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José Nascimento O CURANDEIRO SARA-BAFAI Ilustrações Mirian Malzyner

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Page 1: Carol Bastos Maria Helena Costa O CURANDEIRO …azolla.fc.ul.pt/documents/SaraBafai_2015.pdfSara-Bafai percorreu um longo caminho para encontrar o verdadeiro sentido de sua vida. Na

Sara-Bafai percorreu um longo caminho para encontrar o verdadeiro sentido de sua vida. Na juventude, foi exímio lutador. Em seguida, tornou-se caçador. Convivendo com a floresta e os seres que nela habitam algo novo aconteceu. Percebeu que os animais eram mais do que simples presas e que apenas os necessários à alimentação de sua numerosa família deveriam ser abatidos. Esse novo jeito de encarar a natureza colocou Sara-Bafai frente a frente com um universo mágico, desconhecido até então. Seduzido por uma deusa, disfarçada de animal, Sara-Bafai terá que estabelecer com ela um pacto para achar o verdadeiro sentido de sua vida: uma existência longa e sábia e muito respeito dos que o rodeiam. Será esse o caminho para tornar-se um respeitado curandeiro?Este livro presenteia o leitor com a versão do conto adaptado para o português do Brasil, simbolizado pela bandeira brasileira, e com a versão original, no português de Portugal, simbolizado pela bandeira portuguesa.

José Nascimento

O CURANDEIRO SARA-BAFAI

A ilustradora com sua neta Laura

MIRIAN MALZYNER, brasileira, nasceu em 1953, em São Paulo, onde sempre viveu. É psicóloga, psicanalista, membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Embora gostasse de desenhar desde pequena, somente a partir da virada do século tem desenvolvido atividades no campo das artes plásticas de forma sistemática. Desde então, interessou-se em aprofundar o estudo dos processos criativos e o diálogo entre a Psicanálise e as Artes. Tem artigos e capítulos de livros publicados nessa área e coordena seminários de Psicanálise e Arte no Instituto de Formação de Psicanalistas da SBPSP. Seus trabalhos de ilustração de músicas (em parceria com seu marido Roberto Toledo, compositor) podem ser encontrados no YouTube.

Car

ol B

asto

s

ISBN 978-85-67789-16-3

Ilustrações Mirian Malzyner

O autor, em Lanzarote, durante a leitura de A viagem do elefante, de José Saramago

FRANCISCO CARRAPIÇO nasceu na cidade de Lagos, Portugal, em 1951. É biólogo e foi professor na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, tendo coordenado e trabalhado em diversos projetos e programas científicos na área da biologia vegetal, em particular no sistema simbiótico Azolla-Anabaena, sobre o qual tem numerosos trabalhos publicados. Desenvolveu sua atividade profissional em associação com instituições científicas de diversos países, destacando-se as da França, Estados Unidos, Guiné-Bissau, África do Sul, Índia, Equador, Brasil e Costa Rica. Atualmente sua atividade científica aborda temas relacionados com simbiose e evolução. Sob o nome literário de José Nascimento escreveu diversos contos e poemas abordando as temáticas da conservação da natureza e ecologia humana.

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elen

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Sara-Bafai percorreu um longo caminho para encontrar o verdadeiro sentido de sua vida. Na juventude, foi exímio lutador. Em seguida, tornou-se caçador. Convivendo com a floresta e os seres que nela habitam algo novo aconteceu. Percebeu que os animais eram mais do que simples presas e que apenas os necessários à alimentação de sua numerosa família deveriam ser abatidos. Esse novo jeito de encarar a natureza colocou Sara-Bafai frente a frente com um universo mágico, desconhecido até então. Seduzido por uma deusa, disfarçada de animal, Sara-Bafai terá que estabelecer com ela um pacto para achar o verdadeiro sentido de sua vida: uma existência longa e sábia e muito respeito dos que o rodeiam. Será esse o caminho para tornar-se um respeitado curandeiro?Este livro presenteia o leitor com a versão do conto adaptado para o português do Brasil, simbolizado pela bandeira brasileira, e com a versão original, no português de Portugal, simbolizado pela bandeira portuguesa.

José Nascimento

O CURANDEIRO SARA-BAFAI

A ilustradora com sua neta Laura

MIRIAN MALZYNER, brasileira, nasceu em 1953, em São Paulo, onde sempre viveu. É psicóloga, psicanalista, membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Embora gostasse de desenhar desde pequena, somente a partir da virada do século tem desenvolvido atividades no campo das artes plásticas de forma sistemática. Desde então, interessou-se em aprofundar o estudo dos processos criativos e o diálogo entre a Psicanálise e as Artes. Tem artigos e capítulos de livros publicados nessa área e coordena seminários de Psicanálise e Arte no Instituto de Formação de Psicanalistas da SBPSP. Seus trabalhos de ilustração de músicas (em parceria com seu marido Roberto Toledo, compositor) podem ser encontrados no YouTube.

Car

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asto

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ISBN 978-85-67789-16-3

Ilustrações Mirian Malzyner

O autor, em Lanzarote, durante a leitura de A viagem do elefante, de José Saramago

FRANCISCO CARRAPIÇO nasceu na cidade de Lagos, Portugal, em 1951. É biólogo e foi professor na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, tendo coordenado e trabalhado em diversos projetos e programas científicos na área da biologia vegetal, em particular no sistema simbiótico Azolla-Anabaena, sobre o qual tem numerosos trabalhos publicados. Desenvolveu sua atividade profissional em associação com instituições científicas de diversos países, destacando-se as da França, Estados Unidos, Guiné-Bissau, África do Sul, Índia, Equador, Brasil e Costa Rica. Atualmente sua atividade científica aborda temas relacionados com simbiose e evolução. Sob o nome literário de José Nascimento escreveu diversos contos e poemas abordando as temáticas da conservação da natureza e ecologia humana.

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José Nascimento

O CURANDEIRO SARA-BAFAI

Ilustrações Mirian Malzyner

Em memória do velho e sábio curandeiro Sambaro Baldé, fundador da aldeia Sintchã Sambaro, na região de Contuboel, República da Guiné-Bissau.

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Copyright do texto © José Nascimento, 2015Copyright das ilustrações © Mirian Malzyner, 2015

Todos os direitos de edição reservados a Publicações Mercuryo Novo Tempo Ltda.

Rua Gomes Freire, 234São Paulo SP 05075-010Tel. (11) 5531 8222

[email protected]: ione.mercuryo.jovemhttp://www.facebook.com/mercuryojovem

Editora Ione Meloni Nassar ■ Edição de arte César Landucci ■ Projeto gráfico e diagramação Aeroestúdio

CIP-Brasil. Catalogação na Publicação Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

N195cNascimento, JoséO curandeiro Sara-bafai / José Nascimento ;

ilustrações Mirian Malzyner. — 1. ed. – São Paulo : Publicações Mercuryo Novo Tempo, 2015.

40 p. : il. ; 26 cm.

ISBN 978-85-67789-16-3

1. Conto infantojuvenil português. I. Malzyner, Mirian. II. Título.

15-25518 CDD: 028.5 CDU: 087.5

conforme novo acordo ortográfico

capa e páginas 2, 3, 5, 19, 22, 23, 25, 39 e 40: joias Akan desenhadas por Jean Barbot, 1679

adaptação do texto para o português do Brasil: Ione Meloni Nassar com colaboração de Nina Ximenes

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Há muitos e muitos anos, vivia no continente africano um velho curandeiro afamado cujo nome e saber eram conhecidos até nos mais distantes povoados de seu país. Sua aldeia ficava próxima a um grande e sinuoso rio, no interior de uma floresta considerada sagrada por muitos dos seus habitantes. Apesar de sua idade avançada, era um homem de porte altivo, e sua figura alta e magra representava um símbolo para todos os que acreditavam na magia e força que o rio lhes trazia.

Para muitos, essa força selvagem do rio corria no sangue do velho curandeiro e era mesmo o símbolo do seu poder.

O seu nome de nascença, Sambaro, foi-lhe dado em homenagem a seu tio materno, mas era conhecido como Sara-Bafai, desde os tempos de juventude em que suas proezas como lutador o obrigavam a andar de aldeia em aldeia à procura de novos e melhores adversários para demonstrar sua agilidade e força.

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Um dia, cansado dessa vida, passou a dedicar-se à caça, tendo-se tornado um afamado caçador da região. O seu nome ecoava nas mais longínquas aldeias do país com um misto de respeito e temor. Foi como caçador que começou a amar a floresta e todos os seres que nela viviam. Deixou de ver nos animais simples presas, para compreender que cada caça era uma oferta dos deuses e que só podia abater os necessários à sua alimentação e de sua família. E Sara-Bafai tinha uma família numerosa. Com três mulheres, o número de filhos ia aumentando, bem como os problemas com a alimentação e tratamento das doenças que os afligiam.

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Um dia numa caçada, quando perseguia uma gazela e estando prestes a abatê-la com a sua lança certeira, ouviu uma voz suave e doce que lhe disse:

— Não me mate, belo caçador, pois eu não sou o que pareço. O meu corpo é de uma gazela, mas o meu espírito é de uma deusa.

O caçador ficou estarrecido. Em toda sua vida nunca tinha visto ou ouvido um animal falar e logo pensou que se tratava de um espírito malévolo que estava ali para o apanhar. Mas o nosso caçador depressa reagiu e disse:

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— Não tente me enganar com suas belas palavras, pois sei que os animais não falam. Você é um espírito maligno da floresta que quer se vingar, por eu ter invadido seus domínios.

— Não, caçador, tudo o que eu lhe disse é verdade e, se me poupar, lhe darei o poder de falar com as plantas que vivem nesta floresta. Delas você receberá conhecimentos que poderão ser utilizados em seu benefício e no de sua família. Mas para que esse dom se concretize, você terá, antes de tudo, de me tornar sua mulher.

— Minha mulher?! Você está doida, vou lá me casar com uma gazela, mesmo sendo falante como você? — disse o caçador.

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— Esta é a minha única exigência, belo caçador, pois sem ela meu conhecimento nunca será seu e você se arrependerá para sempre de não ter aceitado minha oferta. Prometo-lhe uma vida longa e sábia e muito respeito de todos que o rodeiam. Este será nosso pacto e nosso segredo.

— Mas como é que eu poderei me casar com você, sendo gazela? — disse Sara-Bafai já refeito do susto.

— Olhe, caçador, passe sua mão três vezes pelo meu dorso e verá que algo vai acontecer.

E assim fez Sara-Bafai. Quando terminou, o animal sofreu uma série de convulsões que assustaram o nosso caçador que, instintivamente, recuou

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alguns passos. Por fim, as convulsões pararam e o animal ficou no chão como se estivesse morto. Sara-Bafai não sabia o que fazer. Seu corpo estava tenso e quase não conseguia se mover. Seu olhar estava fixo na gazela que jazia inerte. E pensou que tudo aquilo tinha sido um pesadelo, que afinal nada do que o animal lhe dissera era verdade.

Já estava duvidando de que iria se casar com uma deusa, quando ouviu novamente aquela voz suave e doce:

— Belo caçador, já estou livre do meu antigo corpo. Agora você pode me tornar sua mulher.

— Mas eu não consigo ver você — disse Sara-Bafai.— Espere mais um pouco e começará a ver minhas formas, mas não

como está habituado, e você verá que tenho uma aparência quase humana — disse a deusa.

E pouco a pouco, uma figura feminina da cor do ébano começou a se materializar até atingir a consistência de uma massa parecida com o mel. Para Sara-Bafai era a imagem mais próxima daquilo que ele conhecia.

Nesse momento disse a deusa:— Agora você já pode me tornar sua mulher.O caçador não sabia o que dizer nem o que fazer, mas deixou que a

deusa se aproximasse e sentiu uma massa de consistência gelatinosa fundir-se com ele, até que perdeu a consciência e desmaiou. Ficou assim durante uma noite e um dia e quando, lentamente, começou a acordar e a tomar consciência do que o rodeava, sentiu todo o seu corpo dolorido e uma enorme sede. Levantou-se com muito custo, andando com dificuldade à procura de água, até que encontrou o grande e sinuoso rio. Morto de sede, mergulhou a cabeça

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no rio e bebeu da água como um animal. Depois de saciada a sede, reparou que outra imagem, além da sua, se refletia na água do poderoso rio. Era a imagem da deusa.

— Agora — disse-lhe a deusa — parte do meu conhecimento também é seu. Completei um ciclo da minha vida e um pouco de mim também lhe pertence. De alguma forma, corre em seu sangue o gosto pela natureza, o gosto pelo belo e o sopro dos deuses está agora em você. Utilize esse sopro divino com sabedoria, belo caçador, pois sem ele todo o seu conhecimento será inútil. Ajude seus irmãos a minorar os males que os atormentam por meio do bom uso das plantas.

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— Ó deusa, eu mal conheço as plantas desta floresta, quanto mais as suas virtudes — disse atônito o caçador.

— Concentre-se e olhe bem à sua volta e verá que as plantas também têm vida e língua próprias. Ouça o que dizem e converse com elas antes de as utilizar. Nunca seja impetuoso e violento para com elas, trate-as com amor, pois elas o ajudarão.

E assim fez o caçador. Olhou atentamente ao seu redor e começou a ouvir um leve sussurro que, gradualmente, se elevou de tom até se transformar numa espécie de conversa animada como se estivessem numa festa.

— Que calor!! — diziam algumas das plantas.— Quem é aquele irmão que olha tão intensamente para nós? Até parece

que nos entende — dizia um pequeno grupo de acácias.— Não sejam tontas — dizia outra — aquele animal é um homem e como

sabem ele não consegue se comunicar conosco. É um ser muito primitivo que precisa de nos comer para sobreviver. Não é capaz, como nós, de tirar do ar, do sol e da terra o alimento de que necessita.

— Olhem, este parece diferente. Parece mesmo que nos entende — disse a mangueira, a mais velha e perspicaz da floresta.

— Minhas irmãs — disse o caçador — foi-me dado o dom de me comunicar com vocês e de entender o que dizem. Não tenham medo, pois minhas intenções são boas. Só quero que me ensinem alguns dos seus segredos para minorar os males e a fome de muitos dos meus irmãos.

Uma enorme agitação percorreu toda aquela floresta, desde as árvores mais velhas e frondosas até as mais simples ervas.

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— Um homem que nos entende... agora é que vamos ter graves problemas — disse o cajueiro.

— Talvez não — disse a mangueira num tom pensativo. — Vejam também as vantagens. Embora não tenha as nossas capacidades, é capaz de falar conosco e assim poderemos lhe ensinar a não nos fazer mal quando nos utiliza. Por outro lado, se lhe ensinarmos alguns dos nossos segredos, ele poderá transmiti-los aos outros homens e esses aprenderão como tirar partido das nossas propriedades sem nos ferir.

E assim foi. Com os ensinamentos de todas as plantas da floresta, o nosso caçador, gradualmente, transformou-se num famoso e conhecido curandeiro em toda a região. Com a idade, mais seu conhecimento aumentava e mais fama tinham suas proezas e alguns dos seus concidadãos até o consideravam um feiticeiro. Mas Sara-Bafai recusava essa designação, intitulando-se apenas simples curandeiro.

Por fim, já velho, ao fazer longas caminhadas pela floresta onde, muitos anos atrás, tinha encontrado a deusa, ficava olhando, durante horas, o rio que corria continuamente, e se lembrava, com saudades, dos tempos de sua juventude, da agilidade e destreza com que percorria as aldeias da região, como o vento que agitava as árvores da floresta. E sonhava ser livre.

Por vezes transmitia esse sentimento às árvores mais próximas e com elas falava durante horas sobre o seu desejo de voltar a ser livre e ter a mesma agilidade do vento e a força da água.

— Só a deusa da floresta, que você encontrou uma vez, poderá satisfazer esse seu desejo. Mas, olhe, todos os seres passam pela vida como estrelas cadentes, que têm o seu ponto mais alto na juventude e depois se apagam na

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velhice, para outras novas reaparecerem. É esta a vida, velho amigo, e como você pode ver, o nosso tempo está quase chegando ao fim. Só nos resta saber esperar e viver com dignidade o tempo que nos falta para completar o ciclo da nossa existência — disse-lhe uma das árvores mais velhas e frondosas do mangueiral.

Mas Sara-Bafai não pensava assim. Não queria conformar-se com esse destino. Assim, cada vez que se afastava do seu povoado e ia para junto do grande rio, punha-se a rezar para que a deusa da floresta, que tinha sido sua mulher, lhe concedesse o dom da juventude eterna. Os dias e os meses iam

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passando sem que nada acontecesse, até que, já sem forças para ir com suas próprias pernas para perto do rio, pediu aos seus netos, que então eram homens-feitos, que o levassem até lá, pois queria morrer contemplando a força sempre jovem da água do grande rio.

E lá ficou com uma cumbuca de arroz e uma cabaça de água, mas já sem forças para poder comer ou mesmo beber a água que os seus netos lhe tinham deixado.

Já moribundo e quase desfalecendo, ouviu uma voz que lhe pareceu familiar e que não ouvia há muitos e muitos anos.

— Belo caçador, por que se sentir tão infeliz, quando sua vida foi tão rica, tão cheia de felicidade e de generosidade?

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Sara-Bafai desviou por breves instantes o olhar do rio e viu a deusa da floresta, de pele cor do ébano e voz suave e doce. Nesse momento todo o seu corpo estremeceu. Pareceu-lhe ter de novo dezessete anos. Uma sensação de felicidade e bem-estar invadiu-o, como se estivesse apaixonado pela primeira vez. E a deusa sentiu o mesmo e lhe disse:

— Velho curandeiro, para mim você será sempre o belo e jovem caçador que um dia encontrei na floresta. E para que o espírito dessa juventude fique para sempre eternizado na minha floresta, vou transformá-lo numa planta* a qual darei seu nome, para que todos os anos percorra sem parar o curso do grande rio, símbolo da juventude e da força que tanto deseja.

O velho curandeiro, entretanto, já não conseguiu dizer mais nada. O seu olhar voltou a fixar-se no curso do rio. O seu corpo já não se mexia, mas seu espírito corria agora livre nas águas calmas do rio que tanto amava. E assim, todos os anos, Sara-Bafai aparece de novo nas águas do grande e sinuoso rio, sob a forma de uma planta de cor avermelhada formando longos tapetes, para lembrar que a vida não para e que ele ainda continua bem vivo na, por vezes, curta memória dos homens.

*Sara-Bafai é uma palavra da língua Fula, falada no leste da Guiné-Bissau (África Ocidental), usada para identificar uma planta aquática que existe no rio Geba, cujo nome científico é Azolla.

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Em memória do velho e sábio curandeiro Sambaro Baldé, fundador da tabanca Sintchã Sambaro, na região de Contuboel, República da Guiné-Bissau.

O CURANDEIRO SARA-BAFAIJosé Nascimento

Ilustrações Mirian Malzyner

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Havia em África, há muitos, muitos anos, um velho curandeiro afamado cujo nome e saber eram conhecidos até nas mais distantes aldeias do país. A sua tabanca situava-se junto a um grande e sinuoso rio, no interior de uma floresta considerada sagrada por muitos dos seus habitantes. Apesar da sua idade avançada, era um homem de porte altivo, sendo a sua figura alta e magra um símbolo para todos os que acreditavam na magia e força que o rio lhes trazia. Para muitos, essa força selvagem corria no sangue do velho curandeiro e era mesmo o símbolo do seu poder.

O seu nome de nascença, Sambaro, tinha-lhe sido dado em honra do seu tio materno, mas toda a gente o conhecia como Sara-Bafai, desde os tempos de juventude em que as suas proezas como lutador o obrigavam a andar de tabanca em tabanca à procura de novos e melhores adversários para demonstrar a sua agilidade e força.

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Um dia, cansado dessa vida, passou a dedicar-se à caça, tendo-se tornado num afamado caçador da região. O seu nome ecoava nas mais longínquas tabancas do país com um misto de respeito e de temor. Foi como caçador que começou a amar a floresta e todos os seres que nela viviam. Deixou de ver nos animais simples presas, para compreender que cada animal que caçava era uma oferta dos deuses e que só podia caçar os necessários à sua alimentação e da sua família. E Sara-Bafai tinha uma família numerosa. Com três mulheres, o número dos seus filhos ia aumentando, bem como os problemas com a alimentação e tratamento das doenças que os afligiam.

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Um dia numa caçada, quando ia em perseguição de uma gazela e estando quase a abatê-la com a sua lança certeira, ouviu uma voz suave e doce que saía do animal:

— Não me mates belo caçador, pois eu não sou o que pareço. O meu corpo é o de uma gazela, mas o meu espírito é o de uma deusa.

O caçador ficou estarrecido. Em toda a sua vida nunca tinha visto ou ouvido um animal a falar e logo pensou que se tratava de um espírito malévolo que estava ali para o apanhar. Mas o nosso caçador depressa reagiu e disse:

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— Não me queiras enganar com as tuas falas, pois sei que os animais não falam. Tu és algum espírito mau da floresta que se quer vingar, por eu ter andado a caçar no teu domínio.

— Não caçador, eu sou aquilo que te digo e se me poupares, dar-te-ei o conhecimento de falares com as plantas que vivem nesta floresta, para que as possas utilizar em teu benefício e no da tua família. Mas para que esse dom te seja concedido, tens primeiro de me fazer tua mulher.

— Minha mulher?! Tu estás doida, agora eu ia lá casar-me com uma gazela, mesmo bem-falante como tu, disse o caçador.

— Esta é a minha única exigência belo caçador, pois sem ela o meu conhecimento nunca será teu e ficarás para sempre arrependido de não o teres

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feito. Prometo-te uma longa e sábia vida com grande respeito de todos os que te rodeiam. Este será o nosso pacto e o nosso segredo.

— Mas como é que eu te poderei ter como mulher, se tu não és mais que uma gazela? disse Sara-Bafai já refeito do susto.

— Olha caçador, passa a tua mão três vezes pelo meu dorso e verás que algo vai suceder.

E assim fez Sara-Bafai. E quando terminou, o animal sofreu uma série de convulsões que assustaram o nosso caçador e que instintivamente recuou alguns passos. Por fim, as convulsões pararam e o animal ficou caído no chão como que

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morto. Sara-Bafai não sabia o que fazer. Todo o seu corpo estava hirto e quase que não conseguia mover-se. O seu olhar estava fixo na gazela que jazia inerte. E pensou que tudo aquilo era um pesadelo, que afinal nada daquilo que lhe tinha dito o animal era verdade. E já estava duvidando de que iria alguma vez ter como mulher uma deusa, quando uma voz suave e doce ecoou junto ao animal:

— Belo caçador, já estou livre do meu antigo corpo. Agora podes tomar-me como tua mulher.

— Mas eu não te consigo ver, disse Sara-Bafai.— Espera mais um pouco e começarás a ver as minhas formas, não como

estás habituado, mas verás que tenho uma aparência quase humana, disse a deusa.

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E a pouco e pouco, uma figura feminina da cor do ébano começou a materializar-se até atingir a consistência de uma massa parecida com o mel. Para Sara-Bafai era a imagem mais próxima daquilo que ele conhecia.

Nessa altura a deusa disse para o caçador:— Agora já podes tomar-me como tua mulher.O caçador não sabia o que dizer ou o que fazer, mas deixou que a deusa

se aproximasse e sentiu uma massa de consistência gelatinosa fundir-se com ele, até que perdeu a consciência e caíu no chão sem sentidos. Ficou assim durante uma noite e um dia e quando, a pouco e pouco, começou a acordar e a tomar consciência do que o rodeava, sentiu todo o seu corpo dorido e uma enorme sede. Levantou-se a custo e pôs-se a caminho à procura de água, até que encontrou um grande e sinuoso rio em que mergulhou a cabeça e bebeu a água como um animal. Depois de saciada a sede, reparou que outra imagem além da sua se refletia na água do rio. Era a imagem da deusa que lhe falou:

— Agora, parte do meu conhecimento também é teu. Completei um ciclo da minha vida e um pouco de mim também te pertence. De alguma forma, corre no teu sangue o gosto pela natureza, o gosto pelo belo e o sopro dos deuses está agora em ti. Utiliza-o com sabedoria, belo caçador, pois sem ele todo o teu conhecimento será inútil. Ajuda os teus irmãos a minorarem os males que os afetam através do bom uso das plantas.

— Mas deusa, eu mal conheço as plantas desta floresta, quanto mais as suas virtudes, disse atónito o caçador.

— Concentra-te e olha bem à tua volta e verás que as plantas também têm vida e língua próprias. Ouve o seu falar e conversa com elas antes de as utilizares. Nunca sejas impetuoso e violento para com elas, trata-as com amor, pois elas te ajudarão.

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E assim fez o caçador. Olhou atentamente em redor e começou a ouvir um leve sussurro que gradualmente se elevou de tom até se transformar numa espécie de conversa animada como se de uma festa se tratasse.

— Que calor!!, diziam algumas das plantas.— Quem é aquele irmão que olha tão intensamente para nós? Até parece

que nos entende, dizia um pequeno grupo de acácias.— Não sejam parvas, dizia outra, aquele animal é um homem e como

sabem ele não consegue comunicar connosco. É um ser muito primitivo que precisa de nos comer para sobreviver. Não é capaz, como nós, de tirar do ar, do sol e da terra o alimento que necessita.

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— Mas olhem que este parece diferente. Parece mesmo que nos entende — disse a árvore da manga, a mais velha e perspicaz da floresta.

— Minhas irmãs, disse o caçador, foi-me dado o dom de comunicar convosco e de vos entender. Nada receais, pois as minhas intenções são boas. Só quero que me ensineis alguns dos vossos segredos para minorar os males e a fome de muitos dos meus irmãos.

Uma enorme agitação percorreu toda aquela floresta, desde as árvores mais velhas e frondosas até às mais simples ervas.

— Um homem que nos entende; agora é que vamos ter graves problemas, disse o cajueiro.

— Talvez não, disse a árvore da manga num tom pensativo. Vejam também as vantagens. Embora não tenha as nossas capacidades, é capaz de falar connosco e assim podemos ensinar-lhe a não nos fazer mal quando nos usa. Por outro lado, se lhe ensinarmos alguns dos nossos segredos, ele pode transmiti-los aos outros homens e esses já saberão como tirar partido das nossas propriedades sem nos ferir.

E assim foi. Com os ensinamentos de todas as plantas da floresta, o nosso caçador gradualmente transformou-se num famoso e conhecido curandeiro em toda a região. Com a idade, mais o seu conhecimento ia aumentando e mais fama tinham as suas proezas e alguns dos seus concidadãos até o consideravam mesmo como feiticeiro. Mas Sara-Bafai recusava essa designação, intitulando-se apenas simples curandeiro.

Por fim, já velho, fazia longas caminhadas na floresta onde, muitos anos atrás, tinha encontrado a deusa e ficava a olhar durante horas o rio que corria continuamente, lembrando-lhe os tempos da sua juventude, em que com

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agilidade e destreza percorria as tabancas da região, como o vento que agitava as árvores da floresta. E sonhava ser livre. Por vezes transmitia esse sentimento às árvores mais próximas e com elas falava durante horas sobre o seu desejo de voltar a ser livre e ter a agilidade do vento e a força da água.

— Só a deusa da floresta, que tu encontraste uma vez, te pode satisfazer esse desejo. Mas olha, todos os seres passam pela vida como estrelas cadentes, que têm o seu ponto mais alto na juventude e depois se apagam na velhice, para outras novas reaparecerem. É esta a vida, velho amigo, e como vês, o nosso tempo está quase a chegar ao fim. Só nos resta saber esperar e viver com dignidade o tempo que nos falta para completar o ciclo da nossa existência, disse-lhe uma das árvores mais velhas e frondosas do mangueiral.

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Mas Sara-Bafai não pensava assim. Não queria conformar-se com esse destino. Assim, cada vez que se afastava da sua tabanca e ia para junto do grande rio, punha-se a rezar para que a deusa da floresta, que tinha sido sua mulher, lhe concedesse o dom da juventude eterna. Mas os dias e os meses iam passando sem que nada sucedesse, até que já sem forças para poder ir pelo seu próprio pé para junto do rio, pediu aos seus netos, que já então eram homens- -feitos, que o levassem para lá, pois queria morrer contemplando a força sempre jovem da água do grande rio. E aí ficou com uma malga de arroz e uma cabaça de água, mas já sem forças para poder comer ou mesmo beber a água que os seus netos lhe tinham deixado. Já moribundo e quase a desfalecer ouviu uma voz que lhe pareceu familiar e que já não ouvia há muitos, muitos anos.

— Belo caçador, porque te sentes tão infeliz quando a tua vida foi tão rica e cheia de felicidade e de bem-fazer.

Sara-Bafai desviou por breves instantes o olhar do rio e viu a deusa da floresta de pele cor de ébano e voz suave e doce. Nesse momento todo o seu corpo estremeceu. Pareceu-lhe ter de novo dezassete anos. Uma sensação de felicidade e bem estar invadiu-o, como se sentisse enamorado pela primeira vez. E a deusa sentiu-o também e disse-lhe:

— Velho curandeiro, para mim serás sempre o belo e jovem caçador que um dia encontrei na floresta. E para que o espírito dessa juventude fique para sempre eternizado na minha floresta, vou-te transformar numa planta* a que

*Sara-Bafai é uma palavra da língua Fula, falada no leste da Guiné-Bissau (África Ocidental), usada para identificar uma planta aquática que existe no rio Geba, cujo nome científico é Azolla.

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darei o teu nome, para que todos os anos percorras sem parar o curso do grande rio, símbolo da juventude e da força que tanto desejas.

Mas o velho curandeiro já não lhe conseguiu responder. O seu olhar voltou a fixar-se no curso do rio. O seu corpo já não mexia, mas o seu espírito corria agora livre nas águas calmas do rio que tanto amava. E assim, todos os anos, Sara-Bafai aparece de novo nas águas do grande e sinuoso rio sob a forma de uma planta de cor avermelhada formando longos tapetes, como que a lembrar que a vida não para e que ele ainda continua bem vivo na, por vezes, curta memória dos homens.

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