cartilha de formação juntos negras e negros
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ATIVO ESTADUAL DE FORMAÇÃO DE NEGRAS E NEGROS
JUNTOS – SÃO PAULO
1 – INTRODUÇÃO ‐ SOB A PROTEÇÃO DO CAPITALISMO AS
CONTRADIÇÕES: EXPLORAÇÃO E OPRESSÃO DO SER HUMANO PELO
SER HUMANO
A sociedade na qual vivemos é organizada em torno de ummodo de produção
(e de distribuição dessa produção), que divide as pessoas em classes sociais. Está
basicamente dividida antagonicamente entre aqueles que têm o controle da produção
e aqueles que vendem sua força de trabalho para sobreviver, grosso modo. Isso é o
que temos hoje: o capitalismo, que cada dia mais se comprova como um projeto
político e econômico falido, que caminha para seu esgotamento, porque o capitalismo
não é capaz de responder aos problemas e demandas da maioria da população.
E dizer que o capitalismo é incapaz de responder aos problemas da ampla
maioria da população, que surgem e se desenvolvem dentro dele ‐ inclusive,
problemas que surgem para a própria manutenção do capitalismo, que são na verdade
problemas para os trabalhadores, mas solução para os ricos – significa dizer que o
capitalismo está erguido sob a proteção das injustiças e contradições sociais. Significa
dizer que o capitalismo, em sua essência, só sobrevive onde há exploração e opressão
do ser humano pelo ser humano.
Debater todas as contradições que têm o capitalismo como pano de fundo
demandaria centenas de ativo de formação como este. Por isso, em nosso ativo de
negras e negros debateremos uma pequena parte dessas contradições, da totalidade,
que se manifestam através das relações raciais de exploração e opressão.
É importante ressaltar que apesar de se tratar apenas uma fração na disputa
política pela totalidade, o racismo cumpre um papel “estruturante” na sociedade
capitalista e afeta direta e cruelmente ampla parte da classe trabalhadora, sobretudo
no Brasil. Portanto, precisamos aprofundar a formulação e os métodos da luta contra o
racismo.
E como fruto da necessidade do aprofundamento de um debate racial
responsável, formulamos essa cartilha como primeiro passo para uma formulaçãomais
ampla de um estudo a cerca do debate sobre o racismo inserido na noção de
totalidade política, o que norteará nossa atuação para um debate responsável.
Esperamos que aproveitem o ativo de formação, extraindo‐lhe o máximo
possível de informações e formação voltadas para a atuação prática na disputa da
realidade. Boa leitura.
2) A CARNE MAIS BARATA DO MERCADO É A CARNE NEGRA:
POR QUE FOMOS TIRADOS DA ÁFRICA?
Os questionamentos que nortearão boa parte do nosso estudo sobre a
opressão racial se resumem a responder, primeiro: por que fomos tirados da África?
Em segundo, e não menos importante: quais fatores tornaram possível a
transformação dos africanos em produtos?
Ambos os questionamentos só podem ser respondidos com base no
materialismo histórico e nas categorias analíticas desenvolvidas pelo marxismo:
infraestutura (ou forças produtivas), estrutura (ou relações de produção) e
superestrutura.
2.1) O que são as categorias analíticas do marxismo?
As categorias analíticas são ferramentas desenvolvidas porMarx e Hengels para
a análise dos momentos históricos. Fica a sugestão de leitura de “Os conceitos Básicos
do Materialismo Histórico”, de N. Moreno, e “Introdução ao marxismo a partir da
leitura do Manifesto Comunista”, do dirigente trotskistas Israel Dutra.
Basicamente, podemos definir do seguinte modo as três categorias analíticas:
A) Forças Produtivas / Infraestrutura – Modo como o ser humano se relaciona
com a natureza, o que extrai dela para produzir e o que produz em
determinada etapa histórica.
B) Relações de Produção / Estrutura ‐ Modo como os seres humanos se
relacionam entre si, como dividem a produção.
C) Superestrutura – Esta, um pouco mais complexa, se divide em dois ramos. O
primeiro diz respeito às instituições (Polícia, igreja, Estado, etc.). O Segundo diz
respeito às ideologias, à moral dominante.
Continuando a analisar as perguntas com base nos conhecimentos históricos,
podemos ver que o modo de produção feudal tem papel chave na consolidação do
período escravagista.
Com o esgotamento do feudalismo, consequentemente sua queda, surge um
período pré‐capitalista, um período onde há a chamada acumulação primitiva do
capital. Ou seja, nesse período o ser humano, em especial o europeu, começou a
desenvolver e preparar as condições para o surgimento do capitalismo, que se
consolidou com o advento da Revolução Industrial.
Por isso, nesse período, quando o modo de produção anterior caiu,
aconteceram duras disputas pelo acúmulo de riquezas, que extrapolavam os limites
territoriais. Por isso, a colonização de países da América e da África.
Depois que os primeiros invadiram, os europeus sabiam que das Américas era
possível se extrair muito lucro através da relação com a natureza (infraestrutura).
Então, em um primeiro momento, mandaram para o Brasil, por exemplo, condenados,
bandidos e todos os indesejados de Portugal para cá. Para que trabalhassem e
mandassem as riquezas para lá. Isso se mostrou insuficiente. Era preciso mais mão de
obra que pudesse ser explorada.
Portanto, os europeus foram à África escravizar negros para que trabalhassem
sem qualquer remuneração, para que se tornassem efetivamente propriedade e
produzissem nas terras do “novo continente”, que pudessem ser uma fonte de
riqueza. Deste modo, foram distribuídos nas Américas, produzindo riquezas que
serviram como combustível para o surgimento do capital, de um modo resumido.
Houve então uma alteração na estrutura. Os africanos trabalhavam para produzir para
os senhores sem nada receber em troca, nem uma mínima parcela da produção.
Isso só foi possível porque a classe dominante à época, junto à sua instituição
de maior influência no período, a igreja católica, desenharam no imaginário das
pessoas que o negro africano não tinha alma, portanto não era um ser humano como o
europeu, podendo ser transformado em mercadoria.
Ao longo da história, sempre houve escravidão, mas nunca de uma etnia sobre
outra etnia determinada e específica. A escravização dos africanos pelos europeus pré
capitalistas inaugurou o racismo.
Inaugurou o racismo, pois a relação entre estrutura e superestrutura é dialética
e principalmente não linear ao longo da história. O que isso quer dizer?
Quer dizer que, ao mesmo passo em que a ideologia da classe dominante,
através das instituições (a superestrutura), moldou e possibilitou que se desenvolvesse
um modelo de exploração extrema (escravatura), à mesma medida, num esquema
dialético, as relações que se desenvolveram sob esse manto influenciaram na
superestrutura, ou seja, na ideologia e nas instituições. Fazendo essa análise, fica
compreensível à luz da história porque as instituições e a ideologia dominante ainda
colocam a negritude em um segundo plano, como se não fossemos seres humanos.
Isso porque na história não existe quebra linear. A ideologia dos escravocratas ainda se
reflete na superestrutura, que num movimento dialético molda a estrutura. Em outras
palavras, compelidos pela herança racista na ideologia e nas instituições, os seres
humanos desenvolvem e reproduzem nas relações entre si o racismo estrutural,
institucional e ideológico.
Então fica claro o papel que a classe dominante à época exerceu para o
surgimento da escravidão e como isso só foi possível por conta das instituições
pregando a ideologia da classe dominante. Esse resgate histórico é muito importante,
mas não é central para o debate que pretendemos travar nesse momento, podendo
ser tratado em um espaço destinado exclusivamente para ele. Por isso a abordagem
breve e resumida.
3 – RACISMO ESTRUTURAL, INSTITUCIONAL E IDEOLÓGICO:
QUAL O PAPEL DO CAPITALISMO NESSE ESQUEMA?
Já verificamos acima que o surgimento do racismo está ligado com o
surgimento de uma ideologia de superioridade branca constituída no período
pré‐capitalista, ou seja, que diferente do que sempre defenderam os stalinistas e o
ultra esquerdismo, o racismo, com certeza, não tem sua origem no capitalismo.
O racismo é um mal que está impregnado desde antes do capitalismo e que foi
aproveitado damelhor forma pelos capitalistas para construir aindamais riquezas para
os donos da produção.
Por isso que quando dizemos que o racismo é estrutural no Brasil, em última
análise estamos dizendo que a estrutura capitalista, isto é, o modo como os seres
humanos se relacionam e dividem a produção, é sustentada pelo racismo. Prova disso
é que negras e negros recebem os piores salários, compõe a maior parcela dos
operários do chão da fábrica, compõe a parcela de desempregados ‐ que para os
capitalistas é muito importante, pois cria o chamado exército de reserva, com o qual os
capitalista ameaçam os trabalhadores a trabalharem por baixos salários alegando que
caso eles se neguem, há gente desempregada que aceitará fazer omesmo trabalho por
menos dinheiro.
E como não há quebra linear da história, como a estrutura também determina
a superestrutura, o fato de negras e negros ainda ocuparem os piores postos na
sociedade por uma distorção histórica causada pela escravidão, pela herança da
ideologia de que o negro é inferior, feio e ruim, ainda somos discriminados e tratados
como sub humanos.
Mas o fato é que o racismo segue existindo dentro do capitalismo, e isso é
inegável. Aliás, o racismo em si encerra uma grande contradição sob a ótica dos
capitalistas, pois, o genocídio da juventude negra também representa a diminuição
daquilo que Marx chamou do exército de reserva ou mesmo na diminuição de
trabalhadores em idade produtiva.
A primeira consideração que devemos fazer é de que o capitalismo herdou
parte da estrutura escravocrata. No Brasil, em especial, o trabalho escravo só acabou
pois os ingleses precisavam, com o advento da industrialização, de mercado
consumidor. Por isso, o trabalho passou a ser remunerado.
A segunda é de que o capitalismo se sustenta sobre o racismo.
A terceira e mais importante é a de que não há solução para o racismo em
completo enquanto durar o capitalismo por dois fatores: 1 – o capital depende do
racismo; 2 – enquanto houver uma classe dominante carregando os vícios históricos
das ideologias racistas, a realidade será moldada dialeticamente com essa ideologia,
que será dominante. Para derrubar o racismo, é preciso abolir as classes.
4 – A LUTA NEGRA ANTICAPITALISTA E A INFANTILIDADE DO MOVIMENTO NEGRO
PÓS‐MODERNO
A história da resistência negra à opressão, quer seja a luta dos negros
escravizados em solo brasileiro, quer seja na África ao longo de toda a história, sempre
teve como pano de fundo uma luta contra a exploração da força de trabalho da
negritude e por melhores condições sociais. A luta de negros e negras sempre foi anti
sistêmica, conscientemente ou não.
Tomemos como exemplo os escravos. Os escravos lutavam para arrebentar
suas correntes, em busca de sua liberdade, propondo uma nova forma de organização
social em substituição ao regime escravagista, os quilombos. Os quilombolas lutavam
para derrubar a ordem do sistema escravocrata, em defesa de suas liberdades.
Tomemos agora por exemplo o movimento negro do século XX e XXI sob uma
análise mundial. De um modo geral, o movimento lutava contra a ordem estabelecida
pela estrutura dentro do sistema capitalista. Ou alguém dúvida que o movimento por
direitos civis na América Civil nos anos 1960 não tinha uma origem anticapitalista?
Somente alguém que diminui completamente o legado de figuras como Malcolm X
pode ignorar o viés anticapitalista da luta de negras e negros.
Vou além. Tomemos por exemplo as lições do congolês Patrice Lumumba.
Lumumba foi um dos principais líderes do movimento anticolonialista no continente
africano. Lumumba defendia uma organização internacional capaz de livrar o Congo
das correntes do imperialismo belga, considerando, em primeiro lugar, um critério de
classe para defender a fraternidade do povo congolês e de toda África.
Ora, por acaso denfedem os socialistas alguma coisa que não a luta
internacional contra os patrões e os capitalistas, para socializar os meios de produção?
Por que então o setor pós‐moderno insiste em deturpar o legado de Malcolm
X, Lumumba, Zumbi, Dandara e todas as figuras negras que lutaram, em algum
período, explicitamente contra o capitalismo? A quem serve discursos como o de
Carlos Moore, que vive a propagandear que não há diferenças entre os capitalistas e
os socialistas no tocante à condição de negras e negros?
Com certeza, Carlos Moore e toda sua escumalha pós‐moderna de seguidores
(e nesse caso, me refiro aos não negros em especial), cumprem o papel de quinta
coluna do imperialismo e do capitalismo, erguendo uma nuvem de fumaça diante dos
olhos da negritude explorada e oprimida. Eles, os pós‐modernos, vivem a bradar que
são completamente livres para defenderem as questões raciais exclusivamente e
ocupam seu tempo nos acusando de sermos testa de ferro de nossa organização, mas
se esquecem de que eles é que são os verdadeiros testas de ferro do capitalismo. Eles
é que não estão interessados em resolver os problemas de toda a negritude, mas
apenas de um setor inteletcual universitário com a venda de seus livros.
Por outro lado, é certo que, enquanto marxistas, precisamos avaliar todos os
erros históricos que a esquerda em sentido amplo. Do stalinismo ao petismo, o sistema
de concessões aos capitalistas sempre nos retirou direitos. O PT, que outrora ao lado
do PcdoB foram as maiores referências de organização de negras e negros, hoje estão
ao lado do Pézão e têm posturas políticas como a do Rui Costa, da Bahia, que assiste
de camarote ao genocídio da negritude.
A esquerda deve ser superada pela própria esquerda constantemente. Por
exemplo, é inaceitável que hoje tenhamos as mesmas debilidades que tínhamos há
dois anos atrás, assimo como será intolerável que cometamos os mesmos erros
políticos e organizativos que cometemos hoje daqui dois anos.
Mas nossa política jamais pode ter como norte as polêmicas levantadas por
setores que estão contra um projeto de tomada do poder pelos trabalhadores.
Atualmente nossa principal tarefa enquanto militantes da esquerda, na
condição de negras e negros está muito clara: precisamos disputar a unhas e dentes a
consciência da negritude para um projeto amplo e realmente capaz de derrotar o
racismo. Precisamos que negritude deixe de protagonizar suas pautas específicas e
particulares, como tem feito seguindo a recomendação dos pós‐modernos e que
passem a formular, dirigir e protagonizar a luta pela disputa da totalidade.
5 – UMA POLÊMICA COM O ULTRAESQUERDIMO: A PAUTA RACIAL E O
PROGRAMA DE TRANSIÇÃO DE TROTSKY
O stalinismo tratou de tentar distorcer toda a formulação marxista e o
movimento operário de massas. A experiência fracassada com o stalinismo, em
especial após a queda do muro de Berlim, fecharam a porta para um período
revolucionário.
Deste momento, quando a burocracia stalinista se intensificava, Trotsky
desenvolveu um programa, chamado Programa de Transição. Em resumo, o programa
de transição do Trotsky diz que não existia mais a possibilidade entre o programa
máximo e o programa mínimo. O programa mínimo apresentado pela social
democracia é um programa exclusivamente de reformas dentro do capitalismo, fadado
ao fracasso. O programa máximo prometia a substituição do capitalismo pelo
socialismo, por um futuro incerto.
A verdade é que os anticapitalistas, desde os tempos do Trotsky, precisam
mediar um programa entre a atuação no sistema capitalista e a luta pelo socialismo.
Precisamos de reivindicações que dialoguem com a consciência média da maioria da
classe trabalhadora e seu cotidiano. Nesse sentido, a pauta das mulheres negras, da
juventude negra e dos negros em geral, é diretamente uma contribuição preciosa para
a atualização do Programa de Transição.
O setor do ultra esquerdismo, organizações que padecem da doença infantil da
qual já falava Lênin nada fazem senão entregar de bandeija os setores mais avançados
e organizados do movimento negro responsável no colo do pós‐modernismo.
Precisamos combater, inclusive internamente, os desvios que diminuem a luta
racial, que não é uma luta secundária. É urgente que a negritude comece a formular na
esquerda para além de seus espaços auto organizados, que formulemos para a disputa
da totalidade e a negritude protagonize essa disputa.
Nesse sentido, é fundamental que saibamos exatamente o que falamos e a
política que compramos para que não sejamos lunáticos como o pior setor da ultra
esquerda.
CONCLUSÃO
AS TAREFAS IMEDIATAS DO NOSSO COLETIVO
É fundamental que a nossa setorial esteja armada no discurso teórico como
balizador da atuação prática, que esteja distante de todo sectarismo, mas que sejamos
capazes de fazer um enfrentamento muito grande com os setores da ultra e do
pós‐modernismo na captação de militantes negras e negros.
É central e urgente que formemos mais militantes negras e negros com a
habilidade de formular política para além de uma visão fragmentada da realidade, mas
que também sejam muito capazes e habilidosos para intervir na política especial do
movimento negro. E só há uma receita para isso: formar quadros. Precisamos avançar
na formação de quadros militantes de negritude, o que demanda também o
compromentimento particular de cada militante em relação ao coletivo e o oposto
também é válido.
Por fim, precisamos dialogar com a consciência média da população negra e
elevar essa consciência a um nível de compreensão do que é o capitalismo e porque é
tão necessário que o derrotemos. É uma tarefa imediata formular um programa de
negritude que caminhe num sentido anticapitalista e que tenha mais do que nunca o
caráter classista.