cartas patrimoniais

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CULTUR, ano 04 - n 01 - Janeiro/2010 www.uesc.br/revistas/culturaeturismoLicena Copyleft: Atribuio-Uso no Comercial-Vedada a Criao de Obras Derivadas

A VIABILIDADE SUPERESTRUTURAL DO PATRIMNIO: ESTUDO DO MUSEU DA LNGUA PORTUGUESAPedro de Alcntara Bittencourt Csar1 Beatriz Veroneze Stigliano21 2

Doutor em Geografia pela USP. Email [email protected] Doutora em Cincia Ambiental pela USP. Email [email protected]

Recebido em 16/10/2009 Aprovado em 23/11/2009

RESUMO Analisa-se a formao de um atrativo cultural. Pesquisa-se o Museu da Lngua Portuguesa, instituio recm inaugurada, localizada em So Paulo considerada modelo de utilizao, contrastando os preceitos utilizados em sua construo, sob a tica das cartas Patrimoniais. Destacase que, durante todo o transcorrer do sculo XX, as Cartas patrimoniais tm sido instrumento de polticas de utilizao e conservao do patrimnio. A partir delas apresentada uma srie de recomendaes definidas por diversos rgos trans-nacionais e nacionais, com valores ambguos. Desta forma, ressaltam-se aquelas utilizadas por rgos de preservao, para uma anlise sobre sua relao com a contemporaneidade da visitao cultural e turstica. Com tal arcabouo, contextualiza-se o Museu da Lngua Portuguesa. PALAVRA-CHAVE: Turismo cultural; Cartas Patrimoniais; Museu; Patrimnio cultural. ABSTRACT An analysis of the development of a cultural attraction is conducted. The Museum of the Portuguese Language, recently inaugurated in So Paulo, considered a model of use, contrasting the precepts used in its construction, is analyzed, from the viewpoint of the Patrimonial Charters. Throughout the XXth century, the Patrimonial Charters have shaped the politics of heritage use and conservation. They present a series of recommendations set out by trans-national and national bodies with ambiguous values. Therefore, those used by preservation bodies are highlighted, for an analysis of their relationship with the contemporaneousness of cultural and tourist visitation. Within this framework, the Museum of the Portuguese Language is examined. KEY-WORDS: Cultural tourism; Patrimonial Charters; Museum; Cultural Heritage.

1. INTRODUO

Na Era Vargas, inicia-se a formulao do estatuto legal e ideolgico do patrimnio cultural brasileiro. Assim, na Constituio Federal de 1934, como marco, notria a proteo patrimonial. Nela, define-se a competncia do Estado para sua proteo (BRASIL, 1934). Situao reforada pela criao do atual Instituto Brasileiro do Patrimnio Cultural IPHAN (PELLEGRINI FILHO, 1997, p.105), vinculado ao Ministrio da Cultura.

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Desde ento, muito tem sido definido e agregado. Nesse contexto, tm-se, como referncia conceitual das polticas de preservao do patrimnio nacional, as Cartas Patrimoniais. Estas so recomendaes desenvolvidas por rgos de preservao que tm como caracterstica sua abordagem pluri nacional. Escritas por vrios grupos de classe, de perspectivas ideolgicas diversas ou representantes de entidades governamentais, tais documentos referenciam os valores patrimoniais quanto a amplos aspectos scio-culturais. Aborda-se, nesta pesquisa, a relao citada, destacando-se o contexto global institucional, em que so elaboradas. So tambm analisadas suas indicaes quanto s re-funcionalizao e composio do patrimnio arquitetnico e urbano e seu desdobramento nas lgicas de utilizao patrimonial. Verificam-se, ainda, suas bases conceituais, por meio da pesquisa a seus promotores e elaboradores. Conduz-se, neste estudo, uma sntese de anlise que se desdobra sobre um concreto pensado. Destaca-se, assim, uma reflexo a respeito do Museu da Lngua Portuguesa. Analisa-se, de uma forma crtica, o local, recm aberto, com forte apoio da indstria cultural do pas, e suas relaes com as Cartas Patrimoniais.

2. PRESSUPOSTO DAS CARTAS

As Cartas Patrimoniais tm como intuito uniformizar os discursos do cuidado ao bem cultural (SALCEDO, 2007, p.26). Entretanto, ao serem formuladas por grupos de interesses diversos, no se atende tal perspectiva. Existem, muitas vezes, idias que competem, em suas lgicas, com os princpios de autenticidade, de restauro do objeto, de inventrio, de hierarquia, de valores artsticos. Questo que tem influenciado a formulao de polticas de visitao e utilizao diversas. A preservao e utilizao do patrimnio sempre estiveram ligadas a conceitos distintos. Inicialmente, duas personalidades antagnicas constituem-se como idealizadores deste pensamento: John Ruskin e Eugenio Violet Le-Duc (CESAR, 2007). Entretanto, ambos so vistos com ressalvas por no constiturem uma base cientfica. Porm, suas perspectivas possibilitam um estudo mais amplo da anlise do patrimnio, sendo que a eles, at hoje, atribudo o mrito de formadores do pensamento da conservao e uso patrimonial. Uma nova gerao de profissionais se ressente da carncia metodolgica desses antecessores. Instiga-se, assim, a criao de novas abordagens, e, para tanto, realizam-se encontros mundiais para definir conceitos e estatutos. So marcos fundamentais para a formao desses novos parmetros o III Congresso degle engegneri e architetti italiano (1883), alm do Congresso Internacional sobre a Proteo de Obras de Artes e dos Monumentos (1889) e do Congresso

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Internacional de Histria e de Arte (1921) (LUSO, LOURENO e ALMEIDA, 2004). Entretanto, no encontro de outubro de 1930, realizado pela Liga das Naes, atinge-se uma dimenso internacional. Nele, os mtodos cientficos so colocados em discusso para o exame e preservao da obra de arte. Tm-se, ento, as bases das cartas patrimoniais.

3. CARTA DE ATENAS DE 1931 E SEUS DESDOBRAMENTOS

Este cenrio cria toda a perspectiva para, meses depois do encontro da Liga das Naes, realizar-se, em Atenas, o I Congresso Internacional de Arquitetos e Tcnicos em Monumento (1931). Encontro considerado o marco inicial de todo o processo. Nele, elabora-se o primeiro documento de recomendaes internacionais de conservao, manuteno e utilizao do bem cultural. Prope-se, atravs da Carta de Atenas (1931), a valorizao histrica e artstica, a no re-funcionalizao e o respeito ao monumento. D-se estatuto lgica de utilizao de gabarito, como ferramenta para a distino de uma valorizao visual do patrimnio em questo. Outras questes recomendadas so: o envolvimento de mltiplas disciplinas na definio da interveno e o respeito ao original, alm da necessidade da preservao do entorno. Sugere-se, ainda, que cada nao realize seu prprio inventrio do patrimnio cultural. No se arbitra, entretanto, a definio de categorias e hierarquias, sendo que os focos so os edifcios e conjuntos arquitetnicos de importncia histrica. Ponto fundamental levantado a definio do patrimnio pelas relaes do espao, da paisagem e da trama urbana adjacentes, definindo a importncia do edifcio e do conjunto arquitetnico. Elege-se o Estado como responsvel pela salvaguarda do monumento, aconselhandoo a elaborar legislao que garanta seu direito legal.

Fig. 1 Liga das Naes Fonte: ONU, 2008

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Num perodo relativamente prximo, o Movimento Modernista elabora carta homnima (Atenas, 1933). Nela, marca-se a primazia atribuda definio dos contornos urbanos pelos princpios do urbanismo, como parmetro da necessidade de construes funcionalistas, amplas e ensolaradas. Tal documento caracteriza-se como referncia para as fundamentaes ideolgicas, principalmente na Amrica Latina, e, profundamente, no Brasil, ditando os projetos de urbanismo de muitas geraes (FONSECA, 2005 e CAVALCANTE, 2000). Com um discurso generalista, pretendia-se a aplicabilidade em qualquer situao. Cenrio que suscita, de uma forma inusitada, a contestao de novos arquitetos, nos outros encontros do CIAM Congresso Internacional de Arquitetura Moderna.

Fig. 2 Cartaz do CIAM Fonte: ONU, 2008

Anos mais tarde, a UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao, Cincia e Cultura realiza, na cidade indiana de Nova Delhi, uma Conferncia Geral (1956). Nela, so tratadas questes relacionadas arqueologia. Entretanto, produz-se importante documento com reflexes gerais a respeito da perspectiva do Estado em garantir a proteo e o uso dos bens histricos, associados necessidade de comunicao e acesso comunidade internacional. Observa-se, ainda, o enfoque dado quanto importncia da utilizao e realizao de aes educativas com a participao de estudantes (Fig.3), alm da formao e da ampla divulgao de circuitos tursticos (Fig.4) e de exposies e conferncias a respeito do bem cultural.

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Fig. 3 Projeto de Educao Patrimonial desenvolvido na USP Foto do autor: 2008

Elabora-se, no II Congresso Internacional de Arquitetos e Tcnicos de Monumentos Histricos, a Carta de Veneza (1964). Nela, aplica-se a noo atual de monumento histrico, por suas relaes com o espao (meio). Ainda neste documento, recomenda-se que a restaurao deve, inicialmente, ser pensada com a utilizao de tcnicas tradicionais, e, somente com a impossibilidade de sua adoo, recomenda-se a vinculao de novas tcnicas. Reconhece, ainda, que as contribuies vlidas de todas as pocas para a edificao devem ser respeitadas (Carta de Veneza, art.11) Tem-se, assim, sua integridade como valor patrimonial, dando margem para um amplo e longo debate dentro de suas especificidades cientficas e ideolgicas. Em 1968, em sua 15 Seo, so apresentadas recomendaes sobre a conservao dos bens culturais, relacionando o atendimento das necessidades da sociedade contempornea. Abordam-se tambm, as posturas a serem adotadas no planejamento urbano, principalmente quanto preservao e valorizao dos monumentos em locais de interesse histrico. Consideraes que so reforadas em 1976, ao trabalhar a salvaguarda dos conjuntos histricos e sua funo na vida cotidiana atual, caracterizando tanto sua lgica histrica quanto tradicional. Salienta-se, ainda, a necessidade de integrar a vida contempornea como elemento fundamental, que deve ser abordado no planejamento urbano e regional. Neste documento, tambm se expressa a aproximao quanto ao perigo de uniformizao e despersonalizao.

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Assim, proclama-se a necessidade do respeito s relaes culturais eminentes, o que caracteriza a identidade do lugar. Atribui-se, assim, como papel do Estado, a elaborao de polticas de proteo e de revitalizao, por meio de projetos de planejamento nacional, regional e local. Quanto utilizao dos bens, pontua-se a importncia em manter as funes existentes engendradas nas relaes cotidianas. Desta forma, pontua-se, em particular, o comrcio e o artesanato e a criao de outras novas atividades que, para serem viveis a longo prazo, deveriam ser compatveis com o contexto econmico e social, urbano, regional ou nacional em que se inserem (UNESCO, 1976). Para tanto, proposta a formao de plos culturais que sirvam de referncia para desenvolvimento cultural das comunidades circundantes e inseridas no local.

Fig. 4 Circuito Turstico Bandeirante: Proposta de Srgio Buarque de Holanda Foto do autor: 2007

Segue na mesma linha da Carta de Veneza a Carta de Burra, elaborada pelo ICOMOS, em 1980. Nela, pontua-se uma srie de recomendaes para a conservao e restauro, e, para tal, afirma a manuteno de um entorno visual apropriado (ICOMOS, 1980, art.8), e o respeito a todas as alteraes realizadas ao longo do tempo. Na declarao do Mxico, de 1985, o ICOMOS refora o valor de auto-afirmao, na elaborao cultural de cada povo. Ambas reforam o reconhecimento dos estilos existentes no local. Pela mesma abordagem, elabora-se a Carta de Washington (1986), com o tema: Carta Internacional para a Salvaguarda das Cidades Histricas. Nela, observa-se o intuito de complementar a Carta de Veneza (1964). Salienta a necessidade da participao da populao local para o sucesso da preservao (ICOMOS, 1986). Outro marco importante propiciado pelo

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ICOMOS, no ano de 1999, ao contribuir com o reconhecimento da atividade turstica. Estabelece, assim, a Carta Internacional de Turismo Cultural, onde so propostos princpios a respeito do turismo e do patrimnio. Refora-se o valor da atividade turstica na conservao e como situao econmica, de educao e de conscientizao. Esse documento ressalta, ainda, a necessidade de insero das comunidades locais como beneficirias da atividade.

Fig. 5 Tiradentes: Boas tcnicas de restauro, porm, populao distante do processo Foto do autor: 2008

4. AS ESPECIFICIDADES NO CONTINENTE AMERICANO

A Organizao dos Estados Americano (OEA), promove, na cidade de Quito, em 1967, reunio a respeito da conservao e utilizao do monumento e lugares de interesse histrico e artstico. Entretanto, o documento resultante associa-se a uma questo fortemente ideolgica para a regio. Desta forma, aps a publicao da Norma de Quito (1967), acirra-se o interesse sobre o patrimnio cultural na utilizao turstica. Nas Normas de Quito (1967), so apresentadas propostas concretas para a utilizao do patrimnio, tendo em vista o panorama de transformao de reas de poucos recursos econmicos dos pases da Amrica Latina. A valorizao do bem patrimonial associa-se, definitivamente, ao

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desenvolvimento econmico e social. Importante observar que, nesta perspectiva, os estilos ditos importados so reconhecidos por sua aculturao (Fig.6) e em suas mltiplas manifestaes locais, que os caracterizam e distinguem (OEA, 1967), estendendo o interesse relacionado s manifestaes culturais dos sculos XIX e XX.

Fig. 6 Edifcio tombado pelo IPHAN - Bolsa do Caf de Santos Foto do autor: 2008

Foca-se, assim, uma poltica de valorizao do bem histrico, para que este cumpra novas funes, oriundas do processo de visitao, e, conseqentemente, de incentivo ao investimento e associao do capital privado, visto como necessrio para uma proteo duradoura. Nestas normas, concretiza-se a importncia do recorte territorial. Adotam-se, para tanto, reas de graus especficos de cobertura, como a zona de proteo da paisagem urbana, zona de proteo e zona de proteo rigorosa, esta ltima com uma gradao maior de amparo. Porm, espera-se que, para desenvolver tal papel, seja elaborado plano de desenvolvimento regional que insira a relao do turismo e a poltica de investimento.

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No Brasil, tal ao desdobra-se no Compromisso de Braslia (1970). Esse Encontro de Governadores, prefeitos e autoridades da rea de cultura, de todos os nveis, refora o papel do Estado na proteo dos bens culturais e atribui s universidades a pesquisa histrica e a elaborao de inventrio dos bens regionais. No ano seguinte, realiza-se o Compromisso de Salvador (1971), que recomenda a criao de leis para ampliar as aes e usos dos bens tombados, reformulando o conceito de ambincia, pela proteo eficaz paisagstica, arquitetnica e cultural. Nele, aborda-se o turismo e destaca-se a necessidade de planejar a condio ideal de utilizao e divulgao. Recomenda-se, ainda, que os rgos responsveis pela poltica de turismo estudem medidas que facilitem a implantao de pousadas, com utilizao preferencial de imveis tombados (COMPROMISSO DE SALVADOR, 1971). No ano de 1974, sob o auspcio da OEA e tendo como tema a experincia na conservao e restaurao do patrimnio monumental dos perodos colonial e republicano, elabora-se a Declarao de So Domingos. Nela, tem-se como intuito desenvolver reflexes como um compndio da Carta de Veneza (ICOMOS-UNESCO, 1964) e das Normas de Quito (OEA, 1967). Observa-se que so resolues que reforam o papel da iniciativa privada como agente de conservao e de valorizao do centro histrico. Para tal, recomenda-se aos governos o estabelecimento de medidas legais para sua utilizao econmica. Importante destacar, tambm, a Carta de Restauro (MIP, 1972), que refora que a obra de arte abrange qualquer poca, e tem grande repercusso no Brasil. Por esta carta, abre-se um leque de opes, principalmente, ao reforar seu uso na lgica scio-espacial presente. Para tanto, institui que deve ser feito projeto para a restaurao de uma obra arquitetnica aps exaustivo estudo, devendo contemplar diversos pontos de vista. Assim, espera-se que se estabelea a anlise de sua posio no contexto territorial ou no tecido urbano, dos aspectos tipolgicos, das elevaes e qualidades formais, dos sistemas e caracteres construtivos, etc., assim como dos eventuais acrscimos ou modificaes (MIP, 1972). Pensa-se na totalidade da obra. Incorpora-se, em sua abordagem, a ambincia social, cultural e natural e todo o seu processo histrico e artstico, devendo, em sua elaborao, ter em mente a conservao do entorno urbano e paisagstico, mantendo as estruturas virias e os edifcios existentes. 5. O MUSEU DA LNGUA PORTUGUESA

Estuda-se o confronto entre o prtico-concreto, e seus contextos ideolgicos, no Museu da Lngua Portuguesa. Nele, observam-se distintas perspectivas. Como estao ferroviria, o local impessoal e os funcionrios so despreparados para lidar com a visitao. Em termos

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administrativos, a Companhia Paulista de Transporte Metropolitano CPTM no apresenta qualquer interesse de relacionar a estrutura funcional com o patrimnio existente. Panorama que caracteriza o local como plataforma de embarque. Chega-se, nela, a tratar com violncia os visitantes que queiram contextualizar tal local com o Museu, desconsiderando que ambos participam da mesma edificao. No museu, por sua vez, os seus funcionrios no tm qualquer compreenso do momento atual do entorno e do interior ferrovirio, na formulao de lgicas museolgicas com o prdio e o acervo. No prdio, uma equipe de profissionais treinados apresenta fragmentos histricos, sem um eixo norteador que aborde o valor memorial e patrimonial do objeto arquitetnico e cultural. Distancia-se de uma relao que justifique o arquitetnico como abrigo deste acervo. No acervo do Museu, o tema construo da lngua portuguesa deixa bem clara sua formao como identidade hegemnica, notada ao reconhecer a linha do dominante na formao de uma unidade nacional. Trabalha-se sob uma lgica imposta no perodo modernista, em que so apresentados o homem branco, os negros e os ndios, como grupos majoritrios formadores. O europeu lusitano visto como dono da lngua, o vitorioso na formao da identidade. Reforando este contexto, cita-se Durham:No Brasil, houve um processo de desapropriao e destruio de culturas existentes. Os portugueses se apropriaram de inmeras produes culturais indgenas e destruram os ndios. Depois, tiveram uma ao intensssima no descaracterizar e no permitir a produo de toda a cultura trazida pelos escravos. A escravido um dos processos mais violentos que existe de empobrecimento cultural Estabelece-se um controle absoluto que impede a reproduo da cultural original e, ao mesmo tempo, nega-se o acesso cultura dominante (DURHAM, 1984, p.39)

Fig. 7 Plataformas da CPTM Foto do autor: 2008

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Panorama que reproduz conceito amplamente difundido pelas escolas positivistas. Embora no acervo se reconhea a migrao europia e asitica, atribui-se a estes um papel alegrico distante do processo. Impe-se, assim, o discurso pragmtico iluminista da nao moderna, mesmo que disfarado de valores da ps-modernidade, ao adotar a essncia informacional e tecnolgica. Porm, importante reforar a distncia do discurso da ps-modernidade, ao no propor uma desconstruo da identidade, e sua reformulao por fragmentos de mltiplas outras. Tal relao apresentada ignora os valores de uma sociedade mltipla e plural. Contrasta, assim, com a prpria sociedade atual em suas complexidades e fragmentaes, inerentes ao momento atual, ps-moderno (JAMESON, 2006), e justificado como urbano (LEFEBVR, 1974), em redes (CASTELLS, 2001), tcno-cientfico-informacional (SANTOS, 2004) e contemporneo (URRY, 1996 e LASH e URRY, 1998).

Fig. 8 Interior do Museu da Lngua Portuguesa Foto do autor: 2008

O Ecletismo, que justifica a riqueza do patrimnio arquitetnico e textual, descartado (como proposto pelo CIAM, 1933). O caf, por exemplo, poderia ser abordado na exposio dos processos migratrios e civilizatrios e no apresentado, meramente, como elemento de uma relao de riqueza que importa costumes. Assim, seria possvel formular uma tecnicidade sinttica da interpretao do patrimnio, no por pragmatismo, mas por senso crtico, em que fosse

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valorizada a sua riqueza atual. O conceito da ideologia moderna, que tanto contribui para a no interpretao do patrimnio arquitetnico, est marcantemente presente na ideologia do discurso apresentado, seja do visitante ao museu, ou do usurio ferrovirio. Um famoso incndio atribudo aos ingleses, antigos proprietrios da Instituio Ferroviria do incio do sculo, poderia ser um elemento de contextualizao da identidade. As foras hegemnicas poderiam ser apontadas textualmente na imposio do uso do portugus pelos milhes de aborgenes, africanos e imigrantes. Teria, nestes objetos e sujeitos, associao necessria como elo para a compreenso da sociedade. Entretanto, mantm-se o lugar calado, ou seja, sem uma interpretao digna de sua riqueza histrica e cultural. Entre as opes de resgate ou de construo memorial da formao econmica, tem-se sua antiga sala de embarque, descontextualizada, em suas relaes sociais de perodos anteriores, com as paredes, hoje, brancas. Pode-se fazer uma infeliz associao ao branco dos prdios clssicos gregos, hiptese j derrubada h muito tempo (Fig.8) e que marca a intolerncia do iluminismo. Porm, espera-se que se rompa com a ideologia presente, h dcadas, no pas. Esperamos reforar que existe, sim, uma sociedade que questiona, somente no so vozes ouvidas nas decises a respeito das formas de interpretar o patrimnio e, conseqentemente, de compreender toda uma sociedade. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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