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CARTA ENCÍCLICA LABOREM EXERCENS DO SUMO PONTÍFICE JOÃO PAULO II AOS VENERÁVEIS IRMÃOS NO EPISCOPADO, AOS SACERDOTES, ÀS FAMÍLIAS RELIGIOSAS, AOS FILHOS E FILHAS DA IGREJA E A TODOS OS HOMENS DE BOA VONTADE, SOBRE O TRABALHO HUMANO NO 90º ANIVERSÁRIO DA RERUM NOVARUM.

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CARTA ENCÍCLICALABOREM EXERCENS

DO SUMO PONTÍFICEJOÃO PAULO II

AOS VENERÁVEIS IRMÃOS NO

EPISCOPADO, AOS SACERDOTES, ÀSFAMÍLIAS RELIGIOSAS, AOS FILHOS E

FILHAS DA IGREJA E A TODOS OSHOMENS DE BOA VONTADE, SOBRE O

TRABALHO HUMANO NO 90ºANIVERSÁRIO DA RERUM NOVARUM.

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Veneráveis irmãos e dilectos filhos e filhas : Saúde ebênção Apostólica !

É MEDIANTE O TRABALHO que ohomem deve procurar-se o pão quotidiano1 econtribuir para o progresso contínuo das ciênciase da técnica, e sobretudo para a incessanteelevação cultural e moral da sociedade, na qualvive em comunidade com os próprios irmãos. Ecom a palavra trabalho é indicada toda aactividade realizada pelo mesmo homem, tantomanual como intelectual, independentemente dassuas características e das circunstâncias, querdizer toda a actividade humana que se pode edeve reconhecer como trabalho, no meio de todaaquela riqueza de actividades para as quais ohomem tem capacidade e está predisposto pelaprópria natureza, em virtude da sua humanidade.Feito à imagem e semelhança do mesmo Deus2

no universo visível e nele estabelecido para quedominasse a terra,3 o homem, por isso mesmo,desde o princípio é chamado ao trabalho. O trabalho éuma das características que distinguem o homem doresto das criaturas, cuja actividade, relacionadacom a manutenção da própria vida, não se podechamar trabalho ; somente o homem temcapacidade para o trabalho e somente o homem o

1 Cfr. Sal 127 (128), 2 ; cfr. também Gn 3, 17-19 ; Prov 10, 22 ; Ex 1, 8-14 ;Jer 22, 13.2 Cfr. Gn 1, 26.3 Cfr. Ibid. 1, 28.

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realiza preenchendo ao mesmo tempo com ele asua existência sobre a terra. Assim, o trabalhocomporta em si uma marca particular do homeme da humanidade, a marca de uma pessoa queopera numa comunidade de pessoas ; e uma talmarca determina a qualificação interior do mesmotrabalho e, em certo sentido, constitui a suaprópria natureza.

I. INTRODUÇÃO

1. O trabalho humano a noventa anos da« Rerum Novarum »

Dado que a 15 de Maio do corrente ano secompletaram noventa anos da data da publicação –que se ficou a dever ao grande Sumo Pontífice da« questão social », Leão XIII – daquela Encíclicade importância decisiva, que começa com aspalavras Rerum Novarum, eu desejo dedicar opresente documento exactamente ao trabalhohumano ; e desejo mais ainda dedicá-lo ao homem,visto no amplo contexto dessa realidade que é otrabalho. Efectivamente, conforme tive ocasiãode dizer na Encíclica Redemptor Hominis, publicadanos inícios da minha missão de serviço na SedeRomana de São Pedro, se o homem « é a primeirae fundamental via da Igreja »,4 e isso precisamentesobre a base do imperscrutável mistério daRedenção de Cristo, então é necessário retornarincessantemente a esta via e prossegui-la sempre

4 Carta Encíclica Redemptor Hominis, 14 : AAS 71 (1979) p. 284.

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de novo, segundo os diversos aspectos, nos quaisela nos vai desvelando toda a riqueza e, aomesmo tempo, tudo o que de árduo há naexistência humana sobre a terra.

O trabalho é um desses aspectos, perene efundamental e sempre com actualidade, de talsorte que exige constantemente renovada atençãoe decidido testemunho. Com efeito, surgemsempre novas interrogações e novos problemas,nascem novas esperanças, como também motivosde temor e ameaças, ligados com esta dimensãofundamental da existência humana, pela qual éconstruída cada dia a vida do homem, da qualesta recebe a própria dignidade específica, mas naqual está contido, ao mesmo tempo, o parâmetroconstante dos esforços humanos, do sofrimento,bem como dos danos e das injustiças que podemimpregnar profundamente a vida social nointerior de cada uma das nações e no planointernacional. Se é verdade que o homem sesustenta com o pão granjeado pelo trabalho dassuas mãos5 – e isto equivale a dizer, não apenascom aquele pão quotidiano mediante o qual semantém vivo o seu corpo, mas também com opão da ciência e do progresso, da civilização e dacultura – então é igualmente verdade que ele sealimenta deste pão com o suor do rosto ;6 isto é, nãosó com os esforços e canseiras pessoais, mas

5 Cfr. Sal 127 (128), 2.6 Gn 3, 19.

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também no meio de muitas tensões, conflitos ecrises que, em relação com a realidade dotrabalho, perturbam a vida de cada uma dassociedades e mesmo da inteira humanidade.

Celebramos o nonagésimo aniversário daEncíclica Rerum Novarum em vésperas de novosadiantamentos nas condições tecnológicas,económicas e políticas, o que – na opinião demuitos peritos – irá influir no mundo do trabalhoe da produção, em não menor escala do que o feza revolução industrial do século passado. Sãovários os factores que se revestem de alcancegeral, como sejam : a introdução generalizada daautomação em muitos campos da produção ; oaumento do custo da energia e das matérias debase ; a crescente tomada de consciência de que élimitado o património natural e do seuinsuportável inquinamento ; e o virem à ribalta,no cenário político, povos que, depois de séculosde sujeição, reclamam o seu legítimo lugar noconcerto das nações e nas decisões internacionais.Estas novas condições e exigências irão requereruma reordenação e um novo ajustamento dasestruturas da economia hodierna, bem como dadistribuição do trabalho. E tais mudançaspoderão talvez vir a significar, infelizmente, paramilhões de trabalhadores qualificados odesemprego, pelo menos temporário, ou anecessidade de um novo período deadestramento ; irão comportar, com muita

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probabilidade, uma diminuição ou umcrescimento menos rápido do bem-estar materialpara os países mais desenvolvidos ; mas poderãotambém vir a proporcionar alívio e esperançapara milhões de homens que hoje vivem emcondições de vergonhosa e indigna miséria.

Não compete à Igreja analisar cientificamenteas possíveis consequências de tais mutações paraa convivência humana. A Igreja, porém, considerasua tarefa fazer com que sejam sempre tidospresentes a dignidade e os direitos dos homensdo trabalho, estigmatizar as situações em que sãoviolados e contribuir para orientar as aludidasmutações, para que se torne realidade umprogresso autêntico do homem e da sociedade.

2. Na linha do desenvolvimento Orgânicoda acção e do Ensino Social da Igreja

É fora de dúvida que o trabalho, comoproblema do homem, se encontra mesmo aocentro naquela « questão social », para a qual setêm voltado de modo especial, durante os quasecem anos decorridos desde a publicação damencionada Encíclica, o ensino da Igreja e asmúltiplas iniciativas tomadas em continuidadecom a sua missão apostólica. Dado que é meudesejo concentrar as reflexões que se seguem notrabalho, quero fazê-lo não de maneira deforme,mas sim em conexão orgânica com toda atradição deste ensino e destas iniciativas. Aomesmo tempo, porém, quero fazê-lo segundo a

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orientação do Evangelho, para extrair dopatrimónio do mesmo Evangelho « coisas novas e coisasvelhas ».7 O trabalho, certamente, é uma coisa« velha », tão antiga quanto o homem e a sua vidasobre a face da terra. A situação geral do homemno mundo contemporâneo, diagnosticada eanalisada nos vários aspectos geográficos, decultura e de civilização, exige todavia que sedescubram os novos significados do trabalho humanoe, além disso, que se formulem as novas tarefas queneste sector se deparam indeclinavelmente atodos os homens, à família, a cada uma dasnações e a todo o género humano e, por fim, àprópria Igreja.

Neste espaço dos noventa anos que passaramdesde a publicação da Encíclica Rerum Novarum, aquestão social não cessou de ocupar a atenção daIgreja. São testemunho disso os numerososdocumentos do Magistério, emanados quer dosSumos Pontífices, quer do II Concílio doVaticano ; são testemunho disso, igualmente, asenunciações dos diversos Episcopados ; e étestemunho disso, ainda, a actividade dos várioscentros de pensamento e de iniciativas concretasde apostolado, quer a nível internacional, quer anível das Igrejas locais. É difícil enumerar aqui, deforma pormenorizada, todas as manifestações daviva aplicação da Igreja e dos cristãos no que serefere à questão social, porque elas são muito7 Cfr. Mt 13, 52.

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numerosas. Como resultado do Concílio, tornou-se o principal centro de coordenação neste campoa Pontifícia Comissão « Justitia et Pax ». A mesmaComissão encontra Organismos seuscorrespondentes no âmbito das ConferênciasEpiscopais singularmente consideradas. O nomedesta instituição é muito significativo. Ele indicaque a questão social deverá ser tratada no seuaspecto integral e complexo. O empenhamentoem favor da justiça deve andar intimamente unidoà aplicação em prol da paz no mundocontemporâneo. Constitui, certamente, umpronunciamento a favor deste dúpliceempenhamento a dolorosa experiência das duasgrandes guerras mundiais que, ao longo dosúltimos noventa anos, abalaram muitos países,tanto do continente europeu, quanto, ao menosparcialmente, dos outros continentes. Epronuncia-se a seu favor, especialmente desde ofim da segunda guerra mundial para cá, a ameaçapermanente de uma guerra nuclear e, a emergirpor detrás dela, a perspectiva de uma terrívelautodestruição.

Se seguirmos a linha principal dedesenvolvimento dos documentos do supremoMagistério da Igreja, encontramos neles aconfirmação explícita precisamente de um talmodo de enquadrar o problema. Pelo que dizrespeito à questão da paz no mundo, a posição-chave é a da Encíclica Pacem in Terris do Papa

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João XXIII. Por outro lado, se se considera oevoluir da questão da justiça social, deve notar-seo seguinte : enquanto no período que vai desde aRerum Novarum até à Quadragesimo Anno de Pio XI,o ensino da Igreja se concentra sobretudo emtorno da justa solução da chamada questãooperária no âmbito de cada uma das nações, nafase sucessiva o mesmo ensino alarga o horizonteàs dimensões do mundo inteiro. A distribuiçãodesproporcionada de riqueza e de miséria e aexistência de países e continentes desenvolvidos ede outros não-desenvolvidos exigem umaperequação e que se procurem as vias para umjusto desenvolvimento de todos. Nesta direcçãoprocede o ensino contido na Encíclica Mater etMagistra do Papa João XXIII, bem como naConstituição pastoral Gaudium et Spes do IIConcílio do Vaticano e na Encíclica PopulorumProgressio do Papa Paulo VI.

Esta direcção seguida no desenvolvimento doensino e também da aplicação da Igreja, quanto àquestão social, corresponde exactamente aoreconhecimento objectivo do estado das coisas.Com efeito, se em tempos passados se punha emrelevo no centro de tal questão sobretudo oproblema da « classe », em época mais recente éposto em primeiro plano o problema do « mundo ».Por isso, deve ser tomado em consideração nãoapenas o âmbito da classe, mas o âmbito mundialdas desigualdades e das injustiças ; e, como

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consequência, não apenas a dimensão da classe,mas sim a dimensão mundial das tarefas a assumirna caminhada que há-de levar à realização dajustiça no mundo contemporâneo. A análisecompleta da situação do mesmo mundo dos diasde hoje manifestou de maneira ainda maisprofunda e mais cabal o significado da anterioranálise das injustiças sociais ; e é o significado quehoje em dia se deve atribuir aos esforços quetendem a construir a justiça na terra, nãoencobrindo com isso as estruturas injustas, masdemandando a revisão e a transformação dasmesmas numa dimensão mais universal.

3. O problema do trabalho, chave daquestão social

No meio de todos estes processos – quer dadiagnose da realidade social objectiva, querparalelamente do ensino da Igreja no âmbito dacomplexa e multíplice questão social – o problemado trabalho humano, como é natural, aparece muitasvezes. Ele é, de certo modo, uma componente fixa,tanto da vida : social como do ensino da Igreja.Neste ensino da Igreja, aliás, o dedicar atenção aoproblema remonta a tempos muito para além dosúltimos noventa anos. A doutrina social da Igreja,efectivamente, tem a sua fonte na SagradaEscritura, a começar do Livro do Génesis e, emparticular no Evangelho e nos escritos dostempos apostólicos. Dedicar atenção aosproblemas sociais faz parte desde os inícios do

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ensino da Igreja e da sua concepção do homem eda vida social e, especialmente, da moral socialque foi sendo elaborada segundo as necessidadesdas diversas épocas. Um tal patrimóniotradicional foi depois herdado e desenvolvidopelo ensino dos Sumos Pontífices sobre amoderna « questão social », a partir da EncíclicaRerum Novarum. E no contexto de tal « questão »,o problema do trabalho foi objecto de umacontinua actualização, mantendo sempre a basecristã daquela verdade que podemos chamarperene.

Ao voltarmos no presente documento umavez mais a este problema – sem ter a intenção,aliás, de tocar todos os temas que lhe dizemrespeito – não é tanto para coligir e repetir o quejá se encontra contido nos ensinamentos daIgreja, mas sobretudo para pôr em relevo –possivelmente mais do que foi feito até agora – ofacto de que o trabalho humano é uma chave,provavelmente a chave essencial, de toda a questãosocial, se nós procurarmos vê-la verdadeiramentesob o ponto de vista do bem do homem. E se asolução – ou melhor, a gradual solução – daquestão social, que continuamente se reapresentae se vai tornando cada vez mais complexa, deveser buscada no sentido de « tornar a vida humanamais humana »,8 então por isso mesmo a chave,

8 Conc. Ecum. Vat. II, Const. Past. sobre a Igreja no mundocontemporâneo Gaudium et Spes, 38 : AAS 58 (1966), p. 1055.

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que é o trabalho humano, assume unaimportância fundamental e decisiva.

II. O TRABALHO E O HOMEM

4. No Livro do GénesisA Igreja está convencida de que o trabalho

constitui uma dimensão fundamental daexistência do homem sobre a terra. E ela radica-senesta convicção também ao considerar todo opatrimónio das múltiplas ciências centralizadas nohomem : a antropologia, a paleontologia, ahistória, a sociologia, a psicologia, etc. : todas elasparecem testemunhar de modo irrefutável essarealidade. A Igreja, porém, vai haurir esta suaconvicção sobretudo na fonte da Palavra de Deusrevelada e, por conseguinte, aquilo que para ela éuma convicção da inteligência adquire ao mesmotempo o carácter de uma convicção de fé. A razãoestá em que a Igreja – vale a pena acentuá-lodesde já – acredita no homem. Ela pensa nohomem e encara-o não apenas à luz da experiênciahistórica, não apenas com os subsídios dosmultíplices métodos do conhecimento científico,mas sim e em primeiro lugar à luz da Palavrarevelada de Deus vivo. Ao referir-se ao homemela procura exprimir aqueles desígnios eternos eaqueles destinos transcendentes que Deus vivo,Criador e Redentor, ligou ao homem.

A Igreja vai encontrar logo nas primeiraspáginas do Livro do Génesis a fonte dessa sua

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convicção, de que o trabalho constitui umadimensão fundamental da existência humanasobre a terra. A análise desses textos torna-noscônscios deste facto : de neles – por vezesmediante um modo arcaico de manifestar opensamento – terem sido expressas as verdadesfundamentais pelo que diz respeito ao homem, jáno contexto do mistério da Criação. Estasverdades são as que decidem do homem, desde oprincípio, e que, ao mesmo tempo, traçam asgrandes linhas da sua existência sobre a terra,quer no estado de justiça original, quer mesmodepois da ruptura, determinada pelo pecado, daaliança original do Criador com a criação nohomem. Quando este, criado « à imagem deDeus... varão e mulher »,9 ouve as palavras« Prolificai e multiplicai-vos enchei a terra e submetei-a »,10 mesmo que estas palavras não se refiramdirecta e explicitamente ao trabalho,indirectamente já lho indicam, e isso fora dequaisquer dúvidas, como uma actividade adesempenhar no mundo. Mais ainda, elaspatenteiam a mesma essência mais profunda dotrabalho. O homem é imagem de Deus, além domais, pelo mandato recebido do seu Criador desubmeter, de dominar a terra. No desempenho detal mandato, o homem, todo e qualquer ser

9 Gn 1, 27.10 Gn 1, 28.

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humano, reflecte a própria acção do Criador douniverso.

O trabalho entendido como uma actividade« transitiva », quer dizer, uma actividade de modotal que, iniciando-se no sujeito humano, seendereça para um objecto exterior, pressupõe umespecífico domínio do homem sobre a « terra » ;e, por sua vez, confirma e desenvolve um taldomínio. É claro que sob a designação « terra »,de que fala o texto bíblico, deve entender-seprimeiro que tudo aquela parcela do universovisível em que o homem habita ; por extensão,porém, pode entender-se todo o mundo visível,na medida em que este se encontra dentro do raiode influência do homem e da sua procura deprover às próprias necessidades. A expressão« submeter a terra » tem um alcance imenso. Elaindica todos os recursos que a mesma terra (eindirectamente o mundo visível) tem escondidosem si e que, mediante a actividade consciente dohomem, podem ser descobertas e oportunamenteutilizadas por ele. Assim, tais palavras, postas logoao princípio da Bíblia, jamais cessam de teractualidade. Elas abarcam igualmente todas asépocas passadas da civilização e da economia,bem como toda a realidade contemporânea, emesmo as futuras fases do progresso, as quais, emcerta medida, talvez se estejam já a delinear, masem grande parte permanecem ainda para ohomem algo quase desconhecido e recôndito.

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Se por vezes se fala de períodos de« aceleração » na vida económica e na civilizaçãoda humanidade ou de alguma nação em particular,coligando tais « acelerações » ao progresso daciência e da técnica e, especialmente, àsdescobertas decisivas para a vida sócio-económica, pode ao mesmo tempo dizer-se quenenhuma dessas « acelerações » faz com que fiquesuperado o conteúdo essencial daquilo que foidito naquele antiquíssimo texto bíblico. Ohomem, ao tornar-se – mediante o seu trabalho –cada vez mais senhor da terra, e ao consolidar –ainda mediante o trabalho – o seu domínio sobreo mundo visível, em qualquer hipótese e emtodas as fases deste processo, permanece na linhadaquela disposição original do Criador, a qual semantém necessária e indissoluvelmente ligada aofacto de o homem ter sido criado, como varão emulher, « à imagem de Deus ». E, ao mesmotempo, tal processo é universal : abrange todos oshomens, todas as gerações, todas as fases doprogresso económico e cultural e, simultâneamente,é um processo que se actua em todos e cada um doshomens, em todos os sujeitos humanosconscientes. Todos e cada um sãocontemporâneamente por ele abarcados. Todos ecada um, em medida adequada e num númeroincalculável de modos, tomam parte em talprocesso gigantesco, mediante o qual o homem« submete a terra » com o seu trabalho.

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5. O trabalho em sentido objectivo : atécnica

Esta universalidade e, ao mesmo tempo, estamultiplicidade de tal processo de « submeter aterra », projectam luz sobre o trabalho humano,uma vez que o domínio do homem sobre a terrase realiza no trabalho e mediante o trabalho.Assim, vem ao de cima o significado do mesmotrabalho em sentido objectivo, o qual tem depois a suaexpressão nas várias épocas da cultura e dacivilização. O homem domina a terra quer pelofacto de domesticar os animais e tratar deles,granjeando assim o alimento e o vestuário de queprecisa, quer pelo facto de poder extrair da terra edos mares diversos recursos naturais. Mas ohomem, além disso, « submete a terra » muitomais quando começa por cultivá-la e,sucessivamente, reelabora os produtos da mesma,adaptando-os às suas próprias necessidades. Aagricultura constitui assim um campo primário daactividade económica e, mediante o trabalhohumano, um factor indispensável da produção. Aindústria, por sua vez, consistirá sempre noconjugar as riquezas da terra – quer se trate dosrecursos vivos da natureza, quer dos produtos daagricultura, quer, ainda, dos recursos minerais ouquímicos – com o trabalho do homem, tanto otrabalho físico como o intelectual. Isto é válido,num certo sentido, também no campo da

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chamada indústria dos serviços e no campo dainvestigação pura ou aplicada.

Hoje em dia na indústria e na agricultura aactividade do homem, em muitos casos, deixoude ser um trabalho prevalentemente manual, umavez que os esforços das mãos e dos músculospassaram a ser ajudados pela acção de máquinas ede mecanismos cada vez mais aperfeiçoados.

Não somente na indústria, mas também naagricultura, nós somos testemunhas dastransformações que foram possibilitadas pelogradual e contínuo progresso da ciência e datécnica. E isto, no seu conjunto, tornou-sehistoricamente causa também de grandes viragensda civilização, a partir das origens da « eraindustrial », passando pelas sucessivas fases dedesenvolvimento graças às novas técnicas, até sechegar às da electrónica ou dos« microprocessores » nos últimos anos.

Se pode parecer que no processo industrial éa máquina que « trabalha », enquanto o homemsó cuida nela, tornando possível e mantendo dediversas maneiras o seu funcionamento, tambémé verdade que, precisamente por isso, odesenvolvimento industrial serve de base para serepropor de um modo novo o problema dotrabalho humano. Tanto a primeiraindustrialização, que fez com que surgisse achamada questão operária, como as sucessivasmudanças industriais e pós-industriais

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demonstram claramente que, mesmo na época do« trabalho » cada dia mais mecanizado, o sujeitopróprio do trabalho continua a ser o homem.

O desenvolvimento da indústria e dosdiversos sectores com ela ligados, até se chegar àsmais modernas tecnologias da electrónica,especialmente no campo da miniaturização, dainformática, da telemática e outros, indica o papelimenso que, na interacção do sujeito e do objectodo trabalho (no sentido mais amplo destapalavra), assume precisamente aquela aliada domesmo trabalho gerada pelo pensamentohumano, que é a técnica. Neste caso, entendidanão como uma capacidade ou aptidão para otrabalho, mas sim como um conjunto de meios deque o homem se serve no próprio trabalho, atécnica é indubitavelmente uma aliada do homem.Ela facilita-lhe o trabalho, aperfeiçoa-o, acelera-oe multiplica-o ; favorece o progresso em funçãode um aumento da quantidade dos produtos dotrabalho e aperfeiçoa mesmo a qualidade demuitos deles. Mas é um facto, por outro lado, quenalguns casos a técnica de aliada pode tambémtransformar-se quase em adversária do homem,como sucede : quando a mecanização do trabalho« suplanta » o mesmo homem, tirando-lhe todo ogosto pessoal e o estímulo para a criatividade epara a responsabilidade ; igualmente, quando tirao emprego a muitos trabalhadores que antesestavam empregados ; ou ainda quando, mediante

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a exaltação da máquina, reduz o homem a serescravo da mesma.

Assim, se as palavras bíblicas « submetei aterra », dirigidas ao homem desde o princípio,forem entendidas no contexto de toda a épocamoderna, industrial e pós-industrial, elasencerram em si indubitavelmente também umarelação com a técnica, com aquele mundo demecanismos e de máquinas, que é fruto de umtrabalho da inteligência humana e a confirmaçãohistórica do domínio do homem sobre a natureza.

A época recente da história da humanidade, eespecialmente a de algumas sociedades, trouxeconsigo uma justa afirmação da técnica como umcoeficiente fundamental de progressoeconómico ; ao mesmo tempo, porém,juntamente com tal afirmação surgiram econtinuamente estão a surgir as interrogaçõesessenciais respeitantes ao trabalho humano emrelação com o seu sujeito, que é precisamente ohomem. Tais interrogações contêm em si umacarga particular de conteúdos e de tensões de carácterético e ético-social. E por isso elas constituem umdesafio contínuo para muitas e diversasinstituições, para os Estados e os Governos, bemcomo para os sistemas e as organizaçõesinternacionais ; e constituem um desafio tambémpara a Igreja.

6. O trabalho no sentido subjectivo : ohomem-sujeito do trabalho

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Para continuar a nossa análise do trabalho emaderência às palavras da Bíblia, em virtude dasquais o homem tem o dever de submeter a terra,é preciso concentrarmos agora a nossa atenção notrabalho no sentido subjectivo ; e isto muito mais doque fizemos pelo que se refere ao significadoobjectivo do trabalho, porquanto tocámos sócom brevidade aquela vasta problemática, que éperfeita e pormenorizadamente conhecida dosestudiosos nos vários campos e também dosmesmos homens do trabalho, segundo as suasespecializações. As palavras do Livro do Génesis,a que nos referimos nesta nossa análise, falam demaneira indirecta do trabalho no sentidoobjectivo ; e de modo análogo falam também dosujeito do trabalho ; no entanto, aquilo que elasdizem é assaz eloquente e carregado de umgrande significado.

O homem deve submeter a terra, devedominá-la, porque, como « imagem de Deus », éuma pessoa ; isto é, um ser dotado desubjectividade, capaz de agir de maneiraprogramada e racional, capaz de decidir de simesmo e tendente a realizar-se a si mesmo. Écomo pessoa, pois, que o homem é sujeito do trabalho . Écomo pessoa que ele trabalha e realiza diversasacções que fazem parte do processo do trabalho ;estas, independentemente do seu conteúdoobjectivo, devem servir todas para a realização dasua humanidade e para o cumprimento da

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vocação a ser pessoa, que lhe é própria em razãoda sua mesma humanidade. As principaisverdades sobre este tema foram recordadasultimamente pelo II Concílio do Vaticano, naConstituição Gaudium et Spes, especialmente nocapítulo primeiro dedicado à vocação do homem.

E assim aquele « domínio » de que fala otexto bíblico, sobre o qual estamos a meditaragora, não se refere só à dimensão objectiva dotrabalho, mas introduz-nos ao mesmo tempo nacompreensão da sua dimensão subjectiva. Otrabalho, entendido como processo, mediante oqual o homem e o género humano submetem aterra, não corresponderá a este conceitofundamental da Bíblia senão enquanto, em todoesse processo, o homem ao mesmo tempo semanifestar e se confirmar como aquele que« domina ». Este domínio, num certo sentido,refere-se à dimensão subjectiva ainda mais do queà objectiva : esta dimensão condiciona a mesmanatureza ética do trabalho. Não há dúvidanenhuma, realmente, de que o trabalho humanotem um seu valor ético, o qual, sem meiostermos, permanece directamente ligado ao factode aquele que o realiza ser uma pessoa, um sujeitoconsciente e livre, isto é, um sujeito que decide desi mesmo.

Esta verdade, que constitui num certosentido a medula fundamental e perene dadoutrina cristã sobre o trabalho humano, teve e

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continua a ter um significado primordial para aformulação dos importantes problemas sociais aolongo de épocas inteiras.

A Idade Antiga introduziu entre os homensuma própria diferenciação típica em categorias,segundo o tipo de trabalho que realizavam. Otrabalho que requeria do trabalhador o empregodas forças físicas, o trabalho dos músculos e dasmãos, era considerado indigno dos homens livres,e por isso eram destinados à sua execução osescravos. O Cristianismo, ampliando algunsaspectos já próprios do Antigo Testamento, nesteponto operou uma transformação fundamentalde conceitos, partindo do conteúdo global damensagem evangélica, e sobretudo do facto deAquele que, sendo Deus, se tornou semelhante anós em tudo,11 ter passado a maior parte dos anosda vida sobre a terra junto de um banco decarpinteiro, dedicando-se ao trabalho manual. Estacircunstância constitui por si mesma o maiseloquente « evangelho do trabalho » ; aí se tornapatente que o fundamento para determinar ovalor do trabalho humano não é em primeirolugar o género de trabalho que se realiza, mas ofacto de aquele que o executa ser uma pessoa. Asfontes da dignidade do trabalho devem serprocuradas sobretudo não na sua dimensãoobjectiva, mas sim na sua dimensão subjectiva.

11 Cfr. Heb 2, 17 ; Flp 2, 5-8.

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Em tal concepção quase desaparece opróprio fundamento da antiga diferenciação doshomens em grupos, segundo o género detrabalho que eles faziam. Isto não quer dizer queo trabalho humano não possa e não deva ser dealgum modo valorizado e qualificado de umponto de vista objectivo. Isto quer dizer somenteque o primeiro fundamento do valor do trabalho é omesmo homem, o seu sujeito. E relaciona-se comisto imediatamente uma conclusão muitoimportante de natureza ética : embora sejaverdade que o homem está destinado e échamado ao trabalho, contudo, antes de maisnada o trabalho é « para o homem » e não ohomem « para o trabalho ». E por esta conclusãose chega a reconhecer justamente a preeminênciado significado subjectivo do trabalho sobre o seusignificado objectivo. Partindo deste modo deentender as coisas e supondo que diversostrabalhos realizados pelos homens podem ter ummaior ou menor valor objectivo, procuramostodavia pôr em evidência que cada um deles semede sobretudo pelo padrão da dignidade do mesmosujeito do trabalho, isto é, da pessoa, do homem queo executa. Por outro lado, independentemente dotrabalho que faz cada um dos homens e supondoque ele constitui uma finalidade – por vezesmuito absorvente – do seu agir, tal finalidade nãopossui por si mesma um significado definitivo.De facto, em última análise, a finalidade do trabalho,

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de todo e qualquer trabalho realizado pelohomem – ainda que seja o trabalho mais humildede um « serviço » e o mais monótono na escalado modo comum de apreciação e até o maismarginalizador – permanece sempre o mesmohomem.

7. Uma ameaça à hierarquia dos valoresEstas afirmações basilares sobre o trabalho,

precisamente, resultaram sempre das riquezas daverdade cristã, em particular da mesmamensagem do « evangelho do trabalho », criandoo fundamento do novo modo de pensar, de julgare de agir dos homens. Na época moderna, desdeos inícios da era industrial, a verdade cristã sobreo trabalho teve de se contrapor às váriascorrentes do pensamento materialista e economicista.

Para alguns fautores de tais ideias, o trabalhoera entendido e tratado como uma espécie de« mercadoria », que o trabalhador – especialmenteo operário da indústria – vendia ao dador detrabalho, que era ao mesmo tempo possessor docapital, isto é, do conjunto dos instrumentos detrabalho e dos meios que tornam possível aprodução. Este modo de conceber o trabalhoencontrava-se especialmente difundido naprimeira metade do século XIX. Em seguida, asformulações explícitas deste género quasedesapareceram, cedendo o lugar a um modo maishumano de pensar e de avaliar o trabalho. Ainteracção do homem do trabalho e do conjunto

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dos instrumentos e dos meios de produção deuazo a desenvolverem-se diversas formas decapitalismo – paralelamente a diversas formas decolectivismo – nas quais se inseriram outroselementos, na sequência de novas circunstânciasconcretas, da acção das associações detrabalhadores e dos poderes públicos, e daaparição de grandes empresas transnacionais.Apesar disso, o perigo de tratar o trabalho comouma « mercadoria sui generis » ou como uma« força » anónima necessária para a produção(fala-se mesmo de « força-trabalho ») continua aexistir ainda nos dias de hoje, especialmente quando amaneira de encarar a problemática económica écaracterizada pela adesão às premissas do« economismo » materialista.

Para este modo de pensar e de julgar há umaocasião sistemática e, num certo sentido, atémesmo um estímulo, que são constituídos peloacelerado processo de desenvolvimento dacivilização unilateralmente materialista, na qual sedá importância primeiro que tudo à dimensãoobjectiva do trabalho, enquanto a dimensãosubjectiva – tudo aquilo que está em relaçãoindirecta ou directa com o próprio sujeito dotrabalho – fica num plano secundário. Em todosos casos deste género, em todas as situaçõessociais deste tipo, gera-se uma confusão, ou atémesmo uma inversão, daquela ordem estabelecidadesde o princípio pelas palavras do Livro do

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Génesis : o homem passa então a ser tratado comoinstrumento de produção ;12 enquanto que ele – ele sópor si, independentemente do trabalho que realiza– deveria ser tratado como seu sujeito eficiente,como seu verdadeiro artífice e criador. Éprecisamente esta inversão da ordem,prescindindo do programa ou da denominaçãosob cujos auspícios ela se gera, que mereceria –no sentido indicado mais amplamente em seguida– o nome de « capitalismo ». Como é sabido, ocapitalismo tem o seu significado histórico bemdefinido, enquanto sistema, e sistema económico-social, em contraposição ao « socialismo » ou« comunismo ». No entanto, à luz da análise darealidade fundamental de todo o processoeconómico e, primeiro que tudo, das estruturasde produção – qual é, justamente, o trabalho –importa reconhecer que o erro do primitivocapitalismo pode repetir-se onde quer que ohomem seja tratado, de alguma forma, da mesmamaneira que todo o conjunto dos meios materiaisde produção, como um instrumento e nãosegundo a verdadeira dignidade do seu trabalho –ou seja, como sujeito e autor e, por isso mesmo,como verdadeira finalidade de todo o processo deprodução.

Sendo assim, compreende-se que a análise dotrabalho humano feita à luz daquelas palavras quedizem respeito ao « domínio » do homem sobre a12 Cfr. Pio XI, Carta Encíclica Quadragesimo Anno : AAS 23 (1931) p. 221.

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terra, se insira mesmo ao centro da problemáticaético-social. Uma tal concepção deveria tambémter um lugar central em toda a esfera da política social eeconómica, quer à escala dos diversos países, quer auma escala mais ampla, das relaçõesinternacionais e intercontinentais, com referênciaem particular às tensões que se esboçam nomundo, não só centradas no eixo Oriente-Ocidente, mas também no outro eixo Norte-Sul.O Papa João XXIII, num primeiro momento,com a sua Encíclica Mater et Magistra, e o PapaPaulo VI, depois, com a Encíclica PopulorumProgressio, dedicaram uma decidida atenção a taisdimensões dos problemas éticos e sociaiscontemporâneos.

8. Solidariedade dos homens do trabalhoAo tratar-se do trabalho humano, encarado

pela dimensão fundamental do seu sujeito, isto é,do homem-pessoa que executa esse trabalho,partindo deste ponto de vista deve fazer-se umaapreciação pelo menos sumária dos processos quese verificaram, ao longo dos noventa anostranscorridos após a Encíclica Rerum Novarum, emrelação com a dimensão subjectiva do trabalho.Com efeito, embora o sujeito do trabalho sejasempre o mesmo, isto é, o homem, deram-setodavia notáveis modificações quanto ao aspectoobjectivo do mesmo trabalho. E embora se possadizer que o trabalho, em razão do seu sujeito, é um(um e, de cada vez que é feito, irrepetível)

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todavia, considerando os seus sentidos objectivos,tem de se reconhecer que existem muitos trabalhos :um grande número de trabalhos diversos. Odesenvolvimento da civilização humanaproporciona neste campo um enriquecimentocontínuo. Ao mesmo tempo, porém, não se podedeixar de notar que, no processar-se de um taldesenvolvimento, não somente aparecem novasformas de trabalho humano, mas há tambémoutras que desaparecem. Admitindo muitoembora, em princípio, que isto é um fenómenonormal, importa, no entanto, ver bem se nele senão intrometem, e em que medida, certasirregularidades que podem ser perigosas, pormotivos ético-sociais.

Foi precisamente por causa de uma dessasanomalias com grande alcance que nasceu, no séculopassado, a chamada questão operária, definidapor vezes como « questão proletária ». Talquestão – bem como os problemas com elaligados – deram origem a uma justa reacção sociale fizeram com que surgisse e, poder-se-ia mesmodizer, com que irrompesse um grande movimentode solidariedade entre os homens do trabalho e,em primeiro lugar, entre os trabalhadores daindústria. O apelo à solidariedade e à acçãocomum lançado aos homens do trabalho –sobretudo aos do trabalho sectorial, monótono edespersonalizante nas grandes instalaçõesindustriais, quando a máquina tende a dominar

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sobre o homem – tinha um seu valor importantee uma eloquência própria, sob o ponto de vista daética social. Era a reacção contra a degradação dohomem como sujeito do trabalho e contra a exploraçãoinaudita que a acompanhava, no campo doslucros, das condições de trabalho e de previdênciapara a pessoa do trabalhador. Uma tal reacçãouniu o mundo operário numa convergênciacomunitária, caracterizada por uma grandesolidariedade.

Na esteira da Encíclica Rerum Novarum e dosnumerosos documentos do Magistério da Igrejaque se lhe seguiram, francamente tem de sereconhecer que se justificava, sob o ponto de vista damoral social, a reacção contra o sistema de injustiçae de danos que bradava ao Céu vingança13 e quepesava sobre o homem do trabalho nesse períodode rápida industrialização. Este estado de coisasera favorecido pelo sistema sócio-político liberalque, segundo as suas premissas de« economismo », reforçava e assegurava ainiciativa económica somente dos possuidores docapital, mas não se preocupava suficientementecom os direitos do homem do trabalho,afirmando que o trabalho humano é apenas uminstrumento de produção, e que o capital é ofundamento, coeficiente e a finalidade daprodução.

13 Dt 24, 15 ; Jz 5, 4 ; e também Gn 4 10.

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Desde então, a solidariedade dos homens dotrabalho e, simultaneamente, uma tomada deconsciência mais clara e mais compromissóriapelo que respeita aos direitos dos trabalhadoresda parte dos outros, produziu em muitos casosmudanças profundas. Foram excogitados diversossistemas novos. Desenvolveram-se diversasformas de neo-capitalismo ou de colectivismo. E,não raro, os homens do trabalho passam a ter apossibilidade de participar e participamefectivamente na gestão e no controlo daprodutividade das empresas. Por meio deassociações apropriadas, eles passam a terinfluência no que respeita às condições detrabalho e de remuneração, bem como quanto àlegislação social. Mas, ao mesmo tempo, diversossistemas fundados em ideologias ou no poder,como também novas relações que foram surgindonos vários níveis da convivência humana,deixaram persistir injustiças flagrantes ou criaram outrasnovas. A nível mundial, o desenvolvimento dacivilização e das comunicações tornou possíveluma diagnose mais completa das condições devida e de trabalho do homem no mundo inteiro,mas tornou também patentes outras formas deinjustiça, bem mais amplas ainda do que aquelasque no século passado haviam estimulado a uniãodos homens do trabalho para uma particularsolidariedade no mundo operário. E isto assim,nos países em que já se realizou um certo

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processo de revolução industrial ; e assimigualmente nos países onde o local de trabalho apredominar continua a ser o da cultura da terra oudoutras ocupações congéneres.

Movimentos de solidariedade no campo dotrabalho – de uma solidariedade que não há-denunca ser fechamento para o diálogo e para acolaboração com os demais – podem sernecessários, mesmo pelo que se refere àscondições de grupos sociais que anteriormentenão se achavam compreendidos entre estesmovimentos, mas que vão sofrendo no meio dossistemas sociais e das condições de vida quemudam uma efectiva « proletarização », ou mesmoque se encontram realmente já numa condição deproletariado que, embora não seja chamada aindacom este nome, de facto é tal que o merece.Podem encontrar-se nesta situação algumascategorias ou grupos da « intelligentzia » dotrabalho, sobretudo quando, simultaneamentecom um acesso cada vez mais ampliado àinstrução e com o número sempre crescente daspessoas que alcançaram diplomas pela suapreparação cultural, se verifica uma diminuição deprocura do trabalho destas pessoas. Um taldesemprego dos intelectuais sucede ou aumenta :quando a instrução acessível não está orientadapara os tipos de emprego ou de serviços que sãorequeridos pelas verdadeiras necessidades dasociedade ; ou quando o trabalho para o qual se

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exige a instrução, pelo menos profissional, émenos procurado e menos bem pago do que umtrabalho braçal. É evidente que a instrução, em simesma, constitui sempre um valor e umenriquecimento importante da pessoa humana ;contudo, independentemente deste facto,continuam a ser possíveis certos processos de« proletarização ».

Assim, é necessário prosseguir a interrogar-se sobre osujeito do trabalho e sobre as condições da suaexistência. Para se realizar a justiça social nasdiversas partes do mundo, nos vários países e nasrelações entre eles, é preciso que haja semprenovos movimentos de solidariedade dos homens dotrabalho e de solidariedade com os homens do trabalho.Uma tal solidariedade deverá fazer sentir a suapresença onde a exijam a degradação social dohomem-sujeito do trabalho, a exploração dostrabalhadores e as zonas crescentes de miséria emesmo de fome. A Igreja acha-se vivamenteempenhada nesta causa, porque a considera comosua missão, seu serviço e como umacomprovação da sua fidelidade a Cristo, paraassim ser verdadeiramente a « Igreja dos pobres ».E os « pobres » aparecem sob variados aspectos ;aparecem em diversos lugares e em diferentesmomentos ; aparecem, em muitos casos, comoum resultado da violação da dignidade do trabalhohumano : e isso, quer porque as possibilidades dotrabalho humano são limitadas – e há a chaga do

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desemprego – quer porque são depreciados ovalor do mesmo trabalho e os direitos que delederivam, especialmente o direito ao justo salário eà segurança da pessoa do trabalhador e da suafamília.

9. Trabalho e dignidade da pessoaPermanecendo ainda na perspectiva do

homem como sujeito do trabalho, é convenientetocar, ao menos de maneira sintética, algunsproblemas que definem mais de perto a dignidade dotrabalho humano, porque isso irá permitircaracterizar mais plenamente o seu valor moralespecífico. E importa fazê-lo tendo sempre diantedos olhos a sobredita vocação bíblica para« submeter a terra »,14 na qual se expressou avontade do Criador, querendo que o trabalhotornasse possível ao homem alcançar um tal« domínio » que lhe é próprio no mundo visível.

A intenção fundamental e primordial deDeus quanto ao homem, que Ele « criou... à Suasemelhança, à Sua imagem »,15 não foi retratadanem cancelada, mesmo quando o homem, depoisde ter infringido a aliança original com Deus,ouviu estas palavras : « Comerás o pão com osuor da tua fronte ».16 Tais palavras referem-seàquela fadiga, por vezes pesada, que a partir de entãopassou a acompanhar o trabalho humano ; no

14 Cfr. Gn 1, 28.15 cfr. Gn 1, 26-27.16 Gn 3, 19.

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entanto, elas não mudam o facto de o mesmotrabalho ser a via pela qual o homem chegará arealizar o « domínio » que lhe é próprio no mundovisível, « submetendo » a terra. Esta fadiga é umfacto universalmente conhecido, porqueuniversalmente experimentado. Sabem-no oshomens que fazem um trabalho braçal, executadopor vezes em condições excepcionalmentedifíceis ; sabem-no os que labutam na agricultura,os quais empregam longas jornadas no cultivar aterra, que por vezes apenas « produz espinhos eabrolhos » ;17 como o sabem também aqueles quetrabalham nas minas e nas pedreiras, e igualmenteos operários siderúrgicos junto dos seus altos-fornos, e os homens que exercem a actividade nosector da construção civil e em obras deconstrução em geral, frequentemente em perigode vida ou de invalidez. Sabem-no bem, ainda, oshomens que trabalham agarrados ao « banco » dotrabalho intelectual, sabem-no os cientistas,sabem-no os homens sobre cujos ombros pesa agrave responsabilidade de decisões destinadas ater vasta ressonância no plano social. Sabem-noos médicos e os enfermeiros que velam de dia ede noite junto dos doentes. Sabem-no asmulheres que, por vezes sem um devidoreconhecimento por parte da sociedade e atémesmo nalguns casos dos próprios familiares,suportam dia-a-dia as canseiras e a17 Heb 6, 8 ; cfr. Gn 3, 18.

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responsabilidade do arranjo da casa e da educaçãodos filhos. Sim, sabem-no bem todos os homens dotrabalho e, uma vez que o trabalho éverdadeiramente uma vocação universal, sabem-no todos os homens sem excepção.

E no entanto, com toda esta fadiga – e talvez,num certo sentido, por causa dela – o trabalho éum bem do homem. E se este bem traz em si amarca de um bonum arduum – « bem árduo » –para usar a terminologia de Santo Tomás deAquino,18 isso não impede que, como tal ele sejaum bem do homem. E mais, é não só um bem« útil » ou de que se pode usufruir, mas é um bem« digno », ou seja, que corresponde à dignidadedo homem, um bem que exprime esta dignidade eque a aumenta. Querendo determinar melhor osentido ético do trabalho, é indispensável terdiante dos olhos antes de mais nada esta verdade.O trabalho é um bem do homem – é um bem dasua humanidade – porque, mediante o trabalho, ohomem não somente transforma a natureza,adaptando-a às suas próprias necessidades, mastambém se realiza a si mesmo como homem e até,num certo sentido, « se torna mais homem ».

Sem esta consideração, não se podecompreender o significado da virtude dalaboriosidade, mais exactamente não se podecompreender por que é que a laboriosidadehaveria de ser uma virtude ; efectivamente, a18 Cfr. Summa Th., I-II, q. 40, a. 1 c ; I-II, q. 34, a. 2, ad 1.

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virtude, como aptidão moral, é algo que faculta aohomem tornar-se bom como homem.19 Este factonão muda em nada a nossa justa preocupação porevitar que no trabalho, mediante o qual a matéria énobilitada, o próprio homem não venha a sofrer umadiminuição da sua dignidade.20 É sabido, ainda, queé possível usar de muitas maneiras do trabalhocontra o homem, que se pode mesmo punir ohomem com o recurso ao sistema dos trabalhosforçados nos lager (campos de concentração), quese pode fazer do trabalho um meio para aopressão do homem e que, enfim, se podeexplorar, de diferentes maneiras, o trabalhohumano, ou seja o homem do trabalho. Tudo istodepõe a favor da obrigação moral de unir alaboriosidade como virtude com a ordem social dotrabalho, o que há-de permitir ao homem « tornar-se mais homem » no trabalho, e não já degradar-se por causa do trabalho, desgastando não apenasas forças físicas (o que, pelo menos até certoponto, é inevitável), mas sobretudomenoscabando a dignidade e subjectividade quelhe são próprias.

10. Trabalho e sociedade : família, naçãoConfirmada deste modo a dimensão pessoal

do trabalho humano, deve-se passar depois para asegunda esfera de valores, que com ele anda

19 Cfr. Summa Th., I-II, q. 40, a. 1 c ; I-II, q. 34, a. 2, ad 1.20 Cfr. Pio XI, Carta Encíclica Quadragesimo Anno : AAS 23 (1931) p. 221-222.

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necessariamente unida. O trabalho constitui ofundamento sobre o qual se edifica a vida familiar,que é um direito fundamental e uma vocação dohomem. Estas duas esferas de valores – umaconjunta ao trabalho e a outra derivante docarácter familiar da vida humana – devem unir-seentre si e compenetrar-se de um modo correcto.O trabalho, de alguma maneira, é a condição quetorna possível a fundação de uma família, umavez que a família exige os meios de subsistênciaque o homem obtém normalmente mediante otrabalho. Assim, trabalho e laboriosidadecondicionam também o processar-se da educação nafamília, precisamente pela razão de que cada um« se torna homem » mediante o trabalho, entreoutras coisas, e que o facto de se tornar homemexprime exactamente a finalidade principal detodo o processo educativo. Como é evidente,entram aqui em jogo, num certo sentido, doisaspectos do trabalho : o que faz dele algo quepermite a vida e a manutenção da família, e aqueleoutro mediante o qual se realizam as finalidadesda mesma família, especialmente a educação. Nãoobstante a distinção, estes dois aspectos dotrabalho estão ligados entre si e completam-se emvários pontos.

Deve-se recordar e afirmar que, numa visãoglobal, a família constitui um dos maisimportantes termos de referência, segundo osquais tem de ser formada a ordem sócio-ética do

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trabalho humano. A doutrina da Igreja dedicousempre especial atenção a este problema e seránecessário voltar ainda a ele no presentedocumento. Com efeito, a família é, ao mesmotempo, uma comunidade tornada possível pelo trabalhoe a primeira escola interna de trabalho para todos ecada um dos homens.

A terceira esfera de valores que se apresenta,na perspectiva aqui mantida – a perspectiva dosujeito do trabalho – abarca aquela grande sociedadede que o homem faz parte, em virtude de laçosculturais e históricos particulares. Tal sociedade –mesmo quando não tenha ainda assumido aforma completa de uma nação – é não só agrande « educadora » de cada um dos homens, sebem que indirectamente (pois cada pessoa recebena família os conteúdos e os valores queconstituem, no seu conjunto, a cultura de umadeterminada nação), mas é também uma grandeencarnação histórica e social do trabalho de todasas gerações. Tudo isto faz com que o homemligue a sua identidade humana mais profunda aofacto de pertencer a uma nação, e encare o seutrabalho também como algo que irá aumentar obem comum procurado juntamente com os seuscompatriotas, dando-se conta assim de que, poreste meio, o trabalho serve para multiplicar opatrimónio da inteira família humana, de todos oshomens que vivem no mundo.

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Estas três esferas conservam de modopermanente a sua importância para o trabalho humanovisto na sua dimensão subjectiva. E estadimensão, ou seja, a concreta realidade dohomem do trabalho, tem precedência sobre adimensão objectiva. Na dimensão subjectiva éque se realiza, antes de mais nada, aquele« domínio » sobre o mundo da natureza, que ohomem é sempre chamado a exercer, desde oprincípio, segundo as palavras do Livro doGénesis. O próprio processo de « submeter aterra », quer dizer, o trabalho sob o aspecto datécnica, é caracterizado no decorrer da história, eespecialmente nestes últimos séculos, por umimenso desenvolvimento dos meios produtivos àdisposição ; e isso é um fenómeno vantajoso epositivo, contanto que a dimensão objectiva dotrabalho não tome o predomínio sobre adimensão subjectiva, tirando ao homem oudiminuindo a sua dignidade e os seus direitosinalienáveis.

III. O CONFLITO ENTRE TRABALHO E CAPITAL NA FASE ACTUAL DA HISTÓRIA

11. Dimensões de tal conflitoO esboço da problemática fundamental do

trabalho, conforme foi delineado acima, do modoque se refere aos primeiros textos bíblicos, assimconstitui, num certo sentido, a estrutura basilardo ensino da Igreja, que se mantém inalterado

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através dos séculos, no contexto das diversasexperiências da história. Todavia, sobre o pano defundo das experiências que precederam apublicação da Encíclica Rerum Novarum e daquelasque a seguiram, este ensino adquire umaparticular possibilidade de expressão e umcarácter de viva actualidade. O trabalho apareceem tal análise como uma grande realidade, queexerce uma influência fundamental sobre aformação, no sentido humano, do mundoconfiado ao homem pelo Criador e sobre a suahumanização ; ele é também uma realidadeintimamente ligada ao homem, como ao seusujeito próprio, e à sua maneira racional de agir.Esta realidade, no curso normal das coisas,preenche a vida humana e tem uma forteincidência sobre o seu valor e sobre o seu sentido.Muito embora unido com a fadiga e o esforço, otrabalho não cessa de ser um bem, de tal sorteque o homem se desenvolve mediante o amorpelo trabalho. Este carácter do trabalho humano,totalmente positivo e criador, educativo e meritório, deveconstituir o fundamento das avaliações e dasdecisões que nos dias de hoje se tomam a seurespeito, mesmo as que têm referência aos direitossubjectivos do homem, como o atestam as Declaraçõesinternacionais e igualmente os múltiplos Códigosdo trabalho, elaborados tanto pelas competentesinstituições legislativas dos diversos países, comopelas organizações que consagram a sua

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actividade social ou científico-social àproblemática do trabalho. Há um organismo quepromove a nível internacional tais iniciativas : é aOrganização Internacional do Trabalho, a mais antigadas Instituições especializadas da Organização dasNações Unidas.

Mais adiante, no seguimento das presentesconsiderações, tenho intenção de voltar demaneira mais pormenorizada a estes problemasimportantes, recordando então ao menos oselementos fundamentais da doutrina da Igrejasobre este tema. Antes, porém, é convenientetratar com brevidade de um círculo muitoimportante de problemas, rodeado pelos quais sefoi formando tal ensino da Igreja na última fase,isto é, naquele período cujos inícios se podemsituar, num certo sentido simbólico, no ano deque data a publicação da Encíclica RerumNovarum.

É sabido que, durante todo este período, oqual aliás ainda não terminou, o problema dotrabalho foi sendo posto no clima do grandeconflito que, na época do desenvolvimentoindustrial e em ligação com ele, se manifestouentre o « mundo do capital » e o « mundo dotrabalho » ; ou seja, entre o grupo restrito, masmuito influente, dos patrões e empresários, dosproprietários ou detentores dos meios deprodução, e a multidão mais numerosa da genteque se achava privada de tais meios e que

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participava no processo de produção, mas issoexclusivamente mediante o seu trabalho. Talconflito foi originado pelo facto de que osoperários punham as suas forças à disposição dogrupo dos patrões e empresários, e de que este,guiado pelo princípio do maior lucro daprodução, procurava manter o mais baixopossível o salário para o trabalho executado pelosoperários. A isto há que juntar ainda outroselementos de exploração, ligados com a falta desegurança no trabalho e também com a ausênciade garantias quanto às condições de saúde e devida dos mesmos operários e das suas famílias.

Este conflito, interpretado por alguns comoconflito sócio-económico com carácter de classe,encontrou a sua expressão no conflito ideológicoentre o liberalismo, entendido como ideologia docapitalismo, e o marxismo, entendido comoideologia do socialismo científico e docomunismo, que pretende intervir na qualidadede porta-voz da classe operária, de todo oproletariado mundial. Deste modo, o conflito realque existia entre o mundo do trabalho e o mundodo capital, transformou-se na luta de classeprogramada, conduzida com métodos não apenasideológicos, mas também e sobretudo políticos. Éconhecida a história deste conflito, como sãoconhecidas as exigências de uma e de outra parte.O programa marxista, baseado na filosofia deMarx e de Engels, vê na luta de classe o único

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meio para eliminar as injustiças de classeexistentes na sociedade, e eliminar as mesmasclasses. A realização deste programa propõe-secomeçar pela colectivização dos meios de produção, afim de que, pela transferência deste meios dasmãos dos privados para a colectividade, otrabalho humano seja preservado da exploração.

É para isto, pois, que tende a luta, conduzidacom métodos não só ideológicos, mas tambémpolíticos. Os agrupamentos inspirados pelaideologia marxista como partidos políticos, emconformidade com o princípio da « ditadura doproletariado » e exercitando influências dediversos tipos, incluindo a pressão revolucionária,tendem para o monopólio do poder em cada uma dassociedades, a fim de introduzir nelas, mediante aeliminação da propriedade privada dos meios deprodução, o sistema colectivista. Segundo osprincipais ideólogos e chefes deste vastomovimento internacional, a finalidade de talprograma de acção é a de levar a cabo a revoluçãosocial e introduzir no mundo inteiro o socialismoe, por fim, o sistema comunista.

Ao entrar rapidamente neste importantíssimocírculo de problemas, que constituem não apenasuma teoria, mas sim o tecido da vida sócio-económica, política e internacional da nossaépoca não se pode e nem sequer é necessário entrarem pormenores, porque tais problemas sãoconhecidos, quer graças a uma abundante

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literatura, quer a partir das experiências práticas.Em lugar disso, deve-se remontar do seucontexto até ao problema fundamental dotrabalho humano, ao qual são especialmentededicadas as considerações contidas no presentedocumento. Com efeito, é evidente que esteproblema capital, encarado sempre do ponto devista do homem – problema que constitui umadas dimensões fundamentais da sua existênciaterrena e da sua vocação – não pode ser explicadose não for tido em conta o contexto global darealidade contemporânea.

12. Prioridade do trabalhoDiante da realidade dos dias de hoje, em cuja

estrutura se encontram marcas bem profundas detantos conflitos, causados pelo homem, e na qualos meios técnicos – fruto do trabalho humano –desempenham um papel de primeira importância(pense-se ainda, aqui neste ponto, na perspectivade um cataclismo mundial na eventualidade deuma guerra nuclear, cujas possibilidades dedestruição seriam quase inimagináveis), deverecordar-se, antes de mais nada, um princípioensinado sempre pela Igreja. É o princípio daprioridade do « trabalho » em confronto com o « capital ».Este princípio diz respeito directamente aopróprio processo de produção, relativamente aoqual o trabalho é sempre uma causa eficienteprimária, enquanto que o « capital », sendo oconjunto dos meios de produção, permanece

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apenas um instrumento, ou causa instrumental. Esteprincípio é uma verdade evidente, que resulta detoda a experiência histórica do homem.

Quando lemos no primeiro capítulo da Bíbliaque o homem tem o dever de « submeter aterra », nós ficamos a saber que estas palavras sereferem a todos os recursos que o mundo visívelencerra em si e que estão postos à disposição dohomem. Tais recursos, no entanto, não podemservir ao homem senão mediante o trabalho. E com otrabalho permanece igualmente ligado, desde oprincípio, o problema da propriedade. Comefeito, para fazer com que sirvam para si e para osdemais os recursos escondidos na natureza, ohomem tem como único meio o seu trabalho ; epara fazer com que frutifiquem tais recursos,mediante o seu trabalho, o homem apossa-se depequenas porções das variadas riquezas danatureza : do subsolo, do mar, da terra e doespaço. De tudo isso ele se apropria para aíassentar o seu « banco » de trabalho. E apropria-se disso mediante o trabalho e para poderulteriormente ter trabalho.

O mesmo princípio se aplica, ainda, às fasessucessivas deste processo, no qual a primeira fasecontinua a ser sempre a relação do homem com osrecursos e as riquezas da natureza. Todo o esforço doconhecimento com que se tende a descobrir taisriquezas e a determinar as diversas possibilidadesde utilização das mesmas por parte do homem e

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para o homem, leva-nos a tomar consciência doseguinte : que tudo aquilo que no complexo daactividade económica provém do homem – tantoo trabalho, como o conjunto dos meios deprodução e a técnica a eles ligada (isto é, acapacidade de utilizar tais meios no trabalho) –pressupõe estas riquezas e estes recursos domundo visível, que o homem encontra, mas não cria.Ele encontra-os, em certo sentido, já prontos epreparados para serem descobertos pelo seuconhecimento e para serem utilizadoscorrectamente no processo de produção. Emqualquer fase do desenvolvimento do seutrabalho, o homem depara com o facto daprincipal doação da parte da « natureza », o queequivale a dizer, em última análise, da parte doCriador. No princípio do trabalho humano está omistério da Criação. Esta afirmação, já indicadacomo ponto de partida, constitui o fio condutordo presente documento e será mais desenvolvidaainda, na parte final das presentes reflexões.

A consideração do mesmo problema, que sefará em seguida, há-de confirmar-nos naconvicção quanto à prioridade do trabalho humano noconfronto com aquilo que, com o tempo, passou a serhabitual chamar-se « capital ». Com efeito, se noâmbito deste último conceito entram, além dosrecursos da natureza postos à disposição dohomem, também aquele conjunto de meios pelosquais o homem se apropria dos recursos da

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natureza, transformando-os à medida das suasnecessidades (e deste modo, nalgum sentido,« humanizando-os »), então há que fixar desde jáa certeza de que tal conjunto de meios é o fruto dopatrimónio histórico do trabalho humano. Todos osmeios de produção, desde os mais primitivos atéaos mais modernos, foi o homem que oselaborou : a experiência e a inteligência dohomem. Deste modo foram aparecendo não sóos instrumentos mais simples que servem para ocultivo da terra, mas também – graças a umadequado progresso da ciência e da técnica – osmais modernos e os mais complexos : asmáquinas, as fábricas, os laboratórios e oscomputadores. Assim, tudo aquilo que serve para otrabalho, tudo aquilo que, no estado actual datécnica, constitui dele « instrumento » cada diamais aperfeiçoado, é fruto do mesmo trabalho.

Esse instrumento gigantesco e poderoso –qual é o conjunto dos meios de produção,considerados, até certo ponto, como sinónimo do« capital » – nasceu do trabalho e é portador dasmarcas do trabalho humano. No presente estádiodo avanço da técnica, o homem, que é o sujeitodo trabalho, quando quer servir-se deste conjuntode instrumentos modernos, ou seja, dos meios deprodução, deve começar por assimilar, no planodo conhecimento, o fruto do trabalho doshomens que descobriram tais instrumentos, queos projectaram, os construíram e aperfeiçoaram, e

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que continuam a fazê-lo. A capacidade de trabalho –quer dizer, de participar eficazmente no processomoderno de produção – exige uma preparação cadavez maior e, primeiro que tudo, uma instruçãoadequada. Obviamente, permanece fora dedúvidas que todos os homens que participam noprocesso de produção, mesmo no caso deexecutarem só aquele tipo de trabalho para o qualnão são necessárias uma instrução particular equalificações especiais, todos e cada um delescontinuam a ser o verdadeiro sujeito eficiente,enquanto que o conjunto dos instrumentos, aindaos mais perfeitos, são única e exclusivamenteinstrumentos subordinados ao trabalho dohomem.

Esta verdade, que pertence ao patrimónioestável da doutrina da Igreja, deve ser sempresublinhada, em relação com o problema dosistema de trabalho e igualmente de todo osistema sócio-económico. É preciso acentuar epôr em relevo o primado do homem no processode produção, o primado do homem em relação às coisas.E tudo aquilo que está contido no conceito de« capital », num sentido restrito do termo, ésomente um conjunto de coisas. Ao passo que ohomem, como sujeito do trabalho,independentemente do trabalho que faz, ohomem, e só ele, é uma pessoa. Esta verdadecontém em si consequências importantes edecisivas.

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13. « Economismo » e materialismoÀ luz de tal verdade vê-se claramente, antes

de mais nada, que não se podem separar o« capital » do trabalho e que de maneira nenhumase pode contrapor o trabalho ao capital e o capitalao trabalho, e, menos ainda – como adiante severá – se podem contrapor uns aos outros oshomens concretos, que estão por detrás destesconceitos. Pode ser recto, quer dizer, emconformidade com a própria essência doproblema, e recto ainda, porque intrinsecamenteverdadeiro e ao mesmo tempo moralmentelegítimo, aquele sistema de trabalho que, nos seusfundamentos, supera a antinomia entre trabalho ecapital, procurando estruturar-se de acordo com oprincípio em precedência enunciado : o princípioda prioridade substancial e efectiva do trabalho,da subjectividade do mesmo trabalho humano eda sua participação eficiente em todo o processode produção, e isto independentemente danatureza dos serviços prestados pelo trabalhador.

A antinomia entre trabalho e capital não tema sua fonte na estrutura do processo de produção,nem na estrutura do processo económico emgeral. Este processo, de facto, manifesta arecíproca compenetração existente entre otrabalho e aquilo que se tornou habitualdenominar o capital ; mostra mesmo o ligameindissolúvel entre as duas coisas. O homem, aotrabalhar em qualquer tarefa no seu « banco » de

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trabalho, seja este relativamente primitivo ouultramoderno, pode facilmente cair na conta deque, pelo seu trabalho, entra na posse de um duplopatrimónio ; ou seja, do património daquilo que édado a todos os homens, sob a forma dosrecursos da natureza, e do património daquilo queos outros que o precederam já elaboraram, apartir da base de tais recursos, em primeiro lugardesenvolvendo a técnica, isto é, tornandorealidade um conjunto de instrumentos detrabalho, cada vez mais aperfeiçoados. Assim, ohomem, ao trabalhar, « aproveita do trabalho deoutrem ».21 Nós aceitamos sem dificuldade estavisão assim do campo e do processo do trabalhohumano, guiados tanto pela inteligência quantopela fé, que vai haurir a luz na Palavra de Deus.Trata-se de uma visão coerente, teológica e, ao mesmotempo, humanista. Nela, o homem aparece-noscomo o « senhor » das criaturas, postas à suadisposição no mundo visível. E se no processo dotrabalho alguma dependência se descobre, esta é adependência do homem do Doador de todos osrecursos da criação e, por outro lado, adependência de outros homens, daqueles a cujotrabalho e a cujas iniciativas se devem as jáaperfeiçoadas e ampliadas possibilidadesexistentes para o nosso trabalho. De tudo isto,que no processo de produção constitui umconjunto de « coisas », de instrumentos, do21 Cfr. Jo 4, 38.

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capital, podemos afirmar somente que« condiciona » o trabalho do homem ; não podemosafirmar, porém, que isto constitua como que o« sujeito » anónimo que coloca em posição dedependência o homem e o seu trabalho.

A ruptura desta visão coerente, na qual se achaestritamente salvaguardado o princípio doprimado da pessoa sobre as coisas, verificou-se nopensamento humano, algumas vezes depois de umlongo período de incubação na vida prática. Eoperou-se de tal maneira que o trabalho foiseparado do capital e contraposto mesmo aocapital, e por sua vez o capital contraposto aotrabalho, quase como se fossem duas forçasanónimas, dois factores de produção, postos umjuntamente com o outro na mesma perspectiva« economista ». Em tal maneira de ver oproblema, existiu o erro fundamental a que sepode chamar erro do « economismo », que se dáquando o trabalho humano é consideradoexclusivamente segundo a sua finalidadeeconómica. Também se pode e se deve chamar aeste erro fundamental do pensamento um erro domaterialismo, no sentido de que o « economismo »comporta, directa ou indirectamente, a convicçãodo primado e da superioridade daquilo que ématerial ; ao passo que coloca, directa ouindirectamente, numa posição subordinada àrealidade material, aquilo que é espiritual epessoal (o agir do homem, os valores morais e

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semelhantes). Isso não é ainda o materialismoteórico, no sentido pleno da palavra ; mas,certamente, é já um materialismo prático, o qual –não tanto em virtude das premissas derivantes dateoria materialista, mas sim em virtude de ummodo determinado de avaliar as realidades, eportanto em virtude de uma certa hierarquia debens, fundada na atracção imediata e mais fortedaquilo que é material – é julgado capaz desatisfazer as necessidades do homem.

O erro de pensar segundo as categorias do« economismo » caminhou a « pari passu » com oformar-se da filosofia materialista e com odesenvolvimento de tal filosofia, desde a fasemais elementar e mais comum (também chamadamaterialismo vulgar, porque pretende reduzir arealidade espiritual a um fenómeno supérfluo), atéà fase do que se denominou materialismodialéctico. Parece, no entanto, que – no âmbitodas presentes considerações – para o problemafundamental do trabalho humano e, emparticular, para aquela separação e contraposiçãoentre « trabalho » e « capital », como entre doisfactores da produção considerados naquelamesma perspectiva « economista », acimareferida, o « economismo » teve uma importância decisivae influiu exactamente sobre este modo não-humanista de pôr o problema, antes do sistemafilosófico materialista. Contudo, é evidente que omaterialismo, mesmo sob a sua forma dialéctica,

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não está em condições de proporcionar à reflexãosobre o trabalho humano bases suficientes edefinitivas, para que o primado do homem sobreo instrumento-capital aí possa encontrar umaadequada e irrefutável verificação e um apoio.Mesmo no materialismo dialéctico não é ohomem que, antes de tudo o mais, é o sujeito dotrabalho humano e a causa eficiente do processode produção ; mas continua a ser compreendido etratado na dependência daquilo que é material,como uma espécie de « resultante » das relaçõeseconómicas e das relações de produção,predominantes numa época determinada.

Evidentemente, a antinomia, que estamos aconsiderar, entre o trabalho e o capital – aantinomia em cujo âmbito o trabalho foi separado docapital e contraposto a ele, num certo sentidoônticamente, como se fosse um elementoqualquer do processo económico – tem a suaorigem não apenas na filosofia e nas teoriaseconómicas do século XVIII, mas também emuito mais em toda a prática económico-socialdesses tempos, que coincidem com a época emque nascia e se desenvolvia de modo impetuoso aindustrialização, na qual se divisava, em primeirolugar, a possibilidade de multiplicarabundantemente as riquezas materiais, isto é osmeios, perdendo de vista o fim, quer dizer ohomem, a quem tais meios devem servir. Foiexactamente este erro de ordem prática que atingiu,

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antes de mais nada, o trabalho humano, o homemdo trabalho, e que causou a reacção socialeticamente justa, da qual se falou mais acima. Omesmo erro, que agora já tem uma fisionomiahistórica definida, ligada ao período docapitalismo e do liberalismo primitivos, podevoltar a repetir-se ainda, noutras circunstâncias detempo e de lugar, se no modo de raciocinar separtir das mesmas premissas tanto teóricas comopráticas. Não se vêem outras possibilidades deuma superação radical deste erro, a não ser queintervenham mudanças adequadas, quer nocampo da teoria quer no da prática, mudanças quese atenham a uma linha de firme convicção do primado dapessoa sobre as coisas e do trabalho do homem sobre ocapital, entendido como conjunto dos meios deprodução.

14. Trabalho e propriedadeO processo histórico – aqui apresentado com

brevidade – que indubiamente já saiu da sua faseinicial, mas continua ainda e tende mesmo para setornar extensivo às relações entre nações econtinentes, exige um esclarecimento tambémsob um outro ponto de vista. Quando se fala daantinomia entre trabalho e capital não se trata,como é evidente, apenas de conceitos abstractos ede « forças anónimas » que agem na produçãoeconómica. Por detrás de um e de outro dos doisconceitos há homens, os homens vivos econcretos. De um lado, aqueles que executam o

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trabalho sem serem proprietários dos meios deprodução ; e do outro lado, aqueles quedesempenham a função de patrões e empresáriose que são os proprietários de tais meios, ou entãorepresentam os proprietários. E assim, portanto,vem inserir-se no conjunto deste difícil processohistórico, desde o início, o problema da propriedade.A Encíclica Rerum Novarum, que tem por tema aquestão social, põe em realce também esteproblema, recordando e confirmando a doutrinada Igreja sobre a propriedade e sobre o direito depropriedade privada, mesmo quando se trata dosmeios de produção. E a Encíclica Mater etMagistra fez a mesma coisa.

O princípio a que se alude, conforme foientão recordado e como continua a ser ensinadopela Igreja, diverge radicalmente do programa docolectivismo, proclamado pelo marxismo e realizadoem vários países do mundo, nos decénios que seseguiram à publicação da Encíclica de Leão XIII.E, ao mesmo tempo, ele difere também doprograma do capitalismo, tal como foi posto emprática pelo liberalismo e pelos sistemas políticosque se inspiram no mesmo liberalismo. Nestesegundo caso, a diferença está na maneira decompreender o direito de propriedade,precisamente. A tradição cristã nunca defendeutal direito como algo absoluto e intocável ; pelocontrário, sempre o entendeu no contexto maisvasto do direito comum de todos a utilizarem os

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bens da criação inteira : o direito à propriedadeprivada está subordinado ao direito ao uso comum,subordinado à destinação universal dos bens.

Por outras palavras, a propriedade, segundo oensino da Igreja, nunca foi entendida de maneiraa poder constituir um motivo de contraste socialno trabalho. Conforme já foi recordado acima, apropriedade adquire-se primeiro que tudo pelotrabalho e para servir ao trabalho. E isto dizrespeito de modo particular à propriedade dosmeios de produção. Considerá-los isoladamente,como um conjunto à parte de propriedades, como fim de os contrapor, sob a forma do « capital »,ao « trabalho » e, mais ainda, com o fim deexplorar o trabalho, é contrário à própria naturezade tais meios e à da sua posse. Estes não podemser possuídos contra o trabalho, como não podem serpossuídos para possuir, porque o único títulolegítimo para a sua posse – e isto tanto sob aforma da propriedade privada como sob a formada propriedade pública ou colectiva – é que elessirvam ao trabalho ; e que, consequentemente,servindo ao trabalho, tornem possível a realizaçãodo primeiro princípio desta ordem, que é adestinação universal dos bens e o direito ao seuuso comum. Sob este ponto de vista, emconsideração do trabalho humano e do acessocomum aos bens destinados ao homem, étambém para não excluir a socialização, dando-se ascondições oportunas, de certos meios de

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produção. No espaço dos decénios que nosseparam da publicação da Encíclica RerumNovarum, o ensino da Igreja tem vindo sempre arecordar todos estes princípios, remontando aosargumentos formulados numa tradição bem maisantiga, por exemplo aos conhecidos argumentosda Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino.22

No presente documento, que tem por temaprincipal o trabalho humano, convém confirmartodo o esforço com o qual o ensino da Igrejasobre a propriedade sempre procurou e procuraassegurar o primado do trabalho e, por issomesmo, a subjectividade do homem na vida social e,especialmente, na estrutura dinâmica de todo o processoeconómico. Deste ponto de vista, continua a serinaceitável a posição do capitalismo « rígido », quedefende o direito exclusivo da propriedadeprivada dos meios de produção, como um« dogma » intocável na vida económica. Oprincípio do respeito do trabalho exige que taldireito seja submetido a uma revisão construtiva,tanto em teoria como na prática. Com efeito, se éverdade que o capital – entendido como oconjunto dos meios de produção – é ao mesmotempo o produto do trabalho de gerações,também é verdade que ele se cria incessantementegraças ao trabalho efectuado com a ajuda do

22 Sobre o direito à propriedade cfr. Summa Th., II-II, q. 66, aa. 2, 6 ; DeRegimine principum, L. I., cc 15, 17. Pela função social da propriedade cfr. :Summa Th. II-II, q. 134, a. 1, ad 3.

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mesmo conjunto dos meios de produção, queaparecem então como um grande « banco » detrabalho, junto do qual, dia-a-dia, a presentegeração dos trabalhadores desenvolve a própriaactividade. Trata-se aqui, como é óbvio, dasdiversas espécies de trabalho, não somente dotrabalho chamado manual mas também das váriasespécies de trabalho intelectual, desde o trabalhode concepção até ao de direcção.

Sob esta luz, as numerosas proposiçõesenunciadas pelos peritos da doutrina socialcatólica e também pelo supremo Magistério daIgreja23 adquirem um significado de particularrelevo. Trata-se de proposições que dizem respeito àcompropriedade dos meios de trabalho, à participaçãodos trabalhadores na gestão e/ou nos lucros dasempresas, o chamado « accionariado » dotrabalho, e coisas semelhantes.Independentemente da aplicabilidade concretadestas diversas proposições, permanece algoevidente que o reconhecimento da posição justado trabalho e do homem do trabalho no processode produção exige várias adaptações, mesmo noâmbito do direito da propriedade dos meios deprodução. Ao dizer isto, tomam-se emconsideração, não só as situações mais antigas,mas também e antes de mais nada a realidade e a

23 Cfr. Pio XI, Carta Encíclica Quadragesimo Anno : AAS 23 (1931) p.199 ;.Conc. Ecum. Vat. II, Const. Past. sobre a Igreja no mundocontemporâneo Gaudium et Spes, 68 : AAS 58 (1966), p. 1089-1090.

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problemática que se criaram na segunda metadedeste século, pelo que se refere ao TerceiroMundo e aos diversos novos paísesindependentes que foram aparecendo –especialmente na África, mas também noutraslatitudes – no lugar dos territórios coloniais deoutrora.

Se, por conseguinte, a posição do capitalismo« rígido » tem de ser continuamente submetida auma revisão, no intuito de uma reforma sob oaspecto dos direitos do homem, entendidos noseu sentido mais amplo e nas suas relações com otrabalho, então, sob o mesmo ponto de vista,deve afirmar-se que estas reformas múltiplas etão-desejadas não podem ser realizadas com aeliminação apriorística da propriedade privada dos meiosde produção. Convém, efectivamente, observar queo simples facto de subtrair esses meios deprodução (o capital) das mãos dos seusproprietários privados não basta para os socializarde maneira satisfatória. Assim, eles deixam de sera propriedade de um determinado grupo social,os proprietários privados, para se tornarempropriedade da sociedade organizada, passando aestar sob a administração e a fiscalização directasde um outro grupo de pessoas que, embora nãotendo a propriedade, em virtude do poder queexercem na sociedade dispõem deles a nível dainteira economia nacional, ou então a nível daeconomia local.

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Este grupo dirigente e responsável podedesempenhar-se das suas funções de maneirasatisfatória, do ponto de vista do primado dotrabalho ; mas pode também cumpri-las mal,reivindicando ao mesmo tempo para si omonopólio da administração e da disposição dos meiosde produção, sem se deter quanto a isso nemsequer diante da ofensa aos direitos fundamentaisdo homem. Desde modo, pois, o simples facto deos meios de produção passarem para apropriedade do Estado, no sistema colectivista,não significa só por si, certamente, a« socialização » desta propriedade. Poder-se-áfalar de socialização somente quando ficarassegurada a subjectividade da sociedade, querdizer, quando cada um dos que a compõem, combase no próprio trabalho, tiver garantido o plenodireito a considerar-se comproprietário do grande« banco » de trabalho em que se empenhajuntamente com todos os demais. E uma das viaspara alcançar tal objectivo poderia ser a deassociar o trabalho, na medida do possível, àpropriedade do capital e dar possibilidades devida a uma série de corpos intermediários comfinalidades económicas, sociais e culturais :corpos estes que hão-de usufruir de uma efectivaautonomia em relação aos poderes públicos e quehão-de procurar conseguir os seus objectivosespecíficos mantendo entre si relações de lealcolaboração recíproca, subordinadamente às

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exigências do bem comum, e que hão-de, ainda,apresentar-se sob a forma e com a substância deuma comunidade viva ; quer dizer, de molde aque neles os respectivos membros sejamconsiderados e tratados como pessoas eestimulados a tomar parte activa na sua vida.24

15. Argumento personalistaAssim, o princípio da prioridade do trabalho em

relação ao capital, é um postulado que pertence àordem da moral social. Este postulado tem umaimportância-chave, tanto no sistema fundadosobre o princípio da propriedade privada dosmeios de produção, como no sistema em que apropriedade privada de tais meios foi limitadamesmo radicalmente. O trabalho, num certosentido, é inseparável do capital e não tolera, sobnenhuma forma, aquela antinomia – quer dizer, aseparação e contraposição relativamente aosmeios de produção – que, resultando depremissas unicamente económicas, tem pesadosobre a vida humana nos últimos séculos.Quando o homem trabalha, utilizando-se doconjunto dos meios de produção, deseja aomesmo tempo : que os frutos desse trabalhosejam úteis para si e para outrem ; e ainda, nomesmo processar-se do trabalho, poder figurarcomo corresponsável e co-artífice da actividadeno « banco » de trabalho, junto do qual se aplica.

24 Cfr. João XXIII, Carta Encíclica Mater et Magistra : ASS 53 (1961) p.419.

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Disto promanam alguns direitos específicosdos trabalhadores, direitos que correspondem àobrigação de trabalhar. Falar-se-á deles emseguida. Entretanto, é necessário frisar bem,desde já, que em geral o homem que trabalhadeseja não só receber a remuneração devida pelo seutrabalho, mas deseja também que seja tomada emconsideração, no mesmo processo de produção, apossibilidade de que ele, ao trabalhar, ainda queseja numa propriedade comum, esteja cônscio detrabalhar « por sua conta ». Esta consciência fica neleabafada, ao encontrar-se num sistema decentralização burocrática excessiva, na qual otrabalhador se vê sobretudo como peça dumaengrenagem num grande mecanismo movido decima ; e ainda – por várias razões – mais comoum simples instrumento de produção do quecomo um verdadeiro sujeito do trabalho, dotadode iniciativa própria.

O ensino da Igreja exprimiu sempre a firme eprofunda convicção de que o trabalho humanonão diz respeito simplesmente à economia, masimplica também e sobretudo valores pessoais. Opróprio sistema económico e o processo deprodução auferem vantagens precisamente dofacto de tais valores pessoais serem respeitados.No pensamento de Santo Tomás de Aquino,25 ésobretudo esta razão que depõe a favor dapropriedade privada dos meios de produção. Se25 Cfr. Summa Th., II-II, q. 65, a. 2.

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aceitamos que, por motivos certos e fundados,podem ser feitas excepções ao princípio dapropriedade privada – e nos nossos temposestamos mesmo a ser testemunhas de que, navida, foi introduzido o sistema da propriedade« socializada » – o argumento personalista, contudo, nãoperde a sua força, nem ao nível dos princípios, nemno campo prático. Toda e qualquer socializaçãodos meios de produção, para ser racional efrutuosa, deve ter este argumento emconsideração. Deve fazer-se todo o possível paraque o homem, mesmo num tal sistema, possaconservar a consciência de trabalhar « por suaprópria conta ». Caso contrário, verificam-senecessariamente danos incalculáveis em todo oprocesso económico, danos que não são apenasde ordem económica, mas que atingem emprimeiro lugar o homem.

IV. DIREITOS DOS HOMENS DO TRABALHO

16. No vasto contexto dos direitos dohomem

Se o trabalho – nos diversos sentidos dapalavra – é uma obrigação, isto é um dever, ele éao mesmo tempo fonte também de direitos para otrabalhador. Tais direitos hão-de ser examinadosno vasto contexto do conjunto dos direitos do homem,direitos que lhe são conaturais, tendo sido muitosdeles proclamados pelas várias instituições

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internacionais e estão a ser cada vez maisgarantidos pelos diversos Estados para osrespectivos cidadãos. O respeito deste vastoconjunto de direitos do homem constitui acondição fundamental para a paz no mundocontemporâneo : quer para a paz no interior decada país e sociedade, quer para a paz no âmbitodas relações internacionais, conforme já muitasvezes foi posto em evidência pelo Magistério daIgreja, especialmente após o aparecimento daEncíclica Pacem in Terris. Os direitos humanos quepromanam do trabalho inserem-se, também eles,precisamente no conjunto mais vasto dos direitosfundamentais da pessoa.

Dentro de um tal conjunto, porém, eles têmum carácter específico, que corresponde ànatureza específica do trabalho humano delineadaem precedência ; e é precisamente em funçãodesse carácter que é necessário considerá-los. Otrabalho, como já foi dito, é uma obrigação, ou seja,um dever do homem ; e isto nos diversos sentidos dapalavra. O homem deve trabalhar, quer pelo factode o Criador lh'o haver ordenado, quer pelo factoda sua mesma humanidade, cuja subsistência edesenvolvimento exigem o trabalho. O homemdeve trabalhar por um motivo de consideraçãopelo próximo, especialmente consideração pelaprópria família, mas também pela sociedade deque faz parte, pela nação de que é filho ou filha, epela inteira família humana de que é membro,

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sendo como é herdeiro do trabalho de gerações e,ao mesmo tempo, co-artífice do futuro daquelesque virão depois dele no suceder-se da história.Tudo isto, pois, constitui a obrigação moral dotrabalho, entendido na sua acepção mais ampla.Quando for preciso considerar os direitos moraisde cada um dos homens pelo que se refere aotrabalho, direitos correspondentes à ditaobrigação, impõe-se ter sempre diante dos olhoseste amplo círculo de pontos de referência, emcujo centro se situa o trabalho de todos e cadaum dos sujeitos que trabalham.

Com efeito, ao falarmos da obrigação dotrabalho e dos direitos do trabalhadorcorrespondentes a esta obrigação, nós temos nopensamento, antes de mais nada, a relação entre odador de trabalho – directo ou indirecto – e o mesmotrabalhador.

A distinção entre dador de trabalho directo eindirecto parece ser muito importante, tendo emconsideração tanto a organização real do trabalho,como a possibilidade de se instaurarem relaçõesjustas ou injustas no domínio do trabalho.

Se o dador de trabalho directo é aquela pessoa ouaquela instituição com as quais o trabalhadorestipula directamente o contrato de trabalhosegundo condições determinadas, então sob adesignação de dador de trabalho indirecto devem serentendidos numerosos factores diferenciados que,além do dador de trabalho directo, exercem uma

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influência determinada sobre a maneira segundo aqual se estabelecem quer o contrato de trabalhoquer, como consequência, as relações mais oumenos justas no domínio do trabalho humano.

17. Dador de trabalho : « indirecto » e« directo »

No conceito de dador de trabalho indirectoentram as pessoas, as instituições de diversostipos, bem como os contratos colectivos detrabalho e os princípios de comportamento, que,estabelecidos por essas pessoas ou instituições,determinam todo o sistema sócio-económico oudele resultam. O conceito de « dador de trabalhoindirecto », deste modo, refere-se a elementosnumerosos e variados. E a responsabilidade dodador de trabalho indirecto é diferente daresponsabilidade do dador de trabalho directo,como indicam os próprios termos : aresponsabilidade é menos directa ; maspermanece uma verdadeira responsabilidade,porquanto o dador de trabalho indirectodetermina substancialmente um e outro aspectoda relação de trabalho, e condiciona assim ocomportamento do dador de trabalho directo,quando este último determina concretamente ocontrato e as relações de trabalho. Umaverificação deste género não tem como finalidadeo eximir este último da responsabilidade que lhecabe, mas simplesmente chamar a atenção paratodo o entrelaçado de condicionamentos que

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influem no seu comportamento. Quando se tratade instaurar uma política de trabalho correcta sob oponto de vista ético, é necessário ter presentes todosesses condicionamentos. E essa política serácorrecta quando forem plenamente respeitados osdireitos objectivos do homem do trabalho.

O conceito de dador de trabalho indirectopode aplicar-se a todas e a cada uma dassociedades e, primeiro que tudo, ao Estado. É oEstado, efectivamente, que deve conduzir umajusta política do trabalho. É sabido, porém, que,no sistema actual das relações económicas nomundo, se verificam múltiplas ligações entre osdiversos Estados, ligações que se exprimem porexemplo no processar-se da importação e daexportação, isto é, na permuta recíproca dos benseconómicos, quer se trate de matérias primas oude produtos semi-elaborados, quer de produtosindustriais já acabados. Tais processos criamtambém dependências recíprocas e, por conseguinte,seria difícil falar de plena autosuficiência, querdizer, de autarquia, seja para que Estado for,ainda que se tratasse do mais potente no sentidoeconómico.

Um tal sistema de dependências recíprocas éem si mesmo normal ; todavia, pode facilmentedar azo a diversas formas de exploração ou deinjustiça e, por conseguinte, ter influência napolítica do trabalho dos Estados tomadossingularmente e, em última análise, no

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trabalhador individual que é o sujeito próprio dotrabalho. Por exemplo, os países altamenteindustrializados e, mais ainda, as empresas que emvasta escala superintendem nos meios deprodução industrial (as chamadas sociedadesmultinacionais ou transnacionais), ditando ospreços o mais alto possível para os seus produtos,procuram ao mesmo tempo fixar os custos maisbaixos possível para as matérias primas ou para osprodutos semi-elaborados. Ora isto, juntamentecom outras causas, dá como resultado criar umadesproporção sempre crescente entre as rendasnacionais dos respectivos países. A distância entrea maior parte dos países ricos e os países maispobres não diminui e não se dá a tendência para onivelamento, mas aumenta cada vez mais, emdetrimento, como é óbvio, destes últimos.Evidentemente que isto não deixa de ter os seusefeitos na política local do trabalho e na situaçãodos trabalhadores nas sociedadeseconomicamente desfavorecidas. O dador directode trabalho que se encontra num sistemasemelhante de condicionamentos fixa ascondições de trabalho abaixo das objectivasexigências dos trabalhadores, especialmente se elepróprio quer tirar os lucros mais elevadospossível da empresa que dirige (ou das empresasque dirige, quando se trata de uma situação depropriedade « socializada » dos meios deprodução).

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Este quadro das dependências em relaçãocom o conceito de dador indirecto de trabalho,como é fácil deduzir, é muitíssimo amplo ecomplexo. Para o determinar deve tomar-se emconsideração, num certo sentido, o conjunto doselementos decisivos para a vida económica nocontexto de uma dada sociedade ou Estado ; ao mesmotempo, porém, devem ter-se em conta ligações edependências muito mais vastas. O fazer com quese tornem realidade os direitos do homem dotrabalho, todavia, não pode ser condenado aconstituir somente um elemento derivado dossistemas económicos, os quais, em maior ou emmenor escala, sejam guiados principalmente pelocritério do lucro máximo. E, pelo contrário, éprecisamente a consideração dos direitosobjectivos do homem do trabalho – de todo otipo de trabalhador, braçal, intelectual, industrial,agrícola, etc. – que deve constituir o critérioadequado e fundamental para a formação de toda aeconomia, na dimensão tanto da economia decada uma das sociedades e de cada um dosEstados, como no conjunto da políticaeconómica mundial e dos sistemas e das relaçõesinternacionais que derivam da mesma política.

É neste sentido que deveria exercitar-se ainfluência de todas as Organizações Internacionaisque a isso são chamadas, a começar pelaOrganização das Nações Unidas (O.N.U.). Pareceterem a proporcionar novas contribuições

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particularmente quanto a isto a OrganizaçãoMundial do Trabalho (O.I.T.), como também aOrganização das Nações Unidas para aAlimentação e a Agricultura (F.A.O.) e outrasainda. E na contextura dos diferentes Estadosexistem ministérios e órgãos do poder público etambém diversos organismos sociais, instituídoscom esta finalidade. Tudo isto indica eficazmentea grande importância que tem – como foi ditoacima – o dador de trabalho indirecto, para setornar realidade o pleno respeito dos direitos dohomem do trabalho, porque os direitos da pessoahumana constituem o elemento-chave de toda aordem moral social.

18. O problema do empregoAo considerar os direitos do homem do

trabalho em relação com este « dador de trabalhoindirecto », quer dizer, em relação com oconjunto das instituições que, a nível nacional e anível internacional, são responsáveis por toda aorientação da política do trabalho, deve voltar-sea atenção antes de mais nada para um problemafundamental. Trata-se do problema de ter trabalhoou, por outras palavras, do problema deencontrar um emprego adaptado para todos aquelessujeitos que são capazes de o ter. O contrário de umasituação justa e correcta neste campo é odesemprego, isto é, a falta de lugares de trabalhopara as pessoas que são capazes de trabalhar. Epode tratar-se de falta de trabalho em geral, ou

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então de falta de emprego em determinadossectores do trabalho. O papel das aludidasinstituições, que aqui são compreendidas sob adenominação de dador de trabalho indirecto, é ode actuar contra o desemprego, que é sempre um male, quando chega a atingir determinadasdimensões, pode tornar-se uma verdadeiracalamidade social. E o desemprego torna-se umproblema particularmente doloroso quando sãoatingidos sobretudo os jovens que, depois de seterem preparado por meio de uma formaçãocultural, técnica e profissional apropriada, nãoconseguem um emprego e, com mágoa, vêemfrustradas a sua vontade sincera de trabalhar e asua disponibilidade para assumir a própriaresponsabilidade no desenvolvimento económicoe social da comunidade. A obrigação de concederfundos em favor dos desempregados, quer dizer,o dever de assegurar as subvençõesindispensáveis para a subsistência dosdesempregados e das suas famílias, é um deverque deriva do princípio fundamental da ordemmoral neste campo, isto é, do princípio do usocomum dos bens ou, para exprimir o mesmo demaneira ainda mais simples, do direito à vida e àsubsistência.

Para fazer face ao perigo do desemprego epara garantir trabalho a todos, as instituições queacima foram definidas como dador de trabalhoindirecto devem prover a uma planificação global,

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que esteja em função daquele « banco » detrabalho diferenciado, junto do qual se plasma avida, não apenas económica, mas tambémcultural, de uma dada sociedade ; elas devemdispensar atenção, ainda, à organização correcta eracional do trabalho que se desenvolve em tal« banco ». Esta solicitude global, em últimaanálise, pesará sobre os ombros do Estado, masela não pode significar uma centralização operadaunilateralmente pelos poderes públicos. Trata-se,ao contrário, de uma coordenação justa e racional,no quadro da qual deve ficar garantida a iniciativadas pessoas, dos grupos livres, dos centros e doscomplexos de trabalho locais, tendo em contaaquilo que foi dito acima a respeito do caráctersubjectivo do trabalho humano.

O facto da dependência recíproca dasdiversas sociedades e dos diversos Estados, bemcomo a necessidade de colaboração em diversosdomínios exigem que, embora mantendo osdireitos soberanos de cada um deles no campo daplanificação e da organização do trabalho a nívelda própria sociedade, se aja ao mesmo tempo,neste sector importante, no quadro da colaboraçãointernacional, mediante os tratados e os acordosnecessários. Também aqui, é indispensável que ocritério de tais tratados e acordos se torne cadavez mais o trabalho humano, entendido como umdireito fundamental de todos os homens, trabalhoque dá a todos aqueles que trabalham direitos

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análogos, de tal maneira que o nível de vida doshomens do trabalho nas diversas sociedades sejacada vez menos marcado por aquelas diferenças chocantesque, com a sua injustiça, são susceptíveis deprovocar violentas reacções. As OrganizaçõesInternacionais têm tarefas imensas adesempenhar neste sector. E é necessário que elasse deixem guiar por uma diagnose exacta dacomplexidade das situações, assim como doscondicionamentos naturais, históricos, sociais,etc. ; é necessário, ainda, que elas, pelo que serefere aos planos de acção estabelecidos emcomum, procurem ter a maior efectividade, isto é,eficácia na realização.

É em tal direcção que se pode pôr em práticao plano de um progresso universal e harmoniosode todos, segundo o fio condutor da EncíclicaPopulorum Progressio do Papa Paulo VI. Énecessário acentuar bem que o elementoconstitutivo e ao mesmo tempo a verificação maisadequada de tal progresso no espírito de justiça e depaz, que a Igreja proclama e pelo qual não cessade orar ao Pai de todos os homens e de todos ospovos, é exactamente a revalorização contínua dotrabalho humano, quer sob o aspecto da suafinalidade objectiva, quer sob o aspecto dadignidade do sujeito de todo o trabalho, que é ohomem. O progresso de que se está a falar aquideve ser actuado pelo homem e para o homem edeve produzir frutos no homem. Uma verificação

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do mesmo progresso será o reconhecimento cadavez mais maturado da finalidade do trabalho e orespeito cada vez mais universal dos direitos a eleinerentes, em conformidade com a dignidade dohomem, sujeito do trabalho.

Uma planificação racional e uma organizaçãoadequada do trabalho humano, à medida dasdiversas sociedades e dos diversos Estados,deveriam facilitar também a descoberta das justasproporções entre os vários tipos de actividades : otrabalho dos campos, o da indústria, o dosmultiformes serviços, o trabalho de concepçãointelectual e mesmo o científico ou artístico,segundo as capacidades de cada um dos homens epara o bem comum de todas as sociedades e detoda a humanidade. A organização da vidahumana segundo as múltiplas possibilidades dotrabalho deveria corresponder um sistema deinstrução e de educação adaptado, que tivessecomo finalidade, antes de mais nada, odesenvolvimento da humanidade e a suamaturidade, e também a formação específicanecessária para ocupar de maneira rendosa umjusto lugar no amplo e socialmente diferenciado« banco » de trabalho.

Lançando o olhar para a inteira famíliahumana espalhada por toda a terra, não é possívelficar sem ser impressionado por um factodesconcertante de imensas proporções ; ou seja,enquanto que por um lado importantes recursos

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da natureza permanecem inutilizados, há poroutro lado massas imensas de desempregados esubempregados e multidões ingentes de famintos.É um facto que está a demonstrar, sem dúvidaalguma, que, tanto no interior de cadacomunidade política como nas relações entre elasa nível continental e mundial – pelo que dizrespeito à organização do trabalho e do emprego– existe alguma coisa que não está bem, e issoprecisamente nos pontos mais críticos e maisimportantes sob o aspecto social.

19. Salário e outras subvenções sociaisDepois de ter delineado a traços largos o

papel importante que reveste a solicitude por darpossibilidades de trabalho a todos ostrabalhadores, a fim de garantir o respeito dosdireitos inalienáveis do homem em relação com oseu trabalho, convém tratar mais de perto, aindaque brevemente, de tais direitos que, no fim decontas, se formam na relação entre o trabalhador e odador directo de trabalho. Tudo o que foi dito atéagora sobre o tema do dador indirecto detrabalho tem por fim precisar mais acuradamenteestas relações, mediante a apresentação daquelesmúltiplos condicionamentos, no meio dos quaisindirectamente se formam as mesmas relações.Esta consideração, contudo, não tem um intentopuramente descritivo ; por outro lado, tambémnão é um breve tratado de economia ou depolítica. Trata-se apenas de pôr em evidência o

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aspecto deontológico e moral. E o problema-chave daética social, neste caso, é o problema da justaremuneração do trabalho que é executado. Nocontexto actual, não há maneira mais importantepara realizar a justiça nas relações entretrabalhadores e dadores de trabalho, do queexactamente aquela que se concretiza naremuneração do mesmo trabalho.Independentemente do facto de o trabalho serefectuado no sistema da propriedade privada dosmeios de produção ou num sistema em que apropriedade sofreu uma espécie de« socialização », a relação entre o dador detrabalho (em primeiro lugar o dador directo) e otrabalhador resolve-se à base do salário, querdizer, mediante a justa remuneração do trabalhoque foi feito.

Importa salientar também que a justiça de umsistema sócio-económico e, em qualquer hipótese,o seu justo funcionamento, devem ser apreciados,no fim de contas, segundo a maneira como éequitativamente remunerado o trabalho nessesistema. Quanto a este ponto, nós chegamos denovo ao primeiro princípio de toda a ordemético-social, ou seja, ao princípio do uso comum dosbens. Em todo e qualquer sistema,independentemente das relações fundamentaisexistentes entre o capital e o trabalho, o salário,isto é, a remuneração do trabalho, permanece um meioconcreto pelo qual a grande maioria dos homens

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pode ter acesso àqueles bens que estão destinadosao uso comum, quer se trate dos bens danatureza, quer dos bens que são fruto daprodução. Uns e outros tornam-se acessíveis aohomem do trabalho graças ao salário, que elerecebe como remuneração do seu trabalho. Daquivem que o justo salário se torna em todos oscasos a verificação concreta da justiça de cada sistemasócio-económico e, em qualquer hipótese, do seujusto funcionamento.

Não é o único meio de verificação, mas éparticularmente importante, ele é mesmo, numcerto sentido, a verificação-chave.

Esta verificação diz respeito sobretudo àfamília. Uma justa remuneração do trabalho daspessoas adultas, que tenham responsabilidades defamília, é aquela que for suficiente para fundar emanter dignamente uma família e para asseguraro seu futuro. Tal remuneração poderá efectuar-seou por meio do chamado salário familiar, isto é,um salário único atribuído ao chefe de famíliapelo seu trabalho, e que seja suficiente para asnecessidades da sua família, sem que a sua esposaseja obrigada a assumir um trabalho retribuídofora do lar ; ou então por meio de outras medidassociais, como sejam abonos familiares ou ossubsídios para as mães que se dedicamexclusivamente à família, subsídios estes quedevem corresponder às necessidades efectivas,quer dizer, ao número de pessoas a seu cargo e

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durante todo o tempo em que elas não estejamem condições de assumir dignamente aresponsabilidade da sua própria vida.

A experiência confirma que é necessárioaplicar-se em prol da revalorização social das funçõesmaternas, dos trabalhos que a elas andam ligados eda necessidade de cuidados, de amor e de carinhoque têm os filhos, para se poderem desenvolvercomo pessoas responsáveis, moral ereligiosamente amadurecidas e psicologicamenteequilibradas. Reverterá em honra para a sociedadeo tornar possível à mãe – sem pôr obstáculos àsua liberdade, sem discriminação psicológica ouprática e sem que ela fique numa situação dedesdouro em relação às outras mulheres – cuidardos seus filhos e dedicar-se à educação deles,segundo as diferentes necessidades da sua idade.O abandono forçoso de tais tarefas, por ter dearranjar um trabalho retribuído fora de casa, éalgo não correcto sob o ponto de vista do bem dasociedade e da família, se isso estiver emcontradição ou tornar difíceis tais objectivosprimários da missão materna.26

Nesta ordem de ideias, deve realçar-se que,numa visão mais geral, é necessário organizar eadaptar todo o processo do trabalho, de tal sorteque sejam respeitadas as exigências da pessoa e assuas formas de vida, antes de mais nada da sua

26 Cfr. Conc. Ecum. Vat. II, Const. Past. sobre a Igreja no mundocontemporâneo Gaudium et Spes, 67 : AAS 58 (1966), p. 1089.

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vida doméstica, tendo em conta a idade e o sexode cada uma delas. É um facto que, em muitassociedades, as mulheres trabalham em quasetodos os sectores da vida. Convém, no entanto,que elas possam desempenhar plenamente as suasfunções, segundo a índole que lhes é própria, semdiscriminações e sem exclusão dos empregos paraque tenham capacidade, como também sem faltarao respeito pelas suas aspirações familiares e pelopapel específico que lhes cabe no contribuir parao bem comum da sociedade juntamente com ohomem. A verdadeira promoção da mulher exige que otrabalho seja estruturado de tal maneira que elanão se veja obrigada a pagar a própria promoçãocom o ter de abandonar a sua especificidade ecom detrimento da sua família, na qual ela, comomãe, tem um papel insubstituível.

Ao lado do salário, entram em jogo aquineste ponto ainda outras subvenções sociais que têmcomo finalidade assegurar a vida e a saúde dostrabalhadores e a das suas famílias. As despesasrelacionadas com as necessidades de cuidar dasaúde, especialmente em caso de acidentes notrabalho, exigem que o trabalhador tenhafacilmente acesso à assistência sanitária ; e isto, namedida do possível, a preços reduzidos oumesmo gratuitamente. Um outro sectorrespeitante às subvenções é o daquilo que andaligado ao direito ao repouso ; trata-se aqui, antes demais nada, do repouso semanal regular,

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compreendendo pelo menos o domingo, e alémdisso de um repouso mais longo, as chamadasférias, uma vez por ano ou, eventualmente,algumas vezes durante o ano, divididas porperíodos mais breves. E trata-se, ainda, do direitoà pensão de aposentadoria ou reforma, ao seguropara a velhice e ao seguro para os casos deacidentes de trabalho. E no âmbito destes direitosprincipais desdobra-se todo um sistema dedireitos particulares : juntamente com aremuneração do trabalho, eles são o índice deuma correcta ordenação das relações entre otrabalhador e o dador de trabalho. Entre estesdireitos, há que ter sempre presente o direito adispor de ambientes de trabalho e de processosde laboração que não causem dano à saúde fisicados trabalhadores nem lesem a sua integridademoral.

20. A importância dos sindicatosCom base em todos estes direitos,

juntamente com a necessidade de os garantir porparte dos mesmos trabalhadores, surge ainda umoutro direito : o direito de se associar, quer dizer, odireito de formar associações ou uniões, com afinalidade de defender os interesses vitais doshomens empregados nas diferentes profissões.Estas uniões têm o nome de sindicatos. Osinteresses vitais dos homens do trabalho são atécerto ponto comuns a todos ; ao mesmo tempo,porém, cada espécie de trabalho, cada profissão,

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possui uma sua especificidade, que deveriaencontrar nestas organizações de maneiraparticular o seu reflexo próprio.

Os sindicatos têm os seus ascendentes, numcerto sentido, já nas corporações artesanais daIdade Média, na medida em que tais organizaçõesuniam entre si os homens que pertenciam aomesmo ofício, isto é, agremiavam-nos em base aotrabalho que eles faziam. No entanto, os sindicatostambém diferem dessas corporações neste pontoessencial : os modernos sindicatos cresceram apartir da luta dos trabalhadores, do mundo dotrabalho e, sobretudo, dos trabalhadores daindústria, pela tutela dos seus justos direitos, emconfronto com os empresários e os proprietáriosdos meios de produção. Constitui sua tarefa adefesa dos interesses existenciais dostrabalhadores em todos os sectores em queentram em causa os seus direitos. A experiênciahistórica ensina que as organizações deste tiposão um elemento indispensável da vida social,especialmente nas modernas sociedadesindustrializadas. Isto, evidentemente, não significaque somente os trabalhadores da indústriapossam constituir associações deste género. Osrepresentantes de todas as profissões podemservir-se delas para garantir os seus respectivosdireitos. Existem, com efeito, os sindicatos dosagricultores e dos trabalhadores intelectuais ;come existem também as organizações dos

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dadores de trabalho. Todos, como já foi ditoacima, se subdividem em grupos e subgrupossegundo as particulares especializaçõesprofissionais.

A doutrina social católica não pensa que ossindicatos sejam somente o reflexo de umaestrutura « de classe » da sociedade, como nãopensa que eles sejam o expoente de uma luta declasse, que inevitavelmente governe a vida social.Eles são, sim, um expoente da luta pela justiça social,pelos justos direitos dos homens do trabalhosegundo as suas diversas profissões. No entanto,esta « luta » deve ser compreendida como umempenhamento normal das pessoas « em prol »do justo bem : no caso, em prol do bem quecorresponde às necessidades e aos méritos doshomens do trabalho, associados segundo as suasprofissões ; mas não é uma luta « contra » os outros.

Se ela assume um carácter de oposição aosoutros, nas questões controvertidas, isso sucedepor se ter em consideração o bem que é a justiçasocial, e não por se visar a « luta » pela luta, ouentão para eliminar o antagonista. O trabalho temcomo sua característica, antes de mais nada, uniros homens entre si ; e nisto consiste a sua forçasocial : a força para construir uma comunidade. Eno fim de contas, nessa comunidade devem unir-se tanto aqueles que trabalham como aqueles quedispõem dos meios de produção ou que dosmesmos são proprietários. A luz desta estrutura

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fundamental de todo o trabalho – à luz do facto deque, afinal, o « trabalho » e o « capital » são ascomponentes indispensáveis do processo deprodução em todo e qualquer sistema social – aunião dos homens para se assegurarem os direitosque lhes cabem, nascida das exigências dotrabalho, permanece um factor construtivo deordem social e de solidariedade, factor do qual não épossível prescindir.

Os justos esforços para garantir os direitosdos trabalhadores, que se acham unidos pelamesma profissão, devem ter sempre em contalimitações que impõe a situação económica geraldo país. As exigências sindicais não podemtransformar-se numa espécie de « egoísmo » degrupo ou de classe, embora possam e devam tambémtender para corrigir – no que respeita ao bemcomum da inteira sociedade – tudo aquilo que édefeituoso no sistema de propriedade dos meiosde produção, ou no modo de os gerir e de dispordeles. A vida social e económico-social écertamente como um sistema de « vasoscomunicantes », e todas e cada uma dasactividades sociais, que tenham como finalidadesalvaguardar os direitos dos grupos particulares,devem adaptar-se a tal sistema.

Neste sentido, a actividade dos sindicatosentra indubitavelmente no campo da « política »,entendida como uma prudente solicitude pelo bemcomum. Ao mesmo tempo, porém, o papel dos

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sindicatos não é o de « fazer política » no sentidoque hoje comummente se vai dando a estaexpressão. Os sindicatos não têm o carácter de« partidos políticos » que lutam pelo poder, etambém não deveriam nunca estar submetidos àsdecisões dos partidos políticos, nem manter comeles ligações muito estreitas. Com efeito, se foresta a situação, eles perdem facilmente o contactocom aquilo que é o seu papel específico, que é ode garantirem os justos direitos dos homens dotrabalho no quadro do bem comum de toda asociedade, e, ao contrário, tornam-se uminstrumento da luta para outros fins.

Ao falar da tutela dos justos direitos doshomens do trabalho segundo as suas diversasprofissões, é preciso naturalmente ter semprediante dos olhos aquilo de que depende o caráctersubjectivo do trabalho em cada profissão ; mas,ao mesmo tempo, ou primeiro que tudo, aquiloque condiciona a dignidade própria do sujeito dotrabalho. E aqui apresentam-se múltiplaspossibilidades para a acção das organizaçõessindicais, inclusive também para um seuempenhamento por coisas de carácter instrutivo, educativo ede promoção da auto-educação. A acção das escolas,das chamadas « universidades operárias » e« populares », dos programas e dos cursos deformação, que desenvolveram e continuam aindaa desenvolver actividades neste campo, é umaacção benemérita. Deve sempre desejar-se que,

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graças à acção dos seus sindicatos, o trabalhadornão só possa « ter » mais, mas também esobretudo possa « ser » mais ; o que equivale adizer, possa realizar mais plenamente a suahumanidade sob todos os aspectos.

Ao agirem em prol dos justos direitos dosseus membros, os sindicatos lançam mão tambémdo método da « greve », ou seja, da suspensão dotrabalho, como de uma espécie de « ultimatum »dirigido aos órgãos competentes e, sobretudo, aosdadores de trabalho. É um modo de proceder quea doutrina social católica reconhece comolegítimo, observadas as devidas condições e nosjustos limites. Em relação a isto os trabalhadoresdeveriam ter assegurado o direito à greve, sem teremde sofrer sanções penais pessoais por nelaparticiparem. Admitindo que se trata de um meiolegítimo, deve simultaneamente relevar-se que agreve continua a ser, num certo sentido, um meioextremo. Não se pode abusar dele ; e não se podeabusar dele especialmente para fazer o jôgo dapolítica. Além disso, não se pode esquecer nuncaque, quando se trata de serviços essenciais para avida da sociedade, estes devem ficar sempreassegurados, inclusive, se isso for necessário,mediante apropriadas medidas legais. O abuso dagreve pode conduzir à paralização da vida sócio-económica ; ora isto é contrário às exigências dobem comum da sociedade, o qual também

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corresponde à natureza, entendida rectamente, domesmo trabalho.

21. Dignidade do trabalho agrícolaTudo o que foi dito em precedência sobre a

dignidade do trabalho e sobre a dimensãoobjectiva e subjectiva do trabalho do homem, temaplicação directa ao problema do trabalhoagrícola e à situação do homem que cultiva a terrano duro trabalho dos campos. Trata-se,efectivamente, de um sector muito vasto doâmbito do trabalho do nosso planeta, nãocircunscrito a um ou a outro dos continentes enão limitado àquelas sociedades que já atingiramum certo nível de desenvolvimento e deprogresso. O mundo agrícola, que proporciona àsociedade os bens necessários para a suasustentação quotidiana, reveste-se de umaimportância fundamental. As condições do mundorural e do trabalho agrícola não são iguais emtoda a parte e as situações sociais dostrabalhadores agrícolas são diferentes nosdiversos países. E isso não depende somente dograu de desenvolvimento da técnica agrícola, mastambém, e talvez mais ainda, do reconhecimentodos justos direitos dos trabalhadores agrícolas e,enfim, do nível de consciência daquilo queconcerne a toda a ética social do trabalho.

O trabalho dos campos reveste-se de nãoleves dificuldades, como sejam o esforço físicocontínuo e por vezes extenuante, o pouco apreço

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em que é tido socialmente, a ponto de criar noshomens que se dedicam à agricultura a sensaçãode serem socialmente marginalizados e deincentivar no seu meio o fenómeno da fuga emmassa do campo para as cidades e, infelizmente,para condições de vida ainda maisdesumanizantes. A isto acrescente-se a falta deformação profissional adequada, a falta deutensílios apropriados, um certo individualismorastejante e, ainda situações objectivamente injustas.Em certos países em vias de desenvolvimento, hámilhões de homens que se vêem obrigados acultivar as terras de outros e que são exploradospelos latifundiários, sem esperança de alguma vezpoderem chegar à posse nem sequer de umpedaço mínimo de terra « como suapropriedade ». Não existem formas de protecçãolegal para a pessoa do trabalhador agrícola e paraa sua família, no caso de velhice, de doença ou defalta de trabalho. Longas jornadas de durotrabalho físico são pagadas miseramente. Terrascultiváveis são deixadas ao abandono pelosproprietários ; títulos legais para a posse de umpequeno pedaço de terra, cultivado por contaprópria de há anos, são preteridos ou ficam semdefesa diante da « fome da terra » de indivíduosou de grupos mais potentes. E mesmo nos paíseseconomicamente desenvolvidos, onde ainvestigação científica, as conquistas tecnológicasou a política do Estado levaram a agricultura a

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atingir um nível muito avançado, o direito aotrabalho pode ser lesado quando se nega aocamponês a faculdade de participar nas opçõesdecisionais respeitantes ao trabalho em que prestaos seus serviços, ou quando é negado o direito àlivre associação visando a justa promoção social,cultural e económica do trabalhador agrícola.

Em muitas situações, portanto, sãonecessárias mudanças radicais e urgentes, pararestituir à agricultura – e aos homens dos campos– o seu justo valor como base de uma sã economia, noconjunto do desenvolvimento da comunidadesocial. É por isso que se impõe proclamar epromover a dignidade do trabalho, de todo otrabalho, especialmente do trabalho agrícola, noqual o homem de maneira tão expressiva« submete a terra », recebida de Deus como dom,e afirma o seu « domínio » no mundo visível.

22. A pessoa deficiente e o trabalhoEm tempos recentes, as comunidades

nacionais e as organizações internacionais temvoltado a sua atenção para um outro problemarelacionado com o trabalho e que é bem denso dereflexos : o problema das pessoas deficientes.Também elas são sujeitos plenamente humanos,dotados dos correspondentes direitos inatos,sagrados e invioláveis, que, apesar das limitaçõese dos sofrimentos inscritos no seu corpo e nassuas faculdades, põem mais em relevo a dignidadee a grandeza do homem. E uma vez que a pessoa

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que tem quaisquer « deficiências » é um sujeitodotado de todos os seus direitos, deve facilitar-se-lhe a participação na vida da sociedade em todasas dimensões e a todos os níveis que sejamacessíveis para as suas possibilidades. A pessoadeficiente é um de nós e participa plenamente damesma humanidade que nós. Seria algoradicalmente indigno do homem e seria umanegação da humanidade comum admitir à vida dasociedade, e portanto ao trabalho, só os membrosna plena posse das funções do seu ser, porque,procedendo desse modo, recair-se-ia numa formagrave de discriminação, a dos fortes e sãos contraos fracos e doentes. O trabalho no sentidoobjectivo deve ser subordinado, também nestecaso, à dignidade do homem, ao sujeito dotrabalho e não às vantagens económicas.

Compete, pois, às diversas entidadesimplicadas no mundo do trabalho, ao dadordirecto bem como ao dador indirecto de trabalho,promover com medidas eficazes e apropriadas odireito da pessoa deficiente à preparaçãoprofissional e ao trabalho, de modo que ela possaser inserida numa actividade produtiva para a qualseja idónea. Aqui apresentam-se muitosproblemas de ordem prática, legal e tambémeconómica ; mas cabe à comunidade, quer dizer,às autoridades públicas, às associações e aosgrupos intermédios, às empresas e aos mesmosdeficientes pôr em comum ideias e recursos para

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se alcançar esta finalidade inabdicável : que sejaproporcionado um trabalho às pessoas deficientes, segundoas suas possibilidades, porque o requer a suadignidade de homens e de sujeitos do trabalho.Cada comunidade há-de procurar munir-se dasestruturas adaptadas para se encontrarem ou parase criarem lugares de trabalho para tais pessoas,quer nas comuns empresas públicas ou privadas –que lhes proporcionem um lugar de trabalhoordinário ou então adaptado para o seu caso –quer nas empresas e nos meios de trabalhochamados « de protecção ».

Uma grande atenção deverá ser dedicada,como para todos os outros trabalhadores, àscondições físicas e psicológicas de trabalho dosdeficientes, à sua justa remuneração, à suapossibilidade de promoção e à eliminação dosdiversos obstáculos. Sem querer esconder que setrata de uma tarefa complexa e não fácil, é paradesejar que uma concepção exacta do trabalho no sentidosubjectivo permita chegar-se a uma situação que dêà pessoa deficiente a possibilidade de sentir-senão já à margem do mundo e do trabalho ou aviver na dependência da sociedade, mas simcomo um sujeito do trabalho de pleno direito,útil, respeitado na sua dignidade humana echamado a contribuir para o progresso e para obem da sua família e da comunidade, segundo aspróprias capacidades.

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23. O trabalho e o problema daemigração

É necessário, por fim, dedicar uma palavra,ao menos de maneira sumária, ao problema daemigração por motivos de trabalho. Trata-se de umfenómeno antigo, mas que se repetecontinuamente e que nos dias de hoje assumemesmo dimensões tão grandes que são de moldea complicar a vida contemporânea. O homemtem sempre o direito de deixar o próprio país deorigem por diversos motivos – como também dea ele voltar – e de procurar melhores condiçõesde vida num outro país. Este facto, certamente,não anda disjunto de dificuldades de naturezadiversa ; primeiro que tudo, ele constitui, emgeral, uma perda para o país do qual se emigra. Éo afastamento de um homem, que é ao mesmotempo um membro de uma grande comunidade,unificada pela sua história, pela sua tradição e pelasua cultura, o qual parte para ir recomeçar umavida no seio de outra sociedade, unificada poruma outra cultura e, muitas vezes, também poruma outra língua. Neste caso, vem a faltar umsujeito de trabalho que, com o esforço do própriopensamento ou dos seus braços poderiacontribuir para o aumento do bem comum noseu país ; e eis que tal esforço e tal contribuiçãovão ser dados a outra sociedade, a qual, numcerto sentido, tem a isso menos direito do que apátria de origem.

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E no entanto, apesar de a emigração ser sobcertos aspectos um mal, em determinadascircunstâncias é, como se costuma dizer, um malnecessário. Devem envidar-se todos os esforços –e certamente muito se faz com tal finalidade –para que este mal no sentido material nãocomporte danos de maior no sentido moral, e atémesmo para que, na medida em que é possível,ele traga uma melhoria na vida pessoal, familiar esocial do emigrado ; e isto diz respeito quer aopaís de chegada quer à pátria de onde partiu.Neste domínio, muitíssimas coisas dependem deuma justa legislação, em particular quando se tratados direitos do homem do trabalho.Compreende-se, pois, que tal problema,sobretudo se focado deste ponto de vista, tenhacabimento no contexto das presentesconsiderações.

A coisa mais importante é que o homem quetrabalha fora do seu país natal, como emigradopermanente ou como trabalhador ocasional, nãovenha a encontrar-se desfavorecido pelo que serefere aos direitos relativos ao trabalho, emconfronto com os trabalhadores dessa sociedadedeterminada. A emigração por motivo de trabalhonão pode de maneira nenhuma tornar-se umaocasião de exploração financeira ou social. Noque diz respeito à relação de trabalho com otrabalhador imigrado devem ser válidos osmesmos critérios seguidos para todos os outros

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trabalhadores da mesma sociedade. O valor dotrabalho deve ser medido com a mesma medida enão tendo em linha de conta a diferença denacionalidade, de religião ou de raça. Com maisrazão ainda, não pode ser explorada a situação deconstrangimento em que se encontre o imigrado.Todas estas circunstâncias devem absolutamenteceder – naturalmente depois de terem sidotomadas em consideração as qualificaçõesespecíficas – diante do valor fundamental dotrabalho, valor que anda ligado com a dignidadeda pessoa humana. E uma vez mais vem ao casorepetir o princípio fundamental : a hierarquia dosvalores, o sentido profundo do trabalho exigemque o capital esteja em função do trabalho e nãoo trabalho em função do capital.

V. ELEMENTOS PARA UMA ESPIRITUALIDADE DO TRABALHO

24. Papel particular da igrejaA última parte das presentes reflexões sobre

o tema da trabalho humano, a propósito do 90°aniversário da Encíclica Rerum Novarum, convémdedicá-la à espiritualidade do trabalho no sentidocristão da expressão. Dado que o trabalho na suadimensão subjectiva é sempre uma acção pessoal,actus personae, daí se segue que é o homem todo quenele participa, com seu corpo e o seu espírito,independentemente do facto de ser um trabalhomanual ou intelectual. E é também ao homem

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todo que é dirigida a Palavra do Deus vivo, amensagem evangélica da Salvação, na qual seencontram muitos ensinamentos – como queluzes particulares – concernentes ao trabalhohumano. Ora, é necessária uma assimilaçãoadequada de tais ensinamentos ; é preciso oesforço interior do espírito humano, guiado pelafé, pela esperança e pela caridade, para dar aotrabalho do homem concreto, com a ajuda dessesensinamentos, aquele sentido que ele tem aos olhos deDeus e mediante o qual o mesmo trabalho entrana obra da salvação conjuntamente com as suastramas e componentes ordinárias e, ao mesmotempo, muito importantes.

Se a Igreja considera como seu deverpronunciar-se a respeito do trabalho, do ponto devista do seu valor humano e da ordem moral emque ele está abrangido, e se ela reconhece nissouma sua tarefa importante incluída no serviço quepresta à inteira mensagem evangélica, a mesmaIgreja vê simultaneamente um seu deverparticular na promoção de uma espiritualidade dotrabalho, susceptível de ajudar todos os homens aaproximarem-se através dele de Deus, Criador eRedentor, e a participarem nos seus desígniossalvíficos quanto ao homem e ao mundo, e aaprofundarem na sua vida a amizade com Cristo,assumindo mediante a fé uma participação vivana sua tríplice missão : de Sacerdote, de Profeta e

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de Rei, como ensina, usando expressõesadmiráveis, o II Concílio do Vaticano.

25. O trabalho como participação na obrado Criador

Como diz o II Concílio do Vaticano, « umacoisa é certa para os crentes : a actividade humanaindividual e colectiva, aquele imenso esforço comque os homens, no decurso dos séculos, tentarammelhorar as condições de vida, considerado em simesmo, corresponde ao desígnio de Deus.Efectivamente, o homem, criado à imagem deDeus, recebeu a missão de submeter a si a terra etudo o que ela contém, de governar o mundo najustiça e na santidade e, reconhecendo Deuscomo o Criador de todas as coisas, de se orientara si e ao universo todo para Ele, de maneira que,estando tudo subordinado ao homem, o nome deDeus seja glorificado em toda a terra ».27

Na Palavra da Revelação divina acha-semuito profundamente inscrita esta verdadefundamental : que o homem, criado à imagem deDeus, participa mediante o seu trabalho na obra doCriador e, num certo sentido, continua, na medidadas suas possibilidades, a desenvolvê-la e acompletá-la, progredindo cada vez mais nadescoberta dos recursos e dos valores contidosem tudo aquilo que foi criado. Esta verdadeencontramo-la logo no início da Sagrada

27 Conc. Ecum. Vat. II, Const. Past. sobre a Igreja no mundocontemporâneo Gaudium et Spes, 34 : AAS 58 (1966), p. 1052 s.

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Escritura, no Livro do Génesis, onde a mesmaobra da criação é apresentada sob a forma de um« trabalho » realizado durante seis dias por Deus,28

que se mostra a « repousar » no sétimo dia.29 Poroutro lado, o último Livro da Sagrada Escriturarepercute ainda o mesmo tom de respeito pelaobra que Deus realizou mediante o seu« trabalho » criador, quando proclama : « Grandese admiráveis são as Tuas obras, Senhor, DeusTodo-Poderoso ! » ;30 proclamação esta, bemanáloga à do Livro do Génesis, quando encerra adescrição de cada dia da criação afirmando : « EDeus viu que isso era bom ».31

Esta descrição da criação, que nósencontramos já no primeiro capítulo do Livro doGénesis, é ao mesmo tempo, num certo sentido, oprimeiro « evangelho do trabalho ». Ela mostra, defacto, em que é que consiste a sua dignidade :ensina que o homem, ao fazer o trabalho, deveimitar Deus, seu Criador, porque traz em si – eele somente – este singular elemento desemelhança com Ele. O homem deve imitar Deusquando trabalha, assim como quando repousa,dado que o mesmo Deus quis apresentar-lhe aprópria obra criadora sob a forma do trabalho e sob aforma do repouso. E esta obra de Deus no mundo

28 Cfr. Gn 2, 2 ; Ex 20, 8.11 ; Dt 5, 12-14.29 Cfr. Gn 2, 3.30 Ap 15, 3.31 Gn 1, 4. 10. 12. 18. 21. 25. 31.

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continua sempre, como o atestam as palavras deCristo : « Meu Pai opera continuamente... » :32

opera com a força criadora, sustentando naexistência o mundo que chamou do nada ao ser ;e opera com a força salvífica nos corações doshomens, que desde o princípio destinou para o« repouso »33 em união consigo mesmo, na « casado Pai ».34 Por isso, também o trabalho humanonão só exige o repouso cada « sétimo dia »,35 masalém disso não pode consistir apenas no exercíciodas forças humanas na acção exterior : ele tem dedeixar um espaço interior, no qual o homem,tornando-se cada vez mais aquilo que deve sersegundo a vontade de Deus, se prepara paraaquele « repouso » que o Senhor reserva para os seusservos e amigos.36

A consciência de que o trabalho humano éuma participação na obra de Deus, deveimpregnar – como ensina o recente Concílio –« também as actividades de todos os dias. Assim, oshomens e as mulheres que, ao ganharem osustento para si e para as suas famílias, exercemas suas actividades de maneira a bem servir asociedade, têm razão para considerar o seutrabalho um prolongamento da obra do Criador,

32 Jo 5, 17.33 Heb 4, 1. 9-10.34 Jo 14, 2.35 Dt 5, 12-14 ; Ex 20, 8-12.36 Cfr. Mt 25, 21.

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um serviço dos seus irmãos e uma contribuiçãopessoal para a realização do plano providencial deDeus na história ».37

É necessário, pois, que esta espiritualidadecristã do trabalho se torne património comum detodos. É necessário, sobretudo na época actual,que a espiritualidade do trabalho manifeste aquelamaturidade que exigem as tensões e asinquietudes dos espíritos e dos corações : « Longede pensar que as obras do engenho e do poderhumano se opõem ao poder de Deus e deconsiderar a criatura racional como rival doCriador, os cristãos, ao contrário, estão bempersuadidos de que as vitórias do género humanosão um sinal da grandeza de Deus e são fruto doseu desígnio inefável. Mas, quanto mais aumentao poder dos homens, tanto mais se alarga ocampo das suas responsabilidades, pessoais ecomunitárias... A mensagem cristã não afasta oshomens da tarefa de construir o mundo, nem osleva a desinteressar-se do bem dos seussemelhantes, mas, pelo contrário, obriga-os aaplicar-se a tudo isto por um dever ainda maisexigente ».38

A consciência de participar, mediante otrabalho, na obra da criação constitui motivaçãobem profunda para empreendê-lo em diversos

37 Conc. Ecum. Vat. II, Const. Past. sobre a Igreja no mundocontemporâneo Gaudium et Spes, 34 : AAS 58 (1966), p. 1052 s.38 Ibid.

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sectores : « Os fiéis, portanto – lemos naConstituição Lumen Gentium – devem reconhecera natureza íntima de todas as criaturas, o seu valore a sua ordenação para a glória de Deus, e devemajudar-se mutuamente, mesmo através dasactividades propriamente seculares, a procurarlevar uma vida mais santa, para que assim omundo seja impregnado do espírito de Cristo eatinja mais eficazmente o seu fim, na justiça, nacaridade e na paz... Por conseguinte, com a suacompetência nas matérias profanas e pela suaactividade intrinsecamente elevada pela graça deCristo, contribuam com todas as suas forças paraque os bens criados sejam valorizados pelotrabalho humano, pela técnica e pela cultura... deharmonia com os fins que lhes deu o Criador esegundo a iluminação do Seu Verbo ».39

26. Cristo, o homem do trabalhoEsta verdade, segundo a qual o homem

mediante o trabalho participa na obra do próprioDeus, seu Criador, foi particularmente posta emrelevo por Jesus Cristo, aquele Jesus de quem muitosdos seus primeiros ouvintes em Nazaré « ficavamadmirados e exclamavam : " Donde lhe veio tudoisso ? E que sabedoria é essa que lhe foi dada ?...Porventura não é este o carpinteiro "... ? ».40 Comefeito, Jesus não só proclamava, mas sobretudo

39 Conc. Ecum. Vat. II, Const. Dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 36 :AAS 57 (1965), p.41.40 Mc 6, 2-3.

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punha em prática com as obras o « Evangelho »que lhe tinha sido confiado, a Palavra daSabedoria eterna. Por esta razão, tratava-severdadeiramente do « evangelho do trabalho »,pois Aquele que o proclamava era Ele próprio homem dotrabalho, do trabalho artesanal como José deNazaré.41 E ainda que não encontremos nas suaspalavras o preceito especial de trabalhar – atémesmo, uma vez, a proibição de se preocupar deuma maneira excessiva com o trabalho e com osmeios para viver42 – contudo, ao mesmo tempo, aeloquência da vida de Cristo é inequívoca : Elepertence ao « mundo do trabalho » e tem apreço erespeito pelo trabalho humano ; pode-se mesmodizer mais : Ele encara com amor este trabalho, bemcomo as suas diversas expressões, vendo em cadauma delas uma linha particular da semelhança dohomem com Deus, Criador e Pai. Não foi Ele,porventura, que disse « Meu Pai é oagricultor... »,43 transpondo de diversas maneiraspara o seu ensino aquela verdade fundamental sobreo trabalho que já se encontra expressa em toda atradição do Antigo Testamento, a começar peloLivro do Génesis ?

Nos Livros do Antigo Testamento não faltamfrequentes referências ao trabalho humano, assimcomo às diversas profissões exercidas pelo

41 Cfr. Mt 13, 55.42 Cfr. Mt 6, 25-34.43 Jo 15, 1.

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homem ; assim, por exemplo : ao médico,44 aofarmacêutico,45 ao artesão-artista,46 ao artífice doferro47 – esta expressão poder-se-ia referir aotrabalho do operário siderúrgico de hoje – aooleiro,48 ao agricultor,49 ao estudioso,50 aonavegador,51 ao trabalhador da construção,52 aomúsico,53 ao pastor54 e ao pescador.55 E sãoconhecidas as belas palavras dedicadas aotrabalho das mulheres.56 O próprio Jesus, nas suasparábolas sobre o Reino de Deus, refere-seconstantemente ao trabalho humano : ao trabalhodo pastor,57 do agricultor,58 do médico,59 dosemeador,60 do amo,61 do servo,62 do feitor,63 do

44 Cfr. Ecl 38, 1-3.45 Cfr. Ecl 38, 4-8.46 Cfr. Êx 31, 1-5 ; Ecl 38, 27.47 Cfr. Gn 4, 22 ; Is 44, 12.48 Cfr. Jr 18, 3-4 ; Ecl 38, 29-30.49 Cfr. Gn 9, 20 ; Is 5, 1-2.50 Cfr. Ecl 12, 9-12 ; Ecl 39, 1-8.51 Cfr. Sal 107 (108), 23-30 ; Sab 14, 2-3a.52 Cfr. Gn 11, 3 ; 2 Re 12, 12-13 ; 22, 5-6.53 Cfr. Gn 4, 21.54 Cfr. Gn 4, 2 ; 37, 3 ; Ex 3, 1 ; 1 Sm 16, 11 ; passim.55 Cfr. Ez 47, 10.56 Cfr. Prov 31, 15-27.57 Por ex. Jo 10, 1-16.58 Cfr. Mc 12, 1-12.59 Cfr. Lc 4, 23.60 Cfr. Mc 4, 1-9.61 Cfr. Mt 13, 52.62 Cfr. Mt 24, 45 ; Lc 12, 42-48.63 Cfr. Lc 16, 1-8.

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pescador,64 do comerciante65 e do operário.66 Efala também das diversas actividades dasmulheres.67 Apresenta o apostolado sob a imagemdo trabalho braçal dos ceifeiros68 ou dospescadores.69 E, enfim, refere-se também aotrabalho dos estudiosos.70

Este ensino de Cristo sobre o trabalho,baseado no exemplo da própria vida vividadurante os anos de Nazaré, encontra um eco bemforte no ensino do Apóstolo São Paulo. Dedicando-seprovavelmente à confecção de tendas,71 São Paulosentia-se ufano de trabalhar no seu ofício, graçasao qual podia, muito embora sendo apóstolo,ganhar por si mesmo o seu pão de cada dia :72

« Trabalhamos noite e dia, entre fadigas eprivações, para não sermos pesados a nenhum devós ».73 Daqui derivam as suas instruções arespeito do trabalho, que têm um carácter deexortação e de preceito : « A esses tais ordenamos eincitamos, no Senhor Jesus Cristo, que trabalhem

64 Cfr. Mt 13, 47-50.65 Cfr. Mt 13, 45-46.66 Cfr. Mt 20, 1-16.67 Cfr. Mt 13, 33 ; Lc 15, 8-9.68 Cfr. Mt 9, 37 ; Jo 4, 35-38.69 Cfr. Mt 4, 19.70 Cfr. Mt 13, 52.71 Cfr. Act 18, 3.72 Cfr. Act 20, 34-35.73 2 Ts 3, 8. S. Paulo reconhece aos missionários o direito aos meios desubsistência : 1 Cor 9, 6-14 ; Gál 6, 6 ; 2 Tes 3, 9 ; cfr. Lc 10, 7.

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em paz, para poderem assim comer o pão ganhopor eles próprios », são palavras suas, escritas aosTessalonicenses.74 Com efeito, notando quealguns « levam uma vida preguiçosa, em lugar detrabalharem »,75 o Apóstolo, no mesmo contexto,não hesita em dizer : « Se alguém não quertrabalhar, abstenha-se também de comer ».76 Enuma outra passagem, ao contrário, ele estimula :« Qualquer coisa que fizerdes, fazei-a com todo ocoração, como se fora para o Senhor, e não paraos homens, sabendo que do Senhor recebereiscomo recompensa a herança ».77

Os ensinamentos do Apóstolo das Gentes,como se vê, têm uma importância-chave para amoral e para a espiritualidade do trabalhohumano. Eles são complemento importante paraaquele grande, se bem que discreto, « evangelhodo trabalho » que nós encontramos na vida deCristo, nas suas parábolas e em « tudo quantoJesus foi fazendo e ensinando ».78

Com base nestas luzes, que emanam daprópria Fonte, a Igreja proclamou sempre o quesegue e cuja expressão contemporânea encontramosno ensino do II Concílio do Vaticano : « Aactividade humana, do mesmo modo que procede

74 2 Ts 3, 12.75 2 Ts 3, 11.76 2 Ts 3, 10.77 Cl 3, 23-24.78 Act 1, 1.

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do homem, assim também para ele se ordena. Defacto, quando trabalha o homem não transformaapenas as coisas materiais e a sociedade, masrealiza-se a si mesmo. Aprende muitas coisas,desenvolve as próprias faculdades, sai de si esupera-se a si mesmo. Este desenvolvimento, sefor bem compreendido, vale mais do que os bensexteriores que se possam acumular... É a seguinte,pois, a norma para a actividade humana : segundoo plano e a vontade de Deus, ser conforme como verdadeiro bem da humanidade e tornarpossível ao homem, individualmente consideradoou como membro da sociedade, cultivar e realizara sua vocação integral ».79

No contexto de tal visão dos valores do trabalhohumano, ou seja, de uma tal espiritualidade dotrabalho, explica-se perfeitamente aquilo que nomesmo ponto da Constituição pastoral doConcílio se lê sobre o justo significado do progresso :« O homem vale mais por aquilo que é do quepor aquilo que tem. Do mesmo modo tudo o queo homem faz para conseguir mais justiça, umafraternidade mais difundida e uma ordem maishumana nas relações sociais, excede em valor osprogressos técnicos. Com efeito, tais progressospodem proporcionar a base material para a

79 Con. Ecum. Vat. II, Const. Past. sobre a Igreja no mundocontemporâneo Gaudium et Spes, 35 AAS 58 (1966) p. 1053.

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promoção humana, mas, por si sós, de modonenhum são capazes de a realizar ».80

Esta doutrina sobre o problema do progressoe do desenvolvimento – tema tão dominante namentalidade contemporânea – poderá serentendida somente como fruto de umaespiritualidade do trabalho já provada, e somentesobre a base de uma tal espiritualidade é que ela podeser realizada e posta em prática. Esta é a doutrinae ao mesmo tempo o programa que lançam asraízes no « evangelho do trabalho ».

27. O trabalho humano à luz da Cruz e daRessurreição de Cristo

Há ainda um outro aspecto do trabalhohumano, uma sua dimensão essencial, em que aespiritualidade fundada no Evangelho penetraprofundamente. Todo o trabalho, seja ele manual ouintelectual, anda inevitavelmente conjunto àfadiga. O Livro do Génesis exprime isto mesmo demaneira verdadeiramente penetrante, aocontrapor àquela benção original do trabalho,contida no próprio mistério da Criação e ligada àelevação do homem como imagem de Deus, amaldição que o pecado trouxe consigo : « Malditaseja a terra por tua causa ! Com trabalho penosotirarás dela o alimento todos os dias da tuavida »,81 Esta pena ligada ao trabalho indica ocaminho da vida do homem sobre a terra e

80 Ibid.81 Gn 3, 17.

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constitui o anúncio da morte : « Comerás o pão como suor da fronte, até que voltes à terra da qualfoste tirado... ».82 Como que fazendo-se eco destaspalavras, assim se exprime o autor de um dosLivros sapienciais : « Reflecti em todas as obrasrealizadas por minhas mãos e em todas as fadigasa que me submeti... ».83 Não há homem algumsobre a terra que não possa fazer suas estaspalavras.

O Evangelho profere, em certo sentido, a suaúltima palavra a propósito disto ainda, nomistério pascal de Jesus Cristo. E é aqui que épreciso ir procurar a resposta para estesproblemas tão importantes para a espiritualidadedo trabalho humano. No mistério pascal estácontida a Cruz de Cristo, a sua obediência até àmorte, que o Apóstolo contrapõe àqueladesobediência que pesou desde o princípio nahistória do homem sobre a terra.84 Aí está contidatambém a elevação de Cristo que, passando pelamorte de cruz, retorna para junto dos seusdiscípulos com a potência do Espírito Santo pelaRessurreição.

O suor e a fadiga, que o trabalho comportanecessariamente na presente condição dahumanidade, proporcionam aos cristãos e a todoo homem, dado que todos são chamados para

82 Gn 3, 19.83 Ecl 2, 11.84 Cfr. Rom 5, 19.

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seguir a Cristo, a possibilidade de participar noamor à obra que o mesmo Cristo veio realizar.85

Esta obra de salvação foi realizada por meio dosofrimento e da morte de cruz. Suportando o quehá de penoso no trabalho em união com Cristocrucificado por nós, o homem colabora, de algummodo, com o Filho de Deus na redenção dahumanidade. Mostrar-se-á como verdadeirodiscípulo de Jesus, levando também ele a cruz decada dia86 nas actividades que é chamado arealizar.

Cristo, « suportando a morte por todos nós,pecadores, ensina-nos com o seu exemplo sernecessário que também nós levemos a cruz que acarne e o mundo fazem pesar sobre os ombrosdaqueles que buscam a paz e a justiça » ; aomesmo tempo, porém, « constituído Senhor pelasua Ressurreição, Ele, Cristo, a quem foi dado todoo poder no céu e na terra, opera já pela virtude doEspírito Santo, nos corações dos homens...purificando e robustecendo aquelas generosasaspirações que levam a família dos homens atentar tornar a sua vida mais humana e asubmeter para esse fim toda a terra ».87

No trabalho humano, o cristão encontra umapequena parcela da cruz de Cristo e aceita-a com

85 Cfr. Jo 17, 4.86 Cfr. Lc 9, 23.87 Con. Ecum. Vat. II, Const. Past. sobre a Igreja no mundocontemporâneo Gaudium et Spes, 38 AAS 58 (1966) p. 1055 s.

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o mesmo espírito de redenção com que Cristoaceitou por nós a sua Cruz. E, graças à luz que,emanando da Ressurreição do mesmo Cristo,penetra dentro de nós, descobrimos sempre notrabalho um vislumbre da vida nova, do novo bem,um como que anúncio dos « céus novos e danova terra »,88 os quais são participados pelohomem e pelo mundo precisamente mediante oque há de penoso no trabalho. Mediante a fadigae nunca sem ela. Ora tudo isto, por um lado,confirma ser indispensável a cruz numaespiritualidade do trabalho humano ; por outrolado, porém, patenteia-se nesta cruz, no que nelehá de penoso, um bem novo, o qual tem o seuprincípio no mesmo trabalho : no trabalhoentendido em profundidade e sob todos osaspectos, e jamais sem ele.

E será já este novo bem – fruto do trabalhohumano – uma pequena parcela daquela « novaterra » onde habita a justiça ?89 E em que relaçãopermanecerá ele com a Ressurreição de Cristo, se éverdade ser aquilo que multiformemente épenoso no trabalho do homem uma pequenaparcela da Cruz de Cristo ? O Concílio procuraresponder também a esta pergunta, indo haurirluz nas mesmas fontes da Palavra revelada : « Écerto que nos é lembrado que nada aproveita aohomem ganhar o mundo inteiro, se se perde a si

88 Cfr. 2 Pd 3, 13, Ap 21, 1.89 Cfr. 2 Pd 3, 13.

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mesmo (cf. Lc. 9, 25). A expectativa da novaterra, porém, não deve enfraquecer, mas antesestimular a solicitude por cultivar esta terra, ondecresce aquele corpo da nova família humana, quejá consegue apresentar uma certa prefiguração emque se vislumbra o mundo novo. Porconseguinte, embora se deva distinguircuidadosamente o progresso terreno docrescimento do reino de Cristo, todavia, namedida em que tal progresso pode contribuir paraa melhor organização da sociedade humana, temmuita importância para o reino de Deus ».90

Procurámos, ao longo das presentes reflexõesdedicadas ao trabalho humano, pôr em realcetudo aquilo que parecia indispensável, dado que émediante ele que devem multiplicar-se sobre aface da terra não só « os frutos da nossaactividade », mas também « a dignidade dohomem, a comunhão fraterna e a liberdade ».91 Ocristão que está atento em ouvir a Palavra deDeus vivo, unindo o trabalho à oração, procuresaber que lugar ocupa o seu trabalho não somenteno progresso terreno, mas também no desenvolvimentodo Reino de Deus, para o qual todos somoschamados pela potência do Espírito Santo e pelapalavra do Evangelho.

90 Con. Ecum. Vat. II, Const. Past. sobre a Igreja no mundocontemporâneo Gaudium et Spes, 39 AAS 58 (1966) p. 1057.91 Ibid.

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Ao concluir estas minhas reflexões, é-megrato dar-vos, a todos vós, veneráveis Irmãos ecaríssimos Filhos e Filhas, de todo o coração,uma propiciadora Bênção Apostólica.

Este documento, que eu havia preparadopara que fosse publicado a 15 de Maio passado,no 90° aniversário da Encíclica Rerum Novarum, sópôde ser revisto definitivamente por mim depoisda minha permanência por enfermidade nohospital.

Dado em Castel Gandolfo, no dia 14 de Setembro, Festa daExaltação da Santa Cruz, do ano de 1981, terceiro do meuPontificado.

IOANNES PAULUS PP. II

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