos saberes que nutriam os interesses em questão.Sustenta que a hegemonia (status quo burguês) necessitava explicarcomo natural seu poder em relação ao controle social, apelando aossaberes antropológicos e sociológicos positivistas para retomar o argu-mento organicista. Do posicionamento revolucionário no período ilus-trado, os cientistas burgueses (re)legitimam os postulados naturalistastípicos do inquisitorialismo. Este discurso, porém, não mais estariasolidificado sob a chancela do jusnaturalismo teológico, mas pela nas-cente ciência: a ‘física social’.

O discurso científico da inferioridade bio-psico-antropológica dohomem delinqüente advogado pela Escola Positiva italiana, tanto em

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47 Significativas as palavras de Ferri ao definir os novos métodos de estudo do delito e dadelinqüência: até esses últimos tempos, os criminalistas não estudaram o delinqüente.Concentraram sua atenção e todo o esforço de seus silogismos sobre o estudo do crime queeles consideravam não como o episódio revelador de um modo de existência, mas simples-mente como uma infração às leis. Eles não viam, no delito, senão sua superfície jurídica enão sonhavam em procurar as raízes profundas da degenerescência individual e social(Ferri, Os criminosos na arte e na literatura, p. 29).Prossegue afirmando que a jurisprudência clássica, de Beccaria a Carrara, ocupa-seexclusivamente dos crimes. Ela deixava seus autores na sombra, atribuindo-lhes um tipoúnico e médio de homem como todos os outros, salvo quando se encontra em presença decircunstâncias evidentemente anormais (Ferri, ob. cit., p. 30).

48 Zaffaroni, Criminología, pp. 131-132.

qüente, bem como a exclusão, do universo científico, da crítica incisivade Marat e Feuerbach.

Zaffaroni adverte, portanto, para o fato de que um possível retor-no ao direito penal liberal não pode significar revisita ao ‘museu pena-lístico dos séculos XVIII e XIX’. Advogar os princípios liberais deve sertomado com cautela, sobretudo como forma de evitar justificaçõesdefensivistas presentes em seu discurso.45

O alerta do criminólogo portenho é extremamente pertinente pelofato de que o pensamento clássico oficial, apesar de romper com o bar-barismo do processo penal, instaurar regime de legalidade e ‘-humanizar’ a pena, não deixa de apresentar um núcleo ideológico anti-iluminista (ou uma confusão pós-iluminista entre direito e moral) calca-do nos princípios ideológicos da Defesa Social, representado, principal-mente, no que Alessandro Baratta denomina de princípio do bem e domal’.46 Segundo essa principiologia, a sociedade apresentar-se-ia comoum todo orgânico e funcional de indivíduos idôneos e respeitadores dalei, sendo a única disfunção o delito. A infração às normas seria carac-terizada como dano social, sendo que o crime representaria uma exce-ção no convívio. O sistema penal deveria, neste contexto, direcionarsua atuação no sentido de combater/eliminar o crime, concebendo umapolítica criminal/penitenciária bélica.

Assim, no momento em que o modelo penal da Ilustração nãocumpre a promessa de diminuição radical da criminalidade, instaura-sea crise, gerando a necessidade de novo discurso legitimante, de umanova operacionalidade na ‘luta racional contra o delito e o delinqüente’.

2.2.1. O paradigma etiológico e a estética do mal

O desenvolvimento da epistemologia positivista, a partir de mea-dos do século XIX, determina profunda crise no pensamento penal. Aconcepção individualista e racional não corresponde mais às expecta-tivas sociais e empiristas deflagradas por pensadores como Darwin eSpencer. A mudança na racionalidade central (européia) em relação ao

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45 Nota Zaffaroni, ao lembrar a teoria penalógica de Romagnosi, que o grande perigo da voltaao direito penal liberal é o de se retornar esquecendo aqueles germes que ele continha: oque não pode ser feito. Assumamos, dos velhos liberais, os princípios liberais, mas mante-nhamos à parte, com todo cuidado, os germes de iliberalismo contidos nas suas teorizações(Zaffaroni, La Rinascita del Diritto Penale Liberale o la ‘Croce Rossa’ Giudiziaria, p. 386).

46 Baratta, Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, pp. 59-69.

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ser resumida na seguinte proposição: as causas do delito são de uma trí-plice ordem: individuais, físicas e sociais.53 O princípio da culpabilidade,centrado na responsabilidade moral, torna-se inadmissível frente aoagir condicionado, sendo substituído pela noção de periculosidade,categoria cuja função será demonstrar os níveis individuais de propen-são ao delito.54 Portanto, desde o final do século passado está se desen-volvendo uma crise regressiva da categoria culpabilidade, ofuscada ourenegada em diferentes formas, em sede teórica ou normativa, por obrade doutrinas ou de ordenamentos autoritários, que tendem a alinhá-la,integrá-la ou substituí-la pela noção de ‘periculosidade’ do réu ou comoutras figuras de qualificação global da sua personalidade, como a capa-cidade de delinqüir, a culpabilidade de autor e semelhantes.55

Da noção que concebe o sujeito do delito como capaz de com-preensão e de opção entre duas condutas distintas (lícita ou ilícita),qualificadas por juízos que versam sobre os liames subjetivos e objeti-vos em sua realização material, bem como o seu vínculo com o resulta-do, o sistema penal volta-se à essência (‘ser’) do autor, avaliando suapropensão ao crime, estabelecendo juízos substancialistas relativos aoprocesso ontológico que determinou seu agir.

Juntamente com o princípio da culpabilidade, o princípio da lega-lidade e da jurisdicionalidade sofrerão sérios abalos. O fato de a crimi-nalidade ser um fator natural, perceptível empiricamente no mundodos fatos pela experiência da investigação científica, e não uma reali-dade artificial selecionada pela lei (ente jurídico), demonstra a fragili-dade do direito penal em relação à criminologia. A mudança de objeto– da lei ao homem delinqüente – condiciona uma mudança radical demétodo – do lógico aristotélico (dedutivo) ao indutivo experimental(empirista) –, e do acertamento processual dos casos penais – do mode-lo cognoscitivista jurisdicional ao decisionismo valorativo substancia-lista. Do estudo das relações objetivas e subjetivas entre o fato e oresultado, a ciência penal parte para anamnese reconstrutiva da perso-nalidade do indivíduo desde os seus primórdios, julgando e punindosua história de vida. A um direito penal do fato-crime se sobrepõe umdireito penal do autor fundado na periculosidade, independente da

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53 Ferri; Lombroso; Garofalo & Fioretti, Polemica in difesa della Scoula Criminale Positiva, p.288.

54 As formas de graduação da periculosidade criminal são expostas por Ferri, Princípios deDireito Criminal, pp. 287-289.

55 Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 492.

relação aos povos colonizados da periferia quanto das massas operá-rias centrais, não permitia duvidar da superioridade branca européia,muito menos da superioridade das classes dominantes e dos trabalha-dores disciplinados sobre as classes tumultuosas.49

Muito embora se possa encontrar antecedentes à nascente crimi-nologia – v.g. Quetelet e Topinard, primeiro autor a utilizar a expressão–, o pensamento de Lombroso opera o esperado câmbio epistemológi-co nas ciências criminais.

Ao realizar estudos de anomalia craniana50 nos cárceres italianos,através do método frenológico, Lombroso encontra no cadáver deVillela indicações de formação biológica primitiva: a fosseta occipitalmédia.51 A partir desta constatação, Lombroso desenvolve e populari-za, com auxílio de Ferri, a tese do criminoso nato: um ser humano pri-mitivo cuja fisiologia, através de um processo de regressão atávica,assemelhar-se-ia à do selvagem. A tese da degeneração antropológicaseria posteriormente ampliada, e ao criminoso nato seriam agregadosos epiléticos e os ‘loucos morais’, conformando o conhecido trípticolombrosiano.52 A afirmação de Lombroso e dos demais pensadores con-gregados ao paradigma etiológico definiria um ser humano predetermi-nado organicamente ao delito. Capacita-se, via antropologia e sociolo-gia criminal, a possibilidade de catalogação e identificação de indiví-duos ontologicamente perversos, em decorrência de suas anomaliasanatômicas e fisiológicas.

Em relação antagônica ao pensamento sustentado pelos autoresdo paradigma contratualista, a concepção da Escola Positiva negatotalmente o livre-arbítrio (pressuposto da culpabilidade), pelo fato deo crime não ser mais o resultado de vontade livre do sujeito, mas simde (pré)condições individuais, físicas ou sociais – a nossa escola pode

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49 Zaffaroni, ob. cit., p. 134.50 Neste sentido, conferir Lombroso, O Homem Delinqüente, pp. 179-211.51 Em Villella, calabrês, ladrão de muito grande agilidade, que na idade de 70 anos apresen-

tava ainda as suturas abertas, essa fosseta aparecia em dimensões verdadeiramenteextraordinárias: comprimento de 34 milímetros, largura de 23, profundidade de 11, e asso-ciava-se à atrofia das fossas occipitais e à fusão do Atlas (Lombroso, ob. cit., p. 195).

52 Apesar da classificação lombrosiana, Ferri propõe tipologia diversa: a ciência atual esfor-ça-se para pôr em relevo os caracteres que diferenciam os criminosos entre eles, e expri-mir sua individualidade física e psíquica no meio ambiente particular a cada um deles. Elasubstitui, enfim, um tipo clássico, único e incolor, pelas diferentes fisionomias dos delin-qüentes. Há muito tempo já que eu os agrupei a todos em cinco tipos principais: o crimi-noso nato, o criminoso por hábito adquirido, o criminoso passional e o criminoso aciden-tal – e minha classificação biossociológica é adotada hoje por quase todos os sábios (Ferri,ob. cit., p. 31).

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Agora não mais o herege, mas o perverso; não mais o satânico, mas oselvagem (hediondo), cuja periculosidade rompe com os naturais laçosde convivência social.

Mariangela Ripoli58 sintetiza a regressão iluminista sustentando anecessidade histórica de criação de um novo modelo de controle penalde modificação do indivíduo adequado ao sistema social da época. Taistendências seriam instrumentalizadas pelas relações e interações dodireito com novas disciplinas criminais: pedagogia, antropologia,sociologia, serviço social e psiquiatria, todas submetidas à matriz cien-tífica criminológica. Como ensina Alessandro Baratta,59 a EscolaPositiva autonomiza o estudo do delito pois, seja privilegiando fatoresbio-antropológicos, seja assumindo posturas sociológicas (ambientetelúrico, clima e temperatura), parte de uma concepção ontológica, deuma realidade pré-constituída ao direito.

O organicismo social direciona o sistema penal à eliminação/cor-reção do elemento disfuncional. A anormalidade degenerativa percep-tível no delinqüente nato possibilita nova ruptura maniqueísta naestrutura social.

Zaffaroni60 sustenta que gradualmente a concepção positivista daantropologia lombrosiana foi gerando uma estética da maldade. Estaestética do mal visualizada na inferioridade genética – degeneraçõesbiológicas e psicológicas (geralmente provocada por fome, miséria econdições higiênicas deploráveis, registre-se) – foi delineando o este-reótipo do pobre bom (física e moralmente) e do pobre mau (feio pornatureza, repugnante e moralmente perverso). Essa gente má, primiti-va, inferior e subumana deveria ser feia, porque o mal e o feio quasesempre se identificam. O discurso dominante permitia, assim, desqua-lificar as massas populares organizadas; inferiorizar os colonizados,pois sua beleza não respondia aos ideais estéticos europeus; e isentarde responsabilidade as classes industriais de grande parte dos delitospatrimoniais cometidos.

A nova (anti)ética produz uma nova e perversa estética.A concepção criminológico-positivista inaugura, portanto, a pri-

meira reação anti-ilustrada (inquisitiva) ao garantismo penal, (re)esta-belecendo processo anti-secular e intolerante, de cujo solo emerge uma

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58 Ripoli, Diritto e Morale, p. 169.59 Baratta, ob. cit., pp. 38-4060 Zaffaroni, ob. cit., pp. 131-176.

relação de proporcionalidade entre a lesão do bem jurídico tutelado e anorma jurídica.56 A um modelo processual acusatório baseado na pre-sunção de inocência e nas possibilidades fáticas de comprovação erefutação de hipóteses, impõe-se um modelo inquisitorial de julgamen-to da personalidade do réu e suas ‘tendências’.57 A uma estrutura retri-butiva da pena, cominada com escopo de reprovar a violação da norma,impõe-se a tarefa de influenciar e modificar o ‘ser’ do ‘Outro’.

A sobreposição do empirismo ao direito na definição do des-vio/desviante gera novo discurso anti-secular, já não mais delineadopelas relações do jurídico com a moral, porém. O novo inquisitorialismoé perceptivelmente visualizado nas relações simétricas entre direito enatureza, em nova concepção substancialista do crime/criminoso.

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56 Contra as categorias garantistas da culpabilidade e proporcionalidade, Garófalo propôsverdadeira batalha, visto que, segundo ele, eram responsáveis pela impotência da leipenal: responsabilidade moral e proporção penal, eis os dois princípios combatidos pelanova escola naturalista. Muito maltratados estes princípios acham-se, contudo, tão inti-mamente ligados aos preconceitos filosóficos mais comuns que não pode esperar vê-losrapidamente extirpados da ciência penal. Importa continuar a luta com paciência, apelan-do não para o vulgo, mas para a aristocracia do pensamento. Como todos os outros pro-gressos intelectuais, este partirá também de cima para difundir-se depois pelas camadasinferiores. E será uma obra útil, esta, porque tais princípios, considerados sem razão agarantias dos direitos individuais, não são na realidade senão a causa da fraqueza e impo-tência da lei punitiva (Garófalo, Criminologia, p. 185).

57 Anota João Mendes de Almeida Jr. que o intuito da Escola Positiva não era apenas areforma da noção de crime e pena, mas também da organização juridiária, da ação e doprocesso penal. Os pontos culminantes da reforma seriam: 1o nada de júri, nada mesmode magistrados juristas: os jurados são, em geral, pessoas incultas, sem antecedentes, nemhábitos que garantam o acerto de seus julgamentos; os magistrados juristas, ao menos osde hoje, imbuídos das doutrinas espiritualistas, não conhecem os indícios fisiológicos eantropológicos que podem fixar a natureza do delinqüente e a pena. O magistrado deveter não um diploma do estudo do direito, mas do estudo de sociologia, fisiologia e antropo-logia criminal. Os jurados são a guarda do direito; entretanto, ‘a guarda nacional foi abo-lida como uma milícia inútil que não era inofensiva, ao passo que o júri, além de inútil, éextremamente perigoso’, diz Garófalo; 2o relativamente à ação, em caso algum deve-sedeixar à parte o direito exclusivo de proceder contra o delinqüente, porque a pena, emcaso algum, deixa de ser uma necessidade social, considerado o perigo da reincidência; 3o

a instrução deve ser secreta e escrita, limitando-se a publicidade e a oralidade ao caso decontestação sobre o valor das provas do fato, sobre os antecedentes pessoais e hereditá-rios do indiciado e seus sinais antropológicos. Os casos de prisão preventiva devem serampliados e os de fiança devem ser restringidos. A última fase do processo, a mais impor-tante e decisiva e de interesse capital para o acusado, consistirá no exame antropológicoe na aplicação matemática da eliminação, se o delinqüente apresentar os caracteres de umcriminoso nato. Se não é um criminoso nato, será um alienado, que deve ser internado emasilos ou manicômios especiais e entregue ao cuidado e à repressão dos médicos alienistasque os dirige; 4o os recursos devem ser restritos e as jurisdições devem ser menos rigoro-sas na exigência do cumprimento das formalidades (Almeida Jr., O Processo CriminalBrasileiro, pp. 230-231).

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alienígenas à origem itálica. Na França, é desenvolvido por Morel,Lacassagne e Brounardel; no universo anglo-saxão, o paradigma etioló-gico é respaldado por Barbara Wootton; no ambiente soviético, o reflexoé percebido nas obras de Pasukanis e Stucka; e, na América Latina,encontra eco nas teorias de Alberto Lamar Schweyer, em Cuba; TomasVega Toral e Carlos Salazar, no Equador; Domingos Faustino Sarmientoe Norberto Piñero, na Argentina; e Miguel S. Macedo, no México.

Apesar de a nova ciência do Direito Penal ser inaugurada formal-mente no Brasil com a obra Criminologia (1896), de Clóvis Beviláqua –mais descortinado em Direito Penal do que em direito civil,64 e cuja pes-quisa sobre a distribuição geográfica da criminalidade, em especial noCeará, inaugura uma nova metodologia de estudo do crime no Brasil –,65

antecederam-no inúmeros adeptos do paradigma etiológico, dentre osquais destacam-se João Vieira de Araújo, lente da cadeira de DireitoCriminal, autor de Ensaios de Direito Penal (1884) e Código Criminalbrasileiro (1889) e profundo conhecedor de Lombroso; Viveiros deCastro, glosador de Tarde e estudioso de Ferri, autor de A Nova EscolaPenal (1894); e o médico higienista Afrânio Peixoto, autor de Epilepsiae Crime (1898), Psicopatologia Forense (1916), Novos Rumos daMedicina Legal (1932) e Criminologia (1933).

No entanto, foi Nina Rodrigues, catedrático de Medicina Legalna Faculdade de Direito da Bahia – aliado a Moniz Sodré, igualmen-te professor da Faculdade de Direito da Bahia e profundo conhecedorde Garófalo e Lombroso –, que se destacou como o principal divulga-dor das idéias da Escola Positiva, assumindo o discurso central einaugurando a primeira fase de pregação doutrinária da teoria crimi-nológica. No universo acadêmico da Faculdade de Direito de SãoPaulo seguiram o modelo Pedro Lessa, adepto da sociologia criminalde Ferri, e Cândido Motta, que produziu a compilação Classificaçãodos Criminosos (1897), louvada por Lombroso como a mais perfeitaobra sobre o assunto.66

Desde o fim do Império e durante a República Velha, autores comoAfrânio Peixoto e Clóvis Beviláqua sustentavam a necessidade deimpor freios à miscigenação racial, temendo um processo de degenera-ção social.67 O delinqüente, espécie à parte da humanidade, passa a

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64 Lyra, Nôvo Direito Penal, p. 40.65 Neste sentido, conferir Beviláqua, Criminologia e Direito, pp. 53-90.66 Lyra, ob. cit., p. 32.67 Clóvis Beviláqua, ao estudar os confrontos étnicos e históricos da criminalidade, parte da

premissa que a mestiçagem brasileira influi demasiadamente nos índices de violência.

nova concepção substancialista do desvio, não mais aliado metaforica-mente à figura do pecado, mas sim à perversidade nata.

Como observa Zaffaroni,61 a contribuição lombrosiana, como apor-te teórico, pode ser extremamente ingênua, visto sua estrutura cientí-fica insustentável. Todavia, não é de forma alguma inofensiva, pelocontrário, seu simplismo resultou altamente justificador e perigoso,sobretudo na América Latina, verdadeiro eldorado da nova escola.62

2.2.2. A matriz etiológica no direito penal brasileiro e o saber defensivista colonizado(r)

Se a geração penalista brasileira de 1820 foi responsável pelomovimento constitucional e pela feitura dos Códigos Criminal eProcessual Penal, assumindo a matriz liberal da ilustração européia emdecorrência dos ares da reforma pombalina, a partir de 1830, com a ins-talação dos cursos de Direito no país, objetiva-se a construção de umcaldo cultural (e jurídico) nacional que fosse autônomo, mas ao mesmotempo em sintonia com o saber central.

O ‘bacharelismo’ sintetiza tais anseios.Polarizado o saber acadêmico nacional entre Recife e São Paulo,63 é

do nordeste que advirá a primeira escola jurídica genuinamente brasi-leira, sob a forte influência do positivismo criminológico. Assim, o pro-duto das teorias etiológicas não ficou reduzido ao universo científicoeuropeu. O modelo terapêutico-racista propugnado pela Escola Positivaitaliana é acompanhado por inúmeros pensadores, nas mais diversaslocalidades. Não podemos olvidar que o processo de transnacionaliza-ção do paradigma etiológico encontra guarida em inúmeros pensadores

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61 Zaffaroni, ob. cit., p. 165.62 Por volta do início do século XX, foi possível fazer um balanço dos progressos realizados

durante os dois últimos decênios. Após um período de sucesso, as teorias de Lombroso sãopor toda parte abaladas pelo surgimento de novas teorias de caráter antropológico ousociológico, com exceção dos países flamengos, onde a escola positiva conserva sólidasposições, e dos países latino-americanos, verdadeiros eldorados da nova escola (Darmon,Médicos e Assassinos na Belle Époque, p. 110).

63 Apesar de contemporâneas, as escolas divergiam em seu aspecto teórico. A escola de SãoPaulo era orientada mais pelas tendências liberais e a de Recife, pelas questões de raça.Recife interessava-se pela formação de homens de ciência, teóricos que se preocupavamcom a constituição e desenvolvimento da nação. São Paulo preocupava-se com a formaçãode líderes que dirigissem a nação. Estas duas orientações jurídicas na realidade se com-pletam e caracterizam a peculiaridade da formação jurídica brasileira como um todo(Silva, Do império da Lei às grades da cidade, p. 93).

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Rodrigues critica a estrutura legislativa brasileira e propugna um pro-grama político-criminal de defesa social que, em realidade, capacitauma estrutura persecutória de tutela da ‘fraca minoria da raça branca’contra a degenerescência.

Constata Mozart Linhares da Silva que a questão racial, especifi-camente no que tange à cultura afro-brasileira, tornar-se-á o primeiroinimigo da modernidade brasileira, impedindo, segundo o saber coloni-zado(r), o desenvolvimento de uma ‘boa’ civilização – é importantenotar que o direito que coloca o negro dentro da questão judiciária epenal é o positivo. Somente com o desenvolvimento desta escola é que onegro passou a ser estudado como objeto concreto da ciência. Crendo-selonge das mistificações e mitos da época colonial, o direito ‘ciência’, for-temente influenciado pela criminologia [da escola positiva] e pela medi-cina legal, montou um projeto social que excluía o negro dos resultadospositivos que a sociedade poderia adquirir, pretensão que contrariava osentido cultural da miscigenação, ou seja, a pluralidade; miscigenaçãoque somente era positiva caso limpasse e jamais criasse.72 O diagnósti-co é corroborado por Ruth Gauer, quando constata que os diversos gru-pos étnicos que compunham a população brasileira passaram a ser ava-liados em função da teoria da degeneração, que teve muita importâncianos primórdios da psiquiatria brasileira. É importante lembrar que oBrasil era definido pelas suas características raciais, sendo que estaseram tidas como fundamentais quando se tratasse de apontar para aspotencialidades do povo e o futuro da nação. Nesse contexto, um analis-ta da realidade nacional, que teve muita importância na passagem doséculo dezenove para o vinte, foi, sem dúvida, Nina Rodrigues.73

Considerado por Lombroso como apóstolo da antropologia crimi-nal na América do Sul, em As Raças Humanas Nina Rodrigues susten-ta haver no Brasil uma criminalidade étnica no sentido da coexistênciade inúmeras raças em fases diversas de evolução. Desta forma, afirmaque não haveria maior absurdo do que o nosso Código Penal conside-rar o desenvolvimento do norte do país, situado em zona tórrida e ondepredomina o índio, o negro e os seus mestiços, igual ao desenvolvimen-to mental no sul da República, situado em zona temperada e onde

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Tanto importaria afirmar que são todos degenerados. Mas acredito e afirmo que a crimi-nalidade no mestiço brasileiro é, como todas as outras manifestações congêneres, sejambiológicas ou sociológicas, de fundo degenerativo e ligada ás más condições antroplógicasdo mestiçamento no Brasil (Rodrigues, ob. cit., p. 158).

72 Silva, ob. cit., pp. 98-99.73 Gauer, A etnopsiquiatria na visão dos intelectuais brasileiros, p. 92.

ser diagnosticado pelo atavismo – os criminosos, diz-se neste momento,são basicamente incapazes de realizar um adequado controle moral,como o são as pessoas honestas. Sua anormalidade se manifesta por umexcesso instintivo, explicado como um retorno a um estado selvagem,atávico, hereditariamente determinado.68

É em Nina Rodrigues, porém, que se encontra otimizada a recep-ção do saber criminológico-positivista central, em profícuo trabalho depopularização da tese da inferioridade das raças.

No livro As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil(1894), o autor, com o intuito de estabelecer um modelo ‘científico’ eharmonioso com sua orientação metodológica (lombrosiana), busca,consoante os estudos de Beviláqua, traçar os perfis da delinqüência nopaís.69 Após delinear o quadro antropológico e étnico brasileiro e ava-liar a responsabilidade criminal de índios, negros70 e mestiços,71 Nina

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Ao partir das três grandes raças que ocasionaram a formação do brasileiro (branca, cabo-cla e negra), constata que o cruzamento das duas raças inferiores é mais productivo emseres inquinados pelo estigma da delictuosidade do que a mestiçagem de qualquer delascom a raça branca. Assim, percebe que, quando o preto se combina com o branco (mula-to), a inclinação criminosa baixa; mas, si há um retorno á fonte negra (cabra), se realçaaquella inclinação. Desta forma, as duas raças inferiores contribuem muito mais podero-samente para a criminalidade do que os aryanos (Beviláqua, ob. cit., pp. 93-94).Diagnostica, portanto, Cristina Rauter, que para Beviláqua a miscigenação favorece ocrime e quanto mais ela tende para as características negras, mais esta tendência se acen-tua. Porque as raças inferiores, negra e índia, representam por si sós uma espécie de dege-neração. São estágios inferiores de um processo evolutivo, que culminaria com a raça bran-ca, ariana, menos propensa à criminalidade (Rauter, Criminologia e Poder Político noBrasil, p. 32).

68 Rauter, ob. cit., p. 28.69 Apesar de ter alcançado notoriedade com a obra mencionada, suas pesquisas sobre a

relação entre as raças e o crime são inúmeras, como se pode perceber em AfrânioPeixoto: na sua biografia [de Nina Rodrigues] lereis ‘os mestiços brasileiros’, ‘negros cri-minosos no Brasil’, ‘animismo fetichista dos negros bahianos, ‘ilusões da catequese noBrasil’, ‘o regicida Marcelino Bispo’, ‘epidemia de loucura religiosa’ em Canudos, ‘paranóiados negros’, ‘mestiçagem, degeneração e crime’, ‘o alienado no direito civil brasileiro’, a‘solução do problema médico-judiciário no Brasil’, ‘o problema médico-judiciário noBrasil’, ‘o problema negro na América portuguesa’, e assim, quase sem exceção (Peixoto,Vida e Obra de Nina Rodrigues, p. 12).

70 Segundo o autor, a capacidade criminal de índios e negros deveria ser diferenciada – aresponsabilidade penal, fundada na liberdade do querer, das raças inferiores, não pode serequiparada a das raças brancas civilizadas (Rodrigues, As Raças Humanas, p. 118).Assim, conclui: o exame que tenho feito me autoriza plenamente, parece, a concluir queos negros e índios, de todo irresponsáveis em estado selvagem, têm direitos incontestáveisa uma responsabilidade atenuada (Rodrigues, ob. cit., p. 123).

71 Quando aos mestiços, o cruzamento entre raças dessemelhantes provocaria influênciasdegenerativas, com efeitos na condição mental e, conseqüentemente, na responsabili-zação penal – dos mestiços, eu não pretendo certamente que sejam todos irresponsáveis.

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cômio criminal. Se assim fosse, talvez seria necessário colocar no hos-pital a humanidade inteira.79

É árduo, contudo, quando discorre sobre o sentido ilusório da ideo-logia do tratamento e o processo de profissionalização medicalizadaintroduzido pelo modelo criminológico, no qual médicos postulavamreformar a filosofia e revogar o direito criminal: o psiquiatra quer destro-nar o jurista, a psiquiatria quer tornar dispensável o direito penal.80

Inegável, neste sentido, que Tobias Barreto iniciou o processo dereação à invasão do positivismo criminológico no âmbito do controlesocial punitivo, sendo o pioneiro da resistência à ideologia racista e rea-cionária disfarçada de ciência biologista, antidemocrática, justificadoradas elites das repúblicas oligárquicas da América Latina, da seleçãoracista e classista dos nossos sistemas penais, da luta contra o genocídiopenal do neo-colonialismo.81

Interessante notar que a luta do positivismo criminológico noBrasil dar-se-á contra o espectro do Tobias Barreto, visto que inexistiuconfronto direto com Nina Rodrigues, pois a crítica do catedrático baia-no advém após sua morte. Todavia, a força do pensamento de Barretoé tal que o grande duelo travado por Nina Rodrigues em As raçashumanas e a responsabilidade penal no Brasil é contra seu legado,82

sendo este espólio teórico responsável por frear a patologização abso-luta do direito penal e sua conseqüente transposição à ciência médica.

Não obstante as críticas ao positivismo criminológico, servindocomo contraponto ao pensamento vindouro, Barreto, no manuscritoProlegômenos ao Estudo do Direito Criminal,83 adota um modelo defen-sivista de justificativa do Direito Penal que, no campo ideológico, acaba

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79 Enuncia Barreto: Lombroso propõe a substituição da cadeia pelo manicômio criminale.Dou de barato. Porém os seus princípios, os seus dados positivos, distendidos pela lógica,levam à conseqüência de ser talvez preciso meter-se no hospital a humanidade inteira, senão é o que o ilustre autor nos tenha proposto somente uma questão de palavras, e entrecadeia e hospital de criminosos não se estabeleça distinção notável. Mas isto está em desa-cordo com as suas pretensões de fundador de uma nova escola, que de dia em dia, segun-do ele crê, aumenta de discípulos e sectários, posto que tal crença possa entrar na classedas ilusões comuns a todos os reformadores: com meia dúzia de prosélitos já se dão porchefes de uma ecclesia que vai tornar-se única e universal (Barreto, ob. cit, p. 73).

80 Barreto, ob. cit, p. 74.81 Zaffaroni, Elementos para uma Leitura de Tobias Barreto, p. 177.82 Os argumentos de Tobias Barreto foram tão incisivos que Nina Rodrigues dedica com

exclusividade o capítulo II, O livre arbítrio relativo nos criminalistas brasileiros, para a crí-tica da concepção de culpabilidade fundada no livre arbítrio veiculada por Barreto(Rodrigues, ob. cit., pp. 49-58).

83 Barreto, Prolegômenos ao Estudo do Direito Criminal, pp. 188-197.

dominava a colonização alemã e italiana.74-75 Assim, ao criar tipologiasdiferenciadas entre os brasileiros (descendente europeu, negro, índio,mulato e mestiços – superiores, comuns e degenerados), assume aspremissas evolucionistas que geraram desde concepções jurídicasbaseadas na inimputabilidade das raças inferiores devido ao seu infe-rior grau de civilização e inteligência, até propostas político-racistasgenocidas fundadas no atavismo do ‘selvagem’ e na limpeza social.

O contraponto ao modelo teórico adotado por Nina Rodriguesencontra-se em Tobias Barreto, homem pobre, perseguido, contraditó-rio, agressivo e paranóico. Como salientou Nilo Batista, Tobias Barretose antecipava extraordinariamente às concepções jurídicas no Brasil desua época.76

Os problemas de coerência e sistematicidade metodológica e deconteúdo na obra de Tobias Barreto são notórios. Segundo EugenioRaul Zaffaroni, Barreto no fue un autor sistemático; era lo más alejado detal modalidad. No obstante, sus contradiciones son, en buena medida, elproducto de un pensamiento que avanzaba a medida que iba adquirien-do y elaborando información y que muere a la edad en que suelen pro-ducirse las expresiones de mayor madurez creativa o, al menos, el asen-tamiento de lo ya creado.77

Tobias Barreto direciona incisivas críticas ao pensamento lombro-siano e, conseqüentemente, à base teórica que Nina Rodrigues tenta-va consolidar. Afirmava que a idéia capital de Lombroso não é de todoisenta de certo sabor de paradoxia. Reduzindo o crime às proporçõesde um fato natural, incorrigível, inevitável, tão natural e incorrigívelcomo a doença, pareceria que Lombroso julgava inútil a função da jus-tiça pública.78

Em Menores e Loucos (1884), ironiza a proposta etiológica, afir-mando propugnarem seus adeptos à substituição da cadeia pelo mani-

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74 Apud Zaffaroni, Tobias Barreto y la Critica de Nina Rodrigues, p. 300.75 Veja-se, por exemplo, a luta feroz de Nina Rodrigues contra a unidade de Código: posso

iludir-me mas estou profundamente convencido de que a adoção de um código único paratoda a República foi um erro grave que atentou grandemente contra os princípios mais ele-mentares da fisiologia humana. Pela acentuada diferença da sua climatologia, pela confor-mação e aspecto físico do país, pela diversidade étnica de sua população, já tão pronun-ciada e que ameaça mais acentuar-se ainda, o Brasil deve ser dividido, para os efeitos dalegislação penal, pelo menos nas quatro divisões regionais que são tão natural e profunda-mente distintas (Rodrigues, As Raças Humanas, pp. 166-167).

76 Batista, Introdução crítica ao direito penal brasileiro, p. 19.77 Zaffaroni, ob. cit., p. 290.78 Barreto, Menores e Loucos, p. 72.

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A transposição do discurso da Escola Positiva ao modelo deDefesa Social pode ser visualizada em dois momentos históricos diver-sos, mas complementares: a prolusão sassarena de Rocco e o Programade Marburgo de Liszt.

O modelo etiológico transformou a ciência penal em ciência crimi-nológica, determinando a padronização dos critérios e condições deproceder a investigação do fenômeno criminal. Assim, o estudo foitransportado da ótica jurídica (das ciências humanas) ao universo dasciências médicas (naturais). No entanto, paradoxalmente, em nívelepistemológico o direito penal deveria acompanhar o padrão impostopela ciência-matriz (jurídica) que estruturou seu pensar desde a dog-mática jurídica.

Com a perda de legitimidade do discurso etiológico no âmbito dasciências jurídicas, chegado era o momento de resgatar aquilo que resta-ra de jurídico na ciência penal. Na Itália, o movimento de ruptura e rea-ção à concepção naturalística (reação tecnicista) foi iniciado por Rocco.

Logicamente, o corte operado pela dogmática em relação à crimi-nologia não ousou sepultar o saber construído sob as premissas clíni-cas. O advento da dogmática, apesar de capacitar o discurso jurídico,redefinindo o modelo penal, não logrou extirpar o discurso etiológico.Apenas deslocou a criminologia a um saber auxiliar na tipologia dasenciclopédias penais.

Franz von Liszt, ao desenvolver o Programa de Marburgo (1882),havia criado um modelo integrado e relativamente harmônico entredogmática e política criminal, postulando ser tarefa da ciência jurídicaestabelecer instrumentos flexíveis e multifuncionais com escopo deressocializar e intimidar as mais diversas classes de delinqüentes (cri-minosos adaptados, inadaptados ou ocasionais). Rocco, na prolusãosassarena, define com nitidez os contornos diferenciais e os locais deatuação da dogmática e da criminologia, relegando esta última à dis-creta e auxiliar, porém eficaz, atuação na justificação da pena.

Liszt expressa sua opção determinista-naturalista enfatizando anecessidade de a pena atuar com intuito de correção do homem, nãoabdicando, todavia, alguns pressupostos do modelo clássico contratua-lista.87 Como alerta Roxin, Liszt divide a ciência do direito penal em

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87 La idea de fin, que engendra la fuerza del Derecho, está reconocida también en la pena; ycon este reconocimiento se hace posible utilizar los múltiples efectos de la amenaza penaly de la ejecución de la pena para la protección de los intereses de la vida humana. Tambiénel recuerdo del pasado de la pena, si no se le quiere relegar completamente al olvido, ya

por conciliar com as propostas de Nina Rodrigues. Tal composição abreo caminho para as codificações da década de 40 (Códigos Penal eProcessual Penal), a instauração do sistema penitenciário84 e, funda-mentalmente, cria um campo de saber e uma retórica que conduz osenso comum sobre crime e criminalidade no Brasil até os dias atuais.

Percebe-se, com Alessandro Barata,85 que a ideologia da DefesaSocial perfaz o universo das ciências penais da modernidade, sendotransversal a todas as escolas após a reação iluminista, estabelecendoum nó teórico e político fundamental no seu sistema científico integra-do. Ainda que suas respectivas concepções de homem e de sociedadesejam profundamente diferentes, o discurso defensivista passa a ser ocatalisador de dois pólos diversos da construção discursiva do direitopenal e da criminologia nacional.

2.2.3. O defensivismo contemporâneo: a Nova Defesa Social

Desqualificado no período pós-guerra pelas conseqüências políti-cas do pensamento etiológico, o modelo substancialista racista e tota-litário é retomado sob a feição ‘humanizadora’ do movimento da NovaDefesa Social.

Representado por Prins e Gramatica, a partir da União Internacio-nal de Direito Penal fundada em Berlim em 1889, o movimento daDefesa Social visa identificar os sujeitos perigosos, reabilitando-os apartir de uma preocupação moral de emenda desde o enfoque médicoe psiquiátrico.

Sobretudo no pós-guerra falar-se-á em Nova Defesa Social, ou seja,em modelos repressivos baseados em intervenções ambíguas, própriasde um Estado Social preventivo, cujas políticas (criminais) situam-seentre o filantropismo e o controle social intensivo.86

O movimento será popularizado por Marc Ancel, consagrando aressocialização terapêutica do condenado como principal objetivo dasanção, proporcionando (auto)intitulação humanitária devido à recusada função meramente retributiva que a pena adquiria nos ‘clássicos’.

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84 Sobre a influência do discurso defensivista, fundamentalmente aquele positivista, na for-mação do sistema penitenciário brasileiro, conferir Neder, Em nome de Tânatos, pp. 25-30; Silva, ob. cit., pp. 103-130; Wolff, Prisões no Rio Grande do Sul, pp. 69-150.

85 Baratta, Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, p. 41.86 Ost, O Tempo do Direito, p. 381.

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‘ressocialização’, ‘neutralização’ ou de ‘intimidação’, segundo os diver-sos ‘tipos’ – ‘adaptados’, ‘inadaptados’ ou ‘ocasionais’ – de delinqüentestratados.90 Conclui que tal proposta resulta numa doutrina eclética de‘pena-defesa’, visto ser informada simultaneamente por princípios deDefesa Social e de incapacitação (para os irrecuperáveis), de emenda(para os que necessitam recuperação), de intimidação especial e geral(para os delinqüentes ocasionais) e de retribuição. O resultado práticodesta doutrina, portanto, é substancialmente convergente com o dasorientações positivistas da Defesa Social, concretizando-se em umatendencial subjetivação das figuras de crime e na proposta, amplamen-te aceita na cultura e na prática penalista do século XX, da diferencia-ção da pena segundo a personalidade dos réus.91

Neste modelo conciliador entre as propostas da dogmática e dacriminologia, Marc Ancel desenvolverá sua teoria da Defesa Social,baseando-se, fundamentalmente, na diferenciação e individualizaçãodos crimes, dos criminosos e da penas.

Sustenta Ancel que o modelo penal de Defesa Social caracterizar-se-ia por ser uma política ativa de prevenção que intenta tutelar asociedade, protegendo também o delinqüente, pois visaria assegurar-lhe, através de condições e vias legais, um tratamento apropriado. Adefesa social – sustenta o autor – repousa portanto, em grande parte, nasubstituição da pena retributiva pelo tratamento.92

O movimento da Nova Defesa Social constitui-se, desde a décadade quarenta, como um dos principais aglutinadores do pensamentoantigarantista sobre o fenômeno delitivo, estabelecendo como finalida-de precípua a negação dos sistemas penalógicos de retribuição carac-terísticos das doutrinas penais ‘clássicas’ do final do século XVIII.Representaria, pois, uma ‘nova concepção de luta contra a delinqüên-cia’ a partir da reconstrução integrada entre direito e processo penal,93

criminologia e política criminal.Marc Ancel94 demonstra esquematicamente os pressupostos da

doutrina, elaborando rol principiológico mínimo. Para o autor, a DefesaSocial supõe uma concepção geral do sistema anticriminal que não visa

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90 Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 255.91 Ferrajoli, ob. cit., p. 256.92 Ancel, A Nova Defesa Social, p. 12.93 Sobre a opção inquisitiva do modelo de processo penal no paradigma da Defesa Social,

principalmente ao vínculo ao princípio da verdade material, conferir Gomes Filho, Direitoà Prova no Processo Penal, pp. 33-35.

94 Ancel, ob. cit., pp. 17-21.

dois reinos, bipartindo o estudo do delito em níveis distintos: o objeti-vo, operado pela dogmática jurídica na avaliação do fato; e o subjetivo,referente aos critérios de penalização (ressocialização), tendo comoobjeto de investigação o autor. Assim, para Liszt, os pressupostos dapunibilidade deviam determinar-se segundo os princípios liberais doEstado de Direito exactamente como sempre expôs a Escola Clássica;mas, uma vez constatada a punibilidade através do ‘método jurídico’, asanção deveria medir-se exclusivamente pelas necessidades sociais.88

Não se pode olvidar que ao mesmo tempo em que centraliza aatuação do direito penal na tutela do bem jurídico, incrementando prin-cípios como os da subsidiariedade, Liszt negará totalmente o paradig-ma clássico da retribuição, impondo a necessidade da prevenção espe-cial positiva ao absorver princípios etiológicos (v.g. defesa da sentençapenal indeterminada). Nas palavras do autor, como missão da penaapareceria a actuação sobre o delinqüente, adequada às peculiaridadesdo mesmo. Deste modo, a idéia de prevenção especial passava para umplano cimeiro, sem no entanto deixar de lado a idéia de prevenção geral,e à pena retributiva opunha-se a pena protectora ou a pena orientadapara os fins.89

A tensão entre liberalismo penal e determinismo criminológicoinduz à criação do híbrido sistema integrado das ciências criminais.

Segundo Ferrajoli, o modelo propugnado pelo Programa deMarburgo tem nítido endereço correcionalístico, pois teleológica epragmaticamente concentrado na função de prevenção especial dapena, seguindo a orientação de individualização e diferenciação dosréus/condenados – quem, ao invés, retomou e desenvolveu esta idéia,dentro de uma doutrina teleológica e correcionalista orgânica foi Franzvon Liszt, que em seu Programa de Marburgo de 1882 elaborou ummodelo de direito penal como instrumento flexível e polifuncional de

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que, aun hoy, la teoría de la justicia retributiva reivindica para sí el instinto de la vengan-za, nos muestra cómo se cumple irresistiblemente en la Historia de la pena la misma trans-formación que en el desarrollo de los individuos. La inconsciente, sin finalidad y desorien-tada actividad del instinto, se cambia en actividad de la voluntad, determinada y medidapor la representación del fin. En la mutua contienda de las teorías penales sobre el fin dela pena, se depura la opinión del legislador, que, cada vez más separado de la prevencióngeneral, se ve obligado a ver el fin de la pena en la adaptación (Anpassung) o segregación(Ausscheidung) del delincuente. El resultado inexcusable es una Política Criminal, serenay consciente de su fin, que se nos ofrece de la historia del desenvolvimiento de la pena(Liszt, Tratado de Derecho Penal, pp. 21-22).

88 Roxin, Franz von Liszt e a Concepção Político-Criminal do Projeto Alternativo, p. 78.89 Apud Roxin, ob. cit., p. 54.

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precedente legitimação científica dos genocídios culturais dos modelostotalitários, o modelo neodefensivista é fortificado.

A par da recepção do modelo defensivista pelo discurso penal,outro fator importante para observar o porquê da consolidação da NovaDefesa Social como ideologia/movimento penal preponderante é a faltade capacidade dos sistemas jurídicos do século XX em efetivar os direi-tos fundamentais.

Com o advento da Organização das Nações Unidas (Carta da ONU,1945) e a aprovação por sua Assembélia Geral da Declaração Universaldos Direitos do Homem (1948), o homem novamente passa a ocupar acentralidade do discurso jurídico. Agora, porém, seus direitos não maisestariam resumidos às intenções formais no interior dos Estados sobera-nos, como em sua gênese ilustrada, mas estariam fundados em princí-pios de ordem universalista consagrados na Declaração de 1948 e noPacto Internacional de 1966, transformando estes direitos não maissomente constitucionais mas supraestatais, transformando-os em limitesnão apenas internos mas também externos ao poder dos Estados.96

Todavia, as normas imperativas da afirmação da paz e dos direitoshumanos, bem como o desenvolvimento em matéria sociológica dasteorias interacionistas e a formação do paradigma da reação social, nãodeterminam refluxo do pensamento etiológico nitidamente ‘intole-rante’. Ocorre, ao contrário, a potencialização da doutrina devido à cir-cunscrição do direito (delito) à esfera da natureza e à concepção subs-tancialista do juízo.

É que tanto as teorias criminológicas da reação social quanto onovo paradigma dos direitos humanos foram inviabilizados na prática,proporcionando ao novo discurso baseado na estética do mal o preen-chimento da lacuna encontrada no pensamento jurídico-penal do finalda década de quarenta.

O discurso humanista do século XX careceu de eficácia pela fragi-lidade do recente constitucionalismo. Outrossim, as teorias de base doparadigma da reação social, não obstante negarem de forma ‘irreversí-vel’ os postulados ideológicos conformadores do modelo defensivista –delito como qualidade intrínseca de uma minoria de pessoas; delitocomo ofensa aos interesses e valores sociais consensualmente estabe-lecidos; delito como atitude essencialmente má operado por pessoasperversas; delinqüente como um elemento disfuncional e negativo nassociedades harmônicas e igualitárias; sistema penal como modelo fun-

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96 Ferrajoli, La Sovranità nel Mondo Moderno, p. 40.

unicamente à expiação da falta por meio do castigo, mas busca prote-ger a sociedade contra as ações criminais. Essa proteção social seriarealizada sob a noção de periculosidade, aliada ao conjunto de medi-das extrapenais destinadas a neutralizar o delinqüente, seja pela elimi-nação/segregação ou pela aplicação de métodos curativos/educativos.Assim, o modelo de controle conduziria à promoção de uma política cri-minal que atribuiria importância particular à prevenção individual,operando como sistema de dissuasão dos crimes e tratamento dosdelinqüentes (ressocialização), apoiando-se no estudo do fato crimino-so e da personalidade do agente sob o método empirista.

Mediante tais condições, o movimento adquiriu, no final dos anossetenta, caráter transnacional, universalizando seus princípios e finali-dades, e agindo no câmbio de grande parte dos ordenamentos jurídico-penais e penitenciários da década precedente como, por exemplo, alegislação penal e penitenciária nacional de 1984.

A (re)organização do sistema punitivo desde o enfoque da DefesaSocial, encobrindo velhas práticas etiológicas sob o manto de um novoe renovado humanismo científico (descriminalização de algumas con-dutas insignificantes, desjudicialização de alguns procedimentos, am-pliação das medidas alternativas ao cárcere e revalorização da vítimacomo sujeito da relação processual), deveu-se fundamentalmente aofato da insustentabilidade do antigo discurso etiológico positivistaapós a Segunda Grande Guerra e a formação de um novo discursohumanista.

A propósito, é no próprio Marc Ancel que encontraremos a influên-cia sistematizadora da Escola Positiva, principalmente no que tange ànegação do princípio da culpabilidade, à assunção do crime como fatonatural e social, ao objetivo ressocializador da pena e à necessidade deproteção da sociedade contra o criminoso: a defesa social não é umadoutrina do Positivismo, mas uma conseqüência indireta, e de certaforma em segundo grau, da doutrina positivista.95

Apesar de após a Segunda Grande Guerra a humanidade encon-trar-se direcionada a um processo de reconstrução e afirmação dosvalores humanistas, elaborando incisivas críticas às doutrinas jurídico-penais e criminológicas do positivismo, os modelos inquisitoriais subs-tancialistas encontram na Defesa Social um novo discurso legitimante.Não obstante as teorias causais sofrerem ampla desconstrução pela

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95 Ancel, ob. cit., p. 87.

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de ‘a’ ciência do direito penal que ocupava no final do século XIX. Noentanto, no plano da eficácia, seu discurso continuou gerando, sem res-quícios, os efeitos desmascarados pela incisiva crítica dos anos ses-senta e setenta.

O argumento torna-se perceptível quando da avaliação das práti-cas administrativas e judiciais do processo penal (cognitivo e executi-vo), nos quais conceitos como periculosidade continuam a orientarmedidas absolutamente desconexas com os postulados garantidoresexpressos nas Constituições democráticas. As hipóteses levantadasconduzem à afirmação de que é imprescindível novo processo seculari-zador, não restrito apenas aos vínculos do direito com a moral (aindanecessários em relação a alguns tipos penais e ao modo de proceder dooperador do direito), mas, sobretudo, à sincronia do saber jurídico como saber naturalístico.

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cional de prevenção (particular e geral) da delinqüência – restringiram-se ao mundo acadêmico contracultural, olvidando a práxis.

Apesar das teorias sobre o homem patológico serem negadas nasformulações doutrinárias, que após a reação científica dos anos sessen-ta, incitaram o movimento da criminologia crítica, o modelo etiológicoreformulará seus postulados com o movimento da Defesa Social, emclara inversão ideológica do discurso dos direitos humanos. Muitoembora o discurso criminológico crítico tenha deslocado e desmascara-do as teses da Escola Positiva, a mudança na concepção do crime nãofoi alterada. É que mesmo a resposta da criminologia crítica ao fenôme-no do delito/desvio, negando o determinismo biológico e psicológico ealçando o enfoque micro-individualista à macro-sociologia, não deixoude incorrer em um determinismo socioeconômico.

Se o paradigma dos direitos humanos e os postulados da reaçãosocial e da criminologia crítica ficaram circunscritos à academia, a vir-tude política do movimento da Defesa Social proporcionou à criminolo-gia oficial dos modelos integrados de ciências penais um processo dereformulação das estratégias. Nasce, então, uma criminologia adminis-trativa tão nociva às garantias e aos direitos fundamentais quantoaquela proposta por Lombroso, Ferri e Garófalo. A relevância e o inten-so labor prático deste novo modelo criminológico correcionalista e cau-sal, capitaneado por discursos psiquiatrizados, obstaculiza a formaçãodo modelo garantidor, reincorporando nas legislações (plano político-criminal), no imaginário do jurista (plano dogmático), na esfera do con-trole policial (plano da segurança pública), no modelo de execução dapena e no direito penitenciário (plano criminológico) premissas pericu-losistas autoritárias – en la fase de experimentación e innovación deentreguerras se extendió una ambivalente ideologia penal preventiva,paternalista en el mejor de los casos, que hacía hincapié en el conceptode ‘peligrosidad social’; en ella hay fuertes elementos de una concepciónpenal totalitária.97

Não se está a negar nem poderia sê-lo feito, pois tais argumentossustentam a base teórica do trabalho, o legado das teorias da reaçãosocial e da criminologia crítica. Chama-se atenção, porém, ao fato deque, se na esfera criminológica e político-criminal, a teoria crítica rom-peu com as amarras do positivismo, a prática maniqueísta do sistemaoperou um câmbio altamente eficiente. É claro que reduziu o status dosaber criminológico oficial a um plano secundário em relação ao posto

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97 Capella, Fruta Prohibida, p. 223.

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Capítulo IIIAs Razões do Garantismo

3.1. O Programa político-criminal garantista

3.1.1. Garantismo: reivindicação ou superação do iluminismo jurídico-penal?

Segundo Rouanet,1 o iluminismo é uma tendência transepocal quecruza transversalmente a história da humanidade. Não estaria, portan-to, limitado ao século XVIII. A conseqüência dessa proposição é anecessidade de diferenciar as categorias ilustração e iluminismo. Oautor sugere que o termo ilustração fique circunscrito às idéias que flo-resceram durante os oitocentos, ao passo que a categoria iluminismodeveria corresponder a um modelo crítico de produção do saber, ques-tionador de todos os valores transcendentes e combatente de todas asinstâncias que promovem a infantilização do homem.

A principal virtude do pensamento iluminista teria sido, conformeleciona Sigmund Freud, promover o homem a um grau de maturidadedecorrente da opção pela civilização e negação da barbárie.2

O contra-iluminismo identificar-se-ia em toda estrutura desaber/poder que concebe o homem como descartável, negando a pri-mazia dos seus direitos, em defesa de uma concepção verticalizada eanti-secular de sociedade. A mesma lógica transepocal pode ser apli-cada às correntes infantilizadoras, compreendidas por movimentosintelectuais favoráveis às crenças e aos valores tradicionais combati-dos pelo iluminismo. Não são circunscritas, igualmente, a uma moldu-ra conjuntural determinada.

Assim, a teorização dos filósofos da ilustração não pode ser res-tringida a mero arcabouço legitimador de uma classe social em ascen-são (burguesia), o que efetivamente não pode ser descartado comohipótese de trabalho ou variável. O relevante, porém, sob a ótica garan-

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1 Rouanet, As Razões do Iluminismo, p. 28.2 Freud, O Mal-Estar na Civilização, pp. 185-194.

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todos os países ocidentais devido à nova ‘guerra santa’ contra a crimi-nalidade, gerou total ruptura com a estrutura clássica do direito e doprocesso penal. A perda do significado ilustrado do direito e a legitima-ção de novo irracionalismo, potencializado pelas teses neoliberais deEstado mínimo na esfera social e máximo na esfera penal, redunda nasolidificação de verdadeiro Estado Penal.7

Dessa forma, é como discurso de resistência às novas tendênciastransnacionais no ramo do controle social, reflexo da reengenharia polí-tico-econômica, que exsurge a teoria garantista. Apresenta-se, pois,como saber crítico e questionador, como instrumento de defesa radicale intransigente dos direitos humanos e da democracia contra todas asdeformações genocidas do direito e do Estado contemporâneo.

O retorno às luzes do pensamento penal sustentado na formulaçãogarantista é a tentativa de recuperar a capacidade crítica do direito(razão artificial do Estado) e do jurista (artesão na modificação da rea-lidade social). Sobretudo porque a práxis jurídica deverá ter como the-los a tutela dos direitos fundamentais.

Assim, é necessário retornarmos para dar continuidade ao debateinterrompido com intervenção da ‘polícia’ positivista.8 Reivindicar o pro-grama iluminista significa compartilhar a confiança na emancipação dahumanidade frente às tiranias, servidões, preconceitos ou ignorânciasque impedem o progresso das liberdades, da igualdade e da tolerância.Significa reconhecer a força da razão crítica frente à razão tecnológicafragmentadora e à cultura de pulsão consumista.

Como alertou Goya, quando a razão dorme, surgem os monstros.9

3.1.2. Regressão irracionalista: desregulamentação dos procedimentos, pluralismo de fontes e inflação legislativa

Com o remodelamento das funções da criminologia oficial, com adeformação inquisitorial do processo penal e com a assunção por parte

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7 Sobre a consolidação do ‘Estado Penal’, conferir Wacquant, As prisões da miséria, pp. 77-152; Wacquant, Punir os pobres, pp. 53-98; Wacquant, A tentação penal na Europa, pp.07-12; Wacquant, A ascenção do Estado Penal nos EUA, pp. 13-40; Bauman, Globalização:as conseqüências humanas, pp. 111-136; Bauman, O mal-estar da pós-modernidade, pp.27-61; Garland, As contradições da ‘sociedade punitiva’, pp. 69-92; e Christie, Elementosde geografia penal, pp. 93-100.

8 Zaffaroni, La Rinascita del Diritto Penale Liberale o la ‘Croce Rossa’ Giudiziaria, p. 284.9 Apud Asúa, Reivindicação ou Superação do Programa de Beccaria, p. 36.

tista, é o processo de luta pela razão contra todas as formas de obscu-rantismo. O saber ilustrado demonstra a capacidade crítica do homemna construção do processo humanizador, e por isso de maturidade, quenega terminantemente a redução do próprio homem à condição desupérfluo. Seu legado proporciona o reconhecimento de valores positi-vos, concretizados em princípios e normas, direcionados à universali-zação do homem como sujeito de direitos.

O impacto do pensamento ilustrado é muito superior às reduçõesde cunho fragmentador em diferentes áreas do conhecimento (v.g. des-construção do modelo jurídico do medievo, viabilização da economia demercado, legitimação da classe burguesa no poder). A filosofia ilustra-da possibilita ao homem o reconhecimento de sua capacidade criativae contestatória, e por isso o marco do pensamento iluminista é gêneseda luta pelas humanidades. Não por outro motivo que a raiz iluministaaparece no interior do saber penal, local de reconhecimento e tutelados direitos frente ao irracionalismo das teses inquisitivas.

A teoria geral do garantismo na contemporaneidade apresenta-se,conforme Mariangela Ripoli3 e Sergio Cadermatori,4 como derivaçãodesta teoria garantista penal, a qual nasce e se desenvolve a partir damatriz iluminista da ilustração. O escopo principal que me propus –argumenta Ferrajoli – com a reflexão sobre estas três ordens de funda-mentos [base epistemológica, justificação ético-política e técnicas nor-mativas idôneas para assegurar os graus de efetividade] foi a revisãoteórica do modelo garantista de legalidade penal e processual assimcomo foi traçado pelo pensamento iluminista... O pensamento iluminis-ta representa certamente o momento mais alto da história da culturapenalística: senão por outro motivo, porque a ele se deve a formulaçãomais incisiva da maior parte das garantias penais e processuais dentrodas formas do Estado constitucional de direito.5

Na atualidade, o discurso garantista propõe um saber (jurídico-político) alternativo ao neobarbarismo defensivista capitaneado pelosmovimentos hipercriminalizadores dos discursos de Lei e de Ordem,Tolerância Zero e Esquerda Punitiva, potencializados pelas ideologiasde Defesa Social.6 Hoje, o processo de desregulamentação penal e dedeformação inquisitiva do processo, realidade perceptível em quase

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3 Ripoli, Diritto e Morale, p. 158.4 Cadermatori, Estado de Direito e Legitimidade, p. 102.5 Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. XVII.6 Sobre os movimentos (neo)criminalizadores, conferir Carvalho, As reformas parciais no

Processo Penal brasileiro, pp. 303-344.

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matriz genealógica não reconhece (o que aconteceu durante o séculoXX), há o comprometimento de toda sua funcionabilidade original(resolução de conflitos interindividuais). A premissa pode ser verifica-da claramente na denominada ‘criminalidade contemporânea’,12

expressão cunhada por Hassemer para indicar contraponto à ‘crimina-lidade clássica’, que condiciona e é condicionada pela estrutura liberal.

Percebe-se, portanto, que o direito penal contemporâneo, devidoao processo de alta demanda criminalizadora, fruto do ingresso denovas formas de violação aos bens jurídicos (conflitos coletivos e tran-sindividuais), padece de uma ‘elefantíase legislativa’ que resulta naperda dos limites substanciais entre ilícitos penais e administrativos.

Ferrajoli percebe que a crise atual do direito penal decorre de umamodificação na questão criminal, gerando profunda desordem naquiloque denomina questão penal. Entende por ‘questão criminal’ a transfor-mação da natureza econômica, social e política da criminalidade: a cri-minalidade que se impõe hoje à justiça não é mais a velha criminalidadede subsistência que há vinte anos nos levava a denunciar o caráter declasse da administração da justiça.13 A conseqüência é o ingresso denovos sujeitos – poderes criminais (criminalidade organizada) – emnovas formas de criminalidade – crimes do poder (criminalidade econô-mica e financeira do poder público). A mutação na questão criminal,isto é, na forma e nos agentes da criminalidade, obrigaria cientista epolítico a repensarem radicalmente a efetividade das técnicas de tute-la e garantia. Logo, a ‘questão penal’, estrutura liberal-garantista dodireito penal, é sobrecarregada por novas criminalizações que obstacu-lizam o sistema, diminuindo substancialmente as garantias, produzin-do uma dupla falência, que se manifesta de um lado na crise de eficiên-cia, e de outro na crise das garantias, e por isso agride ambas funções detutela que justificam o direito penal: as funções de tutela social, a defe-sa das partes ofendidas contra os crimes, e as funções de garantia indi-vidual, a tutela dos indiciados contra as punições injustas.14

O atual processo de ampliação normativa, deflagrado em grandeparte pelos discursos de emergência, gera espécie de ‘panoptismolegal’, ou seja, o alargamento brutal das possibilidades de incidênciada lei penal nas condutas sociais. No momento em que desvios sociaispassam a ser tipificados, independentemente da lesão ou perigo con-

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12 Neste sentido, conferir Hassemer, Perspectivas de uma Moderna Política Criminal, 89.13 Ferrajoli, Per un Programma di Diritto Penale Minimo, p. 60.14 Ferrajoli, ob. cit., p. 62.

do direito penal da esquizofrenia legislativa na abundante produção deleis, o sistema penal é acometido por gradual e substantiva perda delegitimidade, (re)estruturando-se a partir de uma concepção penal fun-cionalista-eficientista que delega à pena e à criminalização uma formabizarra de processo pedagógico.10

A formulação dos inúmeros vieses do pensamento penalístico con-tratualista deveu-se à total falta de segurança (garantia) do indivíduofrente à pluralidade das fontes. O modelo jurídico do medievo é carac-terizado na órbita penal por um conglomerado de possibilidades naconstrução da categoria crime. Estado, Igreja e direito consuetudinárioeram idôneos à seleção das condutas consideradas nocivas, e portan-to criminosas, à sociedade.

O primeiro passo no processo de racionalização e negação domodelo inquisitivo foi exatamente a ruptura entre as fontes (seculariza-ção), e a imposição de limites materiais (tolerância) e formais (legalida-de) negativos à intervenção. Somente o Estado, via processo legislati-vo, poderia criar figuras delitivas, selecionando condutas pela suacapacidade de violação dos bens jurídicos. Ilegítima a criação de nor-mas criminalizadoras pelo direito costumeiro, jurisprudencial, doutri-nário e/ou direito eclesiástico, podendo somente o Estado intervirquando da concreta violação de bens jurídicos (individuais).

Todavia, se com o advento do Estado intervencionista o direitopenal vislumbrou a autonomização científica da criminologia, assistiutambém o espantoso processo de formulação legislativa.

Se a intervenção criminal no Estado liberal caracterizava-se pelainação, determinando a responsabilidade em casos de conflitos interin-dividuais, o Estado social (intervencionista) fomenta um programa polí-tico que resultará em uma hiperinflação legislativa.

Assim, na conformação do Estado de bem-estar percebemos unaproducción caótica y aluvional de leyes, reglamentos, institutos y prác-ticas políticas y burocráticas que se fueron injertando sobre las viejas yelementares estructuras del estado liberal, deformándolas.11

É que o direito penal nasce e se estrutura sob os pressupostos doEstado liberal, ou seja, o direito penal é essencialmente liberal. No inte-rior deste modelo normativo arquitetonicamente fechado existem algu-mas expectativas positivas de intervenção, porém altamente limitadas.Quando o sistema punitivo se amplia para alcançar condutas cuja

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10 Ferrajoli, Proibizionismo e Diritto, p. 135.11 Ferrajoli, Crisis del Sistema Político y Jurisdicción, p. 124.

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condicionado ou incondicionado, ou seja, limitado ou ilimitado dopoder punitivo.16

O modelo teórico minimalista caracterizar-se-ia por dez restriti-ções ao arbítrio legislativo ou erro judicial. Segundo este modelo, nãose admite nenhuma irrogação de pena sem que tenha sido cometido umfato, previsto legalmente como crime, de necessária proibição e punição,gerador de efeitos danosos a terceiros, caracterizado pela exterioridadee materialidade da ação, pela imputabilidade e culpabilidade do autor e,além disso, comprovado empiricamente por acusação diante de um juizimparcial, em processo público realizado em contraditório, medianteprocedimentos pré-estabelecidos em lei.17

Os termos empregados por Ferrajoli para formulação das condiçõesde possibilidade do modelo são onze: pena, delito, lei, necessidade, ofen-sa, conduta, culpabilidade, juízo, acusação, prova e defesa. As categoriasmencionadas seriam pré-requisitos, implicações deônticas ou princípiossem os quais se tornaria impossível a determinação da responsabilidadepenal e a aplicação da pena, pois criam um rol axiomático que permite aconstatação e punição do fato-crime. Ferrajoli cria, portanto, o sistemagarantista, seguindo a tradição escolástica, a partir de dez máximas:nulla poena sine crimine; nullum crimen sine lege; nulla lex (poenalis) sinenecessitate; nulla necessita sine iniuria; nulla iniuria sine actione; nullaactio sine culpa; nulla culpa sine iudicio; nullum iudicium sine accusatio-ne; nulla accusatio sine probatione; e, nulla probatio sine defensione.

A cadeia elaborada pelo autor serve como instrumento avaliativo detoda incidência do sistema penal, da elaboração da norma pelo legislati-vo à aplicação/execução da pena. Viabiliza ao intérprete uma principiolo-gia adequada para (des)legitimação de toda atuação penal: teoria danorma (princípio da legalidade, princípio da necessidade e princípio dalesividade); teoria do delito (princípio da materialidade e princípio da cul-pabilidade); teoria da pena (princípio da prevenção dos delitos e casti-gos); e teoria processual penal (princípio da jurisdicionalidade, princípioda presunção de inocência, princípio acusatório, princípio da verificabili-dade probatória, princípio do contraditório e princípio da ampla defesa).

Tais princípios corresponderiam às ‘regras do jogo’ do direitopenal nos Estados democráticos de direito e, em decorrência de suagradual incorporação nos textos constitucionais, conformariam víncu-los formais e materiais de validade das normas e decisões.

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16 Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 80.17 Ferrajoli, ob. cit., p. 80.

creto ao bem jurídico, e qualquer conduta pode ser arbitrariamenteconsiderada delitiva, é definido um modelo de controle administrativi-zado com incidência desigual nos diversos estratos sociais e sem osvínculos à lei característicos do direito e do processo penal. Portanto, ainflação penal, efetivamente, provocou a regressão do nosso sistemapunitivo a uma situação não diversa daquela pré-moderna.15

Se a crítica ao sistema penal desigual dos anos sessenta e seten-ta foi direcionada à estrutura classista da lei, com os processos de hipe-rinflação, a desigualdade do sistema demonstrar-se-á na efetividadeda distribuição das etiquetas pelo aparelho administrativo, bem comona falta de eficiência do Estado na tutela dos direitos contra o arbítrio.Sob essa crise dois modelos político-criminais serão erigidos: o mini-malista e o maximalista.

3.1.3. Direito penal mínimo e direito penal máximo

O modelo garantista pretende instrumentalizar um paradigma deracionalidade do sistema jurídico, criando esquemas tipológicos basea-dos no máximo grau de tutela dos direitos e na fiabilidade do juízo e dalegislação, com intuito de limitar o poder punitivo e garantindo a(s)pessoa(s) contra qualquer tipo de violência arbitrária, pública ou priva-da. Por se tratar de modelo ideal (e ideológico), apresenta inúmerospressupostos e conseqüências lógicas e teóricas, negadas ou desqua-lificadas por modelos opostos de produção de saber/poder.

Desde a perspectiva da teoria weberiana dos tipos ideais, identi-ficam-se como modelos de direito penal e de política criminal doispólos diversos e contrapostos, decorrentes da maior ou menor corres-pondência com os pressupostos estruturais do sistema garantista (SG).Os extremos da resposta penal são definidos como modelos de direitopenal mínimo e direito penal máximo.

Em se tratando de estereótipos tendenciais e irrealizáveis emsua plenitude, os dois modelos coexistem diafonicamente nos ordena-mentos jurídicos, caracterizando e diferenciando sistemas repressi-vos. São modelos de direito e de responsabilidade penal que oscilamentre dois extremos opostos, identificáveis não somente pela dicotomiasaber/poder, fato/valor ou cognição/decisão, mas também pelo caráter

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15 Ferrajoli, La Giustizia Penale nella Crisi del Sistema Politico, p. 81.

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penal. O ideal de secularização delimita os rumos de incidência, res-tringindo e desqualificando qualquer tipo de criminalização de condu-tas refutadas apenas na seara moral. Como critério externo ao direito,o princípio da secularização delimita a atividade legiferante, estabele-cendo programa de intervenção mínima.

Com os processos de incorporação constitucional dos direitos egarantias, principalmente a partir da carta da ONU em 1948, ocorre apositivação de grande parte da cadeia principiológica garantista. Osinstrumentos de avaliação da legitimidade das normas, anteriormentesituados fora dos sistemas constitucionais, são relocados ao plano jurí-dico interno, mais especificamente à teoria da validade das leis. Osvalores e princípios informadores das normas constitucionais passam aatuar como mecanismos de avaliação da substância das demais regras.

A estrutura arquitetônica elaborada por Kelsen, cuja concepção écerrada na Constituição lógico-formal e direcionada ao interior do sis-tema jurídico estatal, é modificada, pois passa a voltar seu olhar tantopara o interno quanto para os novos valores e princípios advindos doexterior. Trata-se de legitimidade que provém de fora ou, nas palavrasde Ferrajoli, de um modelo heteropoiético de legitimação do direito(legittimità dal basso). O interessante é notar que esta legitimidadeexterna conforma nova estrutura escalonada do ordenamento jurídico,não mais referendado por princípios e valores jusnaturalistas (metaju-rídicos), mas por instrumentos legais positivados nas Declarações deDireitos. Seriam verdadeiras normas jurídicas supra-estatais (supra-constitucionais), condicionadoras dos ordenamentos e que abalam,inclusive, o clássico princípio da soberania.21

Desde este ponto de vista, a teoria do garantismo elabora critériosnegativos de formulação legislativa e dogmática. Importante ressaltar,porém, que o programa garantista pressupõe essa arquitetura abertados ordenamentos, não podendo ser confundindo com propostas, tam-bém crítico-minimalistas, que reduzem o sistema desde o seu interior –v.g. a teoria material da tipicidade penal. Não que tais teses sejamnegadas pela teoria do garantismo penal; pelo contrário, correspondema técnicas eficazes de redução da incidência do sistema punitivo sobrecondutas que não demonstram capacidade lesiva ao bem jurídico tute-lado (princípio da insignificância) e/ou de exclusão do ilícito quando,no decurso do tempo, a conduta perde sua justificação histórica (prin-cípio da adequação). No entanto, tais técnicas são extremamente limi-

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21 Neste sentido, conferir Carvalho, Sobre a Jurisdição Penal Internacional, pp. 193-205.

O sistema antípoda é indicado pela carência da principiologiaexposta. Assim, a maior ou menor correspondência com a principiolo-gia garantista caracterizaria modelos minimalistas ou maximalistas,quanto à elaboração normativa; acusatórios (cognitivistas) ou inquisi-tivos (substancialistas), quanto ao juízo; e garantistas ou pedagógicos,quanto à fundamentação e execução da pena. Configurariam, pois, sis-temas punitivos autoritários ou garantistas.

Se a estrutura garantista delineia uma concepção limitada de inter-venção, os modelos autoritários caracterizar-se-iam pela debilidade ouausência de algum ou de alguns destes limites à intervenção estatal.18 Aescassez de freios à incidência do sistema penal contraporia, igualmen-te, modelos de Estado de direito – entendendo-se com esta expressão umtipo de ordenamento no qual o poder público, e especificamente o poderpenal, é rigidamente limitado e vinculado pela lei sob o aspecto substan-cial (ou dos conteúdos penalmente relevantes) e sob o aspecto processual(ou das formas processualmente vinculantes) – e modelos de Estadosabsoluto ou totalitário – entendendo-se com tais expressões qualquerordenamento onde os poderes públicos sejam ‘legis soluti’ ou totais, isto é,não disciplinados pela lei, logo, destituídos de limites e condições.19

Nota-se, portanto, que a estrutura minimalista ou maximalista érepresentada pela presença ou ausência de critérios de controle doarbítrio punitivo, indicando opções políticas e o ônus a ela inerente: acerteza perseguida pelo direito penal máximo é que nenhum culpadofique sem punição, à custa da incerteza de que algum inocente possaser punido. A certeza perseguida pelo direito penal mínimo é, ao con-trário, que nenhum inocente seja punido, à custa da incerteza de quealgum culpado reste impune. Os dois tipos de certeza, e os custos liga-dos às respectivas incertezas, refletem interesses e opções políticas con-trapostas: de um lado a máxima tutela da segurança pública contra asofensas ocasionadas pelos crimes, por outro, a máxima tutela das liber-dades individuais contra as ofensas geradas por penas arbitrárias.20

3.1.4. Direito penal mínimo e princípio da legalidade

É inolvidável que o principal legado do movimento penal ilustradocorresponde à imposição de vínculos externos de legitimidade à lei

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18 Ferrajoli, ob. cit., p. 81.19 Ferrajoli, ob. cit., pp. 80-81.20 Ferrajoli, ob. cit., p. 83.

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lei, o princípio cognitivo de estrita legalidade é uma norma meta-legaldirigida ao legislador, a quem prescreve uma técnica específica de qua-lificação penal idônea que deverá garantir, com a taxatividade dos pres-supostos da pena, a decidibilidade da verdade de sua enunciação.23 Oprimeiro limita o processo artesanal da norma incriminadora ao Estado,e em seu interior ao legislador, estabelecendo os liames necessárioscom o poder judiciário. O segundo cria critérios lingüísticos de redaçãoda lei penal pelo poder previamente determinado.

Note-se, porém, que a exclusão das demais fontes do direito penal(v.g. analogia, costumes, jurisprudência e direito penal comparado) diztão-somente ao processo de criminalização ou de interpretação penali-zadora. Tal proposição não esgota a esfera penal ao pressuposto dalegalidade, reduzindo o campo interpretativo e excluindo a analogia eo direito consuetudinário das possibilidades judiciais. Sua negação érestrita aos processos de incidência penal, não ao de exclusão da penaou do delito. Existem, desde uma visão garantista, condições de flexi-bilização da legalidade via interpretação material, conformando o quese poderia denominar dogmática penal garantista. No entanto, taispossibilidades limitam-se à ampliação do direito à liberdade do sujeitocuja conduta recebeu a (des)coloração da lei penal. Não se pode esque-cer a utilidade prática, por exemplo, da clássica fórmula de analogia inbonam partem;24 do reconhecimento de extratividade da jurisprudên-cia penal mais benéfica;25 da atipicidade material dos delitos de baga-tela e das condutas socialmente adequadas (princípio da insignificân-cia e da adequação social); o reconhecimento de causas supralegais deexclusão da ilicitude (consentimento do ofendido e direito de resistên-cia26); a possibilidade de alargamento das descriminantes (v.g., roubo,

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23 Ferrajoli, ob. cit., p. 71.24 Veja-se, por exemplo, (a) a aplicação da pena aquém do mínimo nos casos de confissão,

dado à proximidade do instituto com a delação premiada estabelecida nos artigos 8o daLei 8.072/90 e 6o da Lei 9.034/95 (Carvalho, Direito Alternativo em Movimento, pp. 117-22) e (b) a exclusão da punibilidade – e não mera redução da pena (art. 16 do CódigoPenal) – nos delitos cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, quando há repa-ro do dano ou restituição da coisa, por ato voluntário do agente, até o recebimento dadenúncia por aplicação analógica do art. 34 da Lei 9.249/95, que prevê a extinção dapunibilidade dos crimes definidos pelas Leis 8.137/90 e 4.729/65, quando o agente pagao tributo ou contribuição social no mesmo prazo (Streck, A Nova Lei do Imposto de Rendae a Proteção das Elites, pp. 484-496).

25 Neste sentido, conferir Sanguiné, Irretroatividade e Retroatividade das Variações daJurisprudência Penal, 465-481.

26 Sobre o tema, pesquisar Roxin, Derecho Penal, pp. 949-955, Jakobs, Derecho Penal, pp.532-536, Santos, A Moderna Teoria do Fato Punível, pp. 264-276.

tadas, visto serem concebidas desde o interior da legalidade posta. Oprograma garantista direciona sua lupa de forma diversa. Alça-se parafora do sistema legal, estabelecendo crítica aos critérios de criminali-zação. Não corresponde ao juízo desde os bens jurídicos selecionados,mas dos pré-requisitos de seleção dos mesmos. Não se contenta, pois,com uma microanálise do fenômeno, mas estabelece condições e pos-sibilidades de uma ampla deflação, operando sobre a legislação e nãodesde o sistema positivado. Logo, não se trata de uma teoria sobre osresíduos bagatelares do sistema criminalizador, e sim sobre o própriosistema criminal. Aqui reside a diferença entre a consolidação de umadogmática crítica e a valoração crítica da política criminal.

Feita a ressalva, concebe-se o programa político-criminal minima-lista como estratégia para maximizar os direitos e reduzir o impacto dopenal na sociedade, diminuindo o volume de pessoas no cárcere pelarestrição do input do sistema penal através de processos de descrimi-nalização e despenalização.

Logicamente, o pressuposto básico do programa garantista é oprincípio da legalidade, entendido como regra semântica que identificao direito vigente como objeto exaustivo e exclusivo da ciência penal,estabelecendo que somente as leis (e não a moral ou outras fontes exter-nas) dizem o que é crime, e que as leis dizem somente o que é crime (enão o que é pecado).22 Vê-se, pois, o princípio secularizador balizandoa legalidade penal.

O princípio da legalidade pode ser dividido em duas regras delegitimação (formal ou substancial). A legalidade ampla (ou princípioda mera legalidade) vincularia o crime à lei penal, visto ser esta condi-tio sine qua non de existência do delito e aplicação da pena. Seria regrade divisão do poder penal que prescreve ao juiz verificar como delitosomente o que está reservado ao legislador determinar como tal. Oprincípio da legalidade estrita (princípio da previsibilidade mínima outaxatividade) definiria técnicas semânticas de qualificação da condutapunível, ou seja, regras de formação da linguagem penal que prescre-veriam ao legislador o uso de termos de extensão determinada na defi-nição de delito para que seja, em momento posterior, possível sua apli-cação na linguagem judicial a partir de predicados verdadeiros de fatosprocessualmente comprováveis – o princípio convencionalista de meralegalidade é uma norma dirigida aos juízes, a quem prescreve que con-siderem crime qualquer fenômeno livremente qualificado como tal pela

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22 Ferrajoli, ob. cit., p. 370.

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3.1.5. Teoria garantista da lei penal: critérios de deflação legislativa

Desde os vínculos com o sistema de direito positivo, o programagarantista formula como critérios negativos (limitadores) de definiçãode delito o evento (lesividade), a ação (materialidade) e a culpabilida-de (responsabilidade pessoal). Lesividade, materialidade e culpabili-dade representariam garantias substanciais, ao passo que as garantiasprocessuais de presunção de inocência, prova e ampla defesa corres-ponderiam à sua instrumentalidade. Substanciais seriam as normas dedireito penal relativas à regulação dos pressupostos da pena; instru-mentais seriam as normas processuais que dizem quanto aos métodose as formas de comprovação dos delitos.

Portanto, o garantismo caracteriza-se como uma tecnologia dirigi-da à satisfação de valores substanciais, selecionando-os, explicitando-os e incorporando-os normativamente como condições de legitimaçãojurídica das proibições e das penas, com o escopo de minimizar o poderpunitivo.

Assim, o primeiro critério de intervenção mínima na teoria da leipenal advém do princípio da necessidade (nulla lex poenalis sine neces-sitate). Trata-se de um critério de economia que procura obstaculizar aelefantíase penal, legitimando proibições somente quando absoluta-mente necessárias. Os direitos fundamentais, neste caso, corresponde-riam aos limites do direito penal.

O critério da necessidade é um juízo avaliativo direcionado a esta-belecer utilitariamente os custos da violência da pena institucional emrelação às reações informais derivadas de sua inexistência, visto que odireito penal justifica-se unicamente pela capacidade de prevenir danosàs pessoas sem causar efeitos mais danosos do que aqueles que tem con-dições de impedir.34

Aliado ao pressuposto da necessidade, à pauta minimalista éagregado o princípio da lesividade, indicando a funcionabilidade dodireito penal como instrumento de proteção dos direitos fundamentais,ou seja, os direitos são percebidos como objeto do direto penal.35 Oparâmetro aqui utilizado é a categoria bem jurídico. Do ponto de vistaexterno, a teoria do bem jurídico definiria um modelo orientado à máxi-

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34 Ferrajoli, Il Problema Morale e il Ruogo della Legge, p. 44.35 Conferir Baratta, Principios de Derecho Penal Mínimo, pp. 623-650.

saque e tráfico famélico);27 a reavaliação da matéria do erro de proibi-ção no que tange ao potencial conhecimento da ilicitude em decorrên-cia da inflação normativa;28 a assunção de causas supralegais deexclusão e/ou redução da culpabilidade derivadas do princípio da co-culpabilidade;29 as redefinições de categorias como exigibilidade decomportamento diverso a partir do reconhecimento do pluralismo cul-tural;30 a reinterpretação da obrigatoriedade de imposição da agravan-te genérica da reincidência31 et coetera.

A hermenêutica garantista viabiliza, ao mesmo tempo, de acordocom a necessidade de tutela do mais débil, a flexibilização ou a defesaintransigente da legalidade. Se reconhece direitos outros que justifi-cam abrandamentos penalógicos ou descriminalizações judiciais decondutas, igualmente postula a efetivação da legalidade negada, atra-vés do uso alternativo do direito penal. Tudo porque, segundo AmiltonBueno de Carvalho, o olhar a lei penal desde o ponto de vista do maisfraco pressupõe uma dúplice diretiva: (a) na direção punitiva/persegui-dora a interpretação deve ter força centrípeta, isto é, a imantação épara o núcleo do texto, restritivamente (o menor sofrimento possível); e(b) na direção libertária, para favorecer o débil no direito penal (réu), aforça hermenêutica deve ter potencialidade centrífuga, dirigida parafora, com olhar extensivo dos direitos e garantias.32 AlexandreWunderlich verifica que esta (re)interpretação criativa dos direitos egarantias constitucionais funda uma dogmática crítica problematiza-dora e de contextualização do seu objeto, essencial na edificação deuma práxis judicial condizente com o Estado democrático de direito.33

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27 Neste sentido, conferir Carvalho, A Atuação dos Juízes Alternativos Gaúchos no Processode Pós-Transição Democrática, p. 32; Prudente, Saque vs. Ilicitude, pp. 03-06; Batista,Política Criminal com Derramamento de Sangue, p. 145; Carvalho, A Política Criminal deDrogas no Brasil, p. 28.

28 Sobre a temática, verificar Paliero, Codice Penale e Normativa Complementare, p. 81;Ferrajoli, Quattro proposte di Riforma delle Penne, p. 50; e Ferrajoli, Giurisdizione eDemocracia, p. 303.

29 Sobre o tema, conferir Zaffaroni, Manual de Derecho Penal, pp. 520-521; Zaffaroni, PolíticaCriminal Latinoamericana, p. 167; Carvalho & Carvalho, Aplicação da Pena e Garantismo,pp. 70-91; e Heringer Jr., Co-Culpabilidade: A Responsabilidade da Sociedade pelo Injusto,pp. 44-54.

30 Neste sentido, ver Marques, Uma análise crítica do juízo de censura penal, pp. 89-90.31 Conferir, Cernicchiaro, Reincidência, pp. 04-05; Carvalho & Carvalho, ob. cit., pp. 61-70;

e Nassif, Direito Penal e Processual Penal, pp. 195-214.32 Carvalho, Lei para que(m)?, pp. 142-146 e Carvalho & Carvalho, ob. cit., pp. 141-142.33 Wunderlich, Por um Sistema de Impugnações no Processo Penal Constitucional Brasileiro,

pp. 18-19.

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A valoração direcionada ao sistema criminalizador sob a ótica dobem jurídico não reduziria a esfera da tutela penal aos bens fundamen-tais. Trata-se, antes ainda, de reduzir a esfera dos bens que julgamosfundamentais àquela das figuras que julgamos, realisticamente, quepodem ser julgadas pelo nosso sistema judiciário.39

Aliado ao critério da necessidade, fundamental na construção dosistema garantista a solidificação do princípio da materialidade da con-duta (nulla iniuria sine actione). Desde o pressuposto ilustrado da secu-larização, percebe-se que o direito penal abdicou de punir atitudesinternas, meros estados de ânimo pervertido, condições pessoais oucomportamentos imorais, perigosos ou hostis, exigindo tolerância detoda atitude ou comportamento não-lesivo a terceiros, visto não serfunção do direito (muito menos do direito penal) impor ou reafirmardeterminada concepção moral. O delito deixa de ser valorado quiapecatum (mala in se), representando violação do bem jurídico tuteladopelo preceito normativo (mala prohibita).

Nota Ferrajoli que, de Hobbes em diante – passando por Pufendorf,Thomasius, Voltaire e Beccaria, Bentham e John Stuart Mill – é precisa-mente isto que diferencia a modernidade jurídica da cultura jurídicapré-moderna, o liberalismo do obscurantismo. A cultura jurídica moder-na fundada sobre a liberdade individual, assim como a moral leiga fun-dada sobre a autonomia da consciência, nascem da sua recíproca auto-nomização. Não basta, para justificar a punição de um fato, que ele sejaconsiderado imoral; assim como não basta que este seja consideradojuridicamente permitido ou punido para que seja considerado moral-mente lícito ou ilícito.40

Posição semelhante é a de Louk Hulsman,41 quando, ao estabele-cer critérios à criminalização, sustenta a ilegitimidade de projetos legis-lativos voltados a tornar dominantes concepções morais sobre determi-nados comportamentos. Nenhum dano, por mais grave que seja, podeestimar-se penalmente relevante senão como efeito de uma ação. Atosinternos (pensamentos, intenções, vícios e maldade de ânimo) não sãoprejudiciais a ninguém, constituindo-se patrimônio inabalável do indiví-duo – o valor da interioridade moral e da autonomia da consciência é otraço distintivo da ética laica moderna, a reivindicação da absoluta licei-dade jurídica dos atos internos e até de um direito natural à perversida-

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39 Ferrajoli, Per un Programma di Diritto Penale Minimo, p. 66.40 Ferrajoli, Il Problema Morale e il Ruolo della Legge, p. 44.41 Hulsman, Descriminalização, p. 23.

ma tutela de bens com o mínimo necessário de proibições e punições.36

Desta perspectiva, o critério de criminalização seria a idoneidade dosistema em prevenir ataques concretos (dano e perigo concreto) a bensjurídicos individuais, e a sua capacidade de não gerar efeitos perversosmais danosos que a conduta incriminada. Outrossim, a política crimi-nalizadora deveria ser necessariamente acompanhada de políticaextrapenal de proteção destes mesmos bens, pois sua ação exclusivanão gera efeitos significantes.

Desde uma perspectiva interna, porém, o critério de eleição dobem jurídico encontraria guarida na Constituição. Ferrajoli indica trêsclasses de delitos que deveriam ser amplamente descriminalizadossob o amparo constitucional. Em termos quantitativos, deveriam serexcluídos os delitos de bagatela (contravenções, delitos punidos exclu-sivamente com pena pecuniária ou restritiva de direito), que não justi-ficariam o processo penal e muito menos a pena. Restabeleceria, pois,uma linearidade entre delito, processo e pena: delitos seriam apenasaqueles desvios dotados dos requisitos objetivos e subjetivos exigidos;penas seriam somente as restrições de liberdade, de tipo detentivo ououtros; processo seria apenas o procedimento com a finalidade de limi-tar a liberdade pessoal a fim de tutelar bens fundamentais.37

O segundo critério seria qualitativo, no qual o princípio da lesivi-dade permitiria considerar apenas as lesões concretas a terceiros (per-sone in carne ed ossa), excluindo condutas contra a personalidade doEstado; administração pública; atividade judicial; religião e piedadeaos mortos; ordem, fé e economia pública; indústria e comércio; mora-lidade, costumes, pudor e honra sexual; família e matrimônio; moral edeveres de assistência familiar; patrimônio et coetera. O autor justificaafirmando que o Estado, nos ordenamentos democráticos, não consti-tui bem ou valor em si. Assim, estes delitos – descritos normalmenteem termos vagos e valorativos opondo-se ao princípio da estrita legali-dade –, ficariam sem objeto e perderiam sua razão de existência.38 Nomesmo sentido, os casos de autolesão e crime impossível (v.g., prosti-tuição, tentativa de suicídio, embriaguez e uso/porte de drogas).

A terceira restrição é estrutural, pois tornaria imperativa a lesivi-dade concreta. Assim, deveriam ser transformados os crimes de perigoabstrato em delitos de dano ou perigo concreto ou, simplesmente, des-criminalizados, pois inadmissível o castigo da mera desobediência.

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36 Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 474.37 Ferrajoli, ob. cit., pp. 480-481.38 Ferrajoli, ob. cit., p. 481.

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gentes respostas do legislativo, freando a cultura legislativa de emer-gência. Criar-se-ia, pois, uma meta-garantia voltada a salvaguardar aspróprias garantias penais e processuais da legislação de emergência e,ao mesmo tempo, colocando um freio na inflação penal que hoje fezregredir o direito penal a uma substancial descodificação.46

3.1.6. O Projeto Minimalista: A Lei do Mais Fraco

Desde sua matriz genealógica, o garantismo penal se caracterizapor representar signo de racionalidade frente à barbárie. O radicalmonopólio do Estado na função punitiva exsurge como instrumento denegação da beligerância, fazendo com que os contratantes abdiquemda vingança privada.

Atualmente, a Constituição é o espaço no qual os reflexos destaopção se manifestam, visto ser instrumento de afirmação da razão:estes contratos sociais em forma escrita, que são os pactos constitucio-nais, estabelecem como limites e vínculos para a maioria pré-condiçõesdo viver civil.47

Como enunciação de um pacto legitimado formalmente pelo poderconstituinte originário e substancialmente pelos direitos humanos,cria-se uma esfera do inegociável, ou seja, matérias sobre as quais amaioria, sequer a unanimidade, pode deliberar ou deixar de deliberar.Esse plano da impossibilidade de negociação diz respeito fundamen-talmente à igualdade dos cidadãos perante a lei, tenham eles incorridoou não em sanções penais. Logo, a garantia dos seus direitos funda-mentais não poderia ser sacrificada sequer em nome do ‘bem comumou público’.

Elias Diaz argumenta que a dignidade, a liberdade ou a vida noson, desde luego, cosas que deban – ni puedan coherentemente – some-terse a votación ni quedar dependiendo de una u outra heterónoma deci-sión, pues no habría, en efecto, votación ni aducible decisión sin la exis-tencia de esa fundamental libertad.48 Os direitos fundamentais adqui-rem, portanto, o papel de objeto e limites do direito (penal) nas socie-dades democráticas.

Assim, los derechos fundamentales se configuran como otros tan-tos vínculos substanciais impostos a la democracia política: vínculos

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46 Ferrajoli, La Pena in una Società Democratica, p. 538.47 Ferrajoli, ob. cit., p. 528.48 Diaz, Ética Contra Politica, p. 32.

de... Existe, enfim, uma esfera da vida das pessoas intangível ao poder doEstado e subtraído ao controle policialesco: não apenas as intenções eidealizações, mas com maior razão os erros de pensamento e de opinião.42

A relação de causalidade entre a ação e o resultado danoso é, portanto,requisito essencial na configuração dos elementos do delito.

O princípio da culpabilidade encerraria o rol dos limites de elabo-ração legislativa, definindo como injustificável a qualificação delitivade atos que não pressupõem decisão livre de seres autônomos e capa-zes de autodeterminação. Compreensão e vontade seriam o núcleocentral das investigações sobre a culpabilidade, excluindo qualquertipo de responsabilidade penal objetiva.

No entanto, percebe-se na atualidade que os sistemas punitivos,rompendo com os liames de racionalidade expostos acima, transfor-mam-se en sistemas de control siempre más informales y siempre menospenales, produzindo una crisis del derecho penal, o sea de ese conjuntode formas y garantías que le distinguen de outra forma de control socialmás o menos salvage y disciplinario.43 Os vínculos com os pressupostosgarantistas de previsibilidade mínima, racionalidade e cognição sãodesfeitos, rememorando modelos desjuridicizados e desregulamenta-dos de culpabilidade objetiva.

Os modelos jurídico-penais contemporâneos, ao violarem os prin-cípios expostos, potencializaram sistemas cuja principal característicaé a inflação penal. Desta forma, ofuscaram os limites entre a esfera doilícito penal e a esfera do ilícito administrativo, e até mesmo do ilícito,transformando o direito penal em uma fonte obscura e imprevisível deperigos para qualquer cidadão, subtraindo-lhe a sua função simbólicade intervenção extrema contra as ofensas mais graves e oferecendo, porisso, o melhor terreno de cultura à corrupção e ao arbítrio.44

Estratégia eficaz direcionada à recapacitação da teoria da leipenal como instrumento de ultima ratio e limitação do poder seria areconstrução dos sistemas a partir de um processo de recodificaçãopenal. Simultaneamente, fundamental a introdução, em sede constitu-cional, de uma ‘reserva de código’45 como forma de impedir as contin-

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42 Ferrajoli, Diritto e Ragione, pp. 484-485.43 Ferrajoli, El Derecho Penal Mínimo, p. 44.44 Ferrajoli, La Pena in una Società Democratica, p. 532.45 Sobre a proposta de reserva de código, conferir Ferrajoli, Quattro proposte di Riforma

delle Penne, p. 50; Ferrajoli, Giurisdizione e Democracia, pp. 302-304; Ferrajoli, La Pena inuna Società Democratica, pp. 537-538; Ferrajoli, La Giustizia Penale nella Crisi del SistemaPolitico, pp. 81- 82.

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duo que violou a norma. O direito passa a ser encarado como alternati-va à guerra. Partindo do pressuposto de ser o estado beligerante anegação do direito, apenas este (direito) apresentar-se-ia como freio àirracionalidade, desproporcionalidade e desregulamentação.

A premissa revela um elogio ao direito, e à racionalidade jurídica,elevado a instrumento indispensável na construção da cidadania, pres-supondo-o como única alternativa à violência dos delitos e das penas.A base contratualista da justificação do direito e da pena, legado dafilosofia iluminista, ressurge em novos parâmetros. Da negação doestado selvagem baseado na passionalidade, o direito (penal) configu-raria uma razão artificial de tutela do débil contra os desejos de repre-sália. Do exposto, tem-se a justificativa do modelo garantista: o direitopenal e processual penal legitimam-se como lei de tutela do mais fraco.

O paradigma garantista assume como única justificativa do direi-to penal a sua função de lei do mais fraco, em alternativa a lei do maisforte que vigoraria na sua ausência: não, portanto, genericamente, adefesa da sociedade, mas a defesa do mais fraco, que no momento docrime é a parte ofendida, no momento do processo o réu, e no momentoda execução penal o condenado.51

Note-se que se encontra em frontal oposição às propostas deDefesa Social. Nestas, o sistema é dirigido para o resguardo da socie-dade, sacrificando o infrator em prol do bem-comum; naquela, o objetode garantia são os direitos fundamentais do cidadão contra os anseiosde vingança (pública ou privada; individual ou coletiva).

O garantismo, pois, pode ser entendido, conforme as lições deLenio Streck, como técnica de limitação e disciplina dos poderes públi-cos, e por essa razão ser considerado o traço estrutural e substancialmais característico da democracia: garantias tanto liberais comosociais, expressam os direitos fundamentais do cidadão frente aospoderes do Estado, os interesses dos mais débeis em relação aos maisfortes, assim como tutela das minorias marginalizadas frente às maio-rias integradas.52

3.2. A teoria geral do garantismo

Viu-se que alguns dos sintomas da crise do direito e do processopenal contemporâneos podem ser refletidos na inflação legislativa e na

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51 Ferrajoli, La Pena in una Società Democratica, p. 529.52 Streck, O Trabalho dos Juristas no Estado Democrático de Direito, p. 44.

negativos. Ninguna mayoría, ni siquiera unanimidad, puede legitima-mente decidir la violación de un derecho de libertad o no decidir la satis-fación de un derecho social. Los derechos fundamentales, precisamenteporque están igualmente garantizados para todos y sustraídos a la dis-ponibilidad del mercado y de la política, formam la esfera de lo indecidi-bile que o de lo indecidibile que no; y actúan como factores no sólo delegitimación sino también, y sobre todo, como factores de deslegitima-ción de las decisiones y de las no-decisiones.49

Leciona Ferrajoli50 que, em matéria penal, sequer por unanimida-de pode um povo decidir ou consentir que um homem morra ou seja pri-vado sem culpa de sua liberdade; que pense ou escreva, ou não penseou não escreva; que se reúna ou não com outros; que case ou não comdeterminada pessoa ou que com ela decida ou não ter filhos et coetera.A garantia desses direitos corresponde a pré-condições de convivên-cia, sendo que sua lesão por parte do Estado justificaria o dissenso, aresistência e a guerra civil.

Todas as pessoas, independente de terem incorrido em sançãopenal, preservam e devem ter asseguradas condições de dignidade. Ogarantismo penal é, pois, um instrumento de salvaguarda de todos,desviantes ou não, visto que, em sendo estereótipo de racionalidade,tem como escopo minimizar a(s) violência(s) (públicas e/ou privadas).

Entretanto, os atuais modelos repressivo-defensivistas prescre-vem ao penal/carcerário uma função de ‘desterritorialização’ e‘descartabilização’ do homem, retirando-lhe os principais vínculos coma cidadania. É que tais modelos entendem o direito penal desde umalógica belicista na qual o desviante/delinqüente passa a ser considera-do inimigo, e como tal deve ser eliminado ou neutralizado (v.g. as teo-rias funcionalistas da pena). Trata-se da enunciação do penal comogarantia de todos contra um (o desviante), cujo efeito é legitimar a leido mais forte. A diferença em relação ao estado de natureza (contra-ponto da modernidade) é que a vingança deixa de ser individual parase tornar coletiva; os resultados, porém, são similares, quiçá idênticosou potencializados: a utilização emotiva e desproporcional da violência(institucional) contra aqueles (bodes expiatórios) que foram captura-dos pelo sistema.

O marco fundacional do garantismo nega este estado de guerra esua decorrente selvageria, percebendo a sanção como tutela do indiví-

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49 Ferrajoli, El Derecho como un Sistema de Garantías, p. 65.50 Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 900.

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Antes, porém, fundamental ressaltar que a expressão garantiapode ser empregada desde três entendimentos possíveis: (1o) proces-sual ou instrumental, que indica falsa a interrogação ‘o que é garantia’,podendo apenas ser formulada a questão ‘como se expressam ou comofuncionam as garantias’; (2o) final, visto que será garantista o sistemaque maximize a tutela dos direitos fundamentais; e (3o) gradual, poisnunca serão realizadas (ou não realizadas) todas as garantias e muitomenos existirão sistemas perfeitos, encontrando apenas modelos maisou menos garantistas ou antigarantistas.56 A satisfação das garantiasindividuais e sociais expressa nas constituições democráticas indica-riam, então, a maior ou menor adesão de determinado Estado ao siste-ma normativo garantista.

Imprescindível dizer, ainda, que o sistema jurídico de garantiasreflete essencialmente um modelo jurídico-penal de tradição liberal.Os contornos teóricos gerais referentes à teoria do direito e à teoriapolítica, apesar de fornecerem instrumentos suficientes ao estudoproposto, não passam de um esboço, de conceitos preliminares e ina-cabados de uma futura teoria geral do direito e da política. Repita-se:o aporte teórico garantista, não obstante as possibilidades deampliação do horizonte à crítica do direito e da política, é concebidocomo modelo doutrinário crítico das ciências penais (direito penal eprocessual penal, política criminal e criminológica, segurança públi-ca). Toda formulação sobre a teoria geral do direito e da política, por-tanto, não passa de especulação inicial e projetiva de modelos teóri-cos vindouros.

A ressalva é salutar porque indica os limites do garantismo e aprópria necessidade de reflexão crítica sobre o paradigma proposto.

Ao elaborar modelo normativo de freios ao poder público arbitrá-rio, a matriz garantista deixa clara sua vocação penal, isto é, sua potên-cia discursiva e prática possui um thelos determinado. Parece, pois,que nesta esfera está a limitação do horizonte de ação do garantismo.

Por outro lado, a pretensão universalista/generalista deve sermirada com certo cuidado, sobretudo porque a tendência das ‘teoriasgerais’ no campo jurídico é adquirir contornos totalitários em face daexclusão de verdades outras que ficam situadas à margem. As teoriasgerais, não invariavelmente, ofuscam as particularidades, reduzindo,quando não excetuando, a diversidades dos sistemas autônomos – v.g.,

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56 Peña Freire, La Garantía en el Estado Constitucional de Derecho, pp. 25-26.

falta de eficácia tutelar dos direitos individuais por parte do poderpúblico. Tal fato decorre desta incapacidade do sistema genealogica-mente liberal alcançar as demandas impostas, num primeiro momento,pelo Estado social e, na atualidade, pelos riscos gerados na sociedadepós-industrial. Agrega-se a isto a incursão do modelo em níveis abis-sais de ilegalidade funcional (administrativa e judicial), ou seja, a vio-lação por parte do Estado de sua própria legalidade ordinária e consti-tucional.

Ferrajoli53 visualiza outros dois aspectos relevantes para o diag-nóstico da atual crise do direito: (a) a inadequação estrutural das for-mas do Estado de direito às funções do Welfare State decorrente dafalta de elaboração de um sistema de garantias dos direitos sociaiscomparável às garantias tradicionalmente disponíveis para a proprie-dade e a liberdade – os direitos sociais, como se sabe, são mais difíceisde proteger do que os direitos de liberdade54 –; e (b) o deslocamento doslugares da soberania fruto da alteração na hierarquia das fontes, oca-sionando o enfraquecimento do constitucionalismo nacional face àausência de um constitucionalismo internacional – a proteção interna-cional é mais difícil do que a produzida no interior do Estado, em parti-cular dentro de um Estado de direito.55

A crise descrita abala profundamente o princípio da legalidade,gerando exercícios de poder autoritários em detrimento das garantiase do anseio, mormente em países periféricos, de construção da demo-cracia através do paradigma do Estado de Direito.

Na tentativa de estabelecer novos vínculos capacitadores de umsistema de proteção dos direitos fundamentais e da democracia, a teo-ria garantista propõe a alteração de três dimensões da esfera jurídico-política que subordinam a prática penal: (1a) a revisão crítica da teoriada validade das normas e do papel do operador jurídico (plano da teo-ria do direito); (2a) a redefinição da legitimidade democrática e dos vín-culos do governo à lei (plano da teoria do Estado); e (3a) a reavaliaçãoconceitual do papel do Estado (plano da teoria política). A partir destatríplice (re)avaliação nasce a possibilidade de construção de uma teo-ria geral do garantismo como parâmetro de racionalidade, justiça elegitimidade da intervenção punitiva.

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53 Ferrajoli, El Derecho como Sistema de Garantías, pp. 61-62.54 Bobbio, L’ Età dei Diritti, p. 63.55 Bobbio, ob. cit., pp. 63-64.

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penal, substitui o modelo de fontes imprecisas e abertas na construçãoda categoria crime. Intenta estabelecer uma previsibilidade mínimapara o cidadão no uso e gozo de seus direitos, dado a exigência de lexpraevia, que condiciona e limita o poder na interferência ilegítima naesfera da liberdade. Os processos de codificação oitocentistas expres-sam este ideal e marcam a construção do Estado de direito. Nestemodelo, portanto, a legitimidade está adstrita à legalidade, sendomeramente formal a legitimação do poder público.

Muito embora a construção do modelo de vínculos do poder àlegalidade tenha representado substancial avanço no processo de afir-mação dos direitos contra os poderes, a idéia conjugada de legitimida-de e legalidade originou uma teoria jurídica assentada no dogma dapresunção de regularidade dos atos do poder, identificando a validadedas normas com sua mera existência.58

Demonstra Serrano que a dogmática tradicional entende comonorma jurídica a proposição prescritiva dotada tão-somente de vigência.Em sendo uma regra formulada com a autorização de outra norma hierar-quicamente superior, estar-se-ia perante uma norma jurídica; aliás, nointerior do modelo paleopositivista, hablar de norma vigente es un pleo-nasmo visto que determinar la vigencia de una norma equivale a cons-truirla. El problema de la vigencia es, pues, el problema de la existencia.59

A noção de validade das normas repassada ao senso comum teóri-co dos juristas permanece restrita à sua mera incorporação formal no sis-tema, isto é, se a norma, ato ou decisão respeita o processo de elabora-ção predeterminado, ingressa na órbita do jurídico como norma válida.

Segundo tal concepção, prevaleciente entre los máximos teóricos delderecho – de Kelsen a Hart y Bobbio – la ‘validez’ de las normas se identifi-ca, sea cual fuera su contenido, con su existencia: o sea con la pertenenciaa un cierto ordenamiento, determinada por su conformidad con las normasque regulan su producción y que también pertenecen al mismo.60

Contudo, esclarece Ferrajoli61 que esta concepção puramente for-mal da validade é fruto de uma simplificação, legada da concepção oni-potente do legislador no Estado liberal e derivada de uma incompreen-são da complexidade do termo legalidade no Estado constitucional dedireito. Outrossim, registre-se que o princípio da regularidade dos atos

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58 Gianformaggio, Diritto e Ragione tra Essere e Dover Essere, p. 28.59 Serrano, Validez y Vigencia, p. 23.60 Ferrajoli, El Derecho como Sistema de Garantías, p. 63.61 Ferrajoli, Sul Ruolo Civile e Politico della Scienza Penale nello Stato Costituzionale di

Diritto, p. 666.

no direito, o efeito deletério produzido pela teoria geral do processo emrelação ao processo penal.57

3.2.1. Garantismo e teoria crítica do direito: a validade das normas e o papel do jurista

O princípio da legalidade, condicionado à estrutura hierarquizadado ordenamento jurídico balizado pela Constituição, é o ponto de par-tida na construção do modelo garantista, sujeitando-o, de forma suigeneris, às regras do positivismo jurídico.

Viu-se, quando da construção genealógica do modelo ilustrado degarantias, que o princípio da legalidade, principalmente da legalidade

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57 A pretensão universalista no processo capacita o conteúdo e o escopo da ‘teoria geral’desde o processo civil. Portanto, o direito processual penal é afetado por categorias típi-cas do processo civil, deformando-o. A teoria geral do processo civil, encoberta pela cha-mada teoria geral do processo, penetra no nosso processo penal e, ao invés de dar-lhe umateoria geral, o reduz a um primo pobre, uma parcela, uma fatia da teoria geral (Coutinho,A lide e o conteúdo do processo penal, pp. 118/19).O problema está no fato de que o processo, apesar de sua natureza eminentementepública, é condicionado finalisticamente pela estrutura do direito material que lhe dásubsistência. No processo civil, os interesses em jogo são, fundamentalmente, patrimo-niais, diferenciando-se do processo penal, cuja objetivação é limitar o poder punitivo doEstado em prol da liberdade do indivíduo. Assim, inadmissível uma ‘teoria geral’ que dêconta de atividades diferenciadas da jurisdição, pois a unificação do processo, defendidapor tantos autores, pode levar a um tipo de raciocínio equivocado, de conseqüênciasdesastrosas” (Suannes, Os fundamentos éticos do devido processo penal, p. 136). Postoisto, leciona Jacinto Coutinho que teoria geral do processo é engodo; teoria geral é a doprocesso civil e, a partir dela, as demais. Inadmissível, isso sim, é usar no processo penal omesmo discurso, como se o referencial semântico fosse igual (e, portanto, desprezando-o),tudo em nome de uma pseudo-coerência sistêmica que, no final das contas, é sintática eacaba legitimando o status quo, nem que seja fruto da mais terrível das ditaduras(Coutinho, ob. cit., p. 122).Nesta perspectiva, pertinente a metáfora de Lenio Streck quando visualiza como a críti-ca (‘outro’ em relação ao pensamento único) é recebida pelos detentores da fala autori-zada: “(...) é necessário chamar a atenção dos operadores/intérpretes para o fato de que,nesse processo, de (inter)mediação, pelo qual a dogmática jurídica (re)produz os discursosde verdade, estes ‘nunca são o resultado de um emissor isolado, estando vinculados a umaprática comunitária organizada em torno de uma subjetividade específica dominante.Nenhum homem pronuncia legitimamente palavras de verdade se não é filho (reconheci-do) de uma comunidade ‘científica’, de um monastério de sábios’ (Warat). E é justamentedesse monastério de sábios que emana a ‘fala autorizada’ que (re)produz o habitus docampo jurídico. Os eleitos, enfim, aqueles que podem falar/dizer-a-lei-e-o-Direito, recebemo cetro (o skeptron da obra de Homero) de que fala Bourdieu. Estão, assim, (plenamente)autorizados a fazer, inclusive, ‘extorsões de sentido’ e ‘abusos significativos’. E quem serebelar, quem tiver a ousadia de desafiar esse processo de confinamento discursivo, enfim,quem tentar entabular um contra-discurso, um discurso crítico, responde(rá) pelo (hedino-do) crime de ‘porte ilegal da fala’ (Streck, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, p. 202).

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validade es aquel en virtud del cual se declara (si es positivo) que unadeterminada norma (cuya vigencia formal se ha comprobado como ver-dadera) se adecua además en su contenido a las determinaciones exis-tentes en niveles superiores del ordenamiento, con independencia deque estas determinaciones sean reglas o principios, valorativas o neu-tras, justas o injustas, eficaces o ineficaces.65

A tese positivista da presunção de regularidade dos atos de poder,calcada na visão acrítica e contemplativa do jurista, é negada, sobretu-do porque fundada na (ingênua) noção da existência de um ‘poderbom’. Não basta a sintonia da norma com os parâmetros formais esta-belecidos para sua validação, visto que eles nada garantem.Imprescindível é sua harmonia com os direitos e garantias que expres-sam a racionalidade material (substantiva) do estatuto fundamental.

Logo, o conceito de vigência refere-se (não genericamente aos atosmas) à forma dos atos normativos: entendendo-se com esta expressão oconjunto dos requisitos empíricos (formalidades, procedimentos, compe-tência e semelhantes) que fazem de um ato lingüístico preceptivo umadecisão jurídica (por exemplo uma lei, um negócio, uma sentença, ou umato administrativo); enquanto que o conceito de ‘validade’ se refere aosignificado dos mesmos atos, ou seja, às normas por estes produzidas. Asduas figuras, portanto, são predicáveis sobre a base de duas classesdiversas de normas sobre a produção: as normas formais, que vinculama forma dos atos normativos, e as normas substanciais que vinculam oseu significado.66

A tradição paleopositivista considera válida a norma produzidaexclusivamente segundo critérios formais, mesmo que desrespeitasseo conteúdo material (norma desubstancializada), até declaração deinvalidade pelo órgão competente. A teoria descrita, ao contrário, clas-sifica tal norma como dotada apenas de validade formal (vigência),mas inválida substancialmente, não podendo, pois, gerar qualquer tipode alteração na realidade (eficácia). Ou seja, como anota Wunderlich, éevidente que nem toda norma vigente é também válida.67

Assim, seguindo as lições de Cadermatori,68 poder-se-ia distinguirvigência, validade e eficácia das normas jurídicas: considera-se vigen-te a norma despida de vícios formais; considera-se válida a norma imu-

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65 Idem.66 Ferrajoli, Note Critiche ed Autocritiche intorno alla discussione su ‘Diritto e Ragione’, p. 467.67 Wunderlich, ob. cit., p. 16.68 Cadermatori, ob. cit., pp. 113-114.

do poder, simplificador do conteúdo do princípio da legalidade, foiigualmente reforçado, no Estado Social, com a preponderância doExecutivo sobre os outros poderes constituídos.

Percebe Cadermatori62 que esse arcabouço conceitual não leva emconta o fato de que o moderno Estado constitucional incorporou diver-sos princípios em seus estatutos. Segundo o autor, os princípios deter-minam valorações ético-políticas e de justiça das normas por ele e neleproduzidas, agindo como critérios de (des)legitimação não mais exter-nos ou jusnaturalistas (moral ou político), mas agora internos ou posi-tivistas (jurídico).

Ocorre que, com a recepção dos valores iluministas pelasConstituições, a arquitetura do ordenamento e os vínculos entre as nor-mas modificaram-se. A cadeia principiológica constitucionalizada(direitos fundamentais) determinou regras sobre a produção legal nãoreduzidas apenas às suas condições formais (procedimentais e de com-petência), mas, sobretudo, relativas ao seu conteúdo (vínculos subs-tanciais).

A incorporação constitucional dos direitos fundamentais impõe àteoria do direito revisão das esferas da validade e vigência das normas,e a necessária de separação destas categorias, principal erro do ‘paleo-positivismo dogmático’ (dogmatismo).

Como ressalta Ferrajoli,63 os conceitos de vigência e validade sãoassimétricos e independentes: enquanto vigência diz sobre a forma dosatos normativos, ou seja, é questão de correspondência ou subsunçãodas normas às regras de procedimento e competência; validade corres-ponde ao significado, trata-se de uma questão de coerência ou compa-tibilidade das normas produzidas com os valores materiais encontra-dos nas Constituições. Os direitos fundamentais equivaleriam aos vín-culos de substância, e não de forma, que condicionam a validade dasnormas produzidas, indicando a teleologia desse moderno artifício queé o Estado constitucional de direito.

Esclarece Serrano que o juízo de vigência es aquel que va referidoa la mera constatación de la existencia de una norma en el interior de unsistema jurídico. Es un juicio de hecho o técnico, pues se limita a cons-tatar que la norma cumple los requisitos formales de competencia, pro-cedimento, espacio, tiempo, materia y destinatario; y como tal juicio dehecho es susceptible de verdad o falsedad.64 Ao contrário, o juízo de

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62 Cadermatori, ob. cit., p. 111.63 Ferrajoli, ob. cit., p. 64.64 Serrano, ob. cit., p. 51.

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exclusão do sistema, gerando a otimização do próprio princípio dalegalidade e não, como querem alguns afoitos, sua negação.

Percebe-se, pois, outra importante crítica ao paradigma positivis-ta dogmático reinante nas ciências jurídicas. As lacunas e as antino-mias nos níveis horizontais e verticais, normalmente entendidas comomera aparência visto ser o sistema dotado de completude e coerência,isento de falhas e ambigüidades, são expostas.

A assunção do modelo paleopositivista levou os ordenamentosatuais a alcançarem níveis patológicos de lesão aos direitos fundamen-tais. A submissão mitologizada do jurista ao sistema de legalidademeramente formal acabou por determinar práticas ilegítimas.Temerário com as ofensas às formas, o pensamento positivista tradicio-nal acabou gerando um campo de ilegalidades no conteúdo do saber.

A ruptura proposta pelo garantismo coloca em evidência esteesquema, conferindo um papel crítico e criativo ao jurista, na denúnciadas antinomias e lacunas existentes, propondo de dentro as correçõesprevistas pelas técnicas garantistas do que o ordenamento dispõe;e/ou elaborar e sugerir de fora novas formas de garantia idôneas areforçar os mecanismos de autocorreção.71

Caberia à crítica do direito não ‘organizar’ o ordenamento, dando-lhe o falso acabamento de coerência e completude, mas, ao contrário,explicar sua incoerência e sua falta de completude mediante juízos deinvalidação das normas inferiores e, correspondentemente, de não efeti-vidade das normas superiores... A única coisa que não se pode fazer, sobpena de incoerência e inconsistência científica do discurso jurídico, éocultar as antinomias e as lacunas ou, ainda, afirmar, por força de umaatitude dogmaticamente avalorativa e contemplativa das leis (somenteporque vigentes), a simultânea validade tanto das normas que permitemcomo das que proíbem um mesmo comportamento.72

A proposta garantista nega os mitos do positivismo dogmáticodedicados a uma visão meramente contemplativa de ordenamentosjurídicos absolutamente incapazes de responder às demandas dassociedades contemporâneas (complexas).

Resta lembrar ainda que o ‘convite’ à dúvida e à permanenteincerteza sobre a validade das leis, sua aplicação, coerência, plenitudee unidade, significa demarcar uma postura frente o direito. Desta posi-ção projeta-se um horizonte (sempre utópico) de incessante busca de

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71 Ferrajoli, El Derecho como Sistema de Garantías, p. 67.72 Ferrajoli, Direitto e Ragione, pp. 921-922.

nizada contra vícios formais e materiais; e considera-se eficaz a normarealmente observada pelos seus destinatários. Nesse sentido, o juízode vigência é binário (de possibilidades) e fático, sendo que o juízo devalidade é gradual (de probabilidades) e valorativo; o juízo de eficácia,por seu turno, seria apenas fático. Todavia, enquanto este é externo aosistema, aqueles são internos.

O modelo garantista de teoria geral das normas, muito emboraassumindo seu caráter ideal-típico, não se contenta com a mera propo-sição descritiva isenta de respaldo no plano da eficácia. Além de rom-per a imagem analítica da norma jurídica, tal composição teórica pro-porciona redefinições relevantes no papel do jurista, principalmente dojulgador, em seu mister de controle da constitucionalidade.

A ruptura entre os significados das normas transpõe ao intérpreteo dever de apenas estar submetido às leis válidas, tanto no plano for-mal como substancial. É que, em sendo o controle da legitimidadeconstitucional das leis posterior e eventual, freqüentemente acontecede uma norma inválida entrar e prosseguir em vigor enquanto sua inva-lidade não seja declarada pelo órgão competente, ou, situação maisgrave, perpetuar-se simplesmente por não ser argüida sua inconstitu-cionalidade abstrata ou ficar restrita ao moroso controle difuso.69

Como ensina Streck, é relativamente fácil delinear um modelogarantista, sendo difícil a tarefa de modelar técnicas legislativas e judi-ciais adequadas para assegurar a efetividade dos direitos fundamen-tais. Percebe o constitucionalista gaúcho que a forma de potencializaro valor normativo da Constituição é delegar ao jurista a séria tarefa decontaminar o direito infraconstitucional, pois garantismo deve serentendido como maneira de fazer democracia dentro e a partir do direi-to. Como ‘tipo ideal’, o garantismo reforça a responsabilidade ética dooperador do direito.70

O papel da jurisdição expresso pela teoria do garantismo é dedefesa intransigente dos direitos fundamentais, topos hermenêutico deavaliação da validade substancial das leis. O vínculo do julgador àlegalidade não deve ser outro que à legalidade constitucionalmenteválida, sendo imperante sua tarefa de superador das incompletudes,incoerências e contradições das leis inferiores, em respeito ao estatutomaior. A denúncia de invalidade (constitucional) das leis permite sua

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69 Idem, pp. 114-115.70 Streck, ob. cit., p. 48.

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referencial hermenêutico dos conteúdos suscetíveis às deliberações dolegislador, inclusive constituinte, porque situada em nível superior aopróprio poder legiferante (ordinário ou originário). As normas constitu-cionais situam-se encima de los poderes del Estado y fuera del campode acción y pugna política.76

No Brasil, a afirmação ganha clareza com a leitura do artigo 60,§ 4o, IV, da Constituição da República, o qual, ao estabelecer os direi-tos e garantias fundamentais como cláusulas pétreas, impossibilitasequer sejam objeto de deliberação à proposta de emenda constitucio-nal tendente a aboli-los. Não só o poder legislativo ordinário, mas inclu-sive o originário (reformista), são ilegítimos para excluir os direitos egarantias fundamentais.

Assim, se democracia formal diz respeito ao quem e ao como dasdecisões, consolidando regras procedimentais de expressão da vonta-de da maioria, a democracia substancial estabelece limites ao que pode(ou não) e deve (ou não) ser deliberado por esta mesma maioria, confi-gurando normas substanciais limitativas ou imperativas do Estadoconstitucional de direito. Os direitos fundamentais, como afirmadoalhures, são o(s) limite(s) e o objeto do direito, caracterizando o fim e osmeios, bem como o sentido das normas e das decisões que podem ounão ser tomadas nos Estados democráticos.

Percebe Ferrajoli que os direitos fundamentais sancionados nasconstituições – desde os direitos de liberdade aos direitos sociais – ope-ram como fontes de deslegitimação e invalidação, como de legitimaçãoe de validação. É nesse sentido que podemos afirmar que nenhumamaioria, em um Estado constitucional de direito, pode decidir sobre asupressão da vida de um homem ou de sua liberdade, ou não decidirsobre as medidas necessárias para assegurar a subsistência, a saúde, ainstrução, entre outras.77

O sistema político estatal regido por normas, isto é, pelo princípioe não pelo Príncipe, é um fenômeno relativamente recente, pois nascena modernidade. O direito, que representa a razão artificial desta enti-dade política, caracteriza-se como instrumento e limite aos seus fins.Tratam-se, direito e Estado, de duas realidades complementares, muitoembora autônomas, das quais o imperativo do respeito aos direitos fun-damentais corresponde à sua fundação.

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76 Peña Freire, ob. cit., p. 59.77 Ferrajoli, ob. cit., pp. 506-507.

coerência – dirigida a exigir a anulação das normas inválidas –, pleni-tude – na criação de garantias aptas a impedir violações –, e unidade –na tentativa de criação de um constitucionalismo mundial adequadopara restaurar uma hierarquia minimamente racional de fontes.73

3.2.2. Garantismo e Estado de direito: as visões da democracia

A divisão das normas que condicionam vigência e validadeamplia-se e permite duas visões diferenciadas da democracia: demo-cracia formal (ou política) e democracia substancial.

O primado dos direitos fundamentais, locados naqueles contratossociais em forma escrita que são as cartas constitucionais, em geralemanadas por maiorias qualificadas,74 identifica não somente o nortede interpretação das normas e o critério de validade das decisões, masaltera a teoria do Estado e da democracia.

Se na concepção clássica do Estado de direito os atos do poderconstituído são exercidos per leges, e o princípio da legalidade formalrege e condiciona a validade das decisões do poder, no Estado consti-tucional de direito o exercício de governo ocorre sub leges. O princípioda legalidade, portanto, além de formal, carece de feição substancialdevido à recepção dos direitos fundamentais, submetendo todo poder,inclusive o legislativo, ao direito, configurando estrutura escalonada denormas que legitimam as de nível inferior.

O princípio da legalidade substancial, como reitera Peña Freire,75

predetermina a validade, de modo que todo poder deve ser limitadopela lei, e condiciona as formas, os procedimentos de atuação normati-va ou executiva e os conteúdos de que se possa dispor.

A fundamental diferença entre estes dois modelos de Estadomoderno é a de que no primeiro (Estado de direito ou legislativo) osvínculos do poder estão restritos à legalidade formal, enquanto nosegundo (Estado constitucional ou democrático de direito) as normasconstitucionais que versam sobre os direitos e garantias fundamentaissão dotadas de caráter vinculante. Os direitos fundamentais, para alémdo caráter exclusivamente descritivo, transforma a Constituição em

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73 Ferrajoli, El Derecho como Sistema de Garantías, p. 69.74 Ferrajoli, Derechos y Garantías: La Ley del más Débil, p. 53.75 Peña Freire, ob. cit., p. 50.

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coetera). Definitivamente, o sentido de democracia não correspondemais à legitimidade procedimental das decisões majoritárias, poisestas não têm poder deliberativo absoluto (uma decisão pode ser majo-ritária e autoritária ao mesmo tempo).

Para justificar a ilegitimidade do poder das maiorias organizadasem detrimento dos direitos fundamentais, socorremo-nos novamentede Peña Freire quando sustenta que la preservación de los derechosintegra el primer nivel de consenso y que éste precede a la elección delos procedimientos para la resolución de conflictos o para la adopción dedecisiones. La justificación de la afirmación es posible si suponemos quela intangibilidad de los derechos vitales es criterio inicial con el que seacude a la negociación; es más, es el motivo de la negociación misma.81

Outra diferença fundamental trazida pelo modelo garantista é aintegração entre as diversas espécies, até então dicotômicas, de gera-ções jurídicas, na trilha da teoria crítica dos direitos humanos. Os direi-tos fundamentais não podem ser cindidos em ‘eras’, visto que direitosde liberdade, direitos de igualdade e direitos de solidariedade conglo-bam um todo orgânico de tutela da dignidade da pessoa humana. Nãohá, portanto, neste modelo ideal, oposição entre direitos liberais esociais, pois ambos configuram-se como direitos fundamentais. A ple-nitude das funções do Estado liberal e do Estado social representaria agarantia dos direitos (individuais, sociais e transindividuais) contra ospoderes (do Estado ou das maiorias organizadas). Daqui nasce a prola-tada fórmula do projeto democrático garantista: Estado e direito míni-mo na esfera penal (direitos e garantias sobre os quais não se podedecidir), Estado e direito máximo na esfera social (direitos e garantiasque o Estado não pode deixar de satisfazer).

A originalidade da concepção garantista, ao incorporar os direitosindividuais aos coletivos e difusos, embasa a inação político-criminal ea comissão administrativa na efetivação dos direitos sociais.

Contudo, como percebe Norberto Bobbio, os direitos sociais colo-cam problemas superiores de resolução, se comparados aos direitosindividuais, porque requerem uma tutela mais ativa do Estado: enquan-to os direitos de liberdade nascem contra o superpoder do Estado, paralimitar o seu poder, portanto; os direitos sociais exigem para a sua atua-ção prática, isto é, para a passagem da declaração puramente verbal à

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81 Peña Freire, ob. cit., p. 66.

Como ensina Peña Freire,78 a expressão ‘Estado de direito’ podeser considerada inclusive um pleonasmo, porque todo Estado é Estadode direito, integrando-se na mesma ordem conceitual. Seriam Estadosde direito inclusive os Estados autoritários, desde que tenham fonte eforma normativa, e o poder seja exercido de acordo com as normas. Oque em realidade diferenciaria Estados de direito e Estados democráti-cos de direito seria a previsão e o respeito aos instrumentos de criação,incorporação e aplicação dos sistemas de ‘direitos sobre o direito’.

Os vínculos expressos pelos direitos fundamentais à validade dasdecisões representariam, pois, técnicas contra possíveis tentações des-póticas ou paternalistas da maioria.79

Desde a perfectibilização do paradigma do Estado de direito, dota-do de Constituição rígida incorporadora dos direitos fundamentais,nasce a dimensão substancial não só do direito, mas da democracia.Assim, las dos classes de normas sobre la producción jurídica que se handistinguido – las formales que condicionan la vigência, y las sustancialesque condicionan la validez – garantizam otras tantas dimensiones de lademocracia: la dimensión formal de la ‘democracia política’, que hacereferencia al quién y al como de las decisiones y que se halla garantizadapor las normas formales que disciplinan las formas de las decisiones, ase-gurando con ellas la expresión de la voluntad de la mayoria; y la dimen-sión material de la que bien podría llamarse ‘democracia sustancial’puesto que se refiere al que es lo que no puede decidirse o debe ser deci-dido por qualquier mayoría, y que está garantizada por las normas sus-tanciales que regulan la sustancia o el significado de las mismas decisio-nes, sob pena de invalidez, al respecto de los derechos fundamentales yde los demás principios axiologicos establecidos por aquella.80

Os direitos fundamentais correspondem ao núcleo de legitimidadesubstancial do Estado democrático de direito e estabelecem um pólorígido de justiça material independente dos ‘desejos’, livres ou manipu-lados. É que a idéia de democracia reduzida à expressão da vontade damaioria não satisfaz às expectativas nascidas com o processo de posi-tivação, generalização, internacionalização e especificação dos direitoshumanos, podendo, inclusive, demonstrar-se autoritária, devido à ten-dência de tornar universal determinada moral, excluindo os direitosdas minorias (sexuais, raciais, étnicas, etárias, sociais, econômicas et

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78 Peña Freire, ob. cit, p. 41.79 Ferrajoli, Note Critiche ed Autocritiche intorno alla Discussione su ‘Diritto e Ragione’, p. 507.80 Ferrajoli, El Derecho como Sistema de Garantías, p. 65.

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parâmetros de avaliação interna do sistema jurídico-político. Capacitacritérios de (des)legitimação das normas e decisões contrárias aosdireitos fundamentais desde dentro do modelo, criando uma metodolo-gia interpretativa capaz de desmascarar os mitos de plenitude e coe-rência do ordenamento, e da democracia como sistema de decisão vin-culado apenas à vontade da maioria.

Todavia, o aporte garantista permite ainda outra ruptura que pos-sibilitará compreensão do sistema jurídico a partir do seu exterior, qualseja, a separação entre ponto de vista interno (normativo) e externo(axiológico) decorrente da cisão ilustrada entre direito e moral (princí-pio da secularização).

Se o primeiro arcabouço teórico (teoria das normas e teoria doEstado) permite o estudo da validade das leis e decisões dos poderes,o segundo (teoria política) viabiliza critérios de justiça do próprio siste-ma, operando a (des)legitimação ético-política do direito e do Estado.

Assim, se o garantismo estabelece um modelo normativo de inva-lidação das normas vigentes (teoria crítica do direito) e do exercícioarbitrário dos poderes das maiorias organizadas (teoria democrática),desde sua concepção filosófico-política permite a crítica e a deslegiti-mação de fora das instituições jurídicas positivas, sobre a base da rígidaseparação entre direito e moral, ou entre validade e justiça, ou entreponto de vista jurídico ou interno e ponto de vista ético-político ou exter-no ao ordenamento.87 Importante ressalvar que o sentido do termo‘moral’ empregado neste momento diz respeito aos critérios de legiti-mação externa do sistema normativo,88 ou seja, é termo vinculado aosvalores extra-ordem jurídica, e não à concepção de moral individual(foro interno) como foi trabalhado na aferição do princípio da seculari-zação no direito penal.

A idéia de Estado como entidade teleologicamente direcionada àproteção dos direitos fundamentais permite a afirmação de que a legiti-midade do modelo jurídico-político não é interna e vertical, mas externae horizontal. A estrutura do direito e do Estado não é justificada em simesma, pois o seu referencial é dirigido à dignidade da pessoa humana.

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87 Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 922.88 Afirma Ferrajoli que a palavra ‘moral’ deve ser entendida neste contexto, em sentido lato,

para designar a justificação externa ou meta-jurídica das proibições ou das punições;tanto que me parece preferível utilizar em seu lugar a expressão ‘ponto de vista externo’,mais genérica e menos comprometedora, em oposição ao ‘ponto de vista interno’ que é odo direito (Ferrajoli, Note Critiche ed Autocritiche intorno alla Discussione su ‘Diritto eRagione’, p. 519).

sua proteção efetiva, exatamente o contrário, ou seja, o aumento dospoderes do Estado.82

Estabelecidos os modelos tendenciais de Estado democrático dedireito e Estado autoritário segundo os maiores ou menores vínculoscom os direitos fundamentais, conclui-se preliminarmente que, devidoao fato de as propostas garantistas coligarem teleológica e processual-mente Estado liberal e Estado social, direitos de liberdade, civis e polí-ticos e direitos sociais e transindividuais, o paradigma anunciado ultra-passa a estrutura liberal, ainda que entendido como um liberalismo suigeneris.83 A proposta configuraria um modelo de ‘liberal-socialismo’,porque não contrapõe, mas combina e concilia, dentro de um mesmoparadigma, direitos e garantias liberais individuais e direitos e garantiassociais.84

Importantíssimo ainda ressaltar que Ferrajoli não inclui no rol dosdireitos fundamentais os direitos patrimoniais.85 Se os direitos funda-mentais correspondem a este rígido núcleo substantivo de legitimaçãodemocrática (interna e externa) do Estado de direito devido ao seucaráter indisponível e inalienável, os direitos patrimoniais (inclusive odireito de iniciativa econômica e de mercado) não poderiam aqui estarincluídos, pois isentos daqueles pressupostos caracterizadores.Diferentemente dos direitos fundamentais, estes são ontologicamentealienáveis e acumuláveis. Como lembra Eligio Resta, os direitos funda-mentais podem ser definidos como direitos inclusivos,86 ao passo que osdireitos patrimoniais seriam direitos cujo exercício só pode ser conce-bido na exclusão do ‘outro’.

3.2.3. Garantismo e filosofia política: teoria heteropoiética: tolerância e resistência à opressão

O modelo do Estado democrático de direito construído a partir daseparação entre racionalidade formal e material (validade e vigência) edemocracia política e substancial possibilita, ao operador do direito,

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82 Bobbio, L’ Età dei Diritti, p. 72.83 Sobre o liberalismo sui generis de Ferrajoli, conferir Resta, La Ragione dei Diritti, p. 440;

Guastini, I Fondamenti Teorici e Filosofici del Garantismo, pp. 181-182; e Cadermatori, ob.cit., p 107.

84 Ferrajoli, Note Critiche ed Autocritiche intorno alla Discussione su ‘Diritto e Ragione’, p.509.

85 Ferrajoli, ob. cit., p. 508.86 Resta, ob. cit., p. 436.

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A primazia do ponto de vista externo, do respeito às pessoas, sig-nifica fundamentalmente luta pela pluralidade axiológica, pelo respei-to ao diverso, pela tolerância, visto que somente neste modelo é admis-sível a crítica do sistema e o estabelecimento de critérios que justifi-cam, inclusive, a sedição.

Na gestão dos sistemas auto-referenciais, a desobediência, resis-tência ou objeção de consciência é descartada, pois o critério de justi-ça é reduzido à mera legalidade formal, configurando o ato de rebeldia‘crime de lesa-majestade’. A razão de Estado se sobrepõe à razão dodireito. Neste caso, tomando como referencial as redefinições termino-lógicas propostas por Ferrajoli, tem-se como característica dos modeloso respeito (ou a negação) do secular valor tolerância.

Com Locke e Voltaire viu-se que a formação genealógica do con-ceito de tolerância na filosofia da ilustração corresponde fundamental-mente à profunda discussão dos limites de intervenção estatal na esfe-ra da consciência (foro interno). O objeto oitocentesco da tolerância era,pois, relativo à liberdade de opinião política ou religiosa. Logicamenteque o alcance do conceito tolerância na atualidade é diverso, sendoaqui residente a virtude da categoria: sua trans-historicidade.

Norberto Bobbio,92 ao deslocar temporalmente o problema, perce-be o fato de que atualmente o conceito de tolerância vem identificadoaos problemas de convivência entre as minorias étnicas, lingüísticas,raciais e de todos aqueles que denominamos ‘diversos’.

Para justificar as razões da tolerância, o politólogo elabora quatroteses. A primeira, prudência política, considerada a mais vil, tem porfundamento a necessidade prática de tolerar, pois a experiênciademonstra que a intolerância não obtém os resultados a que se propõe(erradicar o diverso), gerando o efeito perverso de reforço dos ideaiscombatidos. A segunda tese funda-se numa metodologia universal deconvivência, na qual a tolerância é utilizada como meio de persuasão em

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cial. Nesse sentido, imprescindível lembrar as lições de Eugenio Raul Zaffaroni: o para-digma de maior vigência temporal é o do organicismo: o discurso jurídico-penal fundamen-tado na idéia da sociedade como organismo imperou teocraticamente, restabelecendo-secomo positivismo e volta agora como funcionalismo sistêmico. A idéia de ‘organismosocial’ é, por sua essência, antidemocrática, pois o que interessa é o organismo, e não suascélulas. As decisões são tomadas apenas pelas células preparadas especialmente paradecidir e não pela maioria indiferenciada delas. O paradigma organicista é idealista, nãosuscetível de verificação, e sua adoção pelo positivismo não foi mais do que um recurso dopoder para ‘mostrar como ‘científico’ aquilo que sempre constituiu uma metáfora antide-mocrática (Zaffaroni, Em Busca das Penas Perdidas, p. 49).

92 Bobbio, Le Ragioni della Tolleranza, p. 230.

A centralidade da pessoa e o respeito pelos direitos humanosdeterminam os critérios de justificação externa do poder, delimitandoos pressupostos normativos de tolerabilidade do sistema. Se desde oseu interior direito e Estado são legitimados substancialmente pelosdireitos fundamentais, externamente são os direitos humanos que pro-piciam os parâmetros avaliativos do seu nível de justiça, servindo denorte ao próprio conteúdo do pacto social: a Constituição.

Para explicar essa opção e redefinir os critérios de legitimidade,proporcionando que esta provenha do exterior, Ferrajoli parte da catego-ria autopoiésis, criando um conceito heteropoiético de legitimidade. Acategoria autopoiésis designaria o caráter auto-referencial dos sistemaspolíticos, no qual o Estado representa um fim em si mesmo – podemosdizer que são autopoiéticas todas as doutrinas de ‘legittimazionedall’alto’, a começar pelas pré-modernas que fundamentam a soberaniado Estado sobre entidades metafísicas e meta-históricas como Deus, reli-gião, natureza e semelhantes.89 Na concepção heteropoiética, a legitimi-dade da entidade política é uma ‘legittimitá dal basso’, isto é, o Estadoé percebido não como fim, mas como instrumento de tutela dos direitosfundamentais. O primado do Estado sobre a sociedade é invertido.

Como percebe Lenio Streck,90 o paradigma garantista trabalhacom esta idéia de que a legitimação do direito e do Estado provém defora, estabelecendo um contraponto às teorias autopoiéticas quevisam, a partir de um direito do tipo reflexivo, não o adaptar aosanseios da sociedade, mas aos limites do establishment, reduzindo,com isso, a complexidade social.

A conseqüência da assunção de uma ou outra tese quando o obje-to de estudo é o poder é drástica. Se a visão autopoiética (contempla-tiva) acaba por gerar uma justificação otimista do poder, produzindomodelos neototalitários, a concepção garantista heteropoiética (crítica)pressupõe o poder como ontologicamente perverso, tendente à cons-tante violação dos direitos fundamentais. O programa político-criminalrestritivo tem aqui sua justificativa. Mais: as doutrinas do primeiro tiporevelam uma característica pré-secular, pois confundem ponto de vistainterno e externo e, conseqüentemente, direito com moral e/ou nature-za (organicismo).91

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89 Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 923.90 Streck, ob. cit., p. 48.91 Importante observar que os modelos jurídicos estruturados desde concepções autopoié-

ticas são revitalizações, via funcionalismo sistêmico, de um modelo de organicismo so-

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mente no plano do direito, objeto de intolerância. E isto acontece com aestipulação de uma nova forma de intolerabilidade: a intolerabilidadenão mais da intolerância, mas da tolerância a tais situações, não atravésde limites mas de vínculos, não de proibições mas de obrigações de inter-venção para impedi-las, removê-las ou limitá-las. É a estipulação destanova esfera de intolerabilidade a convenção própria do Estado social dedireito: aceita-se a intolerabilidade da tolerância daquilo que põe emrisco as necessidades vitais, para garantir níveis mínimos de igualdadenão mais apenas formais mas materiais.96

A tese identifica na lesão dos direitos fundamentais os limites datolerância, visto que mesmo essa categoria, ao impor uma concepçãofundante do processo civilizatório, tem como inadmissíveis algumascondutas. É que os direitos fundamentais, além de sua inalienabilida-de e indisponibilidade, são invioláveis tanto pelo poder público comopelo privado, estabelecendo critérios limitativos à tolerância.

Ao serem estabelecidos constitucionalmente (plano interno) oudeclarados internacionalmente (plano externo), os direitos fundamen-tais conformam um rol de bens jurídicos que devem ser radicalmentetutelados, pois a sua violação justifica a violência: a violência individualda legítima defesa ou do estado de necessidade como causa de justifica-ção dos atos que de outra forma seriam punidos como delitos; a violên-cia coletiva da resistência e da desobediência quando a sua violação épraticada por autoridade públicas.97

A teoria do delito, ramo de maior desenvolvimente teórico da dog-mática penal, construiu e justificou de maneira consistente e irreversí-vel a legitimidade da violência individual em situações em que oEstado ausente não consegue amparar os direitos fundamentais dopólo débil da relação (v.g. os institutos da legítima defesa e estado denecessidade). Todavia, a teoria política, supondo a idoneidade dos ins-trumentos normativos para obstaculizar os atos de violência da admi-nistração (leis, decisões e práticas ilegítimas), conseqüência visível domito da regularidade dos atos do poder, excluiu do elenco dos direitose garantias o ‘direito de resistência’, presente em algumas constitui-ções pretéritas (v.g., artigo 3o da Declaração de Direitos da Virgínia eart. 29 da Constituição francesa de 1793).

A resistência à opressão indicaria a possibilidade de desobediên-cia a qualquer ato injustificado do poder público, negando a obrigação

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96 Ferrajoli, ob. cit., p. 292.97 Ferrajoli, Diritto e Ragione, pp. 953-954.

detrimento da violência. Segue uma terceira justificativa, cujo dever detolerar corresponde a uma ação moral e ética imposta por um princípioabsoluto, que é o do respeito aos demais. A última justificativa relacio-na-se com o ‘princípio do Pantheon’, ou seja, não corresponde a princí-pios de razão prática, mas sim teórica, na qual a verdade somente podeser alcançada pela coexistência e síntese de parcialidades históricas.93

Percebe-se, no entanto, que a atualização do objeto proposta porBobbio é parcial, visto que em ambos os casos a luta é a mesma, ouseja, reivindica-se o direito de ser diferente e de ser respeitado enquan-to tal. Exige-se a eficácia plena do princípio da igualdade: igualdadeformal, entendida como direito de ser reconhecido isonomicamente naesfera pública, e igualdade substancial, direito de ser diferente e res-peitado (tolerado) no âmbito privado. Ou, como enunciado porBoaventura de Souza Santos, o direito à igualdade, quando a desigual-dade inferioriza; o direito à desigualdade, quando a igualdade descarac-teriza.94 Reivindicar o direito à igualdade não exclui o direito à diversi-dade, sobretudo porque não são antônimos (lembre-se: o antônimo deigualdade é desigualdade, e não diversidade). Na esfera penal, a rup-tura secular afirma o princípio da perversidade no rol dos direitos fun-damentais do cidadão.

Contudo, a delimitação oferecida por Bobbio alcança apenas osdireitos de liberdade e, via de conseqüência, exclui os sociais. A pro-posta garantista de inclusão, no rol dos direitos fundamentais, os direi-tos sociais e transindividuais modifica o objeto, a justificativa e a meto-dologia da tolerância.

Ferrajoli95 redefine a tolerância a partir da tensão entre o dever detolerar e o de não tolerar. Identifica o primeiro (dever de tolerância) aosdireitos clássicos de liberdade cujo exercício funda a identidade pes-soal respaldada no princípio da igualdade. Não obstante, entende sernecessário falar de um princípio da intolerância quanto aos direitossociais. Do dever de tolerar a manifestação do ‘ser’ do ‘Outro’ enquan-to afirmação de identidade coliga-se o dever de não tolerar a exclusãodos direitos sociais e difusos: são estas situações de fato – a fome, adoença, a exploração, as agressões ao ambiente, e, em geral, a lesão ouinsatisfação de necessidades vitais elementares – que se tornam, igual-

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93 Sobre a justificação da tolerância, conferir Bobbio, ob. cit., pp. 233-339, e Lopez Calera,Derecho y Tolerancia, p. 4.

94 Apud Jardim, A Tendência Autoritária do Direito no Chamado Neoliberalismo, p. 172.95 Ferrajoli, Tolleranza e Intollerabilità nello Stato di Diritto, p. 289.

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Capítulo IVO Modelo Garantista de Limitação

do Poder Punitivo

4.1. A pena nas sociedades modernas: introdução

A principal característica das normas de conduta, tanto jurídicascomo sociais, é sua coercitividade, pois reprovam simbólica ou fatica-mente atos indesejáveis. O teor fundamental da coação é, segundoHans Kelsen,1 a aplicação de um mal ao destinatário mesmo contra asua vontade, empregando a força física, se necessário.

O direito se distingue dos outros padrões de imposição deontológi-ca pela sanção (coação institucional): não existe ordem jurídica sem coer-ção. Diferentemente das instâncias primárias de controle social (associa-ções familiares, escolares, profissionais et coetera), cuja manifestação dacoação é situada em níveis simbólicos através de diferentes formas dereprovação e/ou exclusão do grupo, o direito sanciona, afirmando deter-minados valores, com restrições coercitivas dos bens da vida.2

Max Weber demonstra que o Estado moderno estruturou-se pelacoação, na força advinda do exercício legítimo dos poderes constituí-dos. As relações entre a constituição do poder político e a violênciaseriam, portanto, realmente estreitas. No mesmo sentido, TobiasBarreto: ora, assim como a idéia de um território entra na construção doconceito de Estado, da mesma forma a idéia de direito de punir é um doselementos formadores do conceito geral da sociedade.3

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1 Kelsen, Teoria Pura do Direito, p. 60.2 Leciona Kelsen: na medida em que o acto de coacção estatuído pela ordem jurídica

surge como reação contra a conduta de um indivíduo pela mesma ordem jurídica espe-cificada, esse acto coactivo tem o carácter de uma sanção e a conduta humana contra aqual ele é dirigido tem o carácter de uma conduta proibida, antijurídica, de um acto ilí-cito ou delito... O direito é uma ordem coactiva, não no sentido de que ele – ou, mais rigo-rosamente, a sua representação – produz coacção psíquica; mas no sentido de que esta-tui actos de coacção, designadamente a privação coercitiva da vida, da liberdade, debens económicos e outros, como conseqüência dos pressupostos por ele estabelecidos(Kelsen, ob. cit., pp. 62-63).

3 Barreto, Fundamentos do Direito de Punir, p. 643.

moral de submissão do cidadão à lei, e exigindo, ao mesmo tempo, efi-cácia plena dos direitos consagrados pelo próprio Estado. É que as nor-mas não garantem absolutamente nada se não forem assumidas res-ponsavelmente pela administração política; pelo contrário, desde umaconcepção pessimista (garantista) do poder, a tendência dos aparelhosde Estado é a sua constante violação.

O ius resistentiae representaria a negação do direito e das práticasilegítimas vigentes (violadoras dos direitos), consagrando uma garan-tia externa de efetividade constitucional. Dessa forma, conforme advo-ga Ferrajoli,98 desobedecer é justo quando é injusta uma lei, sendoigualmente legítimo rebelar-se quando os poderes violam direitos fun-damentais e/ou os meios de garantias legais se revelam ineficazes parasancionar sua invalidade.

A questão da desobediência civil, da objeção de consciência e dodireito de resistência, porém, apresenta-se na atualidade de formadiversa de sua colocação clássica. Hoje, a sedição indica possibilida-des de ação coletiva e/ou individual na reivindicação da eficácia cons-titucional. Nos atuais Estados democráticos de direito, o instrumentoreivindicatório não visa a quebra da ordem constitucional ou a substi-tuição do titular do poder, pois os instrumentos da democracia formalsão inabaláveis; permite, contudo, forçar os organismos do Estado amodificar legislações injustas, isto é, leis ordinárias substancialmenteilegítimas não excluídas pelo controle de constitucionalidade, e cum-prir as leis válidas não observadas.

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98 Ferrajoli, ob. cit., pp. 989-990.

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modelos explicativos e justificadores do exercício da violência legítimaorganizada.

A justificação do uso da violência, da imposição de sanções pelopoder público, é um dos questionamentos mais clássicos da filosofia eda teoria do direito (penal), definindo os princípios reitores dos siste-mas jurídicos penais e processuais. Segundo Ferrajoli, o problema dalegitimidade política e moral do direito penal como técnica de controlesocial mediante constrições da liberdade dos cidadãos é, em boa parte,o próprio problema da legitimidade do Estado como monopólio organi-zado pela força.6

A resposta à legitimidade do poder político (a diferenciação entreo Estado e os ‘bandos de saqueadores’) não exime, e muito menosesgota, o debate sobre a justificativa interna da manifestação do poder,no caso específico da sanção penal.

A avaliação garantista (pessimista) do ius puniendi, centrada narealidade mesma do sistema penal, passa inevitavelmente pela discus-são sobre as justificações da pena, entendida esta como instrumentojurídico-político de manifestação do poder no controle social. Trata-senecessariamente de um repensar sobre o que se convencionou chamar‘teorias da pena’, ou seja, sobre a indagação considerada como umadas mais importantes não só do direito penal mas também da teoriapolítica: ‘por que punir?’’.

4.2. Esboço dos modelos justificacionistas da ilustração

Os pressupostos de racionalidade e de humanização do sistemapenal advindo com a filosofia da ilustração refletem o que foi definidocomo ‘substituição do Príncipe pelo princípio’ – com a passagem daforma estatal medieval para o Estado Moderno, na sua versão inicialabsolutista, tem-se o início de um modelo de dominação racional legal.Ou seja, do ex parte príncipe passa-se ao ex parte principio.7 A autori-dade ilimitada do Estado patrimonialista é sucedida por instrumentosjurídicos de contenção do poder. A estrutura principiológica apresenta-da, essencialmente restritiva do poder de punir e por isso garantista,tem sua fundamentação externa no pacto social.

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6 Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 234.7 Streck & Morais, Ciência Política e Teoria do Estado, pp. 23-24.

O discurso ilustrado direcionou esforços para formular teoria jurí-dica capaz de centralizar no poder público o direito legítimo do exercí-cio da sanção, virtude denominada racionalização do direito. O mono-pólio da coação nas mãos do Estado tornou-se, portanto, uma das prin-cipais conquistas da modernidade. O Estado moderno, segundo Weber,constituir-se-ia numa comunidade humana que, dentro dos limites dedeterminado território – a noção de território corresponde a um dos ele-mentos essenciais do Estado – reivindica o monopólio do uso legítimo daviolência física. Logo, o Estado se transforma na única fonte do ‘direito’à violência.4

O uso da força no interior de uma ordem jurídico-política seriasempre limitado por regras e centralizado em organismos determina-dos, visto a sanção jurídico-penal ser sempre, independente da espéciede pena aplicada, um ato de violência.

No entanto, se a sanção se manifesta através da violência, surgeuma pertinente indagação levantada por Kelsen: qual seria a diferençaentre o Estado (comunidade jurídica) e um ‘bando de saqueadores’,visto que ambos adotam a violência para privar determinadas pessoasde seus bens (vida, liberdade, patrimônio et coetera).

A questão está situada na legitimidade do poder político. A con-cepção garantista (heteropoiética), estruturada na centralidade da pes-soa humana, vincula a legitimidade do poder ao(s) seu(s) vínculo(s)com os direitos humanos. Divergentes dessa noção encontram-se osmodelos de legitimidade pela mera legalidade, estruturas autopoiéti-cas que fundamentam a validade das normas e das práticas estatais –ou seja, das violências – exclusivamente no ordenamento jurídico.

As teses sobre a legitimidade da violência demonstram que ocerne da teoria política (e penal) radica no problema do poder. NorbertoBobbio afirma, inclusive, que o alfa e o ômega da teoria política é comose adquire, se conserva, se perde e se exercita o poder, como se defen-de esse poder e de que forma dele os cidadãos se protegem.5

No entanto, se ‘a’ questão da filosofia política é a aquisição e oexercício das violências (i)legítimas, o direito – sobretudo o direitopenal – dela não pode deixar de comungar. Assim, os limites entreambas ciências sociais (ciência política e ciência jurídico-penal) pare-cem ser quase imaginários, pois se aquela responde(ria) ao momentoda formulação do exercício do poder, esta funda(ria) sua nascente nos

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4 Weber, Ciência e Política, p. 56.5 Bobbio, La Resistenza all’Oppressione, Oggi, p. 157.

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obstante o modelo de justiça de sangue, caracterizado pela celeridadee pelo caráter vindicativo, estar situado em épocas remotas, modelosilustrados corresponderão plenamente às diretivas paleojurídicas.

Pontos divergentes caracterizam as teorias retributivas da moder-nidade, porém. O primeiro a ressaltar é o de que os modelos ilustradosnão representam sistemas expiatórios inspirados em concepções teís-tas. Ao contrário, são teorias laicas organizadas desde princípios secu-lares. O segundo fator de diferenciação aparece na medida qualitativada pena, visto que a racionalização (certeza) e humanização (proporcio-nalidade) da resposta penal refuta em absoluto os suplícios de sanguecaracterísticos da Antigüidade.

O retributivismo penal da ilustração inspira-se no modelo indeni-zatório vinculado ao inadimplemento contratual. A lógica burguesadeterminava a obrigatoriedade da reparação quando um cidadão nãopagasse sua dívida. A violação do contrato exige indenização, mesmoque forçada. Ao sujeito que descumpriu a norma jurídica interpartesdeveria incidir expropriação de algo de valor que pudesse ser quantifi-cável. Estabelecendo esta similitude com o contrato civil, surge o inter-rogante de qual o objeto deveria ser expropriado, e qual bem executa-do. Note-se que para este modelo de controle social as massas crimina-lizadas nada possuíam além de seus corpos, todavia, a incidência dopoder sobre o corpo já não era mais admissível desde a deslegitimaçãodo paradigma inquisitorial. Zaffaroni e Pierangeli9 apontam a capacida-de de trabalho e a liberdade como os únicos objetos idôneos de conver-são em dívida. O tempo, portanto, surgirá como ‘a’ sanção penal carac-terística da modernidade.

O retributivismo encontrará no despotismo ilustrado kantianosua principal versão. Imanuel Kant, na Metafísica dos Costumes(1797), sustenta que a lei penal é um imperativo categórico que deveser respeitado. Ao infrator a pena ha de imponérsele sólo porque hadelinquido.10 Afirma que mesmo no caso de dissolução da sociedadecivil, com absoluta e plena concordância de todos os membros (Kantse ancora no exemplo da disseminação de todo um povo habitante deuma ilha), deveria ocorrer a execução do último assassino que seencontrasse no cárcere, para que cada cual reciba lo que merecen susactos y el homicidio no recaiga sobre el pueblo que no ha exigido este

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9 Zaffaroni & Pierangeli, Manual de Direito Penal Brasileiro, p. 263.10 Kant, Metafísica de las Costumbres, p. 166.

Sustentou-se da impossibilidade de reunir sob um mesmo rótuloos pensadores do contratualismo penal devido às diversas visões sobrea interpretação do pacto social. A afirmativa, no entanto, terá sua vera-cidade comprovada no que diz respeito às teorias da pena. Se o pres-suposto contratual foi comum à grande maioria dos pensadores do finaldos setecentos e início dos oitocentos, a resposta quanto à necessida-de de punição seguirá sua projeção teórica. Dessa forma, não é apenasduvidoso configurar uma ‘Escola Clássica’, como é impossível determi-nar um modelo penalógico justificacionista comum a todos pensadoresdo iluminismo penal. Pense-se, por exemplo, no sincretismo metodoló-gico que seria a inclusão do utilitarismo de Beccaria, do despotismo deKant, do liberal-socialismo de Marat e do tomismo de Carrara sob amesma classificação.

Lógico que a principal matriz teórica moderna, ao afirmar a neces-sidade da pena, decorre de interpretações do contrato social, conce-bendo-a como instrumento de indenização pela ruptura obrigacional.Todavia, para assegurar um mínimo de rigor metodológico, desenvol-ver-se-á o percurso histórico das teorias penalógicas do pensamentoilustrado segundo a clássica divisão entre teorias absolutas (versãoretributivista moral e jurídica) e relativas (prevenção geral negativa eprevenção social).

4.2.1. As justificações retributivistas

Preliminarmente, é importante notar que a justificação retributi-vista não é restrita exclusivamente aos modelos taliônicos, como éconstantemente observado na manualística, muito embora reediçõesmodernas, principalmente em Kant, possam sugerir tal aproximação.Lembre-se que tais justificativas rememoram modelos penais daAntiguidade, cujos resquícios são encontrados no Velho Testamento –violação por violação, olho por olho, dente por dente; assim como ele cau-sou uma injúria a um homem, assim será feito contra ele (Levítico, 24:20)– e no primeiro decreto do Código de Hamurábi – se um homem lançauma maldição contra outro homem, sem justificação, aquele que a lançadeverá ser condenado à morte.

A idéia da ‘devolução do mal com o mal’, presente no modelo retri-butivista arcaico, representa a mais primitiva forma de justiça, que exigeque o violador receba um castigo idêntico ao sofrido pela vítima.8 Não

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8 Perez, O Castigo do Crime versus o Crime do Castigo, p. 51.

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deza qualitativa e quantitativa que se pode também encontrar na suanegação como existência.14

O crime, considerado como violação da ordem e não como produ-ção de um mal ou violação de um imperativo ético, justificaria a impo-sição retributiva da pena. Distante, pois, dos pressupostos de morali-dade presentes no pensamento kantiano e nas teorias preventivas pre-téritas.15 O delito deveria ser eliminado/neutralizado não como produ-ção de um mal, mas de uma lesão ao direito enquanto tal.

Ferrajoli16 critica as teorias retributivistas, pois entende que aidéia da pena como restauração ou reafirmação de ordem violadademonstra um equívoco derivado da confusão entre direito e natureza.Tanto a purificação do delito através do castigo como a negação dodireito por parte do ilícito e sua simétrica reparação seriam insustentá-veis, dado ao fato de crerem erroneamente haver relação de causalida-de necessária entre culpa e castigo. Além de representarem concep-ções substancialistas de delito, vêem na pena função de restauração deuma ordem (jurídica e/ou moral) natural violada.

Retomariam, em sua essência, modelos arcaicos de expiação religio-sa. A diferença consistiria no fato de que enquanto nas concepções arcai-cas de tipo mágico-religioso a idéia da retribuição é ligada à objetividadedo fato com base em uma interpretação normativista da natureza, nas

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14 Hegel, Princípios da Filosofia do Direito, pp. 92-93.15 Sustenta Hegel que se o crime e a sua supressão, na medida em que esta é considerada

do ponto de vista penal, apenas forem tidos como nocivos, poderá julgar-se irrazoável quese promova um mal só porque um mal existe já. Este aspecto superficial da malignidadeé, por hipótese, atribuído ao crime nas diferentes teorias da pena que se fundamentam napreservação, na intimidação, na ameaça, na correção, consideradas como primordiais; oque disso deverá resultar é definido, de um modo também superficial, como um bem. Oranão se trata desse mal ou desse bem; o que está em questão é o que é justo e o que é injus-to. Naqueles pontos de vista superficiais oblitera-se a consideração objectiva da justiça,que é o que permite apreender o princípio e a substância do crime. Procura-se então oessencial no ponto de vista da moralidade subjectiva, no aspecto subjectivo do crime,acrescentando-lhe as mais vulgares observações psicológicas sobre a força e as excitaçõesdos motivos sensíveis, opostas à razão, sobre os efeitos da coacção psicológica na repre-sentação (como se a liberdade não obrigasse a reduzir tal representação a algo de contin-gente). As diversas considerações referentes à pena como fenômeno, à influência que exer-ce sobre a consciência particular e aos efeitos que tem na representação (intimidação, cor-reção, etc.), ocupam o lugar próprio, até porque o primeiro lugar desde que se trate damodalidade da pena, mas têm de supor resolvida a questão de saber se a pena é justa emsi e para si. Nesta discussão apenas se trata do seguinte: o crime, considerado como pro-dução de um mal mas como violação de um direito tem de suprimir-se, e, então, qual é aexistência que contém o crime e tem de suprimir-se? Esta existência é que é o verdadeiromal que importa afastar e nela reside o ponto essencial (Hegel, ob. cit., pp. 90-91).

16 Ferrajoli, ob. cit., pp. 240-241.

castigo: porque puede considerársele como cómplice de esta violaciónpública de la justicia.11

O modelo penalógico de Kant é estruturado na premissa básica deque a pena não pode ter jamais a finalidade de melhorar ou corrigir ohomem, ou seja, o fim utilitário seria ilegítimo. Se o direito utilizasse apena como instrumento de dissuasão, acabaria por mediatizar ohomem, tornando-a imoral.12 Logo, a penalidade teria como thelos aimposição de um mal decorrente da violação do dever jurídico, encon-trando neste mal (violação do direito) sua devida proporção. Muitoembora utilize critérios de medida e proporção da pena, Kant rememo-rará modelos primitivos de vingança privada. A teoria absoluta da penasob o viés kantiano recupera o princípio taliônico, encobrindo-o, noentanto, pelos pressupostos de civilidade e legalidade: esta igualdadde las penas que sólo es posible por la condena a muerte por parte deljuez, según la estricta ley del talión, se manifesta en el hecho de que sólode este modo la sentencia de muerte se pronuncia sobre todos de formaproporcionada a la maldad interna de los criminales.13

À retribuição ética e moral proporcionada pela pena no modelokantiano se oporá o retributivismo hegeliano, relocando o problema àseara jurídica.

Em Hegel, a pena será justificada pela necessidade de recom-por o direito com uma violência correspondente àquela perpetradacontra o ordenamento jurídico. O delito, percebido como lesão àordem jurídica, deveria ser neutralizado através de uma força cor-respondente.

Na obra Princípios da Filosofia do Direito (1820), o autor trata dasrelações entre crime, violência e penalidade. O princípio fundamentalda teoria hegeliana da pena é centrado na idéia de que a violência des-trói a si mesma com outra violência: a supressão do crime é a remissão,quer segundo o conceito, pois ela constitui uma violência contra violên-cia, quer segundo a existência, quando o crime possui uma certa gran-

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11 Kant, ob. cit., pp. 168-169.12 Para Kant, a moral é condição do agir e corresponde ao imperativo categórico sintetiza-

do em duas fórmulas: age segundo uma máxima tal que possas querer ao mesmo tempoque se torne lei universal e nunca alguém deve tratar a si mesmo e nem aos demais comosimples meio, mas como fim em si mesmo. Zaffaroni e Pierangeli lembram que a segundaformulação do imperativo categórico é que definirá a concepção penalógica do autor, eisque impede tornar o homem um meio, um objeto para determinados fins (Zaffaroni &Pierangeli, ob. cit., p. 264).

13 Kant, ob. cit., p. 169.

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legítimo. As penas que ultrapassam a necessidade de conservar o depó-sito da salvação pública são injustas por sua natureza; e tanto mais jus-tas serão quanto mais sagrada e inviolável for a segurança e maior liber-dade que o soberano conservar aos súditos.20

Assim, se o pacto versa essencialmente sobre a liberdade, somen-te esta poderia ser executada, pois a incidência em qualquer outro bemjurídico (v.g. vida e liberdade de expressão) seria ilegítima. A estruturapenal baseada na teoria do contrato social impossibilita o Estado deexecutar aquilo que não foi previamente acordado. Aliás, a liberdade ea vida seriam requisitos que, se inexistentes, impossibilitariam o acor-do. Não se pode, portanto, neste modelo, deliberar sobre a vida de umcidadão; somente sua liberdade (parcial) poderia ser negociada, sujei-tando-a à sanção. Mais: a esfera da liberdade diria respeito tão-somen-te à liberdade de locomoção. A pena privativa de liberdade, referidacomo ‘o’ modelo sancionatório no projeto da modernidade, deveria sercentralizada na liberdade de ir, vir e permanecer. Lembre-se que a gran-de conquista do processo de secularização foi a de garantir ao indivíduodeterminada esfera de liberdade na qual o Estado não pode penetrar(esfera da vida privada, da intimidade, da liberdade de pensamento, daliberdade de culto, da liberdade de associação política). Logo, quandoBeccaria usa o termo ‘liberdade’, vincula à liberdade de locomoção,única suscetível de cálculo no tempo, pois é algo que se projeta em linhareta do passado até o futuro,21 reorganizando o sistema punitivo.

Inolvidável, pois, no que tange à justificação penalógica, a perspec-tiva utilitarista de Beccaria, sob pena de aliá-lo a correntes opostas aoseu pensamento. O alerta é feito por Adela Asúa,22 quando critica inú-meros doutrinadores que, vendo no autor referências ao ‘merecimento’da pena para repor o pacto social, qualificam-no de retributivista.

O utilitarismo do pensador lombardo é expresso no aforismo con-tratualista: ‘a máxima felicidade ao maior número possível de pessoas’.No capítulo Dos meios de prevenir crimes desenvolve a máxima ao afir-mar que é melhor prevenir os crimes do que ter de puni-los; e todo legis-lador sábio deve procurar antes impedir o mal do que repará-lo, poisuma boa legislação não é senão a arte de proporcionar aos homens omaior bem-estar possível e preservá-los de todos os sofrimentos que selhes possam causar, segundo o cálculo dos bens e dos males desta vida.23

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20 Beccaria, ob. cit., p. 3421 Zaffaroni & Pierangeli, ob. cit., p. 264.22 Asúa, ob. cit., p. 22.23 Beccaria, ob. cit., p.193.

cristãs-modernas de tipo tanto ético como jurídico, esta é ligada à subje-tividade perversa e culpada do réu com base em uma conexão naturalis-ta ou ontológica, tanto da moral como do direito. Em todos os casos estarepresentação primordial da justiça penal é filosoficamente absurda.17

Não obstante, cabe notar que o diferencial entre a ilicitude penale a extra-penal (civil, administrativa et coetera) radica na irreparabili-dade do dano, tornando obsoleta a funcionabilidade indenizatóriarequerida pelas teorias absolutas.

4.2.2. O modelo intimidatório

Apesar das formulações de Kant e Hegel, o modelo penalógico quemais simbolizará a ilustração penal é encontrado em Beccaria.Indubitavelmente, o Marquês cria uma das principais vertentes doparadigma contratualista da pena, otimizando os efeitos do aporte teó-rico filosófico ao jurídico.

Ao fundamentar o direito de punir, parte para uma descrição domomento hipotético de pactuação, no qual o indivíduo, encontrando-seem estado de natureza, opta pelo estado civil, negando a barbárie pri-meva, visto que eram necessários meios sensíveis e bastante poderosospara comprimir esse espírito despótico, que logo tornou a mergulhar asociedade no seu antigo caos. Esses meios foram as penas estabelecidascontra os infratores das leis.18

Sustenta que somente a necessidade de ruptura com o antigoestado de coisas constrangeu os homens a se sujeitarem às penas e,mesmo assim, a cada um somente seria exigível ceder ao depósitocomum (Estado) a menor porção possível do bem jurídico liberdade. Aintervenção penal representa uma necessidade, uma (pré)condição devida em sociedade. Como lembrou Adela Asúa, a pena es el precionecessario para impedir daños mayores, e solo en ello encuentra su jus-tificación.19

E é a cessão da liberdade individual o ato que funda o Estado,estruturando e justificando o poder de punir: o conjunto de todas essaspequenas porções de liberdade é o fundamento do direito de punir. Todoexercício de poder que se afastar dessa base é abuso e não justiça; é umpoder de fato e não de direito; é uma usurpação e não mais um poder

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17 Ferrajoli, ob. cit., p. 241.18 Beccaria, Dos Delitos e das Penas, p. 33.19 Asúa, Reivindicación o Superación del Programa de Beccaria, p. 20.

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cometam as condutas incriminadas, não deveria ser o escopo essencialda pena e o fundamento do direito de infringi-la? A resposta afirmativaé uma opinião comum aos nossos juristas e filósofos.27

Feuerbach parte do pressuposto de que o Estado é uma socieda-de civil organizada constitucionalmente mediante o submetimento auma vontade comum, sendo seu principal objetivo a criação de condi-ções jurídicas que impeçam lesões aos direitos.

As instituições jurídicas e políticas caracterizar-se-iam pela coer-ção física direcionada à proteção dos bens, anterior (preventivamente)ou posterior à sua lesão (exigência de reparação e/ou reposição).Logicamente o autor, assim como Beccaria, não exclui as ‘instituiçõeséticas’ (família, escola, igreja) do papel de redução das lesões; situa, noentanto, fora do projeto repressivo formal.

Ao perceber que a coação física não basta por si só, visualiza umtipo de coação que antecipa a prática do ilícito e que proviniendo delEstado, sea eficaz en cada caso particular, sin que requiera el previoconocimiento de la lesión. Una coación de esta naturaleza sólo puede serde índole psicológica.28

No entanto, o fundamento intimidatório da pena estaria condicio-nado à eficácia dos aparelhos judiciários e executivos. Se o objetivo dapena é a coação psicológica aos pretendentes de ações ilícitas, suaexecução deveria ser certa perante os sujeitos passivos primários(infrator) e secundários (sociedade), sob pena de perda do seu caráteressencial: o simbolismo.

Sustenta Feuerbach que el objetivo de la cominación de la pena enla ley es la intimidación de todos, como posibles protagonistas de lesio-nes jurídicas. El objetivo de su aplicación es el de dar fundamento efec-tivo a la conminación legal, dado que sin la aplicación la conminaciónquedaría hueca (seria ineficaz). Puesto que la ley intimida a todos losciudadanos y la ejecución debe dar efectividad a la ley, resulta que elobjetivo mediato (o final) de la aplicación es, en qualquier caso, la inti-midación de los ciudadanos mediante la ley.29

Note-se que em Feuerbach o sentido da sanção pública não adqui-re contorno preventivo especial de corte educativo ou moral. A concep-ção estritamente jurídica exclui a ‘prevenção particular’ porque, emface da inexistência de fundamentação lógica para uma ‘antecipação’futura, esta não se constitui propriamente como ‘pena’. Nega, pois, o

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27 Idem, p. 106.28 Feuerbach, Tratado de Derecho Penal, p. 60.29 Feuerbach, ob. cit., p. 61.

O sentido utilitário emprestado à pena rompe com a idéia retribu-tivista na qual a sanção tem finalidade em si mesma, repreendendofatos passados ao invés de lhe emprestar função futura. Desta forma, ofim das penas não é atormentar e infligir um ser sensível, nem desfazerum crime que já foi cometido.24

Centrado na idéia de proporcionalidade, necessidade e culpabilida-de, a pena, aplicada por juiz imparcial em processo penal público e contra-ditório, adquirirá fim intimidatório. O exemplo aplicado ao infrator é neces-sário para constranger o corpo social a não praticar o mesmo ato: os casti-gos têm por fim único impedir o culpado de ser nocivo futuramente à socie-dade e desviar seus concidadãos da senda do crime. Entre as penas e namaneira de aplicá-las proporcionalmente aos delitos, é mister, pois, escolheros meios que devem causar no espírito público a impressão mais eficaz emais durável, e, ao mesmo tempo, menos cruel no corpo do culpado.25

Beccaria, apesar de ratificar o caráter preventivo geral negativo dapena em inúmeros momentos de sua obra, não esgota na sanção osmeios necessários para prevenção da criminalidade. No último capítulodo manifesto, trata especificamente das ações preventivas não penais,criticando as injustiças sociais e a má-distribuição de riqueza como fato-res potencializadores do agir ilícito. É lógico que não se pode ver nestadenúncia de Beccaria à má-distribuição de riquezas e oportunidadesuma postura revolucionária radical de corte socialista utópico pré-mar-xista, como na obra de Marat. Registrada, porém, a preocupação comesse fator social em uma época em que os delitos contra o patrimôniorepresentavam uma das mais comuns espécies de delinqüência.

Juntamente com Beccaria, Feuerbach optará pelo modelo intimi-datório, construindo justificativa inegavelmente mais elaborada emtermos científicos.

Em Anti-Hobbes (ou os limites do poder supremo e o direito deresistência dos cidadãos contra o soberano) (1798), Feuerbach indagaqual o escopo que funda a base do conceito jurídico de pena. Antesmesmo de responder à indagação, chama atenção que o fim da sançãonão pode ser a correção do culpado, sobretudo porque o Estado não étutor, mas protetor; não é preceptor, mas defensor; não possuindo comofim a moralidade e a cultura, mas a tutela da liberdade.26

A ameaça, no modelo feuerbachiano, constitui-se como o funda-mento primordial da pena – a intimidação dos outros, para que não

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24 Idem, p. 88.25 Idem, p. 85.26 Feuerbach, Anti-Hobbes, p. 104.

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contratualista não ficou restrito aos problemas da interpretação legis-lativa, do direito ao delito nos casos de má-distribuição de renda e dalegitimidade do direito de resistência.

A afirmativa de ser tirânico todo poder que não cumpre as funçõesestabelecidas no pacto, e de estarem os direitos e deveres contratadosalém das garantias individuais, alcançando os direitos sociais, condi-cionará o modelo penalógico do ‘amigo do povo’. Lembre-se que o pres-suposto fundamental do autor é a relação simétrica entre Estado ecidadão: direito de punir do Estado no caso de violação das leis, direi-to de resistência do cidadão quando do descumprimento dos deveresfirmados pela entidade abstrata garantidora (condições para o plenodesenvolvimento do homem).

A condução teórica do autor é balizada pelo princípio da transpa-rência, ou seja, é espelhada em constantes contrapostos entre o esta-do de natureza e o estado civil, pois aquele é o ‘Outro’ da modernida-de.

A primeira ação estatal depois de firmado o pacto seria de igualar(igualdade substancial) a comunidade sob os critérios de justiça social– a própria sociedade não merece existir senão enquanto busca o bemestar próprio do gênero humano.33 Neste modelo, a igualdade seriaplena: formal e material.

No entanto, a igualdade social estaria rompida através da violên-cia que exerceram uns sobre os outros, submetendo uns aos outros, des-pojando-os da parte que lhes correspondia. Através das gerações, a faltade qualquer freio ao aumento das fortunas foi o que fez com que unsenriquecessem à custa dos outros e que um pequeno número de famíliasacumulasse a riqueza, enquanto uma enorme massa foi caindo na indi-gência.34

Muito embora o fundamento do ius puniendi para Marat seja aretribuição, ‘única admissível do postulado contratualista’, sustentaque a sanção apenas pode ser justa quando o Estado age com o intui-to de reduzir as diferenças e restabelecer as igualdades. Somente emcasos de igualdade substancial poder-se-ia afirmar ser livre a opçãopela negação da norma, pois em estado de miserabilidade do corpo ouda alma o homem teria sua culpabilidade diminuída. Portanto, susten-ta que, se a lei em algum momento devesse abrandar, isto deveria acon-tecer somente em favor de quem é desafortunado, porque nele a virtude

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33 Marat, Disegno di Legislazione Criminale, p. 77.34 Zaffaroni & Pierangeli, ob. cit., p. 269.

caráter pedagógico da ‘retribuição’ ou do ‘melhoramento’ moral porconstituir ação localizada no âmbito da ética e não do direito.30

O mérito de Feuerbach na construção do modelo de coação psicoló-gica foi evitar a tendência anti-ilustrada de fusão dos planos da moral edo direito. Assim, das teorias clássicas sobre os fundamentos do direitode punir, a única idônea a ingressar na modernidade, dado o respeito aopressuposto da secularização, seria a teoria da prevenção geral negativa.

O escopo de exemplaridade repressiva, no entanto, tornaria a pes-soa penalizada um ‘bode expiatório’ a serviço do poder. O controlesocial via ameaça acabaria utilizando o homem como meio para dissua-dir os demais indivíduos do corpo social a não cometerem atos consi-derados pérfidos; rompendo com a ética kantiana na qual o homem nãopode servir de instrumentos aos fins do Estado.

As críticas de Carrara são fundamentais para a clara compreensãodesta perspectiva justificacionista. Segundo o autor, são extremamen-te perniciosas as conseqüências derivadas de tal fundamento, sobretu-do porque lleva a un aumento constantemente progresivo de las penas,pues la comisión del delito, al demostrar de manera positiva que el cul-pable no ha tenido temor de la pena, lleva al convencimento de que parainfundir temor a los demás es necesario aumentarla.31

Como também advertiu Radbruch,32 tem-se como resultado práti-co a redução da razão jurídica à razão política ou de Estado, obtendocomo efeito o ‘terrorismo penal’. Trata-se, pois, de modelo cuja decor-rência aponta ao panjudicialismo e ao maximalismo inquisitorial.

4.2.3. A perspectiva política de prevenção social

Como antecipado, Marat representa o marco inaugural do movi-mento da criminologia crítica amplamente divulgado a partir da déca-da de setenta do século XX. Seu socialismo utópico de fundamentação

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30 Por consiguiente, la pena civil como tal no tiene ni por objeto ni por fundamento jurídico:I) La prevención contra futuras contravenciones de un injuriante em particular, porque esono sería pena, en razón de que no se observa ningún fundamento jurídico para una ante-cipación semejante; II) Ninguna retribución moral, porque ésta pertenece al ámbito de loético y no al del orden jurídico, aparte de ser físicamente imposible; III) Ninguna clase deintimidación mediata de otro a través de los sufrimientos inferidos al malhechor, porqueno hay ningún tipo de derecho para ello; IV) Ningún mejoramiento moral, porque éste seríael objetivo de la expiación, pero no de la pena (Feuerbach, ob. cit., p. 62).

31 Carrara, Programa de Derecho Criminal, pp. 69-70.32 Apud Ferrajoli, ob. cit., p. 265.

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advento Estado intervencionista, instigada a avalanche legislativa, oti-miza-se a perda dos critérios objetivos na definição, comprovação eexecução das funções repressivo-punitivas do Estado.

As obras de Lombroso, Ferri e Garófalo, vivificadas pelos movi-mentos de (Nova) Defesa Social e implementadas no Brasil pelo apar-theid criminológico da Escola do Recife, propiciam uma fundamentação‘medicalizada’ (psiquiatrizada) do discurso sobre o crime e o crimino-so, e por conseqüência da pena, que excluirá toda e qualquer avaliaçãohumanística do fenômeno. Mais que fato social ocasional e/ou cotidia-no (normal), o crime será considerado violação da lei da natureza ope-rada por indivíduos identificados pela sua estética pré-civilizada. Daliberdade à periculosidade, da intimidação à reforma moral. Ao antece-dente criminoso, a incipiente ciência do direito penal (criminologia)apresenta a promessa de uma nova vida – a um passado de periculosi-dade confere-se um futuro: a recuperação.37

Percebe Vera Andrade38 que este paradigma opera em uma estru-tura consensual de sociedade na qual não se problematiza o direitopenal, pois a experiência é de uma única e maniqueísta assimetria: amaioria sadia (os cultuadores da lei) versus uma minoria desviante dis-funcional que necessita tratamento. O instrumento idôneo para recupe-rar e civilizar os anômalos seria a pena.

Diferentemente dos modelos retributivistas e preventivos gerais,direcionados ao fato passado ou à coação social, o pensamento etioló-gico inaugura uma perspectiva centrada no indivíduo, pois se o novoobjeto de investigação e intervenção da ciência criminal é o delinqüen-te, o instrumento de resposta ao desvio punível deve ser nele operado.

O sentido essencialmente profilático da pena transforma o univer-so e o perfil do direito penal. A ciência ocupada exclusivamente porpensadores do direito e da política até o século XVIII e meados do sécu-lo XIX é invadida por uma série de profissionais alheios ao mundo jurí-dico. São médicos, psiquiatras, anatomistas, biólogos, assistentessociais, antropólogos, sociólogos e pedagogos que começam a desca-racterizar a especialidade penal, já solidificada na estrutura formal dasletras jurídicas.39

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37 Andrade, Do Paradigma Etiológico ao Paradigma da Reação Social, p. 278.38 Andrade, ob. cit., p. 278.39 Esta invasão é tão significativa que, no início de sua famosa prolusão na Faculdade de

Direito da Universidade de Sassari, Arturo Rocco brada: no creo, sin embargo, equivocar-me al afirmar que por lo menos en el campo más restringido de las ciencias jurídicas, sonpocas las que presentan hoy día un estado de desorganización similar al que se encuentra

raramente pode germinar, e nada encontra para se sustentar. Assim,levando em consideração o sexo, a índole, a condição, a sorte dos delin-qüentes, e examinando as circunstâncias do crime, é que se pode julgarcom exatidão a pena merecida.35 Ensaia, desta maneira, o princípio daco-culpabilidade (co-responsabilidade) estatal pelo delito.

Nas sociedades desiguais, o meio correto a ser utilizado para queas normas possam ser observadas seria a distribuição equânime deriqueza e a educação das massas.36

Em realidade, a teoria da prevenção social não chega a ser umateoria justificadora do direito de punir no sentido próprio aqui utiliza-do. Representa, porém, significativa doutrina sobre os delitos e os limi-tes das penas. Sua presença é significativa como teoria de desconstru-ção dos saberes penalógicos tradicionais; de formação de critériosobjetivos no que diz respeito aos limites do poder punitivo; e, principal-mente, de direcionamento das teorias da pena ao campo político, modi-ficando o enfoque da discussão e possibilitando uma nova visualizaçãodo problema que acabará refletindo na proposta de negação dos funda-mentos jurídicos da sanção penal.

4.3. A justificativa etiológica de prevenção especial:fundamentos e programa político-criminal

A passagem do modelo contratualista de controle social para aestrutura etiológica, operada fundamentalmente pela transformaçãonas funções do Estado, impõe séria modificação na justificativa e naoperacionalidade da pena.

Com o refluxo do pensamento garantista, pelo ingresso da concep-ção organicista nas ciências criminais, irrompeu-se um novo giro inqui-sitorial no discurso penal, não mais identificado com a moral (modelopré-ilustrado), mas fundido por premissas naturalistas. Assim, com o

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35 Marat, Jean Paul. Ob. cit., p. 86.36 Sustenta Marat: não é suficiente dar ocupação ao pobre: é também necessário instruí-lo.

Como cumprirá os seus deveres se os ignora? Quais freios poderá ele opor a inclinaçõesfunestas, se não tem condições de prever as desventuranças que delas se originam?Observem aqueles cuja conduta é mais criminosa e constatarão que quase sempre se tratade homens que não receberam nenhuma educação. Quantos que se abandonam aos vícios,ao contrário, distinguir-se-iam pelas suas virtudes se tivessem sido nutridos com os ensi-namentos da sabedoria... Com a ajuda desta inovação, quantos desventurados salvos dastentações da necessidade! Quantos culpados a menos para punir! (Marat, ob. cit., p. 79).

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remedio empírico, al igual de las medicinas primitivas para las enferme-dades del cuerpo. O escopo da pena seria, portanto, hacerlo [criminoso]ser lo que no es pero debe ser. Es, en efecto, un enriquecimiento del serdel individuo, incluso el verdadero y único enriquecimiento de su ser, elacrescentamiento de su capacidad de amar.42

Do postulado determinista, com a conseqüente negação do livrearbítrio pelo atavismo antropológico, a pena será considerada medidade higienização social. Se o delinqüente representa um organismo dis-funcional no interior de uma sociedade sã, unívoca e consensual, a res-posta do Estado à transgressão da norma deve ter uma fundamentaçãoterapêutica. Assim, a técnica do positivismo criminológico afirma comoinício do procedimento científico a elaboração de critérios de classifica-ção dos criminosos segundo três pontos básicos: a maior ou menor pro-pensão ao delito, as características físicas e psíquicas, e o tipo de crimecometido. A criação de tipologias delinqüenciais permitiria reduzir oscriminosos em categorias específicas, impondo-lhes códigos exatospara facilitar o estudo empírico através do método experimental:devem constituir esquemas que sejam capazes de agrupar em catego-rias os delinqüentes, possibilitando, dessa forma, melhor apreciação deseu grau de periculosidade e, em conseqüência, maior acerto no trata-mento, através da cominação da sanção mais adequada.43 A classifica-ção representa o primeiro passo na anamnese reconstrutiva do grau depericulosidade apresentado pelo delinqüente.

As tipologias – classificação dos criminosos em várias espécies –facilitariam o trabalho de imposição da pena pelo juiz, principalmentepelo fato de a ele corresponderem os estudos da personalidade nomomento da individualização judicial.44 Sua importância exigiria, inclu-

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42 Carnelutti, Derecho Processal Civil y Penal II, pp. 08-09.43 Souza, A Influência da Escola Positiva no Direito Penal Brasileiro, p. 74.44 Muito embora a carência de sentido no conceito normativo ‘personalidade do agente’,

sobretudo porque é um tipo penal aberto, o conceito mais utilizado, direta ou indireta-mente, pela dogmática nacional é o de Anibal Bruno. Segundo o autor, personalidade éum todo complexo, porção herdada e porção adquirida, com o jogo de todas as forças quedeterminam ou influenciam o comportamento humano. Sua consideração implica a ava-liação do agente em seu meio circundante, as condições em que se formou e em que vive.Encontraremos aí muito elemento para discerni-la e explicá-la, porque sabemos que a per-sonalidade não é uma figura estática, uma vez por todas definida, mas resulta de um pro-cesso contínuo, em que sobre o herdado se vai enxertando, para completá-lo ou modificá-lo, o adquirido através do curso da existência, sob as pressões estimulantes ou traumati-zantes do meio no qual se trava o debate da vida. O mundo circundante permanente e omundo circundante ocasional dentro do qual fez eclosão o episódio criminoso (Bruno,Direito Penal, pp. 154-55).

Stanley Cohen,40 ao tabular as principais mudanças no controle dodesvio entre os séculos XVIII e XIX, nota a instauração e o fortaleci-mento do domínio profissional até então inexistente. Este modelo pro-picia ainda mais a centralização e o enclausuramento dos locais decontrole (prisionalização) e a conseqüente perda de visibilidade dasinstituições. Assim, as teorias do positivismo baseadas no tratamentopassam a operar em um paradigma repressivo extremamente estigma-tizante, sem qualquer possibilidade fática de fiscalização/controle emdecorrência da desjudicialização do sistema penal, principalmente daexecução da pena.

Baseada em estrutura social consensual e entendendo a ação des-viante como patológica e contrária à ordem, a reação penal deveria serabsoluta no tratamento do enfermo. Logo, esta política criminal corre-cionalista pressuporá atividade neutral do criminólogo,41 analisandodados objetivos, considerando o delito comum (de massas) como omais grave e acreditando nas funções da pena.

A função redentora (oficial) e despersonalizadora (operacional) dapena prolifera-se por toda a teoria do direito penal, atingindo, inclusi-ve, o núcleo do pensamento processual – afirma Carnelutti, quandotrata do castigo, que a pena deve ser um ‘restitutio do ser’: la pena seha concebido siempre como un remedio contra el delito. Si, pues, el deli-to es el sintoma de una deficiencia de ser en quien lo comete, la penadebería servir para colmarla... El instituto penal há surgido como un

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actualmente en la ciencia del derecho penal (Rocco, El Problema y el Metodo de la Cienciadel Derecho Penal, p. 02). Prossegue constatando que uma das virtudes do positivismocriminológico foi a de liberar o velho organismo científico do direito penal das incrustra-ções metafísicas. Todavia, ao reduzir o estudo exclusivamente à antropologia e à socio-logia, retirou a essência do direito penal: sometidos el derecho y la ciencia del derechopenal a la antropología, aún mas, anulados en nombre de una falsa antropología, o ahoga-dos por otra parte en el mar inmenso de la sociología, la escuela positiva tuvo, no obstan-te algunos méritos innegables, el resultado de acumular a su alrededor un montón de rui-nas jurídicas, sin haber hecho nada por sacar de entre ellas el nuevo edificio, no diré legis-lativo, sino al menos científico, de derecho penal, que había manifestado querer construír,y cuya edificación todos esperaban. Destruyendo, pues, sin reconstuír, tal escuela ha ter-minado por limitarse a la tarea más sencilla que es la de criticar y negar, y ha llegado enúltimo análisis a un derecho penal... sin derecho! (Rocco, ob. cit., p. 06).

40 Cohen, Visions of Social Control, pp. 16-17.41 Lembra Maria Palma Wolff que os laudos e pareceres, elaborados pelas equipes que atuam

no sistema penitenciário, são produzidos a partir de determinações de força, que sem dúvi-da, trazem os efeitos do poder. Pretendem ser expressão de cientificidade e de neutralida-de, mas terminam por demonstrar outra realidade (Wolff, Antologias de vida e histórias naprisão, p. 243). Sobre o dogma da neutralidade do criminólogo, conferir Batista, O procla-mado e o escondido, pp. 77-87.

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Malgrado a avaliação subjetiva da personalidade do réu ter sidorelegada ao momento da fase executiva, não foram poucos os teóricosque perceberam ser fundamental a realização de exame criminológicodurante o processo de conhecimento. Se fundamental a classificaçãodo delinqüente para indicar o nível de periculosidade individual, inexo-ravelmente, o tratamento, precedido por diagnóstico clínico da perso-nalidade, deveria ser realizado no momento postulatório da pena, ouseja, antes da sentença, com intuito de orientar o julgador na irrogaçãoda sanção.46

O exame realizado pelos técnicos da criminologia (psicólogos, psi-quiatras e assistentes sociais) propiciaria decisão judicial projetiva,determinando a sanção adequada em vista não só de uma ação já reali-zada, como também em vista de uma ação futura, se houver elementossuficientes para deduzi-la.47 Portanto, além do objetivo classificatório, olaudo criminológico estabeleceria critérios avaliativos da vida pregres-sa e da personalidade do réu, que seriam posteriormente aperfeiçoadosna execução. Segundo Mayrink da Costa, esse conhecimento do homemé precisamente a tarefa que a investigação criminológica, coordenada edisciplinada através da norma adjetiva penal, cumprirá para atingir odiagnóstico sintético e completo da personalidade do delinqüente, a fimde que o juiz penal possa verdadeiramente individualizar a pena priva-tiva da liberdade, no sentido de que a sanção atinja o seu fim científico,realizando a defesa do grupamento social e do próprio indivíduo comopartícipe da sociedade.48 Da resposta meramente retributiva no atosentencial, os órgãos penitenciários atuariam na imposição de instru-mento eficaz ao fim ressocializador.

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46 A tese da realização do exame criminológico antes da decisão judicial foi levantada noBrasil durante a década de setenta, sendo instituto vencido na reforma de 1984. ÁlvaroMayrink da Costa sustentava que a única solução para o problema vital da justiça crimi-nal dos nossos dias seria a realização do exame criminológico operado no curso da ins-trução criminal, porque só assim o magistrado teria os meios necessários para vislumbara personalidade do acusado, seus aspectos biológicos, psicológicos e sociais (Costa,Direito Penal, p. 1.519). Prossegue o autor afirmando que o juiz da cognição passaria a terpor obrigação, na função judicante, a investigação da constituição biológica do autor dofato típico, suas reações psicológicas e seu condicionamento social, os quais só poderáabordar através do exame criminológico, que proporcionaria a aplicação de medidas con-cernentes à sua personalidade (Costa, Exame Criminológico, p. 09).Embora as severas críticas à violação do princípio da presunção de inocência que tal pro-cedimento imporia, não invariavelmente a tese é retomada e, em alguns casos, alicerça-da em um discurso de garantias que encobre práticas substancialistas.

47 Costa, Direito Penal, p. 1.520.48 Costa, ob. cit., p. 1.518.

sive, mudança na individualização legal dos delitos e das penas, e acriação de diversos códigos penais para atender às diversidades deevolução cultural, moral, fisiológica e biológica – receita proposta comrigor no Brasil por Nina Rodrigues.

O passo seguinte à individualização judicial seria a individualiza-ção administrativa, baseada naquele juízo de periculosidade ensaiadopelo magistrado. Com o ingresso do objeto de investigação (criminos-so) no laboratório criminológico, o diagnóstico seria aprimorado pelosprofissionais do órgão penitenciário. O momento de individualizaçãojudicial, como salienta Saleilles,45 não passaria de um diagnóstico: oremédio será dado pela administração penitenciária.

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Em Hungria, a noção de personalidade é referencial antes de tudo, de caráter, síntese dasqualidades morais do indivíduo. É a psique individual, no seu modo de ser permanente(Apud Noronha, Direito Penal, p. 244). Pode-se encontrar ainda na manualística aferiçõesde personalidade como qualidades morais, a boa ou má índole, o sentido moral do crimi-noso, bem como a sua agressividade e o antagonismo contra a ordem social intrínsecos aseu temperamento (Mirabete, Manual de Direito Penal, p. 288). Jurisprudencialmente, asdefinições subjetivas acompanham as delimitações doutrinárias da avaliação da perso-nalidade como ato reconstrutivo dos valores de vida do imputado (neste sentido conferirFranco et alli, Código Penal e sua interpretação jurisprudencial, pp. 349-350).A imposição legal de avaliação da personalidade do réu ou condenado determina ao juiz eao criminólogo a busca cognitiva, durante o processo de instrução e de execução, das con-dições pessoais e de vida do criminoso. Nota, pois, Hungria, que o juiz deve ter em atençãoa boa ou a má índole do delinqüente, seu modo ordinário de sentir, de agir ou de reagir, a suamaior ou menor irritabilidade, o seu maior ou menor grau de entendimento e senso moral.Deve retraçar-lhe o perfil psíquico (Apud Noronha, op. cit., p. 244). Assim, para Paulo Joséda Costa Jr., se o acusado revelar personalidade de acentuada indiferença afetiva, de anal-gesia moral, haverá exacerbação da reprimenda imposta. Se não revelar traços de agressivi-dade, mostrando tratar-se de meliante que visa ao lucro sem ostentar brutalidade, ser-lhe-áconcedido um tratamento mais benigno (Costa Jr., Direito Penal, p. 163).A utilização do conceito, além de revelar clara manifestação do modelo correcionalista,possibilita ao julgador ampla discricionariedade em uma esfera na qual seria ilegítimoopinar: a interioridade da pessoa. A questão que se coloca não é se existem ou não con-dições mínimas de o julgador estabelecer este juízo, cuja resposta parece ser negativadada a deficiente formação transdisciplinar do operador do direito (neste sentido, confe-rir Carvalho & Carvalho, Aplicação da Pena e Garantismo, pp. 53-61). O problema levan-tado é que, mesmo se houvesse condições plenas de realização, esta avaliação seria ile-gítima sob o prisma do direito penal de garantias. Percebe-se, portanto, que a noção depersonalidade do acusado padece de profunda anemia significativa e que, agregada aoconceito de conduta social (outro requisito subjetivo presente nos institutos avaliados),conforma substrato legitimante de decisões extremamente autoritárias e sem o mínimocontrole jurisdicional, visto que tais hipóteses são irrefutáveis sob o ponto de vista pro-batório, dado seu caráter subjetivista. Outrossim, por sua indefinição e verdadeiraimpossibilidade de comprovação e refutação em juízo, nota-se que as noções de perso-nalidade e conduta social se confundem jurisprudencial e conceitualmente com a depericulosidade, sendo sua determinação inclinada a juízos e prognósticos de tendênciasdelinqüenciais, na melhor orientação de um direito penal do autor.

45 Apud Souza, ob. cit., p. 91.

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da e reincidência perpétua) é a definição da personalidade do agente,visto que esta fundamenta os prognósticos de reincidência e os juízos depericulosidade que atuarão na dosimetria e na execução da sanção.

Note-se que, assim como o conceito de personalidade, a categoriapericulosidade, nuclear neste modelo repressivo, é isenta de significa-do – o conceito de periculosidade, ou perigosidade, se funda no juízo deque o indivíduo, face ao seu desajustamento social, tem probabilidadede vir a praticar ou tornar a cometer um ilícito penal.50 A popularizaçãode tal categoria no senso comum teórico dos juristas e do homem darua, pela assunção ideológica da terminologia defensivista, não permi-te clara definição de sua essência, ou seja, trata-se de categoria extre-mamente aberta, sem qualquer sentido objetivo. Não obstante, é parâ-metro de justificação da incidência do sistema penal sobre os indiví-duos classificados como perigosos. Representa, em classificação idealtípica, o mais espetacular resíduo etiológico nos sistemas penais con-temporâneos.

A periculosidade, encoberta na aplicação judicial pelos termospersonalidade e conduta social, representa nada além de juízo futuro eincerto sobre condutas de impossível determinação probabilística,aplicada à pessoa rotulada como perversa, com base em uma questio-nável avaliação sobre suas condições morais e sua vida pregressa. VêBenedicto de Souza que, frente ao diagnóstico de suas condições atu-ais [dos indivíduos que cometeram crime], se obtém um prognóstico desua situação futura, traduzida na prática provável de um crime;51 ouseja, a noção de periculosidade está indissociavelmente ligada a umcerto exercício de futurologia pseudamente científico.52

No âmbito do direito penal material, as doutrinas antropológicaspositivistas que fundamentam os juízos de periculosidade e seus insti-tutos análogos (conduta social, personalidade, reincidência e antece-dentes) ferem dramaticamente o princípio da legalidade em seu sub-princípio previsibilidade mínima (taxatividade), pois inspiraram, nomelhor dos casos, modelos penais de legalidade atenuada, isto é, carac-terizados por figuras de crime elásticas e indeterminadas por espaços defato, se não de direito, abertos à analogia in malam partem, abrindocaminho nos piores casos, às muito mais nefastas doutrinas antiforma-listas que constituíram a base teórica dos ordenamentos penais totalitá-

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50 Souza, ob. cit., p. 78.51 Idem, pp. 78-79.52 Reuter, Manicômios, prisões, reformas e neoliberalismo, p. 74.

Outra proposta em relação à pena seria relativa à individualizaçãolegislativa, visto serem ‘relativamente escassas’ as possibilidades dojuiz e do criminólogo atuarem terapeuticamente nos momentos de indi-vidualização judicial e administrativa.

O ideal positivista no que refere à temática do quantum abstrato dapena é a sua indeterminação, legando ao juiz, e principalmente ao corpoadministrativo clínico, o estabelecimento do tempo ideal à terapêutica(modelo similar àquele imposto aos inimputáveis – medida de seguran-ça). A finalidade exclusivamente medicinal da sanção negaria qualquerjuízo prévio sobre o tempo de duração do tratamento. Assim, não somen-te deveria ser conferida ao juiz discricionariedade de cominar sentençaindeterminada, mas ao legislador seria imprescindível não cotizar limitesmínimos e/ou máximos, impossível saber a reação do paciente à medidacurativa e o percurso temporal à reabilitação. A proposta consistiria emnegar ao juiz a faculdade de fixar ‘a priori’ a duração da pena, cabendo aele, tão-somente, declarar a culpabilidade do acusado, mandando-o à pri-são. A duração da pena ficará a critério da administração penitenciária,que a fará cessar desde que se torne supérflua.49

Na história recente do direito penal brasileiro, o natimorto Códigode 1969 estabelecia essa anomalia jurídica. Baseado na lei penal italia-na e ampliando o entendimento do Anteprojeto Nélson Hungria (1963),que definia aumento de pena para determinados criminosos, o Códigoestipulava pena indeterminada: em se tratando de criminoso habitualou por tendência, a pena a ser imposta será por tempo indeterminado. Ojuiz fixará a pena correspondente à nova infração penal, que constituiráa duração mínima da pena privativa de liberdade, não podendo ser, emcaso algum, inferior a três anos (art. 64). Estabelecia, no entanto, prazofinal: a duração da pena indeterminada não poderá exceder a dez anos,após o cumprimento da pena imposta (art. 64, § 1o).

Coligada à indeterminação da pena, a perpetuidade da reincidên-cia, circunstância pessoal considerada critério substantivo de definiçãoda periculosidade do réu, impor-se-ia, pois o cometimento de um deli-to representaria uma mácula na vida do indivíduo e deveria acompa-nhá-lo até a morte. A prática de novo delito indicaria que a medidaterapêutica foi falha, impondo nova e diversa medicina.

Das propostas do modelo etiológico, pode-se perceber que o pontode convergência entre os diversos postulados (tipologia criminal classi-ficatória, exame clínico-criminológico pré-sentencial, pena indetermina-

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49 Souza, ob. cit., p. 92.

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neutralização (eliminação ou recuperação) da periculosidade de algunsgrupos ou indivíduos disfuncionais.

4.4. A crítica garantista ao modelo periculosista e à subjetivação processual

Ferrajoli, ao tratar das valorações proferidas pelo juízo penal àinterioridade do agente, nomina dois modelos antigarantistas: os siste-mas sem culpabilidade e os sistemas substancialistas. O primeiro seriacaracterística das formas taliônicas primitivas; o segundo, de averigua-ção subjetivista, direcionaria a repressão às condutas sem ação e/oumeros estados particulares.

O modelo etiológico descrito enquadrar-se-ia no sistema substan-cialista, apesar de que ambos prescindem da lesão de bens jurídicosconcretos, ou reprimindo antecipadamente a sua simples e abstrata pos-sibilidade de perigo, ou penalizando puramente o desvalor social ou polí-tico da ação, além de qualquer função penal de tutela.54

Segundo Ferrajoli, a subjetivação do delito e da pena conformaestruturas penais de autor que comprometem não apenas a estritalegalidade, mas também a estrita jurisdicionalidade, pois confiado acritérios arbitrários de avaliação da anormalidade ou da periculosidadedo réu, o que inevitavelmente frustra o conjunto das garantias proces-suais.55 Não obstante, advoga que a interioridade de um homem – o seucaráter, a sua moralidade, os seus precedentes penais, as suas inclina-ções psico-físicas – não deve interessar ao direito penal senão para daíinduzir o grau de culpabilidade das suas ações criminosas. Compreende-se que num sistema garantista assim configurado, não encontrem espa-ço nem a categoria periculosidade, nem outras tipologias subjetivas oude autor elaboradas pela criminologia antropológica e pela criminologiaeticista, como capacidade criminal, reincidência, tendência a delinqüir,imoralidade e semelhantes.56

A hipótese levantada possibilita afirmar que o saber jurídico-penalprescinde de novo processo secularizador, não restrito aos vínculos dodireito e da moral ainda necessários, mas sobretudo em relação à sin-cronia do saber jurídico com o saber naturalístico imperante e obscure-cido pelo falso humanismo da Defesa Social. Fundar um regime jurídi-

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54 Ferrajoli, ob. cit., p. 77.55 Idem.56 Ferrajoli, ob. cit., p. 505.

rios.53 No que tange ao direito processual penal, a categoria periculosi-dade rompe com qualquer possibilidade de construção de um modeloprocessual de garantias, visto ser o extremo oposto do princípio da pre-sunção de inocência. Não esporádico, porém, justifica inúmeros juízosde reprovação encontrados em precedentes judiciais decorrentes desuas noções abertas e anoréxicas. Quanto à pena, os juízos de pericu-losidade sustentam a discricionariedade e o arbítrio judicial na fixaçãoquantitativa; estruturam o saber criminológico psiquatrizado dos órgãoda execução penal subordinados à administração carcerária; e determi-nam as regras e as possibilidades de alcance das garantias por partedo condenado.

Se os institutos advindos da projeção do paradigma etiológico pelomovimento reformista da Nova Defesa Social não foram adotados pelareforma penal brasileira de 1984 de forma plena, segundo o projetotransnacional do movimento, algumas premissas foram enraizadas nosistema de execução penal nacional e sustentam, até os dias atuais,um modelo penalógico aparentemente híbrido, mas que consolidaempírica e processualmente a ideologia do tratamento.

Avaliações da personalidade do réu na dosimetria da pena; limita-ções a direitos derivados da reincidência; avaliações de periculosidade;classificação dos condenados segundo suas características pessoais; eprognósticos clínicos de tratamento penitenciário são institutos quemodelam um sistema de elaboração, aplicação e execução da penaorientado pela noção profilática. Em realidade, categorias como pericu-losidade, reeducação, personalidade do agente, prevenção da reincidên-cia e medidas de segurança extra-penais compõem este universo proje-tivo de prevenção especial devido ao deslocamento sutil e eficaz dateoria defensivista.

Apesar da negativa substancial, porém não formal, de sua tradi-ção positivista, o movimento neo-defensivista revigora na atualidade oparadigma etiológico, sua conseqüente concepção anti-secular e anti-iluminista, orientando a transnacionalização do controle social sob osigno da ressocialização. Mais: potencializa, sob a chancela científica,formas de fragmentação social similares às do modelo lombrosiano,pois calcados em concepções naturalistas de sociedades homogênease isentas de contradições (a única disfuncionabilidade seria o delito).Opera-se, portanto, com a presunção de que existem interesses unifor-mes e monolíticos no interior do corpo social, como a necessidade de

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53 Ferrajoli, ob. cit., p. 372.

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necessárias amarras impostas pelos princípios da secularização e dalegalidade (mala prohibita), substituindo-os por valorações potestati-vas de cunho subjetivo na reconstrução da personalidade de pessoarotulada como má (mala in se).

A utilização do aparelho penal de controle social para determinar(lei penal), valorar (processo) e transformar (pena) personalidades con-sideradas perigosas (outsiders) conforma um projeto político-criminalantidemocrático, tendente à profilaxia social, típico de sistemas totali-tários. Este saber importa fundamentalmente qualificar ‘cientifica-mente’ o ato enquanto delito e principalmente o indivíduo enquantodelinqüente. O correlativo da justiça penal é o próprio infrator, mas o doaparelho penitenciário é outra pessoa; é o delinqüente, unidade biográ-fica, núcleo de periculosidade, representante de um tipo de anomalia.59

A estrutura etiológica, representada pelos institutos avaliados,converge no sentido de fundamentar e justificar ideologicamente omodelo penalógico ressocializador que, como os demais conceitos pre-sentes no discurso oficial, sofrem de profunda carência de significado.Winfried Hassemer, ao descrever o modelo preventivo especial, afirmaque los problemas comienzan con la falta de acuerdo sobre el contenidode la meta ‘socialización’ o ‘resocialización’, un acordo que tampoco esfácil que se pueda conseguir a corto plazo.60

Independente de ser orientado à ‘mudança interior’, ‘cura’, ‘reabi-litação social’, ‘emancipação individual’ ou ‘neutralização da reinci-dência’, o conceito de ressocialização, cuja função é solidificar o para-digma defensivista, é tão indeterminado quanto os outros elementosque lhe são correlatos. Desconstruído sob o viés fenomenológico pelacriminologia da reação social, passa nesse momento pela sua desqua-lificação axiológica pois, se realizável, a intervenção penal como medi-da de transformação seria inadmissível, dada a ofensa ao paradigmaconstitucional dos direitos e garantias fundamentais.

Considerar a pena como instrumento curativo ou reeducativo,pressupondo ser o delito uma patologia individual ou social, pressupõeaproximação dos conceitos de natureza (e/ou moral) com direito. Asconcepções penalógicas nas quais há simetria entre direito e natureza(teorias de Defesa Social) e direito e moral (teorias da emenda)61 são as

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59 Foucault, Vigiar e Punir, p. 225.60 Hassemer, Fundamentos del Derecho Penal, p. 355.61 Para Luigi Ferrajoli, as doutrinas da emenda, de fato, confundem explicitamente direito e

moral, concebendo o réu como um pecador que deve ser reeducado de maneira coativa e

co sob a égide da periculosidade representa, como sustenta Ferrajoli,verdadeira ‘monstruosidade jurídica’ porque tal juízo é um prognósticojudicial em si mesmo arbitrário, pois resoluto em decisões potestativasdesvinculadas de qualquer parâmetro processual válido. Outrossim,contradiz abertamente o principal postulado do processo acusatório(princípio da presunção de inocência), consolidando funções de políciaà acusação pública. Portanto, tal estrutura determina un poder en blan-co en cabeza de los inquisidores, de hecho ilimitado e incontrolable,completamente incompatible con el modelo garantizador de la jurisdic-ción penal.57

Os juízos de periculosidade descritos estabelecem uma situaçãode fato inverificável e processualmente incomprovável pela impossibi-lidade empírica de experimentação. No interior do modelo de garan-tias, as hipóteses processuais devem ser baseadas em juízos verdadei-ros e/ou falsos, probatoriamente demonstrados e passíveis de negação(contraditoriedade). A extensão semântica de termos como periculosi-dade, personalidade, antecedentes e conduta social tornam o ato juris-dicional extremamente arbitrário no acertamento dos casos. A inverifi-cabilidade e a irrefutabilidade das hipóteses apresentadas são compa-tíveis apenas com valorações de tipo subjetivas, ferindo a taxatividade,principal garantia do direito e do processo penal por estabelecer variá-veis e limites à interpretação da norma e à atuação processual.

Em realidade, o que se percebe é uma composição de dados dabiografia da pessoa acusada que propiciará a formação de um secondcode, isto é, de regras e de mecanismos extra-oficiais que atuam invi-sivelmente e que passam a integrar objetivamente o conjunto de meta-regras e a interferir na ação dos operadores jurídicos, tanto na produçãodogmática, como na aplicação das normas, resultando daí uma influên-cia maior do que aquela prevista no Direito Positivo.58

Apesar de tecnicamente (código oficial) e latentemente (secondcode) os termos referidos adicionarem à pena maior quantificação, ouainda impedir ao acusado o gozo de inúmeros direitos, dogmaticamen-te tais expressões são incompatíveis com a perspectiva do direitopenal do fato, visto substituírem a avaliação objetiva e cognoscitivapelo substancial julgamento da interioridade da pessoa e de suas‘tendências’. Acaba-se, então, punindo a pessoa pelo que ela é (quiapeccatum) e não pelo que fez (quia prohibitum), abandonando as

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57 Ferrajoli, Crisis del Sistema Político y Jurisdicción, p. 119.58 Bissoli Filho, Estigmas da Criminalização, p. 109.

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Zaffaroni questiona a necessidade teórica (do professor de direitopenal) e prática (do operador do direito) de um modelo explicativo dasanção no terceiro milênio. Em realidade, resgata questões já levanta-das anteriormente em importante momento da literatura penal latino-americana.64

Primeiramente, o autor indaga se é possível ao operador do direi-to, principalmente o juiz, tomar decisões sem um modelo justificador.Em momento posterior, reloca o problema à academia, ou seja, indagase poderia o professor lecionar sem uma ‘teoria da pena’, sem umaestrutura que justifique racionalmente sua imposição.

A resposta fornecida à primeira indagação é relativamente sim-ples. Resgatando a práxis jurisprudencial de Magnaud, o autor afirmaque o juiz, frente ao caso concreto, pode prescindir de uma teoria acura-da, visto sua possibilidade de atuar de maneira ‘razoavelmenteintuitiva’ no controle e limitação do poder dos aparatos administrativos,respaldando-se nos princípios penais liberais e constitucionais republi-canos. Ressalta, porém, que o trabalho mais complexo seria o do profes-sor ou do jurista teórico: como lecionar sem uma ‘teoria da pena’, semreconhecer o ‘direito de punir’, sem admitir o ‘direito penal subjetivo’ doEstado. Interroga ainda como seria possível ao pesquisador e ao pensa-dor do direito racionalizar uma teoria dos exercícios irracionais do poderdesmascarados pelas teorias criminológicas críticas.65

As teorias da pena, apresentadas como disciplinas dogmáticas, aotentarem justificar o poder de punir, realizariam, na opinião do autor,tarefa que não é sua, estéril, porque a legitimação produzida pela dog-mática é direcionada ao poder do juiz e não ao poder de punir. O poderpunitivo, assim, não é exercido no interior do judiciário, mas pelos apa-ratos da burocracia administrativa que condicionam a criminalização ea punição.

Ao comungar dos princípios da criminologia da reação social, emprofunda denúncia da seletividade, desigualdade e barbárie produzidaspelos aparelhos que possuem função repressora, Zaffaroni entende serabsolutamente dispensável uma teoria da pena, visualizando a possibi-

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64 Zaffaroni, Em Busca das Penas Perdidas, pp. 201-204.65 Diagnostica Zaffaroni: mas há um outro trabalho mais complexo: o do professor, o do juris-

ta teórico. Como desempenhar a função de professor sem uma ‘teoria da pena’, sem reco-nhecer um ‘direito de punir’, sem admitir um ‘direito penal subjetivo’ do Estado? As penasde hoje não têm legitimidade, ao menos na maior parte dos casos. Como tornar razoáveluma ‘teoria’ em relação ao exercício de um poder que não tem razões? (Zaffaroni, LaRinascita del Diritto Penale Liberale o la ‘Croce Rossa’ Giudiziaria, p. 392).

mais antiliberais e antigarantistas teorias já concebidas, justificandomodelos maximalistas e substancialistas.

Outrossim, a função reeducativa impõe ruptura na unidade do pro-cesso penal pois, se o juiz, durante a instrução, deve atuar na recons-trução do fato pretérito, caberia, na execução, projetar o futuro do agen-te, determinando condições idôneas para sua melhoria interior, objeti-vando uma vida isenta de delitos. Ferrajoli conclui que degenera emdespotismo sempre que se arroga funções pedagógicas e propagandísti-cas como instrumento de estigmatização e sancionamento moral.62

Segue, como se percebe, os passos trilhados por Carrara quando criti-ca ser inútil e falso o uso do instrumento penalógico para emendar:seduce los ánimos la perspeciva de un mejoramiento de la humanidad,pero cuando para alcanzar este fin se emplean medios violentos, sin quelo necesite la defensa ajena, la aparente filantropía degenera en un ini-cuo despotismo.63

4.5. O garantismo e a negação da legitimidade jurídica da pena

4.5.1. Da necessidade de uma teoria da pena

O estudo sobre as mais diversas bases doutrinárias que fundaramas inúmeras teorias da pena propiciou, negativamente, a sólida cons-trução de modelo garantista, pois insuficientes as várias formulaçõesjurídicas relativas ao tema.

Indagações de fundo, e quiçá mais importantes, ainda se impõem.Dentre elas, uma parece ser fundamental, qual seja, a que diz respeitoà necessidade mesma de uma teoria penalógica. Assim, é mister ava-liar a idoneidade ou não de um sistema coerente de idéias que susten-tam teoricamente a imposição da sanção penal. Tal questão será repre-sentada no fértil e esclarecedor diálogo entre Luigi Ferrajoli e EugenioRaúl Zaffaroni.

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dando à pena funções benéficas de arrependimento interior; as doutrinas de defesa sociale as teleológicas, por outro lado, confundem direito e natureza, sociedade e Estado, orde-namentos jurídicos e organismos animais, representando o réu como um doente ou comoum ser anormal que deve ser tratado ou eliminado (Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 258).

62 Ferrajoli, Il Problema Morale e il ruogo della Legge, p. 44.63 Carrara, Programa de Derecho Criminal, p. 64.

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Ao negar as teorias defensivistas, Ferrajoli chama atenção para ofato de que as críticas às teorias da pena são absolutamente pertinen-tes, vista a diafonia entre as funções declaradas e as funções realmen-te exercidas nas práticas administrativas.

Os ideais defensivistas – das doutrinas de segurança nacional àsteorias da nova (e novíssima) Defesa Social – correspondem ao quedenomina vício ideológico e meta-ético das doutrinas de justificação.69

Vícios dogmáticos que produzem um discurso falacioso centrado nacisão irreal entre o modelo teórico-normativo (científico) e a efetividade(política) da sanção.

Das relações conflitantes produzidas entre as doutrinas de justifi-cação, isto é, entre os discursos normativos sobre a justificação – finsdo direito penal (teorias penalógicas) –, e as justificações – discursosformulados a posteriori em relação ao cumprimento dos objetivos justi-ficantes e sua correspondência ao modelo normativo –, encontra-se umesquema de deslegitimação das normas, institutos e práticas penais.Principalmente na América Latina, onde o respeito à legalidade penale processual penal sempre foi inexistente.70

Constata-se, pois, uma interação entre a crítica marginal e omodelo garantidor na redefinição das doutrinas penalógicas. Não maisuma teoria justificante do ‘direito de punir’, mas uma teoria normativasobre os limites e condições de legitimidade da pena fundadas em finsespecíficos: diminuição de dor e sofrimento causados pela aplicação dapena; reconhecimento da pena na esfera política; e tutela do pólo débilda relação contra qualquer tipo de vingança emotiva e desproporcio-nal, seja pública ou privada.

Minimização do sofrimento (redução de danos) gerado pela pena(violência pública) e negação da violência privada ilegítima decorrenteda inexistência da pena possibilitariam uma nova compreensão da san-ção como fenômeno do poder, encetando gradual negativa dos mode-los teóricos justificadores. A estratégia, portanto, passa a ser o deslo-camento do problema da pena da esfera jurídica à política. O direito,

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69 Este vício consiste em identificar, no plano filosófico, um determinado objetivo que justi-fique o direito penal em abstrato, e depois em assumi-lo justificado por qualquer direitopenal concreto: em outras palavras, na troca do ‘ser’ efetivo do direito penal – nos paísesda América Latina e também nos ordenamentos europeus – com o seu ‘dever ser’ norma-tivo, como é enunciado na doutrina de justificação proposta (Ferrajoli, ob. cit., p. 499).

70 Neste sentido, conferir Bergalli, Fallacia Garantista nella Cultura Hiuridico Penale diLingua Ispanica, pp. 191-198.

lidade de (re)construir o direito penal com a precípua finalidade de redu-ção da violência do exercício do poder. Reduzir dor e sofrimento (redu-ção de danos) seria o único motivo de justificação da pena nas atuaiscondições em que é exercida, principalmente nos países periféricos.

Esclarece lecionando que a doutrina penalista pode reconstruir oseu discurso sobre esta base, e não tem nenhuma necessidade de uma‘teoria da pena’; pode retomar o pensamento liberal, e jogar fora ‘assementes do mal’ que o pensamento dos nossos ingênuos ‘pais liberais’continha... A estratégia é clara: salvar vidas, diminuir as desigualdades,evitar sofrimento... Para conseguir reduzir o poder punitivo, deve serprogressivamente liberal (garantista), e para ser ‘progressivamenteliberal’ deve prescindir de qualquer ‘teoria da pena’.66 Mais, argumentaque, se o sistema penal é um mero fato de poder, a pena não pode pre-tender nenhuma racionalidade, ou seja, não pode ser explicada a não sercomo manifestação de poder.67

Retornar ao Iluminismo, sacando-lhe os germens antiliberais,seria o dever primordial das doutrinas garantistas. Se esta falha congê-nita (resíduos inquisitoriais e autoritários no seio do iluminismo penal)foi identificada anteriormente na estrutura do pensamento ideológicodefensivista, agora ela retorna na conseqüência deste modelo sob asociedade via justificação penalógica. Negar as teorias da pena possi-bilitaria eliminar do discurso penal o viés declarado (e não cumprido)que mascara a real funcionabilidade da sanção penal, retomando seuidentificador essencial, que radica na esfera da política. Em suma:pena é manifestação fática, em essência política, isenta de qualquerfundamentação jurídica racional. Tal como a ‘guerra’ – modelo sancio-natório nas relações internacionais –, a pena caracterizar-se-ia comomeio extremo e cruel, isento de justificativa jurídica.

Ferrajoli, em sua réplica ao pensador porteño, comunga desta for-mulação teórica na qual todas as teorias da pena, inclusive as propug-nadas pelos antigos liberais do século passado, traziam em si semen-tes de antiliberalismo devido à sua finalidade de Defesa Social. Afirmaque todas as teorias da pena são, definitivamente, doutrinas do direitopenal máximo, informadas unicamente pela máxima utilidade aos nãodesviantes, e ignorando a perspectiva do desviante, encarados no máxi-mo como objeto de práticas correcionais ou de integração coagida.68

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66 Zaffaroni, ob. cit., pp. 393-394.67 Zaffaroni, Em Busca das Penas Perdidas, p. 202.68 Ferrajoli, Note Critiche ed Autocritiche intorno alla discussione su ‘Diritto e ragione’, p. 498.

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modelo negativo e excludente da sanção formal que direcionará a res-posta do delito/desvio ao corpo social,75 Barreto fornece parâmetrosjurídicos de contenção da retaliação: não um modelo sancionatóriosocietário carente de vínculos (freios), mas um sistema jurídico de limi-tação formal e de deslegitimação material da atividade política exerci-da pela administração pública.

Neste sentido, atualizam-se as afirmações do pensador sergipanoao ser defendida uma forma jurídica da pena, entendida como técnicainstitucional de minimização da reação violenta ao desvio socialmentenão tolerado, e de garantia do indiciado contra os arbítrios, os excessose os erros comuns em sistemas a-jurídicos de controle social.76

4.5.2. A proposta garantista de limitação do poderpunitivo

Pode-se sustentar relativa sintonia entre o modelo garantista e aconcepção de pena inaugurada por Tobias Barreto. Ao sustentar que apena é um ato político e que o direito, como limite da política, deveriaestabelecer freios à sanção, se está a recusar os conhecidos modelos dedireito penal máximo que, em sua estrutura teórica de razão de Estado,optam pelo primado da política sobre o direito. Desta forma, o modelogarantista, negando as teorias da pena, estabelece critérios de limita-ção do poder penal.

Os tradicionais modelos do Iluminismo representados pela escolalombarda justificaram a pena desde uma opção teórica utilitarista: ‘amáxima felicidade possível aos que não delinqüem’. A afirmaçãoencontra guarida na introdução da obra de Beccaria, quando o autorafirma que as leis, que deveriam ser convenções feitas livremente entrehomens livres, não foram, o mais das vezes, senão o instrumento das pai-xões da minoria, ou o produto do acaso e do momento, e nunca a obra deum prudente observador da natureza humana, que tenha sabido dirigirtodas as ações da sociedade com este único fim: todo o bem-estar possí-vel para a maioria.77

Note-se que a concepção de delito e delinqüente precedente aoparadigma da reação social é representada pela ação de uma minoria

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75 Críticas ao modelo abolicionista, conferir Carvalho, Considerações sobre as incongruên-cias da justiça penal consensual, pp. 129-160.

76 Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 235.77 Beccaria, ob. cit., p. 26.

nesta ótica, retomaria seu papel de limite à política, atuando como vín-culo negativo à ação administrativa.

Tal perspectiva possibilitaria, inclusive, o resgate dos postuladosde Tobias Barreto, em um dos mais clássicos textos da literatura penalbrasileira, quando sugere: quem procura o fundamento jurídico da penadeve também procurar, se é que já não encontrou, o fundamento jurídi-co da guerra.71

A original hipótese formulada por Barreto é precedida da afirma-ção de que existem certos homens que possuem o dom especial de tor-nar incompreensíveis as coisas mais simples do mundo.72 Entre as‘questões sem saída’ estaria a célebre indagação sobre o fundamentodo direito de punir, tornada ‘espécie de adivinha’ que os mestres enten-dem serem obrigados a propor aos discípulos.

Não obstante a assistematicidade de sua obra e o flerte com odefensivismo, é fundamental perceber a matriz teórica proposta porTobias Barreto quando redireciona a questão da pena: o conceito da penanão é um conceito jurídico, mas um conceito político. Este ponto é capital.O defeito das teorias correntes em tal matéria consiste justamente no errode considerar a pena como uma conseqüência do direito, logicamente fun-dada... Que a pena, considerada em si mesma, nada tem que ver com aidéia do direito, prova-o de sobra o fato de que ela tem sido muitas vezesaplicada e executada em nome da religião, isto é, em nome do que há demais alheio à vida jurídica.73 Acertadamente, lembra Zaffaroni74 queBarreto antecedeu a ilação dos raciocínios no sentido de ser a pena umarealidade empírica, um exercício do poder, e não um ‘direito’ inventadonum mundo medido pelos delírios legislativos e doutrinários.

A deslegitimação da pena proposta por Tobias Barreto superainclusive a crítica do movimento abolicionista, pois, contrariamente ao

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71 Barreto, Fundamentos do direito de punir, p. 650.72 Sustenta Barreto: Os criminalistas que ainda se julgam obrigados a fazer exposições dos

diversos sistemas engendrados para explicar o direito de punir, o fundamento jurídico eo fim racional da pena, cometem um erro, quando na frente da série colocam a vindita.Porquanto a vindita não é um sistema; não é, como a defesa direta ou indireta, e asdemais fórmulas explicativas idealizadas pelas teorias absolutas, relativas e mixtas, ummodo de conceber e julgar de acôrdo com esta ou aquela doutrina abstrata, o instituto dapena: a vindita é a pena mesma, considerada em sua origem de fato, em sua gênese his-tórica, desde os primeiros esboços de organização social, baseada na comunhão de san-gue e na comunhão de paz, que naturalmente se deram logo depois do primeiro albor daconsciência humana, logo depois que o pithecanthropo falou... et homo factus est(Barreto, ob. cit., p. 647).

73 Barreto, ob. cit., pp. 649-650.74 Zaffaroni, Elementos para uma Leitura de Tobias Barreto, p. 185.

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reeducar) os apenados, ou que dissuade (em vez de deve dissuadir) amaioria dos propensos a cometer delitos, entre outras.78

Muito longe de serem ‘teorias’ da pena, as doutrinas apresentadassão discursos normativos sobre seu escopo ou teorias descritivas desuas funções e/ou motivações. Portanto, incompatíveis e diafônicasentre si, pois confundem esquemas de explicação com modelos de jus-tificação. Nos vícios cometidos pelas doutrinas de justificação tambémincorrem as doutrinas abolicionistas, discutindo fundamentos valorati-vos através de argumentos empíricos.

Contudo, apesar dos problemas das tradicionais ‘teorias da pena’,Ferrajoli entende ser possível construir um modelo penalógico minima-lista redutor de danos. A primeira ordem dos requisitos supõe a aceita-ção do postulado secularizador da rígida separação entre direito emoral, de maneira que nem o crime seja considerado como um mal em siquia prohibitum, nem a pena seja considerada como um bem em si quiapeccatum.79 O segundo requisito fundamenta-se na possibilidade de apena atingir sua finalidade, ou seja, de haver relação simétrica entre osmeios e os fins penais.

Para sublimar os efeitos incongruentes das teorias justificacionis-tas e abolicionistas da pena, Ferrajoli funda seu modelo de utilitarismoriformato segundo o argumento da pena mínima necessária. Negandoa tradição liberal anti-iluminista, o autor concebe o fim da pena nãoapenas como prevenção aos injustos delitos, mas principalmente comoesquema normativo de prevenção da reação informal, selvagem, es-pontânea, arbitrária que a falta das penas poderia ensejar. Desde esteponto de vista, a pena apresentar-se-ia como guardiã do direito doinfrator em não ser punido senão (razoavelmente) pelo Estado, redi-mensionando a função do direito e do processo penal, não mais direcio-nado à tutela social, mas à proteção da pessoa que se encontra emsituação de violência privada – momento da lesão interindividual –e/ou pública – plano institucional. Impedir o mal da vingança arbitráriae desmedida operada pela vítima, ou pelas forças solidárias a ela, bemcomo o excesso punitivo do Estado, seria o escopo deste novo modelode direito: garantias penais e processuais, de fato, não são mais do quetécnicas que têm por objetivo minimizar a violência e o poder punitivo;

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78 Ferrajoli, ob. cit., pp. 315-316.79 Ferrajoli, ob. cit., p. 320.

desviante, isto é, o delito é a exceção e o delinqüente é um homem dife-renciado dos demais.

Todavia, o projeto político do garantismo traz em seu bojo ummodelo de mitigação das penas que possibilita uma releitura da máxi-ma utilitarista ilustrada, configurando o que Ferrajoli chama de ‘utilita-rismo reformado’.

À primeira versão utilitarista rememorada dos ‘clássicos’ Ferrajoliadiciona um segundo aforisma, não relacionado mais à sociedade e aoshomens que ‘fielmente cumprem às leis’, mas aos indivíduos que a vio-laram, aos destinatários da pena. Este aforismo é centrado na reduçãoquantitativa e qualitativa da dor aos que cometeram crimes. Assim,estrutura a finalidade do modelo utilitarista do garantismo através daexpressão máxima felicidade possível para a maioria não desviante emínimo sofrimento necessário para a minoria desviante.

O segundo postulado, ao representar o modelo minimalista deredução das penas, rompe com a tradição penal de direcionar todo oescopo da sanção à prevenção de novos delitos, seja pela via individual(prevenção especial positiva), seja pela coletiva (prevenção geral nega-tiva). Ao contrário dos modelos defensivistas que demonizam o autordo ilícito penal, utilizando a pena como forma de tutela social, o mode-lo garantista recupera a funcionabilidade do direito na restrição e impo-sição de limites ao arbítrio sancionatório judicial e administrativo.

Para Ferrajoli, um dos grandes problemas relativos ao interrogan-te ‘por que castigar?’ consiste nas confusões doutrinárias entre as fun-ções, as motivações e as finalidades (dever-ser) da pena, mesclandoconsiderações e explicações com justificativas e/ou vice-versa. A per-gunta ‘por que punir?’ tem, para o autor, dois significados diversos: osentido científico de indagação do ‘por que existe a pena?’; e o proble-ma filosófico do ‘por que deve existir a pena?’.

As dificuldades geradas pelas teorias absolutas e relativas dapena decorrem da confusão metodológica entre função (descrição his-tórica ou sociológica) ou motivação (descrição jurídica) com o dever seraxiológico da pena e, conseqüentemente, a assunção da explicaçãocomo justificativa e vice-versa: é deste modo que falam, sobre os objeti-vos da pena, de ‘teorias absolutas’ ou ‘relativas’, de ‘teorias retributi-vistas’ ou ‘utilitaristas’, de ‘teorias da prevenção geral’ ou ‘teorias daprevenção especial’, entre outras, sugerindo a idéia de que a pena temum efeito (aliás, um objetivo) retributivo ou reparador, e que esta previ-ne (em vez de deve prevenir) os crimes, ou que reeduca (em vez de deve

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Muito embora críticas possam ser direcionadas ao modelo minima-lista de Ferrajoli, mormente no que diz a efetiva redução das violênciasprivadas contra o desviante no caso de ausência sancionatória84 e a(re)capacitação do modelo de prevenção geral negativa,85 o modelo pro-posto tem como virtude a recuperação do jurídico em relação ao político.Na esteira da Tobias Barreto, ao entender a pena como ‘fenômeno’, comorealidade empírica estranha ao direito, este (direito) passa a ser vistocomo instrumento de contenção daquela (pena). Desta forma, o direitoganha potência (instrumentalidade) na atuação contra os poderes, públi-cos ou privados, objetivando a tutela do pólo mais fraco.

A fundamentação garantista da pena, portanto, não destrói o edi-fício jurídico construído na modernidade, pelo contrário, reconstrói omodelo genealógico seriamente abalado pelo direcionamento do direi-to penal à Defesa Social. Trata-se de modelo penal que tem como fun-ção precípua a negação explícita de qualquer estado de guerra. É, pois,um sistema estruturado na tolerância, porque a tolerância exclui aguerra e a sua lógica amigo/inimigo, porque reconhece o outro comovalor, não como meio mas como fim, em uma palavra como ‘pessoa’, nãoapenas que não deva ser combatida ou repelida, mas respeitada, nãoapesar de, mas justamente porque é, diversa.86

Segundo Hart, en una comunidad de ángeles, jamás tentados por eldeseo de dañar a otros, las reglas que prescriben abstenciones no seríannecesarias. Ao contrário, em uma sociedade de demônios dispuestos adestruir, y a pagar cualquier precio por hacerlo, tales reglas serían impo-sibles.87 Contudo, em uma sociedade de humanos, ‘demasiadohumanos’, as regras e as sanções continuam sendo possibilidade denegação da barbárie e afirmação progressiva e constante do processocivilizatório, pois a civilização tem de utilizar esforços supremos a fim deestabelecer limites para os instintos agressivos do homem e manter suasmanifestações sob controle.88

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84 Ver, sobre o tema, as críticas de Queiroz, A justificativa do direito de punir na obra deLuigi Ferrajoli, pp. 117-128.

85 Gimbernat Ordeig, ao comentar a obra Direito e Razão, afirma que a pesar de su crítica ala prevención general negativa, no obstante inconsecuentemente Ferrajoli, posteriormen-te, acude a ella para justificar la existencia del Derecho penal, añadiendo, como segundocriterio explicativo y racional de esa existência que con el Derecho penal también se tratade prevenir outro mal (Gimbernat Ordeig, Derecho y Razón, p. 21).

86 Ferrajoli, Tolleranza e Intollerabilità nello Stato di Diritto, p. 291.87 Apud Lopez Calera, Derecho y Tolerancia, p. 08.88 Freud, O Mal-Estar na Civilização, p. 167.

isto é, reduzir ao máximo a previsão dos crimes, o arbítrio dos juízos e otormento das penas.80

Prevenção dos delitos e prevenção dos castigos conformaria omodelo garantista do direito penal como negação da guerra e proteçãodo mais fraco. A centralidade da pessoa em seus direitos fundamentaisé recuperada pela dupla função penalógica, legitimando sua ‘necessi-dade política’ e os critérios de limitação dos delitos e dos castigos.81

Reitera Ferrajoli que esse modelo sancionador alia-se aos postula-dos da democracia substancial, pois nega a vontade ilimitada da maio-ria e protege o mais débil. Garantismo, portanto, significa precisamen-te a tutela dos valores ou direitos fundamentais cuja satisfação, aindacontra os interesses da maioria, é o fim justificante do direito penal: aimunidade dos cidadãos contra a arbitrariedade das proibições e daspunições, a defesa dos fracos mediante regras do jogo iguais para todos,a dignidade da pessoa do imputado e, portanto, a garantia da sua liber-dade através do respeito pela sua verdade.82

A pena, portanto, seria um instrumento político de negação davingança; um limite ao poder punitivo; o mal menor em relação às pos-sibilidades vindicativas que se produziriam na sua inexistência.

Ferrajoli entende que o modelo normativo garantista satisfaz osrequisitos para a adequada justificação da pena, pois, (1o) ao orientar odireito penal à prevenção geral negativa, exclui a confusão entre direitoe moral que caracteriza as doutrinas retribucionistas e de prevençãopositiva; (2o) ao impor o duplo fim da pena – ‘o máximo bem-estar possí-vel aos que não delinqüem e o mínimo sofrimento necessário aosdesviantes’ – responde às questões ‘por que proibir’ e ‘por que castigar’;(3o) porque exclui autojustificações apriorísticas de modelos maximalis-tas e permite somente justificações a posteriori de modelos reduzidos,reconhecendo o caráter aflitivo e coercitivo da pena; (4o) porque propiciamodelo de legitimação e deslegitimação da atuação do sistema penal; e(5o) porque o esquema apresentado subtrai os custos do direito penalfrente à possível anarquia punitiva subseqüente à sua ausência.83

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80 Ferrajoli, La Pena in una Società Democratica, p. 529.81 É sobre esta base que as duas finalidades preventivas – a prevenção dos crimes e a pre-

venção das penas arbitrárias – são conexas entre si: ambas legitimam a ‘necessidadepolítica’ do direito penal como instrumento de tutela dos direitos fundamentais, os quaisdefinem normativamente o âmbito e os limites enquanto bens que não se justifica ofender,nem com crimes, nem com punições (Ferrajoli, Diritto e Ragione, pp. 329-330).

82 Ferrajoli, ob. cit., p. 330.83 Ferrajoli, ob. cit., pp. 330-332.

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Capítulo VOs Sistemas de Execução e o

Garantismo Penal

5.1. Valores e princípios penalógico-constitucionais

5.1.1. O condenado e o status ‘apátrida’

Beccaria afirmava que aquele que perturba a tranqüilidade públi-ca, que não obedece às leis, que viola as condições sob as quais oshomens se sustentam e se defendem mutuamente, deveria ser excluí-do da sociedade, isto é, banido (exílio local).1 Advoga, ainda, que o cul-pado poderia perder todos os seus bens (confisco), se a lei que pronun-cia o banimento declarasse rompidos todos os laços que o ligavam àsociedade: porque desde então o cidadão está morto, resta somente ohomem; e, perante a sociedade, a morte política de um cidadão deve teras mesmas conseqüências que a morte natural.2 Beccaria percorre omesmo caminho trilhado por Rousseau, quando visualiza a negaçãodos vínculos do condenado com a sociedade: os processos e os julga-mentos são as provas e a declaração de ter ele [criminoso] rompido o tra-tado social, não sendo mais, conseqüentemente, membro do Estado.3

O enunciado dos pensadores da ilustração revela aquilo que foidenominado ‘germens antiliberais do pensamento iluminista’, raízesque sustentam o discurso clássico e que devem ser cortadas para quese possa revisitar sua matriz de vanguarda. É que, ínsito à mais conhe-cida corrente do contratualismo penal, há uma perspectiva de demoni-zação daquele que violou a norma e foi condenado à sanção criminal.

Todavia, o que mais chama a atenção é o fato de que, na atualida-de, a realidade normativa e empírica em muito pouco rompeu com estatradição autoritária.

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1 Beccaria, Dos Delitos e das Penas, p. 103.2 Idem, p. 104.3 Rousseau, ob. cit., p. 52.

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5.1.2. As instituições totais e a Constituição de 1988

Não é nova a afirmativa de que as instituições de controle, princi-palmente o cárcere, configuram modelos totalitários. Na literaturanacional, Manoel Pedro Pimentel sustentava que, queiramos ou não, aprisão é uma instituição totalitária, e só pode funcionar como tal, con-cluindo ser uma ‘contraditio in adjecto’ tentar democratizar um sistematotalitário.7

Augusto Thompson assinala que a penitenciária é uma sociedadesui generis (dentro de outra sociedade), na qual foram alteradas, subs-tancialmente, as feições da comunidade livre. Nota o autor que a carac-terística mais marcante desta instituição é a tentativa de criação emanutenção de grupamentos humanos submetidos a regimes de con-trole total. Logo, tudo concorre para identificar o regime prisional comoum regime totalitário.8

No interior deste sistema social anômalo, no qual relações doen-tias de poder se (re)produzem, constata-se a absoluta incapacidade degarantia dos direitos, em decorrência da inviabilização do direito àlegalidade através de mecanismos de obstrução da jurisdição.

Apesar do processo formal de jurisdicionalização instaurado pelaLei de Execução Penal (LEP) em 1984, criando alguns instrumentos ecanais para tutela do apenado, as reivindicações do preso e da massacarcerária, não esporadicamente, são desprezadas pelas autoridadesadministrativas e judiciárias sob a alegação de necessidade de manu-tenção da ordem, representada neste universo pelos signos da discipli-na e da segurança.

Contra esta sobreposição da ordem aos direitos, Catão eSussekind advogam que a prisão não constitui [não pode constituir] ter-ritório no qual as normas constitucionais não tenham validade.9 A asser-tiva das pesquisadoras diagnosticava, já no início da década de oiten-ta, um sistema no qual imperavam lacunas de legalidade constitucio-nal. Mais que uma afirmação acadêmica, o enunciado representava umgrito de alerta sobre a prática penitenciária adotada no Brasil.

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de ser um membro ao violar suas leis e até lhe move guerra. A conservação do Estado éentão incompatível com a sua, sendo preciso que um dos dois pereça, e, quando se fazque um culpado morra, é menos como cidadão do que como inimigo (Rousseau, ob. cit.,p. 52).

7 Pimentel, Sistemas Penitenciários, p. 273.8 Thompson, A Questão Penitenciária, p. 22.9 Catão & Sussekind, Os Direitos dos Presos, p. 85.

A assertiva pode ser visualizada no diálogo proposto por CelsoLafer4 com Hannah Arendt. Indaga o autor de que forma seria possíveldesvincular os direitos fundamentais do status civitas. No caso, comoevitar os resquícios anti-iluministas da tradição liberal no que tange aoinfrator.

Lafer parte da categoria ‘apátrida’ para explicar o problema elevantar algumas hipóteses. A condição de apátrida não estaria apenasvinculada à clássica distinção entre nacionais e estrangeiros, mas simao fato de provocar em algumas pessoas situação de perda dos elemen-tos mínimos de conexão com a ordem jurídica interna dos Estados, des-tituindo-os da legalidade e da jurisdição. Tal condição retiraria o statusde cidadania do homem, estabelecendo-lhe uma ‘morte civil’.Declarada formalmente, provoca a perda da condição civil, a desterri-torialização e a incapacidade de reivindicação dos direitos, transfor-mando sujeitos em objetos descartáveis. Assim, eles [apátridas] nãoperdem direitos como o direito à vida, à liberdade, à busca da felicidade,ou ainda à igualdade diante da lei por não serem nacionais. De fato ‘suasituação angustiante não resulta do fato de não serem iguais perante alei, mas sim de não existirem mais leis para eles’, pois estão privados deuma comunidade política que os contemple como sujeitos de direito e emrelação à qual tenham direitos e deveres. Os apátridas, ao deixarem depertencer a qualquer comunidade política, tornam-se supérfluos.5

Pressuposto mínimo da cidadania formal, a jurisdição, juntamentecom o direito de participação política que representa o ingresso no pactosocial, concretiza a legalidade, garantindo, na esfera do público, isono-mia, e, no plano privado, o resguardo da diferença. Percebe-se, pois, noapátrida, a eliminação deste pressuposto mínimo da cidadania: o direitode reivindicar direitos, instrumentalizado pelo ‘direito à jurisdição’.

Aos condenados do sistema punitivo, a obstrução dos canais deacesso à jurisdição decorrente da substantiva administrativização daexecução da pena, aliada à suspensão do direito ao voto, caracterizaráuma situação similar à dos apátridas, revelando aquela cruel realidadeanunciada por Beccaria e Rousseau, na qual o condenado pela violaçãodo pacto encontra-se em situação de ‘morte civil’.6

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4 Lafer, A Reconstrução dos Direitos Humanos, pp. 146-166.5 Lafer, ob. cit., p. 147.6 Rousseau afirma que o pacto social dá ao corpo político um poder absoluto sobre todos

os seus, e é esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral, ganha o nome de sobe-rania (Rousseau, Do Contrato Social, p. 48) Todos os direitos, inclusive a vida, são aliena-dos ao soberano. O malfeitor (criminoso), portanto, torna-se um traidor da pátria, deixa

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sos contra os poderes irracionais. Sobretudo porque existe um consen-so no Brasil que entende que o problema da execução penal é mera-mente administrativo, isto é, se fossem cumpridos pelo Estado-admi-nistração os preceitos da LEP, estariam resguardados em sua plenitudeos direitos ao apartado. Refuta-se liminarmente esta hipótese.Logicamente que não se está a negar o fato de que, em se tratando daassistência material ao preso (estatuto social positivo do apenado),esta afirmação é verossímil. Questiona-se a falácia politicista na qualincorrem os juristas ao direcionarem suas críticas exclusivamente aoEstado-administração, eximindo sua responsabilidade.

Entende-se, pois, que o sistema jurisdicional criado pela LEP nãoé ótimo, mas falho, não merecendo leituras apologéticas apressadas einconseqüentes. No entanto, apesar das falhas, cabe ressaltar queexistem instrumentos a serem utilizados pelo operador jurídico capa-zes de garantir um mínimo de dignidade ao preso. Contudo, este tipode posicionamento somente poderá ser tomado no momento em que aConstituição for entendida como rígido instrumento de (des)legitima-ção das normas ordinárias.

Desta maneira, para plena compreensão dos dispositivos constitu-cionais referentes à matéria da execução da pena, principalmente daexecução da pena privativa de liberdade, delinear-se-á um quadroconstitucional valorativo e principiológico. Tudo porque, na trilha deJosé Frederico Marques,10 entende-se que direito processual é o quemais intensamente sofre a influência da tutela normativa daConstituição. Outrossim, adotando a perspectiva de Figueiredo Dias,tem-se o direito processual penal como verdadeiro direito constitucio-nal aplicado.11

5.1.3. Valores constitucionais informadores

Segundo o art. 1o da Constituição, a República constitui-se EstadoDemocrático de Direito e tem como fundamentos a cidadania e a digni-dade da pessoa humana. Rege-se, em suas relações internacionais, peloprincípio da prevalência dos direitos humanos (art. 4o, II, CR/88). A pre-valência dos direitos humanos, no entanto, não vincula apenas as rela-ções exteriores, mas orienta todo ordenamento jurídico nacional.

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10 Marques, O Processo Penal na Atualidade, p. 13.11 Dias, Direito Processual Penal, p. 74.

Das constatações apresentadas, fruto da reivindicação do statusdignitatis dos encarcerados, surgem algumas indagações sobre seusdireitos frente ao sistema de execução penal (principalmente a execu-ção da pena privativa de liberdade em regime fechado). A primeira dizrespeito à validade (constitucionalidade material) e à eficácia das nor-mas constitucionais e ordinárias que orientam a apartação; a segundatrata da efetividade e da instrumentalidade do processo de execuçãopenal como garante dos direitos do apenado frente aos atos da admi-nistração penitenciária.

A experiência na execução penal demonstra uma cruel historio-grafia: depois de prolatada a sentença penal condenatória, o apenadoingressa em ambiente desprovido de garantias. Desta forma, a decisãojudicial condenatória exsurge como declaração de ‘não-cidadania’,como formalização da condição de apátrida do autor do fato-crime.

É que a tradicional teoria da tripartição dos poderes limitou a ati-vidade jurisdicional ao momento da sentença condenatória. Transitadaem julgado a decisão, caberia ao órgão administrativo sua execução.Como é notório, em face da natureza jurídica, o processo administrati-vo e o processo judicial são extremamente diferenciados, notadamenteno que diz respeito à principiologia garantista do primeiro e inquisitivado segundo.

Frente a essa realidade, tomou corpo no Brasil, principalmente apartir da década de setenta, corrente doutrinária que advogava inci-dência da jurisdição na execução penal, conformando um ‘modelomisto’ de execução, ou seja, administrativa mas com fortes traços pro-cessuais. Dessa necessidade de jurisdicionalizar a execução da pena,reconhecendo à pessoa condenada direitos fundamentais, houve areforma da parte geral do Código Penal e a elaboração da LEP (1984).

No entanto, somente com o advento da Carta de 1988 é que o tra-tamento da execução penal adquiriu feição constitucional. AConstituição, como instrumento de reconhecimento de direitos egarantias individuais, sociais e difusos, bem como recurso de interpre-tação da legislação ordinária (locus hermenêutico), possibilitou verda-deiro redimensionamento na leitura dos assuntos referentes ao proces-so penal executório. Como em nenhum outro estatuto nacional, aConstituição de 1988 introduziu expressamente direitos ao preso, rom-pendo com a lógica belicista que tornava o sujeito condenado meroobjeto nas mãos da administração pública.

Fundamental, portanto, avaliar a idoneidade dos instrumentos degarantia estabelecidos pela LEP para efetivação dos direitos dos pre-

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soa e é seu patrimônio indisponível e inviolável. Trata-se de valor fun-damental expresso nas cartas políticas, sendo diluído nas normas con-cretas, porque, ao desconhecer a dignidade do homem, o Estado des-conheceria a existência e universalidade dos demais direitos humanos.

Assim, conclui Dyrceu Aguiar Cintra Jr. que todos os direitos fun-damentais consagrados na Constituição têm por suporte o princípio fun-damental da dignidade da pessoa humana (art. 1o, III, da CF) e é peloprocesso – e o de execução da pena não pode fugir à regra – que segarantem aqueles, quando se trata de proteger o status libertatis docidadão.14

O respeito e a promoção da dignidade humana representariam afunção primeva da existência do Estado, sendo que sua lesão (despre-zo do homem como valor) legitimaria, inclusive, a resistência.

5.1.4. Princípios constitucionais informadores

Os valores humanistas são concretizados nos princípios constitu-cionais, categorias jurídicas de cunho abstratamente inferior, mas quecondicionam a legislação no que diz respeito à sua legitimidade inter-na. O princípio lapidar do modelo jurídico de garantias é o ‘princípio dasecularização’.

Assevera Zaffaroni15 que o princípio da secularização é um princí-pio metajurídico, de legitimidade externa do direito penal, cuja carac-terização é dada fundamentalmente pela adoção de formas republica-nas de governo.

Com o processo ilustrado de separação entre direito e moral,coube ao direito penal a proibição, comprovação e repressão de condu-tas lesivas a bens jurídicos concretos. Excluiu-se a possibilidade deatuar como instrumento de imposição ou reforço da moral. Exsurge,pois, da sua tradição ilustrada, como princípio garantidor da dignidadedo homem, propiciando o pluralismo e resguardando determinada esfe-ra da pessoa na qual é ilícito proibir, julgar e punir: a esfera do pensa-mento, das idéias, das paixões e das convicções.

Mister ressalvar a importância que adquire o princípio da secula-rização como modelador de toda a estrutura principiológica e normati-va, estando a este subordinado, inclusive, o princípio da legalidade. O

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14 Cintra Jr., A Jurisdicionalização do Processo de Execução Penal, p. 119.15 Zaffaroni, Sistemas Penales y Derechos Humanos, p. 27.

Se historicamente as normas de direito penal e de direito proces-sual penal não estiveram em plena harmonia com as Constituiçõesdemocráticas, pode-se afirmar que os direitos humanos jamais figura-ram instrumentos de referência à ciência penal. Apesar deste fatolamentável, atualmente os pensadores das ciências penais, principal-mente das políticas criminais, consolidaram o entendimento dos direi-tos humanos como limite e objeto do direito penal, propiciando ao jurí-dico uma fonte externa de legitimação.

Alessandro Baratta12 advoga que os direitos humanos cumpririamfunções negativas e positivas no tratamento da matéria penal. Desdeuma perspectiva negativa, imporiam limitações à intervenção estatal,determinando o que deve ou não ser tolerado normativamente na res-trição das liberdades individuais do cidadão que violou o preceito legal(limite). Positivamente, estabeleceriam o rol das condutas relativas àintervenção, indicando os rumos disciplinadores do ordenamento.Definiriam e elegeriam bens jurídicos a serem tutelados, viabilizandouma política de intervenção mínima (objeto).

Os estatutos constitucionais do Ocidente, após a segunda grandeguerra, inflamados pelo teor humanitário da carta de direitos da ONU,repudiaram normativamente as concepções autoritárias e positivaraminúmeros valores e princípios humanistas. A propósito, os processos deinclusão gradativa dos direitos nos textos internacionais soterraram avelha discussão entre direitos naturais versus direito positivo, reconhe-cendo a historicidade e a positividade daqueles.

Claro que a Constituição não esgota em seu texto a totalidade dosdireitos humanos, notadamente pelo seu caráter histórico que possibi-lita sempre, e cada vez mais, a inclusão de novos e renovados direitos.Os estatutos constitucionais, no entanto, positivaram grande parte dosvalores humanitários, fundando rol axiológico instrumentalizador deuma nova concepção jurídico-política voltada à satisfação dos direitosfundamentais. Valores como dignidade da pessoa humana assumem,juntamente com pluralismo e tolerância, vital importância no processode construção do modelo jurídico de garantias.

Segundo Cairoli Martinez,13 a idéia de dignidade representa aassunção por parte da humanidade que todo o ser humano deve terreconhecida sua personalidade em qualquer local que se encontre,alcançando status de sujeito de direitos. A dignidade nasce com a pes-

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12 Baratta, Requisitos Mínimos del Respecto de los Derechos en la Ley Penal, p. 07.13 Martinez, Introducción al Estudio del Derecho Penal, p. 43.

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5.1.5. Princípios penalógico-constitucionais

Se a Constituição de 1988 estabeleceu vínculos relativos à pena eao seu modo de execução, partindo sistematicamente do princípio dalegalidade (art. 5o, XXXIX), igualmente elencou diretivas com grau econteúdo diversos.

A primeira ordem de intervenção constitucional na esfera penaló-gica é de natureza limitativa quanto à espécie da sanção e o sujeito aser sancionado: restringiu determinados tipos de penas (art. 5o, XLVII);limitou destinatários (art. 5o, XLV); e taxou possibilidades de sanção(art. 5o, XLVI).

O constituinte disciplinou ainda a forma de cumprimento daspenas. Ao regular sua individualização, impôs restrições no que diz res-peito ao público dos estabelecimentos carcerários (art. 5o, XLVIII),determinando, inclusive, diferenciações de gênero (art. 5o, L).

Impôs também normas de garantia dos presos, condenados ouprovisórios, assegurando direitos inalienáveis e indisponíveis os quaiso Estado não pode restringir, pois versam sobre a integridade física emoral daquele sujeito temporariamente limitado em sua liberdade de ire vir (art. 5o, XLIX).

Outrossim, quando trata dos direitos políticos, a Constituição sus-pende a capacidade eleitoral do condenado enquanto durarem os efei-tos da sanção penal (art. 15, III).

No entanto, o advento da carta de 1988 não rompeu com omissãodo operador no que diz respeito à otimização dos direitos fundamen-tais. Zaffaroni explica esta situação afirmando que en la jurisprudenciay en la doctrina reina cierto grado de desconocimiento de la extensiónde las garantías fundamentales em materia penal. Los autores latinoa-mericanos, en general, reconocen ampliamente el significado trascen-dente de los principios garantizadores del derecho penal, pero es fre-cuente observar una carencia de profundidad en la aplicación de los mis-mos a la tarea dogmática concreta.17

É que o significado da principiologia constitucional ultrapassaesta visão meramente lúdica descrita por Zaffaroni. Apesar do caráterabstrato das normas e princípios constitucionais, que acaba dificultan-do sua concretização, a atitude do operador jurídico deve ser comissi-

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17 Zaffaroni, ob. cit., p. 08.

rompimento dos vínculos entre direito e moral é conditio sine qua nonna formação de um modelo constitucional garantista de direito penal eprocessual penal.

Discorda-se, porém, da afirmativa de ser o princípio da seculari-zação garantia metajurídica. A Constituição de 1988 incorporou o prin-cípio sob o signo da inviolabilidade da intimidade e do respeito à vidaprivada (art. 5o, X); do resguardo da liberdade de manifestação de pen-samento (art. 5o, IV); da liberdade de consciência e crença religiosa(art. 5o, VI); da liberdade de convicção filosófica ou política (art. 5o,VIII); e da garantia de livre manifestação do pensar (art. 5o, IX). Emrealidade, a amplitude e o alcance do princípio é superior ao da suagênese iluminista, representando atualmente verdadeira pedra angu-lar da democracia como ferramenta pródiga de (des)legitimação detoda atividade do poder estatal (legiferante, administrativa e/ou judi-cial). É requisito de legitimidade, fornecendo mecanismo de verifica-ção da validade do sistema.

Luigi Ferrajoli16 afirma que a adoção do princípio implica trêsconseqüências axiológicas às esferas do direito penal e processualpenal. Em relação ao delito e os problemas de justificação da legis-lação, define que o direito penal deve apenas impedir condutasdanosas para terceiros: a violação concreta de bens jurídicos alheiosé a única justificação das leis penais. No que diz respeito ao proces-so e à jurisdição, exige que o juízo não verse sobre a moralidade, ocaráter ou quaisquer outros aspectos substanciais da personalidadedo réu, mas somente sobre os fatos penalmente proibidos que lhesão imputados e que podem, por outra parte, ser empiricamente pro-vados pela acusação e refutados pela defesa. Em relação à justifica-ção da pena e seu modo de execução, o princípio alude que a sançãopenal não pode ter conteúdos nem fins morais: o cidadão, se tem odever jurídico de não cometer delitos, tem o direito de ser interior-mente malvado e de seguir sendo o que é se assim desejar (direito àperversidade).

Parece claro que a única forma de resguardar a dignidade da pes-soa humana é tutelando sua capacidade de livre determinação. Romperos vínculos entre direito e moral, propiciando ao ‘Outro’ ser ‘diverso’, éassegurar a tolerância e o pluralismo, valores fundamentais do EstadoDemocrático de Direito.

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16 Ferrajoli, Diritto e Ragione, pp. 207-209.

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penal dirigente, plenamente realizado pelo legislador ordinário, cujoefeito é edificar um Estado Penal como alternativa ao inexistenteEstado Social.

As normas penais programáticas (ou cláusulas de criminaliza-ção/penalização) maximizam o penal aos atos de discriminação atenta-tória dos direitos e liberdades fundamentais (art. 5o, XLI); à prática deracismo (art. 5o, XLII); aos crimes hediondos, tortura, tráfico ilícito deentorpecentes e drogas afins, e ao terrorismo (art. 5o, XLIII); à ação degrupos armados contra a ordem constitucional e o Estado de Direito (art.5o, XLIV) entre outras. Especificamente no que diz aos delitos hediondose equiparados, a Constituição deu vazão e legitimou a Lei que melhorpode ser enquadrada como fruto dos movimentos criminalizadores auto-ritários (Lei 8.072/90) que, excedendo o comando constitucional, obsta-culiza grande parte dos direitos públicos subjetivos dos apenados.

Não obstante insinuar um modelo de direito penal pouco afeito àidéia minimalista, a Constituição da República projetou efeitos restriti-vos aos direitos para além da criminalização e da imposição de penas.

Ao dispor sobre os direitos políticos, a Constituição de 1988 énovamente maculada pela tendência autoritária.

A ação política através da participação nas decisões da vida públi-ca é um dos fatores que caracterizam a cidadania formal. Dado o fatoda impossibilidade de reunião na ‘Ágora’, o instrumento de exercícioda cidadania nas democracias representativas é o voto popular. Noentanto, o art. 15, inc. III, da CR determina a suspensão dos direitospolíticos decorrente de condenação criminal transitada em julgado.Salutar indagação é qual a relação possível entre a condenação crimi-nal e a perda, ainda que temporária, dos direitos políticos, senãoexcluir o condenado da vida pública, destituindo-lhe formalmente acidadania e consolidando aquele estigma de apátrida.20

A edificação, em sede constitucional, da destituição da cidadaniado preso capacita diagnosticar o não-reconhecimento dos seus direitos

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20 Mesmo antes da redação do texto constitucional, a jurisprudência consolidava esteentendimento. O Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (1885), instigado a emitir juízosobre a possibilidade de o preso votar, entendeu ser este direito incompatível com a pri-vação de liberdade. O relator do caso afirmou que o prisioneiro não pode votar simples-mente porque não dotado do requisito mínimo de cidadania ativa: a liberdade; o revisorsustentou não ser admissível que participem em igualdade de condições um condenadopor crime, como já se entendeu nesta Egrégia Corte, determinante da mais alta desquali-ficação social, para gerir os negócios do Estado, ombreando se com os que não sofreramveto de dignidade (Apud Castilho, Controle da Legalidade na Execução Penal, p. 30).

va, de interpretação e filtragem dos institutos jurídico-penais a partirdo texto constitucional, em verdadeiro ‘uso alternativo do direito’.18

Percebe Ferrajoli19 a insuficiência da idéia de que basta um ‘direi-to bom’, dotado de mecanismos atuais e avançados de garantias, paraconter o poder e colocar os direitos fundamentais a salvo dos desvios.É notório que, por ser o modelo de garantias um tipo ideal (tendenciale inatingível), há dificuldade de adaptá-lo à realidade jurisprudencial.Entretanto, a efetivação das garantias não cabe tão-somente ao poderpolítico, mas fundamentalmente aos juristas, através do processo de(re)interpretação dos textos.

Se é verdade que o sistema jurídico por si só não pode garantirnada, não se pode afirmar que o jurista nada possa fazer para otimizaro modelo de garantias. É da essência da atividade dos operadores críti-cos a utilização dos mecanismos fornecidos pela Constituição, e daslacunas e contradições entre esta e o ordenamento inferior, para dar efi-cácia às normas, gerando práticas de defesa dos direitos fundamentais.

5.1.6. A ‘Constituição penal’ e a restrição de direitosfundamentais do preso

A ‘ilusão penal’, idéia predominante no senso comum do ‘homemde rua’ que alcança atualmente os juristas, elevou como máxima cons-titucional normas de restrição de direitos fundamentais. Assim, o textoconstitucional não apenas adquire função restritiva (negativa), maspotencializa a incidência do penal/carcerário. Este paradoxo – coexis-tência de normas garantidoras e normas autoritárias em estatutos comclara vocação humanista (Constituições e Tratados Internacionais) –reflete o cenário jurídico-político nacional desde 1988.

O processo de elaboração constitucional fixou, seguindo a tradiçãodo constitucionalismo em matéria penal e processual penal, limites aopoder repressivo. Todavia, de forma inédita, projetou um sistema crimi-nalizador, conformando uma ‘Constituição Penal dirigente’. Assim, aConstituição recepcionou anseios punitivos, colocando em xeque seuspróprios princípios liberais. Tem-se, desta forma, na história recente doconstitucionalismo nacional, a formação de um núcleo constitucional-

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18 Sobre a interpretação constitucional e o ‘uso alternativo do direito’, conferir Carvalho,Direito Alternativo e Dogmática Penal, pp. 69-84.

19 Ferrajoli, ob. cit., p. 985.

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Segundo Albuquerque Prado,24 a dificuldade para a solução dasquestões executivas reside necessariamente na distinção entre os atosde administração e os atos de jurisdição. Para o autor, a função admi-nistrativa distingue-se da jurisdicional porque na primeira o adminis-trador age espontaneamente, adota medidas preventivas para evitar aviolação da lei e cria, com seus atos, situações jurídicas novas. O juiz,de modo diverso, é sempre provocado, atua após a violação da lei enada cria, apenas assegura em seu julgamento situação (pré)existente.

Na esteira de Chiovenda, Albuquerque Prado afirma que a caracte-rística da função jurisdicional é a substituição da atividade de outro pelaação pública.25 Esta substituição faltaria à administração, pois atividadeimposta pela lei aos órgãos públicos: a função administrativa é assim pri-mária, enquanto a jurisdicional é função secundária.26 Desta forma, advo-ga ser a execução penal atividade administrativa: a verdadeira naturezada execução penal é de ato de administração, principalmente pelo fato deque nela o Estado age como um poder soberano para a realização dos seusinteresses. Se, ao contrário, a execução penal fôsse um ato jurisdicional, oórgão executivo estaria vinculado aos interesses de outros.27 A concepçãosustentada por Albuquerque Prado é derivada das noções tradicionaisfundadas na radical separação dos poderes estatais.

À Administração Pública, sob este aspecto, caberia toda atividadesuperveniente à condenação, visto serem os atos administrativos, porexcelência, atos de execução dos preceitos legislativos e judiciários – aadministração é a promotora do bem público. A pena é de interesse cole-tivo: à administração cabe realizá-la.28

Otimizada esta concepção, autonomiza-se do direito penal e pro-cessual penal o direito penitenciário, entendido como disciplina regu-ladora da relação entre o condenado e a administração penitenciária.

Nesta linha, propõe Adhemar Raymundo da Silva que o traço maiscaracterístico da execução penal seria sua ajurisdicionalidade, porquepressupõe o exaurimento da jurisdição, ou seja, cessada a atividade doEstado-jurisdição com a sentença final, começa a do Estado-administra-ção com a execução penal.29

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24 Prado, Estudos e Questões de Processo Penal, p. 162.25 Sobre a posição de Chiovenda de inexistência de jurisdição na execução penal, conferir

o artigo de Fernandes, Reflexos Relevantes de um Processo de Execução PenalJurisdicionalizado, pp. 87-88.

26 Prado, ob. cit., p. 163.27 Idem, p. 164.28 Almeida, A contrariedade na instrução Criminal, p. 131.29 Silva, Estudos de Direito Processual Penal, p. 66.

pelo Poder Público. Se a própria Constituição, norma fundante daordem jurídica, do regime democrático e do modelo republicano, retirao status civitas do condenado no plano das relações e decisões políti-cas, inevitável que o Estado-administração e o Estado-jurisdição pulve-rizem esta máxima, legitimando o desrespeito cotidiano aos direitosfundamentais nas relações intra-muros.

O resíduo autoritário da negativa do voto ao preso, aliado às cláu-sulas de criminalização, leva ao questionamento do imaginário queperfaz a condição de condenado, pois, ao mesmo tempo que a normapositiva fundamental preza a manutenção de sua dignidade, acabanegando sua posição de sujeito político, retirando-lhe instrumento deexercício da cidadania.

Desde esta perspectiva, urge rever o dispositivo constitucional,21

pois, se os princípios fornecem o norte interpretativo, possibilitando umapráxis crítica, conteúdos deste gênero obstaculizam não apenas o laborcotidiano para efetivação dos direitos contra os poderes, mas interrom-pem o processo de formação de um caldo de cultura humanista. AConstituição é o topos hermenêutico para uma ação garantidora, nãopodendo, pois, ser mecanismo de restrição dos direitos fundamentais.

5.2. Sistemas de execução penal

5.2.1. Sistemas de execução penal: escorço histórico

Na doutrina, a natureza jurídica da execução penal é indicada portrês sistemas: os sistemas administrativos, os sistemas jurisdicionais eos ‘sistemas mistos’.22 A importância do estudo dos sistemas nascenão apenas da sombria visibilidade entre o processo de execução penale o direito penitenciário, mas, sobretudo, segundo Alcala-Zamora yCastillho, porque el penalista se ocupa con frecuencia del proceso penaly del régimen penitenciario, y por ello no siempre se preocupa de deslin-dar con precisión la zona que a cada una de esas actividades incumbe.23

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21 Sobre a necessidade de revisão constitucional no sentido de assegurar o direito de votoao preso, conferir Maia Neto, Penitenciarismo en el Mercosul, pp. 126-132; Belov, Questãoaberta à comunidade: deve o preso votar? e Rodrigues, A Posição Jurídica do Recluso naExecução da Pena Privativa de Liberdade, pp. 183-184.

22 Sobre os sistemas de execução penal, principalmente as características dos modeloseuropeus, conferir Rodrigues, A Posição Jurídica do Recluso na Execução da PenaPrivativa de Liberdade, pp. 38-54.

23 Alcala-Zamora y Castillo, Derecho Procesal Penal, p. 28.

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A divisão das esferas na execução diria respeito fundamentalmen-te à necessidade imperiosa, por parte da administração, de regular dis-ciplinarmente a ‘massa carcerária’, enquanto caberia ao judiciário con-ceder/restringir ‘benesses legais’. Pode-se afirmar que a concepçãoilustrada por Espínola Filho corresponde à estrutura formal da execu-ção penal em nosso país até a reforma legal de 1984.

Interessante notar, porém, as conseqüências jurídicas impostaspela concepção administrativista em muitos casos ainda dominante.Admitir uma feição essencialmente administrativa (ou híbrida) da exe-cução penal implica qualificar os direitos decorrentes dos incidentescomo meros benefícios concedidos pelo Estado ao condenado, ou seja,medidas político-criminais facultadas ao juiz (regalias domésticas).35

Tal concepção contraria a idéia de que os incidentes de execução cons-tituem-se como verdadeiros direitos públicos subjetivos dos apenadosfrente à Administração e que podem ser postulados perante o PoderJudiciário (direito de petição). Ou seja, direitos que atenuam a qualida-de e/ou a quantidade da pena imposta pela sentença penal transitadaem julgado.

Muito embora prevalente a concepção administrativa até a reda-ção da LEP em 1984, Espínola Filho já visualizava possibilidades fisca-lizadoras ao juiz da execução, ampliando sua função para além doschamados incidentes. Sustentava, pois, que nesse terreno, só se admitea competência do juiz da execução, para, chamado a verificar a espécie,pela reclamação de detento, preso a sua disposição, providenciar quan-to às transgressões arbitrárias do regulamento, levando a sua benéficaação de controle indireto a ponto de requisitar, dos órgãos competentes,

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35 Tal posicionamento se percebe nitidamente em Adhemar Raymundo da Silva: nem seargumente, finalmente, como fazem os partidários da jurisdicionalidade da execuçãopenal, com a possibilidade de a sanção penal, imposta na sentença condenatória, vir a sermodificada, com o pedido se sursis, livramento condicional (incidentes da execução penal),anistia, graça, indulto ou reabilitação. Na suspensão condicional da pena, frente ao siste-ma franco-belga, adotado pelo legislador, não há, de modo algum, modificação da sançãopenal contida na sentença, pois, o que se verifica é a não-execução da pena, tanto assimque subsiste a condenação para os efeitos de reincidência e responsabilidade civil do autorda infração. A sanção penal existe sem qualquer modificação, uma vez que ela se não alte-ra na sua qualidade ou quantidade. É uma medida de política criminal, condensada nodireito material, porquanto íntimamente ligada ao exercício do ius puniendi. Quanto aolivramento condicional, que também não é direito do condenado, a sanção penal modifi-ca-se, de fato, na sua quantidade, mas da sua postulação não exsurge conflito entre oEstado e o indivíduo. Diz a lei material que o juiz pode concedê-lo, razão por que é consi-derado benefício instituído pelo Estado, uma etapa do sistema penitenciário progressivo(Silva, ob. cit., pp. 64-66).

Hélio Thornaghi, em sua tese de cátedra (1945),30 adota os mes-mos critérios para distinguir os atos de administração dos jurisdicio-nais, entendendo que, solucionado o conflito pela sentença transitadaem julgado proferida por terceiro estranho ao conflito, esgota-se a juris-dição (atividade substitutiva e vinculada), iniciando, pois, a atividadeadministrativa (discricionária).

A índole administrativa pressuporia, pois, que a execução nãopoderia nunca pertencer ao direito processual penal: este terminariacom o trânsito em julgado da sentença.31

Todavia, o entendimento puramente administrativista acabava porse chocar com a imperativa necessidade de intervenção judicial noschamados incidentes da execução32 (basicamente no livramento condi-cional). Mesmo teoricamente admitida a autonomia do direito peniten-ciário, a legislação atribuía ao juiz atividade modificadora do título exe-cutivo, interferindo na atividade da administração penitenciária.

As diretrizes legais sobre os incidentes geraram dogmaticamenteuma concepção híbrida, qual seja, de que a natureza da execução penalseria tanto administrativa como jurisdicional.33 Tal posicionamento éencontrado em Eduardo Espínola Filho. Chama atenção o autor para ofato de só se sujeitarem ao poder judiciário (e, pois, ao juiz da execução)os incidentes da execução de caráter jurisdicional ou misto, eis que osmeramente administrativos se resolvem de acordo com as disposições dedireito penitenciário ou regulamentar das prisões. Sem dúvida, não sejustifica a interferência da autoridade judiciária em fatos da economiainterna dos presídios, pois só à direção destes é imprescindível uma uni-dade de orientação, que seria sacrificada, se se tolerasse a ação, nuncauniforme, de várias autoridades outras.34

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30 Tornaghi, A Relação Processual Penal, pp. 92-96.31 Dias, ob. cit, pp. 36-37.32 Novelli e Falchi consideram incidentes da execução todas as decisões complementares

à execução da sentença, segundo a vontade da lei, com o poder de mudar a sentença emesmo contribuir para que a pena termine em virtude de fatos supervenientes de alcan-ce jurídico. O processo de incidentes de execução adaptaria a sentença às novas condi-ções e circunstâncias, como no exame do estado perigoso durante a execução de medi-da de segurança (apud Lyra, Comentários ao Código de Processo Penal, p. 92).

33 Esclarece Antonio Scarance Fernandes que, quando a doutrina que advoga a teoria mistarefere os incidentes, está, em realidade, querendo dizer ‘procedimentos incidentais deexecução’, isto é, haveria um processo administrativo de execução, ao lado do qual seri-am instaurados procedimentos incidentais jurisdicionalizados (Fernandes, ob. cit., p. 86).Sobre o tema, conferir Carnelutti, Lecciones sobre el Proceso Penal II, pp. 273-274.

34 Espínola Filho, Código de Processo Penal Brasileiro Anotado (VII), pp. 319-320.

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Não se pode olvidar, porém, que a luta pela legalidade na execu-ção penal já vinha sendo tema de profundo debate desde a edição doCódigo de Processo Penal, em 1941. Um dos arautos no processo deampliação da tutela jurisdicional foi Roberto Lyra. O autor advogava:vai perdendo todo o prestígio a tese que apresenta a execução penalcomo matéria indiferente ao direito. A própria lei substantiva opõe limi-tes e freios aos abusos administrativos, através de garantias e da discri-minação das características essenciais da pena... Passou a época do dis-cricionarismo da direção carcerária.38

Lyra percebia a trágica problemática que envolve a realidade pri-sional, caracterizada por verdadeiros ‘vácuos de legalidade’.Aprofunda a crítica às concepções tradicionais e desvenda um dospontos nevrálgicos geradores dessa realidade totalitária, reinterpretan-do sua natureza e funções, no sentido de ampliar a tutela jurídica aocondenado. Percebe a execução penal como ‘relação jurídica’ e,enquanto tal, determinante de direitos subjetivos, interesses e deverespara as partes.39

Desde esta perspectiva, incorpora ao rol dos direitos dos condena-dos o princípio básico dos modelos jurídicos garantistas, ou seja, alegalidade instrumentalizada pelo direito de petição. Sustenta RobertoLyra que seria preciso impedir o cumprimento da pena ao arrepio doscódigos, pois o princípio da legalidade abrange, também, a execuçãopenal, sendo que a própria margem, deixada à discrição da autoridadeadministrativa, há de conter-se nos limites dos regulamentos e das ins-truções. Não se compreende que, na fase mais grave e mais importanteda atuação da justiça, esta abandone os homens que mandou ao cárce-re e degrade a função pública da pena.40

Todavia, somente com o estatuto executivo de 1984 institucionali-zou-se no Brasil, via processo legislativo, o modelo jurisdicional de exe-cução.

O processo de jurisdicionalização, disposto pela LEP nos arts. 1o

(que fixa o conteúdo jurídico da execução penal), 2o (que anuncia ajurisdição e o processo), 66 (que detalha a competência do juiz de exe-

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38 Lyra, ob. cit., p. 10.39 Postulava o autor que não é apenas formalmente que o Estado garante aos indivíduos direi-

tos subjetivos em relação a ele. Somente sob o absolutismo, na relação Estado-indivíduo, oprimeiro manda ilimitadamente e o segundo ilimitadamente obedece. Há, entre Estado eindivíduo, verdadeira relação jurídica, cabendo a este direitos, e, não, graça ou liberalida-de, definida como mero interesse de fato, simples expectativa (Lyra, ob. cit., p. 14).

40 Lyra, ob. cit., p. 11.

a punição das faltas e a apuração da responsabilidade criminal, quandoelas se vistam do aspecto de crime.36

5.2.2. O sistema de execução instituído pela LEP

Segundo a tradição, o direito penitenciário é autônomo, distinto dodireito penal e processual penal, representando o conjunto de normasque regulamentam a organização carcerária. É direcionado fundamen-talmente para a determinação de regras disciplinares capazes de orde-nar a vida do apenado durante o cumprimento da pena. Caberia, pois,ao direito penitenciário estabelecer diretrizes administrativas no intui-to de regular o ambiente da instituição sob o prisma da segurança e dadisciplina.

Exercido pelos órgãos do Serviço Penitenciário, sua natureza seriaessencialmente administrativa e, como órgão estatal executivo, nãoestaria subordinado ao juízo de execução e ao Ministério Público.

No entanto, a ampla discricionariedade no trato das questõesinternas à ordem penitenciária gerou um subproduto trágico caracte-rístico das instituições totais, qual seja, a disfunção da atividade peloarbítrio e pela lesão constante dos direitos dos presos, estabelecendoo que se conhece como ‘crise da execução da pena’.

Note-se que os princípios informadores do direito penitenciáriosão totalmente diferenciados dos princípios de direito penal e proces-sual penal que compuseram a sentença e se solidificaram como coisajulgada. O princípio da legalidade dos atos administrativos é diversodo princípio da legalidade penal, gerando, em fase de execução dapena, profunda diafonia. A ação executiva é regida pelos princípios dadisciplina e da ordem, e sob estes signos viu-se historicamente a justi-ficativa da administração penitenciária para restrição/violação de direi-tos do condenado que não foram limitados pela sentença penal.

Com o intuito de diminuir tais violações, restringir a atividade daadministração e proporcionar ao apenado garantia mínima de seusdireitos, a Lei no 7.210/84 normatizou a jurisdicionalização da execuçãoda pena. O desenvolvimento de tal linha da processualística – esclareceDyrceu Aguiar Cintra Jr. – veio ao encontro das concepções do processoenquanto garantia do cidadão contra o arbítrio do Estado, conectando-se com o constitucionalismo.37

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36 Espínola Filho, ob. cit., p. 320.37 Cintra Jr., ob. cit., p. 118.

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o estatuto de 1984, o direito do apenado à jurisdição, tal conteúdomaterial carece de eficácia na vida carcerária quando da necessidadede controle da legalidade. Não se pode olvidar que a execução está vin-culada à sentença penal, constituindo lesão toda e qualquer atividaderestritiva além do estabelecido pelo Estado-juiz.

Se o processo penal é o instrumento através do qual o Estado seapropria do conflito do sujeito lesado para resguardar a racionalidadeda resposta ao delito, deve operar de maneira otimizada na execução,controlando os atos administrativos de forma a resguardar a dignidadee a humanidade dos apenados. Logo, o juízo de execução tem poderespara interferir diretamente nas relações entre a administração dos esta-belecimentos penais e os detentos.45

Ela Wiecko Volkmer de Castilho,46 ao versar sobre o problema,percebe que na visão administrativista restaria implícito um vazio,uma esfera de irrelevância jurídica, visto estar o condenado subme-tido à administração. Advertem Catão e Sussekind que o pensamen-to doutrinário cujo pressuposto baseava-se na não-interferência doJudiciário na Administração é que marcou a situação de abandonodos presos, e o sistema penitenciário ficou sendo a fase mais negli-genciada da administração da justiça e, conseqüentemente, a maisimplacável.47

As tentativas de dirimir este problema palpitante levaram à reafir-mação da jurisdicionalização em 1994, quando da implementação dasRegras Mínimas para o Tratamento do Preso no Brasil. Não obstante terestabelecido relações específicas e diretas do apenado com aAdministração e com o Judiciário, vislumbrando maiores possibilida-des de tutela (arts. 31 e 32 da Resolução no 14, de novembro de 1994),percebe-se que a execução penal ainda continua sendo um território devácuo jurídico em termos de validade e eficácia constitucional.Avaliando a jurisprudência nacional, Ela Castilho obtém cruel anamne-se: a inexistência de litígios versando diretamente sobre direitos e deve-res dos presos, bem como sobre questões decorrentes da imposição desanções disciplinares. Isto é sintomático, pois as denúncias de maus-tra-tos não diminuíram.48

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45 Araújo, A Execução Penal como Extensão da Atividade Jurisdicional, p. 59.46 Castilho, Controle da Legalidade na Execução Penal, pp. 24-25.47 Catão & Sussekind, ob. cit., p. 76.48 Castilho, ob. cit., p. 108.

cução penal) e 194 (que determina o procedimento judicial), objetivatornar eficaz o princípio da legalidade, assegurando aos reclusos seusdireitos fundamentais. É o que refere a exposição de motivos: o princí-pio da legalidade domina o corpo do projeto, de forma a impedir que oexcesso ou o desvio da execução comprometam a dignidade e a humani-dade do Direito Penal.41

Muito embora introduzido normativamente, não se pode afirmartenha ocorrido o câmbio esperado no que diz à concepção doutriná-ria e jurisprudencial quanto à natureza jurídica da execução penal.Aliás, esta conclusão seria inadmissível nos termos lógico-sistemáti-cos da LEP. O direito de execução penal, pelo entendimento encon-trado na justificativa da lei, é autônomo, não submisso ao direito e aoprocesso penal. Da mesma forma, segundo a LEP, não corresponde amero regulamento penitenciário ou estatuto do presidiário. É nestacomplexidade e autonomia que estão tensionadas jurisdição e admi-nistração.

Não obstante, o novo entendimento produziu algumas conse-qüências de ordem garantista no sistema. Para Cintra, Grinover eDinamarco,42 o apenado não pode mais ser considerado mero objeto,mas torna-se titular de posições jurídicas de vantagem como sujeitode relação processual: a natureza administrativa que se quisesseemprestar à execução penal tornaria o réu mero objeto do procedi-mento, quando, ao contrário, ele há de ser visto como titular de situa-ções processuais de vantagem, como sujeito da relação processualexistente no processo de execução penal. Não mais simples detentorde obrigações, deveres e ônus, o réu torna-se titular de direitos, facul-dades e poderes.43

O paradoxo da relação processual na execução da pena acabasendo revelado no complicado liame entre direito penitenciário, inequi-vocamente administrativo, e processo de execução, de natureza juris-dicional. Segundo Grinover,44 a dificuldade reside em poder extremarestas duas atividades: administrativa e jurisdicional.

A anunciada natureza mista e multiforme da execução penalimpõe séria avaliação no que diz respeito à tutela do condenado frenteao poder administrativo. Se é relativamente pacífico na doutrina, após

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41 Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal, § 19.42 Cintra, Grinover & Dinamarco, Teoria Geral do Processo, p. 315.43 Grinover, Natureza Jurídica da Execução Penal, p. 12.44 Grinover, Anotações sobre os aspectos processuais da Lei de Execução Penal, p. 15.

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Os sistemas processuais, organizados de forma lógica, caracteri-zam-se pela presença de um princípio reitor que estabelece sua teleo-logia (maximização dos poderes ou das garantias). Se o sistema acusa-tório é identificado pelo princípio dispositivo, o inquisitório o será peloprincípio inquisitivo.

Note-se que a possibilidade de ‘dispor’, que caracteriza o sistemaprocessual penal acusatório, não pode ser resumida tão-somente à ini-ciativa de instauração do processo (impulso processual) e a conseqüen-te limitação da atividade jurisdicional. Se assim o fosse, estar-se-ia con-fundindo a atuação do órgão que provoca com a do órgão que exerce ajurisdição. Não restam dúvidas de que é imprescindível, no interior deum sistema acusatório, o distanciamento entre quem inicia o processoe quem o julga. Todavia, tais princípios são relativos ao direito de ação,orientados pelos princípios da oficialidade e da obrigatoriedade.Sustenta-se, evocando novamente Jacinto Coutinho, que o princípioque unifica e diferencia os sistemas processuais penais é determinadopelos critérios de gestão probatória, pois, se o processo tem por finali-dade, entre outras, a reconstrução de um fato pretérito crime, através dainstrução probatória, a forma pela qual se realiza a instrução identificao princípio unificador.51

Dessa forma, caracteriza-se como inquisitorial o sistema cuja ges-tão da prova é centralizada na figura do magistrado (princípio inquisi-tivo). Em sentido inverso, é acusatório o sistema orientado pelo princí-pio dispositivo no qual a iniciativa probatória se encontra exclusiva-mente nas mãos das partes. Assim, enquanto ao sistema acusatórioconvém um juiz espectador, dedicado sobretudo à objetiva e imparcialvaloração dos fatos, e por isso mais sábio do que expert, o rito inquisitó-rio exige um juiz ator, representante do interesse punitivo, e por issolegalista, versado no procedimento e dotado de capacidade investigati-va.52 Trata-se, como frisa Ferrajoli, de uma opção entre juízes-cidadãose juízes-magistrados, respectivamente.53

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51 Coutinho, Introdução aos Princípios Gerais do Processo Penal Brasileiro, p. 27.52 Ferrajoli, ob. cit., p. 588.53 Na mesma linha de argumentação, advoga Paganella Boschi que ainda se encontram inú-

meros resquícios da matriz inquisitiva no Código de Processo Penal brasileiro, como, porexemplo, o fato de o juiz, sem provocação (a) discordar do pedido de arquivamento doinquérito, (b) reinterrogar o acusado, (c) ouvir, quando julgar necessário, quaisquer pes-soas além daquelas indicadas pelas partes, (d) requisitar, de ofício, documentos sobre cujanotícia tiver conhecimento, (e) ordenar busca pessoal, (f) decretar prisão processual inde-pendentemente de provocação e, fundamentalmente, (g) requisitar provas e dirimir dúvi-das sobre ponto relevante (Boschi, Ação Penal, p. 24). No que tange à produção de prova,

5.2.3. Os princípios relativos aos sistemas processuaise o diagnóstico do processo de execução penalbrasileiro

Tem-se assistido, desde o início do texto, à constante tensão entredois sistemas processuais penais (inquisitivo e acusatório) e sua con-formação histórica em relação a determinados modelos de Estado e dedireito. Diagnosticou-se, neste capítulo, outra tensão similar no interiordo processo de execução penal, que se estabelece entre os sistemasjurisdicionais e os administrativos.

Imprescindível notar, preliminarmente, a impossibilidade de exis-tência de um sistema jurídico híbrido ou misto, seja ele processual,penal ou penalógico, como inúmeros autores postulam. A característi-ca dos sistemas, como a dos paradigmas e dos tipos ideais, é sua iden-tificação a partir de alguns rígidos princípios unificadores. Deles ape-nas se aproximam tendências opostas, sendo impossível fusão siste-mática ou paradigmática. O modelo jurídico é garantista ou antigaran-tista. O sistema processual é acusatório ou inquisitório. O sistema exe-cutivo é jurisdicional ou administrativo.

Claro que se pode visualizar no interior de um modelo normativogarantista (acusatório) práticas ou regras antigarantistas (inquisitoriais).Todavia, estas não descaracterizam a matriz original, apenas a maculam.Leciona Jacinto Coutinho que não é preciso grande esforço para entenderque não há – e nem pode haver – um princípio misto, o que, por evidente,desconfigura o dito sistema. Assim, para entendê-lo, faz-se mister obser-var o fato de que ser misto significa ser, na essência, inquisitório ou acu-satório, recebendo a referida adjetivação por conta dos elementos (todossecundários), que de um sistema são emprestados ao outro.49

Franco Cordero, ao analisar os modelos bipartidos de processocognitivo, sustentará a impossibilidade de conciliação entre sistemasopostos: a idéia do processo em dois tempos – o primeiro inquisitório e osegundo acusatório – é repelido pela razão, ainda que possa seduzir ospesquisadores por vocação.50 Tal assertiva deslegitima a tentativa deconsolidação de sistemas processuais proclamados ‘mistos’, legadoautoritário da codificação processual penal napoleônica (1808).

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49 Coutinho, Introdução aos Princípios Gerais do Processo Penal Brasileiro, p. 29.50 Apud Coutinho, O Papel do Novo Juiz no Processo Penal, p. 41.

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Pública em proporcionar o mínimo de dignidade ao apenado no quetange às prestações materiais – estatuto social positivo do preso –, o pro-cesso de execução continuaria sendo bárbaro, inviabilizando os direitosdos apenados (estatuto individual negativo56). Mesmo se fossem cumpri-das as normas sociais previstas na LEP, os direitos dos presos não seri-am assegurados plenamente em decorrência da opção inquisitiva de suajurisdicionalização. Somente se atingirão determinados graus de garan-tias se se conceber o processo de execução penal com feição acusatória,pois apenas esta otimiza a ampla defesa e o contraditório.

O processo executivo é povoado por regras essencialmente inqui-sitivas, a começar pelo seu ato de inauguração, ou seja, com a iniciati-va da ação. A execução da pena principia com a expedição da carta deguia por iniciativa do juiz, independentemente de qualquer provocaçãoda parte interessada (Ministério Público). Assim, constata GeraldoPrado que no momento inicial da execução penal vislumbra-se clara-mente a distorção do primeiro eixo deste tipo de processo [acusatório].Antes de ser um árbitro imparcial de um conflito entre as partes –Ministério Público e condenado – por uma dessas situações peculiares àideologia com projeção no mundo jurídico, o juiz deve tomar e manter ainiciativa da execução, à semelhança do modelo inquisitório.57

A oficialidade do órgão jurisdicional em iniciar o processo de exe-cução leva, inclusive, inúmeros autores a negar sua autonomia.58 A afir-mação é conseqüência da constatação de que se há procedimento exofficio – sem citação, não havendo nova litispendência –, não haverianovo pedido, não haveria nova pretensão, não sendo, portanto, instau-rado novo processo. Desta forma, o processo de execução seria a últi-ma etapa do processo cognitivo, sua fase derradeira.

Outro ponto que o distancia da estrutura acusatória é a mutabili-dade das decisões. Nem a sentença penal que fixa a quantidade e qua-lidade da pena, muito menos as demais decisões tomadas pelo juiz nodecorrer do processo de execução, vinculam definitivamente as partes

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56 Anabela Miranda Rodrigues diferencia os direitos dos presos em dois estatutos especí-ficos: negativo e positivo. No primeiro, devem ser evitadas as conseqüências nocivas queadvêm da provação de liberdade, o que juridicamente se traduz na proteção dos direitose na não interferência em sua vida privada. Ao segundo, corresponde o dever do Estadoem assegurar as prestações. Assim, do ponto de vista do recluso, a sua posição jurídicaé por um lado, meramente ‘negativa’ – analisa-se em direitos de liberdade ou de defesa– sendo, por outro lado, ‘positiva’, integrada por direitos a prestações, válidos enquantodireitos subjetivos concedidos por lei (Rodrigues, ob. cit., p. 61).

57 Prado, A Execução Penal e o Sistema Acusatório, p. 130.58 Neste sentido, conferir as críticas de Beneti, ob. cit., pp. 45-50.

Da demonstração dos sistemas processuais (acusatório e inquisitó-rio) a partir de sua principiologia caracterizadora (dispositiva e inquisiti-va), pode-se descrever os princípios decorrentes da jurisdição e do pro-cesso de execução penal. Cabe indagar, no entanto, se a jurisdicionaliza-ção formal da execução penal é idônea para instrumentalizar os direitosdo apenado contra as violências (comissivas e omissivas) da administra-ção. Igualmente é lícito questionar, como faz Dyrceu Aguiar Cintra Jr.,54

por que a jurisdição, mesmo sendo introduzida episodicamente, na prá-tica não garante os direitos do contraditório e da ampla defesa.

Reitera-se que é falso indagar ‘o que são garantias’, pois estas nãosão entes abstratos que se possam separar dos bens e valores garanti-dos. As garantias têm sempre conotação gradual, teleológica e instru-mental. São sempre representadas pelo processo e pelos procedimentosdispostos no sistema, e utilizadas pelo operador para assegurar a máxi-ma satisfação dos direitos, seja no plano do ser, seja no do dever ser.

Nesse sentido, a jurisdicionalização (formal) da execução penalrepresentou avanço em matéria de garantias frente ao modelo pretéri-to administrativizado. Beneti ensina que o fenômeno da jurisdicionali-zação aperfeiçoou-se, fixando-se a jurisdicionalização da execução penalcomo corolário da inafastabilidade da jurisdição penal, um dos funda-mentos da garantia do Estado de Direito.55 Não se pode olvidar, porém,que a simples jurisdicionalização não basta se esta não for modeladadesde um mecanismo processual acusatório. E aqui parece estar agrande questão a ser levantada em relação à instrumentalidade do pro-cesso de execução penal, sobretudo porque invariavelmente o jurista éinduzido ao discurso falacioso de que as garantias não são plenas devi-do à falta de ação do Executivo, e que se a LEP fosse cumprida o mode-lo penalógico seria ideal.

Chama-se novamente atenção para o fato de que essa afirmação éfalsa pois, malgrado houvesse atividade comissiva da Administração

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lembra o autor que os juízes, invadindo o espaço das partes, continuam fazendo amplo usoda faculdade prevista no artigo 156 do CPP, embora seu indiscutível conteúdo inquisitivo,absolutamente incompatível com o modelo acusatório erigido ao nível constitucional,salvo quando a prova puder ser utilizada em favor do réu (Boschi, ob. cit., p. 66). Lembre-se, ainda, outra característica ínsita à estrutura inquisitiva do nosso sistema processualdemonstrada pela possibilidade de mudança ou correção do thema decidendum, propor-cionada pelos art. 383 e 384 do CPP (Coutinho, ob. cit., p. 38). No mesmo sentido, confe-rir Brum, Requisitos Retóricos da Sentença Penal, pp. 64-75 e Carvalho, Uma TeoriaGarantista da Ação Penal, pp. 165-168.

54 Cintra Jr., ob. cit., p 125.55 Beneti, Execução Penal, pp. 4-5.

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cedor ao lembrar o quanto fica inviabilizado o contraditório nos siste-mas em que a gestão probatória está concentrada no magistrado, vistoo processo transformar-se em ‘afazer terapêutico’, em ‘psicoscopia’,desenvolvendo, no julgador, ‘quadros mentais paranóicos’.63

A partir desta anamnese, sustenta Schecaira a necessidade de sereconhecer o caráter contraditório do processo de execução penal,admitindo, ao condenado, principal interessado em todas eventuaismodificações da forma e quantidade da sanção punitiva, a possibilida-de de produção da prova, criticando-a e oferecendo contra-prova, sem-pre que do procedimento possa resultar alteração do título executóriopenal, seja para a concessão ou para revogação de qualquer direito.64

Imprescindível, pois, se se quer realmente democracia processual,reavaliar a posição do juiz, tornando-o garante dos direitos individuaisem uma forma processual penal acusatória, regida pelos princípios dodevido processo penal. Do contrário, em sendo mantida a opção inqui-sitiva adotada no processo de execução penal, muito embora seu cará-ter jurisdicional, será extremamente difícil garantir o mínimo dos direi-tos dos apenados.

5.3. Direitos versus Disciplina(s): o controle do indivíduo e da ‘massa carcerária’

Embora os direitos do preso tenham atingido status constitucio-nal, a estrutura processual (inquisitiva) inviabiliza sua plenitude. A‘natureza mista’ (híbrida) representada pela tensão entre jurisdição eadministração, aliada ao modelo jurisdicionalizado autoritário normati-zado na LEP, possibilitou diagnosticar o sistema de execução penalbrasileiro como inquisitorial.

A inquisitoriedade encontra-se fundamentalmente no processo desubmissão do direito processual penal, genealogicamente garantista eacusatório, às regras e aos procedimentos administrativizados, ou seja,na colisão entre os direitos do apenado e os pressupostos de disciplinae segurança que justificam a ação administrativa.

Fragoso, ao proclamar que o conteúdo do direito de punir é dadopela faculdade de impor ao réu a perda ou diminuição de bens jurídicosnos limites fixados pela sentença, lembra que esse esquema é puramen-

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63 Cordero, Guida alla Procedura Penale, pp. 47-51.64 Schecaira, Coisa Julgada na Execução Penal, p. 154.

(ius ungit), podendo ser alteradas, pois altamente maleáveis.59 O títuloexecutivo pode ser alterado, até mesmo in peius, em decorrência decondições futuras conforme a gradual ‘ressocialização’ e ‘reinserção’ docondenado na sociedade, ou seja, conforme a eficácia ‘terapêutica’ do‘tratamento penitenciário’.60

É no procedimento, porém, que ressaltam as feições inquisitoriaisda execução penal.

O estatuto possui 204 artigos, sendo que apenas 04 (quatro) tra-tam ‘do processo judicial’ (título VIII). Segundo o art. 195 da LEP, a dis-ponibilidade do ‘procedimento judicial’ é de qualquer um dos sujeitosda execução (Juiz, Condenado, Defensor, Ministério Público, ConselhoPenitenciário ou Autoridade Administrativa). A regra, no entanto, é suaforma escrita, quando se sabe fundamental um procedimento oral, noqual, conforme Hassemer, o juiz desça do seu pedestal e encare as par-tes como pessoas portadoras de direitos e deveres, ônus e faculdades, eque esteja inserido em um contexto de distribuição rigorosa das funçõesna execução.61 Todavia, somente em casos excepcionais há audiência eoitiva das partes e, quando ocorre, não há obrigatoriedade da presen-ça do defensor do condenado, bastando a presença do apenado. Note-se – argumenta Dyrceu Aguiar Cintra Jr. – que a lei não fala em oitivada defesa ou do defensor – que é também necessária para garantia doprincípio da ampla defesa –, mas do condenado, não deixando margema dúvidas sobre o seu conteúdo.62

Sabe-se que a oralidade do procedimento é uma das principaisgarantias do contraditório e da publicidade dos atos. Não obstante, anão exigência de presença do defensor, bem como as possibilidades deiniciativa pelo juiz (ação e prova), viciam o direito de defesa e o livreconvencimento.

No que tange à prova, disciplina o art. 196, §§ 1o e 2o, que, sendodesnecessária sua produção, o juiz decidirá de plano mas, entendendoindispensável a realização da perícia ou a oitiva de pessoas, o juiz asordenará, decidindo logo após sua produção. Franco Cordero é esclare-

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59 Sobre a mutabilidade da sentença penal condenatória, in melius ou in peius, em decor-rência do modelo terapêutico da pena, importante conferir Carnelutti, Lecciones sobre elProceso Penal I, pp. 145-172; Carnelutti, Lecciones sobre el Proceso Penal IV, pp. 251-257;Carnelutti, Derecho Procesal Civil y Penal II, pp. 271-287; e Carnelutti, Contra la CosaJuzgada Penal, pp. 273-280.

60 Neste sentido, conferir a Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal, § 164.61 Prado, ob. cit., p. 134.62 Cintra Jr., ob. cit., p. 128.

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ram a ressocialização do condenado como principal objetivo da pena. Areforma brasileira de 1984, seguindo os rumos proclamados pelo movi-mento eurocentrista, encontrou na pedagogia ressocializadora e naconcepção meritocrática os signos ideais para edificação legislativa.

O movimento da Nova Defesa Social aglutinou pensadores cujaorientação é direcionada à reação aos sistemas penalógicos de retribui-ção jurídica, característicos das doutrinas penais ‘clássicas’ do final doséculo XVIII. Representaria, assim, uma ‘nova concepção de luta con-tra a delinqüência’, a partir da reconstrução entre direito penal, crimi-nologia e política criminal (novo modelo de ciências penais integradas).

A política de ressocialização, bandeira do movimento, atuou comonorte teleológico na reforma dos estatutos legais (função político-crimi-nal), a partir da inclusão de avaliações sobre a personalidade do delin-qüente67 (função dogmática e criminológica) e na organização de umsistema reeducativo68 na execução penal (função penalógica). Nas pala-vras do idealizador do movimento, uma política criminal de luta contrao crime é antes de tudo, em se tratando de medidas a adotar em relaçãoao delinqüente, orientada visando à prevenção da reincidência. Sob esteponto de vista, a política criminal pretende inspirar e desenvolver umaação de luta eficaz contra o crime tanto no plano legislativo, como judi-ciário e penitenciário. Seria absurdo se sacrificar no plano legislativo porconcepções jurídicas que fossem inaplicáveis no plano penitenciário; talmétodo conduziria além do mais a deformar o papel do organismo judi-ciário que se encarrega precisamente de aplicar essa lei penal visandopossibilitar que em seguida se exerça a ação penitenciária.69

O (novo) modelo penal integrado, fruto de uma política global de‘prevenção do crime e tratamento do delinqüente’, perfez o universo

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67 Segundo Marc Ancel, o delinqüente deve ser integrado no processo penal que até agoraera unicamente o julgamento de um ato... essa restituição do ato à pessoa ou, mais preci-samente, esse relacionamento existencial entre o fato e o seu autor, que as categorizaçõesjurídicas impediam perceber, surge como um dos elementos fundamentais da ciência cri-minal moderna... (Ancel, A Nova Defesa Social, pp. 282-283). Prossegue afirmando queessa política criminal exigirá portanto que o juiz conheça o delinqüente: trata-se de suaconstituição biológica, de suas reações psicológicas, de sua história pessoal e de sua situa-ção social, e é assim que surge no processo penal moderno a necessidade do exame cien-tífico do delinqüente (Ancel, ob. cit., p. 284).

68 Ancel sustenta que essa noção de tratamento do delinqüente não podia deixar de fazersurgir o problema de uma reorganização do sistema atual das sanções penais. A organiza-ção de um regime racional e científico de tratamento do delinqüente logicamente conduza uma integração racional da pena com a medida de segurança num sistema unitário dereação anticriminal (Ancel, ob. cit., p. 295).

69 Ancel, ob. cit., p. 301.

te formal, mas é importante porque fixa para o Estado os limites da puni-ção (a pena não pode ser maior ou diversa da que está prevista na lei) eestabelece para o réu a garantia de não ser atingido senão nos limitesdos direitos diminuídos pela sentença. Que direitos são esses? Em prin-cípio, apenas a perda da liberdade e a dos direitos necessariamente afe-tados por ela.65 Ou seja, fixa a regra de que o condenado conservatodos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, como dispostono Código Penal (art. 38, CP).

É lógico que da perda do direito de ir e vir decorrem inúmeras limi-tações, daí o escopo normativo em suprir o encarcerado das necessida-des materiais através do estatuto social positivo – normas que regulamalimentação, vestuário e instalações higiênicas (art. 12, LEP); atendi-mento médico, farmacêutico e odontológico (art. 14, LEP); assistênciajurídica (art. 15, LEP); instrução escolar e formação profissional (art. 17,LEP); recreação, orientação, segurança e previdência (art. 23, LEP);assistência religiosa (art. 24, LEP); direitos decorrentes de atividadelaboral (arts. 28 e seguintes, LEP) et coetera. Tudo porque reconhece-seque o preso, apesar de ter sua liberdade restringida, não perde todos osdireitos adquiridos enquanto cidadão.66

Desde esta perspectiva, como titular de direitos públicos no planoindividual (estatuto negativo) e social (estatuto positivo), o apenadoapresenta-se como ‘sujeito de direitos’, em uma situação processualcom o Estado-punição.

A negativa de tal status jurídico, através da lesão sistemática aosdireitos fundamentais (individuais e sociais) do apenado, é legitimadapelos pressupostos da disciplina e segurança. Sobrepondo disciplinaaos direitos, acaba-se por relegar o condenado à condição de objetodesprovido de direitos (apátrida). Frise-se, no entanto, que tais viola-ções não são apenas perceptíveis na realidade fenomenológica.Igualmente no plano normativo estão presentes regras violadoras dadignidade do condenado.

5.3.1. Fundamentos ideológicos da LEP e suas conseqüências normativas

As reformas das codificações penais ocidentais da década deoitenta, orientadas pelo movimento da Nova Defesa Social, consagra-

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65 Fragoso, Direitos dos Presos, p. 3.66 Catão & Sussekind, ob. cit., p. 64.

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rá adquirir qualquer thelos orientado à transformação da interioridadedo sujeito, sob pena de negar os principais postulados da modernidade.

Do contrário, a criminologia transformar-se-ia em técnica clínico-administrativa de controle dos ‘estranhos’, disposta, como percebeLarrauri, a abandonar políticas sociais, privilegiando o controle técnicoe eficaz do delito.72

A especialização da criminologia em sede de execução e a compe-tência administrativa estabelecida para controle técnico da personali-dade do condenado diminuíram o status da ‘ciência criminológica’. Nãoobstante, transformou-a em instrumento altamente eficaz de controle.

A substancial desjudicialização na seara executiva importou umalargamento das decisões clínico-administrativas. Em virtude da espe-cialização da ‘criminologia clínica’, a decisão final do juiz no provimen-to dos direitos do apenado não invariavelmente ficará vinculada aoslaudos do Centro de Observação Criminológica (COC) e/ou aos parece-res das Comissões Técnicas de Classificação (CTC),73 reeditando umsistema de prova tarifada típica do processo inquisitivo.74

A simbiose entre o sistema processual inquisitivo e a criminologiaclínica perfectibilizará um modelo ótimo de violação das garantias funda-mentais que será potencializado por outra sintonia não menos doentia: asrelações de poder forjadas pelas noções de disciplina e segurança.

5.3.2. A retórica disciplinar

Segundo Carnelutti, se entiende por disciplina, en sentido estricto,el conjunto de los poderes atribuidos a los oficiales del proceso ejecutivo

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72 Larrauri, La Herencia de la Criminología Crítica, p. 196.73 Sobre os vínculos das decisões judiciais aos laudos criminológicos do COC e pareceres

da CTC, conferir a profunda pesquisa empírica realizada por Larruscahin, PráticasInstitucionais Violentas no Processo de Execução Penal: do poder das perícias ao decisio-nismo judicial.

74 Lembra Nilo Batista que o dever do juiz de examinar a coerência e a logicidade do laudopericial aumenta quando se trata de um exame psiquiátrico. Assim, o juiz que se subordi-ne acriticamente às conclusões do exame pericial, sem cotejá-lo com os demais elementos,sem inquirir sua coerência lógica interna, não procura sua livre convicção: cria um siste-ma próprio de prova legal, obedecendo à regra de que a prova técnica é sempre a provadecisiva. Tal juiz derroga o art. 157 do Código de Processo Penal; tal juiz não é senhor,como quer Tornaghi, e sim servo da perícia (Batista, Decisões Criminais Comenta-das, p.168). Sobre o modelo de prova tarifada como estruturante do sistema inquisitivo, confe-rir ainda Gomes Filho, Direito à Prova no Processo Penal, pp. 22-25. Sobre a estrutura doslaudos criminológicos e o modelo de prova legal, conferir Foucault, Os Anormais, pp. 03-37 e Hoenisch, Divã de Procusto, p. 10.

ideológico da reforma de 1984, estando consagrado na parte geral doCódigo Penal, fundamentalmente no momento da aplicação da pena,70

e nos principais institutos da LEP – determinação do objeto e aplicaçãoda LEP (art. 1o), modelos de classificação e observação dos condena-dos (arts. 5o a 10 e arts. 96 a 98), sistema de sanções e recompensasdisciplinares (arts. 53 a 56), modelo de progressão de regime (art. 112),concessões de saída temporária (arts. 120 a 125), livramento condicio-nal (arts. 131 a 146) e substituição da pena no curso da execução (art.180), bem como a execução das medidas de segurança (arts. 171 a 174).

Da cominação judicial à execução da pena, juízos e prognósticosrealizados por juízes e técnicos administrativos versam sobre a interio-ridade da pessoa presa. Assim, se na aplicação as avaliações do ‘ser’do autor conformam um second code para graduação da sanção, naexecução estes juízos serão o principal código interpretativo.

Apesar de afirmações doutrinárias que negam possibilidades deavaliações da ‘alma’ do condenado,71 constata-se que tal premissa foratotalmente desrespeitada pela legislação. A propósito, a adoção explí-cita dos postulados da Nova Defesa Social não permitiria tal falácia. Omovimento expõe claramente a necessidade de valorações pessoais,(re)incorporando noções de periculosistas do modelo etiológico. Nessaperspectiva, introduz formalmente elementos de subjetivação para ojulgamento dos ‘benefícios’. O critério decisório é baseado nas convic-ções e perversidades do apenado, objetivando profilaticamente suaredenção ou ‘cura moral’.

Nota-se, assim, que o limite constitucional de respeito à integrida-de moral assegurado no valor dignidade humana não é observado. Comefeito, a deslegitimação (invalidade) formal e material das normas quepretendem modificar o ‘ser’ do condenado sob a máxima da ressociali-zação, recuperação ou reintegração, é perfeitamente justificável. O res-peito à integridade moral é, sobretudo, a aceitação da condição dediverso da pessoa presa. A pena, retribuição jurídica pelo ato, não pode-

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70 Neste sentido, Carvalho & Carvalho, Aplicação da Pena e Garantismo, pp. 35-69.71 Nos dias de hoje questiona-se muito a intervenção estatal na esfera da consciência do pre-

sidiário. Terá o Estado o direito de oprimir a liberdade interior do condenado, impondo-lheconcepções de vida, estilos de comportamento e vetores ideológicos? Certamente, não. Ademocratização das instâncias formais de controle do processo de execução se opõe aosmétodos e meios ditatoriais que se consubstanciam na ideologia do tratamento segundoas perspectivas político-criminais das concepções positivistas e pretendem provocar umacatarse no delinqüente, negando-lhe o elementar direito de ser diferente (Dotti, A Lei deExecução Penal, p. 208).

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estereótipos operados pela psiquiatrização da criminologia e a consoli-dação das noções periculosistas.

Criam-se regras universais da boa condição carcerária, representa-das pelos princípios da correção (a recuperação dos condenados é oobjetivo da pena); da classificação (os detentos devem ser classificadose isolados conforme a gravidade de seu ato); da modulação das penas(a pena pode ser modificada de acordo com os resultados obtidos); dotrabalho como obrigação e direito (a laborterapia é fundamental no pro-cesso de transformação e socialização); da educação penitenciária (pre-caução e atividade conjunta ao trabalho); do controle técnico dos deten-tos (a instituição deve ser dirigida por pessoal técnico-especializado,que possua condições morais para formar indivíduos); e das instituiçõesanexas (redes de instituições conjuntas, como o manicômio).77 Cadaprincípio, adequadamente colocado, permite a conformação de tecnolo-gia voltada à modificação dos seres. A prisão esteve, pois, desde suaorigem, ligada a um projeto de transformação dos indivíduos.78

Os modelos de ressocialização e readaptação, fundados na ideolo-gia do tratamento, marcam os problemas e os riscos da pedagogia dis-ciplinar e, como sustenta Zaffaroni,79 impõem parâmetros de conduta epensamento que pertencem a outras classes sociais, com interessesdiversos, obtendo como conseqüência a perda de identidade dos ape-nados (desculturação) e a consolidação de sua posição marginal (re-culturação).

Importante notar, todavia, que as disciplinas, instrumento moder-no do poder, estão diametralmente opostas ao regime de legalidade doEstado de Direito, sendo impossível concebê-las no interior da estrutu-ra jurídica garantista, tanto no plano do ser (eficácia) quanto do dever-ser (validade formal-material).

Os métodos disciplinares são ontologicamente inquisitoriais. Asdecisões disciplinares no interior das instituições totais são desprovi-das de pré-determinações regulamentares e, quando o são, apresen-tam-se de forma ambígua e lacunar, ampliando o arbítrio do corpoadministrativo – como teria de ser, por várias razões, mas, sobretudo,porque se trata de um regime totalitário, as ordens não são justificadasnem explicadas.80 Desta forma, fica claro o porquê da inviabilização derígido controle da legalidade nos espaços de poder carcerários.

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77 Foucault, ob. cit., pp. 237-238.78 Foucault, Sobre a Prisão, p. 131.79 Zaffaroni, Sistemas Penales e Derechos Humanos en América Latina, p. 215.80 Thompson, ob. cit., p. 60.

a fin de obtener la sujeción del recluso a las normas del reglamento y alas órdenes del personal. Se comprende que, siendo el recluso por defini-ción un rebelde a las reglas de la convivencia social y, por otra parte,siendo muy grave en el ambiente de la reclusión el peligro de contagioque todo acto de desorden lleva consigo, la disciplina, en tal sentido,debe ser particularmente severa.75

Sustenta Michel Foucault que as disciplinas foram inventadasdurante os séculos XVII e XVIII como fórmulas gerais de dominação nomomento em que se percebeu ser mais eficaz e econômico vigiar doque punir. Com intuito de docilizar os corpos e adestrar a alma a partirde um processo contínuo de fabricação de seres submissos, as discipli-nas ingressam oficialmente na história da punição como uma forma de‘humanização da pena’. Punir mais e melhor, técnica legitimada desdeum discurso humanitário encobridor do real, possibilitou a difusãodesta nova economia política de poder.

Partindo das figuras ideais do panóptico benthaniano e do estadode peste, Foucault demonstra ser a disciplina a (micro)arte do detalheque distribui os indivíduos isoladamente em seu espaço, regularizandoseu tempo, compondo e talhando suas forças para o labor (industrial)eficiente: o poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de seapropriar e de retirar, tem como função maior ‘adestrar’; ou sem dúvi-da, adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor... ‘Adestra’as multidões confusas, móveis, inúteis de corpos e forças para umamultiplicidade de elementos individuais – pequenas células separadas,autonomias orgânicas, identidades e continuidades genéticas, seg-mentos combinatórios. A disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é a técnicaespecífica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo comoobjetos e como instrumentos de seu exercício.76

Vigilância hierárquica (microscópio do comportamento), sançãonormalizadora (micropenalidades corretivas e meritórias) e exame téc-nico (módulos de qualificação e de classificação) corresponderiam aosinstrumentos de otimização disciplinar direcionados à transformaçãodas massas e à imposição da nova moral das nascentes sociedadescapitalistas industriais.

Fundamental, porém, na construção institucional desta tecnologiamoderna do poder, é a profissionalização do saber e a proliferação de

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75 Carnelutti, Lecciones sobre el Proceso Penal IV, p. 243.76 Foucault, Vigiar e Punir, p. 153.

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execução, como observatório do cotidiano do apenado, o COC tem porfunção realizar exames criminológicos mais sofisticados, com intuito deauxiliar os órgãos da execução.

Como esclarece Alvino Augusto de Sá, ao discutir a natureza dosexames criminológicos e as formas de prognose, o parecer da CTCdeveria voltar-se eminentemente para a execução, para a terapêuticapenal e seu aproveitamento por parte do sentenciado. Já o exame crimi-nológico é peça pericial, analisa o binômio delito-delinqüente e o fococentral para o qual devem convergir todas as avaliações é a motivaçãocriminal, a dinâmica criminal, isto é, o conjunto dos fatores que nos aju-dam a compreender a origem e desenvolvimento da conduta criminal doexaminado. Ao se estabelecerem as relações compreensivas entre essaconduta e esses fatores, se estará fazendo um diagnóstico criminológico.Na discussão, devem ser sopesados todos os elementos desse diagnósti-co e contrabalanceados como os dados referentes à evolução terapêuti-co-penal, de forma a se convergir o trabalho para um prognóstico crimi-nológico, do qual resultará a conclusão final.82

Determinação legal aditiva à CTC é a de acompanhar a execuçãodas penas privativas de liberdade (art. 6o, LEP), devendo propor à auto-ridade competente as progressões (art. 112, LEP) e regressões (art. 118,LEP) dos regimes, bem como as conversões de penas (art. 180, LEP).

Tarefa elucidativa no que tange à assunção ideológica do modelodefensivista é a de previsão de o corpo criminológico (COC) realizarprognósticos de não-delinqüência, requisito subjetivo presente no orde-namento penal brasileiro para concessão do livramento condicional –para o condenado por crime doloso, cometido com violência ou graveameaça à pessoa, a concessão do livramento ficará também subordina-da à constatação de condições pessoais que façam presumir que o libe-rado não voltará a delinqüir (art. 83, parágrafo único, CP). Assim, olegislador estabeleceu condições especialíssimas para concessão dodireito nos casos da denominada ‘criminalidade violenta’: o dispositivose inspira na reclamada defesa social e tem por objetivo a prevençãogeral. Se após o exame criminológico (ou resultar da convicção do juiz)ainda revelar o condenado sinais de desajustamento aos valores jurídi-co-criminais, deverá continuar a sofrer imposição daquela pena até o seulimite final se a tanto for necessária em nome da prevenção especial.83 O

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82 Sá, Equipe Criminológica: Convergências e Divergências, p. 43.83 Franco et alii., Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, p. 535.

Foucault, avaliando a tensão entre os regimes de legalidade e asdisciplinas, nota que é no limite do direito e dos mecanismos de disci-plina que se dá o exercício do poder: as disciplinas têm seu discurso.São portadoras de um discurso que não pode ser o do direito; o discur-so da disciplina é alheio ao da lei e da regra enquanto efeito da vonta-de soberana.81

A adoção normativa, em 1984, do regime disciplinar de controlebaseado na despersonalização do preso pela substituição do seu ‘ser’pelo padrão de moralidade/normalidade imposto, é visualizada, funda-mentalmente, nas práticas criminológicas de manufatura de laudos eperícias (controle da identidade do preso) e nos procedimentos de fal-tas e recompensas disciplinares (controle e docilização da ‘massacarcerária’).

5.3.3. O controle da identidade do preso: laudos e perícias criminológicas: discurso oficial

A primeira disposição da LEP sobre avaliações criminológicas é nomomento da individualização administrativa da pena. Segundo a legis-lação, os condenados ao cumprimento de pena privativa de liberdadeserão submetidos a diagnósticos para obtenção de elementos necessá-rios à adequada classificação, objetivando estabelecer parâmetros ao‘tratamento penal’. Os critérios a serem utilizados são os antecedentese a personalidade do agente (art. 5o, LEP).

A Comissão Técnica de Classificação (CTC), para obtenção destesdados reveladores da personalidade, e tendo sempre presentes peçasou informações do processo, poderá requisitar dados e informações pes-soais, entrevistar pessoas e realizar as diligências que considerarnecessárias (art. 9o, LEP). O trabalho da CTC é presidido pelo Diretor dainstituição carcerária e sua estrutura é composta, no mínimo, por doischefes de serviço, um psiquiatra, um psicólogo e um assistente social.

Diferem da CTC, cujo labor tem como escopo avaliar o cotidiano docondenado, os afazeres dos técnicos do Centro de ObservaçãoCriminológica (COC). Este local autônomo da instituição carcerária rea-liza exames periciais e pesquisas criminológicas que retratarão o ‘per-fil do preso’, fornecendo instrumentos de auxílio nas decisões judiciaisdos incidentes da execução. Assim, enquanto a CTC atua no local da

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81 Foucault, Soberania e Disciplina, p. 189.

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penal, que é o da secularização. Mais: tais decisões impedem qualquerpossibilidade de um processo de execução penal acusatório, decorren-te da obstrução do contraditório e do princípio da refutabilidade empí-rica das hipóteses. Lembre-se da clássica definição de Canuto Mendesde Almeida do contraditório como ação bilateral das partes, espaço noqual o essencial ao processo é que as partes sejam postas em condiçõesde se contrariarem. O contraditório é, pois, em resumo, ciência bilateraldos atos e termos processuais e possibilidade de contrariá-los.87

Lembra Vera Malaguti Batista, ao estudar a atuação dos operado-res secundários do sistema de atendimento a adolescentes infratores,que estes quadros técnicos, que entraram no sistema para ‘humanizá-lo’, revelam em seus pareceres (que instruem e tem enorme poder sobreas sentenças a serem proferidas) conteúdos moralistas, segregadores eracistas, carregados daquele olhar lombrosiano e darwinista social erigi-do na virada do século XIX e tão presente até hoje nos sistemas de con-trole social.88

Já se disse que o mais perverso modelo de controle social é aque-le que funde o discurso do direito com o discurso da psiquiatria, ouseja, que regride aos modelos positivistas de coalizão conceitual dojurídico com a criminologia naturalista. Outrossim, o sonho positivistade medição da periculosidade encontra guarida nesse sistema.Retomando conceitos como propensão ao delito, causas da delinqüênciae personalidade voltada para o crime, o discurso oficial se reproduzdesde o interior do modelo, condicionando a decisão do magistrado aoexame clínico-criminológico – psicólogos, psiquiatras, pedagogos, médi-cos e assistentes sociais trabalham em seus pareceres, estudos de caso ediagnósticos, da maneira mais acrítica, com as mesmas categorias utili-zadas na introdução das idéias de Lombroso no Brasil.89

Eugenio Raúl Zaffaroni sustenta que este ideal de medir a pericu-losidade é uma das pretensões mais ambiciosas desta criminologiaetiológico-individualista equivocada. O ‘periculosômetro’, como ironizao mestre portenho, cientificamente chamado de prognósticos estatísti-cos, consiste em estudar uma quantidade mais ou menos numerosa dereincidentes, quantificar suas causas e projetar seu futuro.90

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87 Almeida, A contrariedade na Instrução Criminal, p. 110.88 Batista, O proclamado e o escondido, p. 77.89 Batista, ob. cit., p. 86.90 Zaffaroni, Criminología, p. 244.

exame pericial entendido como idôneo para a prognose seria o de ces-sação de periculosidade,84 isto é, instrumento idêntico àquele aplicadoao inimputável (art. 175, LEP); caso contrário, na ausência do exame, ojuízo será hipotético.85

5.3.4. O controle da identidade do preso: laudos e perícias criminológicas: funções reais

Se as avaliações sobre a personalidade e conduta social na aplica-ção da pena podem ser taxadas como inquisitivas, visto estabeleceremjuízos sobre a interioridade, os diagnósticos, exames e prognósticosprevistos pela LEP não poderão ser conceituados de outra forma.

Especificamente quanto ao prognóstico de não-delinqüência,importante ressaltar que a emissão do parecer tem como mérito ‘proba-bilidades’, juízo que não pode justificar qualquer negação de direitos,visto ser hipótese inverificável empiricamente e, conseqüentemente,irrefutável no plano processual. Diga-se ainda que, fundado na técnicade reconstituição de vida pregressa, que via de regra vem a confirmar orótulo de criminoso, a elaboração dos exames psiquiátricos obedece a umdeterminismo causal, onde o ‘nosólogo’ não só descreve a doença/delito dopaciente/preso, mas também prescreve a sua conduta futura.86

Em realidade, o sistema penalógico adotado pelo legislador psi-quiatriza a decisão do juiz da execução, delegando a motivação do atodecisório ao julgamento das opções e das condições de vida do conde-nado. Tal fato rompe com a princípio básico da modernidade jurídico-

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84 À guisa de ilustração: embora alcançado o requisito temporal para obtenção de livramen-to sob condição, sem embargo de manifestação favorável do diretor do presídio é de se con-firmar a denegação da mercê quando exames psicológicos e psiquiátricos lastreiam con-clusão do Conselho Penitenciário estribado, outrossim, em previsão de possível reincidên-cia (TACRIM-SP, AE, Rel. Gonzaga Franceschini – RJD 2/22, 2o trim/89). Não obstante, averificação dos requisitos inseridos no art. 83 e seus incisos, impondo-se também a reali-zação da perícia, para verificar a superação das condições e circunstâncias que levaram ocondenado a delinqüir, consoante o conteúdo do parágrafo único do mesmo dispositivo, eressalva, ainda, que a norma, destinada ao sentenciado por crime violento, caracteriza exi-gência necessária diante da extinção da medida de segurança para os imputáveis (TA/RS,HC 285039624, Rel. Talai Selistre).

85 Costa Jr., Direito Penal, p. 206. Nesse sentido, a verificação das condições pessoais e sub-jetivas do sentenciado não se faz só e necessariamente por exame similar ao antigo examede verificação de cessação de periculosidade. Por outros meios, inclusive sem qualquer tipode verificação pericial, pode concluir-se de tal ausência de perigosidade na devolução dosentenciado à comunidade (TJ-RS, RA, Rel. Gilberto Niederauer Corrêa – RTJE 36/364).

86 Ibrahim, Exame Criminológico, pp. 52-53.

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Vale lembrar, neste momento, a sempre autorizada fala de RobertoLyra: virão laudos que são piores do que devassas a pretexto de anam-neses, com diagnósticos arbitrários e prognósticos fatalistas. A vida doréu e, também a da vítima são vasculhadas. O anátema atinge a famíliapor uma conjectura atávica. O labéu ultrapassa gerações. Remotos eridículos preconceitos distribuem estigmas. O processo penal, além detodas as ocupações e preocupações, será atado ao torvelinho dos habi-tuais e tendenciosos falsários bem pagos, com humilhações e vexamespara o acusado e sua família, para a vítima e sua família, com base em‘quadrinhos’ e formulários.93

Este papel de legitimação das decisões judiciais assumido pelacriminologia oficial foi percebido magistralmente por Michel Foucault.Ao responder indagação sobre o porquê de sua crítica à criminologiaser tão rude, Foucault afirma que os textos criminológicos não têm pénem cabeça... Tem-se a impressão – prossegue – de que o discurso dacriminologia possui uma tal utilidade, de que é tão fortemente exigido etornado necessário pelo funcionamento do sistema, que não tem nemmesmo necessidade de se justificar teoricamente, ou mesmo simples-mente ter uma coerência ou uma estrutura. Ele é inteiramente utilitá-rio.94 A utilidade seria fornecer argumentos ao julgamento, permitindoaos magistrados uma ‘boa-consciência’.95

O juiz da execução penal, desde a reforma operada pela criminolo-gia administrativa, deixou de decidir, passando apenas a homologarlaudos técnicos. Seu julgamento passa a ser informado por um conjun-to de micro-decisões (micro-poderes) que sustentarão cientificamenteo ato. Assim, perdida no emaranhado burocrático, a decisão torna-seimpessoal, sendo inominável o sujeito prolator.

Lembra Foucault que o juiz de nossos dias – magistrado ou jura-do – faz outra coisa, bem diferente de ‘julgar’. Ele não julga mais sozi-

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93 Lyra, Direito Penal normativo, p. 132.94 Foucault, Sobre a Prisão, p. 138.95 Afirma Foucault: a partir do momento em que se suprime a idéia de vingança, que outro-

ra era atributo do soberano, lesado em sua soberania pelo crime, a punição só pode ter sig-nificação numa tecnologia de reforma. E os juízes, eles mesmos, sem saber e sem se darconta, passaram, pouco a pouco, de um veredito que tinha ainda conotações punitivas, aum veredito que não podem justificar em seu próprio vocabulário, a não ser na condiçãode que seja transformador do indivíduo. Mas os instrumentos que lhes foram dados, a penade morte, outrora o campo de trabalhos forçados, atualmente a reclusão ou a detenção,sabe-se muito bem que não transformam. Daí a necessidade de passar a tarefa para pes-soas que vão formular, sobre o crime e sobre os criminosos, um discurso que poderá justi-ficar as medidas em questão (Foucault, ob. cit., p. 139).

Se a despatologização do delito ocorreu com a teoria estrutural-funcionalista de Durkheim no início do século, incrementando um girocopernicano na criminologia que culminou com a consolidação acadê-mica do paradigma da reação social,91 o reducionismo sociobiológicodesse modelo revela-se obsoleto em termos científicos. No entanto,mesmo desqualificado epistemologicamente, acaba por ditar as regrasda execução da pena.

Assim, apesar de a cognição processual ser sustentada sob pre-missas acusatórias e de um direito penal do fato, todo processo de exe-cução das penas e os procedimentos que requerem avaliação pericialsão balizados por juízos medicalizados sobre a personalidade, confor-mando um modelo de direito penal do autor e um modelo criminológi-co etiológico refutado pelo sistema constitucional de garantias estrutu-rado na inviolabilidade da intimidade, no respeito à vida privada e àliberdade de consciência e de opção.92

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91 Lembra Alessandro Baratta que a teoria estrutural-funcionalista da anomia e da crimina-lidade constitui a primeira alternativa clássica à concepção dos caracteres diferenciaisbiopsicopatológicos do delinqüente e, por conseqüência, à variante positivista do princí-pio do bem e do mal. A teoria estrutural-funcionalista da anomia e da criminalidade,segundo a leitura de Baratta, afirmaria que: (1) as causas do desvio não devem ser pes-quisadas nem em fatores bioantropológicos e naturais (clima, raça), nem em uma situa-ção patológica da estrutura social; (2) O desvio é um fenômeno normal de toda estrutu-ra social; (3) somente quando são ultrapassados determinados limites, o fenômeno dodesvio é negativo para a existência e o desenvolvimento da estrutura social.Segundo Durkheim, o fenômeno criminal é encontrado em todo tipo de sociedade, ouseja, não existiria nenhuma na qual não exista uma criminalidade. O delito faz parte dasociedade como elemento funcional, da fisiologia e não de sua patologia (Baratta,Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, pp. 59-61).

92 Foucault, n’Os Anormais, lembra que o exame permite passar do ato à conduta, do delitoà maneira de ser, e de fazer a maneira de ser se mostrar como não sendo outra coisa queo próprio delito, mas, de certo modo, no estado de generalidade na conduta de um indiví-duo. Em segundo lugar, essa série de noções têm por função deslocar o nível de realidadeda infração, pois o que essas condutas infringem não é a lei mas, porque nenhuma leiimpede ninguém de ser desequilibrado afetivamente, nenhuma lei impede ninguém de terdistúrbios emocionais, nenhuma lei impede ninguém de ter um orgulho pervertido, e nãohá medidas legais contra o erostratismo. Mas se não é a lei que essas condutas infringem,é o que? Aquilo contra o que elas aparecem, aquilo em relação ao que elas aparecem, é umnível de desenvolvimento ótimo: ‘imaturidade psicológica’, ‘personalidade poucoestruturada’, ‘profundo desequilíbrio’. É igualmente um critério de realidade: ‘má aprecia-ção do real’. São qualificações morais, isto é, a modéstia, a fidelidade. São também regraséticas. Em suma, o exame psiquiátrico permite constituir um duplo psicológico-ético dodelito. Isto é, deslegalizar a infração tal como formulada pelo código, para fazer aparecerpor trás dela seu duplo, que com ela se parece como um irmão, ou uma irmã, não sei, e quefaz dela não mais, justamente, uma infração no sentido legal do termo, mas uma irregula-ridade em relação a certo número de regras que podem ser fisiológicas, psicológicas,morais, etc (Foucault, Os Anormais, pp. 20-21).

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5.3.5. O controle da ‘massa carcerária’: regime meritocrático

Para além da avaliação individual, a estrutura meritocrática deter-mina critérios de verificação da conduta do preso conforme o maior oumenor grau de adaptação às regras disciplinares que regulam a perma-nência no estabelecimento penal.

Segundo o artigo 44 da LEP, a disciplina consiste na colaboraçãocom a ordem, na obediência às determinações das autoridades e seusagentes e no desempenho do trabalho.

As faltas disciplinares classificam-se, segundo o artigo 49, emleves, médias e graves. São consideradas faltas graves, segundo os arti-gos 50 e 52, a incitação ou participação em movimentos para subvertera ordem ou a disciplina; a fuga; a posse indevida de instrumento capazde ofender a integridade física de outrem; a provocação de acidente detrabalho; o descumprimento, no regime aberto, das condições impostas;a desobediência ao servidor e o desrespeito a qualquer pessoa comquem deva relacionar-se; o descumprimento de trabalho, tarefa ouordens recebidas; e a prática de fato previsto como crime doloso.101

No sistema pátrio, o procedimento de instrução e julgamento dassanções disciplinares é presidido pela administração penitenciária,funcionando como atividade extensiva do juízo de execução (artigo 47).Julgada a falta (grave), a comunicação ao Judiciário ocorre somentepara fins de regressão de regime (art. 118, inciso I), revogação de saídatemporária (art. 125), perda da remição (art. 127) e conversão da penarestritiva de direito em privativa de liberdade (art. 181, §§ 1o, d, e 2o),ou seja, em casos nos quais a sanção afeta diretamente os incidentes(judiciais) da execução.

Sendo atividade de competência exclusiva da direção carcerária, oprocedimento é essencialmente administrativo e, enquanto tal, orienta-do pela inquisitorialidade. Apesar de a LEP assegurar taxativamentealgumas garantias no procedimento – devido processo (art. 59, caput),reserva legal (art. 45), direito de defesa (art. 59, in fine), motivação dadecisão (art. 59, parágrafo único) –, procurando tutelar os apenados dosdesvios e dos excessos minimizando o arbítrio, a lógica do sistema não

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101 Conforme determinação da LEP, as faltas médias e leves serão previstas pela legislaçãoestadual (art. 49).

nho. Ao longo do processo penal, e da execução da pena, prolifera todauma série de instâncias anexas. Pequenas justiças e juízes paralelos semultiplicam em torno do julgamento principal: peritos psiquiátricos epsicólogos, magistrados da aplicação da pena, educadores, funcioná-rios da administração penitenciária fracionam o poder legal de punir;dir-se-á que nenhum deles partilha realmente do direito de julgar; queuns, depois das sentenças, só têm o direito de fazer executar a penafixada pelo tribunal, e principalmente que outros – os peritos – nãointervêm antes da sentença para fazer um julgamento, mas para escla-recer a decisão dos juízes.96

Ferrajoli afirma que estes modelos correcionalistas de ‘reeduca-ção’ – qualquer coisa que se entenda com esta palavra97 – acabam setornando uma aflição aditiva à pena privativa de liberdade e, sobretu-do, uma prática profundamente autoritária. Esta comporta – prosse-gue o autor – uma diminuição da liberdade interior do detento, queviola o primeiro princípio do liberalismo: o direito de cada um ser e per-manecer ele mesmo, e portanto, a negação ao Estado de indagar sobrea personalidade psíquica do cidadão e de transformá-lo moralmenteatravés de medidas de premiação ou de punição por aquilo que ele é enão por aquilo que ele fez.98

Converge, nesta perspectiva, Fabrizio Ramacci, ao avaliar as teo-rias da emenda desde a Constituição italiana. Leciona que a exaspera-ção da idéia de correção, ínsita na doutrina de emenda, é bloqueada pelaproibição constitucional de tratamento contrário ao senso de humanida-de, tanto nas formas de violência à pessoa, quanto nas de violência àpersonalidade (v.g. lavagem cerebral) porque contrastante com a digni-dade humana (art. 3 da Constituição) e com a liberdade de deselvolver einclusive manter a própria personalidade (art. 2 da Constituição).99 Nomesmo sentido Cândido Furtado Maia Neto: nos regimes democráticosnão se admite o direito penal do autor – exame de personalidade, classi-ficação et coetera. A prioridade é o direito penal do ato, somente este élegítimo por se coadunar com o regime do Estado de Direito.100

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96 Foucault, Vigiar e Punir, p. 24.97 Ferrajoli, Quattro Proposte di Riforma delle Pene, p. 46.98 Ferrajoli, ob. cit., p. 46.99 Ramaci, Corso di diritto penale: principi costituzionali e interpretazione della legge pena-

le, p. 133.100 Maia Neto, Direitos Humanos do Preso, p. 49.

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que sejam. O preso ‘disciplinado’, então, não é aquele que alcançou oautocontrole, mas aquele que, submetendo-se, revela-se dócil e manipu-lável. A solidariedade, por certo, é um valor que todos estimam. Nas pri-sões, entretanto, o preso solidário com seus companheiros deve ser puni-do. Merecedor da confiança do sistema é o preso que delata. A corageme a altivez, virtudes respeitadas por todas as civilizações, são sinônimosde mau comportamento nas prisões e assim sucessivamente.103

O processo de inversão na valoração do comportamento prisional,imposto pelo signo da disciplina, potencializa-se ainda mais pelo temorreverencial da quebra da ‘segurança’. A justificativa freqüente paradisciplinar o corpo e a alma da comunidade carcerária, minimizandogarantias e lesando direitos, é dado pela necessidade de manutençãoda ordem. Desta forma, o regime disciplinar, com intuito de manter anormalidade das instituições, revela-se justificador de constantes ile-galidades.

Aos apenados, degradados sociais pelo processo de etiquetamen-to no qual há substituição de seus atributos e características pessoaispelo rótulo da delinqüência, são impostas condições de sobrevivênciacuja fonte legitimante é a força.

Disciplina e segurança são vitalizadas pela verticalização hierár-quica que sobrepõe ‘ordem’ aos direitos. Assim, no cálculo entre custos(garantias dos direitos) e benefícios (segurança e disciplina), estes sãoprivilegiados em detrimento daqueles, pois, num espaço físico regidopor ilegalidades, a manutenção de direitos pode corresponder à mini-mização das disciplinas (desordem).

Autoridade inconteste e obediência servil são pressupostos dessemodelo pré-disposto a fugas, rebeliões e motins. A resistência às mani-festações agressivas da comunidade carcerária, natural nas circuns-tâncias da perda da liberdade, acaba sendo a principal função da admi-nistração.

Não se deve olvidar que sob o signo da segurança, adjetivada porexpressões abstratas como coletiva, nacional ou pública, ergueram-seos principais regimes autoritários. Em prol da Defesa Social, nota-se atolerância institucional às ilegalidades contra os direitos do cidadão. Afalsa dicotomia entre o social e o individual sustentou Estados de ter-ror e legitimou guetos totalitários de exclusão como as instituições pri-sionais.

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103 Rolim, Dos Labirintos, p. 32.

corresponde à estrutura principiológica conformadora de um direitodemocrático, gerando focos de ilegalidades (toleradas).

Após seguir rito inquisitorial, pois a iniciativa no procedimento e agestão da prova são de responsabilidade do árbitro, cominar-se-á san-ção disciplinar (art. 53, LEP) constituída em advertência verbal (faltaleve), repreensão (falta média), suspensão/restrição de direitos ou iso-lamento na própria cela (falta grave). No caso de aplicação do isola-mento celular, a decisão da penalidade será tomada pelo ConselhoDisciplinar, ao passo que as outras sanções serão impostas exclusiva-mente pelo Diretor do estabelecimento (art. 54, LEP).

O contraponto das faltas é dado pelo regime de recompensas pelobom comportamento do apenado e sua colaboração com a ordem e adisciplina, bem como sua dedicação ao trabalho atribuído. As recom-pensas (elogio e regalias) representam pequenas alterações na rotinaprisional, correspondendo, invariavelmente, à ampliação de algunsdireitos elencados na LEP.

O caráter adestrador dos sistemas prisionais disciplinares exerceefeitos degradantes na individualidade dos apenados, sendo totalmen-te contrários aos postulados pedagógicos da educação. O estímulo aoauto-respeito, à espontaneidade e à individualidade, característicos deuma pedagogia voltada ao crescimento e à autodeterminação, sãodegradados pelo servilismo de modelo cujo imperativo é a disciplina.

O processo de prisionalização desencadeado pela necessidadedisciplinar de introjeção dos valores da comunidade carcerária favore-ce, segundo Baratta,102 a submissão do apenado ao processo de ‘acul-turação’ e ‘educação para ser um bom preso’, assumindo os postuladose as normas gerais da vida na prisão. A padronização dos seres, dadaa obrigatoriedade de ação conforme determinados valores morais, écaracterística deste regime totalitário de controle que acaba por des-truir, na esfera privada, o direito à diferença.

A questão que se coloca, no entanto, é a de que a valoração dascondutas ocorre desde um padrão diverso do existente na vida extramu-ros. Ensina Marcos Rolim que o penitenciário sustenta uma moralidadeavessa àquela que, socialmente, é reconhecida pelos cidadãos e tidacomo desejável para orientar a vida em liberdade. Assim, se os cidadãosimaginam que a disciplina seja um valor formado pelo autocontrole e peladedicação autônoma, no mundo prisional a disciplina é concebida comoa realidade da imposição de regras, por mais humilhantes ou absurdas

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102 Baratta, Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, p. 184.

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convocadas’. Sua função é a de instrumentalizar discursos e práticas,direcionadas à satisfação dos direitos fundamentais, através da toma-da de consciência da necessidade do processo de contaminação cons-titucional da execução penal.

A teoria geral do garantismo, moldada desde uma perspectiva‘realista e marginal’ (latino-americana), é capaz de produzir um discur-so harmônico com as novas relações sociais das sociedades pós-indus-triais, gerando uma série de modificações no sistema penalógico.

5.4.1. A volatilidade da pena

A alteração da quantidade (tempo) e da qualidade (forma) da exe-cução da pena foi fruto da solidificação do sistema progressivo.

Ferrajoli,105 ao avaliar a porosidade da execução penal, indaga seé legítima sua modificação, ou seja, se é lícito à administração carcerá-ria ou ao juiz de execução reduzir ou aumentar a pena conforme osresultados do ‘tratamento penal’.

A instauração do sistema progressivo, reflexo notório da concla-mação do fim ressocializador da pena e da crítica aos sistemas celula-res pensilvânico e auburniano, trouxe uma questão importante à teoriado processo penal: a rigidez da coisa julgada penal.

Francesco Carnelutti, ao comparar as execuções penal e civil, afir-ma que la ejecución penal es siempre una ejecución por transformacióncon la diferencia de que mientras en el proceso ejecutivo civil lo que setrata de transformar es una cosa, con el proceso ejecutivo penal la ressujeta a la transformación es una persona.106

Em realidade, Carnelutti transfere ao processo penal, e em espe-cial ao instituto da coisa julgada, sua concepção de pena como ‘resti-tuição espiritual’ cujo escopo seria a salvação moral do indivíduo.107

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105 Ferrajoli, ob. cit., pp. 404-409 e Ferrajoli, Quattro Proposte di Riforma delle Pene, p. 44.106 Carnelutti, Derecho Procesal Civil y Penal II, p. 328.107 Manifesta Carnelutti: la pena debe ser proporcionada a la prognosis de aquella enferme-

dad espiritual que se manifiesta en el delito; el juez establece una determinada medidaporque prevé que la misma es necesaria y suficiente para la recuperación del culpable. Noes necesario mucho para comprender que éste es el terreno sobre el cual la decisión correel mayor riesgo de ser equivocada, en exceso o en defecto. Afortunadamente, estas sonequivocaciones que la experiencia permite corregir: son las más frecuentes y en absolutoinevitables; pero también las que pueden con mayor facilidad ser reparadas. Después queel médico, de acuerdo con la prognosis, que se hace posible por la diagnosis, ha prescritouna determinada curación, él sigue con atención la marcha de la enfermedad, en particu-lar las reacciones que la cura determina sobre ella; y si se da cuenta de haberse equivoca-

A otimização dos modelos de tolerância e respeito ao cidadão(seguridade cidadã) é atingida no momento do reconhecimento dosdireitos e garantias individuais como bens inalienáveis e indisponíveis,cuja satisfação corresponde a uma norma máxima do Estado de Direitoindependentemente das restrições temporárias impostas pela práticadelitiva. Segurança é, fundamentalmente, a dos direitos contra a irra-cionalidade dos poderes, sejam privados, sejam, como no caso descri-to, públicos.

5.4. Garantismo e execução penal: proposições

As incompatibilidades funcionais da execução penal são históri-cas. Se no modelo administrativo há o predomínio dos interesses do‘Príncipe’ (sob as justificativas inquisitivas do ‘interesse social’), com aotimização da segurança e disciplina, no modelo jurisdicional, a natu-reza processual deveria primar pela tutela individual contra a irraciona-lidade do poder (prevalência dos princípios).

Estas racionalidades diametralmente opostas criam no ramo daexecução penal práticas visivelmente contraditórias que, sob a cons-tante primazia dos interesses do Estado e da defesa da sociedade, per-cebem como supérflua e descartável a proteção da ‘massa carcerária’.A constante tensão entre direito penitenciário e direito processualpenal revela ainda outra problemática insolúvel: a prevalência das prá-ticas administrativas sobre as jurisdicionais.

Concorda-se com Ferrajoli quando afirma que a história das penastornou-se, indubitavelmente, mais horrenda e infamante para a huma-nidade que a própria história dos delitos, porque as violências produzi-das pelos delitos são menores que as produzidas pelas penas.Enquanto o delito tende a ser uma violência ocasional, impulsiva e, emalguns casos, obrigatória, a violência da pena é sempre programada,consciente, organizada por muitos contra um. Logo, contrariamente àidéia fantasiosa de Defesa Social, não é exagerado afirmar que o conjun-to das penas cominadas na história produziu para o gênero humano umcusto de sangue, de vidas e de humilhações incomparavelmente superiorao produzido pela soma de todos os delitos.104

Em face da impossibilidade fática da proposta abolicionista, ogarantismo nasce como estratégia de redução de dor das ‘classes

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104 Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 382.

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com as reformas penais operadas durante a década de 80 sob a égide domovimento da Nova Defesa Social, esta volatilidade tornou-se realidade.

Neste sentido, exemplar é a Exposição de Motivos da LEP: a insti-tuição e a prática das conversões demonstram a orientação da reformacomo um todo, consistente em dinamizar o quadro da execução de talmaneira que a pena finalmente cumprida não é, necessariamente, apena da sentença. Esta possibilidade, permanentemente aberta, traduzo inegável empenho em dignificar o procedimento executivo das medi-das de reação ao delito, em atenção ao interesse público e na dependên-cia exclusiva da conduta e das condições pessoais do condenado. Todasas hipóteses de conversão, quer para agravar, quer para atenuar, resul-tam, necessariamente, do comportamento do condenado, embora sejamtambém considerados os antecedentes e a personalidade, mas de modoa complementar a investigação dos requisitos.113

Franco Cordero, ao avaliar a estrutura executiva italiana, forneceinteressante chave de leitura para o problema aqui colocado: Otimismoterapêutico. Levantam esta bandeira os dois órgãos adstritos à ‘-vigilância’, magistrado e tribunal: os legisladores crêem ou esperam, oudão a entender, que os regimes penais reeducam; tudo está em adequá-los aos reeducandos (art. 13 do Ordenamento Penitenciário emprega umtítulo cruel, quanto ao cientificismo psico-criminológico, sem maiorespreocupações quanto ao decoro lingüístico: ‘individualização dotratamento’). Neste caso, a res iudicatae perde toda a importância: jáque contam os indivíduos, como membros do jogo social, mas se aplicamformas e mecanismos jurisdicionais (...). Modelo inquisitório: o órgão queprocede usa os materiais recolhidos na denominada ‘observação cientí-fica da personalidade’ (art. 13 do Ordenamento Penitenciário); e sempreque lhes sirva, requerem auxílio aos ‘técnicos do tratamento’ (‘profissio-nais da psicologia, serviço social, pedagogia, psiquiatria e criminologiaclínica’ (idem, art. 80).114

Nítido, pois, que a alteração da coisa julgada na esfera executivaé intrínseca ao projeto correcionalista. Quando se legitima a possibili-dade de alteração do título executivo em face da existência de ‘fatosnovos’ – a sentença só se mantém enquanto as coisas estiverem nomesmo pé (rebus sic stantibus)115 –, em realidade se está condicionan-do a estabilidade da sanção não apenas a circunstâncias não existen-

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113 Exposição de Motivos à Lei de Execução Penal, § 164.114 Cordero, Procedura Penale, pp. 1165-1166.115 Tornaghi, Compêndio de Processo Penal I, p. 112.

Desta forma, imprescindível, para a correta adaptação do apenado àpena (individualização administrativa), seu constante submetimentoàs avaliações de ordem psíquica e disciplinar.

O norte da execução, portanto, seria delimitado pela adequação àsregras meritocráticas e ao programa ressocializador, os quais balizarãoa quantidade e a qualidade da pena.

Advoga o processualista a necessidade de examen periódico delcondenado, comparable a la vigilancia del médico sobre el enfermodurante la enfermedad, en vista de cuyo examen el juez de vigilanciadebería poder proponer, precisamente, al juez que ha pronunciado lacondena, las oportunas modificaciones, a decirse, naturalmente, con unsuplemento del procedimiento definitivo: modificaciones, entiendo, nosólo en el sentido de una abreviación, sino también de una prolongacióndel castigo, en aquellos casos en que la experiencia demuestre que lamedida estatuida con la condena es excesiva o bien que no es suficientepara la restauración de la persona del condenado.108

Sustenta a necessidade de transformação do mito da coisa julga-da penal, o qual alcançaria níveis de ‘superstição’109 no atual estado daarte processual, postulando, inclusive, sua total exclusão do processopenal.110

Desta maneira, assumindo o caráter defensivo e redentivo dapena, desestabilizando sua rigidez fornecida pela coisa julgada,Carnelutti propugna a possibilidade de alteração do título executivo,sendo que una modificación de la pena puede ser concebida in melius oin peius, como atenuación o como agravación.111

Todavia, se o processualista não visualizava concretamente esta pos-sibilidade em face do caráter garantista do instituto da coisa julgada,112

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do, modifica la prescripción. No es lícito establecer entre la terapia del cuerpo y la terapiadel espíritu otra diferencia que no sea la relativa a la mayor dificultad de la segunda encomparación a la primera. También el juez, lo mismo que el médico, puede seguir la mar-cha de la enfermedad (Carnelutti, ob. cit., pp. 283-284).

108 Carnelutti, ob. cit., p. 351.109 No es necesario nada más para constatar el absurdo de la aplicación del concepto de fallo

[de la cosa juzgada], entendido como irrevocabilidad o inmodificabilidad de la decisión,sobre el tema de la medida de la pena. La institución excelente del juez, que vigila la expia-ción, se empobrece y se mortifica en la limitación de los cometidos que la ley le asigna. Elmito del fallo penal [de la cosa juzgada penal], bajo este perfil, asume el aspecto deplora-ble de la superstición (Carnelutti, ob. cit., p. 284).

110 Conferir, neste sentido, Carnelutti, Contra la Cosa Juzgada Penal, pp. 273-280.111 Carnelutti, Lecciones sobre el Proceso Penal IV, pp. 251-252.112 En una modificación de la pena en curso de expiación, en el sentido de su agravación, se

puede decir que el legislador no ha pensado; sirve de defensa, desgraciadamente, en estetema contra el buen sentido, el fetichismo de la cosa juzgada (Carnelutti, ob. cit., p. 256).

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Sem embargo da posição defendida por Ferrajoli, e acreditando nacoisa julgada como garantia fundamental, sustenta-se um modelo deexecução no qual a pena aplicada na ocasião da sentença penal conde-natória (individualização judicial) fixe teto quantitativo (tempo) e qua-litativo (forma/regime) que balize o cumprimento da reprimenda.

Em sendo a pena dosada encarada como limite máximo de tempoe maneira de execução, os incidentes apenas poderiam alterar o títuloexecutivo in melius, pois, no interior de um modelo garantista, estaseria a única possibilidade de flexibilização dos direitos fundamentais.Ilegítimo, por exemplo, como disciplinado na LEP, o apenado condena-do ao regime semi-aberto ou aberto, em decorrência de falta grave,regredir ao regime fechado (v.g. art. 118, inciso I). A coisa julgada fixa-ria não apenas o máximo de quantitativo (tempo de pena), mas igual-mente sua qualidade (forma de execução).

Igualmente ilegítimo, por representar uma subjetivação do juízo,os discursos disciplinar (faltas) e criminológico (laudos e pareceres)serem utilizados como critérios de alteração do título executivo. Se seadmite uma volatilidade mitigada (in mellius), os requisitos para alte-ração do título executivo devem ser absolutamente objetivos, funda-mentalmente no que tange, no nosso sistema, ao cumprimento dedeterminado tempo da pena.

Em nenhuma hipótese a falta disciplinar poderia ultrapassar aesfera administrativa para produzir efeitos no campo judicial. As san-ções disciplinares, em um procedimento no qual seja garantida a ampladefesa, somente podem limitar direitos ‘domésticos’ do apenado, sobpena de produzir, como ocorre na atualidade, penalizações múltiplas(nas esferas administrativa e judicial), em clara ofensa à máxima ne bisin idem.

Não se está, portanto, defendendo o fim do regime progressivo.Propõe-se, em realidade, a abolição do modelo meritocrático que admi-te uma porosidade antigarantista da coisa julgada penal.

5.4.2. As relações entre os discursos disciplinar e jurídico:processo penal e procedimentos executivos

A discricionariedade com o trato das questões disciplinares extra-pola os efeitos meramente administrativos. O comportamento carcerá-rio é requisito formal da totalidade dos incidentes de execução penal –não somente os incidentes parciais que alteram relativamente a quan-

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tes no momento da condenação (v.g. comportamento carcerário), mas,sobretudo, a fatos futuros imprevisíveis (v.g. prognose de reincidência),justificando um sistema processual penal inquisitivo, de corte antropo-lógico, na melhor tradição etiológica.

Neste aspecto, lícita a crítica ao sistema progressivo que, apesarde se apresentar ao público como mecanismo humanitário, legitima ummodelo absolutamente antigarantista que torna incertos o tempo e aforma de resposta ao desvio. Assim, se o aumento da pena em sedeexecutiva contraria um modelo de garantias, sua redução, estruturadano princípio do arrependimento, é igualmente ofensiva aos direitos fun-damentais.

Lembra Ferrajoli que, nos sistemas de pena flexível, os benefícios ea diminuição da pena de acordo com as medidas alternativas resultamcondicionadas à boa conduta do réu, ao seu arrependimento ou a outrosjuízos de valor semelhantes em torno da sua personalidade. Com-preende-se o caráter fortemente negocial que assume a vida carcerária:de fato, o detento que pretende obter tais benefícios terá de oferecer dia-riamente provas de sua sensibilidade e de disponibilidade ao tratamen-to, até que a sua personalidade seja julgada merecedora.116

Estruturados no defensivismo profilático, os instrumentos de con-solidação desta técnica de maleabilidade do julgado são as sançõesdisciplinares e os laudos e perícias criminológicas, visto que peçasdecisivas na avaliação judicial do ‘estado perigoso’, do arrependimen-to, da boa ou má adaptação do sujeito à prisão et coetera.117 É estepoder ilimitado que transforma em total e liberticida a instituição car-cerária: porque reduz a pessoa a uma coisa, colocando-a inteiramentenas mãos de um outro homem, ofendendo com isso a sua dignidade, sejaquem for aquele que deve decidir.118

Importante frisar que a ‘flexibilidade das penas’ significa tambémflexibilidade dos pressupostos da pena; e esta maleabilidade supõe oesvaziamento da lei e do juízo e, em conseqüência, a dissolução detodas as garantias, tanto penais como processuais.119

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116 Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 406.117 Lembra Hoenisch que as perícias criminais determinam a mobilidade (ou não) da pessoa

presa, desde uma lógica (senso comum) de culpa e arrependimento cristão: se o autor ouautora do delito se mostra arrependido, então este é um critério sólido para o recebimen-to do benefício (Hoenisch, Divã de Procusto, pp. 10/42-43.

118 Ferrajoli, ob. cit, p. 407.119 Ferrajoli, ob. cit, pp. 408-409.

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administrativos não ocorreria, portanto, de maneira reflexa com a merahomologação da sanção, mas seria constante, visto que o debate sobrea conduta faltosa dar-se-ia no palco processual, em audiência, comnecessária presença do Ministério Público e da Defesa técnica.

Outrossim, crê-se importante lançar a discussão sobre a necessidadede diferir os efeitos das sanções disciplinares, autonomizando-se as esfe-ras judicial e penitenciária. À guisa de ilustração, veja-se a seguinte hipó-tese: condenado ao cumprimento de pena de reclusão em regime semi-aberto, o apenado, que vinha exercendo atividade laborativa, é condena-do disciplinarmente por falta grave. Em razão da homologação do juiz, ésancionado com a perda de alguns direitos domésticos (art. 41), sendodeterminado isolamento celular por 30 (trinta) dias (art. 53, inciso IV, c/cart. 58). Não obstante os efeitos ‘domésticos’, a sanção disciplinar irradia-se ao plano judicial, podendo (a) determinar regressão a regime mais gra-voso (fechado) a que sequer foi condenado, segundo o art. 118, inciso I; (b)revogar saídas temporárias (art. 125); (c) anular o tempo de remição (art.127); e (d) impedir o gozo de qualquer direito (incidente de execução) nospróximos 12 (doze) meses, visto macular o prontuário do preso.

O mesmo fato, em ocorrência prosaica na execução penal, geraefeitos sancionatórios em esferas diversas, induzindo afirmar claraofensa ao princípio ne bis in idem, por versar sobre o mesmo sujeito e amesma conduta. Lembra Tellez que el principio non bis in idem consis-te en impedir, por una parte que una persona sea sancionada dos vecespor el mismo hecho con sanciones de igual o distinto orden (penal yadministrativo), cuando entre ambas exista identidad de sujeto, dehecho y de fundamento.121

Tem-se, pois, da imperativa necessidade de autonomizar os efei-tos, jurisdicionalizando o procedimento e, ao unificar a avaliação dofato no juízo de execução, impedir duplicidade sancionatória.

Outro problema relevante quanto às faltas disciplinares é a cons-tante lesão ao princípio da estrita legalidade, não apenas no que dizrespeito à reserva de lei, mas igualmente no que tange à (falta de) taxa-tividade dos tipos administrativos sancionadores com o abuso de con-ceitos indeterminados. Maria Palma Wolff verifica que o problema é quenem sempre o sistema sancionatório se restringe às faltas legalmentetipificadas, e, também, as punições extrapolam o espectro legal.122

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121 Apud Fernandez García; Pérez Cepeda; Sanz Mulas & Zuñiga Rodríguez, Manual deDerecho Penitenciário, pp. 290-291.

122 Wolff, ob. cit., p. 169.

tidade ou qualidade da pena, mas também os incidentes absolutos,isto é, extintivos da punibilidade como indulto, graça e anistia.

Em decorrência deste vínculo normativo, necessária avaliaçãoconjunta do processo de execução e do procedimento administrativo deapuração das faltas que adjetivarão a conduta carcerária do apenado.

O ‘bom comportamento carcerário’ é indicado, fundamentalmente,pela ausência de registro, no prontuário do preso, de falta grave. Muitoembora não haja prazo específico para extinção dos efeitos da sançãoadministrativa, entende-se que, por analogia aos decretos de indulto,tal avaliação deve estar limitada aos últimos 12 (doze) meses de cum-primento de pena. Assim, se o preso, neste lapso temporal, sofrer con-denação administrativa por falta grave, e em sendo esta falta homolo-gada judicialmente, não poderá gozar o direito postulado.120

A transposição da esfera administrativa para a processual penalindica alguns sérios problemas que devem ser enfrentados. O primeirodeles diz respeito às garantias no procedimento. Indubitavelmente,após o advento da Carta Constitucional de 1988, ficaram asseguradosa ampla defesa e o contraditório nos processos administrativos (art. 5o,inciso LV). Todavia, na estrutura do direito penitenciário, a tendência éque o procedimento siga um rito inquisitivo, no qual as garantias sãomitigadas, problema que não é resolvido, frise-se, pela homologaçãojudicial da falta. Ampla defesa e contraditório pressupõem paridade dearmas, em ações realizadas no espaço público (publicidade), garantin-do-se os recursos necessários (duplo grau) e, fundamentalmente,imparcialidade do julgador. Os procedimentos administrativos discipli-nares (PAD’s) não são harmônicos com a estrutura acusatória do ritogarantista, a começar pelo fato de que sequer há regulamentação pré-via das ‘regras do jogo’ procedimental, ficando os Estados com a com-petência de suprir as lacunas normativas da LEP.

Desta forma, tem-se como imprescindível a jurisdicionalização dosprocedimentos relativos às faltas (no mínimo as graves), pois os efeitosproduzidos nesta seara (jurisdicional) acabam por exigir tal atribuiçãoao magistrado da execução. O controle judicial da legalidade dos atos

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120 A ausência de previsão de prescrição das faltas, como ocorre em estatutos alienígenas –v.g. artigos 258 a 262 do Regulamento Penitenciário espanhol, que determina prazosprescricionais entre 03 (três) anos e 06 (seis) meses, dependendo da gravidade da falta–, notadamente das faltas graves, gera, em sede executiva, situação anômala. A inter-pretação analógica aos decretos de indulto, restringindo os efeitos aos últimos 12 (doze)meses, é uma das formas de limitar os abusos cometidos por esta omissão legislativa.

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5.4.3. A função dos técnicos (criminólogos)

Não obstante a legitimação de um modelo moralista fundado narecuperação, o discurso clínico-disciplinar, ao atuar como suporte aojurídico e, assim sendo, fundir-se a ele nas decisões em sede executi-va, cria um terceiro discurso, não-jurídico e não-psiquiátrico, autopro-clamado criminológico, que, apesar da absoluta carência epistemológi-ca, é altamente funcional.126

Foucault entende este processo como uma técnica de normaliza-ção do poder que não é apenas resultado do encontro entre o sabermédico e o poder judiciário, mas da composição de um certo tipo depoder – nem médico, nem judiciário, mas outro –, que colonizou e repe-liu tanto o saber médico como o poder judiciário.127

A técnica criminológica, ao se colocar como o discurso da ‘ver-dade’ no processo de execução, acaba por reeditar um sistema deprova tarifada, típico dos sistemas inquisitivos pré-modernos, queincapacita as normas de garantia, visto obstruir contraprova (irrefuta-bilidade das hipóteses).

Não apenas no plano processual, mas igualmente no plano mate-rial, o discurso clínico altera a face do direito penal. Enquanto o objetode discussão do direito é (deveria ser) o fato concreto, impossibilitandoavaliações sobre a história e a vida do sujeito, no discurso criminológi-co é nítida a valorização da interioridade da pessoa – os diagnósticos sãorepletos de conteúdo moral e com duvidosas doses de cientificidade.128

Este ‘nó’ teórico acarretado pela sobreposição dos discursos pare-ce ser o principal problema da execução. As garantias do cidadão presosão abandonadas em detrimento dos juízos técnicos que, segundo VeraMalaguti Batista, apesar de aparentemente ‘científicos’, não são nadaneutros, pois se destacam no processo pela construção e consolidaçãode estereótipos.129

Assim, tendo como máxima a inadmissibilidade da negativa dequalquer direito público subjetivo com base em avaliações de persona-

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126 Sustenta Cristina Rauter que a ‘colonização’ do judiciário pelas ciências humanas, pelavia da Criminologia, corresponde a um processo de implantação de uma tecnologia disci-plinar, com efeitos a nível do discurso e também das práticas sociais (Rauter, Criminologiae Poder Político no Brasil, p. 80).

127 Foucault, Os Anormais, pp. 31-32.128 Batista, O Proclamado e o Escondido, p. 84.129 Batista, ob. cit., p. 77.

A ausência de controle semântico, decorrente da tipicidade aber-ta do art. 50 da LEP, gera modelo propício ao abuso do poder pelosagentes carcerários. Pense-se nas possibilidades de inclusão de condu-tas a partir dos deveres de ‘participação de movimento para subvertera ordem ou a disciplina’ (art. 50, inciso I, in fine), ‘obediência ao servi-dor e respeito a qualquer pessoa com quem deva relacionar-se’ (art. 39,inciso II) e ‘execução do trabalho, das tarefas e das ordens recebidas’(art. 39, inciso V).

Mais, a delegação de competência normativa da LEP aos Estadospara disciplinar o procedimento (art. 59), estabelecer a natureza e aforma de concessão de regalias (art. 56, parágrafo único) e especificaras faltas leves ou médias (art. 49) gerou situação de flagrante ofensa àreserva de lei, qual seja, a de as normativas estaduais, ao elaboraremos Regulamentos Penitenciários, incluírem outras faltas (graves) e san-ções disciplinares para além daquelas previstas na LEP123 – um gran-de número de faltas disciplinares [graves] está associada ao uso deálcool ou de alguma repercussão daí advinda, como atraso na apresen-tação das saídas temporárias ou do serviço externo.124

No que diz respeito ao processo de execução penal, como anuncia-do anteriormente, reivindica-se sua filtragem constitucional, com adecorrente implementação dos postulados do sistema acusatório.

Desta forma, imprescindível a separação dos sujeitos processuaisem uma estrutura dialética na qual as atividades de acusação, defesae decisão ocorram em audiência, garantindo-se o contraditório, a orali-dade e a publicidade. Mais, ao magistrado, em sua posição de espec-tador, não caberia a instauração ex ofício do processo (papel doMinistério Público), devendo, no curso da execução, atuar como garan-tidor dos direitos do apenado, sem gestão probatória e fundamentandotodas as suas decisões.125

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123 Neste sentido, vale lembrar a Resolução 26/2001, da Secretaria de AssuntosPenitenciários do Estado de São Paulo, que, ao adotar o Regime Disciplinar Diferenciado(RDD), instituiu sanção disciplinar de 180 (cento e oitenta) e 360 (trezentos e sessenta)dias, aos ‘líderes e integrantes de facções criminosas’ e aos ‘presos cujo comportamen-to exija tratamento específico’ (art. 1o da Resolução). Nota Alberto Silva Franco que for-mula, através de mera resolução administrativa, uma categoria diversa de isolamentocelular – e, por sinal, bem mais gravosa do que consta no art. 53 da LEP – constitui umainvasão da área de competência do legislador federal e afronta, com clareza solar, a Lei deExecução Penal (Franco, Meia Ilegalidade, p. 02). Na mesma linha, conferir Weis, O RDDe a Lei, pp. 09-10.

124 Wolff, ob. cit., p. 169.125 Sobre a estrutura acusatória no processo na execução penal, conferir Lopes Jr., A instru-

mentalidade Garantista do Processo de Execução Penal, pp. 443-476.

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A imposição de programas de ressocialização, não obstante ferir amais elementar premissa do tratamento (voluntariedade), somente éadmissível em sistemas nos quais o encarcerado é percebido comoobjeto entregue ao laboratório criminológico do cárcere – objeto de umatecnologia e de um saber de reparação, de readaptação, de reinserção,de correção.133

Desde a perspectiva garantista, inconcebível obrigar o sujeito aqualquer tipo de medicina, pois este preserva seu direito de ser e con-tinuar sendo quem deseja, tudo em decorrência do princípio constitu-cional da inviolabilidade da consciência (art. 5o, incisos IV, VI e VIII).

Importantes, pois, as recomendações do Documento Final doPrograma de Investigação desenvolvido pelo Instituto Interamericanode Direitos Humanos (IIDH). Diagnostica o relatório que inexiste nosordenamentos jurídicos latino-americanos qualquer tipo de interven-ção participativa do apenado na eleição do programa de reinserção aoqual estará subordinado. Em regra, os informes sobre o condenado ten-dem a ser estigmatizantes, agregando expedientes com sentido infa-mante altamente negativo que, al par de resultar una agresión a la per-sonalidad, totalmente contraria a los fines que se propone formalmenteel sistema, importa en una seria violación a la esfera íntima de la perso-na, que no se encuentra afectada por la pena privativa de libertad másque en la estricta medida de lo que, conforme a la naturaleza de lascosas, se desprende del mero hecho de la privación de libertad.134

Conclui Zaffaroni que a pena privativa de liberdade não tem, sobnenhuma justificativa, o efeito de comprometer a personalidade e aintimidade do condenado, de tal sorte que os técnicos que atuam naexecução não estão isentos do segredo profissional inerente aos seuscargos, isto é, os funcionários não estão autorizados a divulgar dadosrelativos à intimidade da pessoa. Assim, propõe o relatório: 1) que laobservación y clasificación de los condenados se lleve a cabo en un plazorazonablemente breve, con intervención de una comisión técnica multi-disciplinaria, y con control del juez de ejecución penal, posibilitándose –desde esa misma etapa – la intervención del penado en la estructuracióndel programa a que se lo someta; 2) que los informes de las comisionesde clasificación se abstengan de penetrar en aspectos concernientes a laesfera íntima de la persona y se funden en modelos adecuados a lascaracterísticas culturales de cada comunidad; 3) que los profesionales y

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133 Foucault, ob. cit., pp. 26-27.134 Zaffaroni, Sistemas penales y derechos humanos en América Latina, p. 209.

lidade, restaria indagar: qual seria a função dos técnicos (criminólogos)para além da demanda de avaliações/perícias?130

Segundo a LEP, as Comissões e Centros de Observação têm porfunção realizar anamneses e prognósticos visando a reinserção socialdo apenado. Parece, pois, que a atividade do técnico não é direcionadaà confecção de laudos. O trabalho a ser realizado seria o de propor (nãoimpor) ao condenado um programa de gradual ‘tratamento penal’,131

objetivando a redução dos danos causados pelo cárcere (prisionaliza-ção). O labor deveria ser outro que o de ‘tarefeiro’ – fornecedor dedados sobre ‘conduta futura e incerta’, com o escopo de justificar adecisão judicial.132

Uma atividade pautada em programas humanistas de redução dedanos possibilitaria construir com o apenado técnicas que possibilitas-sem a minimização do efeito deletério do cárcere (clínica da vulnerabi-lidade). Constatados problemas de ordem pessoal (uso de drogas ealcoolismo, por exemplo) ou familiar, deveria o técnico, junto com oapenado, e tendo como imprescindível sua anuência, colocar em práti-ca um processo de resolução do problema, ou seja, fornecer elementospara superação da crise e não estigmatizá-lo, potencializando-a.

Nítido, no entanto, que qualquer tipo de ‘tratamento’ pressupõe avoluntariedade do sujeito, sob pena de violação do princípio da digni-dade humana.

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130 Lembra Miriam Guindani, ao avaliar o papel dos técnicos no sistema penitenciário, queos profissionais do Serviço Social [psicologia e psiquiatria, inclui-se] foram relegados àfunção de tarefeiros para simplesmente atender às demandas de avaliação pericial parafins de individualização, progressão de regime ou livramento condicional. Assim, perdeusua identidade como categoria, ficando relegado, muitas vezes, a um papel de ‘executorde laudos’. As ações passaram a ocorrer através das equipes de CTC, enquanto o trata-mento penal previsto em lei tornou-se, com algumas exceções, secundário (Guindani,Violência e Prisão, p. 35). No mesmo sentido enunciam Hoenisch e Pacheco, ao afirmarque, a despeito das diversas possibilidades de trabalho do psicólogo, observa-se umarestrita atuação à confecção de laudos técnicos (Hoenisch & Pacheco, A psicologia e suastransições, pp. 191-204).

131 Apesar de entender-se a categoria ‘tratamento penal’ absolutamente inadequada, poisuma contradição em termos, utiliza-se entendendo-o não como uma finalidade em si documprimento da pena, mas como um conjunto de práticas educativas e terapêuticas quepodem ter significados e funções diferenciadas no processo de cumprimento da pena,dependendo dos diferentes fatores teóricos, políticos e institucionais, que o envolvem(Wolff, Antologia de Vidas e Histórias na Prisão, p. 96).

132 Maria Palma Wolff lembra que esta discricionaridade dos profissionais embasada em cri-térios, que não são tão neutros e científicos como pretendem ser, faz com que, muitasvezes, o parecer técnico afigure-se quase como um exercício de suposições, de futurologia.Isto, a partir de um discurso que já está dado como única verdade, bastando ajustá-lo acada caso avaliado (Wolff, ob. cit. , p. 93).

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razoáveis’ das decisões penais. Um exemplo incrível é o dispositivo doart. 141, que trata da demora nas medidas cautelares pessoais.Segundo o Código, cuando se haya planteado la revisión de una medidacautelar privativa de libertad o se haya apelado la resolución que denie-ga la libertad y el juez o tribunal no resuelva dentro de los plazos esta-blecidos en este código, el imputado podrá urgir pronto despacho y sidentro de las veinticuatro horas no obtiene resolución se entenderá quese há concedido la libertad. Idêntica solução no que tange aos recursosà Corte Suprema de Justiça: cuando la Corte Suprema de Justicia noresuelva un recurso dentro de los plazos establecidos por este código, seentenderá que há admitido la solución propuesta por el recurrente, salvoque sea desfavorable para el imputado, caso en el cual se entenderá queel recurso há sido rechazado. Se existen recursos de varias partes, seadmitirá la solución propuesta por el imputado.

Parece, pois, salutar, não apenas que a legislação seja aperfeiçoa-da no sentido do estabelecimento de prazos razoáveis às decisões judi-ciais em sede executiva, mas, apreendendo os valores ínsitos ao Pactode São José, sejam criadas técnicas judiciais idôneas a uma céleredecisão sobre os incidentes de execução penal.

O exemplo da resolução ficta fornecido pela legislação paraguaiapode perfeitamente direcionar projetos de reforma no sentido da con-cessão automática dos direitos pleiteados em caso de omissão dospoderes jurisdicionais. A propósito, como no modelo normativo em aná-lise, tal mecanismo poderia disciplinar o tempo da decisão em casos deprisão cautelar, verdadeira patologia na estrutura da administração dajustiça penal brasileira.

5.4.5. Da necessidade de recodificação

A ruptura entre as estruturas do processo penal de conhecimento eo de execução gera um déficit na tutela dos direitos fundamentais. Nãoinvariavelmente, a prática forense demonstra que os princípios mais bási-cos do processo de conhecimento são olvidados na execução da pena. Umdos exemplos mais nítidos é a incompreensão dos técnicos do sistemapenitenciário, bem como dos operadores do direito que nele atuam (juí-zes, promotores de justiça e defensores), em relação à extensão do princí-pio do nemo tenetur se detegere e da presunção de inocência (em relaçãoa fatos futuros)137 quando do requerimento de prova pericial.

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137 Lopes Jr., ob. cit., pp. 458-461.

funcionarios intervenientes queden sometidos a las reglas del secretoprofesional o funcional y que sus informes no sean agregados indiscrimi-nadamente a los expedientes”.135

Para finalizar, urge lembrar Anabela Miranda Rodrigues: o ‘trata-mento’, quer seja realizado em liberdade, quer em caso de sua privação, ésempre um direito do indivíduo e não um dever que lhe possa ser impostocoativamente, caso em que sempre se abre a via de uma qualquer mani-pulação da pessoa humana, redobrada quando esse tratamento afeta asua consciência ou a sua escala de valores. O ‘direito de não ser tratado’é parte integrante do ‘direito de ser diferente’ que deve ser assegurado emtoda sociedade verdadeiramente pluralista e democrática.136

5.4.4. O controle do tempo das decisões judiciais: resolução ficta

Um dos fatores de maior inconstância na execução da pena noBrasil é a demora do Poder Judiciário em atender os pedidos dos pre-sos, fundamentalmente àqueles destinados a alterar a qualidade (regi-me) da pena – v.g., progressão de regime e livramento condicional.

A morosidade da magistratura em responder aos incidentes exe-cutivos é tamanha que chegou a ser nominada, em diversas ocasiões,como uma das causas de inúmeros motins e rebeliões.

Inegável que a falta de estrutura (pessoal e administrativa) cola-bora com a omissão estatal. No entanto, a incapacidade administrativado Poder Público em nenhum caso pode justificar lesões aos direitosfundamentais.

Se o Pacto de São José da Costa Rica (Decreto 678/92) garante, emseu art. 8, 2, ‘c’, a concessão ao acusado do tempo e dos meios adequa-dos para a preparação de sua defesa, de igual forma prevê que toda pes-soa presa ou processada tem o direito de ser julgada dentro de umprazo razoável, ou ser posta em liberdade (art. 7, 5).

Interessante, pois, verificar toda extensão possível deste disposi-tivo como forma de propositura das necessárias alterações na estrutu-ra do processo (de execução) penal brasileiro (Ley 1286/98).

O Código de Processo Penal Paraguaio, p. ex., ao incorporar oPacto de São José, estabeleceu uma série de sanções processuaisdecorrentes do não cumprimento, pelos agentes públicos, dos ‘prazos

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135 Zaffaroni, ob. cit., pp. 209-210.136 Apud Franco, Temas de Direito Penal, p. 106.

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pertinentes aos organismos administrativos, à intervenção jurisdicionale, sobretudo, ao tratamento penal em suas diversas fases e estágios,demarcando, assim, os limites penais de segurança. Retirará, em suma,a execução penal do hiato de legalidade em que se encontra.140 Comefeito, a execução das penas e das medidas de segurança deixa de serum Livro do Código de Processo para ingressar nos costumes jurídicosdo país com a autonomia inerente à dignidade de um novo ramo jurídi-co: o Direito de Execução Penal.141

Todavia, se a intenção do legislador de 1984 foi harmonizar amatéria, obteve, ao contrário, como efeito perverso, sua total desregu-lamentação. Pior, ao tentar otimizar a legalidade da execução penalatravés de um estatuto único perpassado pelo princípio da jurisdicio-nalização, acabou, ‘acidentalmente’, submetendo os direitos do conde-nado a uma estrutura administrativa-disciplinar e clínico-criminológi-ca, na qual os direitos ficam invariavelmente subordinados aos laudostécnicos e aos procedimentos disciplinares.

Se a característica da descodificação é a criação de uma desordemjurídica em decorrência da sobreposição da estrutura do direito admi-nistrativo ao penal, percebe-se, com a autonomização da execução,uma substancial redução dos direitos e garantias penais e processuaispenais em prol da estrutura disciplinar e criminológica. Não obstante,diferentemente do que representa um estatuto processual penal degarantias, o estatuto executivo autônomo superdimensiona a noção desegurança que, em choque com os direitos e garantias do preso, acabapreponderando.

Neste quadro, uma das formas (normativas) de garantir os direitosdos apenados seria a recapacitação do processo penal e, em conse-qüência, de sua estrutura principiológica. Para tanto, advoga-se, comoproposta político-criminal, a urgente necessidade de recodificar a exe-cução, restabelecendo a idéia de sistema processual que foi totalmen-te ofuscada pela reforma de 1984.

5.4.6. A cominação penal em abstrato

Proposta de lege ferenda adesiva a recodificação é no que tange àcominação abstrata das penas.

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140 Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal, § 07.141 Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal, § 12.

A descodificação das regras executivas do Código de ProcessoPenal ocasionou uma sobreposição de textos que ofuscou a harmonia(completude e coerência) entre sistemas co-irmãos, transportando sen-sação ao senso comum dos juristas que o desrespeito aos rígidos requi-sitos processuais na execução é uma simples irregularidade.

Mantovani, ao discorrer sobre os processos de descodificação,assinala que é necessário concluir resignadamente que o Direito Penal,abandonando o ideal iluminista de leis ‘simples’, ‘claras’ e ‘estáveis’, pelarealidade de leis ‘complexas’, ‘confusas’ e ‘instáveis’, ingressou na erairracional da descodificação e das legislações especiais: isto é, a eranebulosa das leis penais usadas como instrumento de governo e nãocomo tutela de bens; das leis de compromisso, de formulação indetermi-nada e estimativa; das leis que garantem privilégios para potentes gru-pos sociais; das leis vazias, simbólicas, mágicas, destinadas tão-somen-te a colocar em cena a diligência na luta contra certas formas de crimi-nalidade; das leis ‘hermafroditas’ com forma de lei mas substância deato administrativo; das leis cultivadoras do clientelismo, corporativas,para negociações do voto por privilégios particulares; das leis tecnica-mente desalinhadas e ilógicas, inspiradas na ‘liberdade de expressão’,de cada vez mais árdua compreensão; das leis-expediente, do casuísmo,para sobreviver diariamente e quase sempre mal; das leis ‘burocráticas’,meramente sancionadoras de genéricos preceitos extrapenais.138

A tendência do sistema executivo de se transformar cada vez maisem sistema de controle administrativizado, e sempre menos processualpenal, produziu séria crise no conjunto das normas e dos mecanismosque negam a informalidade de controle social. Ao desregulamentar asnormas e desjudicializar o processo, a estrutura do controle social for-mal retoma um modelo penal irracionalista.

A reivindicação da ‘reserva de código’ encontra, portanto, na exe-cução penal, uma temática privilegiada na propugnação de unidade ecoerência.

O discurso que culminou com a descodificação teve como primadoa idéia de que o tema relativo à instituição da lei específica para regu-lar a execução penal vincula-se à autonomia científica da disciplina, queem razão de sua modernidade não possui designação definitiva.139

Desta forma, uma lei específica e abrangente atenderá a todos osproblemas relacionados com a execução penal, equacionando matérias

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138 Mantovani, Valori e principi della Codificazione penale, p. 263.139 Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal, § 08.

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O autor percebe que o delito, ao contrário da pena, não é quantifi-cável, sendo que os critérios para medição de gravidade, tanto da pers-pectiva do dano quanto da culpabilidade, foram, até a atualidade, umgrande fracasso. O elemento da medida da pena se encontra na defini-ção da pena máxima e não no mínimo que, em realidade, representauma taxa. Os critérios mínimos são entendidos freqüentemente comogarantia do Estado frente ao infrator. Todavia tal garantia é supérflua,visto ser este o detentor absoluto do poder de castigo. Lembre-se, poroportuno, que a supressão dos limites mínimos nas cominações foradefendida por Luiz Alberto Machado durante o V Congresso Nacionalde Direito Penal e Ciências Afins.144

5.4.7. A responsabilização dos agentes públicos pela violação dos direitos fundamentais dos apenados

Outro ponto importante a ser observado é quanto à possibilidadede responsabilização dos agentes dos Poderes Judiciário e Executivoencarregados da execução penal.

O fenômeno das violações dos direitos da pessoa presa, por parteda administração pública, é uma das realidades mais notórias no país.Inúmeros estudos empíricos demonstram o afirmado. Infelizmente, jus-tifica-se por ser ‘variável histórica inevitável’, vista a natureza autoritá-ria das prisões.

Entende-se, porém, que o Poder Judiciário também incorre em ile-galidades, pois, ao não observar as regras do art. 5o, inciso XXXV, CFc/c o art. 66, incisos VI, VII e VIII, da LEP, não presta a devida tutela àmassa carcerária. Para Ela Castilho, o Judiciário erra ao fazer acomoda-ções para cobrir a desorganização, a omissão e a imprevidência dosdepartamentos penitenciários.145

A eficácia do modelo garantista somente pode ser alcançadaquando o controle das atividades administrativas ocorra comissiva-mente pelo Poder Judiciário, exigindo do Poder Executivo o respeito àdignidade dos presos, suprindo-os de suas carências materiais e res-peitando sua individualidade. Os subterfúgios utilizados pela adminis-tração não podem ser empecilho ou barreira à atuação judicial.

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144 Machado, Das Penas, p. 66.145 Castilho, ob. cit., p. 114.

Ferrajoli percebe a necessidade de alteração do teto cominado àpena privativa de liberdade para, no máximo, dez anos. Segundo oautor, tal redução suporia não somente uma atenuação quantitativa,mas também qualitativa da pena, dado que a idéia de retornar à liber-dade depois de período ‘breve’, e não largo ou interminável, tornariamais tolerável e menos alienante a reclusão para o condenado.142

É fundamental notar, para compreensão da proposta, que as rela-ções espaço-tempo atuais não correspondem àquelas inerentes à for-mulação dos Códigos (a parte especial que define as penas data dadécada de 40). A evolução tecnológica, ao mesmo tempo em que rom-peu barreiras, dirimindo as noções de espaço, reduziu o tempo, obrigan-do o indivíduo a processos constantes de reciclagem sob pena de inca-pacitação compreensiva da realidade. Ou seja, a compreensão do perío-do de 30 (trinta) anos – máximo da pena privativa de liberdade comina-da no país – não é identica àquela quando da redação do Código.

Mister observar que vinte anos é o limite máximo de pena dereclusão em países como a França, Bélgica, Suíça, Noruega, Luxem-burgo e Grécia; a Dinamarca e a Islândia têm como limite dezesseisanos; Alemanha, Hungria e Polônia estabelecem como teto quinzeanos; enquanto na Finlândia o máximo é de doze anos e na Suécia é dezanos de reclusão.

Sustenta Ferrajoli a perversidade do efeito penalógico que man-tém reclusa uma pessoa por muitos anos. Passado longo período, nema pessoa, muito menos a sociedade que em determinado momento rei-vindicou a pena, são mais as mesmas. Injusto, pois, que o homem,totalmente modificado pelo enclausuramento, continue sofrendo penaem realidade totalmente diversa daquela que necessitou a manifesta-ção repressiva do Estado. A minimização das penas em sede legislati-va representaria redução de danos e custos sociais.

Congregada à proposta de diminuição do máximo, está a indeter-minação da pena mínima. Nesta perspectiva, ao legislador caberia deli-mitar apenas o máximo, ficando ao critério do juiz a fixação motivadada sanção. Entende Ferrajoli que, para as penas privativas de liberda-de, não se justifica a estipulação de um mínimo legal: seria oportuno,em outras palavras, confiar ao poder eqüitativo do juiz, a escolha dapena abaixo do nível máximo estabelecido pela lei, sem vinculá-lo a umlimite mínimo, ou vinculado a um limite mínimo muito baixo.143

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142 Ferrajoli, ob. cit., p. 413.143 Ferrajoli, ob. cit., p. 397.

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casas de detenção, com a imediata transferência dos apenados, seria ocorolário lógico dos incidentes de excesso ou desvio na execução.

O juiz que tolera passivamente a violação dos direitos fundamen-tais, incorre, segundo Zaffaroni, en un injusto análogo al de quien tolerala prolongación indebida de la privación de libertad, pues en este últimocaso se trata de un injusto por extensión de la privación de libertad, entanto que en el primero el injusto es por las condiciones de la misma.150

Os observadores da Human Rigths Watch (HRW/Americas), aorelatarem a situação carcerária no Brasil, partilham do mesmo entendi-mento. Sustentam que promotores públicos e outras autoridades deJustiça são co-responsáveis pelos altos níveis de violência institucionalda qual os presos são vítimas.151 Aliás, a Anistia Internacional, quandoda denúncia do ‘Massacre na Casa de Detenção de São Paulo’, em outu-bro de 1992, alertava que em todo o Brasil tem havido queixas de displi-cência da parte desses magistrados [das Varas de Execução Penal]quanto à freqüência ou à adequação das inspeções dos estabelecimen-tos penais.152 Mais, a seção brasileira chegou a constatar conivênciadas autoridades judiciais no abuso de autoridade.153

Idêntico problema é constatado por Marcos Rolim: no que diz res-peito às nossas prisões, sabe-se desde há muito que, em nosso país, expe-rimentamos a realidade de um sistema absolutamente fora da lei... O sur-preendente, diante dessa característica, além das responsabilidades evi-dentes dos executivos, é a inoperância quando não a cumplicidade daesmagadora maioria dos assim chamados ‘operadores do direito’.154

A construção de um modelo jurídico de garantias pressupõe acei-tar que o exercício do poder induz abusos, e que o direito processual,apesar de penoso e distribuidor de dor, deve ser entendido como instru-mento de tutela do cidadão frente ao(s) poder(es) ilimitado(s) do Estado.

Para finalizar, afirma-se, juntamente com Ferrajoli,155 que garantirsignifica, primordialmente, atuar na defesa intransigente dos direitoscomo limite ao poder punitivo, construindo técnicas de minimização daarbitrariedade judicial e administrativa.

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150 Zaffaroni, ob. cit., p. 207.151 Human Rights Watch, O Brasil Atrás das Grades, p. 04.152 Anistia Internacional, Chegou a Morte, p. 06.153 Anistia Internacional, Aqui Ninguém Dorme Sossegado, p. 01.154 Rolim, ob. cit., p. 129.155 Ferrajoli, Crisis del Sistema Político y Jurisdicción, p. 126.

Ferrajoli, ao avaliar o papel da jurisdição na democracia, ensinaque, no paradigma do Estado de direito, tanto legislador como adminis-trador estão vinculados à lei constitucional. Essa é a diferença básicaentre o velho Estado liberal (onipotência do Legislativo) e o Estadosocial (onipotência do Executivo) do Estado democrático de direito, noqual política e legislação estão subordinadas ao direito. Assim, pode-se, de fato, afirmar que a cada expansão do princípio da legalidade, acada passo no sentido de limitação e sujeição do poder ao direito, inevi-tavelmente corresponde um aumento dos espaços de jurisdição.146

Percebe Lenio Streck que no Estado democrático de direito o focode tensões e de decisões se desloca gradualmente do Legislativo e doExecutivo para o Judiciário, surgindo este como instrumento para oresgate dos direitos não-realizados. Sustenta o autor que a via judiciá-ria se apresenta como a via possível para a realização dos direitos queestão previstos nas leis e na Constituição. Desta maneira, pode oJudiciário servir como via de resistência às investidas dos PoderesExecutivos e Legislativos, que representam retrocesso social ou a inefi-cácia dos direitos individuais ou sociais.147

Zaffaroni, ao tratar das condições materiais dos apenados, reivin-dica postura ativa dos magistrados. Constata, porém, sua imensurávelomissão quando afirma que las condiciones de alojamiento de las perso-nas privadas de libertad deben ser vigiladas judicialmente. La indiferen-cia judicial en esta materia es notable en Latinoamérica. Es menesterque las acciones o recursos de habeas corpus y similares amparem lascondiciones de alojamiento higiénico y digno.148

Para quebrar a ‘indiferença judicial’, sugere a responsabilizaçãofuncional e pessoal (inclusive penal), dos juízes por negligência na vigi-lância dos estabelecimentos. A responsabilização, indubitavelmente,geraria conflictos con los poderes ejecutivos y se alegaría la carencia deinfraestructura para cumplir con las ‘Reglas Mínimas’ de las NacionesUnidas. La solución más práctica y adecuada a los Derechos Humanos,ante tal conflicto, es imponer a los jueces el deber de clausurar los esta-blecimientos inadecuados y de disponer la inmediata libertad de cual-quier persona privada de libertad en condiciones que no satisfagan losrequisitos mínimos de seguridad e higiene.149 É que a interdição das

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146 Ferrajoli, Giurisdizione e Democracia, p. 424.147 Streck, Hermenêutica Jurídica (e)m Crise, p. 38.148 Zaffaroni, Sistemas Penales y Derechos Humanos en la América Latina, p. 206.149 Zaffaroni, ob. cit., p. 206.

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Capítulo VIGarantismo e Conflitos Carcerários:

Fugas, Rebeliões e Motins

6.1. As novas funções da pena

6.1.1. A crise do Estado social e a emergência do Estado penitência: mirada ao centro

A perspectiva disciplinar, legitimada pelo discurso ressocializa-dor, ingressa na esfera jurídico-penal com a crise do Estado liberal esua gradual transmutação em Estado Social. A negação do absenteís-mo liberal e o incremento do intervencionismo social invadem, inclusi-ve, as doutrinas do controle social.1

Lembra Zygmunt Bauman que o estado de bem-estar foi, original-mente, concebido como um instrumento manejado pelo estado a fim dereabilitar os temporariamente inaptos e estimular os que estavam aptosa se empenharem mais, protegendo-os do medo de perder a aptidão nomeio do processo (...). O estado de bem-estar não era concebido comouma caridade, mas como um direito do cidadão, e não como o forneci-mento de donativos individuais, mas como uma forma de seguro coleti-vo.2 É, portanto, na iminência e consolidação do Estado social que nas-cem as noções de segurança e prevenção que balizarão as formas jurí-dicas do século XX. Prevenção será entendida como uma atitude colec-tiva, racional e voluntarista que se destina a reduzir a probabilidade deocorrência e a gravidade de um risco.3

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1 François Ost percebe claramente esta transposição das funções estatais que definirá ocâmbio da estrutura penal: é pois como Estado protector que o Estado moderno se iden-tifica. No século XIX, esta protecção assumirá a forma minimalista da garantia generali-zada da sobrevivência, com o Estado liberal a deixar à esfera privada a gestão das condi-ções materiais de existência. No século XX, em compensação, as missões do Estado alar-gam-se, na medida em que ele toma a seu cargo, para além da simples sobrevivência, agarantia de certa qualidade de vida: fala-se então de Estado-providência ou de Estadosocial (Ost, O Tempo do Direito, p. 336).

2 Bauman, O Mal-estar da Pós-modernidade, p. 51.3 Ost, ob. cit., p. 344.

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dência social e, principalmente, ações contra as exorbitantes taxas dedesemprego e exclusão social).

Assim, pode-se constatar que a conjuntura estruturada sob aégide da liberdade de mercado tem produzido um modelo ‘neo-absolutista’ com ‘tentações autoritárias’.6 O efeito deste processo,situado aparentemente na esfera da economia, é a descartabilidade dovalor ‘pessoa humana’ e o retorno a um estado pré-civilizatório no qualimpera a lei do mais forte.

A análise de Ralf Dahrendorf, no ensaio Economic opportunity,civil society, and political liberty (1995), é precisa. Como contextualizaJacinto Coutinho, em precioso comentário à obra,7 Dahrendorf conse-guiu captar o sentimento central, produzindo um best seller que sinte-tiza as propostas de ‘enquadramento do círculo’ para a construção deuma sociedade democrática do primeiro mundo: bem-estar econômico,coesão social e liberdade política.

O custo do ‘enquadramento do círculo’, porém, seria o fato de quealguns países subdesenvolvidos (como os latinos) não conseguiriamacompanhar o processo. Todavia, independente deste fato, deveriamdividir os ônus e as dificuldades do centro com os países desenvolvidos.8

O primeiro passo para o processo de globalização econômica seriaa flexibilização, isto é, a desregulamentação e a limitação das interfe-rências governamentais, principalmente no que diz respeito aos tribu-tos e ao mercado de trabalho.

Dahrendorf, ao profetizar como irreversível o processo, alerta quea globalização econômica parece estar associada a novos tipos de exclu-são social.9 E a ‘irreversibilidade’ deste processo acaba sendo consumi-da, como assinala Jacinto Coutinho,10 com a naturalidade de um obje-to que se possa degustar satisfatoriamente.

As renovadas formas de exclusão seriam caracterizadas pelaperda do status de cidadão por algumas pessoas, não somente em

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6 Dahrendorf, Quadrare il cerchio, pp. 45-56.7 Coutinho, Jurisdição, psicanálise e o mundo neoliberal, pp. 40-77. Sobre o texto de

Dahrendorf e os efeitos do neoliberalismo, conferir, igualmente, Grau, A ordem econômi-ca na Constituição de 1988, pp. 37-48.

8 Lembra Enrique Dussel que Friedrich von Hayek – inspirador de Milton Friedman y con-tinuador metódico de Popper en la economía – ‘habría expresado la recomendación de queen caso de una aguda crisis de recursos habría que dejar librados a la muerte por hambrea los pueblos del Tercer Mundo que no supieran autoayudarse (Apud Coutinho,Atualizando o discurso sobre Direito e neoliberalismo no Brasil, p. 29).

9 Dahrendorf, ob. cit., p. 33.10 Coutinho, ob. cit., p. 69.

Notório, neste quadro, que o direito penal não passou imune àsnovas obrigações demandadas pela sociedade civil e política.

Ao ser chamado a operar políticas preventivas – no que tange àprevenção dos riscos inerentes à sociedade industrial e aos instrumen-tos de garantia de efetivação dos direitos dela decorrentes –, o direitopenal, e conseqüentemente o processo penal, foi instigado a ampliarseu espectro de incidência e, através dos modelos ideológicos deDefesa Social (Prins e Marc Ancel), solidificou uma política criminalprofilática a partir da identificação e gestão da periculosidade indivi-dual sob a perspectiva de medidas sanitárias e educacionais – a linhade um Estado social preventivo, multiplicam-se as políticas sociais sus-ceptíveis de conter o crime antes de acontecer: as questões da habita-ção, dos bairros difíceis, da droga, do abandono escolar são objeto deuma enorme atenção.4

Todavia, com a crise do Estado providência, desde a gradual pre-dominância da razão mercadológica em detrimento das garantiassociais, o discurso (oficial) sobre a segurança pública, e nele o carcerá-rio, é novamente alterado.

Segundo os gestores da crítica ao modelo político-econômicosocial, sobretudo Hayek e Friedman, as possibilidades de arcar com oscompromissos do Estado providência seriam irreais. Como lembraJacinto Coutinho,5 na visão dos corifeus do discurso neoliberal oEstado de bem-estar tornara-se um mastodonte, incapaz de cumprirsuas promessas (segurança-prevenção).

A saída para a proclamada crise seria a minimização do Estado, aflexibilização dos direitos (individuais e sociais) e a privatização dasempresas públicas prestadoras de serviços, como forma de reduzir odéficit fiscal.

O incremento do projeto político de enxugamento do Estado pro-duziu, fundamentalmente a partir da década de 80, nos países centraisde economia avançada, o desmonte do Welfare State. Não obstante,inviabilizou, nos países periféricos, nos quais o Estado social foi umsimulacro, a possibilidade de atingirem relativo grau de justiça socialcom a implementação de políticas públicas imprescindíveis à organiza-ção da vida cotidiana (distribuição equânime de riqueza, reforma agrá-ria, erradicação da miséria, otimização e acesso das populações caren-tes aos serviços de saúde e educação, melhoria nos sistemas de previ-

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4 Idem, p. 381.5 Coutinho, O papel do pensamento economicista no direito criminal de hoje, p. 300.

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de consumo para o rápido desaparecimento dos dispositivos do estadode bem-estar.14

Assim, na atualidade, a resposta estatal ao desvio punível adqui-re, cada vez mais, uma função de neutralização dos inconvenientes,operando, sob uma perspectiva econômica, na gestão da miséria e daexclusão social. Não obstante, agregando à pena a exigência de auto-conservação do sistema político, as doutrinas funcionalistas potencia-lizarão este quadro, fornecendo eficaz discurso de justificação ao ‘efi-cientismo penal’.

Ao optar por esquemas pré-seculares de robustecimento moral, osmodelos justificacionistas sistêmicos direcionarão a pena à manuten-ção da fidelidade dos cidadãos nas instituições.15

Vê Ferrajoli que, ao reduzir o indivíduo a um ‘subsistema físico-psíquico’, funcionalmente subordinado às exigências do sistema socialgeral, tal doutrina é acompanhada inevitavelmente de modelos de direi-to penal máximo e ilimitado, programaticamente indiferentes à tutelados direitos da pessoa.16 No mesmo sentido Baratta: la teoria de la pre-vención-integración es funcional respecto del actual movimiento deexpansión del sistema penal y de incremento, tanto en extensión comoen intensidad, de la respuesta penal.17

As ‘novas’ doutrinas penais de viés sistêmico-funcionalista,18

auferindo à sanção funções de integração social pelo fortalecimento da

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14 Bauman, O mal-estar da Pós-modernidade, p. 78.15 Sustenta Jakobs que não se pode considerar como missão da pena evitar lesões de bens

jurídicos, pois su misión es más bien reafirmar la vigencia de la norma, debiendo equipa-rarse, a tal efecto, vigencia y reconociminto. El reconocimiento puede tener lugar en laconciencia de que la norma es infringida; la expectativa (también la del autor futuro) sedirige a que resulte confirmado como motivo del conflicto la infracción de la norma por elautor, y no la confianza de la víctima en la norma. En todo caso, la pena da lugar a que lanorma siga siendo un modelo de orientación idóneo. Resumiendo: misión de la pena es elmantenimiento de la norma como modelo de orientación para los contactos sociales.Contenido de la pena es una réplica, que tiene lugar a costa del infractor, frente al cues-tionamiento de la norma (Jakobs, Derecho Penal, pp. 13-14).

16 Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 264.17 Baratta, Integración-prevención: una ‘nueva’ fundamentación de la pena dentro de la teo-

ria sistemica, p. 15.18 Segundo Ferrajoli, no plano sociológico, a teoria sistêmica de Jakobs não acrescenta

nada à teoria do desvio de Durkheim, que havia concebido a pena como fator de esta-bili-zação social, reafirmando os sentimentos coletivos e deixando coeso o corpo social.No entanto, a teoria de Durkheim nunca pretendeu oferecer uma justificação, apenasdar uma explicação à pena. Ao contrário, o modelo sistêmico converte-se, na atualida-de, em uma ideologia de legitimação apriorística do direito penal e da pena (Ferrajoli,ob. cit., p. 264).

razão das restrições econômicas, mas por qualquer característica queas possa diferenciar (raça, nacionalidade, religião et coetera). Contudo,o autor é ainda mais drástico em sua anamnese: certas pessoas (pormais terrível que seja colocar no papel) simplesmente não servem: a eco-nomia pode crescer sem a sua contribuição; de qualquer modo que selhes considere, para o resto da sociedade tais pessoas não representamum benefício, mas um custo.11

Ao descartar a pessoa como valor, visto supérflua nesta novaordem, projeta-se a necessidade de maximização dos aparatos de con-trole penal/carcerário. A alternativa ao Estado providência, portanto,passa a ser o ‘Estado penitência’, configurando uma máxima que pare-ce ser a palavra de ordem na atualidade: Estado social mínimo, Estadopenal máximo. Tudo porque, ‘algum’ lugar deve ser reservado aos‘inconvenientes’ – nas atuais circunstâncias, o confinamento é antesuma alternativa ao emprego, uma maneira de utilizar ou neutralizaruma parcela considerável da população que não é necessária à produçãoe para a qual não há trabalho ‘ao qual se reintegrar’.12 Gesta-se, no inte-rior dessa ideologia, uma saída plausível para aqueles que foram des-tituídos da cidadania: a marginalização social potencializada peloincremento da máquina de controle penal, sobretudo carcerária.

Como percebe Eduardo Faria, com o processo de globalização e agradual simbiose entre marginalidade social e marginalidade econômi-ca, as instituições jurídicas dos Estados são obrigadas a concentrarsua atuação na preservação da ordem e da segurança, assumindopapéis eminentemente punitivo-repressivos. Os ‘não-cidadãos’, porém,apesar de destituídos de seus direitos subjetivos públicos, não são dis-pensados de suas obrigações estabelecidas nas leis penais. Dessaforma, enquanto o Estado no âmbito dos direitos sociais e econômicosvive hoje um período de refluxo, no direito penal a situação é oposta. Oque aí se tem é a definição de novos tipos penais, a criminalização denovas atividades em inúmeros setores da vida social, o enfraquecimentodos princípios da legalidade e da tipicidade por meio do recurso a regrassem conceitos precisos, o encurtamento das fases de investigação crimi-nal e instrução processual e a inversão do ônus da prova.13

Idêntica é a conclusão de Bauman, ao diagnosticar que a incrimi-nação parece estar emergindo como o principal substituto da sociedade

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11 Dahrendorf, ob. cit., p. 33.12 Bauman, Globalização: as conseqüências humanas, pp. 119-120.13 Faria, Globalização e direitos humanos, p. 12.

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chamadas de espaços disciplinares. Façamos uma visita a nossas dele-gacias, onde muitos detentos cumprem penas irregularmente, e vejamosque eles estão literalmente amontoados – aqueles corpos promiscuamen-te misturados, sem qualquer atividade, sem classificação, sem número,permanecendo ali por meses ou até anos. Ou mesmo em penitenciárias,onde o diretor freqüentemente não sabe qual é o efetivo carcerário, nãosabe quantos presos têm direito a benefícios, o que configura uma reali-dade bem pouco ‘panóptica’.21 Seguindo a perspectiva da autora,poder-se-ia afirmar que nosso sistema de execução penal encontra-se,ainda, numa fase de ostentação dos suplícios, em momento de rituali-dade artística na imposição de dor e sofrimento, num verdadeiro perío-do de selvageria gótica.

Se Rossi constatou que o modelo inquisitorial era a poesia de Danteposta em lei,22 entende-se possível a paráfrase de que o sistema peni-tenciário brasileiro se traveste na poesia de Dante posta em execução.

Advogar, porém, que o sistema executivo não constitui empirica-mente espaço disciplinar não significa falar em vazios de poder. Trata-se de um campo social não homogêneo, organizado em mosaico, ondenorma e repressão se agenciam de modo bizarro, produzindo no entan-to dispositivos de elevada eficácia no sentido de seus efeitos de controlesocial.23 O discurso disciplinar incorporado pela LEP perpassa trans-versalmente as práticas e, legitimado normativamente, impede qual-quer possibilidade de resistência dos apenados contra as violências dopoder público.

A tese ganha concretude na metáfora proposta por Marcos Rolim:se os presídios podem ser equiparados ao labirinto da mitologia grega,onde o Rei Minos recebia, anualmente, seu tributo de sangue, podería-mos afirmar que o Estado cumpre aqui a função da terrível criatura –metade homem, metade touro. Primeiro, assegura que os presos experi-mentem o cárcere como privação absoluta. Amontoados como restos emcorredores úmidos e fedorentos, os presos gaúchos, em regra, experi-mentam a pena em galerias; onde estão, às vezes, mais de uma centenadeles. Entenda-se: o regime prisional efetivo no Brasil – absolutamenteilegal – é o da prisão coletiva onde estão todos os tipos de delinqüentesseparados não pela gravidade dos crimes pelos quais foram condenados,mas, normalmente, pelos laços de pertencimento, fidelidade, ou submis-

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21 Rauter, Manicômios, Prisões, Reformas e Neoliberalismo, p. 72.22 Apud Foucault, Vigiar e Punir, p. 34.23 Rauter, ob. cit., p. 72.

crença nos aparelhos de controle formal, atuam como sustentáculodeste Estado penal.

6.1.2. O carcerário: perspectiva periférica

O grau de irracionalidade dos aparelhos repressivos do Estado naAmérica Latina, fruto das novas relações político-econômicas, colocaem dúvida o processo civilizatório da região.

Na execução da pena, constantes e insolúveis problemas revelamfatos cuja simples observação faz transparecer os mais fortes traços dabarbárie: o irracionalismo, a inexistência de garantias e a tolerância àspráticas penais genocidas.19 A tese ultrapassa o âmbito acadêmico e épercebida pelos operadores do direito.20

Desde esta perspectiva, lícito seria afirmar que o discurso discipli-nar estaria em baixa sintonia com o cotidiano das instituições carcerá-rias. Assim, a realidade prisional brasileira revelaria formas de exercí-cio de poder que não poderiam ser catalogadas como ‘disciplinares’.

Cristina Rauter, em esclarecedor ensaio, revela: lancemos um olharsobre nossas prisões e veremos que elas não podem rigorosamente ser

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19 Para Zaffaroni, a atuação de nossos sistemas penais caracteriza um genocídio em anda-mento dado o fato de que o genocídio colonialista e neocolonialista, em nossa região mar-ginal, não acabou: nossos sistemas penais continuam praticando-o e, se não forem detidosa tempo, serão eles os encarregados de um genocídio tecnocolonialista (Zaffaroni, EmBusca das Penas Perdidas, pp. 123-125).

20 Em carta aberta, publicada pelo periódico espanhol ‘Jueces para la Democracia’, AmiltonBueno de Carvalho alerta Perfecto Ibañez sobre a situação carcerária brasileira: la situa-ción penitenciaria en Rio Grande do Sul (y en el resto del país) es caótica. El presidioCentral de Porto Alegre tiene capacidad para alojar a 660 personas, pero está ocupado por1.800 aproximadamente. Celdas de ocho metros cuadrados albergan a seis personas. Endeterminadas penitenciarias, los presos duermen por turnos, devido a la falta de camas(unos por la mañana, otros por la noche, otros por la tarde); unos duermen en el suelo, otrosde pie, atándose a las rejas; la alimentación es propia de animales (algunos comen con lasmanos). Las violación de los derechos humanos es algo escandaloso y corriente (un colegaencontró en una celda un preso herido de bala treinta días antes, que no había sido socor-rido; otro apeleado por agentes penitenciarios, con fracturas, también sin atención). Losfamiliares de los presos, con ocasión de las visitas, sea cual fuera la edad, sufren examenvisual ginecológico y anal, por parte de los encargados de la seguridad, que, según ellos,están preocupados por la entrada de drogas en el presidio (es la revista íntima). Además,está el problema del SIDA, que alcanza a un porcentaje de en torno al 25 por 100 de lospresos (aquí el drama es fuerte: condenar alguien a presidio, donde probablemente serávictima de violencia sexual, implica la probabilidad de resultar contaminado). Pero haymás, mucho más, que necesitaría un libro para ser descrito. En suma, casi todo recuerda,para peor, a las mazmorras de la Edad Media (Carvalho, Sobre la Jurisdicción Criminal emBrasil, p. 84).

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a normatividade e o cotidiano acaba por gerar situação indescritível: abrutalização genocida da execução da pena.

Contra este regime de ilegalidades toleradas pelo poder públicorestam poucas alternativas aos apenados vítimas da violência oficial.

Ademais, as reações às péssimas condições de vida nas prisõessão tipificadas penal e administrativamente. Em casos extremos, quan-do da agudização das relações intramuros, os ‘indisciplinados’ são eli-minados em execuções extrajudiciais – no correr da última década ascondições vigentes nos presídios brasileiros desencadearam uma ondade protestos, rebeliões e tentativas de fuga. A maioria dos casos de rebe-lião de presos foi esmagada pela polícia, muitas vezes com o uso de forçaletal. É comum o espancamento em represália pela revolta de presos ehá provas de ter a polícia, no passado, levado a cabo execuções extraju-diciais em conseqüência de rebeliões em presídios.26

Mesmo assim, ciente das conseqüências do ato sedicioso, a massacarcerária acaba por encontrar em condutas ilícitas (fugas, rebeliões emotins)27 a única maneira eficaz de romper com o silêncio totalitáriodos muros prisionais. Tais manifestações geram o fenômeno da ‘confli-tividade carcerária’.28

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as Prisões) da Pastoral Carcerária da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB);em 1998, do documento da Human Rights Watch (HRW/Americas – O Brasil Atrás dasGrades); e, em 1999, o relatório sobre os presídios brasileiros divulgado pela AnistiaInternacional (Aqui Ninguém Dorme Sossegado: Violações dos Direitos Humanos contraDetentos’).No entanto, a falta de periodicidade do Censo Penitenciário e o direcionamento do traba-lho das ONG’s de direitos humanos para outros campos mitigou a possibilidade de atua-lização, o que levou à opção de suprimir os relatórios.

26 Anistia Inernacional, Chegou a Morte, p. 07.27 Importante, neste momento, algumas distinções de ordem conceitual. Nomina-se três

possibilidades de conflitos carcerários: fugas, rebeliões e motins. Fuga é o ato ou efeito defugir, é a retirada, a saída sem consentimento (Cernicchiaro, Dicionário de Direito Penal,p. 228). É a evasão da pessoa presa ou do inimputável submetido à medida de seguran-ça, de forma pacífica ou mediante uso de violência contra a pessoa ou coisa, ou sob amea-ça. Os motins e as rebeliões são atos de resistência no interior da instituição total.Cândido Furtado Maia Neto define motim como sublevação de internos contra a adminis-tração prisional, implicando atitudes de desordem e tumulto, sendo que rebelião é ato ouefeito de revolta (Maia Neto, Direitos Humanos dos presos, p. 104). Percebe-se, pois, que omotim se diferencia da rebelião pelo fato de que no primeiro os detentos (amotinados)tomam conta ou inviabilizam a administração da unidade prisional. Em casos de rebeliãoocorre apenas ‘desordem’ e incapacitação parcial das atividades normais da instituição;é um estágio anterior e/ou preparatório do motim. Diferenciam-se, pois, pelo estágio deaquisição do controle (parcial ou total) da instituição. Ambos, porém, são movimentoscoletivos de rebeldia e levante contra determinada situação de fato.

28 Além das fugas, rebeliões e motins, não se pode desprezar outros atos que servem comoinstrumento reivindicatório. Entre os atos não violentos, lembre-se a greve de fome. No

são a grupos organizados no mundo do crime, na medida da rivalidadeentre eles. Depois de trancafiá-los assim, expondo os mais frágeis a todoo tipo de violência física ou sexual, o Estado encarrega-se de submeter-lhes a uma noção de disciplina totalmente heterônoma procurandoalcançar um controle interno equivalente à conduta de corpos dóceis.Incentiva, então, procedimento como a delação e oferece tratamento pri-vilegiado aos internos que se revelarem ‘úteis’ ao objetivo de alcançar adominação sobre o conjunto da massa carcerária.24

Na periferia, o discurso das disciplinas está aliado às práticasbárbaras. Coexistem nos mesmos locais de manifestação do poderpenitência. Esta realidade carcerária (normativa e fenomênica) aca-bou unindo duas faces perversas de modelos hipoteticamente incom-patíveis, potencializando sua crueldade: o suplício do corpo e a peni-tência da alma.

Assim, poder-se-ia dizer que o sistema de controle penitenciárionacional está empiricamente voltado à penalização corporal; enquanto,normativamente, tem como norte a pedagogia disciplinar. Conforma,pois, um modelo otimizado de violação dos direitos fundamentais.

6.2. A ilicitude dos conflitos carcerários

A realidade carcerária brasileira possibilita perceber o alto nívelde ilegalidade das práticas do Poder Público.25 O vácuo existente entre

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24 Rolim, O Labirinto, o Minotauro e o Fio de Ariadne, pp. 44-45.25 Suprimiu-se, nesta edição, o capítulo intitulado ‘O carcerário: a realidade da execução da

pena privativa de liberdade cumprida em regime fechado’. Naquele momento, descreveu-se a realidade carcerária brasileira, demonstrando os déficits materiais na vida do preso(saúde, educação, assistência jurídica, trabalho, estudo), bem como os altos índices desuperpopulação nas instituições.Embora a experiência concreta demonstre que o sistema penal brasileiro, principalmen-te o modelo de apartação penitenciário, revela indícios de irracionalidade crônica devi-do às práticas ilegais (comissivas e/ou omissivas) dos poderes, naquele momento houvea possibilidade de levantar alguns dados. Todavia, sua defasagem e a inexistência denovos documentos nos forçaram a supressão do item.É que apenas no final da década de noventa surgiram alguns dados, obtidos por amos-tragem, sobre a ‘realidade’ carcerária, advindos, não episodicamente, do notável traba-lho das Organizações Não-Governamentais. As fontes oficiais de informação reduziam-se às estatísticas quantitativas apresentadas pelo Conselho Nacional de PolíticaCriminal e Penitenciária (CNPCP) que, num lapso temporal de dois anos, apresentava oCenso Penitenciário. O material de pesquisa que possibilitou, naquele momento, razoá-vel segurança, foram as publicações, em 1997, do ILANUD, sobre a mudança no perfil doapenado (Sistema Penitenciário: Mudança de Perfil dos Anos 50 aos 90) e da análise finalda Campanha da Fraternidade (A Fraternidade e os Encarcerados: Cristo Liberta de Todas

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requerem sua transferência para penitenciárias, onde a maior partedeles deveria estar conforme a lei brasileira.33

A tese é comprovada no documento final da HRW/Americas sobreas condições das prisões brasileiras. O documento demonstra que em1997, pior ano em registro de incidentes, ocorreram 195 rebeliões emestabelecimentos sob o controle da Secretaria de Segurança Pública deSão Paulo. A causa dos conflitos, em sua imensa maioria, foi a superlo-tação – várias vezes, durante todo o ano, presos nos distritos policiais emSão Paulo amotinaram-se pelo direito à transferência para presídiosmenos lotados.34 Durante o mesmo período, o Rio Grande do Sul regis-trou um total de 64 rebeliões, sendo 31 com captura de reféns.

Estudo realizado pelo ILANUD constata que as principais causasde rebeliões são a demora do Judiciário na apreciação dos direitos dospresos; a deficiência da assistência judiciária; a violência e injustiçaspraticadas nos estabelecimentos; problemas ligados aos entorpecen-tes; superlotação carcerária; má-qualidade da alimentação, assistênciamédica e odontológica; problemas ligados à corrupção; e falta de capa-citação dos funcionários das penitenciárias, principalmente os direto-res. Assim, sequer a figura dos crimes contra a pessoa, em si mesmo, noque ela oferece de negação estúpida do outro, equipara-se à lógica per-versa que emerge naturalmente do cárcere.35 Pertinente, pois, a coloca-ção de Cezar Bitencourt: os motins penitenciários são a prova mais evi-dente da crise que a pena privativa de liberdade enfrenta.36

Pode-se concluir, portanto, que o fenômeno da conflitividade carce-rária (fugas, rebeliões e motins) tem como principal fato gerador a vio-lação, por parte das agências formais de controle, da legalidade estatal.

Entretanto, a manifestação da massa carcerária gera novas incri-minações, com a incidência de regime de sanções que inviabilizam aresistência contra as ilegalidades. A ilicitude dos atos de rebeldiaencontra eco nos ordenamentos jurídicos, sujeitando os apenados aconseqüências de ordem criminal e/ou administrativa.

Importante frisar que a conflitividade deve ser entendida desdeum ponto de vista de normalidade institucional, ou seja, são situaçõesnão-episódicas e indissociáveis dos locais de apartação – as rebeliõessão fato comum nas prisões... se devem ao ambiente anormal, autoritá-

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33 Cavallaro, Observações da HRW sobre o Sistema Prisional Gaúcho, p. 384.34 HRW/Americas, O Brasil atrás das Grades, p. 48.35 Rolim, O Labirinto, o Minotauro e o fio de Ariadne, p. 38.36 Bitencourt, ob. cit., p. 210.

Cezar Bitencourt, ao analisar a etiologia dos conflitos nas prisões,chama atenção para o fato de que os motins carcerários são os fatos quemais dramaticamente evidenciam as deficiências da pena privativa deliberdade. É o acontecimento que causa maior impacto e o que permiteà sociedade tomar consciência, infelizmente por pouco tempo, das con-dições desumanas em que a vida carcerária se desenvolve... O motimrompe o muro de silêncio que a sociedade levanta ao redor do cárcere.29

Conclusões idênticas sobre os conflitos intramuros foram expostaspela Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em seu rela-tório sobre a situação carcerária: os Meios de Comunicação Social noti-ciam indistintamente fugas, rebeliões e motins. Fugas, sempre se podemesperar de quem se encontra preso. A rebelião geralmente é protesto con-tra maus tratos e injustiças, péssimas condições de vida, corrupção, faltade assistência médica ou jurídica. Pode ser também um modo de fazerpressão para obter transferência para outro estabelecimento em casos deviolência interna... Normalmente a rebelião é o último recurso dos presospara defender seus direitos, pois correm o risco de perder tudo: a vida, apossibilidade de progressão de regime, benefícios judiciais... Mas hásituações em que não agüentam mais, e tentam dizer à sociedade: ‘somosgente e queremos viver!’30 Como percebe Rolim, os motins acontecem nolugar da fala; ou, dito de outro modo, são eles mesmos a linguagem pos-sível daqueles a quem nunca se concedeu a palavra.31

Em realidade, percebe-se que os atos de transgressão às regrasimpostas no ambiente carcerário indicam, na grande maioria doscasos, a única possibilidade de manifestação da massa carcerária con-tra a constante lesão dos seus direitos. Para Bitencourt, a imensa maio-ria dos protestos reivindicatórios massivos produzidos na prisão tem suaorigem nas deficiências efetivas do regime penitenciário. As deficiênciassão tão graves, que qualquer pessoa que conheça certos detalhes davida carcerária fica profundamente comovida.32

Nota James Cavallaro que as rebeliões mais recentes no Brasil têmrelação direta com as péssimas condições carcerárias e os maus tratossofridos nos estabelecimentos prisionais. Os detentos de celas em dele-gacias superlotadas, nas quais rebeliões são freqüentes, muitas vezes só

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entanto, atos de extrema violência, como a execução de companheiros de cela, são igual-mente utilizados como mecanismo reivindicatório.

29 Bitencourt, Falência da Pena de Prisão, p. 205.30 CNBB, A Fraternidade e os Encarcerados, § 114-115.31 Rolim, O que dizem os Motins, p. 01.32 Bitencourt, ob. cit., p. 209.

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como qualquer hipótese de resistência coletiva, positiva ou negativa,contra ordens ou regulamentos. Desnecessário, portanto, que se prati-que violência ou ameaças, não exigidos no dispositivo em estudo, confi-gurando-se a falta também nos movimentos pacíficos de recusa ao tra-balho, de volta às celas, de ‘greve de fome’, de algazarra etc. Não impor-ta, também, o fim visado pelo movimento, que pode até ser considerado‘justo’, como é o de pretender melhores condições de trabalho, oportuni-dades de recreação etc.; tais reivindicações devem ser efetuadas naforma dos regulamentos.40

A configuração da evasão prescinde igualmente a violência, bas-tando sua simples tentativa para ser definida como falta discplinar.

6.2.1.2. Falta grave: sanção

O cometimento de faltas graves, rompendo com os deveres de ‘boaconduta’ impostos pela lei, implica, necessariamente, sanções. As san-ções administrativas cabíveis são o isolamento, a suspensão ou restriçãode direitos (art. 53, III e IV, c/c art. 57, parágrafo único, da LEP) e a regres-são de regime (art. 118, LEP). Um dos indícios mais notórios do rompi-mento com o regime de legalidade (taxatividade) é a carência de distin-ção entre faltas tentadas e consumadas (art. 49, parágrafo único, LEP).

Muito embora sejam distintas as esferas de ilicitude, não espora-dicamente as conseqüências da sanção administrativa são capacitado-ras da sanção penal. A imposição de sanção disciplinar freqüentemen-te é um aditivo à irrogação de pena privativa de liberdade, daí aimprescindível judicialização com a transferência dos critérios estabe-lecidos em matéria penal e processual penal ao campo do direito peni-tenciário.

Os efeitos da sanção disciplinar extrapolam a órbita administrati-va e invadem o processo de execução penal, pois a ‘boa conduta’ érequisito objetivo para o gozo dos direitos subjetivos. Assim, não obs-tante ser de natureza administrativa, a decisão sobre as faltas condi-ciona a avaliação judicial dos incidentes da execução.

O regime progressivo (art. 33, § 2o, do CP e art. 112, da LEP), lapi-dar de todo o processo executivo, é regido pela concepção meritocráti-ca na qual o comportamento ‘adequado’ fundamenta a (in)flexibiliza-ção do cumprimento da pena.

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40 Idem.

rio e opressivo, e ocorrem por toda a parte, periodicamente.37 Isto posto,ao invés de tratarmos os motins, simplesmente, como graves atentadosà ordem disciplinar, seria mais correto concebê-los como sintomas, maisou menos violentos, dessa mesma ‘ordem’ fundada no seqüestro institu-cional da cidadania dos encarcerados.38

6.2.1. A admistrativização dos conflitos carcerários

6.2.1.1. Falta grave: previsão legal

O estatuto que regula a execução da pena privativa de liberdadeestabelece padrões de ‘boa conduta carcerária’. Considerada comodever do preso, a boa conduta é prevista no art. 39 da LEP, concretizan-do os pressupostos de disciplina e segurança.

São obrigações dos presos, entre outras, (a) comportamento disci-plinado e cumprimento fiel da sentença (art. 39, I); (b) obediência aoservidor e o respeito a qualquer pessoa com quem deva relacionar-se(art. 39, II); (c) conduta oposta aos movimentos individuais ou coletivosde fuga ou subversão à ordem ou à disciplina (art. 39, IV); e (d) submis-são à sanção disciplinar imposta (art. 39, VI).

Não obstante a LEP elencar a obrigatoriedade do apenado reagirà evasão, o que em realidade é absolutamente questionável dada aimpossibilidade fática da conduta, no que diz respeito aos problemasde conflitividade prisional definiu como falta grave a incitação ou par-ticipação em movimento capaz de subverter a ordem e a disciplina (art.50, I) e a fuga (art. 50, II).

Para a restrita dogmática que se debruçou sobre o tema, o inciso Ido art. 50 da LEP trata de colaboração (participação) ou estímulo (inci-tação) dos companheiros à prática de atos de subversão ou indisciplinade caráter coletivo, incidindo nas mesmas sanções aquele que, conven-cendo ou estimulando outros presos por meio de discursos, conversas ouqualquer outro meio a organizarem, deflagrarem ou continuarem com omovimento de rebeldia.39

O movimento idôneo para subversão da ordem e da disciplinapoderia ser tanto aquele previsto no art. 354 do CP (motim de presos)

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37 Fragoso, Direitos dos Presos, p. 22.38 Rolim, O que dizem os Motins, p. 01.39 Mirabete, Execução Penal, p. 153.

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o regime meritocrático cria regime de (i)legalidades que se impõe esobrepõe à sanção, transformando o apenado em objeto passível de‘benefícios’ segundo sua (in)adaptabilidade à instituição total.

Desde essa percepção realista das relações que se formam no inte-rior dos muros das prisões é que se sustenta a necessidade de judicia-lização dos procedimentos. Realiza-se, em realidade, verdadeiro elogioao direito e ao processo penal em decorrência da anomia e falta de cri-térios que vigoram nas entranhas do direito penitenciário.

6.2.2. A criminalização dos conflitos carcerários

6.2.2.1. Evasão violenta

Reza o dispositivo do art. 352 do CP: evadir-se ou tentar evadir-seo preso ou o indivíduo submetido a medida de segurança detentiva,usando de violência contra a pessoa: pena – detenção, de 03 (três)meses a 01 (um) ano, além da pena correspondente à violência.

Segundo a dogmática penal, o ordenamento jurídico não pune aevasão propriamente dita, porque não se poderia reprimir o anseionatural de reconquistar a liberdade perdida.42 Jurisprudência e doutri-na acordam sobre a atipicidade da ação em si, pois o ordenamentoreprime apenas a ‘evasão mediante violência’, diverso, por exemplo, datradição penal italiana que pune a ‘evasão pacífica’ (art. 385, CPI).Conforme Hungria, o legislador brasileiro, embora enamorado doCódigo de Rocco, não se deixou convencer de tal argumentação, man-tendo critério tradicional do nosso direito penal: somente incriminou apromoção ou facilitação da fuga por obra de terceiro e a evasão acom-panhada de violência contra a pessoa.43

Tal posicionamento, todavia, parece um tanto redutor, pois transfe-re ao senso comum teórico dos juristas conseqüências discursivasalheias à realidade penitenciária, mascarando efeitos perversos como aaplicação cumulativa de penas e a imposição de sanção administrativa.

O preceito do art. 352 do CP define um crime próprio, pois os sujei-tos ativos são apenas os presos, independentemente da natureza jurí-dica da prisão (civil, administrativa ou penal), ou pessoas sujeitas àmedida de segurança (art. 96, inciso I, CP). O sujeito passivo primário

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42 Costa Jr., Direito Penal, p. 757.43 Hungria, Comentário ao Código Penal IX, p. 517.

Se a progressão de regime consiste alteração na qualidade da san-ção, com a transferência para regime menos rigoroso, seus requisitossão (a) o cumprimento de, ao menos, um sexto da pena, (b) o mérito dorequerente (art. 112 da LEP), e (c) a avaliação criminológica favorável.

De igual modo, o critério meritocrático molda o instituto da‘regressão de regime’ (art. 118 da LEP). Segundo o dispositivo, a exe-cução da pena privativa de liberdade fica sujeita à forma regressiva,com a transferência para qualquer dos regimes mais rigorosos, quandoo condenado praticar fato definido como crime doloso ou falta grave(art. 118, incisos I e II, da LEP). Logo, em caso de falta grave (fuga,rebelião ou motim), a jurisprudência tem sido unânime não apenas emimpedir a progressão, como impor a regressão do regime.

Os efeitos da sanção disciplinar decorrente da fuga, rebelião e/oumotim não são restritos aos casos de negação de progressão, livramen-to condicional (art. 83, inciso III, 1a parte, CP) e regressão de regime,porém. Segundo a LEP, o condenado que cumpre a pena em regimefechado ou semi-aberto poderá remir, pelo trabalho, parte do tempo deexecução da pena (art. 126, LEP). Apesar de a LEP dispor que o temporemido será computado apenas para a concessão de livramento condi-cional e indulto (art. 128, LEP), o Conselho Nacional de PolíticaCriminal e Penitenciária (CNPCP) decidiu pela extensão do critério àprogressão do regime.41 A remição pelo trabalho transforma-se, assim,em importante mecanismo de redução do tempo da pessoa no cárcere.Entretanto, se o condenado for punido por falta grave, perderá o temporemido, iniciando novo período a partir da data da homologação dainfração disciplinar (art. 127, LEP). A perda da remição pela falta admi-nistrativa rompe o entendimento de constituir o instituto direito adqui-rido, reiterando a idéia de os incidentes serem benefícios sujeitos àcondição resolutiva (comportamento carcerário).

Efeitos outros, em sede de execução da pena não privativa deliberdade, são atribuídos à falta disciplinar, como a revogação da saídatemporária (art. 125, LEP) e a conversão da pena restritiva de direitoem privativa de liberdade (art. 181, §§ 1o, d, e 2o, LEP).

A quantidade de óbices aos direitos dos presos em decorrênciadas sanções administrativas leva a afirmar que o sistema de penalida-des disciplinares, regulados inquisitorialmente pela LEP, constitui sis-tema sancionatório autônomo e adicional à pena imposta na sentençacondenatória. Mais que um estatuto regulador do cotidiano do cárcere,

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41 Processo MJ no 8.926/94, Diário Oficial da União (DOU) 02/12/1994, p. 18.352.

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6.2.2.2. Motim

A regra jurídica que versa sobre o ‘motim de presos’ é encontradano art. 354 do Código Penal: amotinarem-se presos, perturbando aordem ou disciplina da prisão.

O bem jurídico tutelado é idêntico ao do tipo ‘evasão violenta’, ouseja, a administração da justiça. É – conforme Magalhães Noronha – adefesa do prestígio e do valor que devem ter as decisões judiciárias queimpõem pena como meio de reeducação ou readaptação do delinqüenteou lhe determinam, por outra forma, a restrição da liberdade.49

Os sujeitos ativos do delito são os apenados, por isso o dispositi-vo legal, qualitativamente, define crime próprio. O sujeito passivo ime-diato é o Estado, e as pessoas vítimas da violência os sujeitos passivosmediatos. Quantitativamente, porém, é tipo penal plurissubjetivo,sendo o crime coletivo ou multitudinário, pois exige a presença de maisde um agente para que possa ser auferida a tipicidade do fato.50 Logo,o concurso de pessoas é necessário. Como o número de encarceradosnão foi estabelecido pela norma, entende-se que o número mínimo deagentes para a configuração do tipo é de três pessoas.

A conduta (amotinar) significa promover movimento rebelde edesordenado da massa carcerária, desestabilizando a ‘ordem e adisciplina’ prisional. Por se tratar de crime material, isto é, conduta queoferece iter que pode ser fracionado,51 admite, apesar da difícil verifica-bilidade, a forma tentada.52 Há consumação quando do comprometi-mento da regularidade da instituição prisional. Outrossim, cumpre nãoconfundir atitudes coletivas de irreverência ou desobediência ghândicacom o motim propriamente dito, que não se configura se não assume ocaráter militante da violência contra os funcionários internos ou dedepredações contra o respectivo edifício ou instalações, com grave per-turbação da ordem ou da disciplina da prisão.53

Percebe-se, pois, que a ação violenta integra a ação de amotinar-se, sendo a atitude pacífica mera manifestação reivindicatória ou sim-ples ato indisciplinado, sujeito a sanção administrativa.

Nélson Hungria define motim como movimento coletivo de rebeldiados presos, seja para o fim de justas ou injustas reivindicações, seja para

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49 Noronha, ob. cit., p. 410.50 Costa Jr., ob. cit., p. 762.51 Noronha, ob. cit., p. 411.52 Miotto, Motim de Presos, p. 298.53 Hungria, ob. cit., p. 522.

é o Estado, e secundário a pessoa contra a qual é praticada a violência.Trata-se, no rol de classificação dos tipos, de tipo misto alternativo,decorrente da previsão de duas formas de realização da conduta: a eva-são e a sua tentativa.

Para caracterização da figura típica, a conduta deve ser direciona-da contra prisão legal – sua ilegalidade constitui circunstância descri-minante do fato –, não podendo ser confundida com o tipo penal‘resistência’ regulado no art. 329 do CP (opor-se à execução de atolegal, mediante violência ou ameaça a funcionário competente paraexecutá-la ou a quem lhe esteja prestando auxílio).

A tipicidade do ato, contrariamente das lições de Hungria,44 ocor-rerá em situação tanto intra como extramuros (fuga durante transferên-cia, por exemplo). Importante rememorar ainda que a prisão inicial-mente legítima pode tornar-se ilegal com o transcurso do prazo de suaduração,45 caracterizando, assim, a atipia da evasão.

O elemento subjetivo do tipo, segundo Fragoso,46 é específico(dolo específico), consistindo na vontade livre e consciente dirigida aoemprego de violência contra a pessoa para o fim de evadir-se.Magalhães Noronha, de maneira diversa, entende ser o dolo genérico,constituindo na vontade livre e consciente de praticar o fato, com ciên-cia de sua antijuridicidade.47

O delito é consumado no momento do emprego da violência con-tra a pessoa, sendo inadmissível, no caso, a tentativa, pois o legisladorelencou como segunda possibilidade típica a forma tentada. Mister res-saltar que a mera violência, que se constitui como meio idôneo para afuga, preenche todos os requisitos do tipo, sendo a fuga em si, maispropriamente, um exaurimento de crime já consumado com o início daexecução.48 Como a tentativa é equiparada ao crime consumado, nãohá possibilidade de redução na pena pela incidência do art. 14, incisoII, do CP. Importante frisar, ainda, que o eventual dano ao patrimôniopúblico não configura delito, impossibilitando o concurso formal sem aconstatação do animus nocendi.

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44 Segundo Nélson Hungria, se a fuga ocorrer extramuros, eximindo-se violentamente o agen-te ao poder de quem o conduz ou transporta, o crime será o de resistência (art. 329), semprejuízo, igualmente, das penas correspondentes à violência (Hungria, ob. cit., p. 520).

45 Fragoso, Lições de Direito Penal, p. 54646 Idem, p. 547.47 Noronha, Direito Penal, p. 407.48 Fragoso, ob. cit., p. 547.

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Outra questão a ser levantada é relativa à fuga em decorrência domotim. Se o motim tem como intento a evasão, este passa a ser enten-dido como crime-meio, absorvido pelo art. 352 do CP. Contudo, se domotim decorre fuga, haverá concurso formal com o art. 352 do CP.58

6.2.2.3. Fuga e motim: análise crítica

6.2.2.3.1. Crítica de lege lata

A primeira crítica cabível ao tipo penal evasão mediante violênciadiz respeito à indiferença entre as formas tentadas e consumadas.

A dogmática jurídico-penal tem sido fértil em demonstrar que ten-tativa somente pode ser concebida em relação a um tipo principal dedelito. Esta é a regra geral da construção lógico-sistemática do institu-to. Argumenta Machado que a tentativa representa um defeito de con-gruência, em que o tipo objetivo fica incompleto e o subjetivo, comple-to.59 Nada mais é, portanto, que fórmula extensiva dos tipos dolosospara abranger o iter imediatamente anterior à consumação.60

Não obstante a existência de vertentes diametralmente opostasno concernente ao fundamento da punição da tentativa (v.g., teoriaobjetiva e teoria subjetiva ou periculosista), o tratamento do delito ten-tado tomou nítido delineamento no ordenamento jurídico nacional. Aregra geral do art. 14 do CP, adotando a teoria objetiva, estabelece dife-renças inquestionáveis entre as condutas delituosas consumadas etentadas, obrigando o julgador à redução da pena quando, iniciadaexecução, o crime não se consuma por circunstâncias alheias à vonta-de do agente.

Pune-se, pois, a tentativa, pelo perceptível e verificável perigo aobem jurídico tutelado. Incrimina-se a ação de tentar consumar umcrime, pois, por meio de atitudes univocamente dirigidas a um resulta-do delituoso, revela-se o desrespeito ao valor que dá fundamento aotipo penal, criando-se situação de perigo a um bem jurídico.61 Assim, onúcleo da punibilidade da tentativa não reside na vontade ou ‘tendên-cia criminosa’ (periculosidade) do autor.

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58 Sobre o tema, conferir Fragoso, ob. cit., p. 550 e Miotto, ob. cit., p. 299.59 Machado, Direito Criminal, p. 155.60 Zaffaroni & Pierangelli, Da Tentativa, p. 27.61 Reale Jr., Teoria do Delito, p. 200.

coagir os funcionários a tal ou qual medida, ou para tentativa de evasão,ou para objetivos de pura vingança.54 Indica o autor que o tipo subjeti-vo da conduta é o dolo genérico, ou seja, a vontade livre e conscientedirigida ao motim. Segundo doutrina e jurisprudência,55 sua finalidadeé irrelevante, sendo inexpressiva a legitimidade das reivindicações. Ateleologia da conduta seria importante apenas para efeitos de dosime-tria da pena.

Fragoso ensina que o tipo subjetivo é o dolo genérico: vontade livree consciente dirigida ao motim, tendo o agente consciência de perturbara ordem ou a disciplina da prisão e de que se trate de movimento coleti-vo. O fim de agir é indiferente. Tanto faz que o motim tenha por funda-mento reivindicação justa ou injusta e que com ele procurem os presos aevasão ou, ainda, vingar-se de guardas ou constrangê-los. A natureza detais motivos, porém, deverá ser levada em consideração na medida dapena.56 O entendimento é corroborado por Paulo José da Costa Jr.57

A conseqüência jurídica prevista é a sanção detentiva de seismeses a dois anos, cumulada materialmente com a violência. O concur-so material do motim com a violência contra a pessoa é questão pacífi-ca, havendo divergência no que diz respeito à extensão da violência aopatrimônio.

Parte da doutrina entende que a expressão ‘violência’ abrange atutela da pessoa e da coisa, estabelecendo concurso material de crimesem ambas situações. Corrente oposta vê na expressão ‘violência’somente aquela dirigida contra a pessoa. Apesar de existirem decisõesque estabelecem o concurso material entre motim e dano, crê-se neces-sário restringir o cúmulo material da violência contra a coisa, pois,interpretando sistematicamente, quando a lei penal prevê a violênciacontra o patrimônio, o faz taxativamente.

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54 Idem.55 O crime de motim de presos consiste no comportamento comum de rebeldia de pessoas

presas, agindo para o fim de reivindicações justas ou não. É a vontade livre e conscientedirigida ao motim, conhecendo o sujeito que sua conduta perturba a ordem ou a discipli-na do estabelecimento prisional (TACRIM-SP, AC, Rel. Hélio de Freitas – RT 653/310). Ocrime do art. 354 do CP caracteriza-se pela revolta coletiva de presos com intuito de con-trariar a autoridade ou poder constituído, tumultuando seriamente a ordem e a disciplinada prisão, mediante atos de violência contra guardas, funcionários ou instalações ou aosoutros detentos não solidarizados com suas atitudes (TA-MG, AC, Rel. Edelberto Santiago– RT 615/341).

56 Fragoso, ob. cit., p. 550.57 Para efetivação do juízo de tipicidade, basta a reunião tumultuária das pessoas presas,

não sendo necessário indagar a finalidade do motim: reivindicações justas ou injustas, vin-gança ou motivos de outra índole. A ilicitude do fato reside na rebelião apta a desordenara vida disciplinar da prisão (Costa Jr., ob. cit., pp. 762-763).

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A desproporcionalidade da legislação na incriminação da evasãomediante violência não se restringe tão-somente à equivalência dascondutas tentadas e consumadas.

Ao estabelecer a pena em abstrato, o legislador obrigou o magis-trado a cumular a pena da evasão violenta com a própria violênciaempregada. Portanto, há concurso material da ‘evasão medianteviolência’ com a agressão praticada para viabilizar o delito, visto seresta elementar do tipo – v.g. roubo, seqüestro, lesão corporal, homicí-dio entre outras ações em sua forma tentada ou consumada.

A relevância que a norma incriminadora pretendeu dar ao imporsanção cumulativa é a negação e o repúdio ao ato lesivo. Somente exis-te delito no momento em que esta violência é praticada. Da mesmaforma, a punição cumulativa inviabilizaria ao aplicador absorver (prin-cípio da consunção) a evasão violenta no crime-meio. Contudo, urgeque os critérios sejam revistos.

A regra do concurso material é clara: quando o agente, mediantemais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ounão, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade emque haja incorrido (art. 69, caput, CP).

O vínculo do tipo em análise à regra do concurso material leva àconclusão de que o legislador acabou penalizando, de maneira indiretae sutil, a fuga propriamente dita. Se a violência é circunstância elemen-tar do tipo do art. 352 do CP, e se o concurso material é a infração,mediante unidade ou pluralidade de ações, de tipos penais diversos,parece claro que a aplicação da pena em cúmulo configura bis in idem,com penalização subsidiária do mero ato evasivo. A opção pela incrimi-nação da evasão mediante violência acaba justificando reprovaçãopenal indireta da fuga. Se a grande ofensa que justifica a criminalizaçãodo ato é a violência em si mesma, despicienda seria a tipificação da eva-são, decorrente do fato de que as diversas formas possíveis de violênciacontra a pessoa já constituem crime em si e, mais importante, a fuga járecebe reprovabilidade como ‘falta grave’ na esfera administrativa.

Não se percebe, portanto, desde o processo de interpretação cons-titucional do direito penal, vínculo substancial do tipo com os rigoresdos princípios inerentes ao texto da Lei Maior, desde a proporcionali-dade à individualização. Veja-se, a título de exemplificação, o que ocor-re com outro delito análogo. Na construção incriminatória do motimexiste penalização, em concurso material, do ato em si (motim de pre-sos) com a violência praticada. Contudo, o preceito não prevê elemen-tar do tipo idêntica ao delito a ser cumulado. Incriminado o motim, é

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Diferentemente do fato consumado, o delito tentado não efetivaqualquer lesão ao bem jurídico. Tendo em vista essa diferença entre osresultados das condutas, dano no primeiro e perigo concreto no último,o direito penal, seguindo a fórmula da proporcionalidade, diferencia apena, minimizando-a. A tentativa é punida menos severamente porquea pena deve estar em correspondência não somente com a gravidadedo crime, como também com o dano efetivamente causado.62 A justifi-cativa de Carrara é esclarecedora: imputamos menos la tentativa, nopor atenuación o por benignidad, sino porque encontramos en ella algoque falta con respecto al delito consumado, y porque, naturalmente, laminoración en las condiciones de un ente debe producir una minoraciónde su valor.63

Embora pacífico o entendimento doutrinário das correntes huma-nistas acerca do minus da tentativa em relação ao delito consumado, olegislador equiparou, no caso da evasão mediante violência, as duascondutas, seguindo rumos de tradição legislativa autoritária (v.g. oscrimes contra a segurança nacional, Lei no 7.170/83). Assim, de duvido-sa constitucionalidade a equiparação das penas, em decorrência dalesão ao princípio da razoabilidade.

Zaffaroni demonstra, de forma inequívoca, a inadequação destetipo de incriminação às formas legislativas garantistas do Estadodemocrático de direito balizadas pelo princípio da secularização: laescala penal atenuada del delito incompleto se corresponde con la racio-nalidad de la pena que, por lógica, debe ser menor en un delito que, porno haber causado el resultado, presenta un contenido injusto inferior...La punición de la tentativa – y más aún de los actos preparatorios – enforma análoga al delito consumado, es violatoria de la racionalidad quedebe regir en cualquier punición, porque olvida al bien juridico y pasa afundarse exclusivamente en la voluntad contraria a la norma. El delitose convierte en un mero signo de voluntad contraria a la ley y pasa asegundo o ultimo plano su naturaleza de lesión al derecho. Se trata deuna variable idealista de la teoría del acto sintomático, que lleva a lapunición de la voluntad revelada con el acto inequívoco. Nuevamente sequiebra el dique que separa la moral del derecho y el Estado asume elpapel de director ético de las personas, se convierte en un Estado ético.64

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62 Mestieri, Teoria Elementar do Direito Criminal, p. 271.63 Carrara, Programa de Derecho Criminal, p. § 355.64 Zaffaroni, Sistemas Penales y Derechos Humanos en América Latina, p. 65.

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tum penalizador. Inova apenas na referência expressa à ‘pessoa legal-mente presa’ no delito de evasão – evadir-se ou tentar evadir-se a pes-soa legalmente presa ou submetida à medida de segurança detentiva,usando de violência contra a pessoa –, entendimento já consolidadojurisprudencialmente.

Outrossim, o projeto prevê novo tipo penal denominado ‘tomadade refém’ (art. 346). A nova construção típica descreve a conduta desubmeter alguém à condição de refém, privando-o de sua liberdade parapermitir ou facilitar a fuga do agente ou de outrem. A pena projetada éa de reclusão de um a quatro anos, qualificada para dois a quatro anosse a vítima sofrer ameaça de morte e/ou se a privação de liberdadedurar mais de vinte e quatro horas (art. 346, § 1o, incisos I e I). No § 2o,o projeto prevê a mesma pena da forma qualificada se o objetivo doagente for evitar a prisão ou a sua recaptura, determinando, no § 3o,cúmulo material da pena qualificada à violência empregada.

Atualmente, o enquadramento típico da fuga com tomada derefém é o do concurso material da evasão violenta com o seqüestro,66

podendo a pena, em sua forma qualificada, ultrapassar oito anos dereclusão. Apesar da maximização qualitativa, a criação do novo tipopenal diminuiria quantitativamente a pena, visto ser sua previsão qua-lificada de, no máximo, quatro anos.

6.3. Conflitos carcerários e direito de resistência

6.3.1. A ineficácia do modelo liberal-legal para resolução dos conflitos contemporâneos

A perspectiva garantista centrada na primazia axiológica da pes-soa impõe autonomia dos direitos fundamentais no caso de conflitocom práticas jurídico-políticas arbitrárias.

Lembra, porém, Ferrajoli,67 que atualmente as Constituições nãopositivaram, como no passado (v.g., art. 3o da Declaração de Direitos daVirgínia de 1776; o art. 29 da Constituição Francesa de 1793; a Consti-tuição Siciliana de 1812; e o art. 20, IV, da Constituição da RepúblicaFederal da Alemanha de 1949), um dos mecanismos de garantia dos

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66 Nesse sentido, conferir as referências de Celso Delmanto à decisão da Apelação Criminal10164 pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal (DJU, 20/3/1990, p. 5.559), emDelmanto, Código Penal Comentado, p. 281.

67 Ferrajoli, ob. cit., p. 973.

ressalvada a aplicação cumulativa da pena. Há reprovação penal do atoem si, sendo a violência (decorrente ou precedente) acrescida na pena-lização. A análise sistemática dos tipos leva a reafirmar a punibilidadeoculta e subsidiária da fuga.

6.2.2.3.2. Crítica de lege ferenda

Quando da avaliação do bem jurídico tutelado, percebeu-se que asnormas dos artigos 352 e 354 do CP tutelam a Administração da Justiça.

Viu-se, na exposição dos critérios para contração do sistemapenal, a necessidade de reprovabilidade penal apenas nos casos deataque concreto contra bens jurídicos de ‘pessoas de carne e osso’.Sucedâneo a este entendimento, supérflua seria a inclusão da persona-lidade do Estado, da administração pública, da atividade judicial, entreoutros, no rol dos bens jurídicos amparados pelo direito penal. Reme-morando Ferrajoli,65 o Estado, nos ordenamentos democráticos, nãopode constituir bem ou valor próprio, visto ser apenas instrumento deconsecução dos direitos fundamentais.

A tradição demonstra que as normas jurídicas mais autoritárias e,conseqüentemente, conformadoras de modelos maximalistas, foramaquelas emergenciais produzidas sob a etiqueta de ‘delitos contra oEstado’. Tais incriminações, normalmente elaboradas com grandeambigüidade e lacunariedade, acabam por sobrepor a razão de Estadoà razão de direito, olvidando a ofensividade (ataque concreto) ao bemjurídico (palpável).

Desse modo, a valoração crítica do bem jurídico protegido pelostipos dos arts. 352 e 354 induz sustentar sua descriminalização, dire-cionando a ilicitude da fuga e do motim apenas à esfera administrativa(penitenciária). Desde os postulados do direito penal mínimo, o rele-vante na resposta penal seria responder à violência empregada contraa pessoa, em decorrência de evasões violentas e/ou motins. Aliás, esteentendimento é insinuado pela obrigatoriedade do concurso materialna aplicação das penas aos conflitos carcerários.

Todavia, opondo-se frontalmente aos processos político-criminaisminimalistas, o projeto de reforma da parte especial do Código Penalmantém a tipicidade da ‘evasão mediante violência contra a pessoa’(art. 343) e do ‘motim de presos’ (art. 345), preservando idêntico quan-

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65 Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 481.

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A revificação do ius resistentiae acaba ocorrendo no momento deincapacidade instrumental do direito em responder às complexasdemandas do final do milênio, ou simplesmente devido à necessidadede solução de antigos conflitos acertados de forma insatisfatória pelosistema tradicional. No último dos casos situa-se o problema da confli-tividade carcerária.

Estruturou-se, desde o primeiro momento do texto, o garantismojurídico como modelo penal alternativo à violência e à guerra, pressu-pondo atitude pessimista em relação a todos os atos do poder público,por entender intrínseca sua predisposição à arbitrariedade. Teleologi-camente, como modelo ideal típico de otimização dos direitos funda-mentais, o garantismo dirige-se não somente à minimização dos micro-poderes selvagens (privados), mas também à redução dos macropode-res bárbaros (públicos).

Entretanto, constata-se que os instrumentos jurídicos positivadosinviabilizam a plena defesa da Constituição ou proporcionam, demaneira tímida, a redução dos poderes privados.

Como ressaltado, o traço mais marcante da modernidade foi aradical monopolização da violência pelo aparato estatal que, em nomeda racionalização dos conflitos, separa os envolvidos e responde àdemanda. Sabe-se, porém, que, em determinadas circunstâncias, exis-te previsão legal de legitimidade de o indivíduo agir, utilizando-se deviolência, em defesa de interesse seu ou de terceiro, sem contrastarcom o ordenamento jurídico. No caso de conflitos interindividuais, odireito penal permite a autotutela do cidadão se este estiver em situa-ção de necessidade e/ou defesa de bem jurídico. Resolve-se, o proble-ma, nestas situações, pelo fato de no interior do modelo liberal-legalexistirem previsões para condutas nas quais o titular do direito afetadopode reagir contra o perigo (estado de necessidade) ou a agressão(legítima defesa), sendo excluída a ilicitude da (re)ação.

Quando, porém, o sujeito ativo da violação (ou exposição ao perigo)do bem tutelado é o próprio Estado, e o sujeito passivo não é individual,isto é, o conflito perpassa a esfera do indivíduo e passa a ser transindi-vidual, não há capacitação dogmática e legislativa para resposta. Háverdadeira aporia jurídica quando o dano, ou a concreta probabilidadede lesão aos bens jurídicos, resulta de conduta ativa ou omissiva daAdministração Pública e sua titularidade é plúrima (v.g. presos).

Concebe-se juridicamente a autotutela do cidadão contra agres-sões privadas, se preenchidos os requisitos do estado de necessidadee/ou da legítima defesa. No caso de agressão pública aos direitos fun-

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cidadãos contra as ofensas do Príncipe: o direito de resistência à opres-são. Tal omissão decorre da ideologia normativista que supõe aprioris-ticamente a efetividade dos mecanismos positivados para sancionar eremover atos ilegítimos.

No entanto, Ferrajoli indaga o que acontece quando esses instru-mentos processuais elaborados pela atual teoria do direito tornam-seimpotentes para a tutela dos direitos. Em realidade, o direito de resis-tência renasce quando o sistema ordinário de garantias não funciona,68

sendo verdadeira falácia normativa a idéia de o instituto ser incompa-tível com o Estado de direito porque neste o poder é vinculado à lei eas violações são por ela punidas.69

Como anota Estévez Araujo, na atualidade a defesa da Consti-tuição encontra-se em um âmbito de decisão estatal insuficientementeprocedimentalizado, pois os mecanismos existentes não estabelecemcanais de participação democrática que reduzam o déficit de legitimi-dade dos órgãos encarregados da tarefa. Portanto, el problema de lajustificación jurídica de la desobediencia civil debe inscribirse en estecontexto de crisis de legitimidad de los procedimientos de defensa de laConstitución como consecuencia de la materialización del derecho cons-titucional. La desobediencia civil deve ser entendida como un mecanis-mo informal e indirecto de participación en un ámbito de toma de deci-siones que no cuenta con suficientes canales participativos, aunque, enrealidad, precisaría de ellos para poder presentarse.70

Da crise enfrentada pelo Estado contemporâneo em decorrênciada inefetividade processual na defesa dos direitos constitucionaisrenasce o tema oitocentesco.

Percebe Bobbio que é natural que, quando aquele tipo de Estadoque havia pretendido absorver o direito de resistência, constitucionali-zando-o, entra em crise, se reabra o velho problema, e se ressuscite,ainda que com outras vestes, as velhas soluções.71 Contudo, chamaatenção para o fato de que o retorno dos velhos temas que pareciammoribundos não é uma exumação, nem uma repetição. Os problemasnascem quando certas condições históricas os fazem nascer, mas assu-mem aspectos diferentes segundo as circunstâncias.72

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68 Ferrajoli, Notte Critiche ed Autocritiche intorno alla Discussione su ‘Diritto e Ragione’, p. 514.69 Ferrajoli, Diritto e Ragione, pp. 973-974.70 Estévez Araujo, La Constitución como Proceso y la Desobediencia Civil, p. 143.71 Bobbio, La Resistenza all’Oppressione, Oggi, p. 168.72 Idem, p. 168.

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Em matéria penal/penitenciária, o legado ainda presente da con-cepção administrativista de execução, aliado à dificuldade de percep-ção dos direitos transindividuais, inviabiliza qualquer solução pacíficados conflitos.

A conseqüência desta miopia da dogmática brasileira, cuja estru-tura teórica não permite conceber os detentos como sujeitos de direi-tos, é o resgate crítico do direito de resistência como possibilidadeestratégica para recuperar sua cidadania.

Enquanto a dogmática jurídica não potencializa instrumentospara obrigar o Estado ao cumprimento de seu dever em sede de execu-ção penal (v.g. ação civil pública), a única alternativa admissível para oresgate dos direitos dos apenados é a inclusão do direito de resistênciaentre as causas supralegais de exclusão do delito, assim como os já con-sagrados princípios da insignificância, adequação social, consentimen-to do ofendido e inexigibilidade de conduta diversa. Entendido comodescriminante transindividual, o direito de resistência permitirá açãopolítica reivindicatória direcionada à mobilização da AdministraçãoPública em prestar minimamente seu dever constitucional, a dizer, res-peitar a integridade física e moral dos presos (art. 5o, XLIX, CF).

6.3.2. Direito de resistência: notas conceituais

O problema do direito de resistência poderia remeter o trabalho àbela e lúdica caracterização desde a tragediografia helênica, ou permi-tir incursões na filosofia clássica. Rui Barbosa, por exemplo, afirma queninguém condensou melhor o alcance do direito de resistência do queo velho Farinaccius, colocando em uma fórmula clara, prática, justa eexpressiva o sentido da desobediência legítima. Em suas Questões,Farinaccius afirmava: se o magistrado, faltando à justiça, já se não repu-ta magistrado, e passa não ser mais que um sujeito particular, do mesmomodo como nos é dado resistir à violência que qualquer particular nosfaz, lícito semelhantemente nos será também resistir à injustiça domagistrado e seus oficiais, pois, obrando injustamente, não têm, repito,mais autoridade que se meros particulares fossem.76

Como foi estabelecido na matriz ilustrada o marco genealógico dajustificativa do instituto da resistência (Boètie, Locke, Marat eFeuerbach), reestruturando-se na contemporaneidade a partir da con-cepção garantista, não haverá reconstrução histórica do direito de re-

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76 Apud Barbosa, Teoria Política, p. 286.

damentais, porém, as possibilidades de reação legítima são ineptas emdecorrência da concepção normativista que pressupõe eficácia dos ins-trumentos processuais tradicionais. As soluções dadas pelo ordena-mento não legitimam a ação defensiva, pois inexiste mecanismo eficazde proteção de bens jurídicos transindividuais.

Lenio Streck diagnostica o problema utilizando-se do ensino dodireito como figura de linguagem. Segundo o autor, há predominância,no Brasil, de um modo de produção jurídica forjado para resolver ape-nas disputas interindividuais. A constatação é nítida nos manuais jurí-dicos que banalizam os conflitos nas disputas entre ‘Caio’ e ‘Tício’:assim, se Caio invadir (ocupar) a propriedade de Tício, ou Caio furtar umbotijão de gás ou o automóvel de Tício, é fácil para o operador do Direitoresolver o problema. No primeiro caso, a resposta é singela: é esbulho,passível de imediata reintegração de posse, mecanismo jurídico de pron-ta e eficaz atuação, absolutamente eficiente para a proteção dos direitosreais de garantia. No segundo caso, a resposta igualmente é singela: éfurto (simples no caso de um botijão; qualificado, com uma pena quepode alcançar 08 anos de reclusão, se o automóvel de Tício for levadopara outra unidade da federação).73

A aplicação do direito reduz-se, porém, tão-somente a essescasos banais, ou, como qualifica Streck, a dogmática jurídica colocaà disposição do operador um prêt à porter significativo que contémrespostas rápidas e prontas. Mas – adverte –, quando Caio e milharesde pessoas sem teto ou sem terra invadem/ocupam a propriedade deTício, ou quando Caio participa de uma ‘quebradeira’ de bancos, cau-sando desfalques de bilhões de dólares, os juristas só conseguem ‘pen-sar’ o problema a partir da ótica forjada no modo liberal-individualis-ta-normativista de produção de Direito.74 Conclui, portanto, que acrise do modelo se instala porque a dogmática, em plena sociedadetransmoderna e repleta de conflitos transindividuais, continua traba-lhando com a perspectiva de um direito cunhado para ‘resolver’ dis-putas interindividuais.

No mesmo sentido conclui Ferrajoli, quando chama atenção para ofato de que a desatenção estatal relativa aos direitos sociais não éreparável com técnicas jurídicas eficazmente análogas às previstaspara as violações dos direitos de liberdade.75

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73 Streck, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, p. 33.74 Streck, ob. cit., pp. 33-34.75 Ferrajoli, El Derecho como Sistema de Garantías, p. 67.

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tência. São resistentes as condutas, violentas ou pacíficas, que contes-tam determinada ordem constituída com intuito de transgredi-la, sejapara estabelecer nova prática política seja para reestruturar pretérita.O ato contrariado deve, necessariamente, lesar direitos, restringindo ostatus de cidadão e o ideal democrático.79

Hannah Arendt demonstra que a desobediência civil aparece noperíodo pós-Segunda Guerra Mundial como forma de reivindicação denecessidades da sociedade civil à sociedade política. Ao constatar aprofunda crise da lei e dos canais tradicionais de comunicação entre oscidadãos e os governantes, Arendt vê nos atos de desobediência civiluma resposta à crise de participação da sociedade na tomada das deci-sões políticas. Assim, a desobediência civil aparece quando um númerosignificativo de cidadãos se convence de que, ou os canais normais paramudanças já não funcionam, e que as queixas não serão ouvidas nemterão qualquer efeito, ou então, pelo contrário, o governo está em vias deefetuar mudanças e se envolve e persiste em modos de agir cuja legali-dade e constitucionalidade estão expostas a graves dúvidas.80

Dessa forma, o ato de transgressão às leis e/ou decisões adquiri-riam dupla funcionabilidade: pode servir tanto para mudanças necessá-rias e desejadas como para preservação ou restauração necessária edesejada do status quo.81

John Rawls define desobediência civil como um ato ilegal público,não-violento, de consciência, mas de caráter político, realizado com o fimde provocar uma mudança na legislação ou na política governamental.82

Passerin d’Entrêves segue a mesma trilha de Rawls e a define comoação ilegal, coletiva, pública e não violenta, que se atém a princípios éti-cos superiores para obter uma mudança nas leis.83

Tradicionalmente, a desobediência civil poderia ser conceituadacomo ato coletivo, de caráter público e pacífico, impulsionado por reivin-dicações dirigidas à modificação ou manutenção de direitos consagra-dos. Seria conduta em ultima ratio, caracterizada pela ilegalidade quesujeita os manifestantes às sanções previstas no ordenamento jurídico.

As principais características do ato de desobediência seriam, por-tanto, a politicidade, publicidade e coletividade, utilizadas pacifica-mente como último recurso, sujeitando os desobedientes às sanções.

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79 Carvalho, O direito de resistência e o seu alcance constitucional, pp. 87-115.80 Arendt, A Desobediência Civil, p. 68.81 Arendt, ob. cit., p. 69.82 Rawls, A Theory of Justice, p. 364.83 Bobbio, Dicionário de Política, p. 336.

sistência como sói acontecer nos trabalhos sobre o tema. A análise quese pretende realizar é puramente conceitual e classificatória.

Segundo Norberto Bobbio, a resistência compreende todo tipo deruptura contra a ordem constituída, que põe em crise o sistema pelo fatode produzir-se, como acontece em um tumulto, uma sublevação, umarebelião, uma insurreição, até o caso limite da revolução.77

Afirma o politólogo que o direito de resistência é um dos mecanis-mos jurídicos que servem para tutelar os direitos primários. Sua carac-terística principal é de intervenção subsidiária, ou seja, quando sãoviolados os bens jurídicos fundamentais: juridicamente, o direito deresistência é um direito secundário, do mesmo modo que são normassecundárias aquelas que dispõem a proteção das normas primárias: éum direito secundário que intervém em um segundo momento, quandosão aviltados os direitos de liberdade, de propriedade e de segurança,que são primários. Diferente, também porque o direito de resistênciatutela os outros direitos, mas não pode ser por sua vez tutelado, e por-tanto deve ser exercido com risco e perigo próprios.78

Mais que um ‘direito’, a resistência à opressão é um mecanismotipicamente garantista, pois sua natureza reflete instrumentalidade àsatisfação dos direitos humanos individuais, sociais e/ou transindivi-duais. É que o sentido do termo ‘garantias’ deve ser empregado paraexpressar as técnicas previstas, explícita ou implicitamente, que objeti-vam minimizar o vácuo entre normatividade e efetividade dos direitos.

O exercício do direito de resistência para tutela de direitos indivi-duais representa um dos traços mais característicos do pensamentoliberal clássico – resistência armada contra usurpação, conquista ouexercício abusivo do poder. A atualização do instituto no século XXocorreu com a luta pela tutela dos direitos sociais manifestados pormovimentos que vão desde as reivindicações de minorias excluídas(minorias raciais, etárias, de gênero et coetera) aos conflitos laborais(v.g. greves). No âmbito dos direitos transindividuais, as manifestaçõesdas ONG’s ecológicas e dos movimentos de luta pela terra e espaçourbano parecem ser o melhor exemplo de prática resistente.

Imprescindível nota a ser feita diz respeito às diferenças entre ostermos direito de resistência, desobediência civil e objeção de cons-ciência. Mister ressaltar o entendimento de constituirem a desobediên-cia civil e a objeção de consciência espécies do gênero direito de resis-

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77 Bobbio, ob. cit., p. 159.78 Bobbio, La Rivoluzione Francese e i Diritti dell’Uomo, p. 106.

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fenômeno da violência carcerária, caracterizada pelo total desrespeitoaos direitos do apenado, aproxima o sistema de cumprimento de penaprivativa de liberdade aos mais atrozes modelos de penalidade jáconhecidos pela humanidade; e (2o) as únicas possibilidades de(re)ação dos condenados contra a brutalidade do sistema (fugas, rebe-liões e/ou motins) implicam sanções (administrativas ou penais) queagudizam ainda mais sua permanência na instituição de apartação.

Os tipos penais de evasão e motim, a disposição dos atos de sedi-ção nas normas penitenciárias e o desenvolvimento jurisprudencial edogmático sobre a matéria descartam qualquer possibilidade de justi-ficação do ato, independentemente da finalidade ou da situação de fatoque motivou a conduta.

Na órbita do injusto penal, a inviabilidade interpretativa advém dofato de que na construção da norma penal inexistiu inclusão de ele-mento normativo do tipo descaracterizador – ‘justa causa’, por exem-plo; e, também, pela inexistência de teoria que possibilite a construçãode causas descriminantes para os referidos conflitos, refletindo o desin-teresse da dogmática jurídico-penal tradicional em apreender a com-plexidade social.

Os elementos normativos do tipo, constitutivos e integrantes dailicitude, representam juízos de menor grau de antijuridicidade; são ele-mentos de conteúdo variável, aferidos a partir de outras normas jurídi-cas, ou extrajurídicas, quando da aplicação do tipo ao fato concreto.87

Inúmeros tipos penais do CP brasileiro apresentam juízos axiológicosde referência à ilicitude.88 A inexistência destes elementos de valora-ção da conduta na estrutura formal da norma exclui qualquer forma dedescontrução de sua tipicidade. Ao contrário dos artigos 153 (divulga-ção de segredo), 154 (violação de segredo profissional), 244 (abandonomaterial), 246 (abandono intelectual) e 248 (induzimento a fuga, entre-ga arbitrária ou sonegação de incapazes) do CP, que são integradospelo elemento ‘justa causa’, possibilitando a exclusão da tipicidade daconduta quando comprovado ter sido o fato praticado em ‘defesa dedireito ou interesse legítimo’, os delitos previstos nos artigos 352 e 354não possuem essa composição. Impossível, pois, a justificação dos atos

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87 Reale Jr., Teoria do Delito, pp. 42-48.88 Alguns autores, inclusive, atribuem ao elemento normativo do tipo forma especial de ili-

citude. Sobre o assunto e as devidas críticas, conferir Fragoso, Lições de Direito Penal I,pp. 183-184; e Marques, Tratado de Direito Penal I, pp. 141-142.

Pressuporia, pois, a aceitação da legitimidade do ordenamento jurídicovigente.

Hannah Arendt sustenta, porém, ser desnecessário o concurso.Avaliando a participação de Ghandi no movimento de independênciada Índia, a autora lembra que o arauto da prática política da desobe-diência civil e da não-violência em nenhum momento aceitou a legiti-midade do modelo jurídico autoritário imposto pelo domínio britânico.Corrobora-se a afirmação, e entende-se necessária, para configuraçãodo ato, a publicidade de ação realizada com o intuito de aperfei-çoar/garantir os direitos individuais, coletivos ou difusos não respeita-dos pelos poderes públicos constituídos.

Desde esta caracterização, pode-se estabelecer, junto a Rawls, a dife-renciação da objeção de consciência: a objeção de consciência não se baseianecessariamente em princípios políticos; pode fundar-se em princípios reli-giosos ou de outro caráter, desconformes com o ordenamento constitucional.A desobediência civil é a invocação de uma concepção comunitária de justi-ça, enquanto que a objeção de consciência pode ter outros fundamentos.84

Rawls afirma ser a objeção de consciência o não cumprimento depreceito legal ou administrativo mais ou menos categórico.85 A condutade refutação pode estar fundamentada em princípios de ordem religio-sa, moral, ideológica, ética ou filosófica. O fundamental, contudo, é quecontrarie dispositivo de lei ofensivo aos princípios do agente.

Cuervo-Arango define objeção de consciência como la actitud deaquel que se niega a obedecer un mandato de la autoridad, un impera-tivo jurídico, invocando la existencia, en el seno de su conciencia, de undictamen que le impide realizar el comportamiento prescrito.86

Assim, a objeção de consciência difere da desobediência civil basica-mente por ser ato individual. Mais, o objetor de consciência, além de atuarem nome próprio, não teria o intuito de modificar a lei em questão, simples-mente deseja não cumpri-la devido a imperativos éticos personalíssimos.

6.3.3. Direito de resistência, legítima defesa e estado de necessidade: aproximações e diferenças

Nos últimos apontamentos, chamou-se a atenção para duas ques-tões cruciais para o desenvolvimento das hipóteses do trabalho: (1o) o

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84 Rawls, ob. cit., p. 369.85 Rawls, ob. cit., p. 368.86 Cuervo-Arango, La Objeción de Conciencia al Servicio Militar, p. 11.

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faculdade de intervenção protetora de um particular em favor de outro,pouco importando que haja, ou não, uma relação especial entre ambos.92

Todavia, a formulação legal das eximentes é estruturada em rígi-dos pressupostos que inviabilizam sua utilização aos casos de confliti-vidade transindividual, no caso ora avaliado aos problemas dos confli-tos carcerários.

Os institutos oriundos de situações de necessidade (legítima defe-sa e estado de necessidade) são moldados no interior de uma concep-ção meramente interindividual, na qual inexiste possibilidade de rea-ção coletiva contra ato que coloca em perigo ou que agride bens trans-pessoais (v.g. conflitos carcerários, saques, ocupações de terras, apro-priação de prédios públicos e/ou privados et coetera).

Crê-se, no entanto, desde uma concepção garantista do direito eda prática jurídica, da viabilidade teórica para solução da problemáti-ca que envolve a questão carcerária a partir da assunção do ius resis-tentiae como causa supralegal de exclusão da ilicitude.

Afirma Ferrajoli que é justo rebelar-se quando a lei é injusta; mastambém é juridicamente legítimo quando os poderes públicos violam osdireitos fundamentais e os meios e as garantias legais se revelam inefi-cazes em sancionar sua invalidade.93

Não se pode olvidar que o objeto de análise é a violação por partedo poder público de direitos individuais (vida, liberdade, saúde, inte-gridade física e moral) partilhados por grupo homogêneo (massa carce-rária), caracterizando, pois, lesão transindividual. Daí resultam a inefi-cácia e a impossibilidade de assunção dos mecanismos tradicionais, ouseja, da causas de exclusão de ilicitude previstas no Código Penal.

A diferença entre estado de necessidade e legítima defesa é quena primeira o bem jurídico é colocado em perigo, enquanto na segundahá agressão. Se no estado de necessidade existe conflito entre bens emações legítimas, na legítima defesa há lesão (ou ameaça) ao bem. Emambas, contudo, a ação somente é admitida se impulsionada por con-duta humana – excluindo reação advinda de força natural ou irracionalno estado de necessidade. Inadmissível, pois, ser o Estado incitador doato que requer garantia (sujeito ativo da lesão).

Os pressupostos formais do estado de necessidade são o perigoatual, o salvamento de direito próprio ou de terceiro, a impossibilidadede evitar o perigo e a razoável inexigibilidade de sacrifício do direito

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92 Hungria, Comentários ao Código Penal I, p. 275.93 Ferrajoli, ob. cit., pp. 989-990.

de fuga e motins quando praticados em defesa de direito, decorrentesda inação do Estado no cumprimento de suas obrigações legais.

A inviabilidade de justificação da conduta, porém, perpassa o pro-blema da tipicidade e atinge, principalmente, a esfera da antijuridici-dade, não obstante a íntima relação existente entre ambas.

A tipicidade é ratio cognoscendi, adquirindo função indiciária dailicitude. Esta, por sua vez, apresenta-se como juízo de contrariedadeentre o fato típico e o ordenamento jurídico; daí se deduz que, na práti-ca, a função do juízo de antijuridicidade fica reduzida a uma constata-ção negativa desta antijuridicidade, isto é, a determinação de se ocorreou não alguma causa de justificação.89 Muito embora determinadosatos sejam considerados típicos, descritos negativamente e subsumi-dos à norma jurídico-penal, não existe relação necessária, desde a con-cepção tripartida do delito, entre a sua tipicidade e a sua ilicitude. Emdeterminadas situações específicas, o legislador, apesar de previamen-te desvalorar a conduta na elaboração do tipo, emite juízos permissivosdevido às circunstâncias que compuseram o caso, avalisando a violên-cia individual em nome próprio ou de terceiro pela ausência de sua pre-sença tutelar – papel de garantidor.

Apesar do pressuposto da modernidade estar centrado no mono-pólio estatal da violência, sendo tipificado como delito o exercício arbi-trário das próprias razões (art. 345, CP), existem determinadas situa-ções-limite nas quais o cidadão está legitimado a usar da violência con-tra bens jurídicos tutelados.

No que diz respeito à garantia dos direitos individuais, a autoriza-ção da violência como forma de autotutela é prevista, legal ou suprale-galmente, nos casos de exclusão de ilicitude, como causa de justifica-ção de atos que, de outra forma, seriam punidos como crimes.90

As descriminantes, como leciona Fragoso, podem defluir de situa-ções de necessidade (legítima defesa e estado de necessidade), deatuação conforme o direito (exercício regular de direito e estrito cum-primento de dever legal) ou de ausência de interesse pelo titular dobem protegido (consentimento do ofendido).91 Afirma-se, portanto, quea lei penal não podia deixar de reconhecer que, na impossibilidade deimediata e eficiente assistência do poder de polícia do Estado, deve seroutorgada (em acréscimo à permissão de autotutela do indivíduo) a

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89 Muñoz Conde, Teoria Geral do Delito, pp. 85-86.90 Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 954.91 Fragoso, ob. cit., p. 185.

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de que o sujeito ativo da violação é o Estado e o sujeito passivo é umgrupo de pessoas. Imprescindível, pois, seria perceber a ‘massa car-cerária’ como sujeito de direitos.

O grande problema é que o processo de jurisdicionalização da exe-cução, que traz em seu bojo o reconhecimento dos presos como sujei-tos históricos em relação, não se capilarizou pelo sistema. Os presos,mesmo após a Constituição de 1988, ainda são vistos como objeto deexecução. A dogmática jurídica deve, a partir da interpretação consti-tucional da LEP e do CP, romper com esta visão e, enquanto não visua-liza formas de normatizar os conflitos prisionais motivados por justasreivindicações, urge recepcionar o ius resistentiae como descriminantesupralegal de ordem transindividual. A conseqüência advém da referi-da situação de violência constante provocada pelo Estado, colocandoem perigo concreto ou causando dano efetivo e irreversível aos bensjurídicos da ‘massa carcerária’.

Os presídios brasileiros são guetos de barbárie institucionalizada.Locais onde a civilização não se fez presente, por inércia ou desinteres-se do poder público. Em casos extremos como este, no qual o Estadorompe os vínculos com a democracia e institucionaliza a violência, acontra-resposta deve ser admitida como legítima, isentando os agentesdas conseqüências legais previstas.

Motins, rebeliões e fugas, realizados conscientemente contrasituações injustas como superlotação, falta de assistência material eatraso injustificado da prestação jurisdicional (que inviabilizam o gozode direitos públicos subjetivos), não podem ser qualificados como deli-tos em decorrência da causa supralegal da resistência à opressão.

Juarez Cirino dos Santos, quando avalia o problema da superlota-ção carcerária, é claro: o problema da fuga de presos (na verdade, umdireito do encarcerado, especialmente nas condições carcerárias referi-das) constitui forma ilegal (embora legítima) de correção das distorçõesdo processo de criminalização, incidente sobre as classes dominadas (osmarginalizados crônicos e eventuais do mercado de trabalho), consti-tuindo elemento de alívio ou de redução das tensões geradas pela super-população carcerária.96 No mesmo sentido Dotti, ao afirmar que confi-guram atos de desobediência civil as reivindicações de presidiários quese rebelam contra a falta de atendimento de seus direitos humanos.97

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96 Santos, Direito Penal, p. 296.97 Dotti, Curso de Direito Penal, p. 428.

ameaçado (art. 24, CP). Na legítima defesa, os pressupostos elencadossão a agressão atual ou iminente e injusta, a preservação de direitopróprio ou de outrem e o emprego moderado dos meios necessários àdefesa (art. 25, CP).

Os critérios de validação do estado de necessidade inviabilizam ajustificativa de contra-reações coletivas. Note-se, por exemplo, a ques-tão da ilicitude do ‘saque famélico’. O requisito formal do perigo atualencontra na dogmática referência ao eminente perigo de dano, aquelecuja falta de ação instantânea do agente provoca lesão ou destruição dobem. Tratar-se-ia, pois, de questão de sobrevivência perante o inequívo-co gravame ao bem jurídico. Neste sentido, Muñoz Conde argumentaque a conduta de necessidade não pode ser utilizada como a panacéiade todos os conflitos de interesses, não podendo (por exemplo) o desem-pregado assaltar um supermercado.94 Não bastaria que houvesse umanecessidade de alimentos, medicamentos, terras para plantar, empregosetc. Urge que a conduta, em face da iminência de lesão ou destruição deum bem (vida, p. ex.), seja necessária (inexigibilidade de comportamentodiverso) e realizada em situação grave e atual, exigindo-se prova cabal enão mera alegação.95 A contida extensão dada à descriminante do esta-do de necessidade pela dogmática e jurisprudência reflete total e abso-luta falta de percepção da realidade latino-americana.

No caso das lesões aos direitos dos presos, não haveria, desde oponto de vista tradicional, situação de perigo que justificasse o estadode necessidade; ou ainda injusta agressão, atual ou iminente, que via-bilizasse a legítima defesa.

É que, diferente da formulação legal liberal, se está diante desituação permanente de violência e lesão constante de direitos, o quenão se enquadra nos requisitos mencionados. Mais, os sujeitos envol-vidos no conflito impedem a admissibilidade do recurso às causas deexclusão da ilicitude, notadamente porque o sujeito ativo da violação éa Administração Pública. A reação dos apenados à constante violênciadeflagrada pelo poder público não admite, pois, legítima defesa ouestado de necessidade. Os pressupostos convencionais das descrimi-nantes previstas para os conflitos interindividuais estão descartados.Exsurge assim, como justificativa do ato, o ius resistentiae.

Não obstante a constância da violência, outra diferença entre odireito de resistência e as demais causas justificadoras radica no fato

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94 Apud Jesus, Código Penal Anotado, p. 96.95 Jesus, ob. cit., p. 96.

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qualquer legitimidade. A violência anularia a ‘civilidade’ da conduta.Desde esta noção, a doutrina política deslegitima atos sediciosos não-pacíficos, excluindo-os da esfera do direito à resistência.

Contudo, nota Nélson Nery Costa que a não-violência restringe-sesomente às pessoas, não alcançando, por exemplo, propriedades: osdesobedientes só se comportam com violência, em geral, como respostaàs ações repressivas da polícia, ainda assim em circunstâncias especiais.A utilização da força não deve, de modo algum, ameaçar às pessoas,principalmente terceiros não envolvidos, porque ao se atentar contra asliberdades dos outros, perde-se a legitimidade do caráter civil. A violên-cia pode dirigir-se apenas contra as propriedades, como ocupações for-çadas de terrenos ou fábricas, quando for imprescindível para o êxito dacampanha. A desobediência civil possui índole pacífica, mas está facul-tada a tática de empregar a força, quando esta significar o fortalecimen-to dos meios de expressão democráticos.100

Assim, a abrangência do requisito não-violência limitar-se-ia tão-somente à violação de direitos individuais (v.g. vida, integridade físicae liberdade), não atingindo a propriedade material – patrimônio públi-co ou privado.

Muito embora relativizados os requisitos publicidade e não-violên-cia, em face das circunstâncias particulares das instituições totais,entende-se como absolutos os pressupostos da proporcionalidade entreos bens em litígio e o emprego racional dos meios. Na relação de propor-cionalidade entre os bens, a situação de violência imposta pelaação/omissão estatal não justifica o emprego da violência contra a vidaou a integridade física das pessoas implicadas no problema (funcioná-rios da administração carcerária ou terceiros) – a esfera do outro ficaintocada.101 No entanto, excluindo os direitos fundamentais das pes-soas, qualquer outro bem jurídico pode ser danificado pela inexigibili-dade de sacrifício daquele ameaçado/lesado.

Quanto à utilização dos meios, a admissibilidade da violência con-tra o patrimônio é instrumental, visto ser uma das únicas formas deação disponível no interior do cárcere. Ou seja, ocupação de prédios,depredação e/ou incêndio de bens da instituição ou de uso pessoal,fugas individuais ou coletivas, greves de fome entre outros, constituemmeios idôneos. Exclui-se, no entanto, por falta de racionalidade e pro-

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100 Costa, ob. cit., p. 51.101 Viana, Direito de Resistência, p. 84.

Na atual situação dos presídios brasileiros, os conflitos prisionaisadquirem feição de ato político reivindicatório e, assim como foram asgreves na década de setenta, adquirem a característica da licitude,como visualiza Armida Bergamini Miotto.98

6.3.4. Direito de resistência: condições de possibilidade da descriminante supralegal

Da diferenciação entre direito de resistência, estado de necessida-de e legítima defesa decorre a necessidade de formulação de pressu-postos de aceitabilidade da ação tutelar, sob pena de legitimação decondutas bárbaras.

As particularidades da situação existente no interior das institui-ções totais inviabilizam, e por conseqüência descartam, alguns dospressupostos tidos como necessários pelos doutrinadores do direito deresistência.

O primeiro requisito que se encontra prejudicado pela peculiarida-de da situação fática é a publicidade da conduta. Por se tratar de insti-tuição total, cujo princípio configurador é o do isolamento, sendo decor-rência natural a não visibilidade, a necessidade de publicização daação inviabilizaria totalmente o ato reivindicatório. Apesar de el carác-ter público ser uno de los rasgos definitórios de la desobediencia civilque deriva directamente de la filosofía que subyace a esta forma de pro-testa,99 entende-se como relativa a publicização da conduta devido àscircunstâncias particularíssimas do cárcere.

O requisito da publicidade diz respeito à negativa de ocultação dofato e de sua autoria, ou seja, é a forma com a qual a sociedade apreen-de a manifestação. No caso prisional, porém, a ocultação decorre daação do próprio sujeito violador, excluindo, assim, a absolutização dorequisito.

O segundo pressuposto a ser analisado é a questão do alcance dotermo não-violência, visto ser um dos pontos pacificamente partilhadospelos autores que tratam o tema.

A expressão não-violência é tradução do vocábulo sânscrito ahim-sa. Seu fundamento é radicado nos julgamentos éticos que concebem aviolência como negação da humanidade, retirando-lhe, pois, toda e

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98 Miotto, ob. cit., p. 300.99 Estévez Araujo, ob. cit., p. 146.

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Os autores contemporâneos consideram imprescindível o elemen-to subjetivo nas causas de justificação,106 por entenderem que a atualestrutura da teoria do delito exige avaliação do aspecto cognitivo evolitivo na relação entre a conduta do agente e o resultado por ele pro-duzido. Requisitos objetivos e subjetivos são constantes em todos osníveis de avaliação no estudo estratificado do delito (tipicidade, ilicitu-de e culpabilidade), sobretudo após o finalismo welzeliano.

6.3.5. Direito de resistência: efeitos jurídicos

Estévez Araujo sustenta que toda doutrina que nega a justificaçãojurídica do direito de resistência sólo puede sustentarse desde los pre-supuestos de un positivismo estricto o de un decisionismo de corte auto-ritario.107

O ius resistentiae está inserido no rol dos direitos fundamentais docidadão como instrumento subsidiário de tutela dos direitos primários– de todos direitos é abrigo, é instrumento, é braço o direito de resistên-cia: abrigo e escudo para a defesa passiva da imobilidade expectante;instrumento e braço para a reacção activa pela força.108

Entretanto, ao contrário do que é anunciado com freqüência pelateoria política, sustenta-se a tese de que não há fundamentação legíti-ma da decisão que submete os resistentes às sanções previstas em lei.

Os tradicionais teóricos da desobediência afirmam que a aceita-ção da penalidade por parte do agente seria pré-condição do ato, ouseja, a submissão do indivíduo à lei contrariada seria pré-requisito daação desobediente, pois reafirmaria o respeito do grupo pela legalida-de estatal.

Ora, se se trabalha na esfera dos direitos fundamentais (‘direito’de resistência) – e com razão Maria Garcia afirma ter sido este direitoincorporado pela Constituição em seu art. 5o, § 2o, como direito públicosubjetivo109 –, se se fala de reivindicações ‘justas’ contra a violação de

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106 Entre os autores nacionais que adotam esta postura, conferir Fragoso, ob. cit., p. 185;Santos, Teoria do Crime, pp. 49-58; Reale Jr., ob. cit., pp. 218-219; Mestieri, ob. cit., pp.183-184; Pierangelli, O Consentimento do Ofendido na Teoria do Delito, pp. 48-49; Toledo,Princípios Básicos de Direito Penal, p. 173. Zaffaroni & Pierangeli, Manual de Direito PenalBrasileiro, pp. 577-578.

107 Estévez Araujo, ob. cit., p. 145.108 Barbosa, ob. cit., p. 293.109 Garcia, Desobediência Civil, pp. 259- 265. No mesmo sentido, Repolês, Desobediência

Civil como direito fundamental no Estado Democrático brasileiro, pp. 143-149 e Esteves,A constitucionalização do Direito de Resistência, pp. 195-224.

porção, por exemplo, a tomada de reféns e o sacrifício de companheirosde cela.102

Todos os requisitos avaliados até o momento são de ordem objeti-va: (a) publicidade possível da ação, (b) não-violência contra a pessoa,(c) proporcionalidade entre os bens em litígio e (d) emprego racionaldos meios. Cabe, porém, realizar o debate da necessidade da ação serrealizada conscientemente (cognição da realidade fática que legitima aconduta) com o fim de defender-se, ou seja, a (im)prescindibilidade doelemento subjetivo.

Nélson Hungria103 chama atenção para o fato de que as justifican-tes seriam mais propriamente conceituadas como descriminantes ou‘causas objetivas de exclusão de crime’. Com a presença de tais cau-sas, o fato exsurge intrinsecamente lícito (e não apenas justificado inconcreto), inexistindo crime. Diz o autor que a doutrina penal dominan-te é aquela que exclui qualquer interferência do ‘estado psicológico’ doagente. Para tanto, cita Pozzolini, o qual sustenta que a ação que exter-namente tem as características de ação criminosa torna-se legítimaquando ocorre aquela determinada situação de fato, constituída pelosassim chamados casos de justificação. Todo conceito de imputabilidadee de elemento subjetivo é estranho a esta definitiva concepção das cau-sas de justificação: é a natureza intrínseca da ação, objetivamente con-siderada, que a faz legítima em si e por si.104

Desde outro ponto de vista, Muñoz Conde defende que para justi-ficar uma ação típica não basta que se dê objetivamente a situação jus-tificante, sendo preciso, ademais, que o autor conheça essa situação e,inclusive, quando assim se exija, tenha as tendências subjetivas espe-ciais que a lei impõe para justificar sua ação.105

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102 Wanda de Lemos Capeller, ao avaliar o relatório da HRW/Americas de 1989, lembra:sobre las condiciones materiales de vida dentro de las cárceles, podemos leer que ‘en Rio,en particular, el sistema carcelário generalmente trata a los seres humanos peor que alganado recogido para ser llevado al matadero’. Y, dicen incluso que ‘la única forma efecti-va de protesta que tienen los presidiários para denunciar las pésimas condiciones en queviven es asesinar a un compañero de prisión. Solamente así consiguen atraer la atenciónde las autoridades (Capeller, Derechos Humanos y Cárcel, pp. 98-99). De igual modo, rela-ta Kiko Goifman que na capital mineira institucionalizou-se a ‘ciranda da morte’, justifi-cada pela escassez de espaço: em celas superlotadas é feito um sorteio, na maior partesimulado, de onde sairá o nome do preso que morrerá. Violenta estratégia para chamaratenção de autoridades para a precariedade institucional, a eficácia dessa conduta esbar-ra na banalização da morte (Goifman, Sobre o Tempo na Prisão, p. 15).

103 Hungria, ob. cit., pp. 267-268.104 Apud Hungria, ob. cit., p. 268.105 Muñoz Conde, ob. cit., p. 94.

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das é a exclusão da ilicitude do ato em face da recepção do direito deresistência como causa supralegal.112

As causas de exclusão (dirimentes ou exculpantes) positivadasrepresentam, em realidade, exercícios de direito. Contudo, ensinaPierangelli que as descriminantes não constituem sistema unívoco eformal que se exaure nos limites dos Códigos.

Seria errôneo, nota o autor, pensar-se que as justificativas conti-das no Código Penal estabelecem as fronteiras divisórias do lícito como ilícito. Podem representar uma delimitação expressa, mas não esgo-tam as causas de justificação. Assim, em todos os casos em que a con-duta não contradiz o direito, carece da essência antijurídica; tanto assimé, que não se apresentam antijurídicas quando subsumível em algumascausas de justificação que o Código Penal recolhe e regulamenta.113

As categorias supralegais de exclusão do delito, em nível de tipi-cidade (princípio da insignificância e princípio da adequação social),ilicitude (consentimento do ofendido) e culpabilidade (inexigibilidadede comportamento diverso), informam e possibilitam ao direito penalum grau de comprometimento e harmonia com a realidade social.

São teorias elaboradas a partir de recorte jurídico-sociológico,estruturadas em concepções materiais de racionalidade, que viabili-zam a inclusão e recepção de novas demandas sociais pelo direitopenal, restabelecendo o vínculo genético entre as instituições jurídicase a estrutura social.

Neste sentido, Frederico Marques, ao analisar a questão das cau-sas supralegais nos atos sem ofensa, sustenta: tal problema está liga-do ao das fontes das regras jurídico-penais, e, por isso, não nos pareceque se possa, a priori, repelir a possibilidade de justificativa supralegal.O legislador não é onisciente, não lhe sendo dado o dom de prever todasas hipóteses e casos que a vida social possa apresentar nos domínios doDireito Penal. Se as limitações do princípio da legalidade, impostas noEstado de Direito para salvaguarda do jus libertatis, não permitemsuprir as omissões e lacunas das normas penais incriminadoras amplian-do-se-lhes o campo de incidência através da analogia e dos instrumen-tos de heterointegração normativa (os costumes e os princípios gerais de

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112 Interessante discussão sobre a localização do direito de resistência entre as descrimina-tes ou exculpantes em Roxin, Derecho Penal, pp. 532-536, e Jacobs, Derecho Penal, pp.731-733. Na literatura nacional, em Santos, A Moderna Teoria do Fato Punível, pp. 264-267e Dotti, Curso de Direito Penal, p. 428.

113 Pierangelli, ob. cit., p. 56.

bens jurídicos fundamentais por inadimplemento estatal, não se podeaceitar tal assertiva. Advoga-se, pois, que a exigência de submeter ocidadão ao poder repressivo é despótica.

O direito de resistência, como leciona Canotilho, é a ultima ratio docidadão que se vê ofendido nos seus direitos, liberdades e garantias, poractos do poder público ou por acções de entidades privadas.110 Logo, ine-xigível seria submeter os atores aos efeitos penais e/ou administrativos.

No caso penitenciário brasileiro, a observação empírica permiteconstatar a brutal violação da legalidade constitucional pelos organis-mos públicos responsáveis pela execução da pena. O direito de resis-tência, representado pela politicidade das condutas desobedientes(fugas, rebeliões e motins), exsurge, pois, como possibilidade única, eúltima, de resgate dos direitos dos encarcerados.

A propósito, lembra Lenio Streck,111 ao apreciar a lei que estabe-leceu a obrigatoriedade do Estado em indenizar os familiares das pes-soas mortas ou desaparecidas em razão de atividade política contra oregime militar, que o próprio Estado reconhece, em certas ocasiões, odireito ao exercício da resistência, confessando formalmente práticasilegítimas contrárias ao Estado democrático de direito.

Com o labor investigativo da sociologia jurídica contemporâneadirecionada ao reconhecimento da existência de novos sujeitos e denovas fontes produtoras de juridicidade face à insuficiência das fontesclássicas, criam-se novas possibilidades para o resgate da cidadaniado preso. O paradigma garantista impõe à estrutura normativa a recep-ção destes direitos que muitas vezes contrapõem a legalidade estrita eo positivismo rasteiro.

A inventividade democrática em seu processo de criação, rupturae renovação de direitos e garantias, vincula o pensamento humanistaao reconhecimento de um sistema de necessidades humanas funda-mentais que, se violadas, independentemente do status jurídico dapessoa, legitimam a resistência. Somente poderá ser legítima, porém,se ancorada por motivação justificada no total e absoluto respeito àcidadania.

Em harmonia com os caminhos sugeridos pela teoria crítica dodireito, entende-se que a forma de justificar as condutas da massa car-cerária contra a situação de violência constante a que estão submeti-

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110 Canotilho, Direito Constitucional, p. 676.111 Streck, O ‘Caso Marighella’ e a Lei 9.140/95, p. 54.

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de tudo quanto possa ocorrer, de futuro, ao serem postos em vigor ospreceitos que a regra legislativa contém.116

Defendendo as fugas, rebeliões e motins como uma das poucasações possíveis, no universo prisional, para manifestação e publiciza-ção das reivindicações em virtude da obstaculização fomentada pelosmecanismos de (re)produção do poder, classificam-se tais atos comoformas de exercício de direitos.

Presumir a legalidade das ações administrativas em sede de exe-cução penal é padecer daquela mesma ingenuidade que supõe a cons-titucionalidade das leis pelo simples fato de serem Lei. Não só o laborlegislativo, mas, principalmente, o exercício do poder tende à ilegalida-de. Afirmava o jurisconsulto italiano Orlando que, quando o funcioná-rio age ilegalmente, perde sua qualidade; ele se assemelha a um priva-do qualquer, que moleste a outro.117 Nestes casos, sustentava RuiBarbosa, nenhum outro limite deverá o indivíduo lesado respeitar senãoaquele da legítima defesa, não se verificando nenhum dos dois elemen-tos constitutivos do delito: não o elemento intencional, visto que a resis-tência se determinou pela ilegitimidade do acto; não o elemento objecti-vo, porquanto não se tolheu um acto de justiça, antes se obstou à consu-mação de um acto injusto.118

Assim, os conflitos carcerários previstos nos tipos dos arts. 352 e354 do CP e nos dispositivos da LEP, quando justamente motivados,teriam (deveriam ter) sua ilicitude excluída. Apesar de típico, o fatoestaria sob a chancela da cláusula supralegal, tornando-se lícito.Passível de resposta penal restariam apenas as ações de violência pra-ticadas contra as pessoas durante os conflitos.

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116 Marques, ob. cit., p. 144.117 Apud Barbosa, ob. cit., p. 290.118 Idem, pp. 289-290.

direito), – o mesmo não sucede com os preceitos contidos na lei penalsobre a esfera dos atos sine injuria praticados no exercício do que ArturoRocco denominava de direito penal de liberdade.114

É natural, pois, que emerjam dinamicamente na sociedade, emcontraste com a produção e manutenção estática das normas penais,novos sujeitos de direito com novas demandas cujo teor democráticodas reivindicações deve ser recepcionado como instrumento de resolu-ção dos conflitos contemporâneos.

Importante salientar, contudo, que a recepção das causas suprale-gais limita-se exclusivamente à restrição da incidência do direitopenal, ou seja, são causas de exclusão da tipicidade (insignificância eadequação social), culpabilidade (inexigibilidade de comportamento)e, no caso, de ilicitude (consentimento do ofendido e direito de resis-tência). Nunca, porém, de inclusão.

A produção normativa não-institucionalizada nasce da ampliaçãodos espaços de participação democrática, dos espaços públicos não-estatais. Cabe, assim, filtrar negativamente estas demandas a partirde um rol principiológico valorativo para avalizar as condições de suarecepção e do seu reconhecimento pelo ordenamento jurídico.

Os limites da aceitação de reivindicações pelos novos sujeitos dedireito, localizados à margem do ordenamento jurídico como a ‘massacarcerária’, estão restringidos no valor tolerância. Wolkmer chamaatenção que excluem-se da legitimidade aqueles movimentos sociaisnão identificados com as ações civis e políticas justas, e com os interes-ses do povo marginalizado, oprimido e espoliado, bem como aqueles gru-pos associativos voluntários que não questionam a ordem injusta e aestrutura de dominação.115

Desde esta concepção, plenamente possível a inclusão das reivin-dicações dos presos na esfera da juridicidade, visto serem suas deman-das absolutamente legítimas, fundamentalmente porque seu escopo éo de efetivação da própria legalidade estatal sonegada.

Assim, olhar para o art. 23 do Código Penal e concluir, em segui-da, que ali estão previstas, de maneira exaustiva e perfeita, todas asformas de exclusão da ilicitude, é supor que os fatos sociais se amol-dam submissamente às categorias abstratas da legislação. Ou ainda,que a elaboração da lei sempre se realiza com perfeita e integral visão

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114 Marques, ob. cit., p. 143.115 Wolkmer, Pluralismo Jurídico, p. 289.

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Conclusões

Os violadores que mais verozmente ofendem anatureza e os direitos humanos jamais são presos.Eles têm as chaves das prisões.

Eduardo GaleanoDe pernas pro ar

01. Michel Foucault, na clássica obra ‘Vigiar e Punir’, percebecomo complexa a função social da punição. Para explicar sua dinâmica,desenvolve dois modelos repressivos que pendem entre os suplícios eas disciplinas, ou seja, entre o castigo e a vigilância, sendo transpassa-dos horizontalmente pelo objetivo da generalização da punição.

Com a extinção da melancólica festa das punições, em decorrên-cia do surgimento dos movimentos ilustrados humanistas, a teatralida-de física da pena é abandonada.

Todavia, sustenta Foucault que o verdadeiro objetivo da reforma, eisso desde suas formulações mais gerais, não é tanto fundar um novodireito de punir a partir de princípios mais eqüitativos; mas estabeleceruma nova economia de poder de castigar, assegurar uma nova distribui-ção dele, fazer com que não fique concentrado demais em alguns pontosprivilegiados, nem partilhado demais entre instâncias que se opõem; queseja repartido em circuitos homogêneos que possam ser exercidos emtoda a parte, de maneira contínua e até o mais fino grão do corpo social.1

A apropriação dos corpos dá espaço, no novo modelo de socieda-de (pré-industrial), às disciplinas. Surge, portanto, a necessidade denão punir menos, mas punir melhor; punir disciplinarmente sob a justi-ficativa da Defesa Social. A legitimidade desse discurso seria fornecidapela teoria geral do contrato, na qual o direito de punir deslocou-se davingança do soberano à defesa da sociedade.2

A justificativa contratualista permite conceber o criminoso comoum ser juridicamente paradoxal, pois violou o contrato por ele mesmofirmado, ou seja, participa ele próprio da sua punição.

O que se percebe na tese foucaultiana é a figuração do garantismoilustrado como um ritual de passagem entre os suplícios do modelo inqui-

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1 Foucault, Vigiar e Punir, p. 75.2 Idem, p. 82.

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minismo possibilitou. De Boétie, passando por Locke e Voltaire, ater-rissando posteriormente na matriz jurídico-penal de Beccaria, Verri,Feuerbach e Marat, intentou-se fundamentar uma teoria heteropoiéti-ca5 do direito e do Estado, consolidada a partir do processo de racio-nalização.

O processo histórico de reconhecimento de direitos fundamentaispossibilita ao Estado moderno limites e deveres de ordem interna(Constituições) e externa (direitos humanos), auferindo legitimidade àsnormas e à atividade do poder.

Ao configurar uma teoria limitadora do poder estatal na esferapenal, o garantismo fomenta, em igual ordem de importância, ativida-de positiva do ente público em prover ao máximo a sociedade no âmbi-to social. De teoria meramente restritiva, o garantismo contemporâneoconstitui-se numa duplicidade de ações e inações. Inação no que tangeà ingerência na esfera do privado (estrutura liberal), garantindo adiversidade e o pluralismo; ação no plano público, proporcionando aisonomia (estrutura social).

Importante frisar, ainda, que a teoria garantista parte de umavisão pessimista das relações de poder – não existe bom príncipe quese possa opor ao mau tirano. Amável ou cruel, ele, de qualquer modo,não é ao príncipe a quem o povo serve?6 Esta premissa é a chave de lei-tura desta teoria filosófico-política.

Admitir, porém, a premissa do Estado como entidade intrinseca-mente má não leva, inexoravelmente, a uma concepção otimista dohomem como bom selvagem. A propósito, esta discussão parece detodo trivial e sem maior relevância na atualidade, visto ser a naturezahumana extremamente contraditória, residindo aí o belo. O que amatriz garantista possibilita é a compreensão de que o indivíduo é‘humano, demasiado humano’, sujeito de virtudes e perversões, movi-do por desejos, pelas paixões e, quiçá, pela razão. E é efetivamentepara sublimar as paixões e proporcionar um grau aceitável de compo-sição dos conflitos sociais que nasce o Estado moderno, no qual o direi-to adquire importância como razão artificial.

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5 Consideram-se doutrinas heteropoiéticas todas as doutrinas segundo as quais a legitima-ção política do direito e do Estado provém de fora ou de baixo, isto é, da sociedade, com-preendida como soma heterogênea de pessoas, de forças e de classes sociais (Ferrajoli, ob.cit., p. 924).

6 Novaes, Experiência e Destino, p. 15.

sitorial e as disciplinas da criminologia etiológica. Adquire, pois, uma fun-ção de legitimação das teorias da pena nas sociedades industriais.

Os modelos dicotômicos formulados por Foucault polarizam corpo(suplício) e alma (disciplinarismo), sendo o discurso garantista clássi-co entendido como o elo de ligação entre a manifestação gótica dopoder e o correcionalismo adestrador dos ‘corpos dóceis’ – as luzes quedescobriram as liberdades inventaram também as disciplinas.3

É importante perceber, no entanto, que sempre as manifestaçõesdo poder penal repressivo voltaram-se para a modificação da ‘alma’, do‘ser’ do ‘Outro’. Mesmo no modelo jurídico inquisitorial os suplíciosadquiriam forma de expiação e redenção pela dor: o herege submetia-se à pena para reabilitar sua interioridade perante o Divino. Nos mode-los disciplinares, é no adestramento psíquico que a prática substancia-lista encontra guarida. Ou seja, historicamente, o sistema penal dire-cionou-se à interioridade do agente, punindo a pessoa por sua condi-ção diversa. A diferença entre os modelos normalmente ocorre em suafundamentação moral ou naturalista. Na primeira, o desviante aparececomo pecador; na segunda, enfermo.

02. No entanto, o iluminismo penal, ao contrário da proposição fou-caultina, foi potencializado no trabalho. Não se concebe no texto o dis-curso da ilustração como mero ritual de passagem das punições emnome do Príncipe às sanções defensivas da sociedade sob o enfoquedisciplinar; muito menos como arcabouço legitimante da transforma-ção do ius puniendi. A doutrina da ilustração representa, sob a óticagarantista, verdadeiro discurso sedicioso e marginal que (cor)rompeeste sistema. Estruturada na secularização e na tolerância, ergue abandeira do direito à perversidade.

Indubitável perceber, contudo, para que não se tenha uma visãoromântica do movimento ilustrado, que a progressiva consolidação daordem social e política burguesa soterrou esta virtude libertária do pen-samento iluminista que tinha teorizado o não intrometimento do Estadona consciência do cidadão, a intangibilidade da esfera intelectual emoral das pessoas, a sua imunidade não apenas diante da punição mastambém diante do controle do Estado.4

Muito embora presente este alerta, procurou-se demonstrar, noprocesso de construção do garantismo, o caráter de ruptura que o ilu-

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3 Foucault, ob. cit., p. 195.4 Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 489.

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âmbito das sociedades democráticas, limite. O direito, nesta perspecti-va, resultaria necessário como alternativa à política, justificando-seexclusivamente como técnica de minimização da violência e do arbí-trio. Frise-se, portanto, que não há, no interior da teoria garantista,(re)legitimação da pena. Legitima-se, ao contrário, o direito, entendidocomo regulador-inibidor da violência da sanção.

A constatação de Zaffaroni é extremamente pertinente: se puedenhacer esfuerzos normativos por contener su violencia, por reducirla undía para que desaparezca pero, de momento, no puede desaparecer laguerra como fenómeno de poder. Quizá con el poder punitivo podemospensar lo mismo: el poder punitivo no está legitimado y nos hemos ocu-pado de legitimarlo y con eso hemos separado el discurso de la realidaddurante ocho siglos.10

Visualizar realisticamente o fenômeno da pena, deixando de ladoa ‘esquizofrenia secular’ que busca metafisicamente a legitimação doilegítimo,11 permite ao jurista orgânico realizar diagnóstico preciso doproblema e, assim, elaborar discurso capaz de contrair o poder puniti-vo – podemos redefinir el derecho penal de la misma forma que el dere-cho internacional humanitário, y concebirlo como un discurso para limi-tar, para reducir, para acotar y eventualmente, si se puede, para cance-lar el poder punitivo. Con esto volveríamos, de alguna manera, a refun-dar un derecho penal liberal, una segunda versión del derecho penalliberal, no la del comienzo del siglo pasado, sino una versión mucho mássana en su fundamento.12 Desde esta perspectiva, há possibilidade derecuperar a capacidade ilustrada do direito penal sem incorrer no falsodilema justificacionismo versus abolicionismo.

Fundamental, pois, (re)fundar o direito penal a partir de uma teo-ria agnóstica da pena, teoria que denuncia como falso e irreal tudo oque foi dito sobre a punição, principalmente sua finalidade medicinal.

A assunção do caráter político da pena permite ao jurista conce-ber a minimização dos poderes arbitrários, criando rígidos critériospara a cominação (proporcionalidade e razoabilidade), aplicação (obje-tivação dos requisitos judiciais) e execução (jurisdicionalização absolu-

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10 Zaffaroni, Qué Hacer con la Pena? Las Alternativas a la Prisión, p. 04.11 Luiz Alberto Machado ensina que a pena é imposta como castigo, devendo estar livre de

preocupações metafísicas de prevenção do crime e ressocialização do criminoso. Aliás,percebe o autor que, sobre a hipócrita afirmativa da recuperação, são mantidos os maisdesumanos e medievais suplícios (Machado, Uma Visão Sistemático-Dogmática da Pena,p. 119).

12 Zaffaroni, ob. cit., p. 03.

03. O modelo de garantias, apesar de sua pretensão generalista,surge como modelo jurídico-penal de minimização da violência (institu-cional e/ou privada); interpretando o exercício do poder como perverso,tendente ao abuso, e permitindo a constante reafirmação dos direitosfundamentais.

Sob o signo da tutela do mais fracos – ofendido no momento dalesão, réu no momento do processo e condenado no momento da exe-cução –, o modelo minimalista intenta viabilizar arcabouço teórico deradical contração dos processos de criminalização, delineando umateoria jurídica de contração da violência da pena.

A perspectiva realista do poder viabiliza, de igual modo, um des-locamento do problema da cominação, aplicação e execução da penado espaço jurídico ao espaço político.

A identificação simbólica da pena com a guerra, orientação jáprescrita no século passado por Tobias Barreto,7 possibilita nova orien-tação ao direito e ao processo penal, principalmente em sua fase deexecução. Sustenta Zaffaroni que existe paralelo bastante grande entrea guerra e o poder punitivo: la guerra es un ejercicio de poder que estádeslegitimado incluso normativamente a nivel internacional. Sin embar-go, existe. Existe como dato de la realidad, como un hecho político, comoun hecho de poder.8 Chama atenção o autor de que se vive numa ver-dadeira ‘esquizofrenia secular’ ao tentar legitimar a pena, fundamen-talmente a pena privativa de liberdade. Assim, para la pregunta por elfin de la pena, tengo una respuesta que creo que a estas alturas del sigloy del milenio es necessario asumir. La pena es un fenómeno político, notiene absolutamente ninguna finalidad de caracter racional. La hemosinventado nosotros como necessidad para legitimar el ejercicio de poderpolítico verticalizador y corporativizador de la sociedad... Creo que apartir de considerar a la pena como un hecho de poder, como un hechopolítico, es que podemos reducir el ámbito del poder punitivo, postularla reducción del ámbito de poder punitivo como un objetivo políticosumamente claro.9

Em sendo fenômeno da política, a pena não afirmaria o direito;pelo contrário, simbolizaria sua negação, pois fundada na violência eda imposição incontrolada de dor e sofrimento. O caráter incontrolável,desmesurado, desproporcional e desregulado da política reivindica, no

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7 Barreto, Fundamentos do Direito de Punir, pp. 647-650.8 Zaffaroni, Sentido y Justificación de la Pena, p. 38.9 Zaffaroni, ob. cit., pp. 40-41.

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diferente’ que deve ser assegurado em toda sociedade verdadeiramentepluralista e democrática.14

Ingênuo pensar, entretanto, que a jurisdicionalização, por si só,nutre a execução penal das garantias necessárias. Além da tensãoexistente entre os sistemas de execução, outro obstáculo no interior domodelo jurisdicional inviabiliza o gozo pleno dos direitos pelo apenado,qual seja, a opção pela matriz processual inquisitiva. Não basta, comoafirmado, jurisdicionalizar a execução se esta (jurisdicionalização) épautada por modelo processual autoritário e se a este inquisitorialismonormativo é agregado a selvageria gótica da realidade penitenciária.

05. Durante a última década do século XX, principalmente após omassacre na Casa de Detenção, Complexo Penitenciário do Carandiru(SP), inúmeras ONG’s delinearam o perfil do cumprimento da pena pri-vativa de liberdade executada em regime fechado no Brasil.

Anistia Internacional, Confederação Nacional dos Bispos doBrasil, Human Rights Watch, Ordem dos Advogados do Brasil,Associação Brasileira de Imprensa, entre as mais relevantes institui-ções não governamentais, foram unânimes em relatar a brutalidade dosistema penitenciário. As carências materiais descritas eram/sãotamanhas que a simples presença de condições mínimas para manu-tenção de pessoas em regime de enclausuramento (v.g. material dehigiene, produto de limpeza, gêneros alimentícios, material farmacoló-gico, entre outros) eram/são percebidas pelos agentes do poder públi-co e pela comunidade carcerária como conquistas imensuráveis.

Não obstante o déficit material, sabe-se que o ambiente de enclau-suramento é naturalmente propício a conflitos (rebeliões e motins) e‘ações libertárias’ (fugas). O quadro de abandono administrativo, nes-tas circunstâncias, incrementa a violência e o sofrimento intrínseco àinstituição total, potencializando ainda mais a reação por parte da‘massa carcerária’.

Desde esta perspectiva, analisaram-se as condições de possibili-dade do ius resistentiae desde dois pontos: (1o) a criação de zonas deilicitude nos atos de resistência da ‘massa carcerária’ ao status quo; e(2o) a ineficácia dos instrumentos normativos, bem como da arte juris-prudencial, para assegurar direitos aos apenados.

Em realidade, notou-se que a estrutura do controle penal cria umsistema de (sobre)criminalização dos conflitos carcerários, partindo do

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14 Apud Franco, ob. cit., p. 106.

ta) da pena. Permite, finalmente, ao operador da execução, atuar cien-te da institucionalização deteriorante do cárcere, voltando sua açãopara neutralizar ao máximo o efeito da prisionalização (programa deredução de danos desde a ótica da vulnerabilidade).

04. A opção pelo rompimento teórico e ideológico com o modelo dotratamento advém, fundamentalmente, da imposição ilustrada de secu-larização do direito. A pena, desde uma perspectiva secularizada, nãopode servir como instrumento de reforço ou imposição de uma moral. Ainterioridade do sujeito está imunizada contra qualquer tipo de intro-missão estatal. O caráter e as inclinações pessoais não podem ser obje-to de valoração pelo direito penal.

Outrossim, ao advogar a constitucionalidade do princípio da seculari-zação, entende-se que o fundamento ressocializador da pena não foi recep-cionado pela Carta de 1988. Ou seja, o modelo do tratamento não preencheos requisitos mínimos para plena harmonização com a Constituição. A pre-servação da interioridade (verdadeira esfera do inegociável e inatingível) éprofundamente abalada pela imposição legal da recuperação ao condena-do, não podendo ser admitida sua assimilação pelo ordenamento desde umnecessário processo de filtragem constitucional.

Negar o fundamento ideológico da LEP não significa, contudo,descartar outros princípios decorrentes do seu texto como, por exem-plo, o da jurisdicionalização. Pode-se afirmar, inclusive, que o modeloressocializador é diametralmente oposto ao princípio da jurisdicionali-zação, visto que este obriga o Estado de Direito a reconhecer, no conde-nado, um cidadão – embora privado de alguns direitos e garantias –mantenedor de suas qualidades de ser humano.13

Desde a perspectiva exposta ao longo do texto, inconcebível obri-gar o sujeito a qualquer tipo de medicina, visto o resguardo do direitoà perversidade, o direito de ser e continuar sendo quem deseja seminterferências externas.

Notáveis as palavras de Anabela Miranda Rodrigues quanto aoproblema suscitado: o ‘tratamento’, quer seja realizado em liberdade,quer em caso de sua privação, é sempre um direito do indivíduo e nãoum dever que lhe possa ser imposto coativamente, caso em que semprese abre a via de uma qualquer manipulação da pessoa humana, redobra-da quando esse tratamento afeta a sua consciência ou a sua escala devalores. O ‘direito de não ser tratado’ é parte integrante do ‘direito de ser

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13 Machado, ob. cit., p. 114.

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A incapacidade técnica, porém, não pode gerar abstenção por partedo jurista, principalmente quando a omissão estatal instiga os conflitos.

Conjugando teoria política e teoria do delito, o recurso visualizadocomo idôneo para justificar as ações dos apenados foi o ius resistentiae.Desta forma, nos casos de inefetividade dos direitos em sede de execu-ção penal em decorrência da inação administrativa ou da incapacidadedos instrumentos de tutela, sustentou-se o direito de resistência comogarantia externa de proteção dos direitos fundamentais. Entendidocomo causa supralegal de exclusão da ilicitude, seria o mecanismolegítimo para resguardo dos apenados contra a sistemática violação deseus direitos fundamentais.

É que a realidade carcerária brasileira traduz uma incapacidadehistórica do poder público em efetivar os direitos dos cidadãos. Mais,indica a incompetência na racionalização dos desejos de vingança deuma sociedade videocratizada isenta de filtros capazes de ofuscar aemoção e negar a punição desenfreada/generalizada. Nesse momento,parafraseando Beccaria, tudo se torna incerto e duvidoso, visto que asgarantias são negadas pelo próprio sujeito tutelar.

O garantismo aparece, pois, como discurso sedicioso, de resistên-cia ao modelo defensivista de (re)produção da violência, negando fal-sas percepções da realidade e revitalizando a capacidade racionaliza-dora do direito.

No atual estado de selvageria gótica em que se encontram as pri-sões nacionais imprescindível resgatar o discurso iluminista.Necessário, pois, ‘ritornare indietro’, soterrando os postulados da cri-minologia etiológica e neutralizando as sementes antiliberais do velhodiscurso penal clássico, propugnando uma práxis garantista fértil àefetivação dos direitos fundamentais e que tenha como norte a minimi-zação do sofrimento das ‘classes convocadas’ pelo sistema penal.

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PosfácioTântalo no Divã

(Novas Críticas às Reformasdo Sistema Punitivo Brasileiro)

“Se crescem o poder e a consciência de si de umacomunidade, torna-se mais suave o direito penal; se háenfraquecimento dessa comunidade, e ela corre graveperigo, formas mais duras desse direito voltam a semanifestar” (Nietzsche, Genealogia da Moral, II, § 10).

01. O crime de Tântalo e a condenação aos infernos:o Tártaro

Homero relata, no Canto XI da Odisséia, a descida de Ulisses, filhode Laertes, da estirpe divina de Zeus, ao Hades, em seu intuito de con-sultar a alma do tebano Tirésias.

Após atravessar cachoeiras enormes e rios violentos, chegando denau na região das trevas espessas a qual ninguém jamais ousara alcan-çar, Ulisses se depara com as mais atrozes purgações, impostas ao maisterríveis crimes cometidos. Entre os inúmeros pecadores, incluindo suaprópria mãe, encontra “a mãe de Édipo, a bela rainha Epicasta, a quemo filho, assassino do pai, por esposa tomara.” Vê Tício, estendido ao solo,“(...) ao lado seu dois abutres vorazes laceravam-lhe o fígado pelas mem-branas rasgadas, sem que ele afastá-los consiga” (HOMERO: 1960, 168-176). Assiste Sísifo na vã tentativa de arrastar gigantesca rocha, poiscada vez que chegava ao topo da montanha, a pedra retornava ao pontoinicial, impondo novo e interminável esforço físico. Depara-se tambémcom Tântalo, governador da Frígia, descendente direto de Zeus, conde-nado pelos deuses a sofrer eternamente nos infernos.

Segundo a mitologia, em decorrência do amor e da estima que osdeuses nutriam por Tântalo, possuía livre acesso ao Olimpo, sendo con-vidado freqüentemente para participar dos festejos e banquetes. Noentanto, em determinada ocasião, abusa da amizade e confiança, train-do os imortais.

Inúmeras e controversas são as versões apresentadas para justifi-car sua condenação e a terrível pena imposta. A revelação de segredos

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ta. As árvores, carregadas de saborosos frutos e localizadas sobre suacabeça, igualmente não lhe permitiam saciar a fome, visto que seusgalhos, pela ação do vento, escapam das mãos na menor tentativa deaproximação. Ao adormecer, Tântalo sonha com assados e néctaresdispostos em uma imensa mesa, cujo banquete é preparado com exclu-sividade para o seu deleite. O sofrimento, nas palavras de Ulisses, éaterrador:

“Vi, também, Tântalo, e o modo por que ele, com pena indizí-vel, num lago estava metido, com água a bater-lhe no queixo. Sedesofria; mas era impossível jamais minorá-la, pois quantas vezes ovelho tentava beber e abaixava-se, era toda a água absorvida,escoando-se; negro surgia-lhe dos pés à volta do terreno, que sem-pre um demônio secava. Árvores altas com frutos vergavam-lhesobre a cabeça; eram pereiras, romeiras, macieiras de frutos opimosmais oliveiras viçosas e figos de gosto agradável. Mas quantasvezes o velho tentava com a mão alcançá-las, o vento forte as toca-va para o alto, até as nuvens sombrias.”(HOMERO: 1960, 176)

Não obstante inúmeras interpretações do mito reforçarem a idéiada severidade da pena pelo delito de parricídio, uma das leituras dodesatino de Tântalo visualiza em Pélope a representação dos desejosda carne, dos desejos do “humano, demasiado humano”. A convivên-cia com os deuses subtraíra de Tântalo a capacidade de se sentir mor-tal, impondo-se o desejo de permanecer na falsa condição de divinda-de. O retorno do Olimpo representaria uma queda. Assim, se o filhorepresenta os desejos naturais da carne, Tântalo, ao servi-lo, procuranegar a mundanidade do mundo para atingir a suprema condição deDeus. O desejo humano da divindade, porém, realça a fúria divina,sendo a sanção implacável.

02. Os pecados do Poder: a vivificação contemporâneado Tártaro

Comparada aos campos de concentração nazista, “a Casa deDetenção ganha em maldade, em sofrimento humano (...)” (REARDON:1999, 28).

A entrevista proferida em 1999 por Francisco Reardon para o perió-dico Caros Amigos parecia ser o diagnóstico intransponível do sistema

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divinos aos amigos mortais; o furto de néctar e ambrosía (bebida ecomida exclusiva dos deuses) para deleite com suas concubinas; ofalso juramento prestado a Zeus ao negar a posse do cachorro sagradofurtado por Pandareo do santuário divino e a ele confiado (em outra ver-são Tântalo teria prestado falso juramento a Hermes quando indagadosobre o desaparecimento do cachorro de Zeus); a negação da divinda-de de Apolo (Sol), afirmando tratar-se apenas de uma esfera de fogo; orapto do príncipe Ganimedes, cuja beleza fizera com que Zeus, enamo-rado, se convertesse em águia para raptá-lo e levá-lo ao Olimpo...

No entanto, de todos os delitos imputados o mais grave teria sidoa tentativa de enganar as divindades com intuito de colocar em dúvidasua capacidade de discernimento.

Embora as inúmeras faltas cometidas por Tântalo, gerando seve-ras desconfianças, os deuses aceitaram o convite de hospedagem emseu palácio durante suas andanças pelo reino da Ásia Menor. Motivadopela curiosidade de comprovar se seus hóspedes eram realmente divi-nos, o anfitrião sacrifica seu filho Pélope, servindo-o cozido aos convi-dados. Com exceção de Demeter – que abatido com a perda de sua filhaPerséfone (Plutão a havia raptado e a levado ao Hades) comera umpedaço do ombro do filho esquartejado –, todos os deuses perceberama artimanha, negando-se a participar do insólito banquete.

Por ordem de Zeus, o pequeno Pélope é ressuscitado, sendo oombro faltante substituído por outro de ouro. O sacrilégio de Tântalo épunido severamente: a sanção é o confinamento no imenso asilo dealmas que Plutão governava sob a terra. Os delitos (homicídio e sacri-légio) eram dignos da fúria das divindades, sendo o castigo a condena-ção ao Tártaro.

Plutão, filho de Saturno, herdou o mundo subterrâneo dos mortos.A ele cabia julgar e encaminhar os espectros ao Hades – reino formadopor uma imensa planície subterrânea na qual os que cometeram gran-des delitos em vida vagam e sofrem à espera da reencarnação. OTártaro, local mais profundo das entranhas da terra, é localizado abai-xo do Hades. Após ter sido o Hades dividido em compartimentos –Campos Elísios (local temporário de purgação) e Érebo (residência tam-bém temporária de sofrimento constante) –, o Tártaro se tornou o localde suplício dos grandes criminosos.

O julgamento impõe a Tântalo o eterno sofrimento da sede e dafome. Preso no abismo impenetrável do Tártaro a um imenso lago comágua ao pescoço, o condenado não pode saciar sua sede, pois cada vezque tenta beber o líquido seca, recusando-se a umedecer-lhe a gargan-

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crescera 13% em relação ao ano de 2002, chegando a um índice deencarceramento de 320 presos. O déficit funcional alcançava 43.659vagas. Dos 118.389 presos, 32.856 estavam em prisão provisória e74.580 cumpriam pena em regime fechado. Em Minas Gerais, namesma época, embora a taxa de encarceramento fosse menor (124 pre-sos), a situação não era diversa, pois eram 22.253 presos distribuídosem 5.059 vagas, gerando um déficit de 17.194 postos. Desta população,7.639 pessoas estavam presas cautelarmente e 10.275 cumpriam penano regime fechado.

O quadro retratado em São Paulo e Minas Gerais, que não escapasubstancialmente da realidade dos demais Estados da federação,demonstra, reconstruindo a fala de Reardon, ser possível algo mais queAuschwitz. A crueldade e o descaso da Administração Pública, doJudiciário e do Legislativo, poderes com capacidade direta de interven-ção nesta triste realidade, simplesmente demonstram que “os presidiá-rios comuns são as verdadeiras vítimas esquecidas das violações dosdireitos humanos no Brasil, onde os detentos são submetidos a condiçõese a tratamento extremamente severos, como por exemplo uma superlo-tação de 500%, o recurso rotineiro a violência e tortura pelos guardas,más condições de higiene e freqüente recusa de acesso a assistênciamédica, mesmo no caso de presidiários paraplégicos ou portadores dedoença terminal. Os incidentes de revolta, fuga e tomada de reféns sãofreqüentes, em parte resultante das pavorosas condições de detenção.Em várias ocasiões a Polícia Militar reage com a execução extrajudicialde detentos” (AI: 1998, 15).

A conduta omissiva e comissiva do(s) Poder(es) vivifica, na con-temporaneidade, os horrores do Tártaro, atestando ser a prisão o localmais abominável e de difícil acesso aos “humanos”.

A atividade legislativa da década de 90, em muito potencializadapelo conjunto de normas constitucionais penais programáticas queimpuseram ao legislador ordinário uma feroz produção de Leis, ampliouas hipóteses de criminalização primária (seleção de condutas delitivas)e enrijeceu o modo de execução das penas, na grande maioria dasvezes indo além do permitido constitucionalmente (inconstitucionali-dade por excesso). O resultado desta experiência legiferante foi a dila-tação do input do sistema e o estreitamento do output. Assim, parale-la à criação de inúmeros novos tipos penais, normalmente dispostosem Leis penais especiais, houve alteração na modalidade de cumpri-mento das sanções, sobretudo pela inovação introduzida pela Lei8.072/90, no que tange ao aumento de penas, à impossibilidade de pro-

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penitenciário brasileiro. Os relatos sobre a crueldade no trato dos pre-sos (provisórios e condenados definitivamente) no Complexo doCarandiru de São Paulo, naquele momento antecedente à sua desativa-ção, sugeria que a “bomba relógio” chegava ao seu limite máximo decontenção. O sentimento generalizado das pessoas que trabalha(va)m,direta ou indiretamente com a execução penal, era de que, se medidasurgentes não fossem tomadas, o sistema não suportaria, culminando emeclosão de violência similar àquela que, no mesmo local, levara ao exter-mínio de 111 presos pelos órgãos do Estado (“Massacre do Carandiru”).

À entrevista de Reardon somava-se o impacto causado nos orga-nismos internacionais de tutela dos direitos humanos de inúmeros rela-tórios sobre a miséria da execução da pena no Brasil. A AnistiaInternacional, após averiguar in loco 33 instituições em 10 Estados,sustentava que o descaso do Poder Público com o sistema penitenciá-rio “inflige terríveis violações dos direitos humanos a muitos daquelesque passam pela sua engrenagem” (AI: 1999, 04). A Human RightsWatch em seu relatório concluía que “as condições carcerárias no Brasilsão normalmente assustadoras” (HRW: 1998, 01).

Ao final da década de 90 era notório o crescimento da populaçãocarcerária nacional, sendo que a omissão estatal em investir na infra-estrutura fornecia sérios indícios de que a situação tendia a ficar cadavez mais grave.

O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP)divulgava, em 1995, após superar as imensas dificuldades decorrentesda inexistência de dados palpáveis sobre a população carcerária nosEstados, o Censo Penitenciário Nacional. Naquele momento, as fontesoficiais indicavam que o número total de presos no Brasil era de148.760, dos quais 28,4% eram presos provisórios. O índice de encarce-ramento – razão entre o número de presos e o índice populacional(100.000 habitantes) – chegava a 95,5. Em estabelecimentos inadequa-dos, 29,8% dos apenados cumpriam pena; no regime fechado, 75,1% erao número de pessoas presas; o déficit funcional chegava a 75.887vagas. Em 1997, este déficit subira para 96.010, indicando que em cadavaga prisional havia 2,3 pessoas – levando-se em conta os sempre oti-mistas números oficiais e os criticáveis critérios de consideração daexistência de uma vaga, pois normalmente não são os legalmente esta-belecidos no art. 88, parágrafo único, ‘b’ da LEP (06 m²/preso).

Dados atuais corroboram o diagnóstico do crescente aumento dastaxas de encarceramento. O Departamento Penitenciário Nacional,divulgando dados de junho de 2003, informa que a população carcerá-ria do Estado de São Paulo, o qual possui 23% dos apenados do país,

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sídios por força do excesso de execução, a burocratização na análisedos incidentes executivos e a criação de critérios ultra legem (meta-regras) para apreciar os direitos públicos dos apenados são exemplosconcretos de como o Judiciário tem sido partícipe na efetivação dosuplício carcerário nacional.

A terceira aresta da estrutura de vitalização do Tártaro na contem-poraneidade é aquela fornecida pelo Executivo. Não apenas pela bana-lizada crítica da falta de investimentos em pessoal e infra-estrutura(omissão administrativa), o Poder Executivo, comissivamente, atravésdas Secretarias de Estado de Justiça e de Segurança Pública, tem incre-mentado o “Estado penitência”. Se é certo que investimentos mínimosna melhoria das casas prisionais trariam uma qualidade de vida domés-tica menos insalubre aos apenados, igualmente é correto sustentar que,em relação às políticas disciplinares, a omissão estatal produziria efei-tos menos perversos do que os alcançados com sua ação terrorífica.

É que durante a década de noventa, correlato ao incremento puni-tivo operado pelas políticas criminalizadoras adotadas pelo Legislativoe legitimadas pelo Judiciário, o Poder Executivo, sobretudo os esta-duais, através de Portarias, tem (re)significado a idéia de disciplina tra-zida na Lei de Execução Penal. Desta forma, em que pese as críticas aofalso humanismo da Nova Defesa Social – substrato ideológico queinformou a elaboração da Lei penitenciária – serem variáveis possíveise precisas, nas atuais acepções auferidas à pena, o gosto romântico doilusório humanismo parecer (re)nascer como triunfo não gozado.

03. Do Tártaro empírico ao Tártaro normativo:o processo de (re)significação da disciplina

Em meados do primeiro semestre de 2003, após a divulgação pelaimprensa de projetos de modificação da estrutura normativa da políti-ca penitenciária, os principais institutos nacionais de estudos da vio-lência – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), InstitutoTransdisciplinar de Estudos Criminais (!TEC), Instituto Carioca deCriminologia (ICC), Grupo Brasileiro da Associação Internacional deDireito Penal (AIDP), Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD),Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ) e Instituto de Ciências Penaisde Minas Gerais (ICP/MG) –, mobilizaram-se na criação do MovimentoAntiterror (MAT). Como objetivo principal, o MAT procurava “sensibili-zar os poderes do Estado, os administradores e trabalhadores da justiça

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gressão de regime, à maximização do prazo para livramento condicio-nal e a conseqüente obstrução de comutação e indulto aos delitos taxa-dos de hediondos.

Não obstante, em matéria processual penal, a consolidação dainquisitorialidade do Código de Processo Penal (CPP) fomentou umalargamento da criminalização secundária (incidência das agênciaspenais). Desta forma, não apenas as possibilidades de prisão cautelarforam (re)estruturadas – v.g. prisão temporária (Lei 7.960/89) e novasespécies de inafiançabilidade e vedação de liberdade provisória (Leis7.716/89, 8.072/90, 9.034/95 e Lei 9.455/97) –, como foi criada, em abso-luta ofensa ao princípio constitucional da presunção de inocência,modalidade de execução de pena sem o trânsito em julgado de senten-ça condenatória (Lei 8.038/90).

Ao excesso do legislador é acrescido o terrível “pecado Judiciá-rio”. Se padece o poder derivado de ter produzido inúmeras normasque maximizaram o sistema punitivo, em sua maioria em ofensa explí-cita aos dispositivos da Constituição, esta culpa deve ser dividida, poiso Legislativo encontrou no Judiciário conveniente cúmplice. Como sesabe, determinados princípios constituem a base do Estado Democrá-tico de Direito, de forma que ao legislador não é defeso escolher alea-toriamente, como se possuísse “carta branca”, a matéria sobre a qualdeseja legislar, ou seja, os princípios garantidores regulam esferas quenão podem ser objeto de deliberação (esfera do indecidível). Em haven-do abuso por parte do Poder Legislativo, o sistema de freios e contra-pesos impõe ao Judiciário a tarefa de deslegitimar normas que ofen-dam a principiologia estuturante do ordenamento jurídico através dosmecanismos de controle de constitucionalidade (direto ou difuso). Noentanto, ao contrário do esperado, o Judiciário tem se mostrado con-descendente com os abusos do Legislativo, omitindo-se da fiscalizaçãode constitucionalidade das Leis penais. Não apenas no que diz respei-to ao controle concreto, mas principalmente em relação ao difuso, oJudiciário tem descuidado da necessária limitação dos excessos nor-mativos. O Legislador, neste quadro, não encontra qualquer freio à vio-lação da Constituição. Pelo contrário, encontra no Judiciário guarida doseu produto inquisitivo.

Não é difícil compreender, portanto, a co-responsabilidade dosoperadores do direito no caos do sistema penitenciário. A determina-ção do regime integral fechado pela Lei dos Crimes Hediondos, a bana-lização no decreto das prisões cautelares, a não aplicação das penassubstitutivas à prisão, a omissão no que tange à intervenção nos pre-

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com o crime. Assim, o elo do advogado com o criminoso passou a refor-çar, no senso comum teórico do homem da rua (every day theories), aobrigação de restringir os “exorbitantes” direitos do preso (provisórioou condenado) possibilitados pela “frágil” e “condescendente” legisla-ção penal e processual penal em vigor.

O fértil solo discursivo, propício para irromper a legislação depânico, estava cultivado: cultura de emergência fundada no aumentoda violência; vinculação da impunidade ao “excesso de direitos egarantias” dos presos (provisórios e condenados). A resposta contin-gente seria conseqüência natural; e em 02 de dezembro de 2003 épublicada a Lei 10.792, alterando a LEP e o CPP.

Não obstante consolidar alguns posicionamentos jurisprudenciaise doutrinários de vanguarda que vinham sendo adotados por magistra-dos com compromisso constitucional no que tange à forma dos atos nosprocessos de conhecimento e execução penal, o Poder Público reiterou,no apelo simbólico às Leis de ocasião, sua incapacidade de gerir a crisena segurança pública, intentando entorpecer a sociedade civil com res-posta inepta. Nesta ação meramente cênica, algumas migalhas servemcomo mecanismo retórico para minimizar os efeitos perversos da Lei10.792/03. Na verdade, porém, o recente texto delimita uma forma deexecução da pena totalmente inédita, consagrando em Lei o suplíciogótico vivido pelos condenados nos presídios brasileiros. Se anterior-mente havia possibilidade de desqualificar a desumana realidade car-cerária nacional invocando a LEP, com sua alteração, a tragédia é sub-sumida ao texto. Logicamente não se está a referir a eventual legitimi-dade que a Lei 10.792/03 auferiria à péssima qualidade de vida domés-tica (infra-estrutura material) imposta aos penitentes. Certamente olegislador não encontraria palavras para descrever a fétida realidadeprisional; não teria coragem de redigir texto cujo conteúdo produzissea adequação da Lei ao cotidiano de ostentação do sofrimento; não rea-lizaria o ato de desvelar o gozo da “opinião publicada” ao ver seusexcluídos penarem corporalmente. A Lei sempre foi um não-lugar; algoque se projeta como conquista; algo que não se tem mas que se dese-ja; algo que inexiste mas que projeta uma ação. A Lei 10.792/03, aoincorporar o RDD na (des)ordem jurídica nacional e alterar a LEP, vincu-lando o ingresso do preso no regime diferenciado quando apresentaralto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou dasociedade (art. 52, § 1o, da LEP) ou quando recaiam fundadas suspeitasde envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações cri-minosas, quadrilha ou bando” (art. 52, § 2o, LEP), manifesta o assenti-

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penal, os meios de comunicação, as universidades, as instituições públi-cas e privadas, e os cidadãos de um modo geral, para a gravidade huma-na e social representada por determinados projetos que tramitam noCongresso Nacional e que pretendem combater o aumento da violência,o crime organizado e o sentimento de insegurança com o recurso a umalegislação de pânico” (MAT: 2003, 07).

O principal fator que mobilizou o MAT foi a tramitação no Congres-so Nacional de projeto de Lei que instituía o Regime Disciplinar Diferen-ciado (RDD): normativa cujo conteúdo criava, no caótico sistema peni-tenciário brasileiro, uma forma absolutamente diversa de apartação dapessoa presa rotulada como ameaça à segurança social. O conteúdo doprojeto apresentado causou espanto à comunidade jurídica visto a ado-ção explícita de formas absolutamente desumanas de execução da penaprivativa de liberdade, especialmente aquela cumprida em regimefechado. Se a Lei 8.072/90 produzira o incremento nos níveis de encar-ceramento e a barbarização do sentido normativo-humanitário previstona LEP, a modalidade proposta de cumprimento da sanção surpreenden-temente gerava espécie de regime integralmente fechado plus.

O projeto fora baseado em Portaria que o Governo do Estado deSão Paulo havia instituído para “controlar” uma série de incidentes emseu sistema carcerário (fugas, rebeliões e motins) durante o ano de2002. A Portaria nominara o RDD, criando inúmeras restrições aos direi-tos dos presos considerados perigosos. O direito de defesa, p. ex., foilimitado sobremaneira, inclusive no que concerne ao contato do presocom seu advogado.

Apesar da absoluta ilegalidade do ato, sobretudo porque a LEPdelega ao Poder Público estadual apenas a atribuição de disciplinarsanções e procedimentos de apuração de faltas leves e médias, restrin-gindo, pelo princípio da legalidade (art. 45, LEP), ao Legislativo federala disciplina dos fatos considerados como falta grave (art. 49, LEP), oRDD obteve ampla aplicação na condução da execução da pena dossuspeitos de participação em organizações criminosas.

Com forte apoio da imprensa, o Parlamento foi instigado a univer-salizar o regime diferenciado através de alteração na legislação federal.O projeto de generalizar o novo regime penitenciário atingiu seu ápicequando os veículos do mass media passaram a difundir e vincular aimagem do advogado, e subliminarmente a idéia de direitos e garan-tias, com a do réu/condenado preso – principalmente nos casos de cri-mes graves como tráfico ilícito de entorpecentes e tráfico de armas –,comunicando a falsa associação entre direito de defesa e conivência

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dualmente a minimização dos direitos de defesa dos apenados nos pro-cedimentos na averiguação das faltas disciplinares, gerando sériasirregularidades na configuração da conduta punível pelos ConselhosDisciplinares, em face da irrefutabilidade de determinadas hipóteseslevantadas pelos órgãos de segurança. Talvez um dos exemplos maisnotórios de condutas reivindicatórias pacíficas que acaba(va)m sendodefinidas como atos de “subversão da ordem e da disciplina”, passí-veis, pois, de sanção disciplinar por falta grave, é a prática da greve defome. Não por outro motivo, em casos de movimentos reivindicatóriosnão-violentos, a Portaria 202, de 18 de dezembro de 2001, editada pelaSecretaria de Estado da Justiça e da Segurança do Rio Grande do Sul(SJS/RS), no intuito de minimizar os efeitos perversos propiciados pelaterminologia da LEP, determinou que “toda pessoa presa terá direito aexpressar suas reivindicações, individual ou coletivamente, de formapacífica” (art. 7o, § 1o) e que “a ‘greve de fome’, quando legítima, nãoserá considerada falta disciplinar” (art. 7o, § 2o).

Em sentido diametralmente oposto à concretização do princípioda legalidade, que imporia pela taxatividade o fechamento dos tiposabertos da LEP, a Lei 10.792/03 inclui categorias igualmente dúbias,gerando duplo efeito. Em primeiro lugar, deflagra efeito normativo noque tange à interpretação das faltas, sobretudo as graves. Assim, seanteriormente a falta de precisão decorrente da ambigüidade termino-lógica favorecia o arbítrio administrativo, com o novo texto a tendênciaé sua maximização. Por outro lado, produz efeito na gestão da políticapenitenciária, visto a importância auferida à ordem, à disciplina e àsegurança do estabelecimento prisional, não apenas reforça a ideologiadefensivista, mas ressignifica o sentido da execução, voltada na con-temporaneidade à contenção dos “socialmente indesejáveis”, dos “cor-pos excedentes”. Abdica-se, pois, vez por todas, do ilusório e românti-co fim ressocializador pregado no Estado Social em prol de uma admi-nistração das “massas inconvenientes”.

Embora seja clara a inconstitucionalidade da Lei, não apenas porferir o princípio constitucional da legalidade com a utilização abusivade termos vagos mas especialmente pela ofensa ao princípio da huma-nidade das penas quando prevê a submissão do preso ao regime dife-

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“subversão da ordem e da disciplina” condutas direcionadas: (a) adesão e associação àviolência; (b) manifestação violenta, individual ou coletiva, de reivindicações; (c) portede armas; e (d) violação da integridade física e moral e a da liberdade sexual de pessoaque se relacione (CARVALHO: 2002, 333).

mento dos Poderes Públicos com práticas arbitrárias, regularmentetoleradas nas penitenciárias nacionais.

A ressignificação normativa da disciplina consiste na possibilida-de de impor o regime diferenciado a determinados presos não apenaspela prática de falta grave, situação que por si só é absolutamente arbi-trária, mas, sobretudo, pela adjetivação igualmente aleatória de suaconduta pessoal no cárcere ou fora dele.

As sanções previstas no art. 52 da LEP são resultado de procedi-mento administrativo disciplinar (PAD) de averiguação de falta grave,regulada e taxativamente disposta no estatuto penitenciário. Antes davigência da Lei 10.792/03, a sanção disciplinar imposta à falta graveconstituía na suspensão de direitos e isolamento na própria cela (art.57, § único), não podendo esta medida ultrapassar 30 dias (art. 58).Com a nova Lei, ao art. 53 foi incluído inciso no qual se prevê a inclu-são do “preso perigoso” no regime disciplinar diferenciado, indepen-dente da apreciação formal de falta, ou seja, mesmo sem a prática defalta grave regularmente apurada pela administração da casa e poste-riormente homologada pelo juiz, se o apenado apresentar as condiçõesprevistas nos parágrafos 1o e 2o do art. 52 da LEP, há possibilidade deingresso no regime diferenciado. Igualmente redesenhado foi o art. 58,excepcionando-se a regra dos 30 dias como lapso temporal máximo.Sancionado o preso por falta grave ou sendo-lhe atribuído o rótulo de“perigoso”, poderá ser submetido ao regime diferenciado com asseguintes características: (a) duração de 360 (trezentos e sessenta)dias; (b) recolhimento em cela individual; (c) visitas semanais de duaspessoas, sem contar crianças, por 02 (duas) horas; (d) saída diária, por02 (duas) horas, para banho de sol.

Desde a edição da LEP em 1984, tem-se criticado o estatuto pelautilização, na definição de faltas graves, de termos vagos e genéricos,sem precisão semântica, que acabam por permitir ao agente peniten-ciário o uso de meta-regras em sua significação – v.g. incitar ou partici-par de movimento para subverter a ordem e a disciplina; descumprirobediência ao servidor ou o respeito a qualquer pessoa com quem devarelacionar-se; não executar trabalho, tarefa e ordens recebidas. A téc-nica legislativa utilizada no ambiente carcerário serviu historicamentepara o uso arbitrário dos poderes pelos agentes prisionais, os quais uti-liza(va)m-se da imprecisão terminológica para adjetivar condutasbanais de presos incômodos.1 A volatilidade dos termos produziu gra-

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1 Com intuito de cerrar a tipicidade penitenciária aberta, grupo de trabalho integrante decomissão para reforma da legislação penitenciária gaúcha propôs como definição de

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sanção: um sexto da pena no regime anterior. O pressuposto subjetivo,determinado pelo mérito do condenado. Previa, ainda, a LEP, no pará-grafo único do art. 112, a necessidade de o preso ser submetido àComissão Técnica de Classificação (CTC), encarregada de exarar pare-cer, e, quando necessário, ao exame pericial do Centro de ObservaçãoCriminológico (COC). Ambos documentos, porém, consistiam, quasena unanimidade dos casos, em prognósticos de não-reincidência e/oumedição do grau de adaptabilidade e arrependimento.

Em relação ao livramento condicional – etapa do sistema progres-sivo e momento importante na lógica do sistema de individualizaçãocientífica (art. 83 do Código Penal) –, a duplicidade de requisitos igual-mente se impunha, quais sejam: (a) objetivo: vinculado ao tempo –cumprimento de um terço (condenado primário) ou metade (reinciden-te) da pena – e à reparação do dano; e (b) subjetivo: relacionado com o“comprovado comportamento satisfatório”. Outrossim, o parágrafoúnico do art. 83 do Código Penal previa, em caso de condenação porcrime doloso, cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, que aconcessão do livramento condicional ficaria “subordinada à constata-ção de condições pessoais que façam presumir que o liberado não volta-rá a delinqüir”. Não obstante, conforme determinava o art. 71, inciso I,da LEP, seria necessário parecer opinativo do Conselho Penitenciário.

O comportamento carcerário satisfatório, apesar de ser requisitosubjetivo, sempre esteve vinculado à comprovação processual, deforma a estabelecer objetivação do critério. Doutrina e a jurisprudêncianacional fixaram como elemento a indicar o bom comportamento carce-rário a ausência de registro, no prontuário do preso, de sanção por faltagrave devidamente homologada pelo juiz competente. Ao magistrado,caberia avaliar se o procedimento de apuração seguiu os requisitos for-mais e materiais do devido processo legal (ampla defesa, contraditório,recurso, assistência de advogado et coetera). Em face de inexistênciade previsão do tempo em que a falta grave continuava produzindo efei-tos, em decorrência da interpretação sistemática dos decretos deindulto, suas implicações foram restringidas em 12 (doze) meses, i.e.,para ser confirmado o bom comportamento carcerário do preso serianecessário o não cometimento de falta grave nos últimos doze meses.

A estrutura meritocrática da LEP, porém, era potencializada pelapresença de requisito subjetivo que nos casos de crimes graves ganha-vam especial valor. Se a ausência de falta grave comprovava comporta-mento satisfatório no que diz respeito à adequação do condenado àsregras prisionais e a sua boa relação de convivência com os demais

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renciado – a manutenção em isolamento por até 360 dias não podereceber outra denominação senão a de pena cruel, vedada pela CartaConstitucional (art. 5o, inciso XLVII, CR)2 –, o temor que se inaugura éo de que nossos Tribunais, a começar pelas Cortes Superiores (STF eSTJ), inebriados pelos discursos de emergência, não utilizem os meca-nismos de controle de constitucionalidade e, por conseqüência, aco-lham a barbárie posta em Lei como se fosse mera técnica pedagógicade isolamento.

O Tártaro sancionatório no contemporâneo parecer ser o retrato daexperiência punitiva brasileira: longe de projetar mecanismos constitu-cionais de redução do sofrimento imposto nas prisões, a Lei dobra apunição com a ressignificação da disciplina e da segurança, condenan-do o preso, para além da privação da liberdade, à inexaurível situaçãode penúria.

04. Tântalo e o saber ‘psi’: a normatização dosistema disciplinar-pedagógico

O sistema progressivo-regressivo, fundado na idéia de (de)méritopessoal do apenado, foi eleito em 1984 como o instrumento hábil paraatingir a finalidade apregoada à execução da pena: a ressocialização docondenado. Típico de um modelo estatal intervencionista, o escopo res-socializador legitimou a ação dos aparelhos punitivos na avaliação eformatação do “ser” do preso. Assim, o preso ressocializado, no discur-so conformador da LEP, passa a ser aquele adequado às regras do esta-belecimento carcerário e ao programa individualizador, ou seja, o sujei-to disciplinado e ordeiro que se submete e responde satisfatoriamenteao “tratamento penal”.

A técnica estabelecida para averiguar o grau de ressocializaçãoseria a capacidade de o condenado atingir condições de descarcera-mento progressivo (progressão de regime) ou, contrariamente, pelanecessidade de reencarceramento (regressão de regime). Para alcançaro gozo dos direitos de progressão previstos na LEP, o apenado deveriacumprir requisitos de ordem objetiva e subjetiva, segundo a redação doart. 112. O critério objetivo foi vinculado ao tempo de cumprimento da

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2 Não é necessário ser ‘expert’ da área da saúde para notar que “o isolamento celular diu-turno de longa duração é um dos instrumentos de tortura do corpo e da alma do condena-do e manifestamente antagônico ao princípio constitucional da dignidade humana” (MAT:2003, 09).

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tema de otimização do positivismo criminológico que deixou os direitosdos apenados reféns de um discurso dúbio que pendia entre as noções,abertas e isentas de significado, porém altamente funcionais, de disci-plina e ressocialização. Outrossim, agregava-se sistema administrativoaltamente burocratizado que substancialmente se sobrepunha à juris-dicionalização da execução da pena.

Com a edição da Lei dos Crimes Hediondos em 1990, um novo con-torno começou a ser dado no sistema de encarceramento, dado ao enri-jecimento das regras executivas e à ruptura no sistema progressivo.Além do aumento expressivo das penas às condutas classificadascomo hediondas (art. 6o c/c art. 9o da Lei 8.072/90), duas alteraçõessubstanciais no que diz respeito à execução foram significativas: oestabelecimento do regime integralmente fechado e o aumento dolapso temporal para o gozo do livramento condicional.

Em realidade, se se primar pelo rigor acadêmico, a Lei 8.072/90não vedou absolutamente a progressão de regime aos delitos hedion-dos, ou melhor, a vedação da progressividade imposta atingiria apenasos reincidentes específicos em crime hediondo (art. 83, inciso V, in fine,do CP). Em sendo o livramento condicional parte integrante do sistemaprogressivo, e em não havendo obstaculização, mas aumento de lapsotemporal, a Lei apresentaria uma contradição interna entre os artigos2o, § 1o (que veda a progressão de regime), e art. 5o (que aumenta paradois terços o requisito temporal para o livramento).

Todavia o que mais chama atenção na edição da Lei 8.072/90 é suaderivação constitucional, pois o legislador ordinário nada mais fez doque cumprir o comando do art. 5o, inciso XLIII, da CR. A natureza pro-gramática da norma constitucional auferiu legitimidade ao legisladorpara elaboração da Lei dos Crimes Hediondos. Lógico que o fato de odispositivo constitucional ter sido cumprido, por si só não imuniza areferida Lei dos vícios de inconstitucionalidade. A propósito, tenho queo principal argumento de sua inconstitucionalidade é derivado do des-comedimento legislativo, visto que o dirigismo constitucional-penaloptou pela vedação exclusiva aos crimes considerados hediondos dafiança, graça e anistia, não sendo referida a questão da progressivida-de ou aumento de penas. Como o legislador ordinário não possui deli-beralidade plena sobre a matéria legislativa derivada, conforme vistoanteriormente, a imperfeição da Lei é substancialmente no que se cir-cunscreve ao excesso, não obstante legítimas as críticas relativas àofensa aos princípios da individualização, da humanidade das penas e

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apenados e com os agentes penitenciários, os exames criminológicos,que atestariam o grau de ressocialização do preso, indicariam ausênciade “conflitos internos”. O mérito representaria o bom convívio com aspessoas com quem deveria relacionar-se (com comportamento) e ates-taria a sadia relação do apenado consigo mesmo (adaptabilidade),sobretudo com a internalização dos limites estabelecidos pela Lei(prognóstico de não reincidência) obtida pelo arrependimento (cons-ciência do delito). Definidos, pois, os critérios processuais de compro-babilidade do mérito: (a) ausência de PAD quanto ao bom comporta-mento; e (b) parecer técnico (CTC) e/ou laudo criminológico (COC) noque diz respeito ao grau de ressocialização.

Os laudos e pareceres criminológicos que ingressavam no proces-so de execução penal como prova pericial adquiriram, no passar dosanos, tamanha importância que acabaram (re)criando um sistema deprova tarifada, a qual, embora não vinculasse a decisão do juiz porforça da adoção do sistema do livre convencimento (art. 157 e art. 182do CPP), instituia armadilha intransponível, mormente nos casos depareceres desfavoráveis. Outrossim, por força de ser juízo empirica-mente indemonstrável (“possibilidade de vir a cometer delito no futu-ro”), as perícias obstaculiza(va)m o direito ao contraditório, maculandoo devido processo legal.

Em que pese a deturpação material gerada no sistema de prova ea conseqüente revivificação da prova tarifada com a adoção de valoresirrefutáveis, a crítica aos laudos foi historicamente direcionada à ilegi-timidade dos técnicos realizarem julgamentos morais dos presos. Acategoria ressocialização, encarada como signo de valoração da vidado “periciando”, invariavelmente cedeu espaço à violação de sua inti-midade, vista a possibilidade de julgamento da história pessoal e dasopções de vida do “objeto” de análise. Veja-se, p. ex., que, se eventual-mente o preso silenciou ou negou o delito durante o processo de conhe-cimento, em caso de condenação tais posturas perante os técnicosrevelariam a incapacidade de arrependimento e a torpeza moral, con-tra-indicando o direito postulado.

O poder das perícias, em absoluta ofensa aos direitos básicos detutela da intimidade e da vida privada (secularização), fora pautadonuma inversão ideológica do discurso dos direitos humanos, dado aofato de que superficialmente aparentava a humanização dos fins dapena. Não mais intimidar ou reprimir, mas criar condições de que opreso se arrependa e não volte mais a delinqüir. No entanto, diferente-mente do divulgado pelo discurso oficial, notou-se a criação de um sis-

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ordenamento executivo, redesenhando-se, por conseqüência, o papelde todos os sujeitos processuais (juiz, ministério público, defesa, con-selho penitenciário, técnicos, agentes e diretores).

O debate entre as partes (acusação e defesa) em contraditório,apresentando e refutando teses, pretende derrogar os procedimentosdesjurisdicionalizados que tendiam a se sobrepor na execução, dando-lhe, embora a incorporação normativa, feição administrativa (adminis-trativização material). Desta forma, entendeu a reforma ser necessárioreestruturar o modelo, aproximando-o da estrutura do processo deconhecimento.

A reforma redesenha a pesada e burocrática máquina executivo-penitenciária, alterando substancialmente o papel do “criminólogo”.Ao técnico penitenciário, segundo a nova redação do art. 6o da LEP, épossibilitado um ambiente de criação de condições minimizadoras dosefeitos perversos da sanção penal (paradigma da vulnerabilidade), emdissonância com o histórico papel de tarefeiro redator de laudos deprognoses delitivas (paradigma etiológico). Cabe, portanto, às CTC’s,a exclusiva missão de elaborar programas individualizadores e acom-panhar o desenvolvimento da execução da pena privativa de liberdadee restritiva de direito. No que diz respeito aos COC’s, seu trabalho(perícia técnica) fica restrito à obtenção de elementos mais precisosàquela individualização, no caso de condenado ao regime fechado.Inexiste, portanto, na nova configuração da LEP, espaço para que lau-dos e pareceres vinculem a decisão judicial, sobretudo porque deixamde ser peça processual a informar o incidente executivo. Mais: pensoque há verdadeira vedação às CTC’s e aos COC’s de produção de mate-rial opinativo destinado à instrução do incidente executivo, seja pro-gressão de regime, livramento condicional, indulto ou comutação, nostermos da redação do § 2o do art. 112.

A opção legislativa é clara, e eventual entrave ao alcance dosdireitos em face de perícias desfavoráveis parece ser direta ofensa àlegalidade penal, constituindo cerceamento de direito. Se o requisitosubjetivo existia e a reforma penitenciária optou por sua remoção, níti-do o fato de que havia falhas, distorções e/ou impossibilidades técni-cas de realização da prova pericial ou parecer técnico, não cabendo,portanto, ao julgador, ao órgão acusador, ou a qualquer outro sujeito daexecução, revificar o antigo modelo. Do contrário, estar-se-á empirica-mente auferindo ultratividade à Lei penal mais gravosa que determinaquantidade superior de requisitos para o gozo dos direitos, ofendendoa lógica formal e material do princípio da legalidade penal.

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ao princípio da extratividade da Lei penal mais benéfica – v.g. a revo-gação do art. 2o, § 1o, da Lei 8.072/90 pelo art. 1o, § 7o, da Lei 9.455/97.

Resta claro, porém, que a opção legislativa reconfigura a finalida-de da pena no sistema penal pátrio. Não que este remodelamentotenha abdicado integralmente do discurso ressocializador previsto naLEP. À ideologia da reforma moral do preso é aliada a idéia de conten-ção das massas indesejáveis, principal objetivo da sanção no nascenteEstado Penal. Delineado, desta forma, o papel das agências penais nadécada de 90: controle pedagógico potencializado pela idéia de manu-tenção/exclusão dos corpos excedentes. A experiência ensaia o devirpunitivo do século XXI.

05. Os paradoxos da Lei 10.792/03: maximizaros poderes disciplinares, minimizar o discursocriminológico

Não obstante a institucionalização do RDD como potencializadorda idéia meritocrática-disciplinar, o que por si só macula a Lei10.792/03 de forma a não poder dela retirar todos os elogios que a dou-trina nacional tem apontado, a modificação na estrutura da individua-lização científica, operacionalizada pelo sistema progressivo-regressi-vo, merece atenção, notadamente em referência aos requisitos e ao pro-cedimento de alcance dos direitos públicos subjetivos instrumentaliza-dos nos incidentes da execução penal.

No que tange ao procedimento, a nova redação do art. 112 da LEPreforça o devido processo legal e seus corolários de ampla defesa e con-traditório, recapacitando o princípio de jurisdicionalização norteadorformal da redação do código penitenciário. O antigo parágrafo único doart. 112, que previa a motivação de decisão judicial precedida de pare-cer da CTC ou exame do COC, é substituído por dois importantes pará-grafos, os quais remodelam a forma dos atos processuais. O parágrafoprimeiro define que a decisão relativa à progressão de regime deve serfundamentada e precedida de manifestação do Ministério Público e dodefensor; e o parágrafo segundo projeta o procedimento à concessão delivramento condicional, indulto e comutação das penas, respeitados osprazos previstos nas normas vigentes. À exceção da remição, comuta-ção e unificação de penas, os principais incidentes em execução penalserão orientados pelo conceito trilateral típico do sistema acusatório,i.e., institui-se a noção de partes processuais até então ofuscada no

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A alteração direcionada a otimizar/modificar o trabalho de psicó-logos, psiquiatras e assistentes sociais, estruturou-se no entendimen-to de que a eles não caberia mais a função de emitir laudos/pareceres,mas sim de elaborar, para o apenado, um programa individualizadocom escopo de tornar menos aflitiva sua pena, proporcionando-lhe, namedida do possível, retorno menos dramático ao convívio social. A jus-tificativa, portanto, não foi apenas fundada na verificação empírica deque os técnicos não têm condições de acompanhar adequadamente osapenados de modo a lhes capacitar realizar diagnósticos/prognósticos.Neste particular, o objetivo da reforma foi claro: inverter a lógica admi-nistrativizada do paradigma etiológico que informa(va) o trabalho dostécnicos, determinando que os profissionais, ao invés de ficarem emseus gabinetes produzindo mecanicamente perícias e pareceres, traba-lhem junto aos presos no sentido de lhes auxiliar no retorno menos hos-til à sociedade.

Todavia, no Rio Grande do Sul, a Secretaria de Justiça e Segurança(SJS/RS), após criticar violentamente a retirada da obrigatoriedade doslaudos e pareceres criminológicos, prontamente apresentou novoRegimento Penitenciário (Portaria 014, de 21.01.04, DOE 23.01.04), noqual, para que seja atestado ao preso “bom comportamento”, inúmerosrequisitos são apresentados. O “bom comportamento” carcerário, requi-sito histórico para progressão de regime e livramento condicional,adquire importância significativa com o advento da Lei 10.792/03. Como remodelamento da função dos técnicos, há uma objetivação dos pres-supostos para o alcance dos incidentes executivos. A Portaria 014/04 daSJS/RS, porém, manifestando notório desagravo à legalidade federal,incrementou, através da tipicidade aberta “comportamento carcerário”,os requisitos, não apenas reinstituindo os laudos/pareceres, masampliando o rol que a própria LEP determinava como pressupostos parao gozo dos direitos públicos subjetivos de minimização da pena.

Segundo o art. 15 da Portaria 014/04, “quando da emissão do docu-mento que comprove o comportamento do apenado, previsto no artigo112 da Lei 7.210/84, com as alterações introduzidas pela Lei 10.792/03, oDiretor/Administrador do estabelecimento considerará o seguinte: I - aclassificação da conduta nos termos do artigo anterior [neutra, plena-mente satisfatória, regular ou péssima]; II - manifestação formal, sucin-ta e individual de, pelo menos, três dos seguintes servidores com atua-ção no estabelecimento penal em que se encontrar recolhido o apenado:a) Presidente ou membro do Conselho Disciplinar; b) Responsável pelaAtividade de Segurança e Disciplina; c) Responsável pela Atividade

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Outrossim, correlata à tendência de diminuir entraves burocráti-cos, cuja existência apenas servia para tornar mais morosa e indefini-da a execução da pena, a Lei 10.792/03 retirou a atribuição opinativa doConselho Penitenciário nos casos de livramento condicional. Restringiua atuação consultiva do órgão aos pedidos de indulto e comutação dapena – manutenção de justificação pouco compreensível –, reforçandoseu papel fiscalizador de inspeção dos estabelecimentos penitenciá-rios, emissão de relatório anual sobre as condições das casas aoConselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), super-visão de patronatos e assistência aos egressos (art. 70 da LEP).

Inominável paradoxo exsurge: a Lei 10.792/03, apesar de institu-cionalizar regime bárbaro de execução de pena (RDD), maximizandopoderes da administração penitenciária no que diz respeito às discipli-nas (relação entre preso e gestores do cárcere), inova na retirada doslaudos e pareceres técnicos, peças processuais cuja eficácia históricafoi a de manter absoluta sobreposição do discurso da criminologiaadministrativa sobre o sistema jurisdicional. Assim, elimina elementode análise subjetiva do apenado corporificado nos laudos e pareceres,os quais postulavam extrair o grau de amoldamento interno e arrepen-dimento do apenado, signos identificados, no discurso penitenciário,com “ressocialização”. No entanto, mantém-se o pressuposto subjetivo“bom comportamento carcerário”, sinônimo de disciplina e adequaçãoàs regras institucionais. Nota-se, pois, na alteração discursiva, que apermanência do requisito “bom comportamento” otimiza um discursorígido e hermético, alheio aos (falsos) humanismos ressocializadores,cujo resultado é declarar abertamente toda crueza do novo fim apre-goado à sanção no Estado Penal.

06. A lógica de Lampeduza: recaída de Tântaloou do terapeuta?

Após a edição da Lei 10.792 em dezembro de 2003, as políticaspenitenciárias do Governo Federal e dos Governos Estaduais passarampor um processo de reavaliação. Embora a finalidade precípua da novaLei ter sido criar modelo de execução penal no qual o preso considera-do “perigoso” sofreria inúmeras restrições aos direitos fundamentais,exigindo, portanto, adequação normativa e estrutural ao novo regimepenitenciário, nítida a necessidade das Secretarias de Justiça eSegurança, mais propriamente as Secretarias de Serviços Penitenciá-rios, reverem o papel dos técnicos, como anteriormente descrito.

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da Secretaria da Justiça e da Segurança, presidida pelo Secretário, pormaioria de votos.

A manutenção da crença nas antigas práticas, cujos efeitos expe-rimentamos diariamente pela iminência de conflitos carcerários, ofuscaqualquer possibilidade de câmbio da realidade.3 Na verdade, atosdesta natureza parecem apoiar falido modelo carcerário que vivificou oTártaro na contemporaneidade. Enfim, presenciar esta realidade suge-re que a única mudança permitida é aquela sugerida por Lampeduza:a mudança necessária para que tudo permaneça como está.

07. A resistência de Tântalo aos ambientes severose o trabalho de Sísifo

Após reconstruir de forma fragmentária e entrecruzada os parado-xos criminalizadores e punitivos da Lei penal brasileira nas últimas déca-das, penso ser possível o diagnóstico da gradual sobreposição, atravésdos discursos de emergência, do modelo de hiperpunibilidade do EstadoPenal ao romântico escopo ressocializador presente nas políticas públi-cas do Estado Social. E se no Brasil o Estado Social é experiência nãovivida, distante da realidade das pessoas e presente apenas nos longín-quos discursos do(s) poder(es), o incremento da punição tende a serabsolutamente rústico, pautado numa ritualística de distribuição de mar-tírios focalizada na segregação/contenção dos indesejados.

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3 Não obstante os atos descritos, a jurisprudência de resistência vem atuando com intui-to de demonstrar as irregularidades provenientes da recente reforma legislativa. Nestesentido, “AGRAVO EM EXECUÇÃO PENAL. PROGRESSÃO DE REGIME. NOVA REDA-ÇÃO DO ARTIGO 112, DA LEP. REQUISITOS AO BENEFÍCIO. PORTARIA No 14,21/01/2004, DA SECRETARIA DA JUSTIÇA E DA SEGURANÇA DO RS: ILEGALIDADEDO INCISO II E SEUS PARÁGRAFOS 1o E 2o, DO ARTIGO 15. – O artigo 112, da LEP, alte-rado pela Lei no 10.792 (01/12/2003), exige, à progressão, apenas o cumprimento de lapsotemporal e bom comportamento carcerário (desde que o sistema não a vede: crimeshediondos). – Não se pode impor outras condições, pena de imputação penal agredir prin-cípio maior: prejudicar cidadão sem base em lei. – Ao órgão do MP e à defesa competemdestruir a presunção vinda da declaração de comportamento expedida pela autoridadecarcerária. – Critério para aferição do bom comportamento: inexistência de falta discipli-nar – apurada via PAD – nos prazos do artigo 14, do Regimento Disciplinar Penitenciáriodo Estado do Rio Grande do Sul. – O inciso II e seus parágrafos 1o e 2o, do artigo 15, do RDPdo RS, agridem o princípio da legalidade por impor requisitos – ao benefício – que a LeiFederal (artigo 112, da LEP) não exige – aliás, objetivo da sua nova redação. – Agravo pro-vido” (AG. Execução no 70007705221, 5a Câmara Criminal TJRS, Rel. Des. Amilton Buenode Carvalho, j. 11.02.04).

Laboral; d) Responsável pela Atividade de Ensino; e) Assistente Social.E, no parágrafo primeiro, estabelece que “se as características indivi-duais do preso indicarem que a concessão do benefício pleiteado poderágerar reflexos nocivos a ele ou à sociedade, o Diretor/Administradorpoderá juntar ao documento referido no ‘caput’ deste artigo, avaliaçãopsicológica e/ou psiquiátrica como subsídio à decisão judicial. Nestaavaliação, poderão ser referidas a prognose de reincidência e grau deadesão do apenado ao Programa Individualizador previsto no artigo 6o

da Lei 7.210/84, com as modificações inseridas pela Lei 10.792/03”. Em realidade, através de uma burla de etiquetas, a SJS/RS reintro-

duziu ilegalmente, pois não possui atribuição, a Legislação revogada,recriando o modelo fracassado de avaliação psicológica do condenadoque a reforma procurou alterar. Se o modelo de execução da pena no RioGrande do Sul, cujas características não diferem substancialmente dasdos demais Estados federados, atinge na atualidade níveis de insupor-tabilidade em decorrência da falta de condições materiais e de recur-sos para investimento em melhorias, com a publicação da Portaria014/04, o Governo do Estado, através da Secretaria de Justiça eSegurança, consegue a proeza de “dobrar ilegalidades”. À ilegalidadefática que é a imposição do suplício da superlotação – ilegalidade sem-pre excusável e tolerada visto ser o problema carcerário “eterna fatali-dade” –, o Poder Público consagra a ilegalidade normativa, pois violaabertamente a Constituição e a Legislação Federal, desrespeitando aestrutura básica das atribuições legislativas reguladas no art. 22, inci-so I, da CR.

Mais. Não obstante reinstaurar o modelo etiológico das práticascriminológicas, refunda a lógica burocratizante dos sistemas adminis-trativizados. A Lei 10.792/03, ao abdicar do parecer do ConselhoPenitenciário para grande parte dos incidentes de execução, procurouagilizar e tornar absolutamente judicializado o processo de execuçãopenal. No entanto, em casos de condenados a longas penas, com his-tórico de fugas ou condenados por crimes hediondos ou equiparados, aPortaria da SJS/RS criou mecanismos internos mais morosos e obscu-ros que aquele previsto com o antigo Conselho.

Determina o § 3o do art. 15 da Portaria 014/04 SJS/RS que “noscasos de apenados por delitos hediondos, ou equiparados, tais como: tor-tura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e terrorismo, ou comhistórico de fugas, ou com envolvimento em formação de quadrilha, oucom pena superior a 20 anos, o atestado do Diretor/Administrador [ates-tado de bom comportamento] haverá de ser homologado por Comissão

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monte, com força outra vez retornava. Dessa maneira, até o plano, rola-va o penhasco impudente. Ele de novo a empurrá-lo começa, suor escor-rendo-lhe dos membros todos, enquanto a cabeça de poeira se cobre”(HOMERO: 1960, 176).

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REARDON, Francisco. Entrevista. in Caros Amigos (25). São Paulo: CasaAmarela, 1999.

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A veracidade da tese encontra guarida na progressiva barbariza-ção das normas relativas à execução da pena, sobretudo da pena pri-vativa de liberdade cumprida em regime fechado.

Com a corporificação contemporânea do Tártaro – no qual, nãoesqueçamos, os sofrimentos-pena são eternos –, as tendências acadê-micas pautadas na minimização da programação sancionatória dospoderes (minimalismo, realismo marginal e abolicionismo) aparecemquase como ideais de uma utopia irrealizável ou de difícil acesso. Asnovas formas de gestão penal da miséria, caracterizadoras da face ter-rífica do controle social na era pós-industrial, indicam que as agênciassancionatórias seguem uma pauta programática absolutamente defini-da na qual o Estado passa a adquirir cada vez mais função policialesca.

Os discursos sediciosos, portanto, se querem ainda ter algum sen-tido, devem inexoravelmente estar enraizados em uma concepção pes-simista do poder punitivo (princípio da irregularidade dos poderes),pois apenas desde este local conseguirão, com muito esforço, obter(pequenos) ganhos na minimização das violências (garantismo). Penso,inclusive, que a biografia das práticas penais, apesar de sua sinuosida-de, tem demonstrado que a regra do poder penal é o inquisitorialismo,ou seja, que o discurso garantista de gênese ilustrada configurou umavariável insensata na estrutura das formas de poder, uma cisão aciden-tal na história das violências da qual somos herdeiros inocentes,românticos poetas de um passado imaginário.

Neste quadro, creio que duas conclusões são possíveis sobre ossujeitos da discussão. Em relação aos apenados, a constante exacerba-ção normativa das penas – seja com o aumento da cominação em abs-trato, com a subjetivação dos critérios judiciais de aplicação ou a obs-trução dos direitos de progressão –, aliada ao ocaso empírico da execu-ção representado nas inomináveis condições de cumprimento, refletema capacidade hercúlea de o ser humano adaptar-se a ambientes hostis,de superar a cada instante os limites da própria humanidade.

No que tange a nós, “pensadores humanistas e críticos do sistemapenal”, vejo que o trabalho de denúncia e atuação processual voltadaà contração do sistema de violência parece retratar, como reflexo dapena imposta aos indesejáveis que habitam os horrores do Tártaro,igualmente uma sanção. Talvez uma sanção apenas assemelhada a doSísifo descrito por Ulisses: “Vi Sísifo, e o modo por que ele, com penaindizível, com as mãos ambas tentava arrastar uma pedra enormíssima.Firma os dois pés no chão duro, com ambas as mãos esforçando-se paralevar para cima o penedo; mas quando pensava que já vencera o alto

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