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InTraduções, ISSN 21767904, Florianópolis, v. 4, n. 7, p.6876, jul./dic., 2012. Entrevista com Carsten Sinner Patrícia Rodrigues Costa Sátia Marini * Entrevista recebida em: 30/09/2012 Aceita em: 17/12/2012 Carsten Sinner é tradutor e intérprete de espanhol, catalão e português para o alemão e um dos principais pesquisadores da tradução da língua portuguesa na Alemanha. Graduado em Tradução pela Humboldt-Universität em Berlim, doutorou-se no Institut für Romanistik da Universidade de Potsdam sob o titulo: El castellano de Cataluña: aspectos cualitativos y cuantitativos. Atualmente, Sinner atua como docente na Universidade de Leipzig onde leciona teoria, história, prática e ensino de tradução. Paralelamente desenvolve pesquisas sobre variação e mudanças linguísticas e terminologia. Considerado como um dos principais pesquisadores em tradução do português para o alemão de sua geração, foi palestrante convidado do 2º Seminário de Estudos em Tradução na Universidade de Brasília em maio de 2012, ocasião em que nos concedeu a entrevista que segue. * UnB [email protected] ; UnB [email protected]

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  In‐Traduções, ISSN 2176‐7904, Florianópolis, v. 4, n. 7, p.68‐76, jul./dic., 2012. 

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Entrevista com Carsten Sinner

Patrícia Rodrigues Costa Sátia Marini*

Entrevista recebida em: 30/09/2012

Aceita em: 17/12/2012

Carsten Sinner é tradutor e intérprete de espanhol, catalão e português para o alemão e

um dos principais pesquisadores da tradução da língua portuguesa na Alemanha.

Graduado em Tradução pela Humboldt-Universität em Berlim, doutorou-se no Institut

für Romanistik da Universidade de Potsdam sob o titulo: El castellano de Cataluña:

aspectos cualitativos y cuantitativos. Atualmente, Sinner atua como docente na

Universidade de Leipzig onde leciona teoria, história, prática e ensino de tradução.

Paralelamente desenvolve pesquisas sobre variação e mudanças linguísticas e

terminologia. Considerado como um dos principais pesquisadores em tradução do

português para o alemão de sua geração, foi palestrante convidado do 2º Seminário de

Estudos em Tradução na Universidade de Brasília em maio de 2012, ocasião em que

nos concedeu a entrevista que segue.

                                                            * UnB [email protected]; UnB [email protected]

 

  In‐Traduções, ISSN 2176‐7904, Florianópolis, v. 4, n. 7, p.68‐76, jul./dic., 2012. 

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Senhor Sinner, como surgiu seu interesse pelo espanhol e, posteriormente, pelo

português?

Fiz espanhol como quarta língua estrangeira no Liceu. Depois do nosso Abituri,

após treze anos de estudo, fui a Madrid, onde tinha amigos brasileiros e portugueses,

para melhorar o meu espanhol. Passamos alguns fins de semana em Lisboa. Gostei da

língua e, naquela altura, achei engraçada. Quando voltei à Alemanha para estudar,

decidi fazer tradução e interpretação. Era pouco depois da queda do muro, nos anos

1990, e pensei que as línguas eslavas teriam muita importância no futuro. Pensava em

fazer o polonês moderno ou línguas eslavas, mas percebi que seria impossível conseguir

aprender a língua e me tornar tradutor em quatro anos. Não era possível se matricular

em Grego. Holandês também não era possível, pois a pessoa que dava aulas havia sido

da polícia secreta e tinha sido colocada para fora da universidade. Pouco a pouco

eliminava as possibilidades. Então decidi que ia ser o português. Fiquei receoso por

serem duas línguas tão próximas e ter problemas de interferência. Como já falava bem o

espanhol, me concentrei em falar bem o português. E com o estudo da língua nasce o

interesse pela cultura, e passei a gostar cada vez mais da literatura.

O senhor é tradutor e intérprete desde 1997. O que o levou a trabalhar nestas

áreas e qual o seu principal foco de interesse?

O que me levou a trabalhar foi a possibilidade de fazer estes estudos. Alguém

me falou de Interpretação e Tradução, que não tinha em Berlim ocidental, era pouco

depois da queda do muro. Fui a Berlim oriental, e voltei para casa inscrito em Tradução

e Interpretação na Humboldt-Universität de Berlim. Terminei o Grundstudiumii e depois

fiquei na Tradução e Interpretação. Durante os estudos, tive que me especializar em

uma matéria não linguística, o que era obrigatório nos estudos de Tradução e

Interpretação. Escolhi estudos internacionais de sociologia, demografia. Em português

fazia tradução técnica e em espanhol, econômica. Sempre gostei de tradução na área de

agricultura e agroeconomia. O que menos fiz foi tradução jurídica. Mas, sou intérprete

juramentado nos tribunais de Berlim e tive que me especializar um pouco nessa área.

 

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Normalmente pergunto em que área é o trabalho, se acho que sou capacitado, aceito o

trabalho, se não sou, não aceito.

No Brasil, as profissões de tradutor e intérprete não são regulamentadas. Quais

são os pré-requisitos para ser tradutor e intérprete na Alemanha, e como é vista esta

profissão lá atualmente?

Qualquer pessoa na Alemanha pode traduzir, mas para fazer uma tradução

juramentada tem que ser registrado como tal. Em Berlim, quem não fez Tradução e

Interpretação tem que fazer uma prova. Quem fez o curso na universidade não tem que

fazer a prova, pois o estado de Berlim o aceita como profissional no estado. Como tenho

título de tradutor de espanhol e de português para o alemão, apresentei os documentos e

obtive a permissão para trabalhar com o carimbo, como dizemos. Para o catalão, tive

que mostrar por outros meios que sou capacitado, por meio de cartas de empresas e de

pessoas que me contrataram para tradução do catalão. O problema na Alemanha são os

intrusos, uma pessoa que não é tradutora, mas trabalha como tal. Os clientes não são

conscientes do que significa a tradução. Acho que melhorou muito a imagem do

tradutor na Alemanha. Antes o tradutor não tinha que pensar, só tinha que escrever na

outra língua. Essa era a ideia que se tinha de tradução. Se o tradutor perguntava algo ao

cliente, para melhorar a tradução, significava que ele não era bom tradutor. Isso mudou.

Cada vez mais os clientes sabem que precisam cooperar e fornecer material para o

tradutor fazer uma boa tradução. Também tem a ver com a formação que os tradutores

de hoje recebem, de que não são apenas laborantes da área de tradução, mas peritos na

língua. Têm que vender esta imagem. Não faço apenas tradução, vendo um produto de

primeira categoria que é um texto elaborado por um perito nesta área.

Quais são os principais desafios atualmente da tradução no contexto alemão?

Os desafios da tradutologia? Precisamos de mais linguística, para conhecer

melhor o material com o qual trabalhamos. Não se deve interpretar isso negativamente.

Não só aspectos culturais e pragmáticos são importantes. Os tradutores também devem

ter conhecimentos linguísticos. É interessante nesse momento, para a translatologia

 

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conseguir avançar e superar obstáculos, trabalhar em linguística, aplicar a linguística a

grandes perguntas que ainda temos sobre tradução e interpretação. Por exemplo: como

medir a qualidade? Normalmente um texto é considerado bom quando não tem erros.

Mas não ter erros não significa que seja um texto bom. Precisamos da linguística.

Sabemos que as estruturas passivas são mais frequentes em alemão do que em

português. Mas isso foi pouco estudado. Quanto é muito e quanto é pouco? Para saber

se uma tradução se aproxima do que seria esperado em português, traduzido por uma

pessoa nativa, é preciso fazer uma análise. Primeiro se analisa em alemão, depois em

português e depois se compara com as traduções para saber se elas são boas ou não.

Obviamente temos que fazer diferença entre o que é um estilo individual e o que é

generalizado. Não posso saber o que é estilo individual se não souber o que é normal.

Atualmente, com as possibilidades da linguística de corpus, podemos contribuir para

melhorar o conhecimento que temos sobre os textos.

Um desafio que temos realmente e devemos nos esforçar para enfrentar na

formação dos tradutores é fazê-los conhecer a responsabilidade que têm com sua língua.

Notamos que alguns alunos riem quando falamos de anglicismos. Eles dizem: “o senhor

faz críticas aos anglicismos.” Sempre respondo a eles: se houver uma expressão

equivalente em língua alemã, porque usar o anglicismo? Em determinado momento os

anglicismos foram decisivos para todos os nomes de produtos que temos, no âmbito dos

computadores, da internet, etc. Alguém traduziu os termos do inglês, e decidiu deixar

igual. Foi uma decisão com consequências eternas. Se o anglicismo for usado e aceito,

poderá virar norma. É a frequência de uso que faz com que o anglicismo se integre à

língua. Explico que eles têm uma responsabilidade. Poderíamos falar ainda dos casos –

dativo, acusativo, genitivo – em alemão, sobre usar determinados verbos mais

frequentes ou menos frequentes, ou usar formas coloquiais em textos escritos.

O senhor segue alguma teoria ou metodologia para traduzir? Usa estratégias

diferentes para traduzir do português, do galego ou do espanhol para o alemão?

Eu acho que tenho uma metodologia interiorizada de alguma forma. Há coisas

que até hoje levo em consideração, que faço sem perceber e que devo ensinar aos

alunos. Por exemplo, a análise pré-tradução, determinação do tipo de texto e de

 

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estratégias pertinentes. Acho que depois de tantos anos de prática, a metodologia já se

tornou um ato automático para mim. O que faço é determinar se o texto é muito ou

pouco técnico. Isso se faz em poucas páginas. Obviamente, já sei de algumas coisas

simplesmente pela prática, certas estruturas do espanhol ou do galego. Sei que

determinadas estruturas não podem ser reproduzidas em alemão. É automático, como

mudar a sintaxe. O que estou a fazer há alguns anos é tentar evitar linguagem

excludente, buscando compor textos politicamente corretos, isto é, que contemplem

ambos os sexos e que, sobretudo, não reproduzam lugares comuns. Acabamos

evocando, mais uma vez, a responsabilidade do tradutor ou da tradutora, de como fazer

com que o texto seja lido. Eu realmente tento fazer com que esses conhecimentos se

tornem conscientes, de forma a discuti-los com meus alunos, buscando aplicações

práticas. Por exemplo, empregar uma vez “alunos” e, na frase seguinte, usar “alunas”,

dizer uma vez “alunos e alunas” e depois falar “as pessoas nas minhas aulas” ou “os que

vão às minhas aulas”. Tal procedimento evita a repetição, e produz um texto mais leve.

Trata-se de uma das maneiras de expor as responsabilidades que temos em relação a

nossa língua. A língua alemã, por exemplo, sofreu alterações consideráveis a partir do

instante em que começou a usar estruturas ambíguas para contemplar relações que

incluam ambos os gêneros. Progressivamente, os leitores passaram a aceitar as

adequações linguísticas e a se familiarizar com elas. Naturalmente, as primeiras

impressões geraram críticas, mas, aos poucos, as mudanças se cristalizaram. Os

tradutores, os linguistas, foram os responsáveis pelo registro das mudanças. Atualmente,

para as novas gerações, o emprego das novas fórmulas já se tornou algo natural.

Poderia diferenciar problemas e dificuldades de tradução? Quais são as

principais dificuldades e problemas que o senhor encontra nas traduções?

É uma diferença que, a princípio, já se estabelece na Escola de Leipiz. Podemos

ver a diferença entre uma coisa inerente ao par linguístico com o qual estou a trabalhar e

a outra, de coisas que têm a ver com a minha capacidade de tradutor. O problema tem a

ver com as estruturas das línguas, e a dificuldade refere-se à minha responsabilidade, ao

meu conhecimento ou desconhecimento do idioma. Essa terminologia é usada por

Christiane Nord, e a considero muito, muito útil. Entre português, espanhol, catalão,

 

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galego e alemão, a principal dificuldade para os meus alunos é simplesmente o

desconhecimento das línguas, ou seja, aquilo que ainda não aprenderam. As

dificuldades são individuais, mas normalmente quanto mais difíceis são os textos, a

terminologia empregada, e determinadas estruturas, mais dificuldade terão. Ou, o

oposto, quanto mais conhecimento da língua, mais conhecimento da cultura eles

tenham, menos dificuldades terão para traduzir. Quanto aos problemas, poderia

começar, por exemplo, com a estrutura, a diferença da sintaxe. Algo que percebo com

frequência é a não repetição do sujeito em português e espanhol, por exemplo, buscando

sinônimos para eles. Isso é difícil para os meus alunos, pois muitas vezes não percebem

que se trata do mesmo sujeito. Em alemão não fica feio repetir o sujeito, por isso é

normal que use no texto, por exemplo, “o banco”, “o banco”, “o banco” quando no texto

em espanhol ou português seriam várias palavras distintas. Em geral os problemas quase

sempre abordam as diferenças na gramática. Poderíamos ainda citar a linguística

contrastiva. Acho muito, muito interessantes os problemas que os espanhóis e os

portugueses têm com os artigos do alemão: determinado, indeterminado, quando se

emprega ou não se emprega o artigo. É difícil para os estudantes identificarem todas as

estruturas com “-se”, as estruturas que eles não conhecem. Esse “-se” é uma estrutura

reflexiva ou é outra entre os vários tipos de estruturas com “-se”? Para eles é isso é

mortal. Por exemplo: “Faz-se muito.”, quem faz?

Suas principais áreas de pesquisa são a linguística variacionista e a

sociolinguística. Fale-nos um pouco sobre suas últimas pesquisas nessas áreas.

Ultimamente tenho tentado unir a “linguística da variação” e os estudos da

tradução. Eu gosto de atentar para a importância de conhecer a variedade. No Brasil,

linguística variacionista é sempre associada com Labov, não é? O que eu faço é

linguística da variação, não é necessariamente Labov, segue mais a Escola de Coseriu,

da variação linguística, da arquitetura da língua desenvolvida na romanística na

Alemanha, que é muita importante. Tenho vários trabalhos sobre a variação diatópica,

diastrática, diafásica na tradução. Uma colega do nosso departamento pesquisa a

variação nos textos jurídicos. Muitas pessoas acham que os textos técnicos não têm

variação, mas têm muitíssima variação. Acho interessante pesquisar nessa área também

 

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para buscar uma conscientização sobre esse problema, que não é apenas uma

dificuldade. Christiane Nord disse que a variação não tem muita importância, que se

traduz normalmente para a língua padrão. Mesmo que a pessoa tenha escrito em uma

determinada variedade, traduz-se para a língua padrão, a não ser que a variação no texto

original tenha algum significado. O problema surge quando há variação. Trabalhamos

muito nessa área com nossos alunos, porque tanto o português, quanto o espanhol, e o

alemão são línguas pluricêntricas. Há muitas variedades no espanhol, e eles têm que

conhecer. Que variedade a pessoa usa? O termo realmente significa o que eu penso?

Estou a notar aqui, obviamente, muitas diferenças entre o meu português e o português

do Brasil. Muitas pessoas acham que falo errado quando digo doutoramento, por

exemplo. Eu já fui corrigido nisso. Em Portugal é doutoramento, não é doutorado. Eu

não espero que os alunos aprendam todas as variedades, mas que tenham respeito por

ela.

Fale-nos sobre seu artigo “Zu Theorie und Praxis des Übersetzens in der

Übersetzerausbildung” (Sobre a teoria e a prática da tradução na formação do

tradutor). E sobre como se ensina uma pessoa a traduzir. Quais são as maiores

diferenças entre o ensino de tradução literária e as demais?

Eu tenho que dizer que quase não trabalhamos com ensino de tradução literária,

porque o nosso departamento tem foco no mercado, nos interesses laborais dos

estudantes. Formar tradutores literários seria formar uma minoria incrível de tradutores.

As percentagens, dependendo do país, apontam que entre 0,7 e 3% dos tradutores fazem

traduções literárias e vivem disso. Quer dizer, a maior parte dos tradutores que

formamos trabalha com textos técnicos, comerciais. Sobre os que fazem interpretação

não vou nem falar, obviamente. O que importa para eles é conhecer os assuntos, mas

não podemos ensinar todos os assuntos técnicos, isso é impossível. Podemos trabalhar

textos técnicos para eles conseguirem usar as linguagens de especialidade. Pode ser em

qualquer área, o importante é se acostumem a buscar textos para compreender as

convenções textuais, como são construídos os textos dessa área para poderem trabalhar

com o assunto. Precisam saber como trabalhar a terminologia, como conseguir entrar

em determinado campo de trabalho. A tradução literária é minoritária, então nós quase

 

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não a abordamos; às vezes, no final de semestre, apresentamos alguma coisinha. Entre

os nossos docentes, alguns e traduzem literatura e são bons tradutores literários, mas na

docência seria realmente algo dissociado da realidade do mercado.

Nesse artigo que você citou, “Sobre a teoria e a prática da tradução na formação

do tradutor”, revisei muitas posições recentes sobre translatologia. Uma parte dessas

obras li durante a minha formação para ser tradutor e intérprete e, depois, quando estava

trabalhando, pensava “ai se o meu professor soubesse o que estou a fazer aqui” ou “ah,

eles deveriam ver esse tipo de texto para pensar no que de fato deveria ser feito”. Eu

tive uma boa formação, a maior parte dos meus professores trabalhava como tradutor ou

tinha experiência de tradução e interpretação. Tive professores ótimos, mas também tive

professores que nunca fizeram traduções fora da universidade. Poderia dizer que às

vezes eu conhecia mais a prática do que eles, porque eu já tinha trabalhado como

tradutor, eles não. Quando leio algumas teorias, penso “impossível que essa pessoa

tenha trabalhado lá fora, no mercado real”. Estão a dizer coisas que não fazem sentido,

sobretudo quanto à documentação, às possibilidades de alterar, modificar o texto.

O que mais me chamou atenção foi dizerem que o tradutor deve rejeitar fazer

uma tradução quando o texto de partida é muito ruim. Isso significaria, em algumas

áreas, 95% a 99% dos textos. Rejeitar trabalho está fora da realidade do tradutor, que

precisa se manter. Essa é uma perspectiva soberba. Tenho dúvidas quanto a isso, se o

tradutor deveria rejeitar esses trabalhos.

A Terminologia está entre os seus campos de atuação. Para o senhor, ela pode

ser considerada uma ciência autônoma ou apenas uma ferramenta destinada a auxiliar

o trabalho do tradutor?

Não posso decidir se ela é uma ciência autônoma. Trabalho com terminologia,

fiz um estudo diacrônico sobre terminologia, sobre o desenvolvimento da língua. É

difícil trabalhar a terminologia sem conhecimentos culturais, é preciso saber mais, ou

seja, a terminologia sem outras ciências não funciona. Se a terminologia só é uma

ciência auxiliar, como dizem alguns, então é possível fazer-se um estudo terminológico

independente. A Maria Teresa Cabré, que trabalha com terminologia, seguramente seria

 

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terminóloga, o que faz é ciência da terminologia. Mas fora do contexto, a terminologia

não funciona, não tem sentido. Quando eu disse que nossos alunos serão peritos de

línguas, digo que serão também terminólogos. Eles fazem uma disciplina em que

desenvolvem glossários. Não poderíamos trabalhar sem terminologia.

Estamos num mundo onde cada vez mais as pessoas têm que provar, por meio de

publicações científicas, que merecem estar na universidade. Esse publish or perish é

muito importante. Assim, trabalhos que seguramente antes seriam chamados de

práticos, agora muitas vezes inflam-se para serem mais científicos, porque parece que os

cientistas têm que fazer isso para sobreviver. Agora, tudo “é ciência”, muito do que

anteriormente se considerava metodologia, agora é ciência. Observo, por exemplo, que

o que antes chamavam de tradução, interpretação, didática foi convertido em “ciências

da transferência do saber”, é uma nova vertente. Algumas universidades têm cátedras de

transferência de conhecimento, é uma nova área e, seguramente, em poucos anos

ouviremos que isso tudo é uma ciência, o que anteriormente eram coisas independentes.

Isso também se observou com a interculturalidade: tudo era intercultural. Havia até

estudos interculturais da tradução. Eu também pequei. Eu também tenho estudo sobre

“aspectos interculturais de tradução”, mas tinha sua razão naquele momento. Em

princípio não vejo sentido em falar de aspectos interculturais de tradução porque, afinal,

como haveria tradução sem interculturalidade? Foi uma moda, tudo era intercultural e

agora vai ser tudo transferência do saber.

                                                            i Exame de conclusão do ensino médio na Alemanha. ii Primeiros dois anos de cursos introdutórios na universidade.