cartas do meu moinho - daudet - revisado

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7/30/2019 Cartas Do Meu Moinho - Daudet - Revisado http://slidepdf.com/reader/full/cartas-do-meu-moinho-daudet-revisado 1/252 Cartas do Meu Moinho Alphonse Daudet Alphonse Daudet nasceu em nimes, em 1840, e morreu em paris, em 1897. depois de uma uventude bastante vagabunda teve, para sobreviver, de trabalhar no colégio de alais.

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Cartas do Meu MoinhoAlphonse Daudet

Alphonse Daudet nasceu em nimes, em 1840, e

morreu em paris, em 1897. depois de umauventude bastante vagabunda teve, parasobreviver, de trabalhar no colégio de alais.

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auxiliado por um irmão, vai para paris tentar a sortenas letras. torna-se conhecido com a colectânea deversos as amorosas (1858). atinge a celebridade com

cartas do meu moinho em que o seu bom humor, afantasia, a ternura, a acuidade de observação e apoesia envolvem numa aura de beleza as imagens

tristes ou miseráveis e apelam para um optimismosorridente, uma fé obstinada pela vida. foi talvez ainfluência do seu torrão natal, o midi, que o ajudou

a enfrentar paris e a doença, que fez dos seusúltimos anos um lento suplício. a melhor das suaspeças de teatro é a arlesiana (1872), que bizetmusicou, tornando-a conhecida nas óperas de todoo mundo. fez parte da academia goncourt desde asua fundação. alem de cartas do meu moinho, quiçáa mais célebre das suas obras, destacam-se tambem

tartarin de tarascon, tartarin nos alpes e port-tarascon.

PrólogoPerante mim, honorat grapazi, notário com cartórioem pampérigouste, «compareceu: «o sr. gaspard

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mitiflo, casado com vivette cornille, pequenoproprietário no lugar de cigalières, onde reside: «oqual, pela presente escritura, vendeu e transmitiu,

com todas as garantias de direito e de facto e livrede todos os encargos, previlégios e hipotecas, «ao sr.alphonse daudet, poeta, residente em paris, aqui

presente e que declarou aceitar. «um moinho devento e de farinha, sito no vale do ródano, em plenocoração da provença, numa encosta coberta de

pinheiros e azinheiras; moinho que se encontraabandonado há mais de vinte anos e em estadoimpróprio para moer, como o demonstram asvideiras bravas, o musgo, o alecrim e outras ervasparasitas que trepam por ele até à ponta das suasaspas; «apesar do que, e tal como está e se encontra- com a grande mó partida e a erva a crescer por

entre os tijolos da plataforma -, declara o sr. daudetachar o dito moinho de acordo com as suasconveniências e capaz de servir para os seus

trabalhos de poesia, pelo que o aceita com todos osriscos e perigos e sem nenhum recurso contra ovendedor no tocante às reparações de que

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porventura careça. «esta venda é feita em bloco emediante o preço convencionado, que o sr. daudet,poeta apresentou e depositou neste cartório em

moeda corrente, o qual preço foi em seguidacontado e levantado pelo sr. mitiflo, tudo napresença do notário e das testemunhas abaixo

assinadas, do que se dá quitação sob reserva.«escritura lavrada em pampérigouste, no cartóriodo notário honorat, na presença de francet mamai',

tocador de pífaro, e de louiset, por alcunha oquique, cruciferário dos penitentes brancos; «queassinaram com as partes e com o notário, depois delida...

InstalaçãoFoi uma surpresa para os coelhos!... havia tanto

tempo que viam a porta do moinho fechada, asparedes e a plataforma invadidas pelas ervas, quetinham acabado por acreditar que se extinguira a

raça dos moleiros, e, como o lugar lhes parecerabom, instalaram nele uma espécie de quartel-general, um centro de operações estratégicas, o

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moinho de jemmapes dos coelhos... na noite daminha chegada, havia lá pelo menos, sem exagero,uns vinte, sentados em círculo na plataforma, como

se aquecessem as patas a um raio de luar... assimque entreabri uma lucarna, frrt!, o bivaque pôs-seem debandada e todos aqueles traseirinhos brancos

fugiram, de cauda no ar, para o mato. espero, noentanto, que regressem. quem ficou também muitoespantado, ao ver-me, foi o locatário do primeiro

andar, um velho mocho sinistro, de cabeça depensador, que habita o moinho há mais de vinteanos. encontrei-o no quarto de cima, imóvel e hirtono velho motor, no meio da caliça e das telhascaídas. observou-me por instantes com os seusolhos redondos e depois, muito assustado por nãome reconhecer, pôs-se a piar: «hu! hu!», _ a agitar

penosamente as asas cinzentas de poeira. (diabos depensadores, nunca se escovam!...) mas não faz mal!assim como é, com os seus olhos piscos e a sua

expressão carrancuda, este locatário silenciosoagrada-me mais do que qualquer outro, e, por isso,apressei-me a renovar-lhe o arrendamento. como

d i d i h

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outrora, ocupa toda a parte superior do moinho,com entrada pelo telhado. para mim, reservei o rés-do-chão, uma divisãozinha caiada de branco, baixa

e abobadada como o refeitório de um convento. Édaqui que vos escrevo, com a porta principalescancarada ao sol. um belo pinhal resplandecente

de luz estende-se diante de mim até ao fundo daencosta. no horizonte recortam-se as cristas finasdos alpilles... nem um rumor... apenas, de longe em

longe, abafado pela distância, se ouve um maçarico-real no meio da alfazema ou o guizalhar de mulasna estrada... só a luz dá vida a esta bela paisagemprovençal. como quereis que tenha saudades dovosso paris barulhento e sombrio? estou tão bem nomeu moinho! É, na verdade, o canto que procurava,um cantinho perfumado e quente, a mil léguas dos

ornais, dos fiacres, do nevoeiro!... e que belas coisasme rodeiam! instalei-me apenas há oito dias e játenho a cabeça repleta de impressões e de

recordações... vede! ainda ontem à tarde assisti aoregresso dos rebanhos a um mas (uma herdade) quefica no sopé da encosta, e juro-vos que não trocaria

t tá l t d t i ti t

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este espectáculo por todas as estreias que tivestesem paris esta semana. julgai por vós próprios. devodizer-vos que na provença é costume, quando chega

o calor, mandar o gado para os alpes. animais epastores passam cinco ou seis meses lá em cima,dormem ao relento e a erva chega-lhes ao ventre;

depois, quando surgem os primeiros arrepios dooutono, descem novamente ao mas e voltam apastar burguêsmente nas colinazinhas acinzentadas

perfumadas pelo rosmaninho... pois ontem à tardeos rebanhos regressaram. desde manhã que asportas estavam abertas de par em par para osreceber e os apriscos cheios de palha fresca. de horaa hora dizia-se: «agora estão em eyguières, agoraem paradou.» até que, de repente, ao cair da tarde,soou um grande grito: «eles aí vêm!» e lá adiante, ao

longe, avistámos o rebanho, que avançava envoltonuma nuvem de poeira. toda a estrada pareciamarchar com ele... os carneiros velhos vinham à

frente, de chifres em riste e ar selvagem; atrás deles,o resto dos carneiros e as ovelhas, um poucocansadas, com as crias entre as patas; as mulas,

f it d b l lh t i

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enfeitadas com borlas vermelhas, traziam nosseirões os cordeirinhos de um dia, que embalavamao andar; a seguir vinham os cães, ofegantes, com a

língua pendente até ao chão, e dois grandesmarotos de dois pastores metidos em capotes desurrobeco que lhes caíam até aos calcanhares como

capas. tudo isto desfilou diante de nós, alegremente,e enfiou pelo portal, fazendo com as patas um ruídode aguaceiro... era digno de se ver o alvoroço dentro

de casa. do alto do poleiro, os grandes pavõesverdes e dourados, de poupa de tule, tinhamreconhecido os recém-chegados e acolhiam-nos comum formidável toque de trombeta. o galinheiro, queestava adormecido, despertou em sobressalto. tudose pôs a pé: pombos, patos, perus, galinhas-da-índia. a criação parecia ter enlouquecido; as

galinhas falavam de passar a noite em claro!... dir-se-ia que cada carneiro trouxera na lã, com operfume dos alpes bravios, um pouco do ar

vivificante das montanhas, que embriaga e fazdançar. foi no meio de todo este barulho que orebanho alcançou o seu poiso. nada mais

t d d t i t l ã i

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encantador do que esta instalação. os carneirosvelhos reviam o redil enternecidos. os cordeirinhos,os mais pequenos, aqueles que 'haviam nascido

durante a viagem e que jamais tinham visto aherdade, olhavam à sua volta com espanto. mas omais tocante ainda eram os cães, os valentes cães de

pastor, muito atarefados atrás do gado, a únicacoisa que lhes interessava no mas. o cão de guardafartou-se de os chamar do fundo da sua casota e o

balde do poço, a trasbordar de água fresca, bem lhesfez sinais; nada quiseram ver, nada quiseram ouvir,enquanto o rebanho não entrou, o grande ferrolhoda portinha gradeada não foi corrido e os pastoresnão se sentaram à mesa na divisão térrea. só entãose decidiram a entrar no canil e a contar aos seuscamaradas da herdade, enquanto lambiam a gamela

de caldo, o que tinham feito lá em cima, namontanha, uma região desolada, onde havia lobos egrandes dedaleiras purpurinas a trasbordar de

orvalho.

A Diligência de Beaucaire

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A Diligência de BeaucaireFoi no dia da minha chegada aqui. tomara adiligência de beaucaire, uma pitoresca e velha

carripana que pouco caminho tinha de percorrerpara chegar ao seu destino, mas que seguiapachorrentamente ao longo da estrada, para se dar

ares, à noite, de vir de muito longe. Éramos cinco naimperial, sem contar com o condutor. em primeirolugar, um guarda de camargue, homenzinho

atarracado, lãzudo, a cheirar a malteses, de grandesolhos raiados de sangue e argolas de prata nasorelhas; a seguir, dois beaucairenses, um padeiro eo seu amassador, ambos muito vermelhos, muitocongestionados, mas de perfis imponentes, duasmedalhas romanas com a efígie de vitélio; por fim,mais à frente, junto do condutor, um homem... não!,

um barrete, um enorme barrete de pele de coelho,que falava pouco e olhava a estrada com ar triste.todos se conheciam uns aos outros e falavam muito

alto da sua vida, com grande à-vontade. ocamarguense contava que vinha de nímes, porordem do juiz de instrução, devido a terem

agredido um pastor com um forcado tinham o

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agredido um pastor com um forcado. tinham osangue na guelra, os de camargue... mas os debeaucaire!... então os nossos dois beaucairenses não

estavam quase a engalfinhar-se por causa da virgemsanta? parece que o padeiro era de uma paróquiaonde havia muito tempo se venerava nossa senhora,

a quem os provençais chamam boa mãe por ter omenino jesus nos braços; por seu turno, oamassador cantava no coro de uma igreja muito

nova, consagrada ao culto da imaculada conceição,essa bela imagem sorridente que se representa comos braços pendentes e as mãos cheias de raios deluz. a questão vinha daí.Valia a pena ver como se insultavam aqueles doisbons católicos, a eles e às suas senhoras: - É fresca, atua imaculada! - deixa-me em paz com a tua boa

mãe! - assistiu a bonitas coisas, a tua, na palestina! -e a tua? ah, a indecente!... quem sabe o que ela fez...pergunta primeiro a são josé. para nos imaginarmos

no porto de nápoles, só faltava vermos reluzir asnavalhas, e, palavra de honra, estou convencido deque tão saboroso torneio teológico não teria ficado

por ali se o condutor não interviesse deixem nos

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por ali se o condutor não interviesse. - deixem-nossossegados com as vossas senhoras - disse, a rir, aosbeaucairenses. - isso são histórias de mulheres, em

que os homens não se devem meter. depois disto,fez estalar o chicote com um arzinho céptico quepôs toda a gente de acordo com ele. a discussão

terminara; mas o padeiro, que lhe tomara o gosto,necessitava de dar vazão ao resto da sua eloquênciae, virando-se para o infeliz do barrete, silencioso e

triste no seu canto, perguntou-lhe com archocarreiro: - e a tua mulher, ó amolador?... em queparóquia está ela agora?É de supor que houvesse nesta frase uma intençãomuito cómica, pois toda a imperial soltou umagrande gargalhada... o amolador, porém, não riu,nem se deu por achado. em vista disso, o padeiro

virou-se para o meu lado: - o senhor não conhece amulher dele? É uma sujeita divertida, garanto-lhe!em beaucaire não há duas como ela. as gargalhadas

redobraram. o amolador não tugiu nem mugiu;limitou-se a dizer baixinho, sem levantar a cabeça: -cala-te, padeiro. Mas o diabo do padeiro não tinha

vontade nenhuma de se calar e teimou: - papa-

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vontade nenhuma de se calar e teimou: - papa-açorda! não é de lamentar um camarada que temuma mulher dessas... pelo menos, um homem

nunca se aborrece com ela... imaginem! uma belaque levanta voo de seis em seis meses traz sempreque contar quando volta... não há dúvida, é um lar

muito divertido... imagine o senhor que ainda nãoestavam casados há um ano, zás! a mulher pôs-se aandar para espanha com um vendedor de chocolate.

o marido ficou sozinho em casa, a chorar e a beber...andava como louco. passado certo tempo, a belavoltou à terra, vestida de espanhola e com umapandeireta. todos nós lhe dizíamos:«Esconde-te; ele mata-te.» ah, pois sim, matá-la...voltaram a viver juntos, muito tranquilamente, e elaensinou-o a tocar pandeiro. nova explosão de

gargalhadas. no seu canto, sem levantar a cabeça, oamolador murmurou outra vez: - cala-te, padeiro. opadeiro não lhe ligou importância e continuou: - o

senhor julga, talvez, que depois de voltar deespanha a bela ficou sossegada... ah, mas não!... omarido tinha aceitado tão bem as coisas! apeteceu-

lhe recomeçar depois do espanhol arranjou um

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lhe recomeçar... depois do espanhol, arranjou umoficial, depois um marinheiro do ródano, depois ummúsico, depois um... que sei eu? e o engraçado é

que de todas as vezes se repete a mesma comédia. amulher parte, o marido chora; ela regressa, eleconforma-se. sempre que lha levam, torna a recebê-

la... imagine a resignação deste marido! manda averdade que se diga, porém, que a amoladorazinhaé extraordinariamente bonita... um petisco de fazer

crescer água na boca: viva, galante, reboludinha.além disso, tem a pele muito branca e uns olhos corde avelã que parecem rir quando vêem umhomem... enfim, meu caro parisiense, se algum diavoltar a passar por beaucaire... - oh!, cala-te,padeiro, suplico-te... - pediu mais uma vez o pobreamolador, num tom de voz dilacerante. naquele

momento, a diligência parou. estávamos no mas dosanglores. foi lá que os dois beaucairenses desceram,e juro-vos que fiquei satisfeito por os ver pelas

costas... que farsante de padeiro! estava já no pátiodo mas e ainda o ouvíamos rir. depois de elessaírem, a imperial pareceu ficar vazia. deixáramos o

camarguês em aries e o condutor seguia agora a pé

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camarguês em aries e o condutor seguia agora a pépela estrada, ao lado dos cavalos... estávamos sós láem cima, o amolador e eu, cada um no seu canto,

calados. fazia calor; o couro da capota escaldava. devez em quando, sentia os olhos fecharem-se-me e acabeça pesada; mas era impossível dormir. não me

saía dos ouvidos aquele «cala-te, suplico-te», tãopungente e suave... ele também não dormia. pobrehomem! Por detrás, via os seus ombros fortes

estremecerem e a sua mão - grande, macilenta egrosseira tremer nas costas do banco, como a mãode um velho. chorava... - chegámos, parisiense! -gritou-me de repente o condutor, e indicava-mecom a ponta do chicote a colina verde, com omoinho pousado no alto, como uma grandeborboleta. apressei-me a descer. ao passar perto do

amolador, tentei vê-lo por debaixo do barrete;queria observá-lo antes de partir. como se tivesseadivinhado o meu pensamento, o pobre homem

levantou bruscamente a cabeça, pousou o seu olharno meu e disse-me com voz surda: - olhe bem paramim, amigo, e, se um dia destes souber que se deu

uma desgraça em beaucaire, poderá dizer que

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uma desgraça em beaucaire, poderá dizer queconhecia quem a causou.Era uma figura aniquilada e triste, de olhos

pequenos e avelhentados. havia lágrimas naquelesolhos, mas na sua voz havia ódio. o ódio é a cólerados fracos!... se eu fosse a amoladora, teria medo.

O Segredo do Tio CornilleFrancet Mamai, um velho tocador de pífaro que

vem de tempos a tempos passar o serão comigo ebeber vinho quente, contou-me uma noite destasum dramazinho de aldeia de que o meu moinho foitestemunha há cerca de vinte anos. a história dobom homem comoveu-me e vou tentar contá-la talqual a ouvi. imaginem por instantes, meus carosleitores, que estão sentados diante de um canjirão

de vinho perfumado e que é um velho tocador depífaro quem lhes fala. - a nossa terra, meu bomsenhor, nem sempre foi um lugar estagnado e sem

alegria como é hoje. dantes, fazia-se aqui um grandecomércio de moagem, e, dez léguas em redor, agente dos mas trazia-nos o seu trigo para moer... a

toda a volta da aldeia, as colinas estavam cobertas

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toda a vo ta da a de a, as co as estava cobe tasde moinhos de vento. por todos os lados, só se viamaspas a girar, impelidas pelo mistral, por cima dos

pinheiros, récuas de burricos carregados de sacos,subindo e descendo ao longo dos caminhos, e toda asemana dava gosto ouvir lá nos altos o estalido dos

chicotes, o ranger das velas e os moços dos moleirosgritarem: «À esquerda! À direita!» aos domingos,subíamos em bandos aos moinhos. lá em cima, os

moleiros davam-nos moscatel. as moleiras erambelas como rainhas, com os seus lenços de rendas eas suas cruzes de ouro. eu levava o meu pífaro edançavam-se farândolas até ao cair da noite. comovê, os moinhos eram a alegria e a riqueza da nossaregião. «infelizmente, uns franceses de paristiveram a ideia de instalar uma fábrica de moagem

a vapor, na estrada de tarascon. outros tempos,outros ventos! as pessoas habituaram-se a mandaros seus cereais aos moageiros, e os pobres moinhos

de vento ficaram sem trabalho. Durante algumtempo, tentaram lutar, mas o vapor foi mais forte e,um após outro, catrapus!, foram todos obrigados a

fechar... nunca mais se viram chegar os burricos... as

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gbelas moleiras venderam as suas cruzes de ouro...acabou-se o moscatel! acabaram-se as farâmdolas!...

o mistral bem podia soprar, as aspas conservavam-se imóveis... depois, um belo dia, a comuna mandoudemolir todos esses pardieiros, e no seu lugar

plantaram-se vinhas e oliveiras. «contudo, no meioda derrocada, um moinho se conservou de pé econtinuou a girar corajosamente no alto da sua

colina, nas barbas dos moageiros. era o moinho dotio cornille, este mesmo em que estamos agora apassar o nosso serão.» «o tio cornille era um velhomoleiro que vivia há sessenta anos no meio dafarinha e que não se cansava de resmungar contra asua profissão. a instalação das moagens pô-lo comolouco. durante oito dias, viram-no correr pela

aldeia, amotinar toda a gente à sua volta e gritar aplenos pulmões que queriam envenenar a provençacom a farinha dos moageiros. "não vão lá", dizia ele.

"aqueles bandidos servem-se do vapor para fabricaro pão, e o vapor é uma invenção do diabo, ao passoque eu trabalho com o mistral e com a tramontana,

que são a respiração do senhor..." e como estas,

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q p ç ,descobria uma catadupa de bonitas palavras emlouvor dos moinhos de vento, mas ninguém as

escutava. «então, fora de si, o velho fechou-se noseu moinho e passou a viver só, como um animalferoz. nem sequer quis conservar junto de si a neta,

vivette, uma criança de 11 anos, que, desde a mortedos pais, não tinha mais ninguén no mundo alémdo avô. a pobre pequena viu-se obrigada a ganhar a

vida e a assalariar-se um pouco por toda a parte nosmas, umas vezes nas ceifas, outras para tratar dosbichos-da-seda, outras ainda na apanha da azeitona.e, no entanto, o avô dava mostras de querer muitoàquela criança. Às vezes, andava quatro léguas a pé,debaixo de sol ardente, para a ir ver ao mas ondetrabalhava, e quando estava ao pé dela passava

horas inteiras a olhá-la e a chorar... «na regiãopensava-se que o velho moleiro afastara vivette poravareza e considerava-se pouco digno dele deixar a

neta andar assim, de herdade em herdade, expostaàs brutalidades dos ganhões e a todas as misériasdas jovens nas suas condições. também se via com

muito maus olhos que um homem conceituado

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qcomo o tio cornille, e que, até ali, se dera aorespeito, andasse agora pelas ruas como um

autêntico cigano, descalço, com o barrete roto e afaixa em frangalhos... a verdade é que ao domingo,quando o víamos entrar na missa, nós, os velhos,

tínhamos vergonha dele; e cornille notava-o tãobem que já não se atrevia a ir sentar-se no banco dosmordomos. ficava sempre ao fundo da igreja, junto

da pia da água-benta, com os pobres. «na vida dotio cornille havia qualquer coisa pouco clara. apesarde há muito tempo ninguém da aldeia lhe levartrigo para moer, as velas do seu moinho

continuavam a girar como outrora... À tardinha,encontrava-se pelos caminhos o velho moleiro, atocar à sua frente o burro carregado de grandes

sacos de farinha. "boas tardes, tio cornille!",gritavam-lhe os aldeãos. "a moagem vai indo?" "vaiindo, vai indo, meus filhos", respondia o velho, com

ar prazenteiro. "graças a deus, trabalho não nosfalta.". «então, se lhe perguntavam donde diabopodia vir tanto labor, punha um dedo nos lábios e

respondia gravemente: "caluda! trabalho para

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p g pexportação..." nunca se conseguiu tirar dele mais doque isto. «quanto a meter o nariz no seu moinho,

nem pensar nisso. nem a própria pequena vivette láentrava... «quando alguém passava por lá, via aporta sempre fechada, as grandes aspas sempre em

movimento, o velho burro a pastar na erva daplataforma e um grande gato magro deitado ao solno parapeito da janela, que olhava para quem

passava com ar malicioso. «tudo isto cheirava amistério e dava azo a muita tagarelice na aldeia.cada um explicava à sua maneira o segredo do tiocornille, mas a voz geral era que havia no moinho

muito mais sacos de dinheiro do que de farinha.«Com o tempo, porém, tudo se descobriu. foi assim:«Quando fazia dançar a juventude ao som de meu

pífaro, notei, um belo dia, que o mais velho dosmeus rapazes e a pequena vivette se tinham tomadode amores um pelo outro. no fundo, não fiquei

aborrecido, porque, apesar de tudo,considerávamos cornille um homem honrado e, nofim de contas, vivette era um lindo passarinho que

gostaria de ver saltitar pela minha casa. apenas,

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como os nossos apaixonados tinham muitasocasiões de estar juntos, quis, para evitar

complicações, resolver o assunto imediatamente, esubi ao moinho para trocar duas palavras com oavô... ah, o velho manhoso! se soubesse como me

recebeu! foi-me impossível conseguir que meabrisse a porta. expliquei-lhe as minhas razões omelhor que pude, através do buraco da fechadura, e

durante todo o tempo que falei o tratante do gatomagro não deixou de bufar como um demónio porcima da minha cabeça. «o velho não me deu tempode terminar; gritou-me muito grosseiramente que

voltasse para a minha flauta, que se tinha pressa decasar o meu filho, podia bem ir procurar-lhe noiva àfábrica da moagem... veja se não era caso para o

sangue me subir à cabeça ao ouvir tão más palavras.tive, porém, suficiente bom senso para me conter e,deixando o velho louco com a sua mó, fui anunciar

aos pequenos o meu malogro... os pobrespombinhos nem queriam acreditar. Pediram-me portudo que os deixasse subir junto ao moinho e falar

ao avô... não tive coragem de recusar e, pronto!, osd h

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meus apaixonados puseram-se a caminho.«Precisamente quando chegaram lá acima, o tio

cornille acabava de sair. a porta estava fechada àchave com duas voltas; mas o pobre velho deixara aescada de mão da parte de fora e os pequenos

tiveram de repente a ideia de entrar pela janela,para dar uma vista de olhos ao que havia no famosomoinho... «coisa singular: a câmara da mó estava

vazia!... nem um saco, nem um grão de trigo; nemuma partícula de farinha nas paredes, nem nas teiasde aranha... não se notava sequer o bom cheiroquente a frumento moído, que perfuma os

moinhos... o velho motor estava coberto de poeira eo grande gato magro dormia lá em cima. «ocompartimento de baixo tinha o mesmo ar de

miséria e abandono: uma cama miserável, algunsandrajos, um naco de pão num degrau da escada, epor fim, a um canto, três ou quatro sacos

arrebentados, dos quais saíam caliça e saibro. «eraeste o segredo do tio cornille! era entulho o quepasseava à tarde pelas estradas, para salvar a honra

do moinho e fazer crer que se tratava de farinha...b i h ! b ill ! h i i

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pobre moinho! pobre cornille! havia muito tempoque os moageiros lhe tinham levado o último

freguês. as velas giravam sempre, mas a mótrabalhava em vão. «os pequenos regressarambanhados em lágrimas e contaram-me o que tinham

visto. senti o coração cortar-se-me ao ouvi-los... semperda de um minuto, corri a casa dos vizinhos,contei-lhes tudo em duas palavras e assentámos queera necessário levar imediatamente ao moinho decornille todo o frumento que houvesse nas casas...meu dito, meu feito. toda a aldeia se pôs a caminhoe chegámos lá acima com um cortejo de burros

carregados de trigo - de verdadeiro trigo, claro!O moinho estava aberto de par em par... diante daporta, o tio cornille, sentado num saco de caliça,

chorava, com a cabeça entre as mãos. descobrira, aochegar, que durante a sua ausência alguém entrarano moinho e surpreendera o seu triste segredo.

«'pobre de mim!», dizia ele. «agora só me restamorrer... o moinho está desonrado.» «e soluçava demodo que cortava o coração, chamava ao moinho

toda a espécie de nomes, falava-lhe como se fossetê ti

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uma autêntica pessoa.Naquele momento, os burros chegaram à

plataforma e nós pusemo-nos todos a gritar muitoalto, como nos bons tempos dos moleiros: "Ó domoinho! Ó tio cornille!" «e os sacos começaram a

empilhar-se diante da porta, e o belo grão lourocomeçou a espalhar-se pelo chão, por todos oslados... «o tio cornille abriu muito os olhos. tomaraum punhado de trigo na palma da sua velha mão edizia, rindo e chorando ao mesmo tempo: "É trigo!...meu deus!... bom trigo!... deixem-me vê-lo." «depoisvirou-se para nós: "ah! eu bem sabia que haviam de

voltar... todos esses moageiros são uns ladrões."«quisemos levá-lo em triunfo à aldeia, mas opôs-se:"não, não, meus filhos; antes de mais nada, tenho de

dar de comer ao meu moinho... vejam! há tantotempo que não lhe passa nada pelos dentes!" «todosnós víamos, de lágrimas nos olhos, o pobre velho

afadigar-se para a direita e para a esquerda, adespejar os sacos, a inspeccionar a mó, enquanto ogrão era esmagado e a poeira fina do frumento

subia até ao tecto. «faça-se-nos justiça: a partird l di d i á t b lh lh

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daquele dia, nunca deixámos sem trabalho o velhomoleiro. depois, uma manhã, o tio cornille morreu e

as velas do nosso último moinho deixaram de girar,desta vez para sempre... morto cornille, ninguémlhe sucedeu. que lhe havemos de fazer. tudo acaba

neste mundo, e temos de nos convencer de que otempo dos moinhos de vento passou, como passouo dos barcos de passageiros do ródano, o dosparlamentos das casacas bordadas.

A Cabra do Sr. SeguinAo sr. pierre gringoire, poeta lírico de paris. hás-de

ser sempre o mesmo, meu pobre gringoire! como?!então, oferecem-te o lugar de cronista num bomornal de paris e tens a coragem de recusar?... olha

para ti, infeliz rapaz! repara nesse gibãoesburacado, nesses calções arruinados, nessa caramagra de faminto. vê aonde te levou a paixão pelas

belas rimas! vê o que ganhaste em dez anos de leaisserviços como pajem de mestre apolo... enfim, que éfeito da tua vergonha? faz-te cronista, imbecil! faz-te

cronista! ganharás bom dinheiro sem te ralaresmuito terás o teu talher no brébant e poderás

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muito, terás o teu talher no brébant e poderásostentar nos dias de estreia uma pluma nova no

barrete... não? não queres? pretendes ser livre à tuamaneira até ao fim... pois bem, presta um pouco deatenção à história da cabra do sr. seguin. verás o

que se ganha com querer viver livre. o sr. seguinnunca fora muito feliz com as suas cabras. perdia-astodas da mesma maneira: uma bela manhã, partiama corda, fugiam para a montanha e, lá em cima, olobo comia-as. nem as carícias do dono, nem omedo do lobo, nada as retinha. eram o que se podedizer cabras independentes, queriam a todo o custo

o ar livre e a liberdade. o bom do sr. seguin, que nãopercebia nada do carácter dos seus animais, andavaconsternado. dizia ele: «acabou-se, as cabras

aborrecem-se junto de mim, não consigo segurarnem uma.Todavia, não desanimava, e, depois de perder seis

cabras da mesma maneira, comprou a sétima.apenas, desta vez, tomou o cuidado de a prenderdesde novinha, para que se habituasse melhor a

viver em sua casa. ah, gringoire, como era bonita acabrinha do sr Seguin!

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cabrinha do sr. Seguin!Como era linda com os seus olhos doces, a sua

barbicha de sargento, os seus cascos negros ebrilhantes, os seus chifres listrados e o seucomprido pêlo branco, que lhe dava o aspecto de

andar de manto! era quase tão encantadora como ocabrito da esmeralda - lembras-te, gringoire? - e,dócil, meiga, deixava-se ordenhar sem se mexer,sem meter as patas na gamela. um amor decabrinha... o sr. seguin tinha nas traseiras da casaum logradouro cercado de pilriteiros. foi lá quemeteu a nova pensionista. amarrou-a a uma estaca,

no sítio mais agradável do terreno, tendo o cuidadode lhe deixar a corda bastante comprida, e detempos a tempos ia ver se ela estava bem. a cabra

sentia-se muito feliz e tosava a erva com tantoapetite que o sr. seguin andava radiante. «enfim»,pensava o pobre homem, «aqui está uma cabra que

não se aborrece junto de mim!» o sr. seguinenganava-se; a cabra aborrecia-se. um dia, ela dissepara consigo, olhando a montanha: «como se deve

estar bem lá em cima! que prazer cabriolar na urze,sem esta maldita arreata que me esfola o pescoço!

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sem esta maldita arreata que me esfola o pescoço!...pastar num cercado é bom para os burros e para os

bois!... as cabras precisam de largueza.» a partirdaquele momento, a erva do cercado pareceu-lheinsípida. sobreveio-lhe o tédio. emagreceu e o seu

leite tornou-se pouco abundante. metia pena vê-lapuxar todo o dia a corda, com a cabeça virada parao lado da montanha, as narinas dilatadas e balirtristemente: «mmmmmeeeee!...» o sr. seguin notouperfeitamente que a cabra tinha qualquer coisa, masnão foi capaz de descobrir o que era...Uma manhã, quando acabava de a ordenhar, a

cabra virou-se para ele e disse-lhe na sualinguagem: - escute, sr. seguin: definho em sua casa;deixe-me ir para a montanha. - ah, meu deus!... ela

também!-gritou o sr. seguin, estupefacto; e, desúbito, deixou cair o balde do leite. depois, sentou-se na erva ao lado da cabra e lamentou-se: - então,

blanquette, queres deixar-me? e blanquetterespondeu: - sim, sr. seguin. - falta-te erva aqui? -oh, não, sr. seguin! - estás talvez presa muito curta.

queres que ponha a corda mais comprida? - nãovale a pena sr seguin - então que te falta? que

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vale a pena, sr. seguin. - então, que te falta? quequeres? - quero ir para a montanha, sr. seguin. -

mas, desgraçada, não sabes que há lá lobos namontanha?... que farás quando algum aparecer?... -dar-lhe-ei marradas, sr. seguin. - o lobo escarnecerá

das tuas marradas. já me comeu cabras com chifresbem maiores do que os teus... lembras-te da pobre evelha renaude, que estava cá o ano passado? umacabra grande, forte e ruim como um bode? lutoucom um lobo toda a noite... e depois, de manhã, olobo comeu-a. - imaginem! pobre renaude!... masisso não quer dizer nada, sr. seguin. deixe-me ir

para a montanha. - valha-me deus!... - exclamou osr. seguin. - que terão feito às minhas cabras? maisuma que o lobo vai comer... ah, não... hei-de salvar-

te, quer queiras, quer não queiras, velhaca! e, paraque não quebres a corda, vou-te fechar no curral,onde ficarás para sempre. dito isto, o sr. seguin

levou a cabra para um curral muito escuro e fechou-lhe a porta com duas voltas de chave.

Infelizmente, esqueceu-se da janela, e, mal viroucostas, a cabrinha fugiu tu ris, gringoire? por deus,

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costas, a cabrinha fugiu... tu ris, gringoire? por deus,creio bem que sim! tomaste o partido das cabras,

contra o bom sr. seguin... vejamos se continuas a rir.quando a cabra branca chegou à montanha, aadmiração foi geral. jamais os velhos abetos tinham

visto nada tão bonito. receberam-na como umapequena rainha. os castanheiros inclinaram-se atéao chão para a afagar com a ponta dos seus ramos.as giestas douradas abriam-se à sua passagem erequintavam o seu aroma o mais que podiam. todaa montanha a festejava. imagina, gringoire, como anossa cabra se devia sentir feliz! nem corda, nem

estaca... nada que a impedisse de retouçar, de pastarà vontade... ali é que havia erva! tão alta que lhechegava acima dos chifres, meu caro!... e que erva!

saborosa, fina, denteada, composta das maisvariadas plantas... era muito diferente da erva docercado. as flores, então!... grandes campainhas

azuis, dedaleiras purpúreas de longos cálices, umautêntico jardim de flores silvestres, transbordantesde seiva capitosa!... a cabra branca, meio inebriada,

espojava-se de pernas para o ar, rolava ao longo dostaludes, de mistura com as folhas caídas e com as

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taludes, de mistura com as folhas caídas e com ascastanhas... depois, de repente, levantava-se de um

salto, nas patas. upa! e corria com a cabeça inclinadapara diante, através das moitas e dos buxais, eaparecia ora no alto dum cabeço, ora no fundo de

um barranco, tão depressa lá em cima como cá embaixo, por toda a parte... dir-se-ia haver dez cabrasdo sr. seguin na montanha. blanquette não tinhamedo de nada. transpunha de um salto as grandestorrentes, que a salpicavam de passagem de umapoalha húmida e de espuma. depois, a escorrer, iaestender-se numa rocha plana, a secar ao sol... uma

vez, ao abeirar-se de uma planura, com uma flor decítiso nos dentes, avistou lá em baixo, ao fundo daplanície, a casa do sr. seguin, com o seu cercado nas

traseiras. a descoberta fê-la rir até às lágrimas. «quepequenina!», exclamou. «como pude viver alidentro?» Pobrezita! Por se ver empoleirada tão alto,

ulgava-se pelo menos tão grande como o mundo...em suma, foi um dia bem passado para a cabra dosr. seguin. por volta do meio-dia, correndo de um

lado para o outro, foi cair no meio de um rebanhode cabritos monteses que se preparavam para

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de cab tos o teses que se p epa a a pa adevorar uma videira brava. a nossa

vagabundazinha vestida de branco causousensação. deram-lhe a melhor parte da videirabrava e todos aqueles cavalheiros foram muito

gentis... parece até - mas isto deve ficar entre nós,gringoire - que um jovem cabrito montês de pêlonegro teve a sorte de agradar a blanquette. os doisapaixonados vaguearam pelo bosque uma ou duashoras, mas, se queres saber de que falaram, vaiperguntá-lo às nascentes tagarelas que correminvisíveis pelo musgo.

De súbito, o vento refrescou. a montanha tingiu-sede cor de violeta; a noite aproximava-se... «já?!»,exclamou a cabrinha, e deteve-se muito admirada.

lá em baixo, os campos cobriam-se de bruma. ocercado do sr. seguin sumira-se no nevoeiro e dacasinha só se via o telhado, donde saía um pouco de

fumo. ela ouviu os chocalhos de um rebanho querecolhia e sentiu a alma muito triste... um gerifalteque regressava ao seu poiso tocou-lhe de passagem

com as asas. ela estremeceu... e a seguir ouviu-seum uivo na montanha: «huuuu! huuu!» lembrou-se

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do lobo; do lobo em que não pensara durante todo o

dia... ao mesmo tempo, soou uma trompa, muito aolonge, no vale. era o bom do sr. seguin que tentavaum derradeiro esforço. «huuu! huuu!...», uivava o

lobo. «volta! volta!...», gritava a trompa. Blanquettesentiu vontade de voltar; mas, ao recordar-se daestaca, da corda, da sebe do cercado, pensou que jánão podia habituar-se àquela vida e que mais lhevalia ficar. a trompa calara-se... a cabra ouviu atrásde si um ruído de folhas. virou-se e viu na sombraduas orelhas curtas, muito direitas, e dois olhos

reluzentes... era o lobo. enorme, imóvel, sentado nosquartos traseiros, observava a cabrinha branca esaboreava-a antecipadamente. como tinha a certeza

de que a comeria, o lobo não se apressava; apenas,quando ela se virou, se pôs a rir malevolamente.«ah! ah! a cabrinha do sr. seguin», e passou a

grande língua vermelha pelos beiços ressequidos.blanquette sentiu-se perdida... por instantes, aorecordar-se da história da velha renaude, que lutara

toda a noite, mas acabara por ser comida de manhã,disse para consigo que talvez fosse melhor deixar-se

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p g qcomer imediatamente; depois, mudou de opinião,

pôs-se em guarda, de cabeça baixa e chifres emriste, como uma valente cabra do sr. seguin que seprezava de ser... não era que esperasse matar o lobo

as cabras não matam os lobos -, mas somente paraver se poderia resistir tanto tempo como arenaude... então, o monstro avançou e oschifrezinhos entraram em acção. ah, valentecabrinha, como ela lutava com coragem! mais dedez vezes - não minto, gringoire - forçou o lobo arecuar para tomar alento. durante aquelas tréguas

de um minuto, a gulosa colhia ainda,apressadamente, um rebento da sua querida erva;depois, retomava o combate, com a boca cheia... isto

durou toda a noite. de tempos a tempos, a cabra dosr. seguin olhava as estrelas que dançavam no céuenluarado e dizia para consigo: «oh! contanto que

resista até ao romper da aurora...»Uma após outra, as estrelas extinguiram-se.blanquette redobrou as marradas, o lobo as

dentadas... uma claridade pálida surgiu nohorizonte... o canto rouco do galo elevou-se de uma

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ggranja. «enfim!», disse o pobre animal, que só

esperava o dia para morrer; e caiu por terra, com asua bela pelica branca toda manchada de sangue...então, o lobo lançou-se sobre a cabrinha e comeu-a.

adeus, Gringoire! a história que acabas de ler não éum conto da minha invenção. se algum dia vieres àprovença, os nossos camponeses falar-te-ão muitasvezes da cabra de moussu seguin, que se battéguetouto la néui eme lou loup, e piei lou matin lou loupla mangé. Creio que me entendes bem, gringoire: epiei lou, matin lou loup la mangé.

A cabra do sr. seguin, que se bateu toda a noite como lobo, e depois, pela manhã, o lobo comeu-a.

As Estrelas – Narrativa de um postor provençalNo tempo em que guardava gado no luberon,andava semanas inteiras sem ver vivalma, sozinho

nas pastagens com o meu cão labri e as minhasovelhas. de tempos a tempos, o eremita do montedo ure passava por lá à procura de ervas medicinais

ou então avistava o rosto mascarado de algumcarvoeiro do piemonte; mas eram criaturas simples,

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silenciosas à força de isolamento, que tinham

perdido o gosto de falar e que nada sabiam arespeito do que se dizia no vale, nas aldeias e nascidades. por isso, de quinze em quinze dias, quando

ouvia, na ladeira, os chocalhos do macho da nossaherdade, que me levava as provisões da quinzena, evia aparecer pouco a pouco, no alto da encosta, acabeça esperta do pequeno miarro (moço deherdade) ou a coifa amarelada da velha tia norade,sentia-me verdadeiramente feliz. pedia-lhes que mecontassem as novidades do vale, os baptismos e os

casamentos; mas o que sobretudo me interessavaera saber o que fizera a filha dos meus amos, anossa menina stéphanette, a mais bonita que existia

dez léguas em redor. sem ter o ar de estar muitointeressado, informava-me se ia muito a festas, aserões, se lhe continuavam a aparecer novos

pretendentes; e, se me perguntassem porque meinteressava por tais coisas - a mim, pobre pastor damontanha -, responderia que tinha 20 anos e que

stéphanette era o que eu vira de mais belo na minhavida. ora, num domingo em que esperava os víveres

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da quinzena, aconteceu só chegarem muito tarde.

de manhã, disse para comigo: «É por causa da missacantada»; depois, por volta do meio-dia,desencadeou-se uma grande tempestade e pensei

que a muar não se tivesse podido meter à montanhadevido ao mau estado dos caminhos. enfim, cercadas três horas, com o céu já lavado e a montanhabrilhante de água e de sol, ouvi, por entre o gotejardas folhas e o trasbordar das águas caudalosas dosriachos, os chocalhos da muar, tão alegres, tãovivos, como um grande carrilhão de sinos em

domingo de páscoa. mas não era o pequenomicarro, nem a velha norade, que a conduzia. era...adivinhem quem!... a nossa menina, meus filhos! a

nossa menina em pessoa, sentada muito direitaentre os seirões de esparto, toda corada do ar dasmontanhas e do fresco do temporal. o pequeno

estava doente e a tia norade fora passar férias a casados filhos. a bela stéphanette contou-me tudo istoenquanto descia da muar e também que chegava

tarde porque se perdera no caminho; mas, ao vê-latão bem endomingada, com a sua fita florida, ia sua

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saia elegante e as suas rendas, achei-lhe mais o

aspecto de quem se tivesse atardado nalguma dançado que à procura do caminho nos bosques. oh, quecriatura tão gentil! os meus olhos não se cansavam

de a admirar. É verdade que nunca a vira tão deperto. Às vezes, no inverno, quando os rebanhosdesciam à planície e eu regressava à noite à herdadepara cear, ela atravessava a sala apressadamente,sem sequer falar aos criados, sempre enfeitada e umpouco altiva... mas agora tinha-a diante de mim, sópara mim. não era de perder a cabeça? depois de

tirar as provisões do cesto, stéphanette pôs-se aolhar curiosamente à sua volta. levantando umpouco a sua bela saia domingueira para a não sujar,

entrou no redil, quis ver o canto onde me deitava -uma manjedoura com uma pele de carneiro porcima da palha -, o meu grande capote pendurado na

parede, o meu cajado e a minha espingarda depederneira. tudo aquilo a divertia. - então, é aquique vives, meu pobre pastor? como te deves

aborrecer de estar sempre só! que fazes? em quepensas?...

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Tive vontade de lhe responder: «em si, patroa», e

não lhe teria mentido. mas a minha perturbação eratão grande que não fui capaz de pronunciar uma sópalavra. creio bem que notou o meu embaraço e que

sentia um prazer maldoso em o aumentar com assuas palavras maliciosas. - e a tua namorada, pastor,sobe a ver-te algumas vezes?... deve ser, comcerteza, a cabra de ouro ou a fada estérelle, quenunca sai do cume das montanhas... e ela própria,enquanto me falava, parecia perfeitamente a fadaestérelle, a sorrir com a cabeça inclinada e com a

pressa de se ir embora, que dava à sua visita todo oar de uma aparição. - adeus, pastor. - deus a guarde,patroa. e lá partiu, com os cestos vazios. quando

desapareceu no carreiro inclinado, pareceu-me queos seixos que rolavam debaixo das patas da muarme caíam um a um no coração. ouvi-os durante

muito tempo e até ao fim do dia estive como queadormecido, sem ousar mexer-me, com receio dedissipar o meu sonho. À tardinha, quando o fundo

dos vales começava a tingir-se de azul e os animaisse apertavam, balindo, uns contra os outros, para

dil i h d i

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entrar no redil, ouvi chamarem-me da encosta e vi

aparecer a nossa menina, não já risonha, comosempre, mas sim a tremer de frio e de medo, todamolhada. parece que encontrara no sopé da encosta

o sorgue muito engrossado pela chuva datempestade e que, como teimara em transpor acorrente, estivera em risco de se afogar. o pior eraque àquela hora da noite não se podia pensar no seuregresso à herdade, porque, sozinha, a nossamenina nunca seria capaz de atinar com o caminhoe eu não podia abandonar o rebanho. a ideia de

passar a noite na montanha atormentava-a muito,sobretudo por causa da inquietação dos seus. euprocurava tranquilizá-la o melhor que podia: - em

ulho, as noites são curtas, patroa... isto não passa deuma pequena contrariedade.Acendi imediatamente uma grande fogueira, para

que secasse os pés e o vestido, encharcado da águado sorgue. a seguir, pus-lhe diante leite e queijos deovelha. mas a pobre pequena não pensava nem em

se aquecer, nem em comer, e ao ver subirem-lhe aosolhos lágrimas grossas como punhos apeteceu-meh t bé t t t it

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chorar também. entretanto, a noite cerrou-se por

completo. na crista das montanhas já só se via umapoalha de sol, um vapor luminoso do lado dopoente. quis que a nossa menina dormisse no redil.

estendi na palha fresca uma bela pele novinha emfolha, dei-lhe as boas-noites e fui sentar-me da partede fora. diante da porta... Deus é testemunha deque, apesar do fogo de amor que me queimava osangue, não tive nenhum mau pensamento; apenassentia um grande orgulho só de pensar que numcanto do redil, junto do rebanho que curioso, a via

dormir, a filha dos meus amos - como uma ovelhamais preciosa e mais branca do que todas as outrasrepousava, confiada à minha guarda. jamais o céu

me parecera tão profundo, as estrelas tãobrilhantes... de repente, o cancelo do redil abriu-se ea bela Stéphanette apareceu. não podia dormir. os

animais faziam ranger a palha ao mexerem-se oubaliam nos seus sonhos, preferia vir para junto dofogo. então, pus-lhe a minha pele de cabra pelos

ombros, espertei o lume e ficámos sentados um aopé do outro, sem falar. se alguma vez passaram a

it l t d b t

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noite ao relento, devem saber que enquanto

dormimos o mundo misterioso desperta na solidãoe no silêncio. nessa altura, as nascentes cantam maiscristalinamente e os charcos cobrem-se de

chamazinhas. todos os espíritos da montanha vão evêm livremente e pairam no ar rumores, ruídosimperceptíveis, como se se ouvisse os ramos crescere a erva brotar. o dia é a vida dos seres, mas a noiteé a vida das coisas. quando se não está habituado,mete medo! também a nossa menina estava todaarrepiada e se chegava muito para mim ao menor

ruído. uma vez, um grito prolongado, melancólico,saiu de um charco que brilhava mais abaixo e subiuaté nós, ondulante. no mesmo instante, uma bela

estrela cadente deslizou por cima das nossascabeças, na mesma direcção, como se o queixumeque acabávamos de ouvir trouxesse uma luz

consigo. - que foi? - perguntou-me stéphanette, emvoz baixa. - uma alma que entrou no paraíso, patroa- e fiz o sinal da cruz. persignou-se também e ficou

um momento de cabeça levantada, muito atenta.depois, disse-me: - É então verdade, pastor, quevocês são feiticeiros? de modo algum menina mas

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vocês são feiticeiros? - de modo algum, menina. mas

aqui vivemos muito mais perto das estrelas esabemos melhor o que se passa no céu do que aspessoas da planície. ela não tirava os olhos do alto,

com a cabeça apoiada na mão, embrulhada na pelede carneiro, como um pastorinho celeste. - queinfinidade de estrelas! como são belas! nunca tinhavisto tantas... sabes como se chamam, pastor? - claroque sei, patroa... escute! mesmo por cima de nós,está a estrada de santiago (a via láctea), que vai defrança direita a espanha. foi sant'iago da galiza que

a traçou, para mostrar o caminho ao valente carlosmagno, quando este andava em guerra com ossarracenos(1). mais longe, tem o carro das almas (a

ursa maior], com os seus quatro eixosresplandecentes. as três estrelas que vão à frente sãoas três cavalgaduras e aquela pequenina, ao pé da

terceira, é o cocheiro. vê a toda a volta aquela chuvade estrelas cadentes? são as almas que deus nossosenhor não quer no céu... um pouco mais abaixo

está o ancinho, ou os três reis (orion), que serve derelógio aos pastores. basta-me olhar para lá parasaber que já passa da meia noite um pouco mais

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saber que já passa da meia-noite. um pouco mais

abaixo, sempre para o lado do meio-dia, brilha joãode milão, o guia dos astros (sírio). quer saber o queos pastores contam acerca desta estrela? parece que,

uma noite, joão de milão, os três reis e o sete-estrelo(plêiades) foram convidados para a boda de umaestrela das suas relações.O sete-estrelo, mais apressado, partiu,! diz-se, àfrente, e tomou o caminho de cima. veja-o, lá noalto, mesmo ao fundo do céu. os três reis cortarammais por baixo e apanharam-no; mas o preguiçoso

do joão de milão, que dormira até mais tarde, ficoumuito para trás. furioso, para os deter, atirou-lhescom o seu bastão. É por isso que os três reis se

chamam também o bastão de joão de milão... mas amais bela de todas as estrelas, patroa, é a nossa, aestrela do pastor, que nos alumia ao romper da

aurora, quando saímos com o rebanho, e também àtarde, quando regressamos. também lhe chamamosa maguelona, a bela maguelona, que corre atrás de

pedro de provença (saturno) e casa com ele de seteem sete anos. - como, pastor, então também hácasamentos de estrelas?! sim patroa e quando

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casamentos de estrelas?! - sim, patroa. e, quando

pretendi explicar-lhe o que eram tais casamentos,senti qualquer coisa fresca e macia pesar-meligeiramente no ombro. era a sua cabeça aturdida de

sono encostada a mim que me proporcionava ocontacto agradável de fitas, de rendas e de cabelosondulados. ficou cem se mexer até os astrosempalidecerem no céu, ofuscados pelo dia nascente.fiquei a vê-la dormir, um pouco perturbado nofundo do meu ser. mas santamente protegido poraquela noite límpida que só me dera bons

pensamentos. em redor de nós, as estrelascontinuavam a sua caminhada silenciosa, dóceiscomo um grande rebanho, e por momentos

imaginei que uma daquelas estrelas, a mais delicadae a mais brilhante, se perdera no caminho e vierapousar no meu ombro para dormir...(1)Todos estes pormenores de astronomia popularsão transcritos do almanaque provençal, que sepublica em avinhão.

A arlesianaPara ir à aldeia, quem desce do meu moinho passadiante de um mas erguido à beira da estrada ao

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diante de um mas erguido à beira da estrada, ao

fundo de um grande pátio rodeado de lódãos-bastardos. É uma verdadeira casa de lavrador daprovença, com as suas telhas vermelhas, a sua

ampla fachada sombria, de janelas irregulares, e, láno cimo de tudo, o cata-vento do sótão, a roldanapara içar as medas e alguns tufos de feno trigueirosalientes... porque me impressionara esta casa? porque motivo aquele portal fechado me oprimia ocoração? não o poderia dizer, e, no entanto, aquelahabitação causava-me arrepios. reinava um grande

silêncio à sua volta... quando alguém passava, oscães não ladravam e as pintadas fugiam semcacarejar... lá dentro, nem uma voz! nada, nem

mesmo o som de um guizo de mula... sem ascortinas brancas das janelas e o fumo que se erguiaacima do telhado, julgar-se-ia o local desabitado.ontem, por volta do meio-dia, voltava eu da aldeiae, para evitar o sol, seguia rente aos muros daherdade, à sombra dos lódãos-bastardos... na

estrada, diante do mas, criados silenciososacabavam de carregar uma carroça de feno... oportal ficara aberto deitei uma olhadela de

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portal ficara aberto. deitei uma olhadela, de

passagem, e vi ao fundo do pátio, com os cotovelosem cima de uma grande mesa de pedra e a cabeçaentre as mãos, um velho alto, todo branco, com uma

véstia muito curta e os calções em farrapos... parei.um dos homens disse-me, baixinho: «caluda! É opatrão... está assim desde a desgraça do filho.»naquele momento, uma mulher e um garoto,vestidos de preto, passaram junto de nós comgrandes devocionários dourados e entraram naherdade.

O homem acrescentou:- ... a patroa e cadet, que vêm da missa. vão à igrejatodos os dias, desde que o menino se matou... ah,

senhor, que desolação!... o pai traz ainda o fato domorto; ninguém consegue que o tire... para o quehavia de lhe dar! a carroça preparava-se para partir.como queria saber mais pormenores, pedi aococheiro que me deixasse subir para o seu lado e foi

lá em cima, no feno, que ouvi toda esta históriapungente.Ele chamava-se jan. era um admirável aldeão de 20

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Ele chamava se jan. era um admirável aldeão de 20

anos, recatado como uma rapariga, forte e de rostofranco. como era muito belo, as mulheres olhavam-no; mas ele só uma trazia na cabeça: uma

arlesianazinha, toda veludos e rendas, queencontrara uma vez na arena de aries. ao princípio,no mas, não viram com bons olhos tal ligação. arapariga passava por leviana e os pais não eram daregião. mas Jan queria a sua arlesiana desse poronde desse e dizia: «se não ma derem, morro.»tiveram de desistir e decidiram casá-los depois da

ceifa. ora, um domingo à tarde, a família acabava deantar no pátio do mas. fora quase uma boda. anoiva não assistira, mas bebera-se constantemente à

sua saúde... um homem apresentou-se à porta e,com voz trémula, pediu para falar ao patrão esteve,só a ele. esteve levantou-se e saiu para a estrada. -patrão - disse-lhe o homem -, sei que vai casar o seufilho com uma desavergonhada que foi minhaamantf durante dois anos. posso provar o que digo;

aqui estão cartas!... os pais sabem tudo e já matinham prometido mas desde que o seu filho arequesta, nem eles nem minha amante quiseram

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requesta, nem eles nem minha amante quiseram

mais saber de mim... creio, porém que depois detudo isto ela não poderá ser mulher de outro - estábem - disse o patrão esteve, depois de ver as cartas -

, entre e beba um copo de moscatel.O homem respondeu:Obrigado! tenho mais mágoa do que sede. - e foi-

se embora.O pai voltou a entrar, impassível, reocupou o seulugar à mesa e o repasto acabou alegremente...naquela tarde, o patrão esteve e o filho foram juntos

para o campo. estiveram muito tempo fora. quandoregressaram, a mãe ainda os esperava. - mulher -disse o lavrador, indicando-lhe o filho -, beija-o! É

um desgraçado... jan nunca mais falou da arlesiana.no entanto, continuava a amá-la, e talvez mais doque nunca, desde que lha tinham mostrado nosbraços de outro. somente, como era muitoorgulhoso, nada dizia. foi o que matou o pobrerapaz!... Às vezes, passava dias inteiros sozinho a

um canto, sem se mexer. noutros dias, deitava-se àterra com raiva e fazia sozinho o trabalho de dezornaleiros... ao cair da tarde, metia-se à estrada de

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aries e caminhava em frente até ver surgir nopoente os campanários esguios da cidade. então,voltava para trás. nunca ia mais longe. ao vê-lo

assim, sempre triste e só, a gente do mas não sabiaque mais fazer. receava-se uma desgraça... uma vez,à mesa, a mãe fitou-o com os olhos rasos delágrimas e disse-lhe: - pois bem; escuta, jan: se aqueres, apesar de tudo, damos-ta... o pai, rubro devergonha, baixou a cabeça... jan fez sinal que não esaiu... a partir daquele dia, mudou de vida; simulou

estar sempre alegre, para sossegar os pais. tornarama vê-lo no baile, na taberna, nas feiras. na romariade fonvieille foi ele quem dirigiu a farândola. O pai

dizia: «está curado.» a mãe, essa vivia num receioconstante e mais do que nunca vigiava o filho... jandormia com cadet, junto do viveiro dos bichos-da-seda; a pobre velha mandou armar uma cama aolado do quarto deles... os bichos-da-seda podiamprecisar dela, durante a noite... chegou a festa de

santo elói, padroeiro dos lavradores. grande alegriano mas... houve chãteauneuf para toda a gente evinho velho como se fosse chuva. depois, petardos,

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fogos-de-artifício, balões de cores em todos osramos dos lódãos-bastardos... viva santo elói!dançou-se a farândola até fartar. cadet queimou a

sua blusa nova... o próprio jan parecia muitocontente. quis mesmo obrigar a mãe a dançar. apobre mulher chorava de felicidade. À meia-noiteforam-se deitar. toda a gente precisava de dormir...an, esse, não dormiu. cadet contou depois quelevara toda a noite a soluçar... ah, aquele foraatingido em cheio!... no dia seguinte, ao romper da

aurora, a mãe ouviu alguém atravessar-lhe o quartoa correr e teve como que um pressentimento. - jan,és tu? jan não respondeu; ia já na escada. a mãe

levantou-se apressadamente. - jan, aonde vais? elesubiu ao sótão; ela subiu atrás dele. - meu filho, emnome do céu! ele fechou a porta e correu o ferrolho.

Jan, meu filho, responde-me. que vais fazer? Àsapalpadelas, com as velhas mãos a tremer, procurouo loquete... uma janela que se abre, o ruído de um

corpo nas lajes do pátio, e mais nada... o pobrerapaz dissera: «amo-a demasiado... não possomais...» ah, miseráveis corações os nossos! É muito

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triste que o desprezo não consiga matar o amor!...Naquela manhã, a gente da aldeia perguntava a siprópria quem gritaria assim, para as bandas do mas

de esteve. era a mãe do rapaz, completamentedespida, que no pátio, diante da mesa de pedra,coberta de orvalho e de sangue, se lamentava com ofilho morto nos braços.

A Mula do PapaDe todas as bonitas sentenças, provérbios ou

adágios que os nossos aldeãos da provençaintroduzem nas suas conversas, não conheçonenhum mais pitoresco nem mais singular do que

este. quinze léguas em redor do meu mói nho,quando se fala de um homem rancoroso, vingativo,diz-se: «desconfiem daquele homem!... É como amula do papa, que guardou sete anos o seu coice.»procurei durante muito tempo a origem desteprovérbio, qual seria a mula papal e o coice

guardado durante sete anos. ninguém aqui me pôdeinformar a tal respeito, nem mesmo francet mamai',o meu tocador de pífaro, que no entanto conhece as

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lendas provençais como a ponta dos dedos. francetpensa, como eu, que no dito há alusão a algumaantiga crónica de avinhão, mas nunca a ouviu citar

de modo diferente do provérbio. - só encontraráisso na biblioteca das cigarras - disse-me o velhotocador de pífaro, rindo. a ideia pareceu-me boa e,como a biblioteca das cigarras fica à minha porta,

meti-me lá durante oito dias. É uma bibliotecamaravilhosa, admiravelmente organi zada, abertaaos poetas dia e noite, e servida por pequenos

bibliotecários que passam o tempo a tocar címbalos.passei lá alguns dias deliciosos e, depois de umasemana de busca - deitado de costas -, acabei por

descobrir o que queria, quer dizer, a história daminha mula e do seu famoso coice guardadodurante sete anos. o conto é bonito, embora unpouco ingénuo, e vou tentar contá-lo tal como o liontem de manhã num manuscrito amarelecido pelo

tempo, com u bom cheirinho a alfazema erendilhado de teias de aranha.Quem não viu avinhão no tempo dos papas, não

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viu nada. nunca existiu cidade que a igualasse emalegria, vida, animação e imponência das festas. demanhã à noite, só se viam procissões, romagens,

ruas juncadas de flores, grinaldas, chegadas decardeais pelo ródano, pendões ao vento, galerasempavesadas, soldados do papa a cantar em latimnas praças, matracas de frades mendicantes; depois,

de alto a baixo das casas que se comprimiam à voltado grande palácio papal, como abelhas à roda docortiço, ouvia-se o tiquetaque dos teares de rendas,

o vaivém das lançadeiras que teciam o ouro dascasuks, os martelinhos dos cinzeladores de galhetas,as escalas que afinavam os fabricantes de alaúdes,

os cânticos dos tecelões; sobrepunha-se a isto otoque festivo dos sinos e, continuamente, o dealguns tamboris, que se ouviam rufar ao longe, paraos lados da ponte. porque entre nós, quando o povoestá contente, tem de dançar, e dança; e como,naquele tempo, as ruas da cidade eram demasiado

estreitas para dançar a farândola, pífaros e tamborispostavam-se na ponte de avinhão, ao vento frescodo ródano, e dia e noite dançava-se, dançava-se...

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ah, felizes tempos! feliz cidade! as alabardas nãoferiam, nas prisões do estado metia-se o vinho arefrescar. não havia miséria, não havia guerra... era

assim que os papas do condado sabiam governar oseu povo; foi por isso que o seu povo ficou comtantas saudades deles!... houve um, sobretudo, umbom velho chamado bonifácio... oh, quantas

lágrimas se choraram em avinhão quando elemorreu! era um príncipe tão amável, tão insinuante!corria com tanta afabilidade do alto da sua mula! e

quando alguém passava por ele - quer fosse umpobre e humilde apanhador de garança, quer fosseo grande vigário da cidade - dava-lhe a sua bênção

tão delicadamente! um verdadeiro papa de yvetot,mas de um yvetot da provença, com o seu quê definura no sorriso, um raminho de manjerona nobarrete e sem qualquer espécie de ama... (a única«ama» que jamais se conheceu a este bom padre foia sua vinha - uma vinhazinha que ele próprio

plantou, a três léguas de avinhão, nas murtas dechâteau-neuf.) todos os domingos, depois de sairdas vésperas, o digno homem ia fazer-lhe a corte, e

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quando estava lá em cima, sentado ao sol, com amula perto dele e os cardeais a toda a volta,estendidos aos pés das cepas, mandava então abriruma garrafa de vinho da sua lavra - do belo vinhocor de rubi que se chamou depois château-n'euf dospapas - e saboreava-o aos golinhos, olhando a vinhacom ternura. depois, despejada a garrafa, ao cair da

noite, voltava alegremente à cidade, seguido detodo o seu capítulo; e quando passava na ponte deavinhão, no meio dos tambores e das farândolas, a

mula, espevitada pela música, rompia numgalopezinho saltitante, enquanto ele própriomarcava o compasso da dança com o barrete, o que

escandalizava muito os cardeais, mas fazia dizer atodo o povo: «ah, que bom príncipe! que excelentepapa!» a seguir à sua vinha de château-neuf, o que opapa mais estimava no mundo era a sua mula. obom homem era perdido pelo animal. todas asnoites, antes de se deitar, ia ver se a estrebaria

estava bem fechada, se não faltava nada namanjedoura, e nunca se levantava da mesa semmandar preparar na sua presença uma grande

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malga de sopas de cavalo cansado, com muitoaçúcar e aromatos, que ele próprio lhe ia levar, adespeito das observações dos cardeais... diga-se emabono da verdade que o animal merecia tantoscuidados. era uma bela mula negra, mosqueada devermelho, de pernas firmes, luzidia, garupa larga eplana, que levantava altivamente a cabecita esguia

toda ajaezada de borlas, laços, guizos de prata etranças; além disso, era meiga como um anjo, tinhaolhos cândidos e orelhas compridas, sempre em

movimento, que lhe davam um ar bonacheirão.toda a avinhão a respeitava e quando errava pelasruas não havia cortesias que lhe não fizessem, pois

todos sabiam ser essa a melhor maneira de estar nasboas graças do palácio e que, com o seu ar inocente,a mula do papa já contribuíra para a fortuna demais de uma pessoa, e a prova era tistet védène e asua prodigiosa aventura. este tistet védène fora, aprincípio, um descarado moço de recados que o pai,

guy védène, cinzelador de ouro, se vira obrigado aexpulsar da oficina, porque não queria trabalhar edesencaminhava os aprendizes. durante seis meses,

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viram-no coçar a jaqueta por todas as esquinas deavinhão, mas principalmente nas imediações dopalácio papal, pois o velhaco tinha havia muitotempo as suas ideias a respeito da mula do papa e,como vereis, tramava a sua patifariazinha... numdia em que sua santidade passeava só debaixo dasmuralhas com o animal, o nosso tistet aproximou-se

e disse-lhe, juntando as mãos com ar de admiração:- ah. meu deus, venerando santo padre, que bonitamula tendes!... deixai-me admirá-la um bocadinho...

ah, meu papa, que bela mula!... nem o imperador daalemanha deve ter uma igual. e afagava-a, e falava-lhe docemente, como a uma menina. vem cá, minha

óia, meu tesouro, minha pérola fina... e o bompapa, muito comovido, dizia para consigo: «quebom rapazinho!... como é gentil com a minhamula!» e depois, no dia seguinte, sabeis o queaconteceu? tistet védène trocou a sua velha jaquetaamarela por uma bela alva arrendada, uma murça

de seda cor de violeta, sapatos de fivela, e entrou aoserviço do papa, honra que antes dele só foraconcedida aos filhos dos nobres e aos sobrinhos dos

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cardeais... ora aqui tendes o que é a intriga!... mastistet não se deu por satisfeito. uma vez ao serviçodo papa, o velhaco continuou a fazer o jogo que tãobons resultados lhe dera. insolente com toda agente, só tinha atenções e cortesias para a mula, eviam-no sempre nos pátios do palácio com umpunhado de aveia ou com um molhinho de sanfeno,

a agitar gentilmente os racimos rosados e a olharpara a varanda do santo padre, com ar de quem diz:«hem!... para quem é isto?...» e tanto fez que por fim

o bom papa, que se sentia envelhecer, acabou porlhe confiar o cuidado de olhar pela estrebaria e delevar à mula a sua malga de sopas de cavalo

cansado, o que não agradou nada aos cardeais. etambém não agradou à mula... desde então, à horado seu vinho, via sempre aparecerem cinco ou seismeninos de coro que corriam a esconder-se napalha, com as suas murças e as suas rendas; poucodepois, um cheirinho agradável a caramelo e

aromatos enchia a estrebaria, e surgia tistet védènetrazendo com precaução a malga de sopas de cavalocansado. começava então o martírio do pobre

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animal. o vinho perfumado, de que tanto gostava,que a aquecia e lhe dava asas, tinham a crueldadede lho levar à manjedoura, de lho fazer aspirar;mas, depois de lhe encherem as narinas com o seuaroma, nunca mais lhe punha a vista em cima! obelo licor de vapor rosado ia todo parar à gargantados marotos... e, se apenas se limitassem a roubar-

lhe o vinho... mas não; depois de beberem, osmeninos de coro pareciam diabos!... um puxava-lheas orelhas, outro a cauda; quiquei saltava-lhe para o

dorso, béluguet experimentava-lhe o barrete, enenhum dos mariolas se lembrava de que com umtoque de garupa ou uma parelha de coices o

pacífico animal poderia mandar todos ver a estrelapolar, ou mesmo mais longe... mas não! por algummotivo se é mula do papa, mula das bênçãos e dasindulgências... os garotos gostavam de brincar e elanão se zangava; tistet védène era o único que elaqueria apanhar... quando, por exemplo, o sentia

atrás de si, assaltava-a uma comichão nos cascos... e,na verdade, o caso não era para menos. o patife dotistet dava-lhe tão maus tratos! tinha invenções tão

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cruéis depois de beber!... então, um dia, não selembrou de a fazer subir com ele ao campanário damatriz, até lá acima, mesmo até lá acima, aopináculo do palácio?!... e garanto-vos que nãominto, pois viram-no duzentos mil provençais.imaginai o terror da infeliz mula quando, depois deandar às voltas durante uma hora, às cegas, numa

escada de caracol, e de trepar não sei quantosdegraus, se encontrou de repente numa plataformadeslumbrantemente iluminada e avistou, mil pés

abaixo de si, toda uma avinhão fantástica, asbarracas do mercado mais ou menos do tamanho deavelãs, os soldados do papa diante da caserna como

formigas vermelhas e ao longe, por cima de um fiode prata, uma pontezinha microscópica, onde sedançava, dançava... ah, pobre animal! que pânico! ogrito que soltou fez estremecer todos os vidros dopalácio. - que é? que lhe fizeram? - gritou o bompapa, precipitando-se para a varanda. tistet védène

estava já no pátio e simulava chorar e arrancar oscabelos. - ah, venerando santo padre, que há-deser?! foi a vossa mula que subiu ao campanário... -

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sozinha?! - sim, venerando santo padre, sozinha...olhai! vede-a, lá em cima... vedes as pontas das suasorelhas passarem de um lado para o outro?...parecem duas andorinhas...- Misericórdia! - suplicou o pobre papa, levantandoos olhos. - mas ela endoideceu! vai-se matar... desceá daí, desgraçada!... pobrezita! tomara ela poder

descer... mas por onde? pela escada, nem pensarnisso. pode-se subir a tais alturas; mas se tentassedescer, quebraria cem vezes as pernas... e a pobre

mula, angustiada, andava à roda da plataforma,com os seus grandes olhos cheios de vertigens, apensar em tistet védène: «ah, bandido, se escapo

desta... que coice levas amanhã de manhã!» a ideiado coice animou-a um pouco; sem isso não teriaresistido... enfim, conseguiram tirá-la lá de cima,mas com muito custo. foi necessário descê-la comum macaco, cordas e uma padiola. imaginem quehumilhação para a mula de um papa ver-se

pendurada àquela altura, a agitar as patas no vácuocomo um besouro na ponta de um fio. e avinhão empeso a vê-la! o pobre animal não dormiu toda a

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noite. parecia-lhe sempre andar à roda da malditaplataforma, com toda a cidade a rir lá em baixo;depois, lembrava-se do infame tistet védène e doformidável coice que lhe daria no dia seguinte demanhã. ah, meus amigos, que coice! o fumo haviade se ver em pampérigouste... ora, enquanto lhepreparava tão boa recepção na estrebaria, sabeis que

fazia tistet védène? descia o ródano a cantar numagalera papal e ia para a corte de nápoles com ogrupo de moços fidalgos que a cidade mandava

todos os anos para junto da rainha joana, a fim deaprenderem diplomacia e boas maneiras. tistet nãoera nobre, mas o papa tinha de o recompensar dos

cuidados que dispensara à mula e principalmenteda actividade que desenvolvera no dia dosalvamento.A mula é que ficou decepcionada no dia seguinte!«ah, o bandido, decerto suspeitou de qualquercoisa!», pensou, sacudindo os guizos com furor.

«mas não faz mal... vai, malvado, que na volta cá oencontrarás, o teu coice... eu to guardarei!»E guardou-lho. depois da partida de tistet, a mula

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do papa retomou o seu modo de vida calma e o seucomportamento de outrora. nem quiquei nembéluguet tornaram à estrebaria. voltaram os belosdias das sopas de cavalo cansado, e com eles o bomhumor, as longas sestas e o passinho de gavotaquando passava na ponte de avinhão. todavia,depois da sua aventura, notava sempre certa frieza

na cidade. cochichavam à sua passagem, os velhosabanavam a cabeça e as crianças riam e apontavampara o campanário. o próprio bom papa não tinha já

tanta confiança na sua amiga e quando se deixavapassar pelas brasas no seu dorso, aos domingos, noregresso da vinha, assaltava-o sempre este

pensamento reservado: «e se ao acordar me visse láem cima, na plataforma?...» A mula adivinhava istoe sofria em silêncio. somente, quando sepronunciava o nome de tistet védène diante dela, assuas orelhas afiladas fremiam e afiava as ferradurasna calçada, com um sorrisinho maroto. assim se

passaram sete anos; depois, ao cabo desses seteanos, tistet védène regressou da corte de nápoles.ainda não terminara o seu tempo de permanência,

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mas soubera que o primeiro-mostardeiro do papamorrera de repente em avinhão e, como o lugar lheparecia bom, viera a toda a pressa para ver se oapanhava. quando o intriguista védène entrou nasala do palácio, o santo padre mal o reconheceu,tanto crescera e ganhara corpo. deve-se dizertambém que o bom papa, por seu turno,

envelhecera e que já não via bem sem óculos. tistetnão se intimidou. - como, venerando santo padre,não me reconheceis?!... sou eu, tistet védène!... -

védène?... - claro, vós bem sabeis... o que levava assopas de cavalo cansado à vossa mula. - ah! sim...sim... recordo-me... eras bom mocinho, tistet

védène!... e agora, que queres de nós?Oh, pouca coisa, venerando santo padre!... vinhapedir-vos... a propósito, ainda tendes a vossa mula?e ela está bem?... ah, tanto melhor!... vinha pedir-vos o lugar do primeiro-mostardeiro que acaba demorrer. - tu, primeiro-mostardeiro?!... mas és

demasiado novo. Que idade tens? - vinte anos edois meses, ilustre pontífice, precisamente maiscinco anos do que a vossa mula... ah, louvado seja

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deus, que excelente animal!... se soubésseis comogostava dessa mula, que saudades tive dela emitália!... consentireis que a veja, não é verdade? -sim, meu filho, hás-de vê-la - respondeu o bompapa, muito comovido. - e já que tanto a estimas,esse excelente animal, não quero que vivas maistempo longe dela. a partir de hoje, ligo-te à minha

pessoa como primeiro-mostardeiro... os meuscardeais hão-de protestar, mas pior para eles! jáestou habituado... vem procurar-nos amanhã, à

saída das vésperas, para te impormos as insígniasdo teu grau na presença do nosso capítulo, edepois... levar-te-ei a ver a mula e irás à vinha

connosco... he!, he! vamos, agora sai... se tistetvédène estava contente quando saiu do salão e comque impaciência esperou a cerimónia do diaseguinte,, escuso de vos dizer. no entanto, havia nopalácio alguém ainda mais feliz e mais impacientedo que ele: era a mula. desde o regresso de védène

até às vésperas do dia seguinte, o terrível animalnão cessou de se empanturrar de aveia e de bater naparede com os cascos traseiros. ela também se

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preparava para a cerimónia... por fim, no diaseguinte, terminadas as vésperas, tistet védène fez asua entrada no pátio do palácio papal. todo o altoclero lá estava: os cardeais, com as suas vestesvermelhas; o advogado do diabo, vestido de veludonegro; os abades do convento com as suasmitrazinhas, os mordomos de santo agrico, as

murças cor de violeta da matriz, e também o baixoclero, os soldados do papa de grande uniforme, astrês confrarias de penitentes, os eremitas do monte

ventoux com os seus rostos carrancudos e, àretaguarda, o pequeno clero com a sineta, os irmãosflagelantes nus até à cintura, os sacristães corados

em trajes de juizes, todos, todos, até os dadores deágua benta, e os acendedores, e os apagadores...sem faltar um só. ah, que bela ordenação! sinos,petardos, sol, música, e, como sempre, osendiabrados tamboris que marcavam a dança naponte de avinhão. quando védène apareceu no meio

da assembleia, a sua boa presença e o seu belosemblante provocaram um murmúrio deadmiração. era um magnífico provençal, mas dos

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louros, de longos cabelos encaracolados nas pontase barbicha atrevida, que parecia feita das rebarbasde metal precioso saídas do buril de seu pai, ocinzelador de ouro. corria o boato de que os dedosda rainha joana tinham brincado algumas vezescom aquela barba loura, e, de facto, o senhor devédène tinha bem o ar glorioso e o olhar distraído

dos homens que foram amados pelas rainhas...naquele dia, em honra da sua terra, substituíra osseus trajes napolitanos por uma jaqueta bordada,

cor-de-rosa, à provençal, e por cima do seu barreteagitava-se uma grande pluma de íbis de camargue.assim que entrou, o primeiro-mostardeiro saudou

com toda a galantaria e dirigiu-se para junto doestrado onde o papa o esperava para lhe impor asinsígnias do seu grau: a colher de buxo amarelo e ohábito cor de açafrão. a mula estava no fundo dosdegraus, toda ajaezada e prestes a partir para avinha... quando passou por ela, tistet védène sorriu

com simpatia e deteve-se para lhe dar duas ou trêspalmadinhas amigáveis no lombo, ao mesmo tempoque, pelo rabo do olho, procurava certificar-se se o

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papa o via. a posição era boa... a mula tomoubalanço... «toma! apanha, bandido! aqui tens o quete guardo há sete anos!»E atirou-lhe um coice tão terrível, tão terrível, queaté em pampérigouste se viu o fumo, um turbilhãode fumo louro no qual volteava uma pluma de íbis,tudo quanto restava do infortunado tistet védène!...

os coices das mulas não são ordinariamente tãofulminantes; mas aquela era uma mula papal e,depois - não se esqueçam! -, ela guardara-o durante

sete anos... não há exemplo mais notável de rancoreclesiástico.

O Farol dos SanguináriosEsta noite, não pude dormir. o mistral estavaencolerizado e os clamores da sua voz potentetiveram-me acordado até de manhã. balouçandopesadamente as suas velas mutiladas, que a nortadafazia gemer como os aprestos de um navio, todo o

moinho estalava. as telhas voavam do telhadoarruinado. ao longe, os pinhais que cobrem a colinaagitavam-se e marulhavam na escuridão. parecia

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estar-se em pleno mar... isto recordou-meimediatamente as minhas «belas» insónias de hátrês anos, quando estive no farol dos sanguinárioslonge daqui, na costa corsa, à entrada do golfo deajácio. mais um bonito cantinho que descobrira parasonhar e estar só. imaginem uma ilha avermelhadae de aspecto selvagem; numa ponta o farol e na

outra uma velha torre genovesa onde, no meutempo, habitava uma águia. em baixo, à beira daágua, um lazareto em ruínas, completamente

invadido pelas ervas; depois, barrancos, mato,rochas enormes, algumas cabras selvagens,cavalinhos corsos saltando de crinas ao vento; por

fim, lá no alto, muito no alto, num turbilhão de avesmarinhas, a casa do farol, com a sua plataforma dealvenaria branca, em que os faroleiros passeavamde ponta a ponta, a porta verde em ogiva, a torrinhade ferro fundido e, por cima, a enorme lanternafacetada, que brilha ao sol e dá luz mesmo de dia...

É isto a ilha dos sanguinários, tal como a tornei aver esta noite, ao ouvir marulhar os meus pinheiros.era nesta ilha encantada que antes de ter o moinho

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me ia encerrar algumas vezes, quando necessitavade ar livre e de solidão.Que fazia lá? o que faço aqui, ou menos ainda.quando o mistral ou a tramontana não sopravamcom demasiada força, metia-me entre dois rochedosà beira da água, no meio das gaivotas, dos melros edas andorinhas, e ficava ali todo o dia na espécie de

torpor e prostração deliciosa que dá a contemplaçãodo mar. conhecem esta bela embriaguez de alma,não é verdade? não se pensa nem se sonha. todo o

nosso ser se evade, se evola, se dispersa. somos agaivota que mergulha, a poalha de espuma queplana ao sol entre duas vagas, o fumo branco do

vaporzinho que se afasta, o coraleirozinho de velavermelha, a pérola de água, o floco de bruma, tudoexcepto nós próprios... oh, que horas inefáveis desemi-sonolência e dispersão passei na minha ilha!...nos dias de muito vento, em que se não podia estarà beira da água, metia-me no pátio do lazareto, um

patiozinho melancólico, todo embalsamado derosmaninho e de absinto bravo, e ali, protegido poruma parede velha, deixava-me invadir docemente

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pelo vago perfume de abandono e tristeza quepairava com o sol nos cubículos de pedra, abertos atoda a volta como antigas sepulturas. de tempos atempos, um bater de porta, um salto ligeiro naerva... era uma cabra que vinha pastar ao abrigo dovento. quando me via, parava interdita e ficavaespecada diante de mim, atenta, com os chifres

erguidos, a fitar-me com olhar infantil. cerca dascinco horas, o porta-voz dos faroleiros chamava-mepara jantar. tomava então por um carreirinho que

subia a pique por entre o mato, sobranceiro ao mar,e regressava lentamente ao farol, voltando-me acada passo para aquele imenso horizonte de água e

luz que parecia alargar-se à medida que trepava. láem cima, era encantador. parece-me ver ainda abela sala de jantar, de lajes grandes, lambrim decarvalho, caldeirada de peixe a fumegar no meio, aporta grande aberta para o terraço branco e todo osol-poente a entrar... os faroleiros esperavam-me

para se sentarem à mesa. eram três, um marselhês edois corsos, todos três pequenos, barbudos, com omesmo rosto curtido, apergaminhado, e o mesmo

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pelone (gabão) de pele de cabra, mas detemperamento e humor inteiramente opostos. pelamaneira de viver desta gente adivinhava-seimediatamente a diferença de origens. o marselhês,industrioso e vivo, sempre atarefado, sempre emmovimento, corria a ilha de manhã à noite, aardinar, a pescar, a procurar ovos de gouailles,

embrenhando-se no mato para ordenhar uma cabrade passagem, e sempre com algum àioli ou algumacaldeirada em perspectiva. os corsos, esses, fora do

seu serviço não se ocupavam absolutamente emnada; consideravam-se funcionários e passavamtodo o dia na cozinha a jogar intermináveis partidas

de scopa, que só interrompiam para reacender oscachimbos, com ar grave, e picar à tesoura, naconcha da mão, grandes folhas de tabaco verde...fora isto, marselhês e corsos eram todos três boaspessoas, simples, sinceros e cheios de atenções paracom o seu hóspede, apesar de este, no fundo, lhes

dever parecer um cavalheiro muito extraordinário...imaginem! meter-se no farol por prazer!... e eles queachavam os dias tão longos e que se sentiam tão

f li d h d i t

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felizes quando chegava a sua vez de irem a terra...no verão, tinham esta felicidade todos os meses. dezdias em terra por cada trinta dias de farol, dizia oregulamento; mas, no inverno e durante o mautempo, o regulamento era letra morta. o ventosoprava, a vaga subia, os sanguinários tornavam-sebrancos de espuma e os faroleiros de serviço

ficavam bloqueados dois ou três meses seguidos, àsvezes até em situações terríveis.- Veja o que me aconteceu, senhor - contava-me um

dia o velho bartoli, enquanto jantávamos -, veja oque me aconteceu há cinco anos, a esta mesma mesaa que estamos, numa tarde de inverno, como agora.

naquela tarde, só estávamos dois no farol, eu e umcamarada chamado tchéco... os outros estavam emterra, doentes, de folga, sei lá... estávamos a acabarde jantar, muito sossegados... de repente, o meu

camarada parou de comer, fitou-me um momentocom os olhos arregalados e, zás!, caiu sobre a mesa

com os braços estendidos. corri para ele, sacudi-o,chamei-o: «Ó tché!... Ó tché!...» nada, estava morto...imagine como fiquei. durante mais de uma hora

i t f t t di t d dád i bi l b i f l! ó i

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permaneci estupefacto, a tremer diante do cadáver;depois, subitamente, lembrei-me: «o farol!» só tivetempo de subir à lanterna e acendê-la. era já noite...que noite, senhor! o mar, o vento, não tinham assuas vozes naturais. parecia-me a todo o momentoque alguém me chamava na escada. tinha umafebre, uma sede! mas ninguém seria capaz de me

obrigar a descer... sentia demasiado medo do morto.contudo, de manhãzinha, cobrei um pouco decoragem. levei o meu camarada para a cama, cobri-

o com um pano, rezei uma oração e corri para ossinais de alarme. «infelizmente, o mar estavademasiado agitado; bem chamei e tornei a chamar,

mas ninguém veio... encontrava-me sozinho nofarol com o meu pobre tchéco, e só deus sabia porquanto tempo... esperava poder conservá-lo juntode mim até à chegada do barco, mas ao cabo de três

dias já não era possível... que fazer? levá-lo lá parafora? enterrá-lo? a rocha era demasiado dura e

havia tantos corvos na ilha... não seria piedosoabandonar-lhes um cristão. então, pensei emsepultá-lo num dos cubículos do lazareto... gastei

uma tarde inteira em tão triste tarefa e confesso lhei i d b t t h h i d

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uma tarde inteira em tão triste tarefa, e confesso-lheque precisei de bastante coragem. ah, senhor, aindahoje, quando desço àquele lado da ilha numa tardede muito vento, parece-me sempre que levo o mortoàs costas...» pobre velho bartoli! o suor corria-lhe datesta, só de recordar o transe por que passara. asnossas refeições passavam-se assim, a conversar

durante muito tempo: do farol, do mar, a ouvirrelatos de naufrágios e histórias de bandidoscorsos... depois, ao cair do dia, o faroleiro do

primeiro quarto acendia o seu candeeirinho, pegavano cachimbo, na cabaça e num grosso plutarco debordas vermelhas - toda a biblioteca dos

sanguinários- e desaparecia pelo fundo. ao cabo deum momento, ouvia-se em todo o farol o estrépitode correntes, de polés, de grandes pesos de relógioque subiam. entretanto, ia-me sentar lá fora, no

terraço. o sol, já muito baixo, descia até à água cadavez mais depressa, levando todo o horizonte atrás

de si. o vento refrescava, a ilha tornava-se cor devioleta. no céu, perto de mim, passava pesadamenteuma grande ave: era a águia da torre genovesa, que

recolhia pouco a pouco a bruma subia do mar emb i l b d

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recolhia... pouco a pouco, a bruma subia do mar. embreve se via apenas a orla branca da espuma emtorno da ilha... de repente, por cima da minhacabeça, jorrava uma grande torrente de luz suave.estava aceso o farol. deixando toda a ilha nasombra, o brilhante raio de luz ia cair ao largo, nomar, e eu ficava ali, perdido na noite, debaixo

daquelas grandes ondas luminosas que mal mesalpicavam de passagem... mas o vento refrescavamais e era necessário recolher. Às apalpadelas,

fechava a grande porta e colocava as trancas deferro; depois, sempre às apalpadelas, tomava umaescadinha de ferro fundido, que abanava e soava

debaixo dos meus passos, e subia ao cimo do farol.ali já havia luz. imaginem uma gigantesca lâmpadacarcel com seis ordens de mechas, em torno da qualgiravam lentamente as faces da lanterna, umas

formadas por enormes lentes de cristal, outrasabertas para grandes vidraças imóveis, que punham

a chama ao abrigo do vento... quando entrava,ficava deslumbrado. os cobres, os estanhos, osreflectores de metal branco, as paredes de cristal

convexo que giravam em grandes círculosazulados todo aquele resplendor todo aquele

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convexo, que giravam em grandes círculosazulados, todo aquele resplendor, todo aquelecrepitar de luzes, me causavam um momento devertigem. pouco a pouco, no entanto, os meus olhoshabituavam-se e ia sentar-me mesmo ao pé dalâmpada, ao lado do faroleiro que lia o seu plutarcoem voz alta, com medo de adormecer... lá fora, a

escuridão, o abismo. no varandim que contornava oenvidraçado, o vento galopava como louco,uivando. o farol estalava, o mar bramia. na ponta da

ilha, as vagas batiam nos rochedos como salvas decanhão... de vez em quando, um dedo invisívelbatia nas vidraças: alguma ave nocturna atraída

pela luz e que vinha esmagar a cabeça contra ocristal... na lanterna, faiscante e quente, apenas ocrepitar da chama, o ruído do óleo a gotejar e dacorrente a desenrolar-se, e uma voz monótona a

salmodiar a vida de demétrio de falero. À meia-noite, o faroleiro levantava-se, lançava um último

olhar às mechas e descíamos. na escadaencontrávamos o camarada do segundo quarto, quesubia a esfregar os olhos, para o qual passava a

cabaça e o plutarco depois antes de nosdeitarmos entrávamos um momento na câmara do

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cabaça e o plutarco... depois, antes de nosdeitarmos, entrávamos um momento na câmara doffundo, atravancada de correntes, de grandes pesos,de reservatórios de estanho, de cordas, e ali, à luzdo seu candeeirinho, o faroleiro escrevia no grandelivro do farol, sempre aberto: meia-noite. marencapelado. tempestade. navio largo.

A Agonia da St. Émillante"Já que o mistral nos levou, a noite passada, para a

costa corsa, deixem-me contar-lhes uma espantosahistória marítima de que os pescadores falam muitoao serão e a respeito da qual o acaso me forneceuinformações muito curiosas. o caso passou-se hádois ou três anos. eu percorria o mar da sardenhana companhia de sete ou oito marinheiros daalfândega. rude viagem para um novato! durante

todo o mês de março, não tivemos um dia bonito. ovento leste encarniçara-se contra nós e o mar não

amainava. uma tarde, impelido pela tempestade, onosso barco refugiou-se à entrada do estreito debonifácio, no meio de um maciço de ilhotas... o seu

aspecto não tinha nada de aprazível: grandes rochasescalvadas cobertas de aves alguns tufos de

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aspecto não tinha nada de aprazível: grandes rochasescalvadas, cobertas de aves, alguns tufos deabsinto, moitas de lentiscos e, aqui e ali, no lodo,fragmentos de madeira semiapodrecida. juro-lhes,porém, que, para passar a noite, aquelas rochassinistras eram bem melhores do que o camarote deconvés de um velho barco, de meia coberta, onde as

vagas entravam como em sua casa, e por isso noscontentámos com elas. logo que desembarcámos,enquanto os marinheiros acendiam o lume para a

caldeirada, o patrão chamou-me e, mostrando-meum recintozinho de alvenaria branca, perdido nabruma no extremo da ilha, perguntou-me: - querver o cemitério? - um cemitério, patrão lionetti?!então, onde é que nós estamos? - nas ilhas lavezzi,senhor. É aqui que estão enterrados os seiscentoshomens da sémillante, no próprio sítio onde a

fragata se perdeu, há dez anos...

Pobres homens! não recebem muitas visitas; aomenos, já que estamos aqui, vamos dar-lhes osbons-dias... - da melhor vontade, patrão. como era

triste o cemitério da sémillante!' parece-me estarainda a vê-lo com a sua muralhazinha baixa a sua

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triste o cemitério da sémillante! ... parece me estarainda a vê-lo com a sua muralhazinha baixa, a suaporta de ferro, enferrujada, perra, a sua capelasilenciosa, e centenas de cruzes negras ocultas pelaerva... nem uma coroa de perpétuas, nem umalembrança! nada... ah, pobres mortos abandonados,como deviam ter frio na sua tumba de acaso!

demorámo-nos lá um momento, ajoelhados. opatrão rezava em voz alta. enormes alcatrazes,únicos guardas do cemitério, voavam em círculos

por cima das nossas cabeças e misturavam os seusgritos roucos com as lamentações do mar.terminada a oração, voltámos tristemente para oponto da ilha onde o barco estava amarrado. nanossa ausência, os marinheiros não tinham perdidotempo. encontrámos uma grande fogueira a arderao abrigo de uma rocha e o caldeiro a fumegar.

sentámo-nos à roda, com os pés voltados para olume, e em breve cada um tinha nos joelhos, numa

malga de barro vermelho, duas fatias de pão negrobem ensopadas de molho. a refeição decorreu emsilêncio: estávamos molhados, tínhamos fome, e a

vizinhança do cemitério... contudo, depois dasmalgas despejadas e dos cachimbos acesos

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vizinhança do cemitério... contudo, depois dasmalgas despejadas e dos cachimbos acesos,pusemo-nos a conversar um pouco. naturalmente,falou-se da sémillante. - no fim de contas, como éque as coisas se passaram? perguntei ao patrão, que,com a cabeça entre as mãos, olhava o lume com arpensativo. - como é que as coisas se passaram? -

respondeu-me o bom lionetti, com um grandesuspiro. - ai de mim, senhor, ninguém no mundo opode dizer. tudo o que sabemos é que a sémillante,

carregada de tropas para a crimeia, partira detulono na véspera à tarde, com mau tempo. À noite,o tempo piorou. vento, chuva, mar alteroso comonunca se vira... de manhã, o vento amainou umpouco, mas o mar continuou na mesma, e, aindapor cima, uma maldita bruma do diabo não deixavaver nada quatro palmos adiante do nariz... não

imagina, senhor, como tais brumas são traiçoeiras...mas isso não explica o que aconteceu. suponho que

a sémillante perdeu o leme de manhã, porque,apesar da bruma, sem uma avaria nunca o capitãoteria naufragado aqui. era um marinheiro rijo, que

todos nós conhecíamos. comandara o cruzeiro nacórsega durante três anos e conhecia a costa tão bem

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córsega durante três anos e conhecia a costa tão bemcomo eu, que não conheço outra coisa. - e a quehoras supõe que a sémillante naufragou? - deve tersido ao meio-dia. sim, senhor, mesmo ao meio-dia...mas, com mil demónios, com o mar coberto debruma, o meio-dia não é melhor do que uma noite

negra como a goela de um lobo!... um guardaaduaneiro da costa contou-me que naquele dia,cerca das onze e meia, tendo saído da sua casita

para prender as portas de madeira das janelas, ovento lhe levara o boné e que, com risco de ser elepróprio levado pelas vagas, correra atrás dele, aolongo da praia, de gatas. o senhor compreende, osguardas da alfândega não são ricos e um boné valedinheiro... ora, pareceu a certa altura ao nossohomem, quando levantou a cabeça, ter visto perto

de si, na bruma, um grande navio desarvorado quecorria, açoitado pelo vento, para os lados das ilhas

lavezzi. tal navio ia tão depressa, tão depressa, queo guarda não teve tempe de o ver bem. tudo leva acrer, porém, que era a sémillante, pois cerca de meia

hora depois um pastor das ilhas o viu em cima dasrochas... mas está precisamente aqui o pastor a que

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p prochas... mas está precisamente aqui o pastor a queme referia, senhor, e ele próprio lhe vai contar ocaso... bons dias, palombo!... anda aquecer-te umpouco; não tenhas medo.Um homem encapuzado, que havia momentos euvia andar à roda da nossa fogueira e tomara por

alguém da nossa tripulação, pois ignorava quehouvesse um pastor na ilha, aproximou-se de nósmedrosamente. era um velho leproso, meio idiota,

atacado não sei de que mal escorbútico que lheinchava os lábios e lhes dava aspecto horrível.explicaram-lhe com grande dificuldade de que setratava. então, erguendo com o dedo o lábio doente,o velho contou-nos que, com efeito, naquele dia,cerca do meio-dia, ouvira na sua cabana um barulhomedonho, vindo dos rochedos. como a ilha estava

toda coberta de água, não pudera sair e só no dia

seguinte, ao abrir a porta, vira a praia coberta dedestroços e cadáveres, trazidos pelo mar.Apavorado, deitara a correr para a sua barca, a fim

de ir a bonifácio dar a notícia. fatigado por terfalado tanto, o pastor sentou-se e o patrão retomou

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g p, p pa palavra: - sim, senhor, foi este pobre velho quenos foi prevenir. estava quase louco de pavor, e,

desde então, ficou com o cérebro transtornado. averdade é que não era caso para menos... imagineseiscentos cadáveres amontoados na areia, de

mistura com bocados de madeira e farrapos develas... pobre sémillante!... o mar esmagou-a de talmodo, reduziu-a de tal forma a migalhas, que entre

todos os seus destroços o pastor palombo só comgrande custo encontrou com que pudesse fazer umapaliçada à roda da sua choupana... quanto aoshomens, quase todos desfigurados ehorrorosamente mutilados... confrangia vê-losagarrados uns aos outros, como cachos...encontrámos o capitão de grande uniforme, o

capelão de estola ao pescoço, e num canto, entreduas rochas, um grumete com os olhos abertos...

que dava a impressão de ainda estar vivo. mas não!estava escrito que ninguém escaparia...Aqui, o patrão interrompeu-se para gritar: -

cuidado, nardi! o lume está-se a apagar.Nardi lançou na fogueira mais dois ou três bocados

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p gç gde tábuas alcatroadas, que se inflamaram, e lionetticontinuou: - o que há de mais triste nesta história é

o seguinte: três semanas antes do sinistro, umapequena corveta que ia para a crimeia, como asémillante, naufragou da mesma forma, quase no

mesmo lugar; somente, dessa vez, chegámos atempo de salvar a tripulação e vinte soldadosexpedicionários que iam a bordo... os pobres

expedicionários estavam em maus lençóis, comodeve calcular. levámo-los para bonifácio e tivemo-los connosco durante dez dias, na marinha... depoisde bem secos e restabelecidos, boas noites!felicidades! regressaram a tulono, onde, algumtempo mais tarde, os embarcaram de novo para acrimeia... adivinhe em que navio!... na sémillante,

senhor... tornámos a encontrá-los todos, todos osvinte, no meio dos mortos, no sítio onde estamos...

eu próprio recolhi um garboso sargento, de sedososbigodes louros, um peralvilho de paris, quehospedara em minha casa e que nos fizera rir

constantemente com as suas anedotas... ao vê-loassim, cortou-se-me o coração... ah, santa madre!...

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depois disto, o valente lionetti, muito comovido,sacudiu a cinza do cachimbo, enrolou-se no seu

gabão e deu-me as boas-noites... durante algumtempo, os marinheiros estiveram ainda a conversaruns com os outros, a meia voz... em seguida, um

após outro, os cachimbos apagaram-se... não sefalou mais... o velho pastor foi-se embora... eu fiqueisozinho, a sonhar no meio da tripulação

adormecida. ainda debaixo da impressão dalúgubre narrativa que acabara de ouvir, tenteireconstituir mentalmente o pobre naviodesaparecido e a história daquela agonia de que osalcatrazes tinham sido as únicas testemunhas.alguns pormenores haviam-me impressionado; ocapitão de grande uniforme, a estola do capelão, os

vinte soldados expedicionários, ajudaram-me aadivinhar todas as peripécias do drama... via a

fragata largar de tulono, de noite... saía do porto. omar estava mau, o vento terrível; mas o capitão eraum valente marinheiro e toda a gente estavatranquila a bordo... de manhã, a bruma eleva-se domar. começam a ficar inquietos. toda a tripulação

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q pviera para cima... o capitão não saía dotombadilho... na entreponte, onde os soldados

estavam fechados, a escuridão era absoluta e aatmosfera irrespirável. alguns, adoentados, tinham-se deitado em cima das mochilas. o navio balouçava

horrivelmente; impossível estar de pé. conversavamsentados no chão, em grupos, agarrados aos bancos;tinham de gritar para se fazerem ouvir. havia quem

começasse a sentir medo... escutem agora! osnaufrágios são frequentes nestas paragens; osexpedicionários que o digam, e o que eles contamnão é nada tranquilizador. o seu sargento,sobretudo, um parisiense que está sempre agracejar, causa-lhes arrepios com as suas zombarias:«um naufrágio!... mas é muito divertido, um

naufrágio. apanharemos apenas um banho gelado edepois levar-nos-ão para bonifácio, onde nos darão

a comer melros em casa do patrão lionetti.» e osexpedicionários riram... de súbito, um estalido... quefoi? que aconteceu?... - o leme acaba de se partir -diz um marinheiro todo molhado, que atravessa aentreponte a correr. - boa viagem! - grita o atrevido

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do sargento, mas isto já não faz rir ninguém. grandetumulto na ponte. a bruma não deixa ver nada. os

marinheiros vão e vêm, assustados, às apalpadelas...não há leme! É impossível manobrar... a sémillante,desgovernada, segue ao sabor do vento... É neste

momento que o guarda aduaneiro a vê passar; sãoonze e meia. À proa da fragata ouve-se como queum tiro de canhão... os cachopos!

Os cachopos!... É o fim, já não há nada a esperar,vão direitos à costa... o capitão desce ao seucamarote... passado um momento, reocupa o seulugar no tombadilho, de grande uniforme... quisvestir-se de gala para morrer. na entreponte, ossoldados, ansiosos, entreolham-se sem dizer nada...os doentes tentam levantar-se... o sargentozinho já

não ri... É então que a porta se abre e que o capelãoaparece no limiar, com a sua estola. - de joelhos,

meus filhos! toda a gente obedece. em vozretumbante, o padre inicia a oração dosagonizantes. de súbito, um choque formidável, umgrito, um único grito, um grito imenso, braçosestendidos, mãos que se agarram, olhares

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espantados, nos quais a visão da morte passa comoum relâmpago... misericórdia! foi assim que passei

toda a noite a sonhar, a evocar, a dez anos dedistância, a alma do pobre navio cujos destroços mecercavam... ao longe, no estreito, a tempestade

rugia; a chama do acampamento inclinava-se aosabor das rajadas, e eu ouvia o nosso barco dançarunto das rochas e fazer ranger a amarra.

Os Guardas AduaneirosO batel enúlie, de porto velho, a bordo do qual fiz alúgubre viagem às ilhas lavezzi, era uma velhaembarcação da alfândega, de meia coberta, onde sóhavia para nos abrigarmos do vento, das vagas e dachuva um camarotezinho alcatroado onde mal

cabiam uma mesa e dois beliches. por isso, eramdignos de lástima os nossos marinheiros quando

fazia mau tempo. os seus rostos escorriam, as blusasensopadas fumegavam como roupa branca numaestufa, e em pleno inverno os desgraçadospassavam assim dias inteiros, e até noites,acocorados em cima dos seus bancos molhados, a

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tiritar por via desta humidade doentia; porque nãose podiam acender fogueiras a bordo e a praia era

muitas vezes difícil de alcançar... e, no entanto,nenhum destes homens se queixava. debaixo dosmaiores temporais, vi-os sempre com a mesma

placidez, com o mesmo bom humor. e, contudo, quetriste vida a dos marinheiros da alfândega! quasetodos casados, com mulher e filhos em terra, andam

meses por fora, a bordejar estas costas tão perigosas.para se alimentarem, só têm pão bolorento e cebolasbravas. nem vinho, nem carne, porque a carne e ovinho são caros e eles só ganham quinhentosfrancos por ano! quinhentos francos por ano!imaginem como deve ser negra a sua cabana namarinha, e se os filhos não hão-de andar

descalços!... mas não importa! toda esta genteparece contente. havia à ré, junto do camarote, uma

grande selha cheia de água da chuva onde atripulação ia beber, e recordo-me de que, depois daúltima golada, cada um daqueles pobres diabossacudia o copo com um «ah!» de satisfação, comuma expressão de bem-estar, ao mesmo tempo

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cómica e comovente.O mais alegre, o mais satisfeito de todos, era um

pequeno bonifaciano, tisnado e rechonchudo, que sechamava palombo. passava a vida a cantar, mesmodurante os maiores temporais. quando as vagas se

tornavam alterosas, o céu sombrio e baixo se enchiade granizo e ficávamos todos de nariz no ar,agarrados à escota, à espera da rajada iminente,

então, no meio do grande silêncio e da ansiedade debordo, a voz calma de palombo começava: "não,monsenhor, É honra demasiada. lisette é ajui... zada,fica na al... deia...» e a rajada soprava forte, faziagemer os aprestos, sacudia e inundava o barco, masa canção do marinheiro continuava o seu curso,equilibrando-se como uma gaivota na crista das

vagas. Às vezes, o vento acompanhava-o comviolência e não deixava entender as palavras; mas

entre cada pancada de mar, no meio do gorgolejarda água a escoar-se, o estribilhozinho voltavasempre: «lisette é ajui... zada, fica na al... deia...» umdia, porém, em que ventava e chovia muito, não oouvi. o caso pareceu-me tão extraordinário qued i i b f d i i h

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deitei a cabeça fora do camarote e gritei: - eh,palombo! então hoje não se canta? palombo não

respondeu. estava imóvel, deitado debaixo do seubanco. aproximei-me dele. batia os dentes e todo oseu corpo tremia de febre. - tem uma pountoura -

disseram-me os seus camaradas, tristemente.Chamam pountoura a uma pontada, a umapleurisia. o grande céu plúmbeo, o barco

encharcado, o pobre doente febril embrulhado numvelho capote de borracha que brilhava de chuvacomo uma pele de foca, tudo isto tinha um ar tãolúgubre como eu nunca vira. em breve, o frio, ovento, o balanço das vagas, agravaram o seu mal.sobreveio-lhe o delírio e foi necessário demandarterra. depois de muito tempo e de muitos esforços,

entrámos ao entardecer num portinho árido esilencioso, onde o único sinal de vida era o voo

circular de alguns gouailles. a toda a volta da praiaerguiam-se altas rochas escarpadas e maciçosinextricáveis de arbustos verdes, de um verde-escuro, perene. em baixo, à beira da água, umacasinha branca, de persianas cinzentas: era o postod lfâ d i d l d t l

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da alfândega. no meio daquele deserto, aquelaconstrução do estado, numerada como o boné de

um uniforme, tinha um não sei quê sinistro. foi paralá que levámos o infeliz palombo. triste asilo paraum doente! encontrámos o guarda aduaneiro a

preparar-se para comer, ao canto da lareira, com amulher e os filhos. toda aquela gente tinha rostomacilento, pálido, e olhos dilatados, febris. a mãe,

ainda nova, com um pequenito nos braços, tiritavaao falar connosco. - É um posto terrível - disse-nosbaixinho o inspector. somos obrigados a render osnossos guardas de dois em dois anos. a febrepalustre devora-os... era necessário, porém, arranjarum médico, mas só havia um em sartène, ou seja, aseis ou oito léguas dali. que fazer? os nossos

marinheiros já não podiam mais e era muito longepara mandar lá um dos garotos. então a mãe

debruçou-se da janela e chamou: - cecco!... cecco! evimos entrar um rapagão desempenado, autênticotipo de caçador furtivo ou de bandido. com o seubarrete de lã escura e o seu pelone de pele de cabra.á reparara nele ao desembarcar, sentado diante da

t hi b lh d t

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porta, com o seu cachimbo vermelho nos dentes euma espingarda entre os joelhos; mas, não sei

porquê, fugira assim que nos aproximáramos.talvez julgasse que trazíamos gendarmes connosco.quando ele entrou, a mulher do guarda corou um

pouco. - É meu primo... - disse ela. - não há perigode se perder no matagal. depois, falou-lhe em vozbaixa e mostrou-lhe o doente. o homem inclinou-se

sem responder, saiu, assobiou ao cão e partiu deespingarda ao ombro, saltando de rocha em rochacom as suas pernas compridas. entretanto, ascrianças, que a presença do inspector pareciaatemorizar, acabaram à pressa o seu jantar decastanhas e de brucio (queijo branco). e sempreágua e só água na mesa! e, no entanto, um copo de

vinho não faria mal aos pequenos. ah, miséria! porfim, a mãe foi deitá-los; o pai acendeu a sua

lanterna e saiu para inspeccionar a costa e nósficámos à lareira a velar o nosso doente, que seagitava no seu catre, como se estivesse ainda empleno mar, sacudido pelas vagas. para o aliviarmosum pouco da pountoura, aquecíamos seixos e tijolose púnhamo los no flanco uma ou duas vezes ao

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e púnhamo-los no flanco. uma ou duas vezes, aoaproximar-me do seu leito, o desgraçado

reconheceu-me e, para me agradecer, estendeu-mepenosamente a mão, uma grande mão áspera eardente como um daqueles tijolos saídos do lume...

triste serão! lá fora, o mau tempo voltara com o cairda noite, e o fragor, o ribombar, o jorrar da espuma,assinalavam a batalha das rochas com a água. de

tempos a tempos, uma rabanada de vento do largoconseguia insinuar-se na baía e envolvia a nossacasa. sentíamo-lo pelo avivar súbito da chama queiluminava bruscamente os rostos melancólicos dosmarinheiros, agrupados em torno da chaminé aolhar o fogo com a placidez de expressão que dá ohábito das grandes extensões e dos horizontes

uniformes. Às vezes, palombo também gemiabaixinho. então, todos os olhos se viraram para o

canto escuro onde o pobre camarada se encontravaàs portas da morte, longe dos seus, sem socorro, etodos os peitos se dilatavam e ouviam-se grandessuspiros. era tudo quanto podia arrancar àquelestrabalhadores do mar, pacientes e dóceis, osentimento do seu próprio infortúnio nem revoltas

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sentimento do seu próprio infortúnio. nem revoltas,nem greves. um suspiro e mais nada!... creio, no

entanto, que me engano. ao passar diante de mimpara deitar um feixe de lenha miúda no lume, umdeles disse-me baixinho, em voz magoada: - veja,

senhor... às vezes, passamos alguns tormentos nanossa profissão!

O Cura de CucugnanTodos os anos, na festa da candelária, os poetasprovençais publicam em avinhão um engraçadolivrinho completamente recheado de belos versos ede bonitas histórias. o deste ano chegou-me nesteinstante e encontrei nele uma fábula adorável quevou tentar traduzir-vos, abreviando-a um pouco...

parisienses, estendei os cestos. É a pura farinha-florprovençal que vos vai ser servida desta vez... o

abade martin era cura... de cucugnan. bom como opão, muito franco, amava paternalmente os seuscucugnanenses. para ele, cucugnan seria o paraísona terra se os cucugnanenses lhe dessem um poucomais de atenção. mas - ai! - as aranhas teciam asteias no confessionário e no belo domingo de páscoa

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teias no confessionário e no belo domingo de páscoaas hóstias ficavam no fundo do santo cibório. o bom

padre trazia o coração mortificado e pediaconstantemente a deus a graça de não o levar antesde reconduzir ao redil o seu rebanho tresmalhado.

ora, ides ver como deus o escutou.Um domingo, depois do evangelho, o abade martinsubiu ao púlpito. - meus irmãos - disse ele -,

acreditai-me se quiserdes. a noite passadaencontrei-me, eu, miserável pecador, à porta doparaíso. bati e são pedro veio abrir! «-olha! sois vós,meu caro martin? - disse-me ele. - «que bom ventovos traz por cá?... em que vos posso servir?«- Meu bom são pedro, vós, que tendes o livro dasalmas e a chave, poder-me-eis dizer, se não sou

demasiado curioso, quantos cucugnanenses tendesno paraíso? «- não tenho nenhum motivo para vos

recusar o que me pedis, martin. sentai-vos paravermos isso juntos. «e são pedro pegou no seugrande livro, abriu-o e pôs os óculos. «-ora vejamos:cucugnan, dizeis vós. cu... cu... cucugnan. cá está:cucugnan. meu caro martin, a página está toda embranco nem uma alma são tantos os

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branco. nem uma alma... são tantos oscucugnanenses como os esporões numa perua. «-

como?! ninguém de cucugnan está aqui? ninguém?não é possível! vede melhor... «- ninguém, santohomem. vede vós mesmo, se julgais que estou a

brincar.«-Pobre de mim! bati os pés e, de mãos postas,implorei misericórdia. então, são pedro disse-me: «-

vamos, martin, não vos mortifiqueis assim, quepodeis ter uma apoplexia. a culpa não é vossa, nofim de contas. talvez os vossos cucugnanensestenham de passar por uma quarentenazinha nopurgatório... «-ah, por caridade, grande são pedro!permiti, ao menos, que os possa ver e confortar. «-Da melhor vontade, meu amigo... tomai, calçai

depressa estas sandálias, porque os caminhos nãosão muito bons... assim estais melhor... agora,

caminhai a direito, sempre em frente. vedes láadiante, ao fundo, aquela curva? encontrareis umaporta de prata, toda constelada de cruzes negras... àmão direita... batei, que vo-la abrirão... adeusinho!desejo-vos saúde e alegria. «caminhei... caminhei!que estafa! sinto arrepios só de pensar em tal coisa

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que estafa! sinto arrepios só de pensar em tal coisa.um carreirinho cheio de silvas, de rubis brilhantes e

de serpentes que silvavam, levou-me até à porta deprata.«- Truz-truz! «-Quem bate? - perguntou-me uma

voz rouca e dolente. «- O cura de Cucugnan.«-De...? «- de Cucugnan. «- Ah!... entrai. «entrei. umgrande anjo muito belo, com duas asas negras como

a noite, uma túnica resplandecente como o dia euma chave de diamante pendente da cintura,escrevia - crre-crre - num grande livro, ainda maiordo que o de são pedro... «- afinal, que quereis, queprocurais? - inquiriu o anjo. «- belo anjo de deus,queria saber (sou talvez demasiado curioso) setendes aqui os cucugnanenses. «- os...? «- os

cucugnanenses, as pessoas de cucugnan... de quemsou prior. «- ah! sois o abade martin, não é verdade?

«- para vos servir, sr. anjo. «- dissestes decucugnan... «e o anjo abriu e folheou o seu grandelivro, molhando o dedo de saliva para passarmelhor as folhas... «- cucugnan - disse ele, soltandoum prolongado suspiro. «abade martin, não temosno purgatório ninguém de cucugnan. «- jesus!

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no purgatório ninguém de cucugnan. jesus!maria! josé! ninguém de cucugnan no purgatório!

oh, santo deus! onde estarão eles então? «- eh, santohomem, estão no paraíso! onde diacho queríeis queestivessem?

«- mas do paraíso venho eu... «- vindes de lá?... eentão? «- então, não estão lá!... ah, santa mãe dosanjos!... «- que quereis, sr. cura? se não estão no

paraíso, nem no purgatório, e não há mais nada depermeio, estão... «- santa cruz! jesus, filho de david!ai! ai! ai! será possível?... terá mentido o grande sãopedro?... contudo, não ouvi cantar o galo!... ai,pobres de nós! como irei eu para o paraíso se osmeus cucugnanenses não estão lá? «- escutai, meupobre abade martin: uma vez que quereis, custe o

que custar, certificar-vos de tudo e ver com osvossos próprios olhos o que se passa, tomai por esse

carreiro, deitai a correr, se podeis correr, eencontrareis à esquerda um grande portão. lá, dar-vos-ão todas as informações. deus vos acompanhe!«e o anjo fechou a porta. «era um carreiro comprido,todo pavimentado de brasas rubras. eu cambaleava,como se tivesse bebido; tropeçava a cada passo;

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; p ç p ;estava encharcado, cada pêlo do meu corpo tinha

uma gota de suor e arquejava de sede... mas, porminha fé, graças às sandálias que o bom são pedrome emprestara, não queimava os pés. «depois de

dar muitos passos em falso, manquejando, vi àminha mão esquerda uma porta... não, um portão,um enorme portão, completamente escancarado,

como a porta de um grande forno. oh, meus filhos,que espectáculo! ali, não me perguntaram o nome;ali, não havia nenhum registo. Às fornadas e com aporta toda franca, entrava-se ali, meus irmãos, comoao domingo vós entrais na taberna. «o suor escorria-me em gotas grossas e, no entanto, estava transido,sentia calafrios. tinha os cabelos em pé.

Cheirava-me a queimado, a carne torrada, aqualquer coisa como o odor que se espalha na nossa

cucugnan quando elói, o ferrador, queima, paraferrar, o casco de um burro velho. faltava-me arespiração naquele ar fétido e abrasado! ouvia umclamor horrível, gemidos, urros e pragas. «- então,entras ou não entras? - disse-me, picando-me com asua forquilha, um demónio chifrudo. «- eu? não

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q ,entro. sou um amigo de deus. «- És um amigo de

deus... eh, é... tinhoso! que vens fazer aqui?... «-venho... ah! não me diga mais nada, que já nem meposso ter nas pernas... venho... venho de longe...

perguntar-vos humildemente... se... se, por obra doacaso... não tereis aqui... algum... alguém decucugnan... «- ah, fogo de deus! estás a fazer-te tolo,

tu, como se não soubesses que toda a cucugnan estáaqui. escuta, corvo disforme, olha e verás comotratamos aqui os teus famosos cucugnanenses... «evi, no meio de um medonho turbilhão de chamas:«o mandrião do coq-galine - todos vós oconhecestes, meus irmãos-, o coq-galine que seemborrachava com tanta frequência e que não

menos frequentemente sacudia as pulgas à suapobre clairon. «vi catarinet... a vadiazita... com o

nariz no ar... que pernoitava sozinha no celeiro...creio que vos lembrais disso, meus brejeiros!... maspassemos adiante, pois já falei demasiado dela. «vipascal doigt-de-poix, que fazia o seu azeite com asazeitonas do sr. julien. «vi babet, a respigadora, que,enquanto respigava, para atar mais depressa o seu

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q p g p pmolho, roubava às mãos-cheias o trigo das medas.

«vi o tio grapasi, que lubrificava tão bem a roda doseu carrinho de mão.«E dauphine, que vendia tão cara a água do seu

poço. «e o tortillard, que quando me encontravacom o viático seguia o seu caminho, com o barretena cabeça e o cachimbo na boca... e arrogante como

artábano... como se tivesse encontrado um cão. «ecoulau, com a sua zette, e jacques, e pierre. e toni...»impressionado, lívido de medo, o auditório gemia,vendo no inferno escancarado este o pai, aquele amãe, uns a avó, outros a irmã... - vós sentis bem,meus irmãos - insistia o bom do abade martin -, vóssentis bem que isto não pode continuar. sou

responsável pelas almas e quero, quero salvar-vosdo abismo em que estais prestes a rolar

irreflectidamente. amanhã, meterei mãos à obra;amanhã mesmo, sem mais tardança. e a obra terá deir avante! será isto que farei. para que tudo saiabem, é necessário fazer tudo com método. iremospouco a pouco, como em jonquières quando sedança. «amanhã, segunda-feira, confessarei os

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gvelhos e as velhas. não custa nada. «terça-feira, as

crianças. será rápido. «quarta-feira, os rapazes e asraparigas. isso já deverá demorar mais. «quinta-feira, os homens. abreviaremos. «sexta-feira, as

mulheres. direi: nada de patranhas! «sábado, omoleiro!... não é de mais um dia só para ele... «e seno domingo tivermos terminado, sentir-nos-emos

muito felizes. «como sabeis, meus filhos, quando otrigo está maduro, é preciso ceifá-lo; quando ovinho está tirado, é preciso bebê-lo. aqui há bastanteroupa suja e trata-se de a lavar e de a lavar bem. «Éesta a graça que vos desejo. Ámen!» dito e feito.procedeu-se à barrela. depois daquele domingomemorável, o perfume das virtudes de cucugnan

respira-se dez léguas em redor. e o bom pastor, oabade martin, feliz e cheio de alegria, sonhou uma

noite destas que, seguido de todo o seu rebanho,subia, em resplandecente procissão, no meio decírios acesos, de uma nuvem de incenso queembalsamava o ar e de meninos de coro quecantavam te deum, o caminho luminoso da cidadede deus. aqui está a história do cura de cucugnan,

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tal qual me ordenou que vo-la contasse o grande

velhaco do roumanille, que a ouviu ele próprio deoutro bom companheiro.

Os Velhos- Uma carta, tio azan? - sim, senhor... e vem deparis. estava todo orgulhoso por ela vir de paris, o

bom do tio azan... eu, não. qualquer coisa me diziaque aquela parisiense da rua jean-jacques, caindo naminha mesa tão inesperadamente e tão demanhãzinha, me ia fazer perder todo o dia. e nãome enganava, como ides ver:Preciso que me prestes um serviço, meu amigo. vaisfechar o teu moinho por um dia e partir

imediatamente para eyguières... eyguières é umgrande burgo a três ou quatro léguas de onde estás;

uma passeata. assim que chegares, procurarás oconvento das Órfãs. a primeira casa depois doconvento é uma casa baixa, de persianas cinzentas,com um jardinzito nas traseiras. entrarás sem bater -a porta está sempre aberta - e, depois de entrares,gritarás bem alto: «bons dias, minha gente! sou o

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amigo de maurice...» então, verás dois velhinhos -

oh, mas velhos, velhos, arqid-velhos! - estenderem-te os braços do fundo das suas grandes poltronas, eabraçá-los-ás da minha parte, com todo o teu

coração, como se te pertencessem. depois,conversareis; eles falar-te-ão de mim, só de mim,contar-te-ão mil tolices, que escutarás sem te rires...

não te rirás, hem?... são os meus avós, dois entespara quem sou tudo na vida e que não me vêem hádez anos... dez anos é muito tempo! mas quequeres? a mim, retém-me paris; a eles, a sua muita

idade... são tão velhos que, se me viessem ver,ficariam pelo caminho... felizmente, estás tu aí, meucaro moleiro, e, ao abraçarem-te, as pobres criaturas

ulgarão abraçar-me um pouco a mim mesmo...

tenho-lhes falado tantas vezes de nós e da nossa boaamizade, que...Diabos levem a amizade! justamente naquelamanhã estava um tempo admirável, mas que nãoera grande coisa para percorrer estradas: demasiadomistral e demasiado sol, um autêntico dia da

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provença. quando a maldita carta chegou, já

escolhera o meu cagnard (refúgio) entre duasrochas e pensava ficar lá todo o dia, como umlagarto, a embriagar-me de sol e a ouvir cantar os

pinheiros... enfim, que havia de fazer? fechei omoinho a praguejar, meti a chave debaixo dagateira, peguei na bengala e no cachimbo e pus-me

a caminho. cheguei a eyguières cerca das duashoras. a vila estava deserta; toda a gente andava noscampos. nos ulmeiros da alameda, brancos depoeira, as cigarras cantavam como em pleno grau.

na praça da mairie, um burro apanhava sol, ospombos esvoaçavam à roda da fonte da igreja, masnão havia ninguém que me indicasse o orfanato.

por sorte, apareceu-me de repente uma velha fada,agachada a fiar ao canto da sua porta. disse-lhe o

que procurava e, como era uma fada muitopoderosa, bastou-lhe levantar a roca: num ápice, oconvento das Órfãs ergueu-se diante de mim comoque por magia... era um casarão desagradável enegro, todo orgulhoso por exibir por cima do seuportal ogivado uma velha cruz de arenito vermelho,

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com uma inscriçãozinha em latim à volta. ao lado

desta casa, vi outra mais pequena. persianascinzentas, jardim nas traseiras... reconheci-aimediatamente e entrei sem bater. recordarei toda a

vida aquele comprido corredor fresco e calmo, aparede pintada de cor-de-rosa, o jardinzito que seadivinhava ao fundo através de um estore claro e as

flores e os raminhos de violetas 'desbotadospintados em todas as almofadas das portas. parecia-me ter entrado em casa de algum velho bailio dotempo de sedaine...

Ao fundo do corredor, à esquerda, por uma portaentreaberta, ouvia-se o tiquetaque de um granderelógio e uma voz de criança, mas de criança de

escola, que lia, parando em cada sílaba: «en...tão...san...to... i...re...neu...gri...tou... eu... sou... o...

instru...men...to... do... se...nhor... É... pré...ci...so...que... eu... sei...já... mo...í...do... pe...los... den...tes...des...tes... a...ni...mais...» aproximei-me devagarinhoda porta e espreitei... no sossego e à meia-luz de umquartito, um velhinho de faces rosadas, engelhadoaté à ponta dos dedos, dormia no fundo de uma

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poltrona, com a boca aberta e as mãos nos joelhos. a

seus pés, uma rapariguinha vestida de azul granderomeira e touquinha, o hábito das órfãs - lia a vidade santo ireneu num livro maior do que ela... aquela

leitura miraculosa produzira efeito sobre toda acasa. o velho dormia na sua poltrona, as moscasdormiam no tecto e os canários na gaiola, ao fundo,

unto da janela. o grande relógio ressonava:tiquetaque,- tiquetaque. em todo o quarto, só seencontrava acordada uma réstia de luz que caía,direita e branca, entre as persianas fechadas, cheia

de centelhas vivas e de valsas microscópicas... nomeio do torpor geral, a criança continuava a sualeitura, com ar grave: «de... re...pen...te... dois...

lê...ões... pre...ci...pi...-.ta... ram...se... so...bre... ele...e... de...vo...ra...ram...no...» foi neste momento que

entrei... se os leões de santo ireneu se tivessemprecipitado no quarto, não produziriam maisespanto do que eu. um verdadeiro lance de teatro! apequena soltou um grito, o grande livro caiu, oscanários e as moscas acordaram, o relógio de salacomeçou a dar horas, o velho soergueu-se

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sobressaltado, muito aflito, e eu próprio, um pouco

perturbado, parei no limiar e gritei bem alto: - bonsdias, minha gente! sou amigo de maurice. oh! então,se vissem o pobre velho, se o vissem vir para mim

com os braços estendidos, abraçar-me, apertar-meas mãos, e correr desorientado pelo quarto, aomesmo tempo que dizia: - meu deus! meu deus!...todas as rugas do seu rosto sorriam. estavaafogueado. balbuciava: -ah, senhor!... ah, senhor!...depois, ia até ao fundo e chamava: - mamette! abriu-se uma porta, ouviu-se um passinho de rato no

corredor... e apareceu mamette. nunca vira nada tãobonito como aquela velhinha com a sua touca defitas, o seu vestido castanho-claro e o seu lenço

bordado, que conservava na mão, em minha honra,à moda antiga... pormenor enternecedor: pareciam-

se um com o outro. com um jeitinho e algumas fitasamarelas, ele também se poderia chamar mamette.somente, a verdadeira mamette devia ter choradomuito na sua vida e estava ainda mais engelhada doque ele. como ele também, tinha junto de si umacriança do orfanato, uma guardazinha de romeira

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azul, que nunca a deixava; e ver os velhotes

protegidos pelas órfãs era o que se podia imaginarde mais tocante. mal entrou, mamette começou porme fazer uma grande vénia, mas com uma palavra

o velho cortou-lhe a vénia em duas: «É o amigo demaurice...» de repente, ela começou a tremer, achorar, esqueceu-se do lenço, pôs-se vermelha,muito vermelha, ainda mais vermelha do que ele...velhos! não têm mais de uma gota de sangue nasveias e à menor comoção ela sobe-lhes ao rosto...; -depressa, depressa, uma cadeira...--disse a velha à

sua pequenita. - abre as persianas!... - gritou o velhoà sua. e, tomando-me cada um por sua mão,levaram-me em passinhos miúdos e apressados até

à janela, que foi aberta de par em par para meverem melhor. aproximaram-se as poltronas,

instalei-me entre os dois num banquinho, com aspequenas de azul atrás de nós, e o interrogatóriocomeçou: - como está ele? que faz? porque nãoveio? Está contente?... e mais isto e mais aquilo! eassim durante horas. eu respondia o melhor quepodia a todas as suas perguntas, dava a respeito domeu amigo os pormenores que sabia inventava

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meu amigo os pormenores que sabia, inventava

descaradamente os que ignorava e tomavasobretudo o cuidado de não confessar que nuncanotara se as suas janelas fechavam bem ou de que

'cor era o papel do seu quarto. - o papel do seuquarto!... É azul, minha senhora, azul-claro, comgrinaldas... - deveras? - perguntava a pobre velha,comovida; e acrescentava, virando-se para omarido: - É um excelente rapaz! - oh, sim, é umexcelente rapaz!-confirmava ele, com entusiasmo. e,enquanto falei, não cessaram de trocar acenos de

cabeça, sorrisinhos cúmplices, piscadelas de olho,ares de entendimento, nem o velho de se aproximarpara me dizer: - fale mais alto... ela é um bocado

dura de ouvido. e ela, por seu turno: - um poucomais alto, peço-lhe!... ele não ouve muito bem...

então, levantei a voz e ambos me agradeceram comum sorriso; e naqueles sorrisos murchos com queme brindavam, procurando até ao fundo dos meusolhos a imagem do seu maurice, comoveu-memuito encontrar a imagem vaga, velada, quaseimperceptível, do meu amigo, como se o vissesorrir me de muito longe do meio da neblina

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sorrir-me de muito longe, do meio da neblina.

De repente, o velho endireitou-se na sua poltrona. -mas agora me lembro, mamette... ele, se calhar,ainda não almoçou! e mamette, aflita, erguendo os

braços ao céu: - sem almoçar!... meu deus!... julgueitratar-se ainda de maurice e ia a responder que oexcelente rapaz só esperava pelo meio-dia para sesentar à mesa. mas não, era já de mim que se falava;e então é que foi digna de se ver a sua atrapalhaçãoquando confessei que ainda estava em jejum. -depressa, um talher, pequenas! a mesa no meio do

quarto, a toalha do domingo, os pratos de flores. enão se riam tanto, se fazem favor! despachemo-nos... creio bem que se despacharam. apenas o

tempo preciso para quebrar três pratos e o almoçoestava servido. - um bom almocinho!- dizia-me

mamette, levando-me para a mesa. - o que tem é decomer sozinho... nós já almoçámos de manhã.pobres velhos! a qualquer hora que os encontremos,comeram sempre de manhã.O bom almocinho de mamette eram dois dedos deleite, tâmaras e uma barquette, qualquer coisa comouma filhó o que chegaria para ela e os seus canários

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uma filhó, o que chegaria para ela e os seus canários

se alimentarem pelo menos durante oito dias... edizer que eu, sozinho, dei conta de todas aquelasprovisões!... também, que indignação em torno da

mesa! como as pequenas cochichavam e seacotovelavam, e no seu poleiro, ao fundo da gaiola,como os canários tinham o ar de dizer: «oh, aquelesenhor é capaz de comer a barquette toda!» comi-atoda, com efeito, e quase sem dar por isso, ocupadocomo estava a olhar à minha volta a sala clara eaprazível, onde pairava como que um aroma a

coisas antigas... havia, sobretudo, duas caminhasdas quais não podia tirar os olhos.Aquelas camas, quase dois berços, imaginava-as de

madrugada ao lusco-fusco, quando eles estavamainda escondidos debaixo dos seus grandes

cortinados franjados. batem três horas, a hora a quetodos os velhos acordam. «- dormes, mamette? «-não, meu amigo. «-não é verdade que maurice é umexcelente rapaz? «- oh, sim, é um excelente rapaz.»E imaginava-os a conversar assim só por ter visto asduas caminhas de velho colocadas ao lado uma daoutra entretanto passava-se um drama terrível do

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outra... entretanto, passava-se um drama terrível do

outro lado do quarto, diante do armário. tratava-sede tirar lá de cima, da última prateleira, certo frascode cerejas em aguardente que esperava maurice

havia dez anos e que queriam abrir para meobsequiar. a despeito das súplicas de mamette, ovelho teimara em ir ele próprio buscar as suascerejas; e, empoleirado numa cadeira, com grandeterror da mulher, tentava chegar lá acima...imaginem este quadro: o velho que treme e quesobe, as pequenas agarradas à cadeira, mamette

atrás dele, arquejante, com os braços estendidos, epor cima de tudo isto um leve perfume debergamota, que se exala do armário aberto e das

grandes pilhas de roupa branca muito bem lavada...era encantador. enfim, depois de muitos esforços,

conseguiram tirar do armário o famoso frasco e,com ele, um velho copo de prata todo amassado, ocopo de maurice quando era pequeno. encheram-node cerejas até acima; maurice gostava tanto de

cerejas! e, enquanto me servia, o velho dizia-me aoouvido, com ar de gula: - É uma grande felicidadepara si podê-las comer! foi a minha mulher quem

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para si podê las comer!... foi a minha mulher quem

as preparou... vai provar o que é bom. ai de mim! amulher preparara-as, mas esquecera-se de asaçucarar. que querem? as pessoas tornam-se

distraídas com a idade. eram intragáveis as suascerejas, minha pobre mamette... mas isso não meimpediu de as comer todas, sem pestanejar.terminada a refeição, levantei-me para me despedirdos meus anfitriões. quereriam talvez reter-me umpouco mais, para conversarmos acerca do seuexcelente rapaz, mas a noite aproximava-se, o

moinho ficava longe e era necessário partir. o velholevantara-se ao mesmo tempo que eu. - mamette, omeu casaco!... quero acompanhá-lo até à praça.

estou certo de que, no seu íntimo, mamette achavaque já estava bastante frio para ele me acompanhar

à praça; mas não deixou transparecer nada do quesentia. somente, enquanto o ajudava a enfiar asmangas do casaco - um belo casaco cor de tabaco deespanha, com botões de madrepérola -, ouvi a

adorável criatura dizer-lhe docemente: - não vensdemasiado tarde, pois não? e ele, com um arzinhomalicioso: - eh! eh!... não sei... talvez... em seguida,

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malicioso: eh! eh!... não sei... talvez... em seguida,

olharam-se a rir, as pequenas riram-se de os ver rire no seu canto os canários riram também, a seumodo... aqui para nós, creio que o aroma das cerejas

deixara todos um pouco embriagados.A noite caía quando saímos, o avô e eu. a pequenavestida de azul seguiu-nos de longe para oreconduzir a casa; mas ele não a via e estava todoufano por caminhar pelo meu braço, como umhomem. mamette, radiante, observava isto do limiarda porta e, enquanto nos olhava, acenava

encantadoramente com a cabeça, como se quisessedizer: «assim mesmo, meu pobre homem!... aindacaminha.»

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conversam nos pátios com ar importante. todo ocastelo está inquieto... camareiros, mordomos,sobem e descem a correr as escadarias demármore... as galerias estão cheias de pajens e de

cortesãos vestidos de seda, que andam de grupo emgrupo à cata de notícias em voz baixa. nos amplospatamares, as damas de honor, lacrimosas, fazem

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grandes vénias e enxugam os olhos com bonitoslenços bordados.Na estufa das laranjeiras há uma numerosa

assembleia de médicos togados. vêem-se, atravésdos vidros, agitar as longas mangas negras einclinar doutoralmente as perucas frisadas... o aio eo escudeiro do pequeno delfim passeiam diante daporta, à espera das decisões da faculdade. moços decozinha passam por eles sem os saudar. o sr.escudeiro pragueja como um pagão e o sr. aio recita

versos de horácio... de vez em quando, lá em baixo,para os lados das cavalariças, ouve-se umprolongado relincho plangente. É o alazão do

pequeno delfim que os palafreneiros esqueceram eque chama tristemente por eles diante da

manjedoura vazia. e o rei? onde está monsenhor orei? o rei está fechado sozinho num quarto, noextremo do castelo... as majestades não gostam queas vejam chorar... para a rainha, é outra coisa.

sentada à cabeceira do pequeno delfim, tem o belorosto banhado de lágrimas e soluça bem alto diantede todos, como qualquer mercadora de panos. na

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sua caminha de rendas, o pequeno delfim, maisbranco do que as almofadas em que está deitado,repousa com os olhos fechados. julgam que ele

dorme, mas não dorme. o pequeno delfim nãodorme... vira-se para a mãe e, ao vê-la chorar, diz-lhe: - senhora rainha, porque chorais? É porqueacreditais sinceramente que vou morrer? a rainhaquer responder, mas os soluços impedem-na defalar.- Não choreis, sr.a rainha; esqueceis que sou o

delfim e que os delfins não podem morrer assim... arainha soluça ainda mais alto e o pequeno delfimcomeça a assustar-se.

- Basta! - diz ele. - não quero que a morte me venhabuscar e saberei impedi-la de entrar aqui... mandem

vir imediatamente quarenta lansquenetes bemfortes para ficarem de guarda em torno do nossoleito!... que cem grandes canhões velem dia e noite,com a mecha acesa, debaixo das nossas janelas! e

desgraçada da morte se ousar aproximar-se denós!... para satisfazer os desejos do infante real, arainha faz um aceno. ouvem-se imediatamente os

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grandes canhões rodar no pátio e quarenta grandeslansquenetes, de partazana em punho, vêmenfileirar-se em volta do quarto. são todos velhos

soldados de bigodes grisalhos. o pequeno delfimbate as mãos ao vê-los. reconhece um e chama-o:- Lorrain! Lorrain! O soldado dá um passo para oleito. - gosto muito de ti, meu velho lorrain... deixa-me ver um pouco o teu grande sabre... se a morteme quiser levar, havemos de a matar, não éverdade?

Lorrain responde: - sim, monsenhor. e duas grossaslágrimas 'correm-lhe pelas faces tisnadas. nestemomento, o capelão aproxima-se do pequeno

delfim e fala-lhe demoradamente em voz baixa, aomesmo tempo que lhe mostra um crucifixo. o

pequeno delfim escuta-o com ar muito admirado edepois interrompe-o de repente: - compreendo bemo que me dizeis, sr. abade; mas, enfim, não poderiao meu amiguinho beppo morrer em meu lugar,

dando-lhe muito dinheiro?... o capelão continua afalar-lhe em voz baixa e o pequeno delfim parececada vez mais admirado. quando o capelão termina,

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o pequeno delfim responde-lhe, com um suspiro: -tudo o que me dizeis é bem triste, sr. abade; masuma coisa me conforta: é que lá em cima, no paraíso

das estrelas, continuarei a ser o delfim... sei quenosso senhor é meu primo e que não pode deixar deme tratar de acordo com a minha condição. depoisacrescenta, virando-se para a mãe: - que me tragamos meus mais belos trajos, o meu gibão de arminhobranco e os meus escarpins de veludo! queroapresentar-me bem vestido aos anjos e entrar no

paraíso vestido de delfim. pela terceira vez ocapelão se inclina junto do pequeno delfim e lhe falademoradamente em voz baixa... no meio do seu

discurso, o infante real interrompe-o com cólera: -mas, então - grita -, ser delfim é o mesmo que não

ser nada! e, sem querer ouvir mais, o pequenodelfim vira-se para a parede e chora amargamente.

O Subprefeito no Campo

O sr. subprefeito anda em visita de inspecção.cocheiro à frente, lacaio atrás, a caleça dasubprefeitura leva-o majestosamente à feira

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regional de combe-aux-fées. para esta tardememorável o sr. subprefeito vestiu a sua bela casacabordada, os seus calções justos, de listas prateadas,

pôs o seu chapéu armado e a sua espada de gala,com punho de madrepérola... nos joelhos repousa-lhe uma grande pasta de chagrém lavrado, que eleolha tristemente. o sr. subprefeito olha tristemente asua pasta de chagrém lavrado e pensa no famosodiscurso que terá de pronunciar dentro de poucotempo, perante os habitantes de combe-aux-fées:

«senhores e caros administrados...» ele bem torce aseda dourada das suas suíças e repete vinte vezes afio: «senhores e caros administrados...», mas o resto

do discurso não sai.

O resto do discurso não sai... faz tanto calor nacaleça! a estrada de combe-aux-fées brilha a perderde vista sob o sol do meio-dia... o ar está abrasadore nos ulmeiros da beira do caminho, todos cobertos

de poeira branca, milhares de cigarras conversamde uma árvore para outra... de repente, o sr.subprefeito estremece. lá ao longe, no sopé de um

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outeiro, acaba de descobrir um bosquezinho decarvalhos verdes que parece chamá-lo. obosquezinho de carvalhos verdes parece dizer-lhe:

«venha para aqui, sr. subprefeito; estará muitomelhor debaixo das minhas árvores para compor oseu discurso...» o sr. subprefeito está seduzido; saltada caleça e diz aos seus homens que o esperem, poisvai compor o seu discurso no bosquezinho decarvalhos verdes. no bosquezinho de carvalhosverdes há aves, violetas e nascentes na erva macia...

quando as aves deram pela presença do sr.subprefeito, com os seus belos calções e a sua pastade chagrém lavrado, tiveram medo e deixaram de

cantar, as nascentes não ousaram rumorejar mais eas violetas esconderam-se na erva... todo aquele

pequenino mundo jamais vira um subprefeito einterrogava-se em voz baixa quem seria aquelecavalheiro que passeava de calções de prata. em vozbaixa, sob a folhagem, perguntava-se quem era

aquele cavalheiro de calções de prata... entretanto, osr. subprefeito, encantado com o silêncio e afrescura do bosque, levantou as abas da casaca,

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pousou o chapéu na erva e sentou-se no musgo, aopé de um carvalho novo. em seguida, abriu em cimados joelhos a sua grande pasta de chagrém lavrado

e tirou uma comprida folha de papel de ofício. - Éum artista! - disse a toutinegra. - não - replicou opisco -, não é um artista, porque tem calções deprata; deve ser um príncipe. - nem artista nempríncipe - atalhou um velho rouxinol que cantaradurante toda uma estação nos jardins dasubprefeitura.

Eu é que sei o que ele é: é um subprefeito!E todo o bosquezinho cochichou: - É umsubprefeito! É um subprefeito! - como ele é calvo! -

notou uma cotovia de grande poupa. as violetasperguntaram: - É mau? - É mau? - perguntaram as

violetas. o velho rouxinol respondeu: - de maneiranenhuma! e com esta certeza as aves recomeçaram acantar, as nascentes a correr, as violetas a perfumaro ambiente, como se o sr. subprefeito não estivesse

ali... impassível no meio de toda aquela agradávelalgazarra, o sr. subprefeito invocou no coração amusa dos comícios agrícolas e, de lápis levantado,

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começou a declamar com a sua voz de circunstância: - senhores e caros administrados... - senhores ecaros administrados - disse o subprefeito com a sua

voz de circunstância. uma gargalhada interrompeu-o; voltou-se e viu apenas um grande picanço-verdeque o olhava a rir, empoleirado no seu chapéuarmado. o subprefeito encolheu os ombros e quiscontinuar o seu discurso, mas o picanço-verdeinterrompeu-o novamente e gritou-lhe de longe: -para que serve isso? - como?! para que serve isto? -

disse o subprefeito, corando muito; e, enxotando oatrevido com um gesto, recomeçou com ênfase: -senhores e caros administrados... - senhores e caros

administrados... - recomeçou o subprefeito, comênfase. mas então as pequenas violetas ergueram-se

até ele na ponta dos seus caules e disseram-lhedocemente: - sr. subprefeito, já notou comocheiramos bem?E as nascentes executaram uma música divina

debaixo do musgo; e nas ramadas, por cima dacabeça do sr. subprefeito, bandos de toutinegrasvieram cantar-lhe as suas mais belas árias e todo o

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bosquezinho conspirou para o impedir de compor oseu discurso. todo o bosquezinho conspirou para oimpedir de compor o seu discurso... o sr.

subprefeito, entontecido pelos perfumes, ébrio demúsica, tentou em vão resistir ao novo encanto queo invadia. apoiou-se nos cotovelos em cima da erva,desabotoou a sua bela casaca e balbuciou aindaduas ou três vezes: - senhores e carosadministrados... senhores e caros admi... senhores ecaros... depois mandou os administrados para o

diabo; e a musa dos comícios agrícolas não teveoutro remédio senão velar o rosto.Velai o rosto, ó musa dos comícios agrícolas!...

quando, ao cabo de uma hora, o pessoal dasubprefeitura, inquieto com a demora do seu chefe,

entrou no bosquezinho, viu um espectáculo que ofez recuar de horror... o sr. subprefeito estavadeitado de bruços, na erva, descomposto como umboémio. despira a casaca... e, mordiscando violetas,

o sr. subprefeito fazia versos.

A Pasta de Bixiou

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Numa manhã do mês de outubro, alguns dias antesde deixar paris, vi chegar a minha casa - quandoestava a almoçar - um velho de casaca no fio,

cambaio, enlameado, curvado, a tiritar em cima dassuas longas pernas como uma cegonha depenada.era bixiou. sim, parisienses, o vosso bixiou, o feroz eencantador bixiou, o trocista acerbo que há quinzeanos tanto vos diverte com os seus panfletos e assuas caricaturas... ah, o infeliz, que miséria! se nãofosse uma careta que fez quando entrou, não o teria

reconhecido. com a cabeça inclinada sobre o ombroe a bengala na boca como um clarinete, o ilustre elúgubre farsante avançou até ao meio da casa, veio

encostar-se à minha mesa e disse, com voz dolente: -tende piedade de um pobre cego!... estava tão bem

imitado que não pude deixar de rir. mas eleretorquiu-me, muito friamente: - julga que estou abrincar?... veja os meus olhos. e voltou para mimduas grandes pupilas brancas, sem vida. - estou

cego, meu caro; cego para toda a vida... É o queacontece a quem escreve com vitríolo. queimei osolhos nesse belo ofício; mas queimei-os até ao

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fundo... até à arandela! - acrescentou, mostrando-me as pálpebras calcinadas, onde não havia sequera sombra de um cílio. estava tão comovido que não

encontrei nada que lhe dissesse. o meu silêncioinquietou-o: - Está a trabalhar? - não, bixiou, estou aalmoçar. quer fazer o mesmo?Não respondeu, mas, pelo fremir das narinas, vibem que estava morto por aceitar. peguei-lhe namão e fi-lo sentar ao pé de mim. enquanto oserviam, o pobre diabo farejava a mesa, com um

sorrisinho.- Tudo isto parece ser bom. vou-me regalar; há tantotempo que não almoço! um pão de soldo todas as

manhãs, enquanto percorro os ministérios... porque,como sabe, agora percorro os ministérios; é a minha

única profissão. ando a ver se consigo um estanco...que quer, é preciso comer lá em casa! não possodesenhar, não posso escrever... ditar?... mas o quê?...não tenho nada na cabeça, não invento nada... o

meu ofício era ver as carantonhas de paris edesenhá-las; agora, já não posso... por isso penseinum estanco; não nos bulevares, bem entendido.

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não tenho direito a tal favor, porque nem sou mãede bailarina, nem viúva de oficial superior. não!simplesmente uma casinha na província, em

qualquer parte, bem longe, num recanto dos vosgos.teria um grande cachimbo de porcelana, chamar-me-ia hans ou zebedeu, como em enckmann-chatrian, e consolar-me-ia de já não escreverfazendo cartuchos de tabaco com as obras dos meuscontemporâneos. «É tudo quanto peço. não égrande coisa, não é verdade?... pois bem, é o diabo

para o conseguir... no entanto, as protecções não medeveriam faltar. antigamente tinha boas relações.antava em casa do marechal, do príncipe, dos

ministros; toda essa gente me convidava porque osdivertia ou porque tinham medo de mim. hoje não

meto medo a ninguém. oh, os meus olhos! os meuspobres olhos! agora já ninguém me convida. É tãotriste uma cabeça de cego à mesa. passe-me o pão,se faz favor... ah, os bandidos! fazem-me pagar caro

o miserável estanco. há seis meses que corro todosos ministérios com a minha petição. chego demanhã, à hora a que acendem os fogões e passeiam

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os cavalos de sua excelência no saibro do pátio; sóme vou embora à noite, quando acendem oslampiões e nas cozinhas começa a cheirar bem...

«Passo a vida sentado nas arcas de madeira dasantecâmaras. os contínuos já me conhecem! nointerior tratam-me por «este bom senhor»! e eu,para conquistar a sua protecção, faço calembures oudesenho de um traço, num canto dos mata-borrões,grandes bigodes que os fazem rir... aqui está ao quecheguei passados vinte anos de êxitos retumbantes,

aqui está o fim de uma vida artística!... e dizer quehá em frança quarenta mil galopins a quem a nossaprofissão faz crescer água na boca! dizer que há

todos os dias por esses departamentos umalocomotiva que aquece para nos trazer cestadas de

imbecis ávidos de literatura e de elogios nosornais!... ah, província romanesca, se a miséria debixiou te pudesse servir de lição! depois destatirada, meteu o nariz no prato e desatou a comer

avidamente, sem dizer palavra. fazia pena vê-lo. acada instante perdia o pão, o garfo, tacteava paraencontrar o copo. pobre homem, ainda não se

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habituara! passado um momento, recomeçou: - sabeo que é ainda mais horrível para mim? É não poderler os jornais. É necessário ser do ofício para

compreender isto... Às vezes, à tarde, quandoregresso, compro um, só para sentir o cheiro a papelhúmido e a notícias frescas... É tão bom! e não terninguém para mos ler! a minha mulher bem podia,mas não quer: pretende que há no noticiário coisasinconvenientes... ah, estas antigas amantes! depoisde casadas, não há nada que não façam para se

fingir virtuosas. desde que fiz dela a sr.a bixiou,ulgou-se obrigada a tornar-se beata falsa, mas a queponto!... então não queria que friccionasse os olhos

com água de la salette! e depois o pão benzido, ospeditórios, a santa infância, os pequenos chineses,

que sei eu?... estamos metidos nas boas obras até aopescoço... seria, no entanto, uma boa obra ler-me osornais. mas está bem, ela não quer... se a minhafilha estivesse connosco, lia-mos; mas desde que

ceguei meti-a em notre-dame-des-arts, para termenos uma boca a sustentar... «essa é mais uma queme preocupa! ainda não há nove anos que veio ao

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mundo e já teve todas as doenças... É triste! É feia!mais feia do que eu, se é possível... um monstro!que quer, nunca soube fazer senão caricaturas... ah,

para que havia de me dar! contar-lhe as minhashistórias de família. que lhe pode isto interessar?...vamos, dê-me um pouco mais desta aguardente.tenho de ir à vida. quando sair daqui, vou àinstrução pública e os contínuos não são fáceis dealegrar. são todos antigos professores.» deitei-lhe aaguardente. começou a saboreá-la aos golinhos,

com ar entendido... de repente, não sei que moscalhe mordeu, levantou-se com o copo na mão,passeou um instante à sua volta a cabeça de víbora

cega, com o sorriso amável do cavalheiro que vaifalar, e depois, com voz estridente, como se

estivesse a arengar num banquete de duzentostalheres, gritou: - Às artes! Às letras! À imprensa! elá partiu depois de um brinde de dez minutos, omais louco e maravilhoso improviso jamais saído

daquele cérebro de farsante. imaginem uma revistade fim de ano intitulada: o balanço das letras em186...; as nossas assembleias supostamente literárias,

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as nossas tagarelices, as nossas querelas, todas asridicularias de um mundo excêntrico, monturo detinta, inferno sem grandeza, onde se degola, onde se

estripa, onde se rouba, onde se fala muito mais deuros e grossas maquias do que entre os burgueses,o que não impede que entre nós se morra de fomemais do que em qualquer outra parte; todas asnossas cobardias, todas as nossas misérias; o velhobarão t... da tômbola a ir fazer «nhá... nhá... nhá...»às tulherias com a sua escudela e a sua casaca

azulada; depois os nossos mortos do ano, osenterros com publicidade, a oração fúnebre do sr.delegado, sempre a mesma: «querido e chorado!

pobre querido!», em honra de um desgraçado dequem se recusa pagar a sepultura; e os que se

suicidaram, e os que enlouqueceram; imaginemtudo isto, contado, esmiuçado, gesticulado por umcaricaturista de génio, e terão uma ideia do que foi oimproviso de bixiou. terminado o brinde, despejado

o copo, perguntou-me as horas e foi-se embora, comar furibundo, sem me dizer adeus... ignoro como oscontínuos do sr. duruy receberam a sua visita

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naquela manhã; mas sei bem que nunca na minhavida me senti tão triste, tão mal-humorado, comodepois da partida do terrível cego. o meu tinteiro

repugnava-me, a minha pena causava-me horror.gostaria de ir para longe, de correr, de ver árvores,de sentir qualquer coisa agradável... que ódio, meudeus! que fel! que necessidade de difamar tudo, detudo sujar! ah, o miserável!...E percorria o meu quarto com furor, julgando ouvirsempre a gargalhada de desgosto que ele dera ao

falar-me da filha. de repente, junto da cadeira emque o cego estivera sentado, senti qualquer coisarolar-me debaixo do pé. baixei-me e reconheci a sua

pasta, uma grande pasta luzidia, de cantos rotos,que nunca o abandonava e a que chamava, rindo, a

sua bolsa de veneno. aquela pasta era tão famosaentre nós como os famosos cartões do sr. girardin.dizia-se que havia coisas terríveis lá dentro... aocasião não podia ser melhor para me certificar. a

velha pasta, muito cheia, rebentara ao cair e todosos papéis se tinham espalhado no tapete; tive de osapanhar um por um... um maço de cartas escritas

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em papel florido, começando todas por meuquerido papá e assinadas céline bixiou das filhas demaria: receitas antigas para doenças de crianças]

garrotilho, convulsões, escarlatina, sarampo... (apobre pequena não escapara a uma!); finalmente,um grande sobrescrito lacrado do qual saíam, comode um chapéu de menina, duas ou três madeixaslouras todas encaracoladas, e no sobrescrito, emletras grandes e trémulas, escrita de cego: cabelos decéline, cortados em 13 de maio, data da sua entrada

no recolhimento.E aqui está o que havia na pasta de bixiou. vamos,parisienses, sois todos os mesmos. o desdém, a

ironia, um riso infernal, piadas ferozes, e depois,

para terminar... cabelos de céline, cortados em 13 demaio.

A Lenda do Homem dos Miolos de Ouro

À senhora que pede histórias alegres ao ler a suacarta, minha senhora, senti como que um remorso.fiquei aborrecido comigo próprio por causa da cor

d l l d d

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um tanto excessivamente de luto aliviado dasminhas historietas e prometi a mim mesmooferecer-lhe hoje algo alegre, loucamente alegre.

afinal de contas, porque estarei triste? vivo a milléguas dos nevoeiros parisienses, numa colinaluminosa, na terra dos tamborileiros e do vinhomoscatel. À minha volta só há sol e música; tenhoorquestras de narcejas, orfeões de melharucos; demanhã, os maçaricos-reais fazem: «cureli! cureli!», eao meio-dia cantam as cigarras; depois, os pastores

tocam pífaro e as belas raparigas morenas ouvem-serir nas vinhas... na verdade, o lugar é mal escolhidopara tristezas; deveria antes mandar às damas

poemas cor-de-rosa e cabazadas de contos galantes.mas não! estou ainda demasiado perto de paris.

todos os dias até nos meus pinheiros, paris meenvia os salpicos de lama das suas tristezas... naprópria hora em que escrevo estas linhas, acabo dereceber a notícia da morte miserável do pobre

charles barbara, e todo o meu moinho está de luto.adeus, maçaricos-reais e cigarras! já não tenhoalegria no coração... e aqui tem, minha senhora, por

i d di id i

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que motivo, em vez do conto divertido que a mimpróprio prometera dedicar-lhe, ainda hoje terá umalenda melancólica.

Era uma vez um homem que tinha miolos de ouro;sim, minha senhora, um cérebro todo de ouro.quando veio ao mundo, os médicos pensaram que acriança não viveria, tão pesada era a sua cabeça edesproporcionado o seu crânio. contudo, vingou ecresceu ao sol como uma bela oliveira; somente asua grande cabeça o impedia de conservar o

equilíbrio e metia pena vê-lo esbarrar com todos osmóveis quando caminhava... caía muitas vezes. umdia, rolou do alto de uma escadaria e foi bater com a

testa num degrau de mármore, onde o seu crâniosoou como um lingote. julgaram-no morto; mas,

quando o levantaram, só lhe encontraram umaligeira beliscadura, com duas ou três gotinhas deouro coalhadas nos seus cabelos louros. foi assimque os pais souberam que o filho tinha miolos de

ouro. o caso foi mantido em segredo; nem mesmo opobre pequeno suspeitou de nada. de vez emquando, perguntava porque o não deixavam ir

di t d t t d

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correr diante da porta com os garotos da rua. «-poderiam roubar-te, meu lindo tesouro!» -respondia-lhe a mãe. então, o pequeno tinha muito

medo de ser roubado e voltava a brincar sozinho,sem dizer nada. e arrastava-se pesadamente de umasala para outra... só aos 18 anos os pais lherevelaram o dom monstruoso que recebera do

destino; e como o tinham educado e sustentado atéali. pediram-lhe em troca um pouco do seu ouro. orapaz não hesitou; acto contínuo - como? por que

meio? não o diz a lenda -, arrancou do crânio umpedaço de ouro maciço, um pedaço do tamanho deuma noz. e atirou-o orgulhosamente para o regaço

da mãe... depois, deslumbrado pelas riquezas quetrazia na cabeça, louco de desejos, ébrio do seu

poder, deixou a casa paterna e foi pelo mundo foradissipar o seu tesouro. pelo modo como vivia,principescamente, semeando ouro sem contar, dir-se-ia que o seu cérebro era inesgotável... todavia, ele

esgotava-o, e, à medida que se esgotava, os seusolhos tornavam-se mortiços e as suas faces iam-secavando. por fim, um dia, na manhã seguinte a uma

i l d d fi i h t

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orgia louca, o desgraçado, que ficara sozinho entreos restos do festim e os lustres que se apagavam,admirou-se da enorme brecha que já abrira no seu

lingote. era tempo de parar. desde então, levou umaexistência nova. o homem de miolos de ouro foiviver isolado, do trabalho das suas mãos.desconfiado e medroso como um avarento, fugindo

às tentações, procurando esquecer ele próprio asriquezas fatais em que não queria voltar a tocar...por desgraça, um amigo acompanhara-o na sua

solidão, e esse amigo conhecia o seu segredo. umanoite, o pobre homem acordou sobressaltado comuma dor na cabeça, uma dor insuportável;

levantou-se como louco e viu. a um raio de luar,que o amigo fugia com qualquer coisa escondida

debaixo da capa... mais um bocado de cérebro quelhe levavam!... algum tempo depois, o homem demiolos de ouro apaixonou-se, e então tudo acabou...amava de todo o coração uma jovem loura, que

também o amava muito, mas que amava ainda maisas borlas, as plumas brancas e as bonitas bolinhascastanho-avermelhadas a baterem ao longo das

botinas nas mãos da gentil criatura metade

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botinas. nas mãos da gentil criatura - metadepássaro, metade boneca -. os pedacinhos de ourofundiam-se que era um consolo. ela tinha todos os

caprichos e ele nunca era capaz de lhe dizer quenão; até com medo de a entristecer, escondeu-lheaté ao fim o triste segredo da sua fortuna. - somosentão muito ricos? - perguntava ela. e o pobre

homem respondia-lhe: - oh. sim...muito ricos!E sorria com amor à avezinha azul que lhedevorava o crânio inocentemente. de vez em

quando, porém, o medo assaltava-o e sentia desejosde ser avaro; mas então a mulherzinha aproximava-se dele, saltitante, e dizia-lhe: - meu marido, que és

tão rico, compra-me qualquer coisa que seja muitocara!... e ele comprava-lhe qualquer coisa muito

cara. isto durou assim dois anos; depois, umamanhã, a mulherzinha morreu, sem que se soubesseporquê, como um passarinho... o tesouro estava nofim. com o que lhe restava, o viúvo fez à sua

querida morta um belo enterro. sinos a dobrar,pesadas carruagens forradas de negro, cavalosempenachados, lágrimas de prata nos veludos, nada

lhe pareceu demasiado belo que lhe importava

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lhe pareceu demasiado belo. que lhe importavaagora o seu ouro?... deu-o à igreja, aos moçosfunerários, às vendedeiras de perpétuas; deu-o a

rodos. também, ao sair do cemitério, não lhe restavaquase nada daquele cérebro maravilhoso; apenasalgumas partículas pegadas às paredes do crânio.viram-no então andar pelas ruas, desvairado, com

as mãos estendidas para diante, a cambalear comoum ébrio. À noite, à hora a que os bazares seiluminam, parou diante de uma grande montra, na

qual montes de tecidos e de adereços brilhavamexpostos à luz, e ficou ali durante muito tempo aolhar duas botinas de cetim azul bordadas a

penugem de cisne. «sei de alguém a quem estasbotinas dariam muito prazer», disse para consigo,

sorrindo; e, não se lembrando já de que a suamulherzinha estava morta, entrou para as comprar.nos fundos da loja, a vendedora ouviu um grandegrito: acorreu e recuou apavorada ao ver um

homem de pé, encostado ao balcão, que a olhavadolorosamente, com ar idiota. tinha numa das mãosas botinas azuis com bordados de cisne e estendia a

outra mão completamente ensanguentadas comd d d d l h

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outra mão, completamente ensanguentadas comrestos de ouro nas pontas dos dedos. tal é, minhasenhora, a lenda do homem dos miolos de ouro. adespeito do seu ar de conto fantástico, esta lenda éverdadeira de uma ponta à outra... há no mundoinfelizes condenados a viver do seu cérebro, quepagam em belo ouro fino, com o seu miolo e com a

sua substância, as mais insignificantes coisas davida. para eles, cada dia é uma dor; e depois,quando estão cansados de sofrer...

O Poeta MistralNo último domingo, ao levantar-me, julguei ter

acordado na rua do faubourg-montmartre. chovia, océu estava cinzento e o moinho triste. tive receio de

passar em casa aquele frio dia de chuva, e, derepente, apeteceu-me ir aquecer-me um bocadinhoao pé de frédéric mistral, o grande poeta que vive atrês léguas dos meus pinheiros, na sua aldeiazinha

de maillane. se bem o pensei, melhor o fiz; umavara de mirto, o meu montaigne. uma capa e acaminho! ninguém nos campos... a nossa bela

provença católica deixa a terra repousar aod i i h i

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provença católica deixa a terra repousar aodomingo... os cães sozinhos nas casas, as quintasfechadas... de longe em longe, um carro com o toldoa escorrer, uma velha encapuzada na sua capa corde folha seca, muares arreadas de gala, cobertura deesparto azul e branco, borlas vermelhas, guizos deprata, transportando a trote curto uma carrada

completa de gente de mas que vai à missa; depois,ao longe, através da bruma, uma barca na roubine eum pescador em pé, a lançar a sua tarrafa... não há

maneira de ler pelo caminho num dia assim. achuva caía em torrentes e a tramontana atirava-maem cântaros à cara... percorri todo o caminho de

uma assentada e, por fim, depois de três horas demarcha, avistei diante de mim os bosquezinhos de

ciprestes no meio dos quais a aldeia de maillane seabriga com medo do vento. nem um gato nas ruasda aldeia; toda a gente estava na missa cantada.quando passei diante da igreja, o serpentão roncava

e vi os círios reluzirem através dos vitrais. a casa dopoeta fica na extremidade da povoação; é a últimacasa à mão esquerda, na estrada de são remígio,

uma casinha de um andar com jardim à frentet i d i h i é ! t d lã tá

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uma casinha de um andar, com jardim à frente...entrei devagarinho... ninguém! a porta do salão estáfechada, mas ouço atrás dela alguém passear e falarem voz alta... aqueles passos e aquela voz são-memuito familiares... detenho-me um momento nocorredorzinho caiado, com a mão na maçaneta daporta, muito comovido. o coração bate-me. ele está

ali. trabalha... devo esperar que termine a estrofe?...por minha fé! tanto pior, entremos. ah, parisienses!quando o poeta de maillane vos visitou para

mostrar paris à sua mireille e o vistes nos vossossalões, esse chaotas em trajo citadino, de colarinhodireito e grande chapéu alto, que o incomodava

tanto como a sua glória, julgastes que era mistral...não, não era ele.

Só há um mistral no mundo, aquele que surpreendino último domingo na sua aldeia, com o chapelãode feltro inclinado sobre a orelha, sem colete, deaqueta, com a sua vermelha faixa catalã em torno

dos rins, o olhar iluminado, o fogo da inspiraçãonas faces, soberbo, com um sorriso bondoso,elegante como um pastor grego e caminhando a

passos largos de mãos nos bolsos a fazer versos -é t ?! it i t l lt d

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passos largos, de mãos nos bolsos, a fazer versos... como, és tu?! - gritou mistral, saltando-me aopescoço. que boa ideia tiveste de vir!... justamentehoje, é a festa de maillane. temos música deavinhão, touros, procissão, farândola; serámagnífico... a mãe deve estar a chegar da missa;almoçamos e depois, zut!, vamos ver dançar as

raparigas bonitas... enquanto ele falava, eu olhavacomovido o salãozinho de tapeçaria clara, que nãovia há muito tempo e onde já passara tão belas

horas. nada mudara. o mesmo sofá de coxinsamarelos, os dois cadeirões de palha, a vénus sembraços e a vénus de arles em cima do fogão, o

retrato do poeta por hébert, a sua fotografia porÉtienne carjat, e a um canto, junto da janela, a

escrivaninha - uma pobre escrivaninha de recebedorde registos - completamente carregada de velhosalfarrábios e dicionários. no meio da escrivaninha,vi um grande caderno aberto... era o calendal, o seu

novo poema, que deve ser publicado no fim desteano, no dia de natal. o poeta trabalha nele há seteanos e há perto de seis meses que escreveu os

últimos versos; todavia, ainda não se atreveu aseparar se dele como compreendereis há sempre

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últimos versos; todavia, ainda não se atreveu aseparar-se dele. como compreendereis, há sempreuma estrofe a polir, uma rima mais sonora aencontrar... mistral escusava de escrever emprovença visto burilar os seus versos como se toda agente os pudesse ler nessa língua e apreciar os seusesforços de bom obreiro... oh, o grande poeta! É este

o mistral de quem montaigne teria podido dizer:lembrai-vos daquele a quem, quando lheperguntavam porque se dedicava tanto a uma arte

inacessível à maior parte das pessoas, respondia:«poucas me bastam. contento-me com um só.contento-me mesmo com nenhum.'» tinha o

caderno do calendal nas mãos e folheava-o muitocomovido... de repente, uma música de pífaros e de

tamboris estrondeia na rua, diante da janela, e actocontínuo o meu mistral corre ao armário, tira de lácopos e garrafas, arrasta a mesa para o meio dosalão, abre a porta aos músicos e diz-me: - não te

rias... vêm oferecer-me a alvorada... sou vereador. asalita enche-se de gente. pousam os tamboris emcima das cadeiras, o velho estandarte a um canto, e

o vinho velho circula. depois de despejaremalgumas garrafas à saúde de frédéric de

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o vinho velho circula. depois de despejaremalgumas garrafas à saúde de frédéric, deconversarem gravemente acerca da festa e deperguntarem se a farândola será tão bonita como ado ano passado e se os touros serão bravos, osmúsicos retiram-se e vão oferecer a alvorada a casados outros vereadores. neste momento, a mãe de

mistral 'chega.Num abrir e fechar de olhos, a mesa está posta: umabela toalha branca e dois pratos. conheço os hábitos

da casa e sei que quando mistral tem visitas a mãenão se senta à mesa... a pobre velhinha só conhece oseu provençal e sentir-se-ia pouco à vontade se

tivesse de conversar com franceses... por outro lado,é precisa na cozinha. meu deus, que rico banquete

tive esta manhã! um pedaço de cabrito assado,

queijo serrano, compota de mosto, figos e uvasmoscatéis, tudo regado com o bom châteauneuf dospapas, que tem tão bela cor rosada nos copos... À

sobremesa, fui buscar o caderno do poema ecoloquei-o em cima da mesa, diante de mistral. -tínhamos dito que sairíamos - observa o poeta,

sorrindo. - não, não... calendal! calendal! mistralresigna se e com a sua voz musical e doce

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,resigna-se e, com a sua voz musical e doce,marcando o compasso dos versos com a mão, iniciao primeiro canto: de uma rapariga louca de amor. /agora, que já contei a triste aventura, / cantarei, sedeus quiser, um rapaz de cassis, / um pobrepescadorzinho de anchovas... lá fora, os sinos

tocavam as vésperas, os petardos estoiravam napraça, os pífaros passavam e repassavam nas ruascom os tamboris. os touros de camargue, que iam

ser lidados, mugiam. eu, com os cotovelos na toalhae as lágrimas nos olhos, escutava a história dopescadorzinho provençal. calendal era apenas um

pescador; o amor fez dele um herói... paraconquistar o coração da sua amada -a bela estérelle-,

empreendeu coisas miraculosas, e os doze trabalhos

de hércules não foram nada comparados com osseus. uma vez, tendo-se-lhe metido na cabeça serrico, inventou formidáveis engenhos de pesca e

trouxe para o porto todo o peixe do mar. de outravez, escorraçou um terrível bandido dosdesfiladeiros de ollioules, o conde sévéran, até ao

seu covil, com os seus sequazes e as suasconcubinas que valente moço o pequeno calendal!

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, qconcubinas... que valente moço, o pequeno calendal!um dia, em sainte-baume, encontrou dois grupos decamaradas que tinham ido ali para decidir umaquerela a pontapé sobre o túmulo de mestreacques, um provençal que construiu o vigamentodo templo de salomão, se quiserem fazer o favor de

acreditar nisto. calendal lançou-se no meio da luta eapaziguou os companheiros com as suas palavras...( empresas sobre-humanas!... havia no alto dos

rochedos de lure uma floresta de cedrosinacessíveis, onde nenhum lenhador ousava subir.calendal foi lá e instalou-se sozinho nos rochedos

durante trinta dias. durante esses trinta dias, ouviu-se o barulho do seu machado, que vibrava ao

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chuva. chegámos a tempo de ver recolher a

procissão... durante uma hora, foi um intermináveldesfilar de penitentes de cogula, de penitentesbrancos, de penitentes azuis, de penitentes

cinzentos, de confrarias de irmãs veladas, deestandartes cor-de-rosa de flores bordadas a ouro,de grandes santos de madeira dourada, desbotados,

transportados a quatro ombros, de santas de faiançacoloridas como ídolos, com grandes ramos de flores

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p qcoloridas como ídolos, com grandes ramos de floresna mão, de capas de asperges, de custódias, depálios de veludo verde, de crucifixos guarnecidosde seda branca, tudo isto a ondular ao vento, à luzdos círios e do sol, no meio de salmos, de litanias ede sinos a tocarem furiosamente. terminada a

procissão, recolhidos os santos às suas capelas,fomos ver os touros, depois os jogos de terreiro, aslutas de homens, os três saltos, o jogo do gato, o

ogo do odre e todas as lindas festas da provença...caía a noite quando regressámos a maillane. napraça, diante do cafèzinho onde mistral vai à noite

ogar a sua partida com o seu amigo zidore, tinhamacendido uma grande fogueira... organizava-se a

farândola. lanternas de papel recortado acendiam-

se por toda a parte, afastando as trevas; a juventudetomava posições; e em breve, a um sinal dostamboris, começou à roda da fogueira uma dança

louca, ruidosa, que devia durar toda a noite. depoisda ceia, muito cansados para andarmos mais,subimos ao quarto de mistral. É um modesto quarto

de camponês, com duas grandes camas. as paredesnão têm papel; vêem-se os barrotes do telhado... há

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p g pnão têm papel; vêem se os barrotes do telhado... háquatro anos, quando a academia atribuiu ao autorde mireille o prémio e três mil francos, a sr.a mistralteve uma ideia. - e se nós mandássemos forrar ecobrir o teu quarto? disse ela ao filho.- Não, não! - respondeu mistral. - no dinheiro d

poetas não se toca... e o quarto continuoudesguarnecido; mas enquanto o dinheiro dos poetasdurou, aqueles que bateram à porta de mistral

encontraram sempre a sua bolsa aberta... eu levara ocaderno do calendal para o quarto e quis que ele melesse mais uma passagem antes de adormecer.

mistral escolheu o episódio das faianças... resumidoem poucas palavras, é assim:

Num grande banquete, não sei onde, puseram na

mesa um magnífico serviço de faiança de moustiers.no fundo de cada prato, desenhado a azul noesmalte, havia um tema provençal; toda a história

da região estava ali dentro. É digno de registo oamor com que são descritas as belas faianças; umaestrofe para cada prato, outros tantos poemazinhos

de estilo singelo e erudito, perfeitos como umquadrinho de teócrito. enquanto mistral me lia os

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q qseus versos na bela língua provençal, quaseinteiramente latina, que as rainhas falaram outrora eque presentemente só os nossos pastorescompreendem, eu admirava no meu foro íntimoaquele homem e, ao pensar no estado de ruína em

que encontrou a língua materna e o que fez dela,imaginei um desses velhos palácios dos príncipesde baux, como os que se vêem nos alpilles: sem

telhados, sem balaústres nas escadarias, sem vitraisnas janelas, com o trifólio das ogivas partido, obrasão das portas comido pelo musgo, as galinhas a

debicar no pátio de honra, os porcos a chafurdardebaixo das delicadas colunetas das galerias, o

burro a pastar na capela onde a erva cresce, os

pombos a virem beber às grandes pias de águabenta cheias de água das chuvas, e finalmente! entreos escombros, duas ou três famílias de camponeses,

que construíram cabanas nos flancos do velhopalácio.Depois, um belo dia, o filho de um desses

camponeses enamora-se das grandes ruínas eindigna-se de as ver assim profanadas; depressa,

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g p ; p ,muito depressa, enxota o gado para fora do pátio dehonra e, como se as fadas viessem em seu auxílio,ele sozinho reconstrói a grande escadaria, restitui ospainéis de talha às paredes, os vitrais às janelas,reergue as torres, redoura a sala do trono e volta a

pôr de pé o vasto palácio de outros tempos, onde sehospedaram papas e imperatrizes. este paláciorestaurado é a língua provençal. o filho de

camponês é mistral.

As Três Missas Rezadas – Conto de Natal

- Duas peruas trufadas, garrigou?... - sim, meureverendo, duas peruas magníficas cheias de trufas.

posso dizê-lo porque ajudei a enchê-las. dir-se-ia

que a pele lhes ia rebentar enquanto assavam, tãoesticada estava... -'jesus, maria! e eu que gosto tantode trufas!... dá-me depressa a minha sobrepeliz,

garrigou... e, além das peruas, que viste mais nacozinha?... - oh, toda a espécie de coisas boas!...desde o meio-dia que não paramos de depenar

faisões, poupas, frangas, tetrazes. as penas voavampor toda a parte... depois, trouxeram da lagoa

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p p p genguias, carpas douradas, trutas... - de que tamanhosão as trutas, garrigou? - assim, deste tamanho, meureverendo... enormes!... - oh, meu deus, parece-meque estou a vê-las!... deitaste o vinho nas galhetas? -sim, meu reverendo, deitei o vinho nas galhetas...

mas garanto-lhe que não se compara com o quebeberá logo, depois da missa do galo. se visse nasala 'de jantar do castelo a quantidade de garrafas

que flamejam cheias de vinhos de todas as cores... ea baixela de prata, os centros de mesa cinzelados, asflores, os candelabros!... nunca se viu uma consoada

assim. o sr. marquês convidou todos os fidalgos davizinhança. serão pelo menos quarenta à mesa, sem

contar com o bailio e o tabelião... ah, meu

reverendo, é bem feliz por ser um deles!... só de tercheirado aquelas belas peruas, o aroma das trufassegue-me para toda a parte... hum!... - vamos,

vamos, meu filho. guardemo-nos do pecado dagula, sobretudo na noite da natividade... vaidepressa acender as velas e tocar a primeira

chamada para a missa; porque a meia-noiteaproxima-se e não nos podemos atrasar... esta

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p pconversa travava-se numa noite de natal do ano dagraça de mil seiscentos e tantos, entre o reverendod. balaguère, antigo prior dos barnabitas,presentemente capelão dos srs. de trinquelage, e oseu acólito garrigou, ou pelo menos o que ele

ulgava ser o acólito garrigou, pois fiquem sabendoque, naquela noite, o diabo tomara o rosto redondoe as feições imprecisas do jovem sacristão, para

melhor tentar o reverendo padre e levá-lo a cometero medonho pecado da gula. deste modo, enquanto osuposto garrigou (hum!, hum!) fazia tocar com toda

a força os sinos da capela senhorial, o reverendoacabava de vestir a sua casula na sacristiazinha do

castelo e, com o espírito já perturbado por todas

aquelas descrições gastronómicas, repetia paraconsigo mesmo enquanto se vestia:«peruas assadas... carpas douradas... trutas deste

tamanho!...» lá fora, o vento da noite soprava eespalhava a música dos sinos, ao mesmo tempo queas luzes apareciam no escuro, nas encostas do

monte ventoux, no alto do qual se erguiam asvelhas torres de trinquelage. eram famílias de

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caseiros que vinham ouvir a missa do galo aocastelo. trepavam a encosta a cantar, em grupos decinco ou seis, o pai à frente, de lanterna na mão, asmulheres embrulhadas nos seus grandes mantospardos, onde os filhos se aninhavam e abrigavam. a

despeito da hora e do frio, toda aquela boa gentecaminhava alegremente, estimulada pela ideia deque, ao vir da missa, teria, como nos outros anos,

mesa posta para si, em baixo, nas cozinhas. detempos a tempos, na penosa subida, os vidros dacarruagem de um senhor, precedida de moços com

archotes, cintilavam ao luar, ou então uma mula atrote agitava os guizos, e, ao clarão das lanternas

envolvidas pela bruma, os caseiros reconheciam o

seu bailio e saudavam-no à passagem: «-boas noites,boas noites, sr. arnoton!» «-boas noites, boas noites,meus filhos!» a noite estava clara, as estrelas

brilhavam mais devido ao ar frio; a nortada cortavae uma geada fina, que deslizava pelas roupas semas molhar, conservava fielmente a tradição dos

natais brancos de neve. no alto da encosta, o castelosurgia como o alvo ambicionado, com a sua massa

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enorme de torres, de empenas, o campanário dacapela recortado no céu azul-negro e uma multidãode luzinhas, que bruxuleavam, iam, vinham, seagitavam em todas as janelas, e pareciam, no fundosombrio do edifício, faúlhas a correr em cinzas de

papel queimado... transposta a ponte levadiça e apoterna, era necessário, para chegar à capela,atravessar o primeiro pátio, cheio de carruagens, de

criados, de cadeirinhas, tudo iluminado pelo lumedos archotes e pelas chamas das cozinhas. ouvia-seo tinido dos espetos, o ruído das caçarolas, o

entrechocar dos cristais e das pratas, movimentadosnos preparativos do banquete; e, pairando por cima

de tudo, um vapor tépido, que cheirava

deliciosamente às carnes assadas e aos condimentosdos molhos complicados, fazia dizer aos caseiros,como ao capelão, como ao bailio, como a toda a

gente: «que boa consoada vamos ter depois damissa!»Drelandã da!... drelandã da!... É a missa do galo que

começa. na capela do castelo, uma catedral emminiatura, de arcos entrecruzados, revestida de

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carvalho até ao cimo das paredes, foram estendidastapeçarias e acesas todas as velas. e que ror degente! e que trajos!Em primeiro lugar, sentados nas cadeirasesculpidas que rodeiam o coro, o sr. de trinquelage,

vestido de tafetá cor de salmão, e junto dele todosos nobres senhores convidados. em frente, emgenuflexórios guarnecidos de veludo, tomaram

lugar a velha marquesa viúva, no seu vestido debrocado cor de fogo, e a jovem sr.a de trinquelage,com a cabeça coberta por alta touca de renda, à

última moda da corte de frança. mais atrás vêem-se,vestidos de negro, com amplas perucas em bico e as

caras rapadas, o bailio thomas arnoton e o tabelião

ambroy, duas notas graves no meio das sedasvistosas e dos damascos lavrados. depois, seguem-se os mordomos anafados, os pajens, os picadores,

os intendentes, a sr.a barbe, com o seu molho dechaves pendente da cintura, numa argola de pratafina. ao fundo, nos bancos, a arraia-miúda, as

criadas, os caseiros com as suas famílias; e por fim,ainda mais ao fundo, mesmo junto da porta, queb f h d d

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entreabrem e fecham discretamente, os moços decozinha, que vêm, entre dois molhos, respirar umarzinho de missa e trazer um odor de consoada àigreja toda em festa e tépida de tantas velas acesas.será a vista dos seus barretinhos brancos que

ocasiona distracções ao oficiante? ou não será, pelocontrário, a campainha de garrigou, essaendiabrada campainhazinha que se agita ao pé do

altar com precipitação infernal e que parece dizerconstantemente: «despachemo-nos, despachemo-nos... quanto mais depressa acabarmos, mais

depressa nos sentaremos à mesa.» a verdade é quetodas as vezes que ela telinta, essa campainha do

diabo, o capelão esquece-se da missa e só pensa na

consoada. imagina os cozinheiros atarefados, osfornos onde arde um lume de forja, o vapor que saipelas tampas entreabertas, e, no meio desse vapor,

duas peruas magníficas, repletas, inchadas,marmoreadas de trufas... ou então vê passar filas depajens transportando travessas das quais se evolam

vapores tentadores, e, com eles, entra na grandesala já pronta para o festim. oh, delícias!Ei i di h il

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Eis a mesa imensa carregadinha e rutilante, ospavões vestidos com as suas penas, os faisões comas asas castanho-douradas abertas, as garrafas corde rubi, as pirâmides de frutos resplandecentesentre os ramos verdes e os peixes maravilhosos de

que falava garrigou (ah, sim, garrigou!) estendidosnum leito de funcho, com as escamas nacaradas,como se acabassem de sair da água, e um raminho

de ervas aromáticas nas suas narinas de monstros.tão viva é a visão de tais maravilhas que parece a d.balaguère que todos estes pratos miríficos são

servidos diante de si, em cima dos bordados datoalha do altar, e duas ou três vezes surpreende-se a

dizer benedicite em vez de dominus vobiscum! À

parte estes ligeiros enganos, o digno homem recita oseu ofício muito conscienciosamente, sem saltaruma linha, sem omitir uma genuflexão; e tudo

segue muitíssimo bem até ao fim da primeira missa.porque, como sabem, no dia de natal o mesmooficiante deve celebrar três missas consecutivas.

«uma!», diz para consigo o capelão, com um suspirode alívio; depois, sem perder um minuto, faz sinalólit j l ólit

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ao acólito, ou a quem julga ser o seu acólito, e...drelandã da!... drelandã da! começa a segundamissa, e com ela começa também o pecado de d.balaguère. «depressa, depressa, despachemo-nos»,grita-lhe com a sua vozinha penetrante a campainha

de garrigou, e desta vez o infeliz oficiante, todoentregue ao demónio da gula, atira-se ao missal edevora as páginas com a avidez do seu apetite

sobreexcitado. freneticamente, baixa-se, levanta-se,esboça os sinais da cruz, as genuflexões, encurtatodos os gestos para chegar mais depressa ao fim.

mal levanta os braços ao evangelho, mal bate nopeito ao confíteor. entre o acólito e ele, é ver quem

tartamudeará mais depressa. versículos e responsos

precipitam-se, atropelam-se. as palavras, meiopronunciadas, sem abrir a boca, o que levariademasiado tempo, terminam em murmúrios

incompreensíveis. - oremus ps... ps... ps... - meaculpa... pá... pá...Quais vindimadores apressados a pisar as uvas na

dorna, ambos patinham no latim da missa e atiramsalpicos para todos os lados. - dom... scum!... - dizb l è t t ! d i lá

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balaguère. - ... stutuo!... - responde garrigou; e láestá a danada campainha, sempre a tilintar-lhe aosouvidos, como os guizos que se põem nos cavalosde posta para os fazer galopar velozmente. comopodem calcular, desta maneira depressa se

despacha uma missa rezada. - e duas!-diz o capelão,muito esbaforido; depois, sem perder tempo atomar fôlego, vermelho, a suar, desce a correr os

degraus do altar e... drelandã da!... drelandã da!...começa a terceira missa. faltam apenas algunspassos para chegar à sala de jantar; mas - ai de nós! -

à medida que a consoada se aproxima, oinfortunado balaguère sente-se dominado pela

loucura da impaciência e da gula. a sua visão

acentua-se, as carpas douradas, as peruas assadas,estão ali... ali... toca-lhes... ele... oh, meu deus!... astravessas fumegam, os vinhos embalsamam o ar, e,

agitando o seu endemoninhado badalo, acampainha grita-lhe: «depressa, depressa, aindamais depressa!...» mas como poderia ele ir mais

depressa? os seus lábios quase não se mexem. já nãopronuncia as palavras... a não ser que defraudedeus e lhe escamoteie a missa e é o que ele faz o

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deus e lhe escamoteie a missa... e é o que ele faz, odesgraçado!... de tentação em tentação, começa porsaltar um versículo, depois dois. a seguir, como aepístola é demasiado comprida, não a acaba; aflorao evangelho, passa adiante o credo, sem entrar, salta

o pater, saúda de longe o prefácio e, aos trancos esolavancos, precipita-se assim na danação eterna,sempre seguido do infame garrigou (vade retro,

satanás!), que o secunda com maravilhosacompreensão, lhe levanta a casula, vira as folhasduas a duas, dá encontrões nas estantes, entorna as

galhetas e sem parar, sacode a campainhazinhacada vez com mais força, cada vez mais depressa.

É digna de se ver a cara de espanto dos assistentes!

obrigados a seguir pela mímica do padre uma missade que não entendem palavra, uns levantam-sequando os outros se ajoelham, sentam-se quando os

outros estão de pé; e todas as fases do singularofício se confundem nos bancos, numa profusão deatitudes diversas. a estrela do natal, em viagem

pelos caminhos do céu, lá longe, nas imediações doestàbulozinho, empalidece de pavor ao ver talconfusão o abade vai demasiado depressa não

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confusão... - o abade vai demasiado depressa... nãose pode segui-lo murmura a velha marquesa viúva,agitando a coifa, desorientada. o sr. arnoton, com assuas grandes lunetas de aço encavalitadas no nariz,procura no devocionário onde diacho se estará. no

fundo, porém, todas estas excelentes pessoas, quetambém pensam em consoar, não estão zangadaspor a missa ir naquele galope de mala-posta; e

quando d. balaguère, de rosto radiante, se vira paraa assistência e grita com todas as suas forças dite,missa est, na capela todos lhe respondem em corocom um deo gratias tão jubiloso, tão entusiástico,

que nos julgaríamos já à mesa no primeiro brinde

da consoada.Cinco minutos mais tarde, a multidão dos senhoressentava-se na grande sala, com o capelão no meio

deles. o castelo, iluminado de alto a baixo, ressoavade cânticos, de gritos, de risos, de rumores; e ovenerável d. balaguère cravava o garfo numa asa de

frango e afogava o remorso do seu pecado emtorrentes de vinho do papa e no saboroso suco dascarnes tanto bebeu e comeu o pobre santo homem

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carnes. tanto bebeu e comeu, o pobre santo homem,que morreu naquela mesma noite, de um terrívelataque, sem ter tido sequer tempo de se arrepender;depois, de manhã, chegou ao céu, ainda todo emrebuliço das festas da noite, e imaginem como foi

recebido.«-Retira-te da minha vista, mau cristão!»-disse-lhe osupremo juiz, senhor de todos nós. - «a tua falta é

suficientemente grande para apagar uma vidainteira de virtude... ah, roubaste-me uma missa anoite passada!... pois bem, pagar-me-ás trezentaspor ela e só entrarás no paraíso quando tiverescelebrado na tua própria capela essas trezentas

missas de natal, na presença de todos os que

pecaram por tua culpa e contigo...» ... e aqui está averdadeira lenda de d. balaguère, tal como acontam no país das oliveiras. hoje, o castelo de

trinquelage já não existe, mas a capela ainda está depé no alto do monte ventoux, no meio de umbosquezinho de azinheiras. o vento faz bater a sua

porta desconjuntada, a erva invade a soleira; háninhos nos cantos do altar e nos vãos das altasanelas cujos vitrais coloridos há muito

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anelas, cujos vitrais coloridos há muitodesapareceram. no entanto, parece que todos osanos, pelo natal, uma luz sobrenatural erra porentre as ruínas e que, quando vão para as missas epara as consoadas, os camponeses encontram o

espectro da capela iluminado por círios invisíveisque ardem ao ar livre, mesmo debaixo da neve e dovento. riam, se quiserem, mas um vinhateiro do

lugar, chamado garrigue, sem dúvida umdescendente de garrigou, afirmou-me que numanoite de natal, encontrando-se um poucoembriagado, se perdeu na montanha para os ladosde trinquelage; e o que viu foi isto... até às onze

horas, nada. tudo estava silencioso, extinto,

inanimado. de súbito, por volta da meia-noite, umcarrilhão tocou no alto do campanário, um velho,muito velho carrilhão que parecia estar a dez léguas

de distância. em breve, no caminho íngreme,garrigue viu tremular luzes, agitarem-se sombrasimprecisas. debaixo do alpendre da capela,

caminhava-se e cochichava-se: - boas noites, sr.arnoton!- Boas noites, boas noites, meus filhos! depois de

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Boas noites, boas noites, meus filhos!... depois detoda a gente entrar, o meu vinhateiro, que era muitodestemido, aproximou-se devagarinho e, quandoolhou pela porta desmantelada, viu um espectáculosingular. 119 todas as pessoas que vira passar

estavam enfileiradas em torno do coro, na nave emruínas, como se os antigos bancos ainda existissem.viam-se belas damas vestidas de brocado, com

toucas de renda, cavalheiros agaloados de alto abaixo, camponeses de jaquetas floridas como eramas dos nossos avós, todos com um ar de velhice,murchos, poeirentos, fatigados. de tempos atempos, as aves nocturnas, hóspedes habituais da

capela, acordadas por todas aquelas luzes,

esvoaçavam em redor das velas, cuja chama subiadireita e indefinidamente como se ardesse pordetrás de uma gaze; e o que mais divertia garrigue

era uma certa personagem de grandes lunetas deaço, que sacudia a todo o instante a sua alta perucanegra, em cima da qual uma das aves se mantinha

direita, muito comprometida, a batersilenciosamente as asas... ao fundo, um velhinho deestatura infantil, ajoelhado no meio do coro. agitava

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estatura infantil, ajoelhado no meio do coro. agitavadesesperadamente uma campainha sem badalo esem som, enquanto um padre, vestido de ourovelho, ia e vinha diante do altar, a recitar orações deque não se ouvia uma única palavra... sim. era d.

balaguère a dizer a sua terceira missa rezada.

As Laranjas - Fantasia

Em paris, as laranjas têm o ar triste de frutos caídosdas árvores e apanhados do chão. quando chegamem pleno inverno pluvioso e frio, a sua cascabrilhante, o seu perfume exagerado, nestas regiõesde sabores calmos, dão-lhes aspecto estranho, um

pouco boémio. nas noites brumosas, enfileiram-se

tristemente ao longo dos passeios, empilhadas noscarrinhos ambulantes, à luz frouxa de uma lanternade papel vermelho. acompanha-as um pregão

monótono e agudo, abafado pelo rodar das viaturase pelo estrépito dos ónibus: - a dois soldos a devalença! para três quartos dos parisienses, este fruto

colhido longe, vulgar na sua forma redonda, emque a árvore só deixou um delgado pezinho verde,tem algo de doçaria, de confeitaria. o papel de seda

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g ç , p pque o envolve, as festas que acompanha,contribuem para esta impressão. sobretudo quandose aproxima janeiro, os milhares de laranjasdisseminadas pelas ruas, todas essas cascas

arrastadas pela lama do enxurro, levam a pensarnuma espécie de árvore de natal gigantesca quesacudisse por cima de paris os seus ramos

carregados de frutos fictícios. não há canto ondenão se encontrem. nos escaparates iluminados dosestabelecimentos, escolhidas e enfeitadas; à portadas prisões e dos hospícios, entre os pacotes debiscoitos e as pilhas de maçãs; diante da entrada

dos bailes, dos espectáculos domingueiros. e o seu

perfume delicado mistura-se com o cheiro do gás,com o ruído das cegarregas, com a poeira dasbancadas das galerias. chegamo-nos a esquecer que

são necessárias laranjeiras para produzir laranjas,pois enquanto o fruto nos chega directamente domeio-dia, em caixas cheias, a árvore, podada,

transformada, disfarçada, metida na estufa quenteonde passa o inverno, só faz uma 'curta aparição aoar livre dos jardins públicos. para conhecer bem as

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j p plaranjas, é necessário tê-las visto na sua terra, nas

ilhas baleares, na sardenha, na córsega, na argélia,no ar azul-dourado, na atmosfera tépida domediterrâneo. estou a lembrar-me de um

laranjalzinho às portas de blidá; lá é que elas eramlindas! no meio da folhagem escura, lustrosa,envernizada, os frutos tinham o brilho de vidros de

cor, e douravam o ar ambiente com essa auréola deesplendor que cerca as flores deslumbrantes. aqui eali, algumas clareiras deixavam ver através dosramos as muralhas da cidadezinha, o minarete deuma mesquita, o zimbório de um marabuto, e, lá no

alto, a enorme massa do atlas, verde na base,

coroado de neve, como se estivesse envolto numapele branca, toda encaracolada e rodeada de levesflocos de neve pendentes. uma noite, quando lá

estive, não sei por que fenómeno ignorado há trintaanos, aquela zona de geadas e de inverniasestendeu-se por cima da cidade adormecida e blidá

acordou transformada, polvilhada de branco.naquele ar argelino tão leve, tão puro, a neveparecia uma poalha de madrepérola. tinha reflexos

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p p pde penas de pavão branco. o mais belo era o

laranjal. as folhas, sólidas, conservavam a neveintacta e direita como sorvetes em pratos degomalaca, e todos os frutos, polvilhados de geada,

tinham uma suavidade esplêndida, uma radiaçãodiscreta, como o ouro velado por transparentetecido branco. dava vagamente a impressão de uma

festa de igreja, de sotainas vermelhas debaixo devestidos de rendas, de dourados de altar envoltosem guipuras... mas a minha melhor recordação daslaranjas vem-me ainda de barbicaglia, um grandeardim ao pé de ajácio, onde ia dormir a sesta nas

horas de calor. ali, as laranjeiras, mais altas, mais

espaçadas do que em blidá, desciam até à estrada,da qual o jardim estava separado apenas por umasebe viva e por um fosso. logo a seguir, ficava o

mar, o imenso mar azul... que belas horas passeinaquele jardim! por cima da minha cabeça, aslaranjeiras em flor e em fruto queimavam os seus

perfumes de essência. de tempos a tempos, umalaranja madura desprendia-se de repente e caíaunto de mim, como que aturdida de calor, com um

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qbaque surdo, sem eco, na terra lisa. só tinha de

estender a mão. eram frutos soberbos, de umvermelho-púrpura por dentro. achava-os deliciosos,e, depois, o horizonte era tão belo! por entre as

folhas viam-se retalhos de mar azul, deslumbrantescomo pedaços de vidro estilhaçado que faiscassemna bruma do ar. junte-se a isto o movimento das

vagas, agitando a atmosfera a grandes distâncias, omurmúrio cadenciado que nos embala como numbarco invisível, o calor, o aroma das laranjas... ah,que bem se dormia no jardim de barbicaglia!algumas vezes, porém, no melhor momento da

sesta, os rufos de tambor despertavam-me em

sobressalto. eram os infelizes soldados que vinhamfazer exercício em baixo, na estrada. através dosburacos da sebe, distinguia o cobre dos tambores e

os grandes aventais brancos por cima das calçasvermelhas. para se abrigarem um pouco da luzofuscante que a poeira da estrada lhes enviava

implacavelmente, os pobres diabos colocavam-se aopé do jardim, à sombra curta da sebe. e rufavam! etinham calor!... então, arrancando-me à força ao

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meu hipnotismo, divertia-me a atirar-lhes alguns

daqueles belos frutos de ouro vermelho, quependiam perto da minha mão. o tambor visadoparava. havia um minuto de hesitação, um olhar

circular, para ver donde viera a soberba laranja querolava diante dele no fosso; depois, apanhava-amuito depressa e cravava-lhe os dentes, sem mesmo

a descascar. lembro-me também de que mesmo aolado do barbicaglia, e separado apenas por ummurinho baixo, havia um jardinzito bastanteoriginal, que dominava da altura a que meencontrava. era um cantinho de terra burguêsmente

desenhado. os seus carreiros de saibro fulvo,

ladeados de buxo muito verde, os dois ciprestes daporta de entrada, davam-lhe o aspecto de uma casade campo marselhesa. nem uma linha de sombra. ao

fundo, um edifício de pedra branca, com postigosde subterrâneo rentes ao chão. ao princípio, julgueique fosse uma casa de campo; mas depois deobservar melhor a cruz que a encimava e umainscrição que via de longe gravada na pedra, semdistinguir o texto, reconheci um túmulo de família

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corsa. a toda a volta de ajácio há muitas destas

capelinhas mortuárias, isoladas no meio de jardins.a família visita-as ao domingo, presta culto aosmortos. assim compreendida, a morte é menos

lúgubre do que na confusão dos cemitérios. sópassos amigos lhe perturbam o silêncio. do meulugar, via um simpático velho andar tranquilamente

pelos carreiros. todo o dia podava as árvores,cavava, regava e cortava as flores murchas, comgrandes cuidados; depois, ao pôr do sol, entrava nacapelinha onde dormiam os mortos da sua família;guardava a enxada, os ancinhos, os grandes

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excepto a vibração do ar quente e o canto estridente

das cigarras, música louca, ensurdecedora, decompassos apressados, semelhante à própriasonoridade da imensa vibração luminosa...

caminhava em pleno deserto havia duas horas,quando, de repente, surgiu diante de mim, dapoeira da estrada, um grupo de casas brancas. era achamada estação de muda de cavalos de sãovicente: cinco ou seis mas de extensos celeiros detelhado vermelho, um bebedouro sem água no meiod d

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de umas figueiras enfezadas ", mesmo na

extremidade do aglomerado, duas grandesestalagens em frente uma da outra, de cada lado docaminho. a vizinhança daquelas estalagens tinha

um não sei quê de surpreendente. de um lado, umgrande edifício novo, cheio de vida, de animação,com todas as portas abertas, a diligência parada

defronte, os cavalos fumegantes a seremdesatrelados, os passageiros apeados a beberem àpressa na estrada, à sombra curta das paredes, opátio cheio de muares, de carruagens, os coheirosdeitados debaixo dos alpendres, à espera da fresca.

lá dentro, gritos, pragas, murros em cima das

mesas, entrechocar de copos, barulho de bilhares,rolhas de limonadas a saltarem, e, sobrepondo-se atodo este tumulto, uma voz alegre, clara, a cantar de

modo a fazer tremer as vidraças:A bela margoton, mal a manhã nasceu, pegou noseu cântaro de prata e foi com ele à água...Como que abandonada. erva debaixo do portal,anelas partidas, por cima da porta um ramo deazevinho já murcho, pendente como um penacho

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velho, os degraus da entrada calcetados com pedras

da estrada... tudo tão pobre, tão miserável, que seriauma verdadeira obra de caridade parar lá parabeber um copo. ao entrar, deparou-se-me uma

comprida sala deserta e triste que a luz ofuscante detrês grandes janelas sem cortinas tornava aindamais triste e mais deserta. algumas mesas coxas,

onde pareciam esquecidos copos embaciados pelapoeira, um bilhar rebentado, com as suas quatroventanilhas em tal estado que pareciam escudelas,um sofá amarelo e um balcão velho, dormiam paraali, debaixo de um calor doentio e pesado. e moscas,

moscas! nunca vira tantas: no tecto, pousadas nos

vidros, nos copos, aos cachos... quando abri a porta,foi um zumbido, um frémito de asas, como setivesse entrado numa colmeia. ao fundo da sala, no

vão de uma janela, estava uma mulher em pé,encostada aos vidros, muito ocupada a olhar parafora. tive de a chamar duas vezes: - eh, patroa!virou-se lentamente e mostrou-me um pobre rostode camponesa, engelhado, gretado, terroso,emoldurado em compridas fitas de renda ruça,

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como as que usam as velhas das nossas aldeias.

Contudo, não era velha; mas as lágrimas tinham-naenvelhecido. - que deseja? - perguntou-me,limpando os olhos. - sentar-me um momento e

beber qualquer coisa... - olhou-me muito atónita,sem se mexer donde estava, como se não tivessecompreendido. - então, isto aqui não é uma

estalagem? a mulher suspirou. - sim... é umaestalagem, se assim o quer... mas porque não foi alidefronte, como os outros? É muito mais alegre... - Édemasiado alegre para mim... gosto mais da suacasa. e, sem esperar resposta, instalei-me a uma

mesa. quando se convenceu de que falava

seriamente, a estalajadeira começou a andar de umlado para o outro com ar muito atarefado, a abrirgavetas, a remexer em garrafas, a limpar copos, a

enxotar as moscas... via-se bem que ter um viajantepara servir era um grande acontecimento. pormomentos, a infeliz parou e levou as mãos à cabeça,como se desesperasse de chegar ao fim. depois,passou à divisão interior. ouvi-a mexer em grandeschaves, martirizar fechaduras, remexer na arca do

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pão, soprar, escovar, lavar pratos. de tempos a

tempos, um grande suspiro, um soluço abafado... aocabo de um quarto de hora de idas e vindas, tinhadiante de mim uma pratada de passeríttes (passas

de uva), um velho pão de beaucaire, duro comopedras, e uma garrafa de água-pé. - pronto - disse aestranha criatura, e voltou imediatamente para o

seu lugar diante da janela. enquanto bebia, tenteipuxar-lhe pela língua. - não vem muita gente aqui,pois não, boa mulher?- Oh, não, senhor, nunca vem ninguém!... quandoéramos só nós cá na terra, era diferente: tínhamos a

posta, banquetes de caça durante o tempo dos

marrecos, carruagens todo o ano... mas desde queos vizinhos se estabeleceram aqui, perdemos tudo.as pessoas gostam mais de lá ir. na nossa casa

acham tudo demasiado triste... de facto, a casa não émuito agradável. não sou bonita, sofro de sezões,morreram-me as minhas duas filhas... ali, pelocontrário, estão sempre a rir. a dona da estalagem éuma arlesiana, uma bela mulher que usa rendas eum cordão de ouro de três voltas ao pescoço. ocondutor que é seu amante leva para lá a

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condutor, que é seu amante, leva para lá a

diligência. além disso, as criadas são uma súcia dedesavergonhadas... também, não lhes falta comquem aprender! vai lá toda a mocidade de

bezouces, de redessan, de jonquières. os cocheirosdão uma grande volta só para passar por casa dela...eu... eu fico para aqui todo o dia, sem ninguém, a

consumir-me.Dizia isto com voz distraída, indiferente, com atesta sempre encostada ao vidro. evidentemente,havia na estalagem defronte qualquer coisa que apreocupava... de súbito, do outro lado da estrada,

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derramando grossas lágrimas que a tornavam ainda

mais feia, ficou como que extasiada diante da janela,a ouvir o seu josé cantar para a arlesiana:O primeiro disse-lhe:

- Bons dias, minha linda! Desta vez vou levar-vos apassar o dia numa bonita cidadezinha de argélia, aduzentas ou trezentas léguas do moinho...afastemo-nos um pouco dos tamboris e dascigarras... Vai chover, o céu está cinzento, as cristasdo monte zaccar escondem-se na bruma. domingotriste no meu quartinho de hotel com a janela

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triste... no meu quartinho de hotel, com a janela

aberta para as muralhas árabes, tento distrair-me aacender cigarros... puseram à minha disposiçãotoda a biblioteca do hotel. entre uma história muito

pormenorizada da administração e algunsromances de paul de kock, descobri um volumedesirmanado de montaigne... aberto o livro ao

acaso, reli a carta admirável acerca da morte de laboétie... e aqui estou eu mais sonhador e maismelancólico do que nunca... caem já algumas gotasde chuva. cada gota, ao cair no rebordo da janela,abre uma grande estrela na poeira acumulada no

vidro desde as chuvas do ano passado... o livro

escorrega-me das mãos e fico longos instantes aolhar esta estrela melancólica... batem duas horas norelógio da cidade - um antigo marabuto de que

avisto daqui as esguias muralhas brancas... pobrediabo de marabuto! quem lhe havia de dizer, hátrinta anos, que um dia traria no meio do peito umgrande mostrador municipal e que todos osdomingos, ao soarem as duas horas, daria às igrejasde milianá o sinal de tocar as vésperas?... dang!dong! lá começam os sinos! ouvi-los-emos durante

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dong! lá começam os sinos!... ouvi-los-emos durante

muito tempo...Decididamente, este quarto é triste. as grandesaranhas da manhã, chamadas pensamentos

filosóficos, teceram as suas teias em todos oscantos... vamos até lá fora. chego à grande praça. abanda de música do 3º de linha, que um pouco de

chuva não assusta, cerra fileiras em torno do seuchefe. a uma das janelas da divisão, aparece ogeneral, cercado pelas filhas; na praça, o subprefeitopasseia para cá e para lá de braço dado com o juizde paz. uma meia dúzia de garotos árabes, seminus,

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tarde de domingo? bom, a loja de sid'omar está

aberta... entremos na loja de sid'omar.Apesar de ter uma loja, sid'omar não é um lojista. Éum príncipe de sangue, o filho de um antigo bei de

argel que morreu estrangulado pelos janízaros... naaltura da morte do pai, sid'omar refugiou-se emmilianá com a mãe, que adorava, e viveu algunsanos como um grande senhor filósofo entre os seusgalgos, os seus falcões, os seus cavalos e as suasmulheres, em belos palácios muito frescos, cheiosde laranjeiras e de fontes. vieram os franceses.

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de laranjeiras e de fontes. vieram os franceses.

sid'omar, ao princípio nosso inimigo e aliado deabd-el-kader, acabou por se malquistar com o emire submeteu-se. para se vingar, o emir entrou em

milianá, na ausência de sid'omar, pilhou os seuspalácios, cortou as suas laranjeiras, levou-lhe oscavalos e as mulheres e esmagou o pescoço da mãe

debaixo da tampa de um grande cofre... a cólera desid'omar foi terrível: pôs-se imediatamente aoserviço da frança e nunca tivemos melhor nem maisferoz soldado do que ele, enquanto durou a nossaguerra contra o emir. terminada a guerra, sid'omar

regressou a milianá; mas ainda hoje, quando se fala

de abd-el-kader diante dele, empalidece e os seusolhos se incendeiam. sid'omar tem 60 anos. adespeito da idade e das bexigas, o seu rosto ainda é

belo: grandes cílios, um olhar de mulher, um sorrisoencantador, o ar de um príncipe. arruinado pelaguerra, só lhe resta da sua antiga opulência umaquinta na planície do chélif e uma casa em milianá,onde vive burguêsmente com os três filhos,educados debaixo da sua orientação. os chefesindígenas nutrem por ele grande veneração. quando

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indígenas nutrem por ele grande veneração. quando

surge uma disputa, tomam-no voluntariamente porárbitro e o seu julgamento é quase sempre lei. saipouco; encontra-se todas as tardes numa loja

pegada à sua casa e que deita para a rua. omobiliário da sala não é rico: paredes caiadas debranco, um banco circular de madeira, coxins,

compridos cachimbos, dois braseiros... É lá quesid'omar dá audiência e administra justiça. umsalomão numa loja...Hoje, domingo, a assistência é numerosa. umadúzia de chefes estão sentados, nos seus albornozes,

a toda a volta da sala. cada um tem junto de si um

grande cachimbo e uma chàvenazinha de café,numa delicada bandeja de filigrana. entro; ninguémse mexe... do seu lugar, sid'omar manda ao meu

encontro o seu mais encantador sorriso e convida-me com a mão a sentar-me ao pé dele, num grandecoxim de seda amarela; depois, com um dedo noslábios, faz-me sinal para escutar. o caso é este: ocaide dos beni-zuguezugues teve uma disputaqualquer com um judeu de milianá, por causa deum pedaço de terra, e as duas partes acordaram

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p ç , p

submeter o diferendo ao julgamento de sid'omar. aaudiência foi marcada para o mesmo dia econvocaram-se as testemunhas. mas, de repente, o

udeu reconsiderou, apresentou-se sozinho, semtestemunhas, e declarou preferir entregar o caso aouiz de paz dos franceses, em vez de a sid'omar... o

assunto estava neste pé quando cheguei. o judeu -um velho de barba terrosa, túnica castanha, meiasazuis e barrete de veludo - levanta o nariz ao céu,rola os olhos suplicantes, beija as pantufas desid'omar, inclina a cabeça, ajoelha-se, junta as

mãos... Não compreendo o árabe, mas pela

pantomima do judeu e pelas palavras zouge depaix, zouge de paix, que se percebem a todo oinstante, adivinho por completo este eloquente

discurso: - não duvidamos de sid'omar, sid'omar ésábio, sid'omar é justo... todavia, o zouge de paixpode resolver melhor o nosso caso.O auditório, indignado, fica impassível, como árabeque é... estendido no seu coxim, com os olhossemicerrados e a boquilha de âmbar nos lábios,sid'omar - deus da ironia sorri e escuta. de súbito,

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,

no meio do seu mais belo período, o judeu éinterrompido por um enérgico caramba! que odetém de chofre; ao mesmo tempo, um colono

espanhol que estava ali como testemunha do caidedeixa o seu lugar, aproxima-se do iscariotes edespeja-lhe por cima da cabeça uma cabazada de

imprecações em todas as línguas e de todas as cores- entre outros, certo vocábulo francês demasiadogrosseiro para ser reproduzido aqui... o filho desid'omar, que compreende o francês, cora ao ouvirsemelhante palavra na presença do pai e sai da sala

(reter esta particularidade da educação árabe). o

auditório continua impassível e sid'omar sempresorridente. o judeu levanta-se e dirige-se para aporta às arrecuas, a tremer de medo, mas sem

deixar de gaguejar o seu eterno zouge de paix,zouge de paix... sai. o espanhol, furioso, precipita-seatrás dele, apanha-o na rua e - zás!, trás!- prega-lheduas bofetadas em pleno rosto... o iscariotes cai deoelhos, com os braços em cruz... o espanhol, umpouco envergonhado, reentra na loja... depois de eleentrar, o judeu levanta-se e passeia um olhar

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manhoso pela multidão variegada que o cerca. háali gente de todas as cores - malteses, magoes,negros, árabes -, todos irmanados no ódio ao judeu

e contentes por verem maltratar um deles... oiscariotes hesita um instante e depois, segurandoum árabe pelas abas do albornoz, diz-lhe: - tu viste,

achmed, tu viste... tu estavas ali... o cristão bateu-me... tu serás testemunha... bem... bem... tu serástestemunha. o árabe solta o albornoz e repele oudeu... não sabe nada, não viu nada; precisamentenaquele momento, tinha virado a cabeça... - mas tu,

kaddur, tu viste... tu viste o cristão bater-me... - grita

o infeliz iscariotes a um corpulento negro quedescasca um figo da berberia. o negro cospe emsinal de desprezo e afasta-se; não viu nada...

também não viu nada o maltesito cujos olhos negroscomo o carvão brilham maliciosamente debaixo dobarrete, igualmente não viu nada a magoesa cor detijolo que foge a rir, com o seu cabaz de romãs àcabeça... o judeu bem grita, suplica e se afadiga...nem uma testemunha! ninguém viu nada... porfelicidade, dois dos seus correligionários passam na

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rua neste momento, de cabeça baixa, rentes àsmuralhas. o judeu chama-os:

Depressa, depressa, meus irmãos! Depressa ao

procurador! depressa ao zouge de paix!... vocêsviram... vocês viram bater num velho! se viram?...creio bem que sim. chávenas, acende os cachimbos.

conversa-se e ri-se às gargalhadas. É tão divertidover desancar um judeu!... no meio da vozearia e dofumo, aproximo-me disfarçadamente da porta;apetece-me ir dar uma volta para os lados de israel,a fim de saber como os correligionários do iscariotes

receberam a afronta feita ao seu irmão... - venha

antar comigo esta noite, mussiú! - grita-me o bomsid'omar. aceito e agradeço. eis-me na rua. no bairroudaico, toda a gente está em movimento. o caso já

deu muito que falar. ninguém nas locandas.bordadores, alfaiates, albardeiros - todo o israel estána rua... os homens - de barrete de veludo e meiasde lã azul gesticulam ruidosamente, em grupos... asmulheres, pálidas, bochechudas, rígidas comoídolos de madeira nos seus vestidos lisos de peitilhodourado, com o rosto emoldurado de fitinhas

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negras, andam de grupo em grupo como semiassem... no momento da minha chegada, amultidão agita-se. empurram-se, precipitam-se...

apoiado nas suas testemunhas, o judeu - herói daaventura - passa entre duas alas de barretes,debaixo de uma chuva de exortações: - vinga-te,

irmão; vinga-nos, vinga o povo judeu. não tenhasreceio; tens a lei por ti.Um anão asqueroso, a cheirar a pez e a couro velho,aproxima-se de mim com ar lamuriante e diz-me,soltando grandes suspiros: - vê como são tratados

os pobres judeus! É um velho, repara. quase o

mataram. na verdade, o pobre iscariotes parecemais morto do que vivo. passa diante de mim com oolhar mortiço, o rosto desfigurado; não caminha,

arrasta-se... só uma grande indemnização é capazde o curar; por isso não o levam ao médico, mas simao procurador. há muitos procuradores na argélia,quase tantos como gafanhotos. o ofício é rendoso,segundo parece. em todo o caso, tem a vantagem dese poder exercer livremente, sem exames, semcauções, sem estágios... tal como em paris nos

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fazemos homens de letras, assim se fazemprocuradores na argélia. para tanto, basta saber umbocado de francês, de espanhol, de árabe, trazer

sempre um código nas bolsas da sela e ter,sobretudo, o espírito do ofício. as suas funções sãomuito variadas; é sucessivamente advogado,

solicitador, corretor, perito, intérprete, guarda-livros, comissário, escrivão público; enfim, é omestre tiago da colónia. simplesmente, harpagãotinha apenas um mestre tiago e a colónia tem maisdo que os precisos. só em milianá contam-se às

dúzias. em geral, para evitar as despesas de

escritório, estes cavalheiros recebem os seus clientesno café da praça principal e dão as suas consultas -dão-nas? - entre o absinto e o chomporeou. foi para

o café da praça principal que o digno iscariotes seencaminhou, ladeado pelas suas duas testemunhas.deixemo-lo ir. saí do bairro judaico e passei dianteda casa da administração árabe. vista de fora, com oseu telhado de ardósia e a bandeira francesa aflutuar por cima, parece uma mairie de aldeia.conheço o intérprete; entremos para fumar um

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cigarro com ele. de cigarro em cigarro, acabareidecerto por matar este domingo sem sol! o pátioque precede a administração regurgita de árabes

esfarrapados. são cerca de cinquenta, à espera deserem recebidos, agachados ao longo da parede, nosseus albornozes. esta antecâmara beduína exala -

mesmo ao ar livre - um cheiro acre a bodumhumano. passemos depressa... na administração,encontro o intérprete às voltas com dois grandestagarelas, completamente nus debaixo de

compridas mantas imundas, que contam com uma

mímica endiabrada não sei que história de um colar

roubado. sento-me numa esteira a um canto eobservo... uma linda farda, a farda do intérprete; ecomo o intérprete de milianá a sabe vestir bem!

completam-se mutuamente. a farda é azul-céu, temalamares negros e botões dourados, reluzentes. ointérprete é louro, rosado, e tem o cabelo todoencaracolado; um belo hussardo cheio de bomhumor e de imaginação. um pouco tagarela - falatantas línguas!-, um pouco céptico conheceu renanna escola orientalista! -, grande amador de

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desporto, tão à vontade no acampamento árabecomo nos saraus da subprefeita, dançando amazurca melhor do que ninguém e fazendo cuscuz

como nenhum outro. parisiense, e está tudo dito.aqui tendes o meu homem, e não admira que asdamas se apaixonem por ele. no tocante a elegância,

só tem um rival: o sargento da administração árabe.este - com a sua túnica de pano branco e as suaspolainas com botões de madrepérola - é o desesperoe a inveja de toda a guarnição. destacado na

administração árabe, está dispensado do serviço de

linha e exibe-se constantemente nas ruas, enluvado

de branco, frisado de fresco, com grandes livros deregisto debaixo do braço. admiram-no e temem-no.É uma autoridade.

Decididamente, esta história do colar roubadoameaça prolongar-se demasiado. boas tardes! nãoespero pelo fim.Ao retirar-me, encontro a antecâmara em alvoroço.a multidão comprime-se em volta de um indígenade elevada estatura, pálido, altivo, coberto com umalbornoz negro. este homem bateu-se há oito dias

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com uma pantera, em zaccar. a pantera morreu, maso homem ficou com metade do braço comido. Àtarde e de manhã vem tratar-se à administração

árabe e de todas as vezes o detêm no pátio para oouvirem contar a sua história. fala devagar, numabela voz gutural. de tempos a tempos, afasta o

albornoz e mostra o braço esquerdo, que traz aopeito, envolto em ligaduras ensanguentadas. malchego à rua, desencadeia-se uma violentatempestade. chuva, trovões, relâmpagos, siroco...

abriguemo-nos depressa. enfio por uma porta ao

acaso e caio no meio de um grupo de nómadas,

empilhados debaixo dos arcos de um pátiomourisco. este pátio fica pegado à mesquita demilianá; é o refúgio habitual da piolheira

muçulmana e chama-se o pátio dos pobres. grandesgalgos magros, todos cobertos de parasitas, vêmrondar-me com ar feroz. encostado a um dos pilaresda galeria, procuro manter certo aprumo e, semfalar com ninguém, olho a chuva que esparrinhanas lajes coloridas do pátio. os nómadas estãoespalhados pelo chão, deitados aos montes. perto de

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mim, uma rapariga quase bela, com o colo e aspernas à vela, grossos braceletes de ferro nos pulsose nos artelhos, canta uma ária extravagante, em três

notas melancólicas e fanhosas. ao mesmo tempoque canta, dá de mamar a uma criançacompletamente nua, cor de bronze, e, com o braço

livre, esmaga cevada num almofariz de pedra. achuva, impelida por um vento agreste, encharca devez em quando as pernas da lactante e o corpo dolactente. a nómada pouco se importa com isso e

continua a cantar debaixo da ventania, a esmagar a

cevada e a dar o seio.A tempestade diminui. aproveito uma aberta,apresso-me a deixar o pátio dos milagres e dirijo-me

para o jantar de sid'omar; são horas... ao atravessara praça principal, encontro ainda o meu velho judeude há pouco. apoia-se no seu procurador; astestemunhas caminham alegremente atrás; umbando de irrequietos garotos judeus salta à voltadeles... todos os rostos estão radiantes. o procuradorencarrega-se do assunto e pedirá ao tribunal dois

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mil francos de indemnização.Em casa de sid'omar servem-me um jantarsumptuoso. a sala dá para um elegante pátio

mourisco, onde cantam duas ou três fontes...excelente banquete turco, encomendado ao barãobrisse. entre outros pratos, noto um frango comamêndoas, cuscuz com baunilha, carne de tartaruga- um pouco indigesta, mas de sabor requintado - ebiscoitos com mel, a que chamam bocados do cádi...como vinho, só champanhe. a despeito da lei

muçulmana, sid'omar bebe um pouco - quando os

criados estão de costas... depois do jantar, passamos

ao quarto do nosso anfitrião, onde nos servemdoces, cachimbos e café... o mobiliário do quarto émuito simples: um sofá, algumas esteiras; ao fundo,

um grande leito muito alto, em cima do qual estãodispersos coxinzinhos vermelhos bordados a ouro...da parede pende uma velha pintura turca,representando as façanhas de um certo almirantehamadi. parece que na turquia os pintores sóempregam uma cor em cada quadro. este quadro édedicado ao verde: o mar, o céu, os navios, o

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próprio almirante hamadi, tudo é verde, e queverde!... o uso árabe exige que nos retiremos cedo.tomado o café, fumados os cachimbos, dou as boas-

noites ao meu anfitrião e deixo-o com as suasmulheres. aonde irei acabar a noite? É demasiadocedo para me deitar, os clarins dos spais ainda nãotocaram a recolher. por outro lado, os coxinzinhosdourados de sid'omar dançam à minha rodafarândolas fantásticas que me impediriam dedormir... já que estamos diante do teatro, entremos

um momento.

O teatro de milianá é um antigo armazém de

forragens razoavelmente transformado em sala deespectáculos. grandes candeeiros que se enchem deazeite durante o intervalo fazem as vezes de lustres.

os lugares de plateia são lugares de pé e os deorquestra em cima de bancos. as galerias sãolugares de luxo, porque têm cadeiras de palha... atoda a volta da sala, um comprido corredor escuro,sem parquete... julgamo-nos na rua; nada falta...quando entrei, a peça já começara. com grandesurpresa minha, os actores não são maus (refiro-me

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aos homens); têm entusiasmo, têm vida... são quasetodos amadores, soldados do 3º. o regimento sente-se orgulhoso deles e vem aplaudi-los todas as

noites. quanto às mulheres, ai jesus!... sempre oeterno feminino dos teatrinhos de província,pretensioso, exagerado e falso... há, no entanto,duas damas que me interessam especialmente, duasudias de milianá, muito novas, que se estreiam noteatro... os pais estão na sala e parecem encantados.estão convencidos de que as suas filhas vão ganhar

milhares de duros nesta profissão. a lenda de

raquel, israelita milionária e comediante, já se

espalhou entre os judeus do oriente. nada maiscómico nem mais comovente do que as duaspequenas judias no palco... conservam-se

timidamente num canto da cena, empoadas,pintadas, decotadas e muito direitas. têm frio evergonha. de tempos a tempos, estropiam uma fraseque não compreendem e, enquanto falam, os seusgrandes olhos hebraicos contemplam a sala comespanto.Saio do teatro... no meio do escuro que me rodeia,

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ouço gritos num canto da praça... sem dúvida, sãoalguns malteses que procuram ajustar contas àfacada... regresso ao hotel, lentamente, ao longo das

muralhas. um aroma adorável de laranjeiras e tuiassobe da planície. o ar está suave e o céu quaselimpo... ao longe, ao fundo do caminho, ergue-seum velho fantasma de muralha, restos de algumtemplo antigo. aquele muro é sagrado; todos os diasas mulheres árabes vão lá pendurar ex-votos,fragmentos de haíques e de fotos, longas tranças de

cabelos ruivos entretecidos de fios de prata, abas de

albornozes... tudo isto adeja iluminado por um fino

raio de luar, ao sabor da aragem tépida da noite...

Os Gafanhotos

Mais uma recordação da argélia e depoisregressaremos ao moinho... na noite da minhachegada a esta granja do sahel, não pude dormir. oineditismo da região, a agitação da viagem, os uivosdos chacais, depois um calor enervante, opressivo,que sufocava por completo, como se as malhas domosqui teiro não deixassem passar um sopro de

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ar... quando abri a janela, ao romper do dia, umabruma pesada, de estio, que se revolvia lentamente,com as extremidades franjadas de negro e rosa,

pairava no ar como uma nuvem de pó por cima deum campo de batalha. nem uma folha se mexia, e,nos belos jardins que tinha diante dos olhos, asvinhas espaçadas nas encostas, à torreira do sol quetorna os vinhos açucarados, os frutos da europaabrigados num canto de sombra, as pequenaslaranjeiras, as tangerineiras em longas filas

microscópicas, tudo tinha o mesmo aspecto triste, a

imobilidade das folhas que esperam a tempestade.

as próprias bananeiras, os grandes canaviais de umverde suave, sempre agitados por alguma aragemque emaranha a sua fina cabeleira tão leve,

erguiam-se silenciosos e direitos, em penachosregulares. fiquei um momento a contemplar aquelaplantação maravilhosa, onde se encontravamreunidas todas as árvores do mundo e cada umadava, na estação própria, mesmo no exílio, as suasflores e os seus frutos. entre os campos de trigo e osmaciços de sobreiros, brilhava um curso de água

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que parecia refrescar a manhã sufocante; e,enquanto admirava o luxo e a ordem de tais coisas,esta bela propriedade com as suas arcadas

mouriscas, os seus terraços todos rosados pelaaurora, as cavalariças e os telheiros agrupados àvolta, pensava que há vinte anos, quando esta boagente veio instalar-se neste vale do sahel, sóencontrou uma arruinada barraca de cantoneiro,uma terra inculta eriçada de palmeiras-anãs e delentiscos. tudo a criar, tudo a construir. os árabes

revoltavam-se a cada instante. era necessário deixar

a charrua e pegar em armas. em seguida, as

doenças, as oftalmias, as febres, as más colheitas, ashesitações da inexperiência, a luta com umaadministração tacanha, sempre flutuante. quantos

esforços! quantas fadigas! quanta vigilânciaincessante!Ainda agora, apesar de terem findado os maustempos e de haverem conquistado a riqueza por tão

alto preço, ambos, o homem e a mulher, são osprimeiros a levantar-se na granja. a esta horamatinal já os vejo andar de um lado para o outro

d i h d é d hã d fé

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nas grandes cozinhas do rés-do-chão a tratar do cafédos trabalhadores. pouco depois toca uma sineta e,passado um momento, o pessoal desfila no

caminho. são vinhateiros da borgonha, agricultorescabilas esfarrapados e de barrete vermelho nacabeça, cavadores magoes de perna à vela, malteses,luqueses, toda uma população heterogénea, difícilde dirigir. diante da porta, o colono distribui a cadaum a sua tarefa do dia, em voz breve, um poucorude. quando termina, o excelente homem levanta a

cabeça, perscruta o céu com ar inquieto e, vendo-me

à janela, diz-me: - mau tempo para a agricultura...

vem aí o siroco. com efeito, à medida que o sol selevanta, rajadas de ar ardentes, sufocantes, chegam-nos do sul como da porta de um forno que se abre e

fecha. ninguém sabia onde se meter nem o queviria. passa-se assim toda a manhã. tomamos cafésentados nas esteiras da galeria, sem coragem parafalar nem para nos mexermos. os cães, estiraçados,

procuram a frescura das lajes, com a respiraçãoopressa. o almoço anima-nos um pouco, um almoçocopioso e singular, composto de carpas, trutas,

li i t i d t li i h d i

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avali, ouriço, manteiga de staueli, vinhos de crescia,goiabas, bananas, toda uma variedade de iguariasexóticas que representam bem a natureza tão

complexa de que estamos rodeados... chegou aaltura de nos levantarmos da mesa. 143 de repente,ouvem-se grandes gritos junto da porta de sacada,fechada para nos preservar do calor escaldante doardim: - os gafanhotos! os gafanhotos! o meuanfitrião empalidece como um homem a quem seanuncia uma desgraça e saímos precipitadamente.

durante dez minutos reina na habitação, ainda há

pouco tão calma, o ruído de passos precipitados, de

vozes indistintas, perdidas na agitação de umdespertar. da sombra dos vestíbulos em queestavam adormecidos, os criados precipitam-se para

fora e fazem ressoar com paus, forquilhas emanguais todos os utensílios de metal queencontram à mão: caldeirões de cobre, bacias ecaçarolas. os pastores sopram nas suas trompas de

apascentar. outros servem-se de búzios e cornetasde caça. tudo isto provoca um alarido espantoso,discordante, dominado por uma nota agudíssima,

l ! l ! l ! d lh á b

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os «lu! lu! lu!» das mulheres árabes que acorreramde um aduar vizinho. Às vezes, parece que bastaum grande barulho, uma convulsão sonora do ar,

para afugentar os gafanhotos e impedi-los dedescer.Mas onde estão os terríveis animais? no céu,vibrante de calor, só vejo uma nuvem vir dohorizonte, acobreada, compacta, como uma nuvemde granizo, acompanhada de um ruído de ventotempestuoso a soprar nos mil ramos de uma

floresta. são os gafanhotos. apoiados uns nos outros

pelas asas escuras estendidas, voam em massa e, a

despeito dos nossos gritos, dos nossos esforços, anuvem avança sempre e projecta na planície umasombra imensa. em breve está sobre as nossascabeças. nas extremidades vê-se durante umsegundo um franjamento, um rasgão. como asprimeiras gotas de um aguaceiro, alguns destacam-se, visíveis, arruivados; em seguida, toda a nuvem

rebenta e a saraivada de insectos cai densa eestrepitosa. a perder de vista, os campos ficamcobertos de gafanhotos, de gafanhotos enormes, do

tamanho de um dedo

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tamanho de um dedo.Então, começa o massacre. o esmagamento provocaum murmúrio repugnante, parecido com o

espezinhar de palha. as grades, os alviões e ascharruas revolvem o solo movediço, mas quantosmais se matam, mais gafanhotos aparecem.fervilham em camadas, com as altas patasentrelaçadas; os de cima praticam prodígios dedestreza, saltam ao focinho dos cavalos atreladospara esta lavoura singular. os cães da granja e os do

aduar correm através dos campos, atiram-se a eles,

trituram-nos com furor. nesta altura, duas

companhias de atiradores argelinos, de clarins àfrente, chegam em socorro dos infelizes colonos e amatança muda de aspecto. em vez de esmagarem osgafanhotos, os soldados queimam-nos comcompridos rastilhos de pólvora acesos, espalhadospelos campos. cansado de matar, enjoado pelocheiro infecto, volto para casa. dentro desta há

quase tantos como lá fora. entraram pelas aberturasdas portas e das janelas e pelos respiradouros daschaminés. nas saliências das guarnições das

paredes nos cortinados já todos roídos arrastam se

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paredes, nos cortinados já todos roídos, arrastam-se,caem, voam e trepam pelas paredes brancas comouma sombra gigantesca duplamente repugnante. e

sempre o mesmo cheiro insuportável. ao jantar,tivemos de passar sem água: cisternas, bacias,poços, viveiros, tudo estava infectado. À noite, nomeu quarto, onde no entanto se tinham matadoenormes quantidades, ainda ouvi zumbidosdebaixo dos móveis e um crepitar de élitrossemelhante ao estalido das vagens quando

rebentam por excesso de calor. naquela noite não

pude dormir. aliás, em torno da granja, toda a gente

estava acordada. as chamas rastejavam duma pontaà outra da planície. os atiradores argelinoscontinuavam a matança. no dia seguinte, quandoabri a minha janela, como na véspera, os gafanhotosá tinham partido; mas que devastação haviamdeixado atrás deles! nem uma flor, nem umafolhinha de erva; estava tudo negro, roído,

calcinado. as bananeiras, os damasqueiros, ospessegueiros, as tangerineiras, só se reconheciampelo aspecto dos seus ramos despidos, sem o

encanto e a agitação das folhas que dão vida às

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encanto e a agitação das folhas, que dão vida àsárvores. limpavam-se os depósitos de água e ascisternas. por toda a parte, os moços de lavoura

cavavam a terra para destruir os ovos deixadospelos insectos. cada torrão era virado ecuidadosamente desfeito. e o coração apertava-se-nos ao vermos as mil raízes brancas, cheias de seiva,que apareciam no meio da ruína total daquela terrafértil...

O Elixir do Reverendo Padre Gaucher

- Beba isto, vizinho, e diga-me que tal lhe parece. e,gota a gota, com o cuidado minucioso de umlapidário a contar pérolas, o cura de gravesondeitou-me dois dedos de um licor verde, dourado,quente, brilhante, delicado... que pareceu encher-meo estômago de sol. - É o elixir do padre gaucher, aalegria e a saúde da nossa provença - disse-me o

excelente homem, com ar de triunfo. fabricam-no noconvento dos premonstratenses, a duas léguas doseu moinho... não é verdade que é o melhor licor do

mundo? e se soubesse como é divertida a história

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mundo?... e se soubesse como é divertida a históriadeste elixir! ora ouça... então, muito ingenuamente,sem uma pontinha de malícia, na sala de jantar do

presbitério, tão cândida e tão calma com a sua viasacra em quadradinhos e os seus bonitos cortinadosclaros engomados como sobrepelizes, o abadecomeçou a contar-me uma historieta ligeiramentecéptica e irreverente, à maneira de um conto deerasmo ou de assoucy. - há vinte anos, ospremonstratenses, ou, -antes, os padres brancos,

como lhes chamavam os nossos provençais, tinham

caído numa grande miséria. se visse a sua casa

nesse tempo, ter-lhe-ia feito pena. «a fachada e atorre pacómio caíam aos bocados. a toda a volta doclaustro, cheio de ervas, as colunatas fendiam-se, ossantos de pedra caíam dos seus nichos. nem umvitral inteiro, nem uma porta em condições. nospátios, nas capelas, o vento do ródano sopravacomo em camargue, apagava as velas, arrancava o

chumbo das vidraças, fazia a água benta trasbordardas pias. mas o mais triste de tudo era o campanáriodo convento, silencioso como um pombal vazio, e

os frades à falta de dinheiro para comprarem um

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os frades, à falta de dinheiro para comprarem umsino, viam-se obrigados a tocar as matinas commatracas de pau de amendoeira!... «pobres padres

brancos! estou ainda a vê-los na procissão do corpode deus a desfilarem tristemente nas suas capasremendadas, pálidos, magros, alimentados de citrese de melancias, e atrás deles o sr. abade, de cabeçabaixa, muito envergonhado por mostrar à luz do diao seu báculo desdourado e a sua mitra de lã brancaroída das traças. as senhoras da confraria choravam

de pena no cortejo e os corpulentos porta-

estandartes riam uns com os outros baixinho e

diziam, apontando para os pobres monges: 'osestorninhos emagrecem quando andam em bandos.'«o caso é que os infortunados padres brancoschegaram a perguntar a si mesmos se não fariammelhor em levantar voo através do mundo eprocurar alimento cada um por seu lado. «ora, numdia em que este grave problema se debatia no

capítulo, vieram anunciar ao prior que o irmãogaucher pedia que o ouvissem em conselho... paraseu governo, fique sabendo que o irmão gaucher era

o boieiro do convento; quer dizer passava os dias ad d d d l d

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o boieiro do convento; quer dizer, passava os dias avaguear de arcada para arcada do claustro, tocandodiante de si duas vacas esqueléticas que

procuravam a erva nas fendas do pavimento. criadoaté aos 12 anos por uma velha tonta da região debaux, conhecida pela tia bégon, e recolhido depoispelos monges, o infeliz boieiro só aprendera aguardar gado e a rezar o seu pater noster; e ainda odizia em provençal, pois tinha a cabeça dura e oespírito aguçado como uma adaga de chumbo.

cristão fervoroso, aliás, embora um pouco

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melro da córsega. tanto assim que preparou, no fim

dos seus dias, um elixir incomparável, misturandocinco ou seis espécies de simples que íamos colheruntos nos alpilles. há quantos anos isto foi! masulgo que com a ajuda de santo agostinho e apermissão do nosso padre-abade poderei,procurando bem, tornar a encontrar a composiçãodo misterioso elixir. depois, só teremos de o

engarrafar e de o vender um bocadinho caro, o quepermitirá à comunidade enriquecerdespreocupadamente, como os nossos irmãos da

trapa e da grande... «não lhe deram tempo deb i l t lh lt

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trapa e da grande... não lhe deram tempo deacabar. o prior levantara-se para lhe saltar aopescoço. os cónegos apertavam-lhe as mãos. o

tesoureiro, ainda mais comovido do que todos osoutros, beijava-lhe com respeito a fímbria desfiadado escapulário... depois, cada um voltou para o seucadeiral, a fim de deliberarem; e, acto contínuo, ocapítulo decidiu que se confiassem as vacas aoirmão trasíbulo, para que o irmão gaucher sepudesse dedicar por completo à preparação do seu

elixir.

«Como foi que o bom do frade conseguiu encontrar

a receita da tia bégon? À custa de quantos esforços?À custa de quantas vigílias? não o diz a história.simplesmente, do que não há dúvida é de que, aocabo de seis meses, o elixir dos padres brancos era jámuito popular. em todo o condado, em toda aregião de arles, nem um mas, nem uma granja,queria deixar de ter ao fundo da despensa, entre as

garrafas de vinho velho e os frascos de azeitonasmiúdas, uma botijazinha de barro castanho-escuro,selada com as armas da provença e com um monge

em êxtase num rótulo prateado. graças à fama doli i d t t i

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p g çseu elixir, a casa dos premonstratenses enriqueceumuito rapidamente. levantaram de novo a torre

pacómio. o prior teve uma mitra nova e a igrejabonitos vitrais granitados; e no campanáriofinamente rendilhado instalou-se toda umacompanhia de sinos e sinetas, numa bela manhã depáscoa, a badalar e a tocar em carrilhão, todos àuma. «quanto ao irmão gaucher, pobre frade leigocujas rusticidades divertiam tanto o capítulo, não

houve mais problemas com ele no convento. dali

em diante, passou a ser conhecido pelo reverendo

padre gaucher, homem inteligente e de grandesaber, que vivia completamente à margem dasocupações mais miúdas e rotineiras do claustro e sefechava todo o dia na sua destilaria, enquanto trintamonges batiam a montanha à procura de ervasodoríferas... a destilaria, onde ninguém, nemmesmo o prior, tinha o direito de entrar, era uma

antiga capela abandonada, mesmo ao fundo doardim dos cónegos. a simplicidade dos bons padresfizera dela uma coisa misteriosa e formidável; e se,

por acaso, um mongezinho atrevido e curioso seagarrava às videiras trepadeiras e chegava até à

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p , gagarrava às videiras trepadeiras e chegava até àrosácea do portal, descia logo a toda a pressa,

admirado de ter visto o padre gaucher, com a suabarba de feiticeiro, curvado sobre as suas fornalhas,com o pesa-licores na mão; além disso, rodeavam-no retortas de grés cor-de-rosa, alambiquesgigantescos, serpentinas de cristal, tudo numamiscelânia extravagante que resplandeciamagicamente à claridade avermelhada dos vitrais...

«ao entardecer, quando soava a última badalada

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igreja numa excitação extraordinária: rubro,

esbaforido, com o capuz às três pancadas, e tãoperturbado que, ao tomar a água benta, molhou asmangas até aos cotovelos. julgou-se ao princípioque a sua atrapalhação era por chegar tarde; masquando o viram fazer grandes reverências ao órgãoe às tribunas, em vez de saudar o altar-mor,atravessar a igreja como um pé-de-vento, errar pelo

coro durante cinco minutos à procura da suacadeira e depois, já sentado, inclinar-se para adireita e para a esquerda e sorrir com ar beatífico,

um murmúrio de espanto percorreu as três naves.cochichava se de breviário para breviário: 'que terá

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p pcochichava-se de breviário para breviário: que teráo nosso padre gaucher?... que terá o nosso padre

gaucher?' «por duas vezes o prior, impaciente,bateu com o báculo no lajedo, para impor silêncio...lá atrás, ao fundo do coro, os salmos prosseguiamsem interrupção, mas os responsos falhavam aentrada... «de súbito, no meio da ave verum, eis queo nosso padre gaucher se vira na sua cadeira e entoacom voz estentórea: "em paris, há um padre branco,

patalim, patatam, tarabim, tarabam..."

«consternação geral. toda a gente se levanta. grita-

se: "levem-no daqui, que está possesso!..." «oscónegos persignam-se. o báculo de monsenhoragita-se... mas o padre gaucher não vê nada, nãoouve nada; e dois monges vigorosos vêem-seobrigados a arrastá-lo pela portinha do coro, adebater-se como um exorcismado e a gritar cadavez mais alto os seus patatins e os seus tarabans.»

«no dia seguinte, logo de manhãzinha, o infeliz vaiajoelhar-se no oratório do prior e confessar a suaculpa, num mar de lágrimas: «- foi o elixir,

monsenhor, foi o elixir que me perdeu dizia ele,batendo no peito «e ao vê-lo tão sentido tão

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batendo no peito. «e ao vê-lo tão sentido, tãoarrependido, o bom prior ficou também muito

comovido. «- vamos, vamos, padre gaucher.acalme-se. tudo isso secará como o orvalho ao sol...apesar de tudo, o escândalo não foi assim tãogrande como pensa. É certo que a canção era umpouco... hum, hum... enfim, espero que os noviçosnão a tenham ouvido... agora, vejamos, diga-mefrancamente como é que isso lhe aconteceu... foi a

experimentar o elixir, não é verdade? escapou-lhe

um pouco a mão... sim, sim, compreendo...

aconteceu-lhe o mesmo que ao irmão schwartz, oinventor da pólvora: foi vítima da sua invenção...mas diga-me, meu bom amigo, é indispensável queesse terrível elixir seja experimentado mesmo porsi? «- infelizmente, é, monsenhor... a proveta indica-me com precisão a força e o grau alcoólico; maspara lhe dar o sabor, o aveludado, só confio no meu

paladar... «- ah, muito bem!... mas escute ainda umpouco mais o que lhe digo... quando prova assim oelixir, por necessidade, sabe-lhe bem? sente nisso

algum prazer?...«- Ai de mim! sim monsenhor - respondeu o infeliz

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« Ai de mim! sim, monsenhor respondeu o infelizpadre, corando muito. - olhe, há duas tardes que lhe

encontro um sabor, um aroma!... foi com certeza odemónio que me armou este laço traiçoeiro... porisso, estou resolvido a, daqui em diante, só meservir da proveta. tanto pior se o licor não forbastante fino, se não fizer bem o ponto... «- tenhacautela com isso - interrompeu-o o prior, comvivacidade. - não nos podemos arriscar a

descontentar a clientela... tudo o que tem de fazer

agora, que está prevenido, é tomar cautela...

vejamos, de que quantidade precisa para a prova?...quinze ou vinte gotas, não é verdade?... digamosvinte gotas... só se o diabo for muito fino é que oapanhará com vinte gotas... além disso, para evitarqualquer acidente, dispenso-o doravante de ir àigreja. rezará o ofício da tarde na destilaria... e agoravá em paz, meu reverendo, e, sobretudo... conte

bem as suas gotas. «ai dele! o pobre reverendo bempoderia contar as gotas... o demónio tomara-o aoseu cuidado e não o largaria mais. «a destilaria é

que ouviu singulares ofícios!»«Durante o dia, mesmo assim, tudo corria bem. o

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«Durante o dia, mesmo assim, tudo corria bem. opadre andava bastante calmo. preparava os seus

fogões, os seus alambiques, separavacuidadosamente as ervas, todas ervas da provença,finas, cinzentas, denteadas, saturadas de perfumes ede sol... mas à tarde, depois de pronta a infusão dossimples, quando o elixir arrefecia em grandes baciasde cobre vermelho, o martírio do pobre homemcomeçava. « "... dezassete... dezoito... dezanove...

vinte!... «as gotas caíam da pipeta no copo de prata

dourada. estas vinte, o padre engolia-as de um

trago, quase sem prazer. só a vigésima primeira lhedespertava desejos. oh, a vigésima primeira gota!...então, para fugir à tentação, ia ajoelhar-se naextremidade do laboratório e recolhia-se nos seuspadre-nossos. mas do licor ainda quente evolava-seum vaporzinho carregado de aromatos, que ia girarem torno dele, e, de bom ou mau grado, o levava

outra vez para junto das bacias... o licor era de umbelo verde-dourado. debruçado sobre ele, com asnarinas dilatadas, o padre remexia-o muito

suavemente com a sua pipeta e, nas palhetinhascintilantes que rolavam naquelas ondas de

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cintilantes que rolavam naquelas ondas deesmeralda, parecia-lhe ver os olhos da tia bégon, a

rirem e ficarem pousados nele... «'vamos, mais umagota!' «e, gota a gota, o infeliz acabava por encher ocopo até acima. então, sem forças, deixava-se cairnuma grande poltrona e, com o corpo abandonadoe as pálpebras semicerradas, saboreava o seupecado aos golinhos, ao mesmo tempo que diziapara consigo, baixinho, com um remorso delicioso:

«"ah! estou a condenar-me... estou a condenar-me..."

«o mais terrível era que no fundo daquele elixir

diabólico encontrava, não sei por que sortilégio,todas as sórdidas canções da tia bégon: são trêscomadrezinhas que falam de dar um banquete... ou:a pastorinha do tio andré vai para o bosquesozinha... e sempre a famosa cantiga dos padresbrancos: patatim, patatam. «imagine a suaatrapalhação no dia seguinte, quando os seus

vizinhos de cela lhe diziam com ar malicioso: "eh,eh, padre gaucher, ontem à noite, quando se deitou,tinha cigarras na cabeça!..." «então, vinham as

lágrimas, os desesperos, e o jejum, c o cilício, e adisciplina. mas nada podia contra o demónio do

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p pelixir; e todas as tardes, à mesma hora, a tentação

recomeçava.» «entretanto, as encomendas choviamna abadia como uma bênção. vinham de nimes, deaix, de avinhão, de marselha... dia após dia, oconvento tomava cada vez mais o arzinho de umafábrica. havia irmãos acondicionadores, irmãosrotuladores, outros para a escrita, outros para otransporte. o serviço de deus perdia nisto e naquilo

alguns toques de sino, mas a pobre gente da terra

não perdia nada, garanto-lhe... «e, contudo, um belo

domingo de manhã, quando o tesoureiro lia empleno capítulo o seu inventário de fim de ano e osbons cónegos o escutavam com os olhos brilhantes eo sorriso nos lábios, o padre gaucher precipitou-seno meio da conferência, a gritar: «- acabou-se... nãofaço mais... dêem-me outra vez as minhas vacas. «-que aconteceu, padre gaucher? - perguntou-lhe o

prior, que tinha as suas fundadas desconfiançasacerca do que acontecera. «- que aconteceu,monsenhor?... aconteceu que estou em vias de

arranjar para mim uma bela eternidade de chamas ede forquilhadas... porque eu bebo, bebo como um

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q p q ,miserável... «- mas eu disse-lhe que contasse as

gotas.«- Ah, pois sim, contar as gotas! os copos é que seriaagora conveniente contar... sim, meus reverendos,cheguei a isto: três garrafinhas por noite... ora, comocompreendeis bem, isto não pode continuar...portanto, mandai fazer o elixir por quemquiserdes... que o fogo de deus me queime se lhe

tornar a mexer! «o capítulo já não ria. «- mas,

desgraçado, ides arruinar-nos! - gritou o tesoureiro,

agitando o seu livro de escrita. «- preferis que medane? «nesta altura, o prior levantou-se. «- meusreverendos - disse, estendendo a sua bela mãobranca onde brilhava o anel pastoral -, há umamaneira de remediar tudo... É à tarde, não é, meuquerido filho, que o demónio o tenta?... «- sim, sr.prior; regularmente, todas as tardes... por tal

motivo, agora, quando vejo chegar a noite, sintovirem-me uns suores como, com vossa licença, aoburro de capitou quando via aproximar-se a

albarda. «- está bem, sossegue... doravante, todas astardes, ao ofício, rezaremos em sua intenção a

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oração de santo agostinho à qual está ligada a

indulgência plenária... assim, aconteça o queacontecer, estará protegido... a absolviçãoacompanhará o pecado. «- oh, assim, está bem!muito obrigado, sr. prior! «e, sem querer saber demais nada, o padre gaucher voltou para os seusalambiques, tão ligeiro como uma cotovia.«efectivamente, a partir daquele momento, todas as

tardes, no fim das completas, o oficiante nunca se

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os meus amáveis vizinhos; e esta manhã, por volta

das cinco horas da madrugada, o seu grandebreque, carregado de espingardas, de cães e devitualhas, veio buscar-me ao fundo da encosta.metemos à estrada de arles, um pouco seca, umpouco nua, nesta manhã de dezembro em que overde-pálido das oliveiras mal se vê e o verde-crudos carrasqueiros é ainda demasiado hibernal e

factício. os estábulos movimentam-se. antes deromper o dia, já se vêem iluminadas as janelas dasherdades, e nos recortes de pedra da abadia de

montmajour as águias-marinhas, aindaentorpecidas de sono, batem as asas entre as ruínas.

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contudo, já nos cruzamos ao longo dos valados com

velhas camponesas que vão para o mercado ao trotedos seus burricos. vêm de ville-des-baux epercorrem seis boas léguas para se sentarem umahora nos degraus de são trofimo e venderem

pacotinhos de ervas apanhadas na montanha!...estamos agora nas muralhas de arles; muralhasbaixas e ameadas, como se vêem nas estampas

antigas, onde guerreiros armados de lanças

aparecem no cimo de taludes mais nos do que eles.

atravessamos a galope esta maravilhosacidadezinha, 158 uma das mais pitorescas da frança,com a suas varandas esculpidas, arredondadas,protegidas por gelosias, que avançam até ao meiodas ruas estreitas ladeadas de velhas casas negras,de portinhas mouriscas, ogivais e baixas, que nostransportam ao tempo de guilherme nariz curto e

dos sarracenos. a esta hora ainda não anda ninguémcá fora. apenas o cais do ródano está animado. obarco a vapor que serve camargue aquece as

caldeiras ao fundo dos degraus, prestes a partir.lavradores vestidos de sarja de lã ruça, raparigas de

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la roquette que vão procurar trabalho nas herdades,

sobem para a coberta connosco, a conversar e a rirumas com as outras. debaixo das suas compridascapas castanho-escuras, traçadas por causa do arcortante da manhã, o alto penteado arlesiano torna-

lhes a cabeça elegante e pequena, dá-lhes um ar dealtivez, como se quisessem esticar-se para lançarbem longe o riso ou a malícia... a sineta toca;

partimos. graças à tríplice velocidade do ródano, da

hélice e do mistral, as duas margens ficam

rapidamente para trás. de um lado é a crau, umaplanície árida, pedregosa. da outra, a camargue,mais verde, que se prolonga até ao mar com a suaerva curta e os seus pântanos cheios de canaviais.De vez em quando, o barco pára junto de umpontão, à esquerda ou à direita, no império ou noreino, como se dizia na idade média, no tempo do

reino de arles, e como os velhos marinheiros doródano dizem ainda hoje. em cada pontão, umaherdade branca, um renque de árvores. os

trabalhadores descem carregados de ferramentas eas mulheres com os seus cabazes no braço, direitas

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na prancha. umas vezes do lado do império, outras

do lado do reino, o barco vai-se despejando pouco apouco, e quando chega ao pontão do mas-de-giraud, onde desembarcamos, não há quaseninguém a bordo. o mas-de-giraud é uma velha

herdade dos senhores de barbentane, ondeentramos para esperar o guarda, que nos deve virprocurar. na cozinha, de tecto alto, todos os homens

da herdade - moços de lavoura, vinhateiros,

pastores e pastorinhos - estão sentados à mesa,

graves, silenciosos, a comer lentamente, servidospor mulheres que só comem depois. em breve oguarda aparece com a carriola. verdadeiro tipo defenimore, caçador e pescador de trápola, guarda-rios e guarda-caça, a gente da região chama-lhe louroudéirou (o rondador), porque se vê sempre, nasbrumas da aurora ou do pôr do sol, escondido a

espreitar a caça entre os canaviais, ou então imóvelno seu batelzinho, ocupado a vigiar as suas nassasnos clairs (pântanos) e nos roubines (canais de

irrigação). foi talvez o seu mister de permanenteespião que o tornou tão silencioso, tão concentrado.d i i l d d

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todavia, enquanto a pequena carriola carregada deespingardas e de cestos roda à nossa frente, dá-nosnotícias da caça, do número de passagens, doslugares onde as aves de arribação desceram. eassim, a conversar, vamo-nos internando na região.

passadas as terras cultivadas, eis-nos em plenacamargue selvagem. a perder de vista, entre aspastagens, os pântanos e os'canais brilham nas

salicórnias. tufos de tamargueiras e de canas

formam ilhotas como num mar calmo. nem uma

árvore de grande porte. o aspecto uniforme, imenso,da planície, não é quebrado por nada. de longe emlonge, currais de gado desdobram os seus telhadosbaixos, quase rentes à terra. rebanhos dispersos,deitados nas ervas salinas ou caminhando reunidosem torno da capa ruça do pastor, não interrompema grande linha uniforme; são como que esmagados

pelo espaço infinito de horizontes azuis e de céudilatado. como do mar plano, apesar das vagas,desprende-se desta planície uma sensação de

isolamento, de imensidade, aumentada ainda pelomistral, que sopra ininterruptamente, semb tá l hálit d

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obstáculo, e que, com o seu hálito poderoso, pareceaplanar, engrandecer a paisagem. tudo se curvadiante dele. os arbustos mais insignificantesconservam os sinais da sua passagem, ficamtorcidos, inclinados para o sul, numa atitude de

perpétua fuga...II – A CabanaUm telhado de canas, paredes de canas secas e

amarelas, tal é a cabana. É este o nome do nosso

ponto de reunião de caça. tipo de casa camarguesa,

a cabana compõe-se de uma única divisão, alta,espaçosa, sem janelas, onde a luz do dia entra poruma porta envidraçada que se fecha à noite comtaipais. a todo o comprimento das grandes paredesrebocadas, caiadas, os armeiros e os cabidesaguardam as espingardas, as sacolas, as botas deágua. ao fundo, cinco ou seis leitos dispostos em

torno de um verdadeiro mastro cravado no solo eque se ergue até ao tecto, ao qual serve de apoio. Ànoite, quando o mistral sopra e a casa range por

todos os lados, apesar de o mar estar distante, ovento aproxima-o, transporta o seu ruído, prolonga-t j l d it d t

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o e aumenta-o, e julgamo-nos deitados no camarotede um navio. mas é sobretudo à tarde que a cabanaé encantadora. nos nossos belos dias de invernomeridional, gosto de ficar sozinho junto da altachaminé onde fumegam alguns pés de tamargueira.

debaixo do assalto do mistral ou da tramontana, aporta bate, as camas gemem, e todas estassacudidelas são um eco bem pequeno da grande

agitação da natureza em torno de mim. o sol de

inverno, açoitado pela tremenda corrente de ar,

espalha-se, junta os seus raios e torna a dispersá-los.grandes sombras correm debaixo de um céu azuladmirável. a luz vem até nós em ondas e os ruídostambém; e os chocalhos dos rebanhos ouvem-se derepente, depois emudecem, perdidos no vento, evoltam a cantar junto da porta sacudida, com agraça de um estribilho... a hora mais deliciosa é a do

crepúsculo, um pouco antes do regresso aoscaçadores. então, o vento amaina. saio por ummomento. o grande sol vermelho desce em paz,

incendiado, sem calor.A noite cai e toca-nos ao de leve, de passagem, comas suas asas negras todas húmidas ao longe rente

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as suas asas negras, todas húmidas. ao longe, renteao solo, o clarão de um tiro passa com o brilho deuma estrela vermelha, avivada pela sombraenvolvente. no que resta de dia, a vida apressa-se.um grande triângulo de patos voa muito baixo,

como se quisessem tomar terra; mas, de súbito, acabana, onde o caleil está aceso, afasta-os. o que vaià cabeça da coluna levanta o pescoço, torna a subir,

e todos os outros atrás dele sobem mais alto,

soltando gritos selvagens. em breve se aproxima um

rumor imenso, semelhante ao ruído de umaguaceiro. milhares de carneiros, tocados pelospastores e perseguidos pelos cães, apressam-se avoltar aos currais, medrosos e indisciplinados, emgalope confuso e com a respiração anelante. souapanhado, tocado, cercado por um turbilhão de lãsfrisadas, de balidos; uma autêntica vaga em que os

pastores parecem transportados como fantasmaspor ondas saltitantes... atrás dos rebanhos, ouçopassos conhecidos e vozes alegres. a cabana está

cheia, animada, ruidosa. os sarmentos ardem. rimo-nos tanto mais quanto mais cansados estamos. reinauma vertigem de fadiga feliz; as espingardas estão a

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uma vertigem de fadiga feliz; as espingardas estão aum canto, as grandes botas amontoadas a trouxe-mouxe. as sacolas vazias, e, ao lado, as plumagensruças, douradas, verdes, prateadas, todas sujas desangue. a mesa está posta; e no meio do fumegar de

uma boa sopa de enguias estabelece-se o silêncio, ogrande silêncio dos apetites robustos, apenasinterrompido pelos rosnidos ferozes dos cães, que

lambem a sua gamela, às escuras, diante da porta... 

O serão será curto. diante do lume, que também já

pestaneja, só estou eu e o guarda. conversamos, istoé, de tempos a tempos dirigimos um ao outro meiaspalavras, como os camponeses, interjeições quaseindianas, curtas e depressa extintas, como asúltimas centelhas dos sarmentos consumidos.enfim, o guarda levanta-se, acende a sua lanterna eouço os seus passos pesados perderem-se na noite...

III – A EsperaA espera! que belo termo para designar a espreita, aexpectativa do caçador emboscado e as horas

indecisas em que tudo aguarda, espera, hesita entreo dia e a noite. a espreita da manhã, um pouco antesde nascer o sol; a espreita da tarde ao crepúsculo É

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de nascer o sol; a espreita da tarde, ao crepúsculo. Éesta última que prefiro, sobretudo nesta regiãopantanosa, onde a água dos charcos conserva a luzdurante tanto tempo... algumas vezes a espera faz-se num negochin, um batel minúsculo, sem quilha,

estreito, que balouça ao mais pequeno movimento.a coberto dos canaviais, o caçador espreita os patosdo fundo do barco. de fora, apenas a pala do boné, o

cano da espingarda e a cabeça do cão a farejar o ar e

a abocanhar os mosquitos, ou então com as patorras

estendidas a inclinar o barco todo para um lado e aenchê-lo de água. confesso, porém, que esta espera édemasiado complicada para a minha inexperiência.por isso, a maior parte das vezes faço a espera a pé,

a patinhar em pleno pântano, com enormes botastalhadas a todo o comprimento do couro. caminholentamente, prudentemente, com medo de me

enterrar no lodo. evito os canaviais, onde abundamos odores fétidos e as rãs saltadoras... enfim, cátemos uma ilhota de tamargueiras, um bocado de

terra seca onde me instalo. o guarda quis dar-me ahonra de me confiar o seu cão, um enorme cão dospirenéus de grande pêlo lãzudo caçador e

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pirenéus, de grande pêlo lãzudo, caçador epescador de primeira ordem e cuja presença nãodeixa de me intimidar um pouco. quando umagalinha-d'água passa ao meu alcance, olha-me decerto modo irónico, deitando para trás, com um

gesto de cabeça à artista, duas compridas orelhasflácidas que lhe caem para os olhos; depois, faz-menegaças como se fosse parar, agita a cauda, entrega-

se a toda uma mímica de impaciência para me

dizer: «atira... atira agora!» atiro e falho. então, com

o corpo completamente estendido, boceja eespreguiça-se com ar cansado, desanimado einsolente... pois sim. admito que sou mau caçador.para mim, a espera é o momento que passa, a luz

que diminui e se refugia na água, as lagoas quebrilham e reflectem em tons de prata fina a tintacinzenta do céu escurecido. gosto deste cheiro a

água, do frémito misterioso dos insectos noscanaviais, do murmuriozinho das folhas longas queestremecem. de tempos a tempos, uma nota triste

perpassa no céu como o sussuro de uma conchamarinha. É o alcaravão que mergulha na água o seubico imenso de ave-pescadora e sopra rrruuu!

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bico imenso de ave pescadora e sopra... rrruuu!revoadas de grous passam-me por cima da cabeça.ouço o roçagar das penas, o eriçar da penugemtocada pelo ar cortante e até o castanholar dosbiquitos cansados. depois, mais nada. apenas a

noite, a noite profunda, com um resto de dia,subsiste na água... de repente, sinto umestremecimento, uma espécie de opressão nervosa,

como se estivesse alguém atrás de mim. viro-me e

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novos estão em arles, com a avó, e por lá ficarão até

aprenderem a ler e fazerem o seu bon jour (primeiracomunhão), porque aqui está-se demasiado longeda igreja e da escola e, além disso, o ar da camarguenão é bom para os pequenos. com efeito, quando

chega o estio, os charcos secam e a vasa branca dosroubines greta devido ao muito calor, a ilha não é,na verdade, habitável. vi isso uma vez, no mês de

agosto, quando vim atirar aos patos-bravos, e nuncaesquecerei o aspecto triste e selvagem destapaisagem abrasada. aqui e ali, as lagoas fumegam

ao sol como imensos balseiros e conservam muitono fundo um resto de vida que se agita, um bulíciode salamandras, de aranhas, de moscas-d'água, que

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de salamandras, de aranhas, de moscas d água, queprocuram os cantos húmidos. o ar torna-seempestado, nuvens de miasmas pairampesadamente, e tudo isto é ainda aumentado porincontáveis turbilhões de mosquitos. então, em casa

do guarda toda a gente tremia, toda a gente tinhafebre, e metia pena ver os rostos pálidos, tensos,olheirentos, os olhos arregalados daqueles infelizes

condenados a arrastarem-se durante três meses

debaixo deste sol ofuscante e inexorável, quequeima os febricitantes sem os aquecer... triste epenosa vida a de guarda-caça em camargue!contudo, ele ainda tem a mulher e os filhos consigo;mas duas léguas mais longe, no pântano, mora um

guarda de cavalos que vive absolutamente só deuma ponta do ano à outra e leva uma autênticaexistência de robinson.

Na sua cabana de canas, que ele próprio construiu,não há um utensílio que não seja obra sua, desde acama de vime entrançado, das três pedras negras

que juntas formam a lareira, dos pés de tamargueiratalhados em escabelos, até à fechadura e à chave demadeira de bétula que fecham esta singular

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q ghabitação. o homem é tão estranho, pelo menos,como a sua casa. É uma espécie de filósofosilencioso como os solitários, que esconde a suadesconfiança de camponês debaixo de sobrancelhas

espessas como tojos. quando não anda naspastagens, encontra-se sentado diante da porta adecifrar lentamente, com uma aplicação infantil e

comovedora, uma dessas brochurazinhas cor-de-

rosa, azuis ou amarelas que acompanham os frascosde remédios de que se serve para tratar os cavalos.o pobre diabo não tem outra distracção a não ser aleitura, nem outros livros a não ser aqueles. emborasejam vizinhos de cabana, o nosso guarda e ele não

se vêem. evitam mesmo encontrar-se. um dia emque perguntei ao roudeirou a razão de tal antipatia,respondeu-me com ar grave: «É por causa das

nossas opiniões... ele é vermelho e eu sou branco.»assim, mesmo neste deserto, cuja solidão os deveriater aproximado, estes dois selvagens, tão

ignorantes, tão simplórios um como o outro, estesdois boieiros de teócrito que vão à cidade apenasuma vez por ano e a quem os cafèzinhos de arles,

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p q ,com os seus dourados e os seus espelhos,deslumbram como se fossem o palácio dosptolemeus, encontraram maneira de se odiar emnome das suas convicções políticas.

V – O VacoarèsO que há de mais belo em camargue é o vacoarès.muitas vezes, abandono a caça e venho sentar-me à

beira deste lago salgado, um marzinho que parece

um pedaço do grande metido no meio das terras etornado familiar devido ao seu próprio cativeiro.em vez da secura e da aridez que de ordinárioentristecem as costas, o vacoarès ostenta nas suasmargens um pouco altas, muito verdes de erva

tenra, aveludada, uma flora original e encantadora:centáureas, trevos aquáticos, gencianas e as bonitassaladelles, azuis no inverno e vermelhas no verão,

que mudam de cor consoante o estado da atmosferae, numa floração ininterrupta, assinalam as estaçõescom a diversidade dos seus tons. cerca das cinco

horas da tarde, à hora a que o sol declina, estas trêsléguas de água sem um barco, sem uma vela quelimite e transforme a sua extensão, têm um aspecto

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padmirável. não é o encanto íntimo dos pauis, dosroubines, que aparecem de longe em longe entre aspregas de um terreno poroso, debaixo do qual sesente a água filtrar-se por toda a parte, prestes a

mostrar-se à menor depressão do solo; aqui, asensação é de grandeza, de amplitude. de longe, obrilho das vagas atrai bandos de marrecos, de

garças-reais, de alcaravÕes, de flamingos de ventre

branco e asas cor-de-rosa, que se alinham parapescar a todo o comprimento da margem de modo adisporem as suas cores variegadas numa longa faixaigual: e, depois, vêm os íbis, os verdadeiros íbis doegipto, que se instalam muito a seu bel-prazer neste

sol esplêndido e nesta paisagem muda. do meulugar só ouço, com efeito, a agitação da água e a vozdo guarda a chamar os seus cavalos dispersos pela

margem. todos eles têm nomes retumbantes: cifer!...(lúcifer)... o esteio!... o estornelo!... cada animal, aoouvir o seu nome, corre, com as crinas ao vento, e

vem comer a aveia à mão do guarda. mais longe,sempre na mesma margem, encontra-se umagrande manado (manada) de bois, que pastam em

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g ( ) q pliberdade como os cavalos. de tempos a tempos,avisto por cima de um tufo de tamargueiras a arestado seu dorso curvado e os seus cornitos em formade crescente, quando se levantam.

A maior parte destes bois de camargue são criadospara correr nas ferrades e nas festas das aldeias: ealguns têm nomes já célebres em todas as arenas da

provença e do languedoque. É assim que a manado

vizinha conta, entre outros, com um terrívelcombatente chamado romano, que já estripou nãosei quantos homens e cavalos nas corridas de arles,de nímes e de tarascon. por isso, os seuscompanheiros tomaram-no por chefe; porque,

nestas manadas singulares, os animais governam-sea si mesmos, agrupados em torno de um tourovelho, que adoptam como guia. quando um furacão

cai sobre a camargue, terrível nesta grande planícieonde nada se lhe opõe, nada o detém, é digno de sever a manado cerrar-se atrás do seu chefe, todos de

cabeça baixa, e virarem para o lado do vento as suaslargas frontes, onde se concentra a força do boi. osnossos pastores provençais chamam a esta manobra

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tira la bano au gisele, ou seja. virar os cornos aovento. e ai da manada que não fizer o mesmo! cegapela chuva, arrastada pelo furacão, a manado emdesordem vira sobre si mesma, espanta-se,

dispersa-se, e os bois perdidos, correndo sempre emfrente para escapar à tempestade, precipitam-se noródano, no vacoarès ou no mar.

Saudades da CasernaEsta manhã, aos primeiros clarões da aurora, umformidável rufar de tambor despertou-me emsobressalto... ram-plam-plam! ram-plam-plam!...um tambor no meu pinhal a semelhante hora!... ora

aqui está uma coisa deveras singular. a toda apressa, salto da cama e corro a abrir a porta.ninguém! o barulho cessou... de entre as videiras-

bravas molhadas, dois ou três maçaricos-reaislevantam voo, depois de sacudirem as asas... umabrisa suave canta nas árvores... para os lados do

oriente, por cima da crista pontiaguda dos alpilles,acumula-se uma poalha de ouro da qual o sol sailentamente... um primeiro raio afaga já o telhado do

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moinho... ao mesmo tempo, o tambor, invisível,põe-se a rufar nos campos, dissimuladamente...ram... plam... plam. plam, plam! diabos levem a pelede burro! tinha-me esquecido. mas, enfim, quem é o

selvagem que vem saudar a aurora do fundo dosbosques com um tambor?... por mais que olhe, nãovejo nada... nada excepto os tufos de alfazema e os

pinheiros que descem até lá abaixo, à estrada... há

talvez por ali, no mato, algum duende escondidoque lhe deu para brincar comigo... trata-se, semdúvida, de ariel ou de mestre puck. o patife deve terdito para consigo, ao passar diante do meu moinho:«este parisiense está demasiado tranquilo lá dentro;

vamos tocar-lhe a alvorada.» a seguir, pegou numgrande tambor e... ram-plam-plam!... ram-plam-plam!... cala-te, maldito puck! vais acordar as

minhas cigarras.Não era puck. era gouguet françois, por alcunha opistolet, tambor do 31 de linha e nesta altura a gozar

seis meses de licença. pistolet aborrece-se na terra,sente saudades do seu tambor e - quandoconsentem em lho emprestar o instrumento da

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comuna - vem, melancolicamente, rufar para osbosques, a sonhar com a caserna do príncipeeugénio. foi para a minha colinazinha que veiosonhar hoje... está além, encostado a um pinheiro,

com o tambor entre os joelhos, a dar largas ao seuentusiasmo... revoadas de perdigões assustadoslevantam voo a seus pés, sem que ele dê por isso. a

verbena perfuma todo o ar e nem sequer a sente.

nem ao menos vê as finas teias de aranha quetremem ao sol entre os ramos, nem as agulhas depinheiro que lhe caem em cima do tambor. todoentregue ao seu sonho e à sua música, olhaamorosamente o movimento das baquetas e o seu

grande rosto de simplório ilumina-se de prazer acada rufo. ram-plam-plam! ram-plam-plam!...«como é bela a grande caserna, com o seu pátio de

enormes lajes, as suas fileiras de janelas bemalinhadas, a sua população de bivaque e as suasarcadas baixas cheias do ruído das marmitas!...»

ram-plam-plam! ram-plam-plam!... «oh, a escadasonora, os corredores caiados, o cheirinho a rancho,os cinturões que se lustram, o tabuleiro do pão, as

d d f b

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caixas de graxa, as camas de ferro com cobertascinzentas, as espingardas que brilham no armeiro!»ram-plam-plam! ram-plam-plam! «oh, os bons diasde guarda, as cartas de jogar que se pegam aos

dedos, a dama de espadas muito feia, com ornatosfeitos à pena, o velho pigault-lebrun sem parceiro,que se arrasta por cima da tarimba!...» ram-plam-

plam! ram-plam-plam! «oh, as longas noites de

sentinela à porta dos ministérios, a velha guaritaonde a chuva entra, os pés enregelados!...E as carruagens de luxo, que nos salpicam de lamaao passar!... oh, as faxinas de castigo, os dias dedetenção, a tina que cheira mal, o cabeçalho de

madeira, a alvorada fria nas manhãs de chuva, orecolher debaixo de nevoeiro à hora a que o gás seacende, a formatura da noite, a que se chega

esbaforido!» ram-plam-plam! ram-plam-plam! «oh,o bosque de vincenas, as grandes luvas brancas dealgodão, os passeios nas fortificações!... oh, a

barreira da escola, as namoradas dos soldados, ocornetim do salão de marte, o absinto nos estancos,as confidências entre dois soluços, os sabres que sed b i h i l d

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desembainham, a romanza sentimental cantadacom a mão no coração!...» sonha, sonha, pobrehomem! não serei eu quem te irá acordar... bate àvontade na tua caixa, com toda a força. não tenho o

direito de te julgar ridículo. se tens saudades da tuacaserna, não as tenho eu também da minha? o meuparis até aqui me persegue, como o teu. tu tocas

tambor debaixo dos pinheiros, eu faço pouco mais

ou menos o mesmo... ah, que bons provençais quenós somos! longe daqui, nas casernas de paris,tínhamos saudades dos nossos alpilles azuis e doaroma silvestre da alfazema; agora, em plenaprovença, sentimos a falta da caserna e tudo o que

no-la recorda nos é querido!...Batem oito horas na aldeia. pistolet, sem deixar asbaquetas, pôs-se a caminho de casa... ouço-o descer

pelo bosque, sempre a tocar... e eu, deitado na erva,doente de saudades, julgo ver, ao som do tamborque se afasta, todo o meu paris desfilar entre os

pinheiros... ah, paris, paris!... sempre paris!

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