carlos lessa - análise econômica e economia política

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ANLISE ECONMICA E ECONOMIA POLTICA Carlos Lessa*

Introduo Vamos abordar o problema do ensino de economia. No tem muito sentido relacionar os velhos problemas: falta de verbas, falta de professores, professores que no tm tempo integral, alunos que no tm dedicao exclusiva, etc. Vou tentar discutir com vocs o tema sob um segundo ngulo, o problema substantivo de qual o contedo possvel, ou qual dos contedos podem ser propostos formao do economista. E parece que nossa profisso est marcada por pelo menos dois sculos de um debate que at hoje no se resolveu: qual o objeto prprio de reflexo em economia. Na verdade, existem dois objetos de possvel proposio e cada um desses objetos de conhecimento apresenta implicaes com respeito ao ngulo de abordagem e modo de tratar os temas completamente distintas. primeira vista, os dois objetos no so to discrepantes assim. Um primeiro objeto com que todos os alunos do primeiro ano do curso de economia tomam contato dizer que a meta bsica de reflexo do economista estudar todos os fenmenos relacionados com a escassez material; ento, o fato econmico se caracterizaria pela presena de uma escassez relativa. Ar e gua no so problemas econmicos porque no so escassos; como tudo mais escasso, tudo o mais pertence ao terreno da economia. Eles dizem que a escassez est diretamente relacionada com outro conceito, que o conceito de opo. Ento, o estudo do economista de como realizar opes segundo critrios. Eu chamei isto de objeto nmero um, ou objeto de anlise econmica. Agora, numa outra perspectiva se prope como objeto prprio da reflexo do economista o estudo das leis sociais que regem os processos de produo e repartio dos bens e servios. Dito de outra maneira, todas as sociedades organizadas, desde a neoltica inferior at a sociedade do sculo XX, de alguma maneira se organizaram para realizar os atos necessrios para a produo e repartio das coisas que so produzidas e, o modo como estas sociedades se organizaram para resolver o problema da produo e repartio, seria o que ns vamos chamar aqui de objeto nmero dois de reflexo do economista, ou objeto da economia poltica. Vou tentar trabalhar com essas duas definies com o propsito bsico de mostrar que o matrimnio delas , at certo ponto, impossvel. Assim, na medida em que a formao do economista se orienta, ou o economista opta, pelo caminho da anlise econmica, isto implica em uma determinada viso de mundo que no possvel integrar com a da segunda rota, a economia poltica. A evoluo do pensamento econmico coloca a nfase ora num, ora noutro objeto, e o fato de por nfase num ou noutro objeto reflete um momento do processo social que os sistema econmicos e sociais esto atravessando.*

Economista; Aula Magna proferida no Departamento de Economia da Unicamp Outubro, 1972.

primeira vista, pode-se dizer que no parece que haja tanta discrepncia entre os objetos. Afinal de contas, verdadeiro que todas as sociedades organizadas produzem e repartem bens, como verdadeiro que em toda sociedade organizada h escassez deles. Ento, algum poderia dizer que se tratam de duas manifestaes simultneas, e a escolha de um ou outro objeto de reflexo no deve gerar concluses diametralmente opostas ou, pelo menos, no compatveis. No assim, entretanto, em primeiro lugar por caractersticas notadamente metodolgicas. Reparem bem: quando ns definimos que o objeto do conhecimento de anlise econmica, ou seja, estudo da escassez e da opo, a um alto nvel de abstrao a escassez se manifesta numa sociedade de coletores primitivos, nos imprios clssicos, na economia feudal, no incio do capitalismo mercantil, acompanhou a revoluo industrial, assistiu apario da sociedade capitalista numa etapa madura, e tambm est presente numa sociedade socialista. Dito de outra maneira, a escassez um dado primeira vista ahistrico. Ento, a construo terica a partir desse conceito permitiria ou proporia economia o carter de uma cincia que em sua proposio primeira seria a-histrica. Dito de outra forma, a cincia econmica poderia se pretender universal e atemporal. Baseada num objeto de conhecimento inicial, o estudo do fenmeno da escassez, a economia elaboraria um sistema de proposies tericas aplicveis em qualquer sociedade de qualquer poca. Um ou outro termo dessa equao poderia se modificar a partir de aproximaes do modelo analtico situao concreta, mas os corpos tericos seriam ahistricos. Agora, quando se trabalha com o segundo objeto de conhecimento, a economia poltica, absolutamente evidente que toda e qualquer construo nesse nvel sempre dir respeito a um tempo histrico definido, a uma determinada formao social. As leis que regem a produo e a repartio numa economia medieval so totalmente diferentes daquelas presentes numa economia socialista, e assim por diante. As leis da economia poltica tem vigncia definida no espao e no tempo. Na perspectiva da economia poltica, a economia no poderia pretender construir teorias universais, abrangentes de todos os tempos e todos os lugares.

Anlise Econmica Uma segunda diferena vem da exigncia do prprio objeto do conhecimento. Reparem bem: anlise econmica. Os senhores todos tm curso de anlise econmica - anlise microeconmica: anlise micro e depois aplicaes especficas de construes analticas. Que quer dizer analisar? Anlise qumica significa pegar uma substancia e fracion-la em seus elementos constituintes. Qualquer procedimento analtico uma operao de partio: toma-se um todo e parte-se para se obter uma coleo de partes. Eu vou usar um exemplo para ilustrar uma operao analtica, com um objeto de anlise aparentemente muito grosseiro - uma vaca. Reparem bem, ns no vamos analisar a vaca

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em geral, ns vamos tomar uma determinada vaca, nascida em data e lugar especficos. Tomem esta vaca, por exemplo, a Madalena, e vamos analis-la. Agora vamos coloc-la na mo de dois analistas: o primeiro analista um aougueiro. O que que ele vai fazer com a vaca? Vai mat-la. Retira a carne de primeira, a carne de segunda, a carne de terceira, retira as vsceras, o couro, etc., ou seja, desmembra aquele todo em uma coleo de partes. Agora, se essa mesma vaca tivesse de ser partida por outro analista, o professor da escola de Veterinria, o que ele faria? Ele vai utilizar a vaca para uma demonstrao de anatomia, logo, mata a vaca da mesma maneira. Mas a partir da, vai desmembr-la com critrios distintos: primeiro, o sistema neuro-vegetativo; depois, o subsistema circulatrio; etc. no final, teria uma outra coleo de partes. Em primeiro lugar, qual o denominador comum dos dois analistas? Ambos assassinaram o todo. Segundo dado comum s duas situaes: impossvel reconstruir Madalena a partir das duas colees de partes. O que aconteceu? O primeiro analista, o aougueiro, e o segundo analista, o professor de anatomia, ao desmembrar a vaca obtiveram no elementos, mas partes, que so os elementos sem as conexes com as demais e com o todo. Mas o que diferencia um analista do outro que o primeiro tem critrios de partio que so diferentes do critrio de partio do segundo. Generalizando mais, poderamos dizer que existem infinitas colees de partes obtidas a partir de um todo - Madalena. Ento, toda anlise econmica uma operao de partio, s que no parte de um objeto fsico, mas sim de idias. Quais so as idias? Produo, equilbrio geral, sistema econmico, e estas idias, o analista em economia parte e obtm uma coleo de partes. S que, como neste caso, a operao de anlise se d com um objeto ideal, o que obtm so conceitos. Mas os objetos colocados sob a anlise econmica admitem da mesma maneira infinitos modos de partio. Ento, primeira coisa importante: admite infinitos modos de partio. Dizer isso dizer que existem critrios implcitos ou explcitos por trs dos conjuntos de conceitos econmicos.

A armadilha do Critrio de Partio Dependendo dos critrios escolhidos teremos uma determinada coleo de conceitos e, dependendo dos conceitos que tomarmos, poderemos demonstrar qualquer coisa. Atravs da anlise econmica, possvel simultaneamente demonstrar A e no-A, dependendo da coleo de conceitos que ns escolhermos. Apenas para efeito de exemplificao, vamos ilustrar a primeira grande armadilha dos procedimentos analticos, a armadilha do critrio de partio. Reparem bem, h uma tese bastante difundida que diz no possvel compatibilizar o objetivo de mximo crescimento econmico com o objetivo de melhor justia social. Por que? Porque se admite que o crescimento se d em funo da taxa de investimento, esta funo da oferta de poupana e se supe que os grupos de mais alta renda poupam mais que os grupos de mais baixa renda. Para no sacrificar a taxa de investimento, necessrio que haja uma alta desigualdade na repartio da renda. Melhor repartio de renda, mais reduzida a taxa de crescimento; mais alto o ritmo de crescimento, pior distribuio da renda. Esta a tese A. Agora vem no-A. Vamos supor o seguinte: os bens se classificam

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em durveis e no-durveis. Os primeiros so acumulados, os segundos so desfrutados. Agora, uma geladeira acumulada assim como um trator, mas h uma diferena fundamental entre a geladeira e o trator. Com a geladeira, a acumulao improdutiva, enquanto que com o trator produtiva. Se ns tomamos a estrutura de consumo, os grupos de baixas rendas consomem a totalidade de suas rendas, porm o grosso do seu consumo formado de bens no durveis. Na medida em que subimos na escala de repartio de renda, os grupos superiores so consumidores de bens durveis. Dito de outra maneira, os grupos que fazem acumulao improdutiva so os grupos de altas rendas. Quanto mais alta a renda, mais que proporcional cresce a acumulao improdutiva por estrato de renda. Se uma economia tem uma determinada capacidade de produo, esta capacidade de produo pode ter ou no uso alternativo. Por exemplo, a capacidade de produzir alimentos no teria uso alternativo, ou produz alimentos ou ento no pode ser desviada para a produo de bens durveis. Mas uma indstria de automveis pode produzir automveis ou caminhes, pode produzir bens para uma acumulao improdutiva ou produtiva. A indstria da construo civil pode fazer mais um edifcio de apartamentos (acumulao improdutiva) ou mais um edifcio industrial (acumulao produtiva). A indstria de eletrodomsticos pode produzir geladeiras ou instalaes eltricas. Se a economia pretende crescer maior taxa possvel deve forar a mxima acumulao; mas que acumulao? Acumulao produtiva. Quais so os grupos que realizam acumulao improdutiva? Os grupos de alta renda. Ento, quanto mais anormal a repartio da renda, maior ser a acumulao improdutiva, menor ser o crescimento. Demonstrado no-A. Reparem bem, na primeira pea ns demonstramos que melhor justia era incompatvel com maior crescimento e na segunda, que maior justia compatvel com maior crescimento. Dependendo de que? No primeiro caso, ns trabalhamos com categorias keynesianas - consumo e poupana. Com isso se demonstrou a tese A. Trabalhando com conceitos de acumulao produtiva e acumulao improdutiva se demonstra no-A. Houve um grego que disse o seguinte: me dem uma alavanca e um ponto de apoio que eu desloco o mundo. Com a teoria econmica acontece o seguinte: dem-me a possibilidade de manter oculto meu critrio de partio que eu demonstro qualquer coisa.

Nvel de Abstrao O segundo problema que ocorre no procedimento analtico diz respeito ao chamado nvel de abstrao. Vamos tentar simular que o pessoal fez vestibular e optou por economia. Vo ter a primeira aula de economia, bem animados porque finalmente vo travar contato com a cincia e a primeira aula uma aula de motivao. O mestre diz que a economia dispe de leis e que vai comear apresentando aos alunos uma lei apenas a ttulo de exemplo: a lei da demanda, que diz que a quantidade demandada varia inversamente ao preo. Ento escreve uma relao proporcional no quadro, na qual a varivel dependente a quantidade demandada e a varivel independente o preo. Traa as curvas e eis que a turma trava

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contato com a cincia. Ento, esse mestre vai procurar trazer a turma ao processo de criao intelectual. Pergunta: vocs concordam com essa relao funcional? B uma funo f qualquer do preo, e vamos supor que ele vai querer discutir a funo demanda de bicicletas. Ele diz que a demanda de bicicletas varia inversamente ao preo da bicicleta. Pergunta se concordam com isso. Mas a um aluno levanta o dedo e fala: a quantidade de bicicletas no depende tambm de preo de outras coisas? O mestre atento escreve uma segunda relao funcional, tendo como varivel dependente a quantidade demandada e como varivel independente o preo das bicicletas e os das n-1 outras coisas. Ele continua fazendo perguntas turma. Outro fala que depende da renda. Escreve uma terceira relao funcional. A, um festival: surgem mais variveis independentes. A funo demanda se torna mais sofisticada a cada uma destas novas relaes. Neste momento, o mestre se encontra num estado de exaltao porque a turma formada de gnios, e os alunos tremendamente gratificados por saberem no s que a economia cincia, mas tambm que esto contribuindo para fazer cincia. A, um esprito de porco levanta o dedo e conta um caso que ocorreu na sua cidade: um velhinho, que amigo da turma da praa, ganhou na loteria esportiva e presenteou os garotos da praa com bicicletas, o que aumentou a demanda de bicicletas. Isto uma varivel funcional; seria uma varivel aleatria introduzida dentro do modelo. Reparem s: entre aquela esqulida funo demanda, definida sob condies ceteris paribus, at a ltima, que incorporou uma varivel aleatria, o que aconteceu? O nvel da abstrao veio baixando a cada nova varivel introduzida na relao funcional. O mestre tentou se acercar do real, o que nunca aconteceu; caso acontecesse, ele teria uma funo demanda com infinitas variveis. Ento, deixando de lado o problema do critrio da anlise, h um segundo problema: todas as construes analticas esto a um determinado nvel de abstrao, e um dado nvel de abstrao no pode ser operacionalizado num nvel diferente. Se operacionalizado em nveis diferentes, conduz a desenfoques. A que nvel as construes analticas podem ser operacionalizadas? S num mundo ideal, com as abstraes que o economista faz. Dito de outra maneira, as relaes funcionais que ns podemos construir com a anlise econmica s so vlidas em relao a um universo ideal. Como que ns caminhamos na anlise econmica? Em primeiro lugar, fazemos abstrao da histria; em segundo, fazemos abstrao das relaes sociais; em terceiro lugar, abstrao da estrutura de poder; depois, abstrao do espao, que incomoda um pouco. Ento, eliminados espao e tempo, comeamos a pensar. Mas eliminados por que? Eliminados porque um procedimento analtico e todo procedimento analtico necessariamente um processo de partio.

A Lgica Formal O que est por trs de toda lgica utilizada pela anlise econmica, que fundamentalmente a lgica formal? Reparem bem, como que ns construmos o conhecimento em anlise econmica? Em primeiro lugar, ns admitimos conceitos, e os conceitos tm o problema que chamei o critrio de partio. Em segundo lugar, quais so as caractersticas do

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conceito? Este conceito tem uma srie de propriedades. A primeira a chamada propriedade tautolgica, identidade do ser consigo mesmo. Isso foi a glria de Parmnides 2.000 anos antes de Cristo, e fundamentalmente, quer dizer que o conceito igual sua definio. A igual a A. Em segundo lugar, afirma-se em relao ao conceito que ele ou no , no existe uma terceira possibilidade; o princpio do terceiro excludo. Ao fazer isso, o que que ocorre? Ns vamos substituindo um processo social vivo, cheio de interrelaes, por uma bateria de conceitos. Tendo isso, vamos teorizar. O que teorizar numa perspectiva de anlise econmica? estabelecer relaes funcionais de comportamento pelo qual determinada varivel tem o seu comportamento justificado por outra. Isto , estabelecer relaes de causalidade entre variveis econmicas. Voc coloca que a varivel dependente tem o seu comportamento como um efeito da varivel independente. Quando voc encontra uma articulao deste ripo, voc diz que faz teoria. Reparem bem, esta teoria est toda construda a partir do princpio de causalidade. Esse princpio um dos mais tramposos enganos que existem, conduz a armadilhas tremendas. A essa altura vocs diro: se as construes analticas tm to graves limitaes de carter metodolgico, por que so utilizadas? Em primeiro lugar, porque ela a lgica da infncia (sic). Em toda construo intelectual, a primeira coisa que ns fazemos utilizar linguagem. Toda e qualquer linguagem construda de conceitos, ou seja, todo processo de comunicao dependente num primeiro momento de conceitos. Nesse sentido um primeiro passo indispensvel ao problema da especulao. Mas um passo extremamente limitado, porque toda construo analtica est vulnervel a estas e outras mazelas, Temos pouco tempo, e na verdade discutir as limitaes da anlise tema que ocupa muitas horas, mas mesmo assim vocs j devem ter visto as limitaes que tem o procedimento analtico. Entretanto, necessariamente utilizado. Agora, se o economista receber apenas anlise econmica e toda a sua formao se repousar em transmisso e recepo de construes analticas, ele vai, muito provavelmente, ficar equipado com uma lgica que desconhece as dimenses mais pertinentes e mais inerentes ao prprio fenmeno que ele se prope a enfrentar. ele vai ser detentor intelectual da maior arquitetura de lgica formal que o homem construiu depois de So Toms de Aquino. Mas essa imensa construo intelectual uma construo que elimina as dimenses mais significativas que presidem os processo sociais, do qual o econmico um dos nveis sem dvida nenhuma (sic) dominantes. Economia Poltica E na perspectiva da economia poltica, o que acontece? Quando a economia poltica se prope a fazer um estudo das leis sociais de produo e repartio, ela de sada reconhece a historicidade do seu campo de reflexo. Dizendo isso, ao mesmo tempo ela est admitindo que vai tratar com o objeto que uma totalidade, mas que mais que uma totalidade, uma totalidade em mutao. Tem que enfrentar o fenmeno de explorar, apreender o processo de transformao das coisas. O nico instrumento lgico disponvel para isso at hoje a chamada dialtica.

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Dito de outra forma, eleger o objeto da economia poltica significa imediatamente, em termos metodolgicos, ir dialtica. Mas acontece que a dialtica entra em confronto direto com as hipteses da lgica formal, porque toda a lgica formal estabelece uma ditadura de conceitos, que so seres que tm precedncia a tudo mais. O movimento, em termos de lgica formal, explicado por uma primazia de seres que so os conceitos articulados em uma relao funcional que explica as variaes. Numa perspectiva dialtica, admite-se exatamente o inverso. Primeiro, o dado maior o existente em transformaes e este existente em transformaes que, por uma codificao tcnica, voc lana mo de determinados conceitos para poder abord-lo. Entretanto, pode-se dizer que pensar o todo em todas suas implicaes evidentemente uma proposta megalmana, no executada por ningum at hoje. Pensar a totalidade em todas suas implicaes uma proposta impossvel. Ento, qual o procedimento possvel para tentar chegar, com todas as limitaes, a esse nvel? fazer a operao inversa da operao de anlise, que a operao da crtica. A palavra crtica est cheia de conotaes defectivas. Criticar usado como falar mal de. Mas o sentido preciso da palavra crtica reconstruir as ligaes que tem uma parte com o todo em que ela est inserida; a tentativa de, partindo de conceitos que so entidades mortas, tentar reconstituir as conexes que esses conceitos mantm com os demais. sempre possvel, na formao do economista, em paralelo necessria disciplina de anlise econmica, realizar um esforo de abertura crtica. Agora, evidente que muitas vezes difcil e muitas vezes no feito, e na medida em que no feito surge sempre a tenncia de nossa parte de imaginar que deve existir algum outro conjunto do conhecimento, articulado de uma outra forma, que seja o substituto ou que cubra as limitaes que, intuitivamente, voc sente no processo de transmisso analtica.

Comparao entre os Dois Mtodos Eu queria, antes de seguir nesse nvel, tentar ilustrar com um exemplo elementar onde que se poderia dar a diferena entre um raciocnio analtico e de abertura crtica. Vamos falar do problema habitacional. O que um problema habitacional? Algum diz assim: o problema habitacional consiste em 100.000 famlias residentes em unidades residenciais que no tm a mnima condio de salubridade, iluminao, conexo com servio de gua, etc. Reparem bem, aqui o problema habitacional foi definido como um problema de um dficit de unidades residenciais. Ns estamos dizendo que A idntico a A. E ainda vamos propor um esforo explicativo, ainda a nvel analtico. Qual a explicao do fenmeno? Existe dficit habitacional porque a populao tem baixa renda. ento o problema habitacional passa a se o problema da baixa renda de 100.000 famlias. A idntico a A. Foi definido um problema habitacional com uma presena de 100.000 famlias que no tem nvel de renda para adquirir uma unidade residencial com condies adequadas. Mas a voc pode colocar: por que cem mil famlias tm baixa renda? Porque a capacidade produtiva do pas reduzida. Ento, o problema habitacional passa a ser derruindo como idntico ao conhecido problema da insuficiente capacidade produtiva

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instalada na economia. Se quisssemos continuar poderamos substituir definies e provavelmente em algum momento o crculo se fecharia. Vemos ento que A a mesma coisa que A. Reparem bem: se, ao invs de fazer isto, colocssemos o problema da seguinte maneira: existe um pas no qual 100.000 famlias tm baixa renda, baixo nvel educacional, alimentar e a capacidade produtiva exgua, a produtividade do trabalho baixa. A pergunta a seguinte: por que esse pas oferece essas caractersticas? S h uma possvel resposta: apresenta este conjunto de caractersticas porque chegou a ser assim. Isto , foi o seu passado que produziu esse presente. No momento em que voc olha o passado para tentar explicar com a dinmica do passado uma configurao do presente, voc est abandonando o terreno da anlise econmica e est comeando a fazer uma invaso no territrio da economia poltica, ainda que essa invaso no seja necessariamente feita pelo caminho mais rigoroso. Voc est estabelecendo a sinalizao da advertncia crtica necessria com respeito explicao analtica. E ento, para poder entender este conjunto de caractersticas vai ser necessrio interrogar sobre a lgica de evoluo anterior dessa sociedade, que explica o seu presente. a dinmica do seu processo de desenvolvimento que vai explicar ou determinar a configurao atual. E quando voc coloca essa pergunta na explicao da dinmica do desenvolvimento vai jogar elementos que em ltimos termos vo dizer respeito interpretao da histria. Essa interpretao da histria vai colocar em evidncia a existncia de grupos sociais, vai colocar em evidncia a presena do pas dentro de um contexto mundial, vai colocar em evidncia a estrutura de poder, etc. Em ltimos termos, a explicao do fenmeno do dficit de cem mil unidades residenciais vai repousar em todos os elementos que uma anlise de economia poltica aborda. A economia deixa de ter aquela assepsia que a caracteriza enquanto anlise econmica. evidente que quando se colocam as coisas sob esse enfoque as respostas passam a ser totalmente distintas, porque as respostas do primeiro enfoque tm caractersticas muito ingnuas. Vejam s, existe o problema habitacional definido como uma carncia de cem mil unidades residenciais. Soluo: fazer mais casas. Ou ento, vamos sofisticar a resposta: estimular o desenvolvimento da capacidade produtiva de maneira a gerar incrementos de renda que tornem possvel populao que no dispe de unidades habitacionais, adquiri-las. Agora, se vocs agregarem a essa proposio uma hiptese sobre financiamento mais concreta, sobre preos relativos, a coisa ganha caracterstica de uma proposta de poltica econmica fundada cientificamente. Na verdade, em ltimos termos, A A. Se voc procurar evocar o territrio da economia poltica, voc vai se perguntar quais so os protagonistas sociais, qual a estrutura de poder e quais as relaes que mantm entre si. Em ltimos termos, temos de perguntar: ou no possvel superar esse dficit quantitativo de cem mil unidades residenciais? Agora, gostaria de chamar ateno sobre qual o problema substantivo da formao do economista. que a formao do economista, baseada somente em profundos conhecimentos de anlise econmica, causa uma frustrao. Se basicamente concebida na perspectiva de anlise econmica, ela ser uma formao sobre a qual se tem aguda

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conscincia de que faltou coisas, que determinados nveis esto sendo escamoteados, que os enfoques no esto dando a necessria objetividade. Ento, muitas vezes, numa reao violenta, saltam para um outro extremo e dizem o seguinte: tudo isto no significa nada, e pulam para o outro extremo: vou pensar o todo. Impossvel. Qual o problema do processo de formao? O problema do processo de formao como conseguir casar, dosificar dois componentes que no so compatveis do ponto de vista metodolgico, e adquirir treinamento suficiente para saber em que ponto estou pensando em termos analticos e a partir de que momento necessrio deixar de pensar nesses termos. No possvel nem deixar uma coisa de lado nem deixar outra. Diro vocs que entretanto muito raro que os currculos contenham um esforo de abertura crtica para uma formao analtica. Por que? Por vrias razes. A explicao mais elementar para esse fato a seguinte: o indivduo que recebe uma slida formao em anlise econmica e que incorpora a maior parte dos modelos disponveis, tem condies para ser um operador dentro do sistema. Eu vou forar um pouco a barra. Os problemas de maximizao e otimizao so problemas que podem ser resolvidos sem nenhuma (sic) referncia aos objetivos ltimos a que esto servindo. possvel formular, por exemplo, um modelo de pesquisa operacional para saber como possvel eliminar da maneira mais eficiente os judeus, nos fornos crematrios de Dachau. perfeitamente possvel tratar isso como um problema operacional, como tambm possvel estudar a maneira de distribuir recursos de modo a otimizar a mortalidade infantil. A anlise, exatamente por ser uma operao parcial, no se interroga em nenhum momento sobre implicaes maiores. Ento, o operador pode ser extremamente eficiente dentro de um sistema maior. Ele pode ter um mximo de micro racionalidade sem por nenhum momento se interrogar sobre a macro racionalidade onde ele est inserido. Mais ainda, uma formao que seja apenas analtica uma formao que tem um grande mrito, mas em nenhum momento apresenta o sistema econmico e social como uma realidade em mutao. Sempre apresenta um sistema como um parmetro, apresenta o sistema como dado; forando um pouco, como eterno. J o esforo por abertura crtica no processo de formao profissional algo que sempre vai chamar ateno sobre a transitoriedade das formaes sociais. Nesse sentido, o economista com uma alta formao, com uma abertura crtica no seu processo de formao analtica , pelo menos em potncia, um indivduo que pode no acreditar que o rei esteja vestido. um processo de formao que tende a estimular um tipo de viso supra-sistema, enquanto que a anlise econmica, num primeiro nvel, fortalece as orientaes intra-sistema. Agora, toda e qualquer sociedade organizada sempre se apresenta, dentro do processo educacional, como eterna. No deve surpreender que os cursos de economia procurem selecionar temas que tentam demonstrar q eternidade dos sistema sociais. E isto significa carregar tremendamente num nvel analtico e no permitir aquelas aberturas crticas que vo vacinando, estimulando um tipo de perspectiva que no a do operador intra-sistema preocupado exclusivamente com a maximizao da micro racionalidade.

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