carta de despedida

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Carta de Despedida (do Desembargador Carlos Biasotti) Antes que viesse a público o decreto de minha aposentadoria compulsória por haver tocado a idade-limite para o regular exercício do cargo , lembrou-me que devia abraçar cada um dos colegas e amigos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, como forma de despedida. Dois óbices, porém, logo frustraram meu intento, e esses de grande peso e alcance: um, a angústia de tempo; outro, o receio de que a influência da emoção, presente sempre nessas ocasiões em que se aparta alguém do convívio dos que lhe são caros, me quebrantasse as forças e anulasse a capacidade de resistir a toda a adversidade.

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Carta de Despedida do Des. Carlos Biasotti

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Page 1: Carta de Despedida

Carta de Despedida(do Desembargador Carlos Biasotti)

Antes que viesse a público o decreto de minha

aposentadoria compulsória — por haver tocado a idade-limite

para o regular exercício do cargo —, lembrou-me que devia

abraçar cada um dos colegas e amigos do Tribunal de Justiça do

Estado de São Paulo, como forma de despedida.

Dois óbices, porém, logo frustraram meu intento, e

esses de grande peso e alcance: um, a angústia de tempo; outro, o

receio de que a influência da emoção, presente sempre nessas

ocasiões em que se aparta alguém do convívio dos que lhe são

caros, me quebrantasse as forças e anulasse a capacidade de

resistir a toda a adversidade.

Algumas palavras, no entanto, é mister que lhes diga,

aos distintos amigos; por serem as últimas, fio que mas levarão à

paciência.

Oriundo da classe dos advogados, exerci, por obra de

catorze anos, funções de Magistratura na Segunda Instância.

Page 2: Carta de Despedida

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Fiz quanto estava em minhas posses por não ser

indigno da grandeza do ofício, no qual descobria Rui “majestade

semidivina” (Obras Completas, vol. XXII, t. I, p. 182).

Em nenhum momento — diz-me a consciência —

faltei à confiança daqueles que me honraram com a indicação do

nome para servir à causa da Justiça. (Esta menção pertence aos

Conselheiros da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de São

Paulo, ao Órgão Especial do Tribunal de Justiça e ao íntegro e

saudoso Governador Mário Covas, que me nomeou para o cargo

de Juiz do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo,

pelo quinto constitucional, classe dos advogados).

Conheci a obra gigantesca e inestimável que realizam

os nobres Juízes de meu Estado, homens excedentes à craveira

comum, sujeitos insignes pelo saber, ciências e virtudes; estas,

não raro, praticadas em grau assinalável, e talvez heroico. Sim,

porque somente aquele que se consagra inteiro ao árduo

ministério de dispensar justiça pode ser contado entre os Juízes.

Tais são os que conheci no Tribunal, dignos não só de respeito e

estima, senão ainda reconhecimento e veneração.

A esses eminentes colegas (ia dizendo irmãos) que

me serviram de inspiração e paradigma na vida judiciária, mais

que palavras de agradecimento, lavro o protesto de que não

Page 3: Carta de Despedida

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cessarei de pedir a Deus lhes prolongue generosamente os dias

felizes!

Também aos que exercitam a Magistratura de

Primeiro Grau, rendo meu tributo de vivo apreço e gratidão: são

os primeiros que depõem as mãos sobre a matéria-prima da prova

para modelar a prestação jurisdicional.

Mesmo havendo consideração a que todos estamos

sujeitos a erro — “andar sempre sem tropeçar é privilégio do

Sol”, conforme aquilo do velho Bluteau (Vocabulário, 1712, t. I,

Prólogo) —, verifiquei, com suma alegria, que seus acertos eram

infinitamente mais numerosos que seus enganos. Passo a mais:

casos houve em que, tendo-lhes a Instância Recursal modificado

o teor da decisão, foi aí, a meu aviso, que se introduziu no

processo o equívoco. Numa palavra: na emenda é que surgiu o

erro!

É próprio do homem a tendência de melhorar cada

dia o que faz. Na esfera do Judiciário passa o mesmo: tivessem os

Juízes condições ideais de trabalho, produziriam certamente

melhor. Falta-lhes sobretudo o tempo. Ora, sem o concurso do

tempo, ninguém produz obra perfeita e acabada.

O critério da verdade não é o número, mas a

qualidade.

Page 4: Carta de Despedida

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O trabalho insano que o Juiz é obrigado a executar à

pressa trará, necessariamente, a marca da deficiência. O estilo da

Cavalaria — “rápido, ainda que mal feito”! — não convém aos

elevados negócios da Justiça. Para pôr cobro a este mal, só um

remédio: multiplicar o número dos Juízes, cuja função é

indelegável, ou restringir o acesso à via recursal.

Não resisto à força que me faz o desejo de reproduzir

aqui as palavras que, em 19 de fevereiro de 1931, escreveu o

preclaro Ministro do Supremo Tribunal Federal Pires e

Albuquerque (Antônio Joaquim Pires de Carvalho e

Albuquerque):

“A celeridade das decisões é, não há dúvida, uma das

condições da boa justiça; mas não é a única, nem a

principal. O que antes de tudo se quer é o acerto e

este não dispensa o estudo demorado das questões e

exige que sejam resolvidas com ponderação, sem

impaciências e sem atropelos” (Culpa e Castigo de

um Magistrado, 3ª ed., p. 118).

Tendo de afastar-me do Tribunal — e, pois, daqueles

que lhe asseguram a existência e o funcionamento, como são os

Juízes e mais Servidores e a Assessoria Policial Militar —, levarei

comigo muita recordação, orgulho e saudade; mágoa, nenhuma.

Page 5: Carta de Despedida

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O orgulho será por ter podido servir, como obscuro juiz, num

Tribunal, cuja grandeza e respeitabilidade os cultores do Direito

geralmente reconhecem e proclamam.

A meus ilustres colegas (Desembargadores e Juízes

de Direito de Primeiro Grau), sem exceção, rogo aceitem, com

um abraço fraterno, a expressão de meu reconhecimento e

acendrado respeito. Registro também, comovido, meu

agradecimento aos membros do Ministério Público: deram-me

lições constantes de Direito e de amor à Justiça. Aos advogados,

indispensáveis à administração da justiça, declaro profunda

simpatia e cordialidade. Ajunto mais que me confirmaram na

verdade daquele merecido elogio do bom Juiz Eliézer Rosa: “A

nobreza elegeu seu domicílio entre os advogados” (A Voz da

Toga, 1ª ed., p. 34).

Por fim, reservo um preito de saudade àqueles

eminentes Desembargadores com quem tratei, em grata e

benfazeja camaradagem, na colenda 5ª Câmara de Direito

Criminal: Damião Cogan, Pinheiro Franco, Tristão Ribeiro,

Marcos Zanuzzi, Sérgio Rui e Juvenal Duarte. Nesse número

incluo também o digno Procurador de Justiça Rubem Ferraz de

Oliveira, figura exponencial de sua Instituição.

Fica, por igual, consignado aqui meu sincero

agradecimento e particular admiração aos Desembargadores Luiz

Page 6: Carta de Despedida

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Carlos Ribeiro dos Santos e Luiz Elias Tâmbara (por haverem

presidido à cerimônia de minha posse, respectivamente, no

Tribunal de Alçada Criminal e no Tribunal de Justiça).

Aos mui distintos, competentes e honrados

Desembargadores Roberto Antonio Vallim Bellocchi

(Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo) e

Eduardo Pereira Santos (Presidente da Seção de Direito

Criminal), minha gratidão e respeitosa homenagem.

Cumprimento, com ânimo agradecido, aos

funcionários do Tribunal, notadamente os de meu gabinete de

trabalho e do 3º Grupo de Câmaras.

Ao descer, trêmulo de emoção, a majestosa escadaria

do Palácio da Justiça, inclino-me profundamente perante estes

dois vultos, a todas as luzes grandes: Desembargador Alexandre

Moreira Germano, Diretor do Museu do Tribunal de Justiça, e

Paulo Bomfim (“Príncipe dos Poetas Brasileiros”). Com este,

repito: “Passamos uma época da vida colecionando emoções, a

outra, saudades” (O Colecionador de Minutos, 1ª ed., p. 16).

Adeus!

São Paulo, 22 de novembro de 2009

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_____________________________ Carlos BIASOTTI