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Paul R. Ehrlich Carl Sagan Donald Kennedy Walter Orr Roberts O INVERNO NUCLEAR

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Paul R. Ehrlich Carl Sagan Donald Kennedy Walter Orr Roberts

O INVERNO NUCLEAR

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Tradução João Guilherme Linke

Editora Francisco Alves

1985

SUMÁRIO

Colaboradores Prefácio Advertência LEWIS THOMAS Introdução DONALD KENNEDY A Atmosfera e as Conseqüências climáticas da Guerra Nuclear CARLSAGAN Conseqüências Biológicas de uma Guerra Nuclear PAUL R. EHRLICH

Painel sobre Conseqüências Atmosféricas e Climáticas Painel sobre Conseqüências Biológicas A Conexão Moscou: Diálogo entre Cientistas Norte-Americanos e Soviéticos Conclusão WALTER ORR ROBERTS Apêndice Notas Agradecimentos

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Este livro é dedicado à memória de Robert W. Scrivner (1935-1984)

Com firmeza e brandura, a paixão de Robert pela paz idealizou a

conferência e a tomou realidade. Este livro é dele. Comitê de Orientação, Conferência sobre o Mundo após a Guerra

Nuclear

PREFÁCIO

Em junho de 1982, dois executivos de fundações, Robert W. Scrivner do Rockefeller Family Fund e Robert L. AlIen da Henry P. Kendall Foundation, tiveram um encontro com Russell W. Peterson, presidente da Sociedade Nacional Audubon, para tratar de uma crescente preocupação comum: nos debates públicos sobre a guerra nuclear e os efeitos destrutivos imediatos de explosões e radiações sobre vidas humanas e cidades, estaria sendo dada atenção suficiente aos efeitos biológicos de mais longo prazo? O que faria uma guerra nuclear à atmosfera, à água, aos solos - aos sistemas naturais de que toda a vida depende? Allen, Peterson e Scrivner concordaram em que se deveriam buscar meios de levar o movimento de defesa ambiental a examinar o assunto, e se propuseram apurar que progressos estaria fazendo a comunidade científica. Eles conheciam o relatório de 1975 da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, "Efeitos Mundiais à Longo Prazo de Detonações Múltiplas de Armas Nucleares", e o relatório de 1979 da Comissão de Avaliação Tecnológica do Congresso dos Estados Unidos, "Os Efeitos de uma Guerra Nuclear". Haviam também estudado uma edição especial da revista Ambio (voI. XI, no. 2-3, 1982), órgão da Real Academia Sueca de Ciências, que acabava de ser publicada e continha dados

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científicos novos sobre os impactos climáticos e biológicos de uma guerra nuclear. Scrivner, Allen e Peterson reuniram alguns cientistas e ecologistas para tratar da organização de uma conferência pública sobre os efeitos a longo prazo de uma guerra nuclear. Entre eles estava Carl Sagan, professor de Astronomia e Ciências Espaciais e diretor do Laboratório de Estudos Planetários da Universidade Comell. Ele informou que um pequeno grupo de cientistas estava empenhado num estudo possivelmente importante ligado aos efeitos climáticos de uma guerra nuclear. Esse estudo, "Conseqüências Atmosféricas e Climáticas a Longo Prazo de um Conflito Nuclear", por Richard P. Turco, Owen B. Toon, Thomas P. Ackerman, James B. Pollack e Sagan, ficou depois conhecido como o relatório TTAPS, iniciais dos sobrenomes dos autores. O grupo TTAPS começara por examinar os efeitos atmosféricos de grandes quantidades de poeira, e ampliara o estudo para incluir a fumaça e a fuligem produzidas por incêndios extensos, depois de verem dados sobre o tema publicados na Ambio por Paul J. Crutzen, do Instituto de Química Max Planck de Mogúncia, República Federal da Alemanha, e John W. Birks, da Universidade do Colorado ("A Atmosfera depois de uma Guerra Nuclear: Crepúsculo ao Meio-Dia"). O novo e vital fator do estudo TTAPS foi o impacto da enorme quantidade de pó e fumaça gerada por explosões nucleares e pelos incêndios resultantes; esse manto de pó e fumaça, imaginaram eles, teria efeitos atmosféricos que alterariam o clima e se propagariam a grandes distâncias das áreas de explosão. O estudo quantificava, através de modelos matemáticos, os efeitos de uma guerra nuclear quanto ao grau em que partículas em suspensão impediriam a luz solar de alcançar a Terra. Foram utilizados vários cenários para indicar os níveis de megatonagem e locais de detonação, quer no ar quer no solo. As respostas que vinham surgindo apontavam para uma série potencialmente catastrófica de conseqüências atmosféricas, climáticas e radiológicas. As temperaturas reduzir-se-iam dramaticamente, mesmo no verão, a níveis bem abaixo do ponto

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de congelamento da água; a luz do dia seria na maior parte reduzida; essas condições poderiam durar vários meses e possivelmente estender-se muito além das regiões atacadas, inclusive ao Hemisfério Sul. Allen, Scrivner, Peterson e o seu grupo animaram-se ao tomarem conhecimento de que havia outro trabalho científico em curso. Um novo estudo sobre o assunto estava sendo levado a efeito pela Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos. E o Comitê Científico de Problemas do Meio Ambiente (SCOPE) do Conselho Internacional de Uniões Científicas planejava um estudo sobre "Conseqüências Ambientais de uma Guerra Nuclear". Aquele grupo informal evoluiu para um Comitê de Orientação com o fim de examinar a conveniência de promover uma grande conferência pública através da qual o estudo TTAPS e as conclusões sobre as conseqüências biológicas de uma guerra nuclear pudessem ser conhecidas por educadores, cientistas, administradores de empresas, autoridades civis e outros líderes comunitários e representantes de outras nações, bem como por ecologistas. Entre os quais acederam em formar o Comitê de Orientação estavam vários cientistas altamente reputados: Paul R. Ehrlich, professor de ciências biológicas e de estudos populacionais na Universidade Stanford; Peter H. Raven, diretor do Jardim Botânico do Missouri, em Saint Louis; Walter Orr Roberts, presidente emérito da Corporação Universitária para Pesquisas Atmosféricas; Carl Sagan, e George M. Woodwell, diretor do Centro de Ecossistemas do Laboratório Biológico Marinho de Woods Hole, Massachusetts. Woodwell foi nomeado presidente da Conferência. O Comitê designou Chaplin B. Barnes, ex-membro da Sociedade Nacional Audubon e do Conselho de Qualidade Ambiental, para diretor-executivo da Conferência e coordenador do empreendimento. Por sugestão do Dr. Sagan, resolveu-se submeter o relatório TTAPS a um exame crítico minucioso num simpósio de eminentes especialistas em ciências físicas. A seguir os dados seriam mostrados a um grande número de experientes biólogos e

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ecologistas para que estes se pronunciassem quanto à extensão dos impactos mundiais à longo prazo sobre a espécie humana e os sistemas de sustentação de vida do planeta. Ficou entendido que somente se os dados fossem sancionados nesse exame a conferência pública proposta seria programada. Uma Junta Científica Consultiva composta de sessenta e um cientistas dos Estados Unidos e de mais oito países foi constituída para auxiliar na preparação da Conferência e colaborar na disseminação de informações após a mesma. Preparando o programa dos trabalhos, o Comitê de Orientação decidiu que discussões políticas, referências a desarmamento, controle de armas e fatores sociais, que de ordinário seriam relevantes num debate a respeito dos impactos de uma guerra nuclear, não teriam lugar na conferência proposta. Na organização do programa científico da Conferência, ficou decidido que se trataria unicamente das conseqüências físicas, atmosféricas e biológicas de uma guerra nuclear. O Comitê achou que a inclusão de outras considerações como estratégia nuclear e implicações econômicas, políticas e sociais desviariam a atenção da mensagem científica central. Em fins de abril de 1983, cerca de cem cientistas dos Estados Unidos e de outros países reuniram-se para o processo do exame prévio na Academia Americana de Artes e Ciências em Cambridge, Massachusetts. Os cientistas convidados representavam uma grande variedade de campos. Depois da primeira assembléia, organizada e presidida pelo Dr. Sagan (que ainda convalescia das complicações quase fatais de uma apendicectomia a que se submetera no mês anterior), cerca de quarenta físicos e dez biólogos analisaram e avaliaram a minuta preliminar do estudo TTAPS. Em termos gerais, o grupo concordou com as conclusões do relatório quanto ao potencial de reduções consideráveis na quantidade de luz solar que chega à superfície da Terra e de alterações climatológicas de vulto, embora sugerindo alguns pequenos ajustes. Em aditamento aos efeitos climatológicos de temperaturas glaciais e virtual escuridão, o grupo de ciências físicas discutiu agressões como a exposição à radiação e a

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precipitações, exposição à radiação ultravioleta da luz solar devida ao empobrecimento da camada de ozônio e ação deletéria de gases tóxicos desprendidos pela combustão de materiais sintéticos. Terminada a reunião dos especialistas em ciências físicas, o Dr. Raven convocou um grupo de biólogos, juntamente com dez dos cientistas presentes à reunião anterior, para examinarem os impactos potenciais das condições de pós-guerra nuclear nos sistemas de sustentação vital da Terra. Foram considerados a escuridão prolongada e alterações climáticas extremas, e os respectivos efeitos sobre o fitoplâncton e o zooplâncton, sobre outras formas vivas vegetais e animais e sobre a agricultura. Trocaram-se idéias sobre os efeitos sinérgicos das condições de pós-guerra nuclear sobre elementos de ecossistemas marinhos, de água doce e terrestres. Analisaram-se os efeitos sobre a vida,animal e vegetal da exposição prolongada a radiação ionizante e à luz ultravioleta. Outras discussões centraram-se na interrupção em grande escala dos serviços normais de ecossistemas naturais, imprescindíveis à sustentação da vida humana e da sociedade, inclusive a produção de alimentos para o homem bem como para os animais de criação e para os animais selvagens; clima e condições de tempo; eliminação de resíduos e reciclagem de fertilizantes; preservação do solo e controle de pragas das lavouras. Ao deixarem as reuniões de Cambridge, os biólogos estavam todos de acordo em que esses efeitos sobre a biosfera podiam ser devastadores num grau anteriormente não previsto, e haviam concluído que não se podia afastar a possibilidade de os efeitos biológicos a longo prazo de uma guerra nuclear virem a acarretar a exterminação da humanidade e da maior parte das espécies selvagens do planeta. Com a afirmação dos cientistas congregados de que a análise era válida, e de que as condições tinham de ser encaradas com muita seriedade, o Comitê de Orientação decidiu levar avante os planos para a Conferência, e trinta e uma instituições ou organizações científicas, ambientais e populacionais, nacionais e internacionais, dispuseram-se a contribuir para patrociná-Ia:

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Amigos da Terra Associação das Nações Unidas dos Estados Unidos da América Associação Nacional dos Professores de Ciências Causa Comum Centro de Ligação do Ambiente Coalizão Global Amanhã Conselho de Defesa dos Recursos Naturais Consórcio de Terras Públicas Crescimento Demográfico Zero Federação Americana de Paternidade Planejada Federação Canadense da Natureza Federação dos Cientistas Americanos Federação Internacional de Institutos de Estudos Superiores Federação Nacional da Vida Selvagem Fundo de Defesa Ambiental Instituto Americano de Ciências Biológicas Instituto do Espaço Aberto Instituto de Política Ambiental Instituto de Recursos Mundiais O Instituto de Ecologia (TIE) Programa do Ambiente das Nações Unidas Sierra Club Smithsonian Institution Sociedade Americana de Microbiologia Sociedade Ecológica da América Sociedade do Mundo Silvestre Sociedade Nacional Audubon União dos Cientistas Engajados União Internacional de Ciências Biológicas União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais Universidade das Nações Unidas

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Durante o verão de 1983, um grupo de vinte biólogos sob a direção do Dr. "Ehrlich ampliou a definição dos efeitos das alterações do clima sobre a biosfera.Nesse mesmo intervalo, o grupo TTAPS aprimorou seus dados e entregou-os à publicação científica. E nesse ínterim, na União Soviética, o Dr. Vladimir V. Aleksandrov, do Centro de Computação de Modelagem de Climas da Academia de Ciências da URSS em Moscou (um dos cientistas que participaram das reuniões de Cambridge), comprovou as principais projeções do estudo TTAPS através de modelos de computador por ele próprio elaborados. Cerca de seis semanas antes da Conferência, Allen, do Comitê de Orientação, em conversa com Kim Spencer e Evelyn Messinger da Internews, desenvolveu a idéia de adicionar uma nova dimensão à Conferência aproveitando a tecnologia disponível de um link bidirecional de satélite com cientistas soviéticos em Moscou. Allen, Spencer e Messinger propuseram-se organizar e produzir um programa de noventa minutos que permitiria a cientistas de alto nível dos Estados Unidos e da União Soviética debater as teses da Conferência sobre as conseqüências climáticas e impactos biológicos de uma guerra nuclear. Spencer entabulou entendimentos com a Gosteleradio, a única rede de televisão da União Soviética, e Allen promoveu diversas comunicações pessoais de alto nível entre cientistas americanos e soviéticos com o fim de obter a participação de especialistas da Academia Nacional de Ciências da URSS. Quando da abertura de O Mundo após a Guerra Nuclear, ou Conferência sobre as Conseqüências Biológicas Globais a Longo Prazo de uma Guerra Nuclear, em 31 de outubro, no Hotel Sheraton Washington em Washington, D.C., estavam presentes mais de quinhentos participantes e uma centena de representantes da mídia. Entre os participantes contavam-se cientistas e embaixadores ou outros representantes de mais de vinte países, bem como autoridades civis, educadores, conservacionistas e líderes religiosos, cívicos,

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empresariais, filantrópicos, diplomáticos, militares e de controle de armas vindos de todas as partes do território americano. A Conferência teve ampla cobertura dos meios de informação dos Estados Unidos, da União Soviética e de outros países. A Conferência foi oficialmente encerrada com a fala do Dr. Roberts (ver p. 183), mas quase ninguém deixou o recinto. Pois, naquele ponto, os participantes se reuniram para o histórico evento subsidiário que foi a Conexão Moscou. Era a primeira vez que as comunicações por satélite eram usadas para pôr em contato, ao vivo, um grupo de cientistas de Moscou com um grupo de cientistas nos Estados Unidos para um amplo intercâmbio de informações científicas. Às 4h da tarde, hora de Moscou (8 da manhã em Washington), de 1º. de novembro, as exposições de Sagan e Ehrlich no dia da abertura foram transmitidas para um grupo de cientistas soviéticos, que a seguir se reuniram para discutir seus comentários. Às 10 da noite, hora de Moscou, teve início a Conexão Moscou entre o grupo soviético, reunido num estúdio de TV em Moscou, e quatro cientistas norte-americanos num salão de conferências em Washington. Os participantes do grupo americano eram o Dr. Thomas Malone, diretor emérito do Instituto de Pesquisas Holcomb, da Universidade Butler, Paul Ehrlich, Walter Orr Roberts e Carl Sagan. Os principais debatedores em Moscou eram o acadêmico Yevgeniy Velikhov, vice-presidente da Academia de Ciências da URSS, Yuri Israel, membro da mesma Academia e chefe da Comissão de Hidrometeorologia e Controle do Meio Ambiente, Alexander Bayev, especialista em biologia e genética molecular, secretário do Departamento de Fisiologia Biofísica, Bioquímica e Química da Academia de Ciências da URSS, e Nikolai Bochkov, acadêmico da Academia de Ciências Médicas e diretor do Instituto de Genética da Academia de Ciências da URSS. Durante os noventa minutos do link de satélite, os cientistas soviéticos e americanos trocaram perguntas e comentaram trabalhos em curso. E alguns dados sobre efeitos de uma guerra nuclear obtidos pelos soviéticos complementaram e ampliaram as exposições feitas na

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Conferência. Georgiy Skryabin, primeiro-secretário científico da Academia de Ciências da URSS, expressou sentimentos "ambivalentes". "Por um lado", disse Skryabin, "há o sentimento de grande preocupação com respeito à possível tragédia que nos defronta, que paira sobre todos nós mulheres, crianças, velhos, e sobre toda a vida da Terra. Por outro, há nesta Conferência um grande motivo de satisfação, que é o fato de que os grandes cientistas aqui presentes - nossos colegas americanos e cientistas russos - chegaram a um consenso. Estão todos unidos na opinIão de que não deve haver uma guerra nuclear, de que esta significaria desastre e morte para a humanidade. Eu, pessoalmente, sinto-me contente e confortado com isso, pois hoje em dia a autoridade dos cientistas é considerável, e todos nós devemos procurar fazer valer nossa influência para pôr um termo à corrida armamentista, para que não venha a ocorrer jamais uma guerra nuclear". Alexander Kuzin, membro correspondente da Academia de Ciências da URSS, declarou: "É assim responsabilidade direta dos cientistas da União Soviética e dos Estados Unidos levar ao conhecimento de todos os enormes perigos que acompanhariam a deflagração de qualquer espécie de conflito nuclear, de modo a prevenir a própria possibilidade de uma guerra nuclear, que sem dúvida nenhuma não só resultaria na ruína da atual civilização senão que ameaçaria a vida como tal neste planeta que amamos." Quando a Conexão Moscou se aproximava do final, Malone observou que a troca de opiniões proporcionada pela Conferência "poderá vir a ser vista em anos vindouros - justificadamente - como a virada decisiva nos rumos da humanidade, e haverá de elevar o nível de consciência entre os condutores da política". Como seguimento à Conferência, foi fundado em Washington, D.C., o Centro de Conseqüências da Guerra Nuclear, com o fim de dar continuidade à disseminação das conclusões da ciência. Através do Centro, estão sendo postos à disposição dos interessados materiais

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impressos e audiovisuais sobre as conseqüências climáticas e biológicas de uma guerra nuclear. O endereço do Centro é: 3244 Prospect Street, NW, Washington, D.C., 20007.

ADVERTÊNCIA LEWIS TROMAS, M.D.

As descobertas científicas descritas neste livro poderão vir a revelar-se, num mundo que tenha a boa sorte de continuar a sua história, como tendo sido os mais importantes resultados de pesquisa em toda a longa história da ciência. A primeira descoberta já é largamente conhecida na comunidade científica de climatologistas, geofísicos e biólogos aqui e no estrangeiro, e foi confirmada em detalhe por cientistas soviéticos das mesmas áreas. Modelos de computador demonstram que uma guerra nuclear envolvendo o emprego de uma simples fração do total das bombas americanas e russas poderia transformar o clima de todo o Hemisfério Norte, mudando-o bruscamente do seu presente estado sazonal para uma longa noite escura e gélida. Esta será seguida, passados alguns meses, pelo assentamento da poeira e fuligem nucleares, e depois por uma espécie nova e maligna de luz solar com proporção aumentada da sua faixa ultravioleta, potencialmente capaz de cegar muitos dos animais terrestres. O ozônio da atmosfera, que normalmente protege a Terra da perigosa radiação ultravioleta, seria substancialmente reduzido por uma guerra nuclear. Nas mesmas pesquisas, novos cálculos da extensão e intensidade das precipitações radioativas indicam a exposição de grandes extensões de território a níveis de radiação muito mais altos do que se julgava. O relatório é conhecido como TTAPS, sigla derivada dos nomes dos pesquisadores: Turco, Toon, Ackerman, Pollack e Sagan. O segundo trabalho, elaborado por Paul R. Ehrlich e outros dezenove biólogos respeitados, demonstra que as predições do TTAPS significam nada menos que a extinção de grande parte da biosfera

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terrestre, muito possivelmente envolvendo o Hemisfério Sul tal como o Norte. Em conjunto, essas duas descobertas mudam radicalmente as perspectivas de um conflito termonuclear. Elas foram submetidas a um exame crítico minucioso por cientistas representantes das disciplinas envolvidas, aqui e em outros países. Estudos paralelos e suplementares vêm sendo feitos, e já se evidencia um grau de concordância inusitado com respeito aos pormenores técnicos e às conclusões tiradas. Na opinião de alguns juízes, o relatório TTAPS teria até talvez minimizado os danos climatológicos implicados pelos dados. O relatório dos vinte biólogos, sumariado pelo Professor Ehrlich, representa o consenso a que chegaram quarenta especialistas em ciências biológicas num simpósio realizado em Cambridge, Massachusetts, na primavera de 1983. É um mundo novo, a demandar uma nova diplomacia e uma nova lógica. Até aqui, a comunidade internacional de estadistas, diplomatas e analistas militares tem-se inclinado a encarar a perspectiva de uma guerra nuclear como um problema unicamente dos adversários possuidores das armas. O controle de armamentos e as negociações intermináveis visando à redução dos explosivos nucleares têm sido considerados responsabilidade, e até prerrogativa, das poucas nações em confronto definido. Agora tudo isso mudou. Nenhum país da Terra está livre do perigo da destruição se duas nações quaisquer, ou grupos de nações, se aventurarem num reencontro nuclear. Se a União Soviética e os Estados Unidos, e seus respectivos aliados do Pacto de Varsóvia e da OTAN, se pusessem a lançar seus mísseis além de um mínimo dúbio e ainda indeterminado, estados neutros como a Suécia e a Suíça sofreriam os mesmos efeitos dilatados, a mesma morte lenta que os participantes diretos. A Austrália e a Nova Zelândia, o Brasil e a África do Sul, têm quase tanto por que se preocupar quanto a Alemanha Ocidental se uma conflagração em grande escala se verificar no extremo norte. Até aqui, todos temos tendido a ver num conflito com armas nucleares

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um esforço de um par de opositores de resolver pendências como domínio territorial ou disputa ideológica. Agora, com os novos conhecimentos diante de nós, ficou claro que qualquer território conquistado será ao cabo um deserto estéril, e que qualquer ideologia será consumida na morte da civilização e na perda permanente da memória humana da cultura. Até agora, os riscos de uma guerra dessa espécie foram convencionalmente calculados pelo número de mortos de um e de outro lado ao final da batalha, soldados e não-combatentes somados. As expressões "aceitável" e "inaceitável", significando tantos ou tantos milhões de baixas humanas, têm sido utilizadas para estabelecer julgamentos frios sobre a necessidade de novos e mais precisos sistemas de armas. Daqui por diante, as coisas são diferentes. É desnecessário falar da estimativa inquestionável de que em um conflito total de, por exemplo, 5.000 megatons, algo como um bilhão de pessoas morreriam imediatamente por ação das explosões, do calor e da radiação. Por outro lado é desnecessário citar o fato provável de que outro bilhão viria a morrer depois, em conseqüência dos efeitos retardados sobre os sistemas de sustentação vital e da precipitação radioativa. Algo mais terá acontecido ao mesmo tempo, algo em que os seres humanos deveriam ver um risco igual ao da perda de suas vidas. O complexo, coerente, belamente organizado ecossistema da Terra - aquilo que alguns denominam biosfera e a que outros chamam natureza - terá sofrido um golpe mortal, ou quase. Algumas de suas partes hão de persistir, é razoavelmente certo, e a vida do planeta irá continuar, mas talvez unicamente em nível comparável ao que existia por volta de um bilhão de anos atrás, quando os procariontes (criaturas semelhantes às bactérias atuais) se uniram em combinações simbióticas e criaram as células nucleadas de que nós somos sem dúvida os descendentes diretos. A última grande extinção de vida planetária ocorreu há cerca de 65 milhões de anos, quando os dinossauros e inúmeras outras criaturas terrestres e marinhas desapareceram simultaneamente. Supõe-se

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geralmente que esse evento tenha sido provocado por uma vasta explosão de pó, que teria escurecido o sol por um período longo o bastante para deter a fotossíntese, provavelmente em conseqüência da colisão de um asteróide com a Terra. É esse gênero de evento que predizem os modelos usados nestes estudos. A persistência e multiplicação de armas nucleares, a provável proliferação de tais armas em outros países que hoje não as possuem, e os esforços bloqueados, adiados e fracassados de livrar-nos dessas ameaças à vida do planeta, inclusive à nossa própria, parecem-me hoje uma ordem de problemas diferente do que parecia até recentemente. Já não é um assunto de política, a ser deixado à sensatez e previdência de uns poucos estadistas e de uns poucos chefes militares, nuns poucos Estados nacionais. É um impasse global, que envolve toda a humanidade. Minha esperança agora é que a comunidade científica internacional em todos os países analise cuidadosamente os dados e conclusões a que chegamos, que amplie esses estudos de todas as maneiras que possa imaginar e que aconselhe seus governos adequadamente e insistentemente. E espero que os jornalistas do mundo achem modos de informar os cidadãos da Terra, em detalhe e reiteradamente, sobre os riscos futuros. Já não temos escolhas a fazer ou as opções de alguns meses atrás a questionar. Simplesmente temos de parar, e logo, e livrar a Terra de uma vez por todas dessas armas que na verdade não são armas, senão instrumentos de pura danação. No pé em que estão as coisas, nós colocamos em perigo muito mais que a humanidade em si. Arriscamos infligir um dano permanente à vida de toda a admirável criação. A coisa mais linda que já vi numa fotografia, em toda a minha vida, é o planeta Terra visto da Lua, suspenso no espaço, evidentemente vivo. Embora à primeira vista ele pareça feito de uma multiplicidade de coisas vivas diferentes, melhor reparando, cada peça que nele trabalha, nós inclusive, está ligada por interdependência a todas as demais. Segundo um modo de dizer, é o único ecossistema

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autenticamente fechado que nos é dado conhecer. Em outras palavras, é um organismo. Nasceu, calcula-se, há 3,8 bilhões de anos, e eu lhe desejo feliz aniversário e uma longa existência futura, para os nossos filhos, e os seus netos, e os netos de seus netos. Tenho em alta conta a nossa espécie, com todo o seu verdor e imaturidade como membro da biosfera. Na escala do tempo evolutivo, nós só chegamos alguns instantes atrás e ainda temos muito que crescer. Se formos bem-sucedidos, podemos tornar-nos uma espécie de mente coletiva da Terra, o pensamento da Terra. No momento, apesar da nossa juventude como espécie, somos sem dúvida a mais engenhosa e inteligente das peças componentes do sistema. Confio em que teremos a vontade de continuar funcionando, e de manter o melhor que possamos a vida do planeta. Por isso, vejo estes relatórios não apenas como uma advertência, mas também, se devidamente divulgados e reconhecidos a tempo, como uma extraordinária boa nova. Acredito que a humanidade como um todo, conhecendo a verdade dos fatos, saberá o que tem de ser feito com as armas nucleares. Mas se os fatos permanecerem obscuros, ou forem erroneamente tomados por fantasias teóricas arcanas, que se podem calmamente desprezar, nesse caso não vejo esperança para nós.

INTRODUÇÃO DONALD KENNEDY

Este não é um assunto agradável. Em primeiro lugar, as conseqüências de uma guerra nuclear são realmente pavorosas, e não é nada divertido dizer às pessoas que são mais pavorosas ainda do que lhes disseram antes. Depois, infelizmente não existe uma saída simples para as dificuldades em que nos colocam as armas nucleares - embora alguns teimem que existe. Ao contrário, há uma necessidade contínua de lidar com o perigo, e de enfrentar uma política de segurança nacional que se mostra terrivelmente refratária

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ao raciocínio lógico. É nessas circunstâncias desanimadoras que se discutem as conseqüências biológicas a longo prazo de uma guerra nuclear. Antes de começar, quero levar ao conhecimento do leitor algumas qualificações que me faltam para o meu papel de introdutor, e em seguida expor uma ou duas convicções. Não sou um veterano do movimento anti-nuclear, nem tenho experiência em matéria de desarmamento ou de controle de armas. Ademais, é com prazer que deixo a outros a proficiência técnica na disciplina inexata que é a estratégia nuclear - a base tecnológica e aleatória da détente. Quanto às convicções, devo dizer que conservo a crença antiquada de que continuaremos a necessitar de um organismo de defesa no país, de que, queiramos ou não, as armas nucleares continuarão por algum tempo a exercer uma função integrante na nossa estratégia de segurança nacional e na de outros, e de que, em vista disso, teremos de seguir nos esforçando em compreender tais armas se quisermos finalmente controlá-Ias e negociar racionalmente com a outra parte. Estas revelações devem mostrar, penso eu, que não sou nem uma fonte técnica indicada para uma conferência de controle de armamentos, nem um candidato promissor a chefe de claque num comício pela paz. Este volume não se destina a refletir nenhum desses propósitos. É, sim, um relatório de análises científicas sérias das conseqüências de uma guerra nuclear. E para introduzir esse assunto eu tenho uma perspectiva que imagino relevante. Durante um período em que prestei serviços ao governo, chefiei um órgão de regulação que se ocupava em grande parte com os perigos ligados a produtos químicos tóxicos, e de modo mais geral com as conseqüências da introdução prematura de novas tecnologias. No curso daqueles anos, e nos tempos imediatamente precedentes e seguintes, estive intimamente envolvido em atividades de estimativa de riscos: avaliação das conseqüências do uso de defensivos agrícolas, definição de tolerâncias para contaminação por poluentes industriais, estimativa de efeitos de aditivos alimentares, etc. Nessa função, era uma preocupação considerável a forma de estimar os

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riscos, tanto mais em circunstâncias em que os dados são necessariamente incompletos. Creio que três lições tiradas dessa experiência são aplicáveis ao assunto em pauta. Primeiro, um dos grandes desafios da metodologia de avaliação de riscos é formular decisões com o máximo de segurança possível em face de grandes incertezas. Para levar a bom termo esse princípio, é essencial que se tenha tanta consciência daquilo que não se sabe quanto daquilo que se sabe. Esse desafio torna-se muito mais difícil pela atitude do público em relação ao risco. É esta a segunda lição: as pessoas são ambivalentes com respeito ao risco. Aplicam-se enormes recursos pessoais e sociais na salvação de uma vida identificada em perigo, mas consigna-se muito menos para proporcionar uma proteção estatisticamente muito maior a indivíduos não identificados da população global. Aprovamos entusiasticamente leis que previnem riscos involuntários de pequena monta; mas as revogamos prontamente se elas restringem liberdades pessoais. Em suma, não hesitamos em gastar grandes somas para tirar uma garotinha do poço em que ela caiu, mas relutamos em diminuir o limite de velocidade, ou até em proibir certos produtos cancerígenos se eles são do agrado das pessoas. Essa ambivalência torna-se ainda mais definida quando a probabilidade e a gravidade dos riscos são consideradas separadamente. Há uma diferença de atitudes em relação a riscos estatísticos modestos amplamente distribuídos, como o aumento de mortes por câncer devido a uma toxina ambiental, e a riscos de baixa probabilidade com conseqüências desastrosas generalizadas, como um conflito com armas nucleares. Embora estejamos apenas começando a desenvolver uma ciência das atitudes humanas com respeito à aversão ao risco, os resultados até aqui obtidos sugerem que as pessoas tratam eventos de baixa probabilidade com conseqüências altamente negativas de um modo que se afasta acentuadamente das opções que seriam de prever com base nas teorias correntes de "expectativa utilitária". Tais pesquisas podem vir a

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revelar alguma coisa de grande utilidade sobre as atitudes da população em relação à guerra nuclear. E podem ser mais importantes ainda no que toca à questão crucial de como os responsáveis pelas decisões, nos terríveis últimos momentos, irão decidir. A terceira e última lição que me seria dado tirar do domínio mais convencional da estimativa de riscos tem a ver com a escala de tempo em que nós reconhecemos as conseqüências. Aqui a analogia com o mundo das substâncias tóxicas é de fato perfeitamente exata. Quando, depois da guerra, a revolução da indústria química começou a causar preocupação com os riscos humanos ligados a substâncias tóxicas, a preocupação era quase inteiramente limitada aos efeitos imediatos ou "agudos". Os primeiros programas de ensaios criados para avaliar esses perigos foram os chamados testes LD50, que mediam a quantidade de um determinado composto que se constituía em dose letal para 50 por cento dos organismos utilizados no teste. Mais tarde, foi-se aos poucos chegando à conclusão de que os efeitos "crônicos" à longo prazo - a possibilidade de produzir câncer, ou de aumentar a propensão de um indivíduo para cardiopatias e infarto, ou de gerar defeitos congênitos na prole - eram muito mais importantes, e inteiramente impossíveis de medir empregando os testes usuais de curto prazo. A subseqüente experiência confirmou que esses riscos crônicos são muitíssimo mais sérios que os agudos, e hoje em dia não passa pela cabeça de ninguém avaliar a segurança de uma substância nova sem realizar experiências de longa duração para avaliar o seu potencial carcinogênico, efeitos fetais, etc. É a posição em que nos encontramos com respeito à guerra nuclear: estamos começando a compreender os efeitos retardados - os equivalentes, para o ambiente, do câncer, das cardiopatias, do infarto.

Agora quero chamar atenção para um aspecto central na evolução dos nossos conhecimentos sobre as conseqüências de uma guerra nuclear: é o caráter errático e acidental das nossas descobertas. O que sabemos hoje, e é certamente bem menos do que desejaríamos

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saber, chegou-nos em grande parte através de revelação não planejada, e não por estudo sistematizado. Em decorrência das armas detonadas sobre cidades japonesas no final da Segunda Grande Guerra, tivemos uma triste verificação de efeitos agudos - a devastação causada pela explosão primária e pelas ondas de choque e o impacto da radioatividade local em seres humanos. Mas só depois dos testes do Atol de Biquini em 1954 foi que ficamos sabendo dos perigos de contaminação a distância por precipitação radioativa após transporte atmosférico. Ainda hoje, quase três décadas passadas, causa-nos espanto a magnitude e alcance do fenômeno. Por exemplo, o famoso vazamento de radiação de um reator avariado em Three Mile Island - incidente que gerou desassossego generalizado e centenas de páginas de depoimentos no Congresso - depositou menos de um décimo da quantidade de radiação (em forma de 131 I) depositada na mesma região da Pensilvânia pela precipitação da nuvem produzida pelo teste de uma única bomba na China dois anos antes. Entre outras descobertas tardias e fortuitas estão os efeitos no cinturão de Van Allen, o pulso eletromagnético (EMP) e seus efeitos nas comunicações eletrônicas e, mais recentemente, a injeção de NOx (óxidos de nitrogênio) na camada de ozônio. Discorrendo sobre esses eventos, um observador fez o seguinte comentário: "A incerteza é uma das principais conclusões... como acentua a derivação acidental e imprevista de muitas das nossas descobertas." Essas palavras não foram escritas por um crítico acadêmico da política governamental: são de um atual subsecretário da Defesa do governo Reagan. A conclusão é clara, e não muito tranqüilizadora. Nós temos de aprender a esperar o inesperado. A presente Conferência coloca-nos bem no meio de outro e ainda mais momentoso conjunto de revelações sobre os riscos crônicos ligados a uma guerra nuclear. Num sentido importante, a genealogia desta Conferência começa com o trabalho extraordinário da organização denominada Médicos pela Responsabilidade Social. Eles fizeram as primeiras avaliações quantitativas das circunstâncias médicas que prevaleceriam

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imediatamente após um ataque nuclear, e demonstraram a insuficiência das atuais instituições, programas e planos médicos para avir-se com essas circunstâncias. Tais revelações levantaram sérios questionamentos com respeito a toda a estrutura da prontidão da defesa civil e lançaram graves dúvidas sobre as asserções confiantes dos planejadores da defesa de que a recuperação após um conflito nuclear poderia completar-se num número de anos relativamente curto. Os resultados expostos nesta Conferência sumariam análises científicas mais sérias das conseqüências ecológicas e climatológicas duradouras de um conflito nuclear. Em particular, anteriormente os riscos ecológicos receberam pouquíssima atenção na avaliação de estratégias nucleares. Estudos mais antigos feitos sob o patrocínio do Departamento da Defesa (por exemplo, o de Mitchell) consistiam em pouca coisa mais que analogias com cataclismos naturais. O resumo final do estudo Rand de Mitchell é ilustrativo: "Destruições em grande escala produzidos por incêndios, secas, enchentes e outras catástrofes já defrontaram o mundo com problemas de reconstrução e reconstituição de comunidades bióticas, semelhantes aos que se prefiguram para o meio ambiente de pós-ataque." De que modo essa similaridade possa ser de serventia na avaliação dos riscos efetivos, deixo ao leitor imaginar. Na verdade, não é de todo justo condenar aqueles primeiros estudos: nossa visão atual é mais clara e mais sinistra em virtude de uma série de razões. Primeiro, certas verificações recentes (por exemplo, a sensibilidade de alguns ecossistemas a chuvas ácidas, e em particular a sensibilidade das plantas à radioatividade e à temperatura) foram no sentido de piorar as previsões. Segundo, nossa visão geral da complexidade e sutileza dos sistemas ecológicos mudou profundamente ao longo das duas últimas décadas; hoje compreendemos de forma muito mais completa a sua fragilidade. Por fim, o número e a precisão dos nossos sistemas de armamentos mudaram de tal modo que podem ampliar o caráter altamente destrutivo de um conflito armado.

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É surpreendente, portanto, que ainda hoje estejamos recebendo informações tranqüilizadoras baseadas em estimativas há muito superadas. Órgãos de emergência distribuem ainda hoje um folheto redigido em 1979 pela Agência de Prontidão da Defesa Civil. Nele lê-se a seguinte conclusão, em moldes idênticos à da metáfora do relatório de 1963: "Nenhum peso lógico de ataque nuclear poderia induzir no equilíbrio natural transformações de vulto que se aproximassem em espécie ou grau das que a civilização humana até aqui já produziu." Ainda que fosse verdade que a magnitude das transformações ecológicas provavelmente resultantes do maior ataque nuclear admissível fossem menores do que as produzidas pela civilização humana ao longo de toda a sua história, existe certamente uma enorme diferença entre o impacto de grandes mudanças deflagradas em milissegundos e as que se consumaram ao longo de milênios. Em outro trecho, o mesmo folheto cita do estudo de 1963 da Academia Nacional de Ciências e informação reconfortante de que “não são de esperar desequilíbrios ecológicos capazes de impossibilitar a vida normal". Não há qualquer menção a um estudo muito mais recente da mesma Academia sobre os efeitos mundiais à longo prazo de múltiplas detonações de armas nucleares. Este último relatório é de 1975, quatro anos antes da elaboração dó folheto da Agência de Prontidão. Suas conclusões são muito mais sombrias, como era de esperar: os efeitos dos óxidos de nitrogênio sobre a camada de ozônio foram reconhecidos, e as perspectivas de alterações climáticas foram mais seriamente levadas em conta. No entanto, o governo, prestando contas aos seus cidadãos, contornou a informação mais recente para promover um falso sentimento de tranqüilidade com base numa fonte ultrapassada. É de preocupar quando se usam dados obsoletos para informar decisões de política geral. Por si mesmas, as estimativas ecológicas da Academia dão margem substancial a uma apreensão ainda maior. Mas parece-me oportuno acentuar que os dados novos mais impressionantes apresentados

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nesta Conferência, na verdade os mais inquietantes dentre todos os efeitos crônicos potenciais de uma guerra nuclear até hoje enumerados, são as perspectivas de seqüelas climáticas de vulto. Tais seqüelas são de tal modo profundas que provavelmente eclipsariam todos os demais efeitos retardados até hoje conhecidos. Esta nova ótica resulta em parte de um novo paradigma geral de pensamento científico sobre os processos que influenciaram a história da Terra e moldaram-lhe a forma atual. No século XVIII e início do XIX, acreditava-se que as grandes formações terrestres houvessem resultado de processos catastróficos, infligidos à Terra e seus ocupantes por um Criador iracundo. Uma revolução importante contra esse modo de ver, encabeçada pelo geólogo inglês Charles Lyell, reconheceu a importância de processos graduais como a erosão, a sedimentação e a formação de recifes, e substituiu a concepção catastrofista por outra, baseada na doutrina do uniformitarismo. Hoje as ciências da Terra estão passando por uma segunda revolução, deflagrada pelas notáveis descobertas da tectônica de placas, e o acento voltou a incidir sobre eventos mais dramáticos. Cresce progressivamente a convicção de que grandes intervenções descontínuas como erupções vulcânicas e colisões de asteróides tiveram efeitos profundos na história da Terra e da vida nela existente. Uma hipótese particularmente cativante, por exemplo, é a de que a colisão de um asteróide com a Terra há 65 milhões de anos, e a nuvem de poeira atmosférica que ela produziu, persistindo durante longo tempo, levou a alterações climáticas que acarretaram as extinções em massa do final do período cretáceo. Quando pela primeira vez anunciada, a idéia de que os dinossauros teriam morrido no escuro evocou um grande ceticismo por parte dos biologistas meus colegas. Hoje, porém, é largamente admitido que eventos significantes da mesma natureza, ainda que não da mesma magnitude, têm ocorrido no tempo histórico por obra de erupções vulcânicas. "Anos sem verão" registrados em anais antigos associam-se no tempo a depósitos glaciais de chuvas ácidas, por exemplo, e aberrações meteorológicas mais contemporâneas foram ligadas a

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erupções como a do EI Chichón, no México, há dois anos. Conclusões como essas tornaram-nos muito mais cônscios da sensibilidade do clima do mundo a perturbações repentinas. Sabe-se, faz algum tempo, que explosões nucleares podem introduzir poeira e aerossóis em circulação duradoura na alta atmosfera. Cálculos recentes indicam que incêndios de grandes dimensões acresceriam um efeito sinérgico, suprindo partículas adicionais e aumentando substancialmente as forças de convecção que injetam materiais na circulação da alta atmosfera. Essa nova informação tornou real pela primeira vez a probabilidade de que modificações de temperatura e luz ambiente, prolongando-se por várias estações no Hemisfério Norte, podem resultar de um conflito nuclear em grande escala. É uma atuação de alarmante gravidade. Consideradas em conjunto, todas essas informações deveriam suscitar uma mudança radical no modo que nós como cidadãos avaliamos nossos riscos, e no modo que os nossos estrategistas nacionais os vêem. Já não é admissível pensar nas seqüelas de uma guerra nuclear em termos de minutos, de dias, ou sequer de meses. Seria como avaliar um produto tóxico, na época em que vivemos, em termos do que ele faz a uma pessoa em cinco minutos. O que ficamos sabendo a partir das coisas que os biólogos e físicos atmosféricos nos estão dizendo hoje é que a escala de tempo apropriada é anos, e que os processos que temos de considerar não nos são familiares nem em espécie nem em escala. As estimativas de risco sobre as quais os nossos estrategistas vêm trabalhando e que vêm citando aos nossos cidadãos são grosseiramente otimistas. Antes de terminar, quero focalizar um outro aspecto da análise de riscos. É um aspecto que mencionei de passagem mais atrás: a noção de "racionalidade" por parte dos detentores do poder de decisão ao confrontar questões de probabilidade e gravidade de um risco. Não apenas há motivos para duvidar que esses indivíduos, confrontados com riscos de alta gravidade e baixa probabilidade, se comportem de acordo com padrões utilitários racionais de opção, como há precedentes históricos explícitos fazendo acreditar que se

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comportarão de modo mais político - e humano - do que aquele que o modelo do "agente racional" indicaria. Em seu excelente livro The Essence of Decision, Graham Allison analisa o tratamento pelo governo dos Estados Unidos da crise dos mísseis cubanos em 1962 do ponto de vista de diferentes modelos comportamentais. Ao lê-lo, é impossível fugir à conclusão de que nenhum chefe de Estado, nenhuma autoridade do governo, nenhum oficial militar superior se comporta como "agente racional" ao tomar decisões quando o destino de países e do mundo pende na balança. Estruturas burocráticas, lealdades políticas e antecedentes - além de outras não-linearidades comportamentais que mal estamos começando a sondar - desempenham papéis ponderáveis. No entanto a estrutura da prontidão militar e o equilíbrio estratégico fundam-se na expectativa de resposta racional e contra-resposta racional. A racionalidade será particularmente difícil de manter nos primeiros estágios de um conflito nuclear quando a incerteza e a necessidade de decisões rápidas predominarão. É por isso que se afigura tão improvável a chefes militares experimentados e a outros que uma guerra nuclear possa jamais manter-se limitada. Seja como for, a avaliação de riscos deveria proceder-se sobre hipóteses de pior caso. É por isso que os cenários adotados pelos grupos de trabalho desta Conferência, como a maior parte dos demais, envolvem a detonação de frações consideráveis do arsenal nuclear do mundo. Mas há também uma razão adicional: a alta probabilidade de que, no contexto real das decisões de um confronto nuclear, será tão difícil confinar a retaliação e a reação que o curso esperado de um conflito dessa espécie é que ele prossiga sem limite. Finalizando, quero especificar o que é novo e o que não é neste volume. É de extrema significação que um grande grupo de biólogos ilustres tenha chegado a um consenso refletido sobre as conseqüências ecológicas de um conflito nuclear. (Em geral não se faz idéia de como é difícil que biólogos, principalmente ilustres, concordem nalguma coisa.) O grupo que se ocupou dos efeitos atmosféricos e climáticos, em seu relatório conjunto, levanta algumas

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possibilidades desalentadoras com respeito a esses aspectos de um pós-guerra nuclear. Mas, como eu tentei ilustrar, essas descobertas são parte de um processo ordenado na evolução do pensamento científico, através do qual pouco a pouco viemos deslocando o foco de nossas atenções dos efeitos mais imediatos e mais óbvios para os mais complexos e duráveis. Essa transição desloca-nos também para uma zona em que os efeitos são possivelmente ainda mais sérios, posto que muito mais difíceis de estimar com precisão. De fato, a história do desenvolvimento da ciência nuclear e a complexidade de muitos dos efeitos de maior alcance de que aqui se tratará sugerem que a incerteza deveria ser uma advertência temática para os planejadores de políticas. O que as nossas projeções mais ponderadas mostram é que um choque nuclear em grande escala haverá de produzir, entre os seus muitos efeitos plausíveis, as maiores convulsões biológicas e físicas deste planeta nos últimos 65 milhões de anos – um tempo mais de 30 mil vezes maior que o decorrido do nascimento de Cristo, e mais de 100 vezes o tempo de existência até aqui da nossa espécie. É preciso que a avaliação dos riscos prováveis se constitua num pano de fundo para todos aqueles que detêm a responsabilidade pelas decisões de segurança nacional, aqui e em outros lugares. Assim como existe uma continuidade entre as descobertas atuais e os resultados de trabalhos científicos anteriores, quero ressaltar que existe igualmente uma continuidade entre as opiniões dos cientistas aqui apresentadas e as dos seus ilustres colegas não citados neste livro. E quero encerrar enfatizando as últimas, já que é fácil muitas vezes rejeitar más notícias desconfiando do mensageiro. Projeções anteriores sobre os efeitos retardados de uma guerra nuclear, baseadas nos conhecimentos então disponíveis, foram feitas em 1975 pela Academia Nacional de Ciências e em 1979 pela Comissão de Avaliação Tecnológica do Congresso. A Academia, que foi instituída por Abraão Lincoln para assessorar o governo dos Estados Unidos em assuntos científicos, é composta por quase mil e trezentos dos mais reputados cientistas do país. Em aditamento ao estudo de 1975 sobre

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efeitos a longo prazo, ela está procedendo a uma análise de conseqüências atmosféricas e climáticas, que esperamos venha ampliar e manter sob atenção as conclusões descritas nesta Conferência pelo Dr. Sagan. Em conseqüência dessa iniciativa, os membros da Academia, em abril do ano passado, aprovaram uma resolução insólita - insólita no sentido de que rompeu uma reserva habitual da Academia em assuntos que pudessem ser considerados objeto de controvérsia política. Embora este seja um livro de descobertas científicas e não de recomendações de conduta, quero levar ao conhecimento dos leitores o julgamento firmado pelos meus colegas acadêmicos sobre a matéria, pelo que termino reproduzindo a Resolução da Academia Nacional de Ciências sobre Guerra Nuclear e Controle de Armamentos: Considerando que a guerra nuclear é uma ameaça sem precedentes à humanidade; Considerando que uma guerra nuclear total poderia eliminar centenas de milhões de vidas e destruir a civilização tal como a conhecemos; Considerando que qualquer emprego de armas nucleares, inclusive em assim chamadas "guerras limitadas", muito provavelmente redundaria numa escalada para a guerra nuclear total; Considerando que a ciência não aponta nenhuma possibilidade de defesa eficaz contra uma guerra nuclear e mútua destruição; Considerando que a proliferação de armas nucleares em outros países com governos instáveis em áreas de alta tensão aumentariam substancialmente o risco de uma guerra nuclear; Considerando que por mais de dois anos não houve progressos no sentido de obter limitações e reduções de armas estratégicas, quer através da ratificação do SALT II quer da retomada de negociações

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sobre armas nucleares estratégicas; Fica resolvido que a Academia Nacional de Ciências pede ao presidente e ao Congresso dos Estados Unidos, e aos poderes correspondentes da União Soviética e de outros países que têm um interesse similar nessas matérias vitais: Que intensifiquem de modo considerável, sem precondições e com urgência, esforços no sentido de alcançar um acordo eqüitativo e comprovável entre os Estados Unidos, a União Soviética e outras nações que têm um interesse similar nessas matérias vitais; Que acionem todos os meios práticos possíveis capazes de reduzir o risco de uma guerra nuclear por acidente ou erro de interpretação; Que adotem todos as medidas práticas para inibir a proliferação continuada de armas nucleares em outros países; Que sigam observando todos os acordos existentes de controle de armamentos, inclusive o SALT II; e Que evitem doutrinas militares que considerem explosivos nucleares como armas de guerra comuns. A ATMOSFERA E AS CONSEQÜÊNCIAS CLIMÁTICAS

DA GUERRA NUCLEAR

CARL SAGAN Hoje é o Dia das Bruxas do ano que precede 1984, e sInceramente eu gostaria que o que irei dizer-lhes em seguida fosse apenas uma histÓria de fantasmas, apenas algo inventado para assustar crianças por um dia. Infelizmente, não é uma simples história. Nossas últimas

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pesquisas revelaram o fato surpreendente de que uma guerra nuclear pode arrastar em sua esteira uma catástrofe climática, a que damos o nome de "inverno nuclear", sem precedentes durante a ocupação da Terra pelo homem. Foi por acidente que esbarramos com esses resultados, por uma via tortuosa, por uma dessas circunstâncias não raras na ciência em que estudando alguma coisa pelo interesse puramente intelectual que ela oferece se é levado a conclusões de inesperada utilidade prática. Para mim, a coisa começou em 1971, com a exploração de Marte pela Mariner 9. A Mariner 9 foi a primeira espaçonave a orbitar ao redor de outro planeta. Os engenheiros do projeto garantiram que ela só funcionaria por três meses após a entrada em órbita. Chegando a Marte, a nave encontrou o planeta completamente coberto por uma tempestade global de pó. Ao fim de um mês, durante o qual foi fotografado um disco quase inteiramente desprovido de detalhes, passamos a alimentar sérios receios de que quando a poeira assentasse por completo, limpando a atmosfera marciana, a nave já estaria inoperante. Com efeito, a tempestade levou três meses para dissipar-se, mas a nave funcionou muito melhor do que disseram os engenheiros - e por todo o ano seguinte foi-nos dado examinar o planeta de um pólo a outro no primeiro reconhecimento orbital detalhado de outro planeta. Durante aqueles três primeiros meses, pouca coisa houve a observar, além da poeira em suspensão. Havia a bordo da nave um instrumento chamado espectrômetro interferométrico de infravermelho, capaz de examinar a atmosfera em vários comprimentos de onda e assim sondar os diferentes níveis da atmosfera - desde as grandes altitudes até a superfície. Pudemos observar a temperatura da atmosfera e a da superfície variarem com o tempo. Os resultados mostraram que a atmosfera estava consideravelmente mais quente do que é normalmente em Marte, e a superfície consideravelmente mais fria. À medida que a poeira assentava, a atmosfera foi arrefecendo e a superfície esquentando - ambas as temperaturas caminhando para os seus valores usuais, ou "ambientes" - Não foi difícil entender as

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razões disso. Os ventos haviam arrastado uma grande quantidade de poeira dos desertos marcianos para a atmosfera. A luz do sol fora absorvida pelo pó na alta atmosfera, que com isso se aquecera. Da mesma forma, a luz do sol fora impedida de alcançar a superfície, e esta esfriara. Um espectador em Marte teria observado, depois que a tempestade de poeira se desencadeou, o frio e a escuridão se propagando sobre a face do planeta. Após vários meses (a tempestade começara alguns meses antes da chegada da Mariner 9 a Marte), quase toda a poeira se depositara, e as condições voltaram ao normal. Essas tempestades de poeira são comuns em Marte, e por mais de um século têm sido observadas da Terra. Caracteristicamente, elas surgem sempre nos mesmos poucos locais do planeta, propagam-se primeiro em longitude, depois em latitude, e em questão de poucas semanas no máximo cruzam tipicamente o equador marciano, passando ao outro hemisfério. Ora, a pressão atmosférica na superfície de Marte é mais ou menos a mesma da estratosfera da Terra. Marte gira, como a Terra, uma vez em 24 horas, e o seu eixo de rotação é inclinado em relação ao seu plano orbital de um ângulo quase igual ao da Terra. Há, é claro, diferenças entre Marte e a Terra - entre elas a ausência de mares em Marte e o fato de ele estar mais afastado do Sol. Mas pareceu-nos que a experiência marciana podia ser relevante para a Terra. Alguns de nós, tendo pouca coisa a ver nos primeiros três meses depois da entrada em órbita além da tempestade de poeira, ocupamo-nos em calcular o grau de aquecimento atmosférico e de esfriamento superficial para uma dada quantidade de poeira levantada. Um cálculo aproximado não era muito difícil, e vários diferentes grupos puderam determinar não só qualitativa como quantitativamente as mudanças de temperatura que a tempestade de poeira temporariamente produzira em Marte. Meus colegas (e ex-alunos) James B. Pollack e O. Brian Toon, ambos hoje no Centro de Pesquisas Ames da NASA, estavam ansiosos por aplicar esse repositório computacional a problemas terrestres. Aplicamo-nos a tentar compreender o que acontece com o

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clima da Terra quando um grande vulcão entra em erupção e distribui aerossóis estratosféricos à volta do planeta. Em alguns casos, conhecemos a quantidade de poeira introduzida na alta atmosfera, as dimensões das partículas de pó (em geral menos de um micro [um décimo milésimo de centímetro]) e a sua composição (geralmente ácido sulfúrico e silicatos). Como a estratosfera é muito seca, a chuva não remove esses aerossóis; e como a convecção na estratosfera é muito atenuada, os movimentos do ar não tendem a transportá-Ios para fora. Dessa forma, eles descem lentamente pelo próprio peso -lentamente porque as suas dimensões são muito reduzidas -, levando mais de um ano para que a estratosfera fique limpa. Ao mesmo tempo, existem medições, para muitas explosões vulcânicas, de um declínio pequeno porém definido da temperatura global - para todas as explosões vulcânicas dos últimos poucos séculos, um esfriamento de um grau ou menos. Verificamos que era possível calcular esses declínios de temperatura com razoável precisão; os métodos desenvolvidos para Marte, e desde então consideravelmente ampliados, funcionaram bastante bem para a Terra. Foi proposto então por Alvarez e outros que a extinção dos dinossauros e muitas outras espécies 65 milhões de anos atrás, no limite entre os períodos cretáceo e terciário, ter-se-ia dado devido à colisão com a Terra de um asteróide de 10 quilômetros de diâmetro, e a conseqüente efusão na atmosfera de enormes quantidades de poeira. Com o concurso de Richard Turco da R&D Associates de Marina deI Rey, Califórnia, Pollack e Toon calcularam que essa colisão teria acarretado um escurecimento e um esfriamento de grandes proporções. Devo frisar, no entanto, que a nossa tese sobre as conseqüências climáticas de uma guerra nuclear não está vinculada a essa explicação das extinções do cretáceo/terciário. Os dinossauros podem ter morrido de gripe sem afetar a validade das nossas conclusões. Nós sabíamos, naturalmente, que explosões nucleares arremessam grandes quantidades de poeira fina na atmosfera, e durante anos havíamos falado em calcular os efeitos climáticos prováveis que daí

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adviriam. Num seminário realizado no Centro de Pesquisas Ames (dedicado em parte à questão da origem da vida), em 1981, decidimos dar andamento àquele estudo. Um ano mais tarde o nosso esforço recebeu novo impulso por obra de um trabalho muito interessante realizado por Paul Crutzen, do Instituto de Química Max Planck de Mogúncia, República Federal da Alemanha, e John Birks, da Universidade do Colorado. Crutzen e Birks tinham feito uma estimativa preliminar da quantidade de fumaça produzida pela queima de florestas e cidades que seria descarregada na atmosfera numa guerra nuclear. Evidentemente esta seria uma importante fonte adicional de partículas finas capazes de obscurecer a luz do sol. Chego assim à questão dos efeitos de uma guerra nuclear. As conseqüências imediatas da explosão de um único artefato termonuclear são conhecidas e bem documentadas - radiação da bola de fogo, emissão primária de nêutrons e raios gama, deslocamento de ar e incêndios. A bomba de Hiroxima, que matou entre 100.000 e 200.000 pessoas, era um artefato de fissão com potência de cerca de 12 quilotons (o equivalente explosivo de 12.000 toneladas de TNT). Uma ogiva termonuclear moderna emprega um mecanismo mais ou menos parecido com o da bomba de Hiroxima como detonador - o "fósforo" que acende a fusão nuclear. Uma arma termonuclear americana típica pode ter uma potência em torno de 500 quilotons (ou 0,5 megaton, sendo um megaton o equivalente explosivo de um milhão de toneladas de TNT). Hoje existem muitas armas na faixa de 9 a 20 megatons nos arsenais estratégicos dos Estados Unidos e da URSS. A arma mais potente até hoje detonada tinha 58 megatons. Armas nucleares estratégicas são aquelas projetadas para serem transportadas por mísseis lançados de bases terrestres ou de submarinos, ou por bombardeiros, até alvos situados nos territórios inimigos. Numerosas armas de potência aproximadamente igual à da bomba de Hiroxima são hoje reservadas para missões militares "táticas" ou "de teatro", ou são designadas "munições" e relegadas a mísseis ar-ar ou terra-ar, torpedos, cargas de profundidade e artilharia. Se bem que as armas estratégicas tenham em geral maior

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potência do que as armas táticas, nem sempre é este o caso Os modernos mísseis (por exemplo, Pershing 2, SS-20) e aviões (por exemplo, F-15, MIG-23) táticos ou de teatro têm raios de ação suficientes para tornar cada vez mais artificial a distinção entre armas "estratégicas" e ''táticas" ou "de teatro". Ambas as classes de armas podem ser expedidas por mísseis lançados de bases terrestres, do mar e de aviões, e por sistemas de alcance tanto intermediário como intercontinental. Não obstante, pela contagem usual existem cerca de 18.000 armas termonucleares estratégicas e de teatro e um número igual de detonadores de fissão nos arsenais estratégicos americano e soviético, com uma potência total de cerca de 10.000 megatons. O número total de armas nucleares (estratégicas mais táticas e de teatro) nos arsenais dos dois países está próximo de 50.000, com uma potência somada de quase 15.000 megatons. Para simplificar, eliminaremos aqui a distinção entre armas estratégicas e de teatro e adotaremos, sob a rubrica "estratégicas", uma potência acumulada de 13.000 megatons. As armas nucleares do resto do mundo - principalmente Inglaterra, França e China - montam a muitas centenas de ogivas e algumas centenas de megatons de potência total adicional. Ninguém sabe, é claro, quantas ogivas com que total de potência seriam detonadas numa guerra nuclear. Em decorrência de ataques a aviões e mísseis estratégicos, e em decorrência de falhas tecnológicas, é certo que menos que a totalidade do arsenal do mundo seria detonado. Por outro lado, é geralmente admitido, mesmo entre a maioria dos planejadores militares, que seria quase impossível conter uma "pequena" guerra nuclear antes que ocorresse uma escalada no sentido de incluir grande parte dos arsenais mundiais. (Fatores de aceleração são mau funcionamento de comandos e controles, falhas de comunicações, a necessidade de decisões instantâneas sobre os destinos de milhões de pessoas, medo, histeria e outros fatores referentes a uma guerra nuclear real, travada por homens de carne e osso.) Basta esta razão para que qualquer tentativa séria de estudar as possíveis conseqüências de uma guerra

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nuclear deva contemplar de preferência um conflito em grande escala, na faixa de 5.000 a 7.000 megatons - entre aproximadamente um terço e metade dos estoques estratégicos do mundo -, e é o que várias investigações têm feito. Contudo, muitos dos efeitos adiante referidos podem ser deflagrados por guerras muito menores. Aeroportos estratégicos, silos de mísseis, bases navais, submarinos no mar, fábricas e depósitos de armas, centros de comando e de controle civil e militar, instalações de detecção de ataque e alarme antecipado, etc., são objetivos prováveis ("ataque de contra-força"). Embora se declare com freqüência que cidades não seriam visadas per se, muitos dos objetivos acima referidos estão localizados nelas ou nos seus arredores, principalmente na Europa. Além disso, existe a classe dos alvos industriais ("ataque de contra-valor"). As modernas doutrinas nucleares requerem que instalações de "apoio bélico" sejam atacadas. Muitas dessas instalações são necessariamente industriais por natureza, e empregam uma força de trabalho de dimensões consideráveis. Quase sempre estão localizadas nas proximidades de grandes centros de transporte, de modo que matérias-primas e produtos acabados possam ser eficientemente transferidos para outros setores de indústria ou para tropas no campo. Assim, essas instalações são, quase por definição, cidades, ou se encontram perto ou no interior de cidades. Outros objetivos classificados como de "apoio bélico" podem ser os próprios sistemas de transporte (estradas, canais, rios, ferrovias, aeroportos civis, etc.), refinarias, depósitos e dutos de petróleo, usinas hidrelétricas e nucleares, emissoras de rádio e televisão, e assim por diante. Um ataque cruzado de contra-valor poderia assim envolver a quase totalidade das grandes cidades dos Estados Unidos e da União Soviética, e possivelmente a maior parte das grandes cidades do Hemisfério Norte. Existem no mundo menos de 2.500 cidades com população acima de 100.000 habitantes, portanto a destruição de todas essas cidades está perfeitamente dentro da capacidade dos arsenais nucleares do mundo. Estimativas recentes de mortes imediatas por efeito de explosão,

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radiação primária e incêndios num conflito de grandes dimensões em que cidades fossem alvejadas variam de algumas centenas de milhões a - mais recentemente, num estudo da Organização Mundial de Saúde em que se supôs que os objetivos não se restringiriam exclusivamente aos países da OTAN e do Pacto de Varsóvia - 1,1 bilhão de pessoas. É possível, portanto, que algo como a metade da população do planeta fosse morta ou seriamente lesada pelos efeitos diretos de uma guerra nuclear. Anarquia social; falta de eletricidade, combustíveis, transportes, abastecimento de alimentos, comunicações e outros serviços civis; ausência de atendimento médico; interrupção de medidas sanitárias; multiplicação de doenças e de distúrbios psíquicos graves - fariam sem dúvida um número considerável de vítimas a mais. Mas uma série de outros efeitos - alguns inesperados, alguns impropriamente analisados em estudos precedentes, alguns por nós só recentemente descobertos - torna o quadro ainda muito mais sombrio. A destruição de silos de mísseis, instalações de comando e controle e outros locais resguardados requer - dadas as atuais limitações de precisão dos mísseis - armas nucleares de potência bastante apreciável detonadas no solo ou a pequena altura. Explosões de alta potência no solo vaporizarão, fundirão e pulverizarão a superfície da área de impacto e propelirão grandes quantidades de vapores condensados e poeira fina para a região superior da troposfera e para a estratosfera. As partículas são carreadas principalmente na bola de fogo ascendente; algumas sobem pela coluna da nuvem em cogumelo. Contudo, em sua maioria os alvos militares não são muito resguardados. A destruição de cidades pode ser realizada, como se viu em Hiroxima e Nagasáqui, por explosões de potência inferior a menos de 1.000 metros acima da superfície. Explosões de baixa potência no ar sobre cidades ou florestas próximas tenderão a provocar incêndios extensos, em alguns casos cobrindo uma área total de 100.000 quilômetros quadrados, ou mais. Incêndios em cidades geram enormes quantidades de fumaça negra que se eleva pelo menos à camada superior da baixa atmosfera, ou troposfera (Fig.

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1A). Se ocorrerem tempestades ígneas, a coluna de fumaça sobe vigorosamente, como a tiragem de uma chaminé, e possivelmente (a questão ainda não foi esclarecida) arrasta parte da fuligem para a parte inferior da alta atmosfera, ou estratosfera. A fumaça produzida por incêndios em florestas ou capim ficaria a princípio restrita à baixa troposfera.

Figura 1A Representação aproximada da estrutura habitual de

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temperaturas da atmosfera da Terra nas latitudes médias norte (ou sul). Na superfície, aquecida pelo sol, a temperatura média anual é de 13º.C. A temperatura decresce com a altitude até uma altura (h) de cerca de 13 km, onde é de -55º.C. Essas baixas temperaturas são conhecidas dos alpinistas e dos aviadores. A região inferior da atmosfera terrestre, chamada troposfera, é agitada por ventos e turbulências, e nela ocorre a formação de chuvas. Assim, na troposfera partículas finas são dissipadas ou lavadas pela chuva com relativa rapidez. A troposfera (e as chamadas "variações do tempo") terminam na tropopausa, a cerca de 13 km de altitude. Acima vem a estratosfera. Nesta, as temperaturas são mais constantes com a altitude; os ventos verticais e a turbulência são moderados; não há chuva; e partículas finas se dissipam muito lentamente. A fumaça de incêndios fica limitada em sua maior parte à troposfera, e as partículas de fuligem se depositam em tempo relativamente curto. Já a poeira produzida por detonações de alta energia no solo - em silos e outras instalações resguardadas - é injetada em considerável proporção na estratosfera e se precipita com relativa lentidão. A energia explosiva apenas capaz de injetar algum material na estratosfera é cerca de 10 quilotons, como mostra a figura. A bola de fogo e a nuvem estabilizada produzidas por uma explosão de 1 megaton (MT) sobem quase totalmente à estratosfera. A fissão do detonador (geralmente plutônio) existente em todo engenho nuclear e as reações no revestimento (geralmente urânio 238) acrescentado como "reforçador" de energia de fissão produzem uma salada de produtos radioativos que são também arrastados na nuvem. Cada um desses produtos, ou radioisótopos, tem uma meia-vida característica (definida como o tempo necessário para que se reduza à metade, por desintegração, o seu nível original de radioatividade). A maioria dos radioisótopos têm meias-vidas muito curtas, e se desintegram em horas ou dias. Partículas introduzidas na estratosfera, principalmente por explosões de alta energia (Fig. 1A),

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precipitam-se muito lentamente - caracteristicamente em cerca de um ano, sendo que ao fim desse tempo a maior parte dos produtos de fissão, mesmo quando concentrados, ter-se-á reduzido a níveis bem menos perigosos. Partículas introduzidas na troposfera por explosões de baixa energia (Fig. 1A) e por incêndios precipitam-se mais depressa - por coagulação, assentamento gravitacional, lavagem pela chuva, convecção e outros processos - antes que a radioatividade se tenha reduzido a níveis relativamente inócuos. Assim, a rápida precipitação de resíduos radioativos troposféricos tende a produzir doses maiores de radiação ionizante do que a precipitação mais lenta de partículas radioativas da estratosfera. Explosões nucleares de mais de um megaton de energia desprendida geram uma bola de fogo radiante que sobe através da troposfera e penetra em cheio na estratosfera (Fig. 1A). As bolas de fogo produzidas por armas de potência compreendida entre 100 e 1.000 quilotons (1.000 quilotons = 1 megaton) atingem parcialmente a estratosfera. As altas temperaturas da bola de fogo inflamam quimicamente parte do nitrogênio do ar, produzindo óxidos de nitrogênio, que por sua vez atacam quimicamente e destroem o gás ozônio da média estratosfera. Mas o ozônio absorve a radiação ultravioleta do sol, biologicamente perigosa. Assim, a exaustão parcial da camada estratosférica de ozônio, ou ozonosfera, por explosões nucleares de alta energia, aumentará o fluxo de radiação solar ultravioleta na superfície da Terra (depois que a fuligem e a poeira tiverem assentado). Depois de uma guerra nuclear em que milhares de engenhos de alta potência fossem detonados, o aumento da luz ultravioleta potencialmente prejudicial à vida poderia ser de várias centenas por cento. Os maiores aumentos ocorreriam nas ondas de menor comprimento, que são as mais perigosas. Os ácidos nucléicos e as proteínas, que são as moléculas básicas da vida da Terra, são especialmente sensíveis à radiação ultravioleta. Assim, um aumento do fluxo de radiação solar ultravioleta na superfície da Terra seria uma ameaça à vida. Esses quatro efeitos - obscurecimento por fumaça na troposfera,

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obscurecimento por poeira na estratosfera, precipitação de resíduos radioativos e destruição parcial da camada de ozônio - constituem as quatro principais conseqüências ambientais adversas que se verificariam depois de "terminada" uma guerra nuclear. É bem possível que haja outras que ainda não sabemos. A poeira e, principalmente, a fuligem escura absorvem a luz visível do sol, aquecendo a atmosfera (Figuras 1B e 1C) e esfriando a superfície da Terra.

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Figuras 1B e 1C. Quando a alta atmosfera se aquece (pela absorção de luz do sol por partículas em suspensão levantadas numa guerra nuclear), a superfície esfria, porque as mesmas partículas impedem a luz de lá chegar. Na Figura 1B, construída de acordo com os cálculos do TTAPS, vê-se a estrutura da atmosfera da Terra em latitudes médias norte 30 dias depois de uma guerra nuclear "de referência" (Quadro 1, Caso 1). Como na Figura 1A, o eixo vertical representa a altura (h) e o eixo horizontal a temperatura do ar em graus

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centígrados. A Figura 1C mostra a estrutura de temperaturas depois de 120 dias. Em ambos os casos a estrutura atmosférica usual (Fig. 1A) se desfez, a temperatura na baixa atmosfera é mais constante com a altitude, e surgiu uma nova região de inversão térmica. Do mesmo modo que acontece com inversões térmicas sobre cidades como Los Angeles, a estrutura alterada de temperatura é muito estável, e as partículas que chegaram a essas altitudes se dissipam muito mais devagar do que seria normalmente o caso. Como a influência dessa inversão térmica não foi ainda introduzida nos cálculos do TIAPS (os cálculos não são "totalmente interativos"), os tempos de restauração das condições normais que aparecem na Figura 2 podem ter sido grandemente subestimados. No caso de 30 dias, a região em que a temperatura quase não varia com a altitude atingiu o solo, e nesse sentido pode-se dizer que a guerra nuclear traz a estratosfera à superfície da Terra. A comparação entre as três figuras serve também para explicar por que correntes de partículas finas tendem, depois de algum tempo, a transpor o equador e invadir o Hemisfério Sul. Considere-se, por exemplo, uma altitude de 10.000 m no Hemisfério Norte. Algumas semanas depois da guerra de referência, as temperaturas ali são da ordem de 0º.C (Fig. 1B). À mesma altitude, no Hemisfério Sul por ora livre de poeira e fumaça (Fig. 1A), as temperaturas são 500 mais baixas. Porções de ar, e as partículas nelas contidas, fluirão "declive abaixo", de regiões mais quentes para mais frias. Em física, fluxos tendem a seguir gradientes. As grandes diferenças de temperatura induzirão correntes ascendentes no sentido sul no Hemisfério Norte e correntes descendentes no sentido norte no Hemisfério Sul. O efeito resultante pode ser o de difundir o ar carregado de poeira à toda a volta do globo e elevá-Io ainda mais acima da superfície. Todos esses quatro efeitos foram considerados em nosso último estudo, designado pelas iniciais dos seus autores, TTAPS. Pela primeira vez se demonstra que temperaturas extremamente baixas, o "inverno nuclear", se sucederiam por um tempo prolongado a uma

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guerra nuclear. (O estudo também explica o fato de não terem sido detectados efeitos climáticos do gênero após a detonação de algumas centenas de megatons durante o período de testes atmosféricos de engenhos nucleares pelos Estados Unidos e União Soviética, encerrado pelo Tratado Limitado de Proibição de Testes em 1963: as explosões se sucederam ao longo de vários anos, virtualmente não simultâneas, e, como ocorreram sobre descampados, atóis de coral, tundras e áreas desérticas, não provocaram incêndios.) Os novos resultados foram submetidos a análises detalhadas, e muitos cálculos confirmativos já foram feitos depois, inclusive pelo menos dois na União Soviética. Ao contrário do que se afirmou em estudos precedentes, os efeitos parecem não limitar-se às latitudes médias do Hemisfério Norte, onde basicamente ocorreria o intercâmbio nuclear. Existem hoje provas substanciais de que o aquecimento pela luz solar da poeira e fuligem atmosféricas sobre objetivos situados em latitudes médias norte alteraria profundamente a circulação global (ver legenda das Figs. 1B e 1C). Partículas finas seriam transportadas para o outro lado do equador em questão de semanas, como acontece em Marte, levando o frio e a escuridão ao Hemisfério Sul. (Além do mais, certos estudos sugerem que mais de 100 megatons seriam destinados a objetivos situados na faixa do equador e no Hemisfério Sul, gerando assim partículas finas localmente.) Embora fossem menores o esfriamento e o escurecimento superficiais no Hemisfério Sul do que no Norte, também ali poderiam ocorrer perturbações climáticas e ambientais de grandes proporções. Em nosso estudo, selecionaram-se algumas dúzias de diferentes cenários, cobrindo uma ampla gama de guerras possíveis, e em cada parâmetro básico foi considerada a margem de incerteza (p. ex., ao estabelecer a quantidade de partículas finas introduzidas na atmosfera). Cinco casos representativos são mostrados, no Quadro 1, variando de um ataque pequeno, de baixa energia, contra cidades exclusivamente, utilizando em potência apenas 0,8% dos arsenais estratégicos do mundo, a um conflito de grandes dimensões com o

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emprego de 75% dos estoques mundiais. Os casos "nominais" pressupõem os parâmetros alternativos mais prováveis; os casos "severos" pressupõem parâmetros adversos, mas sempre na faixa do plausível. As temperaturas continentais no Hemisfério Norte previstas variam conforme as curvas mostradas na Figura 2. A alta capacidade calorífica de água garante que as temperaturas dos mares cairão no máximo uns poucos graus. Sendo as temperaturas moderadas pelos mares contíguos, as das regiões costeiras serão menos extremas que as do interior dos continentes. Contudo, o acentuado contraste entre os continentes gelados e os mares apenas ligeiramente esfriados produzirá borrascas contínuas de extraordinária violência ao longo das costas, e a lavagem e arrastamento preferencial de radioatividade indicam que nem o interior dos continentes nem os litorais serão poupados. As temperaturas mostradas na Figura 2 são valores médios para as áreas continentais do Hemisfério Norte, sem levar em conta até aqui a influência dos mares nem a descontinuidade inicial das nuvens.

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Sabe-se que mesmo quedas de temperatura bem menores trazem conseqüências sérias. A explosão do vulcão Tambora na Indonésia em 1815 foi a causa provável de um declínio na temperatura média global de menos de 1º.C, devido ao obscurecimento do sol pela poeira fina propelida para a estratosfera. O frio verificado no ano seguinte foi de tal ordem que 1816 ficou conhecido na Europa e na América como, respectivamente, "o ano sem verão" e "mil-e-oitocentos-e-morrer-de-frio". Um esfriamento de 1º.C acabaria por completo com as lavouras de trigo do Canadá. Pequenas variações globais estão geralmente associadas a variações regionais muito maiores. Nos últimos mil anos, os desvios máximos de temperatura global ou do Hemisfério Norte foram da ordem de 1º.C. Numa glaciação, uma baixa prolongada típica da temperatura global em relação às condições preexistentes é de cerca de 10º.C. Mesmo os casos mais modestos ilustrados na Figura 2 dão baixas temporárias dessa ordem. O caso de referência é muito mais adverso. Diferentemente, porém, da situação numa glaciação, as temperaturas globais após a guerra cairiam bruscamente, e é provável que levassem apenas de alguns meses a alguns anos para restabelecer-se, em vez de milhares de anos. Não é de se esperar que um inverno nuclear induzisse a um novo período glaciário, pelo menos de acordo com a nossa análise preliminar. Com o obscurecimento do sol, a luz diurna pode cair aos níveis de um lusco-fusco crepuscular ou pior. Na zona dos objetivos de médias latitudes do Hemisfério Norte, a escuridão pode ir ao ponto de não se enxergar, mesmo ao meio-dia. Nos Casos 1 e 14 (Quadro 1), os níveis médios hemisféricos de luz caem a uns poucos por cento dos seus valores normais, sendo comparáveis aos que ocorrem na base de nuvens de chuvas densas. Com essa iluminação, muitos vegetais ficam próximos do chamado ponto de compensação, que é o nível de luz em que a fotossíntese é apenas suficiente para manter o metabolismo da planta. No Caso 17, a iluminação média de todo o Hemisfério Norte cai durante o dia a cerca de 0,1% do normal, um nível de luz em que na maior parte das plantas a fotossíntese cessará

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de todo. Nos Casos 1 e, especialmente, 17, a restauração completa da iluminação diurna normal leva um ano ou mais (Figura 2).

Figura 2. Nesta figura mostra-se como a temperatura média das áreas continentais do Hemisfério Norte (afastadas das costas) varia com o tempo após uma guerra nuclear. A temperatura é indicada no eixo vertical, em graus centígrados à esquerda e em graus Fahrenheit à direita. A temperatura "ambiente" é a média calculada de todas as estações e latitudes. Assim, temperaturas normais de inverno em latitudes norte temperadas serão inferiores às representadas, e

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temperaturas normais tropicais serão mais altas que as representadas. A linha tracejada horizontal superior indica a temperatura média da Terra (13º.C ou 56º.F) e a linha tracejada horizontal inferior indica o ponto de congelamento da água pura (0º.C ou 32º.F). O eixo horizontal representa o tempo em dias a contar do começo da guerra nuclear até quase um ano depois. Cada curva representa um cenário diferente de guerra nuclear, com a energia total despendida na guerra variando de 100 megatons (MT) a 10.000 MT. A influência moderadora dos mares (provavelmente resultando em baixas de temperatura de 50 a 70% das mostradas) não é considerada, conforme exposto no texto. Os casos aqui mostrados, tirados de uma compilação muito maior dos relatórios TTAPS, são definidos com maior detalhe no Quadro 1. Compreendem uma mistura de ataques de contra-valor contra indústrias e cidades em que o principal efeito é a fumaça de incêndios carreada para a troposfera, e ataques de contra-força a silos de mísseis, nos quais supõe-se (de modo muito otimista) que não há produção de fumaça, mas grandes quantidades de poeira invadem a atmosfera a grandes altitudes. Os casos definidos como "nominais" pressupõem os valores mais prováveis dos parâmetros (como as dimensões das partículas de pó ou a freqüência de tempestades ígneas) que são imperfeitamente conhecidos. Os casos denominados "severos" representam valores adversos mas não implausíveis desses parâmetros. No Caso 14 a curva acaba quando a temperatura atinge, a menos de um grau, os valores ambientes. Nos outros quatro casos, as curvas terminam ao fim de 300 dias, mas simplesmente porque os cálculos não foram levados adiante. Nesses quatro casos as curvas prosseguirão nas direções indicadas pelas setas. Em termos aproximados, o Caso 1 é a soma dos Casos 11 e 14. O Caso 16 pressupõe um conflito limitado a explosões no solo, de energia razoavelmente alta, destinadas à destruição de silos, e alta percentagem de poeira fina resultante. Segue-se uma descrição mais detalhada de cada um dos cinco casos:

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Caso 1: É o caso de referência do TTAPS, em que 4.000 megatons são usados pelos dois lados em ataques de contra-força, e 1.000 megatons destinados a cidades e arredores. O efeito principal é o derivado da fuligem produzida em conflagrações urbanas. A temperatura mínima de -23ºC (-9ºF) é atingida algumas semanas após o conflito, e as temperaturas voltam ao ponto de congelamento em cerca de três meses. Contudo a recomposição das condições ambientes não ocorre antes de um ano, em razão da lenta precipitação da poeira atmosférica. Caso 11: Neste os Estados Unidos e/ou a URSS detonam um total de 3.000 megatons sobre silos de mísseis e outros objetivos afastados de cidades e florestas. Admite-se (irrealisticamente) que os incêndios sejam desprezíveis. Nas áreas continentais as temperaturas caem durante um período de três meses, e como a remoção da poeira estratosférica é muito lenta, levam mais de um ano para retornar aos seus valores usuais (ambientes). Caso 14: O conflito é limitado a apenas 100 megatons consistindo exclusivamente de engenhos de baixa potência detonados no ar sobre cidades. Neste cAlculo não há produção de poeira - só fumaça das cidades incendiadas, da qual pouca coisa alcança a estratosfera. A temperatura mínima de -23ºC (-9ºF) é atingida em poucas semanas, e as temperaturas normais se restabelecem em cerca de 100 dias. À medida que a fuligem se deposita, a luz do sol volta a alcançar o solo. Cem megatons corresponde aproximadamente a 0,8% dos arsenais nucleares dos Estados Unidos e URSS. Caso 16: Emprego de 5.000 megatons em que os ataques são principalmente contra silos, com Maior produção de poeira fina por megaton liberado do que no Caso 11, mais otimista, e em que a queima de cidades é insignificante. Aqui, as temperaturas mínimas só são atingidas depois de quatro meses, quando baixam a -25ºC (-13º

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F). Como as grandes quantidades de poeira levadas à estratosfera se precipitam muito lentamente, é preciso mais de um ano para que as temperaturas em terra voltem ao ponto de congelamento, e muito mais ainda para chegarem aos níveis normais. Caso 17: Neste caso são empregados cerca de 3/4 dos arsenais estratégicos americanos e russos, numa combinação de ataques a silos e a cidades. Depois de mais de dois meses, atingem-se temperaturas mínimas de -47ºC (-53ºF) - temperaturas típicas da superfície de Marte. A fuligem assenta-se com relativa rapidez, sendo que a lentidão da recuperação é devida à poeira estratosférica. As temperaturas não voltam ao ponto de congelamento antes de um ano. À medida que as partículas finas precipitam-se na atmosfera, transportando radioatividade para o solo, os níveis de luz aumentam e a superfície se aquece. Agora a camada empobrecida de ozônio permite à luz solar ultravioleta chegar à superfície da Terra em maior proporção. No caso de referência, de 5.000 megatons, verifica-se que a precipitação primária, os penachos de radioatividade arrastados dos objetivos na direção do vento, distribui em 30% das áreas continentais de médias latitudes do Hemisfério Norte uma dose aproximada de radiação de 250 rads. Além disso, uma dose de cerca de 100 rads é descarregada mais ou menos uniformemente em todo o hemisfério. Esta é uma combinação de emissores externos e matérias radioativas ingeridas. Os conhecimentos correntes estabelecem a dose média letal de radiação ionizante com exposição corporal entre aproximadamente 400 e 500 rads. Isto se prestados cuidadOs médicos amplos. No caso de crianças e velhos, de doentes ou vítimas de outras agressões do meio ambiente por causa de uma guerra nuclear, e especialmente na falta de assistência médica adequada, a dose média letal é consideravelmente reduzida - talvez a 350 rads, ou menos. Assim, a precipitação radioativa - particularmente nas médias latitudes norte, que têm a maior densidade demográfica do planeta - seria, por si mesma, extremamente perigosa num meio de pós-guerra

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nuclear. O Quadro 2 mostra o cronograma relativo das várias conseqüências adversas de uma guerra nuclear. Talvez a conclusão mais surpreendente e inesperada do estudo que fizemos seja a de que mesmo uma guerra nuclear de proporções relativamente limitadas pode ter conseqüências climáticas funestas, no caso de ataques a cidades (ver Caso 14 na Figura 2; neste, os centros de 100 grandes cidades da OTAN e do Pacto de Varsóvia são incendiados). Há indicação de um limiar muito próximo em que conseqüências climáticas severas são desencadeadas - por 100 ou mais explosões nucleares sobre cidades, em razão da fumaça gerada, ou por 2.000 a 3.000 detonações de alta energia no solo ou a pequena altura, em silos de mísseis por exemplo, em razão da poeira produzida e de incêndios secundários. Partículas finas podem ser injetadas na atmosfera em proporções crescentes com efeitos de pequena monta até que esses limiares sejam transpostos. Daí por diante, os efeitos crescem rapidamente de intensidade. Essas estimativas são, porém, extremamente grosseiras. Em cálculos dessa complexidade sempre existem incertezas. Há fatores que tendem a influir no sentido de efeitos mais intensos ou mais prolongados; outros tendem a moderar os efeitos. Os cálculos detalhados do TTAPS aqui referidos são unidimensionais; isto é, admitem o movimento vertical das partículas finas em conformidade com as leis físicas aplicáveis, mas não levam em conta a dispersão em latitude e longitude. Quando a fuligem ou a poeira se afasta do local de referência, as coisas melhoram ali e pioram alhures. Além disso, partículas finas podem ser transportadas por sistemas meteorológicos para outros locais, onde são arrastadas mais depressa para a superfície. Isto atenuaria o obscurecimento não apenas localmente como em termos globais. É justamente esse afastamento das latitudes médias setentrionais que envolve a zona equatorial e o Hemisfério Sul nos efeitos da guerra nuclear. Seria conveniente efetuar um cálculo tridimensional acurado da circulação atmosférica geral após uma guerra nuclear. Estimativas preliminares sugerem que a circulação geral poderia moderar a amplitude das variações

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calculadas para o interior dos continentes em uns 30%, reduzindo um pouco a intensidade dos efeitos, mas mantendo-os ainda em níveis catastróficos (p. ex., uma baixa de 30ºC em vez de 40°C). Para estabelecer uma certa margem de segurança, desprezaremos essa correção em nossa exposição subseqüente. Depois, existem os claros nas nuvens. Muito poucos alvos acessíveis estão nos oceanos Atlântico e Pacífico. Se esses claros móveis (um no Atlântico, outro no Pacífico) aparecessem a intervalos regulares sobre a maior parte dos lugares do Hemisfério Norte, os efeitos do escurecimento e do frio seriam até certo ponto amenizados. No entanto, incêndios ateados, por exemplo, no oeste da América do Norte ou nas taigas eurasianas continuariam a lavrar, alguns talvez por semanas, e outros novos seriam provocados: lançamentos retardados podem ser dirigidos contra alvos temporariamente situados sob um claro para facilitar a verificação por satélite da destruição do objetivo. De mais a mais, em diferentes altitudes os ventos se movem com velocidades diferentes, e um claro a uma certa altitude pode estar acima ou abaixo de uma camada espessa de nuvens em outra. A poeira injetada na estratosfera pelo vulcão mexicano El Chichón, na erupção de 4 de abril de 1982, levou 10 dias para chegar à Ásia, duas semanas para chegar à África, e circunavegou o globo em três semanas, deixado atrás de si uma delgada fita de partículas com cerca de 100 de latitude de largura. (Em poucos meses, cerca de 10 a 20% dos resíduos estratosféricos foram transportados para o Hemisfério Sul.) Havendo muitas fontes de partículas em vez de uma, os claros irão fechar-se ainda mais depressa. Assim sendo, parece improvável que os claros móveis permanecessem abertos ou descobertos por mais de uma ou duas semanas, ou que descontinuidades em grande escala pudessem minorar os efeitos climáticos de modo sensível.

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Há necessidade de estudar melhor vários outros aspectos do problema: por exemplo, possíveis descontinuidades em pequena escala; possibilidade de quedas rápidas de temperatura (como sugerido por Covey e outros: ver as observações de Stephen Schneider neste livro, pp. 122-127); o tempo que levam penachos isolados de fumaça para espalhar-se (em nuvens densas as partículas coagulam e sedimentam mais rapidamente que em nuvens difusas); circulação atmosférica local em regiões costeiras e implicações para a lavagem pelas chuvas (ver as observações de Georgiy Golitsyn neste livro, pp. 120-122); variações diurnas de temperatura e movimentos induzidos em nuvens de fuligem nas primeiras fases. Alguns desses efeitos poderiam melhorar em parte as condições; outros poderiam agravá-Ias até certo ponto. Há também efeitos que podem piorar em muito os resultados: por exemplo, em nossos cálculos admitimos que a lavagem de partículas finas ocorreria em toda a extensão da troposfera. Em circunstâncias reais, pelo menos a alta troposfera pode ser muito seca, e a poeira ou fuligem inicialmente introduzida nessa região pode levar muito tempo para ser lavada. Há ainda um efeito muito importante que deriva da drástica alteração da estrutura atmosférica, promovida pelo aquecimento das nuvens e esfriamento do solo. Com isso cria-se uma região em que a temperatura é aproximadamente constante com a altitude na atmosfera inferior, e encimada por uma inversão térmica de grandes proporções (Figuras 1B e 1C). Depois disso, em toda a extensão da atmosfera as partículas seriam transportadas para cima ou para baixo muito lentamente - como na estratosfera atual. Este é um segundo motivo para que a persistência das nuvens de fuligem e poeira possa ser muito maior do que a por nós calculada. Neste caso, as condições extremas de escuridão e frio podem prolongar-se por prazos consideráveis, possivelmente ultrapassando um ano. Na exposição subseqüente desprezaremos este efeito, assim como vários outros - por exemplo, fenômenos de detonações múltiplas em que

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uma primeira explosão nuclear amplifica a combustão e a altura de transporte de fuligem de uma segunda explosão nuclear. É possível conceber cenários de guerra nuclear muito piores do que estes por nós apresentados. Por exemplo, se os centros de comando e controle forem neutralizados logo no início da guerra - por exemplo, por "decapitação" (ataque inicial de surpresa contra centrais de operações civis e militares e sistemas de comunicações), é de imaginar que a guerra se prolongaria por semanas, com comandantes locais tomando decisões independentes e descoordenadas. Pelo menos em parte, lançamentos retardados de mísseis seriam possivelmente ataques retaliativos contra cidades inimigas remanescentes. A geração de um manto adicional de fumaça por um período de semanas ou maior depois do início da guerra ampliaria a magnitude, e especialmente a duração, das conseqüências climáticas. Ou é possível, dentro dos limites da plausibilidade, que cidades e florestas fossem incendiadas em número maior do que o por nós suposto, ou que as emissões de fumaça fossem maiores, ou que uma fração maior dos arsenais mundiais (armas táticas e armas estratégicas) fosse empregada. Naturalmente, dentro dos mesmos limites, também são possíveis casos menos severos. Portanto, esses cálculos não são, nem poderiam ser, prognósticos seguros de todas as conseqüências de uma guerra nuclear. Poderão ser aperfeiçoados em vários aspectos, e está-se trabalhando nisso. Mas parece haver um consenso quanto às conclusões gerais: na esteira de uma guerra nuclear é provável que haja um período, com uma duração de meses pelo menos, de frio intenso e escuridão radioativa, seguido - depois da precipitação da fuligem e poeira - de um período longo de maior quantidade de radiação ultravioleta atingindo a superfície. Tem-se observado uma tendência sistemática de subestimar os efeitos de armas nucleares e de uma guerra nuclear. A energia liberada na primeira explosão nuclear perto de Alamogordo, no Novo México, em 16 de julho de 1945, foi subestimada por quase todos os

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que projetaram e construíram a arma. A amplitude da precipitação decorrente dos primeiros testes de artefatos nucleares foi subestimada; a inutilização ou destruição de satélites por explosões de armas nucleares no espaço foi uma surpresa; o empobrecimento da ozonosfera por detonações de alta potência não foi prevista; e o inverno nuclear foi para muitos - inclusive nós - motivo de assombro. O que mais nos terá passado despercebido? Um efeito adicional, possivelmente grave, é a produção de gases tóxicos por incêndios em cidades. Hoje todo mundo sabe que nos incêndios em arranha-céus modernos mais gente é vitimada pelos gases tóxicos de combustão do que pelo fogo. A queima de uma grande variedade de materiais de construção, matérias isolantes e revestimentos gera grandes quantidades de pirotoxinas, entre elas monóxido de carbono, cianetos, cloreto de vinil, óxidos de nitrogênio, ozônio, dioxinas e furanos. Devido às diferentes práticas no emprego de materiais sintéticos, o incêndio de cidades na América do Norte e na Europa ocidental provavelmente geraria mais pirotoxinas do que na União Soviética, e a de cidades com grande proporção de construções recentes mais que a de cidades mais antigas não reconstruídas. Em cenários de guerra nuclear nos quais uma grande quantidade de cidades são incendiadas, um smog bastante denso de pirotoxinas poderia persistir por meses. A extensão desse perigo é ignorada. Outra conseqüência provavelmente ponderável e dificilmente avaliável de uma guerra nuclear são os chamados sinergismos. Um exemplo muito simples é o que diz respeito ao comprometimento do sistema imunológico humano pelo duplo efeito da radiação ionizante imediata e da radiação ionizante devida à precipitação, bem como pelo aumento do fluxo ultravioleta após o inverno nuclear. Ao mesmo tempo que os sobreviventes serão muito mais vulneráveis a doenças, os serviços médicos terão entrado em colapso; predadores de insetos como as aves terão sido dizimados preferencialmente pelo frio, pela escuridão e pela radiação; os insetos terão proliferado desmedidamente porque resistem melhor a essas agressões ambientais e porque os predadores que restringem a sua multiplicação

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terão sido grandemente reduzidos em número; a radiação pode produzir variedades excepcionalmente virulentas de microorganismos transmitidos por insetos vetores; e centenas de milhões ou bilhões de cadáveres estarão começando a se descongelar. Em muitos outros casos a interação de diversas agressões ambientais entre as relacionadas no Quadro 2 produzirá conseqüências resultantes adversas muito mais intensas do que a simples soma dos efeitos componentes. Quase todos os sinergismos são de magnitude ignorada; no entanto quase todos amplificarão conseqüências adversas. Visto isto, se o peso da evidência histórica e a natureza dos sinergismos indicam que as conseqüências de uma guerra nuclear seriam ainda mais graves do que as deduzidas no presente estudo do inverno nuclear, que dizer da aplicação de critérios moderados? Considerando a magnitude do que está em jogo na resposta, qual será a postura adequada? Admitir que os efeitos de uma guerra nuclear serão menos sérios do que geralmente se supõe, ou mais? Já não é possível afirmar que os efeitos realmente sérios de uma guerra nuclear ficariam limitados aos países combatentes. A biologia das latitudes equatoriais, por exemplo, é muito mais vulnerável a baixas de temperatura, mesmo pequenas, que a de latitudes maiores, norte ou sul. A agricultura - pelo menos no Hemisfério Norte, que produz o grosso da exportação de grãos do planeta - seria devastada mesmo por uma "pequena" guerra nuclear. As conseqüências ecológicas irradiadas pela Terra inteira seriam provavelmente de grande envergadura, e se, como agora demonstrado pelo nosso estudo e por vários outros, o frio e a escuridão se propagassem ao Hemisfério Sul, a guerra nuclear significaria uma catástrofe global sem precedentes. Já não é possível conceber que nações distantes do conflito possam assistir de camarote à guerra, e herdar um ambiente de pós-guerra livre das importunações da política das grandes potências. Ao contrário, é muito mais provável que não haja em toda a Terra um único refúgio a salvo da guerra nuclear. Esta é uma das muitas implicações dos estudos mais recentes no que toca à doutrina,

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à diplomacia e à política internacional. A discussão desses temas transcende as metas deste encontro e o programa desta Conferência, mas em outra oportunidade eu já fiz uma exposição preliminar dessas implicações. Se houver ataques a cidades, vemos (Figura 2) que mesmo uma guerra que envolvesse apenas 100 megatons (em 1.000 detonações de 100 quiIotons sobre 100 ou mais grandes cidades) pode produzir o inverno nuclear. Mas 100 megatons é menos de 1 % dos arsenais estratégicos globais. A Figura 3 mostra o crescimento do número de armas estratégicas nos arsenais americano e soviético em função do tempo. A área hachurada representa, muito aproximadamente, a zona-limiar em que, ao que agora se afigura, poderia desencadear-se o inverno nuclear. Bem abaixo desse limiar nenhuma combinação de falhas de comunicações, erros de computador, interpretações equivocadas, governantes psicopatas ou outros requisitos deflagraria a catástrofe climática. Os Estados Unidos cruzaram esse limiar - naturalmente sem sabê-lo - em princípios dos anos 50. A União Soviética o transpôs - igualmente sem sabê-Io - em meados dos 60. Durante todo esse tempo os governos dos Estados Unidos, da União Soviética e de outras nações vêm tomando decisões fundamentais, envolvendo a vida e morte de cada habitante do planeta, sem saber das conseqüências de uma guerra nuclear, e na suposição de que essas conseqüências seriam bem mais brandas do que agora se mostra ser o caso. E os arsenais globais, hoje cerca de 20 vezes o limiar do inverno nuclear, vêm crescendo. A Grã-Bretanha, a França e a China têm arsenais estratégicos pelo menos próximos do limiar. Outros países estão acumulando armas nucleares ou a capacidade de fazê-Ias. As curvas da Figura 3 tornam-se mais e mais verticais.

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Figura 3. A história da corrida de armas nucleares estratégicas (e de teatro). O diagrama mostra três zonas: uma zona inferior em que o inverno nuclear não seria provocado, uma superior em que quase certamente ele ocorreria, e uma de transição, hachurada. Os limites desta são mais incertos do que os representados, e dependem, entre

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outras coisas, da estratégia de seleção de objetivos. Mas o limiar está provavelmente compreendido entre uma centena e alguns milhares de armas estratégicas contemporâneas. Entre 1945 e o presente, o crescimento dos estoques soviético e norte-americano é representado pelas linhas cheias. A linha ponto-traço mostra a soma dos dois arsenais, que fica próxima da dos arsenais totais do mundo. Se bem que a distinção entre armas táticas e estratégicas ou de teatro tende a tornar-se imprecisa, aquelas não são computadas nesta compilação. A redução dos estoques estratégicos americanos nos anos 60 reflete principalmente a crescente dominância dos mísseis balísticos sobre os bombardeiros. Nem todas as fontes publicadas concordam perfeitamente quanto aos números. Os dados aqui usados foram tirados de Harold Brown (1981), "Relatório do Secretário da Defesa ao Congresso sobre o Orçamento do Ano Fiscal de 1982, Pedido de Autorização do Ano Fiscal de 1983 e Programas de Defesa para o Ano Fiscal de 1986" e "Estimativa Orçamentária da Defesa Nacional, Ano Fiscal de 1983", Gabinete do Subsecretário da Defesa, Contadoria, março de 1982, entre outras fontes. As linhas tracejadas à direita da figura representam extrapolações das tendências atuais. E assim voltamos ao Dia das Bruxas. Este encontro sobre "O Mundo após a Guerra Nuclear" está sendo realizado, em função de circunstâncias corriqueiras como a disponibilidade de acomodações de hotel em Washington, num 31 de outubro. O Dia das Bruxas é comemorado hoje como um festival de duendes e fantasmas e coisas que sabemos que não são reais. Os horrores da guerra nuclear, ao contrário, não são fantasias, não são projeções do nosso inconsciente, mas realidades que temos de enfrentar no mundo das emoções pessoais e da prática política. A guerra nuclear merece, e muito, a nossa preocupação, e não somente em 31 de outubro. De qualquer modo, se devêssemos realizar esta reunião numa data de significado simbólico, o Dia das Bruxas parece-me uma boa escolha. Originalmente, na era pré-cristã, era um festival dos celtas chamado

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Samhain. Assinalava o começo do inverno. Era celebrado com enormes fogueiras. Tirava o seu nome do Senhor dos Mortos e era a ele consagrado. O Dia das Bruxas em sua forma original combinava os três elementos capitais do cenário TTAPS: fogo, inverno e morte. As armas nucleares são feitas por criaturas humanas. O confronto estratégico global entre os Estados Unidos e a União Soviética foi concebido e executado por criaturas humanas. Não há nisso nada inevitável. Se formos suficientemente motivados, poderemos livrar a espécie humana dessa armadilha que insensatamente armamos para nós mesmos. Mas o tempo é muito curto.

AGRADECIMENTOS Este artigo não teria sido possível sem a alta competência científica e dedicação dos meus co-autores do relatório TTAPS, Richard Turco, Brian Toon, Thomas Ackerman e James Pollack. Também sou grato, por estimulantes discussões e/ou cuidadosas revisões de uma versão anterior deste artigo, a Hans Bethe, Mark Harwell, John P. Holdren, Eric Jones, Carson Mark, Theodore Postol, Joseph Rotblat, Stephen Schneider, Edward Teller e Albert Wohlstetter; e agradeço encarecidamente o incentivo, as sugestões e as apreciações criticas de Lester Grinspoon, Steven Soter e, especialmente, Ann Druyan. Shirley Arden, Mary Maki, Mary Roth e Joanne Vago prestaram, com sua habitual e grande competência, serviços logísticos essenciais à preparação deste trabalho e à organização da conferencia preparatória de Cambridge, Massachusetts. Finalmente, minha gratidão aos companheiros do Comitê de Conseqüências Mundiais à Longo Prazo de uma Guerra Nuclear.

Perguntas

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DR. VIKAS SAINI (Junta Diretora, Nuclear Free America): Eu tenho duas perguntas sobre as suposições do modelo. A primeira é quanto aos efeitos no Hemisfério Sul: trata-se estritamente da transferência de efeitos de detonações no Hemisfério Norte, ou o senhor inclui objetivos no Hemisfério Sul? SAGAN: Não, não estamos supondo nenhum ataque apreciável contra objetivos no Hemisfério Sul. O cenário da revista Ambio prevê cerca de 100 megatons dirigidos contra alvos no Hemisfério Sul e latitudes tropicais. A poeira e fumaça produzidas em tais alvos atingiriam o sul mais depressa do que aerossóis transportados do Hemisfério Norte. Quaisquer ataques contra objetivos no Hemisfério Sul agravariam ainda mais os nossos resultados. SAINI: A segunda pergunta refere-se a certos resultados imprevistos da detonação de armas nucleares em relação com o cinturão de radiação de Van Allen. Gostaria de saber se o senhor está a par deste assunto e de ouvir seus comentários sobre o que parece ser um dos aspectos mais inquietantes da presente conjuntura: a saber, a militarização do espaço. SAGAN: A iminente introdução de armas no espaço é uma questão política que foge aos propósitos desta reunião. É verdade que quando um artefato nuclear é detonado em determinada altitude, partículas carregadas são injetadas no cinturão de radiação de Van Allen. Mas não creio que isso tenha efeitos climáticos da magnitude de que aqui estamos falando. DR. GEORGE B. FIELD (professor de Astronomia Aplicada da Universidade Harvard e cientista senior do Observatório Astrofísico Smithsonian): Eu gostaria de pedir um esclarecimento sobre um ponto. Nos últimos minutos o senhor acenou com uma pequena esperança aos que pensam em termos de controle de armas. Disse que se pudéssemos limitar a 1.000 o número de armas nucleares nos

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Estados Unidos e União Soviética, seriam evitadas algumas das terríveis conseqüências que acaba de descrever. Por outro lado, numa parte anterior da sua exposição, o senhor falou de um cenário em que havia a aplicação de apenas 100 dessas armas, e os efeitos nesse cenário eram ainda mais terríveis. SAGAN: Lamento se não fui claro. Naquele caso eu falei de 100 megatons, em armas de 100 quilotons de potência cada. Portanto, falei de 1.000 armas. Não há incoerência. FIELD: Na sua opinião esse é o caso marginal? SAGAN: Mais ou menos. Poderia ser menos em se tratando de ataques a cidades, e poderia ser bem mais no caso de ataques de contra-força a silos de mísseis com armas de alta potência. [Isto é discutido com maior detalhe na Ref. 19.] DR. LARRY SMARR (professor-adjunto de Física e Astronomia da Universidade de Illinois): Os recentes relatórios da EPA (Agência de Proteção Ambiental) e da revista Science sobre o efeito de estufa mencionam os efeitos térmicos devidos ao CO2. Eu presumo que enormes quantidades de CO2 seriam um subproduto dos incêndios. De que modo o senhor levou em conta esse fato, e até que ponto poderia o aquecimento devido ao CO2 contrabalançar o esfriamento decorrente da poeira? SAGAN: A pergunta é muito oportuna, pois este é um ponto que se presta a confusão: a saber, dois relatórios, um dos quais afirma que a queima de combustíveis fósseis lança na atmosfera gases que aquecem a Terra, e outro, que acabam de ouvir, dizendo que uma guerra nuclear impregnaria a atmosfera de partículas que esfriariam a Terra. Alguém poderia imaginar que os dois efeitos se anulam. Mas não é essa a nossa conclusão, por mais de um motivo.

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Primeiro, mesmo o CO2 produzido por todos os incêndios em vista não chegaria a contribuir apreciavelmente para o efeito de estufa. O valor atual de 0,03% de CO2 em volume na atmosfera da Terra representa cerca de três ordens de grandeza mais CO2 do que o que seria desprendido no incêndio de cidades e florestas. Veja-se também que o efeito de estufa devido ao CO2 é uma tendência a longo prazo. Não há como revertê-Ia num intervalo de décadas. Aqui estamos falando de um pulso repentino de baixa de temperatura no sistema, provocado pela guerra nuclear, o qual em seguida se irá amortecendo no curso de alguns anos, superposto ao lento aumento de temperatura decorrente da queima de combustíveis fósseis. DR. ARNOLD W. WOLFENDALE (professor de Física da Universidade de Durham, Inglaterra): Minha pergunta é relativa ao importante tópico da análise crítica de resultados. Evidentemente, tudo que é novo e surpreendente deve ser analisado por muitos especialistas. O excelente relatório de 1975 da Academia Nacional de Ciências recebeu apreciações mais favoráveis. Eu gostaria de saber se os autores daquele relatório foram consultados ou solicitados a pronunciar-se sobre as suas conclusões. SAGAN: A questão da análise crítica é essencial. Foi por isso que retardamos tanto a divulgação pública desses resultados alarmantes. Os resultados que os senhores ouviram hoje aqui foram submetidos durante cinco dias a uma reunião, na Academia Americana de Artes e Ciências em Cambridge, Massachusetts, em abril de 1983, de quase uma centena de biólogos, meteorologistas e físicos nucleares - indivíduos de variadas convicções políticas, entre eles representantes dos laboratórios bélicos do governo. Tanto o estudo físico que acabei de expor como o estudo biológico de que irá falar o Dr. Ehrlich passaram igualmente pelo processo de análise crítica para publicação na revista especializada Science. Além disso, houve mais uns seis ou oito estudos diferentes - dois deles na

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União Soviética - buscando confirmar ou contestar as nossas conclusões. Todos eles corroboram os nossos resultados. WOLFENDALE: Quer dizer que os autores do relatório de 1975 retrataram as suas conclusões? SAGAN: Tenho grandes esperanças de que o novo painel da Academia Nacional se ocupará dessa importante matéria. Vou explicar em poucas palavras o motivo das diferenças entre os nossos resultados respeitantes ao inverno nuclear e os do estudo de 1975 da Academia. Primeiro, os efeitos climáticos fundaram-se em argumentos tirados da analogia com a explosão vulcânica do Cracatoa, não na construção efetiva de modelos. Em 1883, alegou-se, a explosão de um vulcão teve como únicos efeitos globais um declínio de temperatura de cerca de meio grau, e belos pores-do-sol em todo o mundo. A energia explosiva total naquele evento foi (possivelmente) comparável à energia total que estamos considerando para o caso de uma guerra nuclear; logo, não há o que temer. Esse argumento deixa de levar em conta vários fatos: primeiro, o grosso do material ejetado na explosão do Cracatoa caiu por lá mesmo, no estreito da Sonda. Segundo, ejetos vulcânicos, principalmente silicatos e ácido sulfúrico, têm coeficientes de absorção muito menores que a fumaça escura produzida numa guerra nuclear. Terceiro, as funções de distribuição de tamanhos de partículas são diferentes, e, quarto, trata-se aqui de milhares de fontes simultâneas de partículas finas. O evento do Cracatoa foi um evento isolado. Há outras diferenças importantes. Tudo considerado, o evento do Cracatoa é compatível com os cálculos aqui referidos. DR. ROBERT EHRLICH (presidente do Departamento de Física da Universidade George Mason, Virgínia): O fato de que um ataque de 100 megatons, menos de 1% do total dos arsenais, acarrete resultados tão catastróficos indica que a causa principal do problema

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climático advém da fumaça produzida por incêndios das cidades. Eu me pergunto se os senhores terão considerado - num ataque nuclear que envolvesse todas as cidades de mais de 100.000 habitantes do Hemisfério Norte - qual a probabilidade de que a metade da área das cidades se convertesse em fumaça e de que os incêndios se prolongassem por semanas ou meses. E se a sua estimativa dessa probabilidade coincide com as de outros. SAGAN: Sim. Esta é uma das muitas partes do nosso estudo a que o Dr. Turco emprestou a sua grande competência. Creio que a resposta é, possivelmente, uma semana; meses, não. As proporções dos incêndios seriam consideráveis por causa da enorme concentração de depósitos de combustíveis nas cidades. RALPH NADER (defensor dos direitos do consumidor): Carl, permita-me que lhe pergunte sobre as inferências técnicas das suas conclusões. Supondo um ataque inicial bem-sucedido de um Inimigo A contra um Inimigo B, em que nível um ataque inicial bem-sucedido, de acordo com os seus cálculos, implicaria suicídio para o agressor? SAGAN: Ou, dito de outro modo, haveria um sublimiar de ataque inicial, abaixo daquele limiar de inverno nuclear de, digamos, 1.000 ogivas? Seria um ataque inicial eficaz auto-dissuasório? Desculpe, Ralph, mas penso que tenho de considerar este ponto como pertencente ao domínio da política. Não desejo estender-me sobre ele; mas creio que para assegurar a neutralização dos principais objetivos estratégicos fixos, seria preciso ultrapassar o limiar do inverno nuclear. NADER: Acho que você está exagerando em suas reservas. A minha pergunta foi basicamente em termos do efeito de ricochete. Para colocá-Ia de modo mais simples, qual seria o limiar de um efeito de ricochete no período de um primeiro lançamento, num ataque inicial?

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SAGAN: Há uma grande probabilidade de que se a Nação A atacar a Nação B com um primeiro ataque eficaz, de contra-força apenas, a Nação A cometerá suicídio, ainda que a Nação B não levante um dedo em retaliação. MASON RUMNEY (secretário-executivo da First Steps Foundation): Eu tenho uma pergunta. Por que supor que o ataque de 100 metagons seria contra cidades, onde há combustíveis estocados, e não contra bases de ICBM, onde não há? SAGAN: Este é simplesmente um entre uma vasta gama de cenários possíveis. DR. HERBERT SCOVILLE, JR. (presidente da Associação de Controle de Armas, ex-diretor-substituto da Agência Central de Inteligência): Que proporção do efeito de longo prazo requer que a fumaça alcance a estratosfera? SAGAN: Normalmente a fumaça de incêndios não atinge a estratosfera, e nós não admitimos que isto ocorra em grau apreciável. Praticamente todos os nossos efeitos devidos à fumaça são troposféricos. No caso de referência, admite-se que a fumaça presente na baixa troposfera seja lavada pelas chuvas em tempo bastante curto. Na hipótese, provável ou improvável, de um penacho de fumaça alcançar a estratosfera, os efeitos serão muito piores e muito mais persistentes do que os calculados. Não foi suposta qualquer proporção apreciável de fuligem estratosférica. Segundo pelo menos algumas opiniões autorizadas, entre elas a de George Carrier da Harvard, é um efeito improvável. Eu, pessoalmente, diria que é ainda uma questão em aberto. DR. MICHAEL J. PENTZ (deão da Faculdade de Ciência, The Open University em Milton Keynes, Reino Unido, e presidente da SANA,

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Cientistas contra as Armas Nucleares): Tenho uma pergunta relativa ao Quadro 1 do artigo principal, o conjunto de cenários que os senhores estudaram. Interessaram-me muito os números 11 e 16. O senhor pode explicar as hipóteses subjacentes, isto é, com respeito aos ataques de contra-força de 3.000 e 5.000 megatons respectivamente? O número que me interessa é o da coluna "Percentagem de energia, objetivos urbanos ou industriais" , que em ambos os casos o senhor dá como zero. O motivo por que isso me deixa curioso é que recentemente a SANA elaborou um modelo de computador de um ataque predominantemente de contra-força contra objetivos no Reino Unido envolvendo 343 objetivos e uma energia total de 220 megatons, combinando explosões no solo e no ar. Para nós era de imediato evidente que uma grande proporção desses objetivos de contra-força estão situados no centro ou nas proximidades de cidades grandes e áreas densamente povoadas. Creio que isto é bastante típico da maior parte da Europa. Por isso me intriga o zero. Talvez haja um ponto decimal que os senhores possam inserir para incluir no quadro a Grã-Bretanha e a Europa. SAGAN: Tudo o que o senhor diz, menos no que se refere à omissão do ponto decimal, é correto. O que nos propusemos fazer está na tradição científica da separação de variáveis. O que estamos dizendo é: imagine-se um ataque só de contra-força na faixa de milhares de megatons. Que efeitos se produziriam se não houvesse a queima de uma única árvore nem de uma única casa? É um limite inferior para os efeitos. O que cabe fazer, creio, é examinar o Caso I, o caso de referência, com 5.000 megatons, que leva em conta o incêndio de cidades. PENTZ: Em 20% apenas? SAGAN: Sim, de fato.

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PENTZ: Entendo que isso possa ser realista com respeito à localização dos principais objetivos de contra-força nos Estados Unidos e talvez na União Soviética. Mas não seria realista com respeito à Grã-Bretanha. SAGAN: Absolutamente certo. Vê-se, portanto, que a situação da Europa é bem pior do que a que descrevemos. Este é mais um exemplo de como os nossos cálculos são cautelosos. SRA. MYRTLE JONES (presidente da Sociedade Audubon de Mobile Bay): Esta é uma conferência oportuna, e o seu artigo na Parade de ontem [30 de outubro de 1983] foi muito bem-elaborado e ajudou-me a compreender o que o senhor disse hoje. O senhor mencionou de passagem o fato de que esteve no Congresso hoje de manhã. Eu gostaria de saber se em ambas as Casas, e como foi recebido. SAGAN: Foi um encontro informal com membros das duas Casas, apenas para transmitir-lhes uma idéia das últimas conclusões. Eu diria que eles se interessaram. SRA. JONES: Interessaram-se positivamente? SAGAN: Não sei bem o que isso significa. Mas não há dúvida que o inverno nuclear traz fortes implicações políticas, embora, ao começarmos o estudo, não tivéssemos idéia de que isto iria acontecer. J. SALATUN (vice-marechal-do-ar reformado da Força Aérea Indonésia e membro do Parlamento em Jacarta): Eu tenho duas perguntas. Primeira: em que pese o pessimismo, não devemos esquecer que se passaram 38 anos desde a Segunda Guerra Mundial, com bombas nucleares e sem outra guerra mundial. Minha pergunta é: qual a probabilidade de uma guerra nuclear?

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SAGAN: A arte da profecia é uma arte perdida. Se houvesse um meio preciso de fazer tal previsão, ela seria extremamente importante. Mas veja como é precária a nossa capacidade de prever até mesmo os aspectos menores da política mundial, como, por exemplo, que pequeno país será invadido amanhã. Portanto, esperar algum prognóstico exato quanto à probabilidade de uma guerra nuclear, parece-me que é querer demais. É verdade que passamos 38 anos sem uma guerra nuclear. É possível, quem sabe, que venhamos a sobreviver por um período mais longo. Mas o senhor se disporia a apostar a sua vida nisso? Não garanto que seja uma perfeita analogia, mas a situação me faz lembrar um homem caindo do alto de um edifício e dizendo a um funcionário de escritório, ao passar por uma janela aberta: "Até aqui, tudo bem.” SALATUN: A segunda pergunta é: o que me diz da possibilidade de que as suas conclusões venham a incitar um novo esforço e simplesmente forçar a destruição? SAGAN: Acho que também esta é uma questão política. Posso perguntar-lhe, vice-marechal, qual o senhor crê seja a probabilidade, ante o conhecimento do inverno nuclear e a descoberta de que a Indonésia é fundamentalmente ameaçada ainda que nem um único engenho nuclear caia em seu território, de que a Indonésia de repente passe a interessar-se muito mais no confronto nuclear entre as grandes potências? SALATUN: Bem, tudo que podemos fazer é rezar a Deus que a coisa não aconteça. Mas no meio tempo devemos preparar-nos para o pior. SAGAN: Na minha opinião, os senhores podem fazer mais do que rezar.

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Dr. GERALD O. BARNEY (presidente da Barney and Associates, Inc.): No curso da preparação do Relatório Global 2000 ao Presidente, ficou claramente evidente para mim, e creio que para muitos outros, que é aconselhável quando da elaboração de estudos importantes dar acesso aos modelos detalhados empregados no processo, já que muitas vezes há coisas escondidas nos modelos de computador que não são de imediato compreensíveis nas publicações que informam os resultados. Eu gostaria de saber se o modelo utilizado no trabalho em causa está disponível, e qual o procedimento para obter fitas ou cópias do programa detalhado. SAGAN: É um pedido perfeitamente legítimo e, é claro, acolheremos com prazer essas solicitações. Está sendo preparada uma exposição bem mais extensa dos resultados do TTAPS, na qual serão fornecidos detalhes mais completos. Mas sem dúvida teremos a maior satisfação em atender ao seu pedido. Entretanto, faço notar mais uma vez que todos os cálculos independentemente realizados empregaram códigos completamente diferentes. Como todos convergiram para a mesma direção, não creio que as nossas conclusões tenham advindo de algum dado capcioso embutido no programa de computador. Mas, é claro, cada segmento do programa pode ser investigado. H. JACK GEIGER, M.D. (professor de Medicina Comunitária do City College da City University de Nova York): Eu tenho uma preocupação baseada em alguma experiência da engenhosidade com que aqueles cujo objetivo é defender a idéia da possibilidade de vitória e de sobrevivência numa guerra nuclear podem tentar distorcer ou reinterpretar esses dados, particularmente no que toca a conceitos como limiar. Que elementos determinam o limiar tal como o senhor o define: número total de armas, potência total, ou uma função mista dos dois?

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SAGAN: É uma função mista dos dois, e também envolve fortemente a estratégia de seleção de objetivos. Note que nas condições atuais de precisão e de potência estocada, quando se passa muito abaixo de 20 quilotons esbarra-se em dificuldades significativas para destruir objetivos resguardados. Creio que de fato existe uma limitação inferior nas condições atuais, se as várias nações estão pretendendo preservar a opção de um ataque de contra-força plausível. Dr. ED PASSERINI (presidente da Carrying Capacity, Inc., de Washington, D.C.; professor de Humanidades e Ambiente da Universidade do Alabama): Esta pergunta mais ou menos complementa a de Jack. Há uma tendência no sentido de menores potências e maior precisão de direcionamento. O senhor vê necessidade de realizar um estudo adicional para verificar qual seria o efeito de um ataque de sublimiar com direcionamento de alta precisão? SAGAN: Bem, como eu disse a Ralph Nader, duvido muito da possibilidade de um ataque de sublimiar, com a presente configuração de precisão e potências, ter eficácia plausível para um primeiro ataque decisivo contra objetivos fixos. [Essas possibilidades futuras são discutidas na Ref. 19.] DR. FRANCIS B. PORZEL (Fundação para a Dinâmica Unificada): Não posso deixar passar esta oportunidade para dizer-lhe que faz quase exatamente 32 anos que foi detonada a primeira bomba de hidrogênio. Creio que seria de grande utilidade para o relatório se o senhor fizesse referência a experiências passadas, aos testes atômicos. Observando os gráficos, eu noto que houve vários períodos na década de 50 em que a União Soviética e os Estados Unidos realizaram operações de teste que somadas chegaram perto da faixa de 100 megatons; só a primeira, Bravo, em 1954, produziu 14 megatons.

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O senhor disse que o modelo é unidimensional e por isso não se aplica ao caso. Mas eu gostaria que o senhor esclarecesse que precauções deveriam ser adotadas em relação ao seu modelo se se quisesse aplicá-Io àquela experiência. SAGAN: Dito de outra forma, o que prediz o modelo para as explosões atmosféricas de armas nucleares nos anos 50? A resposta é que não prediz nenhum efeito detectável. O motivo é, lembre-se, que os 100 megatons têm de ser consagrados em atear uns 100 incêndios urbanos. Não foi o que se fez. Houve poeira mas não fuligem. A maneira mais fácil de explicar isso é por meio do conceito de profundidade ótica. A luz transmitida através de uma cobertura absorvente pura é aproximadamente e, a base dos logaritmos naturais, elevado a menos profundidade ótica. Quando a profundidade ótica é em torno de um décimo, a atenuação é um menos profundidade ótica. É muito pequena. Quando a profundidade ótica chega a um, o que ficou longe de acontecer nos anos 50, a atenuação passa a ser apreciável. E quando a profundidade ótica é por volta de 10, a atenuação torna-se critica. Sendo este um processo não-linear, o que aconteceu na década de 50, deduzimos, não teria quaisquer efeitos sobre o clima. e de fato não se observou nenhum. Mas o que ocorre pelos nossos cálculos é uma profundidade ótica de muitas unidades. Os efeitos conseqüentes são importantes. SRA. MARION EDEY (diretora-executiva da Liga dos Eleitores Conservacionistas): Minha pergunta é: quais os efeitos da camada de ozônio no Hemisfério Sul? SAGAN: No meu entender, as soluções de continuidade da ozonosfera deslocam-se rapidamente e se propagam do Hemisfério Norte para o Sul.

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PHILLIP GREENBERG: As opiniões hoje manifestadas levam-me a fazer um breve comentário. Estou levando na devida conta a decisão de evitar debates de natureza política e, considerando as circunstâncias, acho-a justa e compreensível. Ademais, creio que todos entendemos que há certas implicações políticas que fluem desse estudo, e noto em vários casos, da parte dos interpelantes e da parte do senhor aí na tribuna, uma tendência a questionar a cautela das suposições. Acho que seria um erro mesmo da parte dos senhores da comunidade científica preocupar-se em demasia com a questão da cautela das suposições. Pois embora ela seja apropriada num trabalho científico, no campo político, quando se consideram eventos de grande conseqüência, ainda que de baixa probabilidade, a questão da cautela se inverte. Portanto direi simplesmente que acho importante nos debates, e certamente nas críticas que o senhor terá de suportar dos seus colegas que defendam pontos de vista diferentes sob o prisma político, ter em mente que cautela é coisa diferente segundo a consideramos no contexto científico ou no político. SAGAN: Concordo plenamente. É um truísmo na administração de crises e na estatística atuarial que o importante não é só a probabilidade do evento, e nem só o custo do evento se ele vier a ocorrer, e sim o produto dos dois. Nós estamos bem conscientes disso e na verdade, até aqui, deparamos com muito poucas críticas do tipo a que o senhor se refere. DR THOMAS C. HUTCHINSON (professor do Departamento de Botânica da Universidade de Toronto, Canadá): Que proporção dos oceanos do Hemisfério Norte é provável que viesse a congelar-se por efeito de um ano de menos 25 graus centígrados? SAGAN: Em sistemas de água doce, a profundidade típica de congelamento será de um metro, um metro e meio, por aí. Sem dúvida

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haverá no mar mais massas de gelo flutuantes, mas não há possibilidade de que os mares propriamente venham a congelar-se, dada a sua grande capacidade calorífica e elevada inércia térmica. Vemos assim que talvez algumas coisas não irão tão mal entre a vasta ladainha das que irão, se formos insensatos o bastante para permitir que aconteça a guerra nuclear.

CONSEQÜÊNCIAS BIOLÓGICAS DE UMA GUERRA NUCLEAR PAUL R. EHRLICH

É um privilégio, ainda que melancólico, poder apresentar-lhes o consenso de um grande e ilustre grupo de biólogos sobre os efeitos biológicos prováveis de uma guerra nuclear em grande escala. Esse consenso foi alcançado durante um simpósio realizado logo em seguida ao dos físicos referido por Carl Sagan, e no curso da preparação de dois documentos sobre os impactos de uma guerra nuclear. Aqueles dos senhores que conhecem bem o mundo da ciência sabem que conseguir o assentimento de mais de 50 cientistas, sem qualquer divergência de monta, a um amplo conjunto de conclusões é em si mesmo um fato inusitado. Conseguir que concordem sobre conclusões que dizem respeito a uma questão de enorme e grave interesse público é extraordinário. Para os senhores, depois da exposição do Professor Sagan a razão desse consenso deve ter ficado clara. O ambiente que a maior parte dos seres humanos e dos outros organismos depois de um holocausto nuclear terá de enfrentar será tão modificado, e tão maligno, que danos extremos e generalizados aos sistemas vivos são inevitáveis. Por exemplo, é perfeitamente possível que os impactos biológicos de uma guerra, sem contar os diretamente resultantes de explosão, fogo e radiação instantânea, viessem a ocasionar o fim da civilização no Hemisfério Norte. Para um biólogo é tão fácil concordar com isso como é para todos nós concordar que o uso acidental de cianeto em

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vez de sal de cozinha no molho teria grandes probabilidades de pôr fim a um jantar. Minha principal missão neste momento é apresentar-lhes alguns fundamentos técnicos para explicar por que muitos biólogos - especialmente ecologistas - estão convencidos de que aqueles que em nações diversas detêm o poder de decisão subestimam grandemente os riscos de uma guerra nuclear.

Efeitos Diretos Vou-me concentrar de modo especial nas conseqüências indiretas geralmente ignoradas de uma guerra dessa espécie para o ser humano, as quais se transmitiriam através de efeitos em sistemas ecológicos. Mas não vou minimizar os efeitos diretos possíveis, por bem conhecidos que sejam, pois estes serão realmente horríveis. Vejam o que estudos recentes indicam que aconteceria numa grande guerra termonuclear, em que entre 5.000 e 10.000 megatons de armas fossem detonados - a maior parte no Hemisfério Norte. (para pôr essa guerra em perspectiva, consideram que isso equivaleria grosso modo à explosão de entre meio e três quartos de milhão de bombas atômicas do tamanho da de Hiroxima, o que representa não mais que uma fração dos arsenais nucleares atuais dos Estados Unidos e União Soviética.) Até certo ponto, os efeitos irão depender da dimensão da guerra, distribuição das explosões, número de explosões no solo e de explosões no ar, e outros fatores. Mas quero frisar novamente o que o Dr. Sagan tão bem sublinhou: que os resultados biológicos são pujantes. Isto significa que é sumamente difícil conceber uma guerra nuclear em grande escala que não levasse a um desastre ecológico de dimensões sem precedentes. Em nosso artigo para a revista Science, nós nos concentramos mais que o relatório TTAPS numa guerra de 10.000 megatons, porque achamos que a população devia ser informada dos efeitos dessa

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hipótese plausível. Por isso demos atenção especial ao caso de 10.000 megatons. Mas as descrições gerais dos efeitos aplicam-se a todos os cenários de guerra em grande escala. A previsão, segundo uma das estimativas, é de que somente as explosões causariam 750 milhões de mortes. Um número de pessoas igual ao que existia no planeta quando a nossa nação foi fundada seria vaporizado, desintegrado, esmagado, reduzido a polpa e espalhado na paisagem pela força explosiva das bombas. Outro estudo prediz que 1,1 bilhão de pessoas seriam mortas e outras tantas lesadas pelas explosões, pelo calor e pela radiação. Vale dizer, quase a metade da atual população do mundo - compreendendo a maior parte dos habitantes das nações ricas do Hemisfério Norte - poderia converter-se em baixas no espaço de poucas horas. Também é cristalinamente claro que a própria estrutura da sociedade industrial seria destruída por um tal tipo de guerra. Praticamente todas as áreas metropolitanas - que são os centros políticos, industriais, financeiros, de transportes, de comunicações e culturais das sociedades simplesmente deixariam de existir. Grande parte do saber da humanidade desapareceria com elas. Atendimento médico e outros serviços de socorro essencialmente não mais existiriam - não haveria de onde partir assistência. Os sobreviventes das nações um dia ricas não somente enfrentariam as cargas psicológicas esmagadoras de terem testemunhado a maior catástrofe da história humana, como saberiam não haver esperança de remédio. Uma situação como essa é de tal modo estarrecedora que muitos a entenderão como uma estimativa de pior hipótese do mal potencial causado ao Homo sapiens na Terceira Guerra Mundial. Ao contrário, como veremos a seguir, eu descrevi somente a ponta visível do iceberg. Os destinos dos dois ou três bilhões de pessoas que não morressem imediatamente inclusive as de nações muito distantes dos objetivos - poderiam sob vários aspectos ser piores. Essas, é claro, sofreriam a ação direta das temperaturas glaciais, da escuridão e da precipitação radioativa à médio prazo de que falou o Dr. Sagan. Mas os efeitos de maior alcance à longo prazo seriam produzidos

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indiretamente pelo impacto destes e de outros fatores sobre os sistemas ambientais do planeta.

Ecossistemas Para entender isso, é preciso saber alguma coisa a respeito de sistemas ecológicos - ecossistemas na forma abreviada da biologia. Um ecossistema é uma comunidade biológica - todos os vegetais, animais e micróbios que vivem numa certa área - combinada ao meio físico em que vivem esses organismos. O meio abrange a radiação solar, os gases da atmosfera, águas correntes, fragmentos de rocha no solo, e assim por diante. E a essência de um ecossistema é uma teia de processos que ligam os organismos uns aos outros e ao seu ambiente físico. Esses processos incluem um fluxo unidirecional de energia através do ecossistema e um movimento cíclico de materiais no seu interior. Muitos dos senhores estão familiarizados com o processo da fotossíntese, pelo qual as plantas verdes "captam" a energia do sol. Parte dessa energia é a seguir transferida ao longo de "cadeias alimentares", sendo utilizada primeiro pelas plantas no seu crescimento e para acionar seus outros processos vitais, depois pelos herbívoros que comem essas plantas, depois pelos carnívoros que comem os herbívoros e uns aos outros, e finalmente por agentes de decomposição que desagregam resíduos e organismos mortos. A energia do sol alimenta todos os ecossistemas importantes, não apenas através da fotossíntese como também de processos puramente físicos, como o de evaporar a água da superfície dos mares e das terras de modo que esta continue a circular. Assim, vê-se de imediato por que qualquer evento que impeça o acesso da luz solar à superfície da Terra pode ter efeitos catastróficos sobre o funcionamento dos ecossistemas. Mas, e daí? É preciso entender que todos os seres humanos estão encerrados em ecossistemas e deles dependem totalmente para a

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produção agrícola e para uma série de outros "serviços públicos" gratuitos. Esses serviços incluem a regulação dos climas e manutenção da composição gasosa da atmosfera; suprimento de água doce; remoção de resíduos; reciclagem de elementos nutrientes (inclusive os indispensáveis à agricultura e à silvicultura); geração e preservação de solos; controle da grande maioria das pragas potenciais das lavouras e vetores de enfermidades humanas; suprimento de alimentos do mar; e manutenção de uma vasta "biblioteca" genética, da qual a humanidade já tirou a própria base da civilização - inclusive todas as plantas cultivadas e animais de criação. A danificação de ecos sistemas significa a interrupção desses serviços. E os dois ou três bilhões de indivíduos que sobrevivessem aos efeitos instantâneos de uma guerra termonuclear precisariam deles mais ainda do que precisamos hoje.

Agressões aos Ecossistemas A que espécies de agressões estariam sujeitos os ecossistemas na eventualidade de um conflito nuclear em grande escala entre os Estados Unidos e a URSS? O Professor Sagan realçou as duas que provavelmente seriam as mais importantes - escuridão generalizada e frio intenso nas áreas continentais. Entre as demais, que não seriam desprezíveis, teríamos incêndios florestais; neblina tóxica (que poderia engolfar todo o Hemisfério Norte); enriquecimento da luz solar (quando voltasse a penetrar) em comprimentos de onda da faixa perigosa do ultravioleta (UV-B), que, entre outras coisas, danificam o material genético (ADN); níveis acrescidos de radiação nuclear; chuvas ácidas; contaminação por substâncias tóxicas de águas subterrâneas, superficiais e litorâneas; assoreamento e poluição por resíduos de lagos, rios e orlas marítimas e tempestades violentas em regiões costeiras. Quando da descrição de alguns dos impactos desses fenômenos, convirá ter em mente que a maioria deles estarão ocorrendo

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simultaneamente em muitas regiões. Além disso, em muitos casos os impactos de duas ou mais agressões simultâneas serão provavelmente sinérgicos - isto é, maiores que a simples soma dos efeitos isolados. Por exemplo, os níveis de radiação remanescente provinda de precipitações globais (ou seja, exposição à radiação não atribuível à precipitação local devida a uma determinada bomba) poderão ser muito mais altos do que os estimados em análises anteriores, porque as precipitações da alta troposfera foram de modo geral desprezadas. Também é importante entender que as conclusões dos biólogos quanto aos efeitos ecossistêmicos são muito menos dependentes das características particulares das detonações do que o são as conseqüências diretas de explosão, calor e radiação inicial. Só no caso de uma guerra nuclear de pequena escala, realmente limitada, haveria a probabilidade de os nossos cálculos não serem aplicáveis. Guerras desse tipo são possíveis, mas que uma guerra nuclear, uma vez iniciada, possa ser contida, é duvidoso; para muitos analistas, guerras nucleares limitadas são altamente improváveis. Seja como for, os detentores do poder de decisão devem ser completamente informados das conseqüências possíveis de conflitos nucleares generalizados, que têm toda a probabilidade de causar a longo prazo efeitos devastadores. É bem possível que as nossas conclusões subestimem essas conseqüências, visto que ainda sabemos muito pouco a respeito do funcionamento detalhado dos ecossistemas globais para avaliar todas as interações sinérgicas entre os insultos a que os seres humanos e os ecossistemas seriam submetidos. O fato é que, mesmo se os efeitos climáticos não abarcassem todo o Hemisfério Norte ou todo o globo, os impactos de uma guerra nuclear sobre os ecossistemas do planeta seriam consideráveis.

Gelo e Trevas

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Temperaturas reduzidas teriam efeitos dramáticos sobre populações animais, muitas das quais seriam aniquiladas pelo frio inusitado. Contudo o fator central dos efeitos nos ecossistemas é o impacto da guerra sobre as plantas verdes. A atividade destas dá origem à chamada produção primária - a apropriação de energia (através da fotossíntese) e a acumulação de substâncias nutritivas necessárias ao funcionamento de todos os componentes biológicos dos ecossistemas naturais e cultivados. Sem a atividade fotossintética das plantas, virtualmente todos os animais, seres humanos inclusive, cessariam de existir. Toda carne é na verdade "erva". Tanto o frio como a escuridão são adversos às plantas e à fotossíntese. O Quadro 1 mostra as modificações de luz e temperatura que podem decorrer de uma guerra nuclear. Note-se que, por exemplo, as temperaturas superficiais nos continentes, longe das costas, podem ficar abaixo do ponto de congelamento da água em todo o Hemisfério Norte durante um ano inteiro, e que um frio próximo desse ponto também pode assolar o Hemisfério Sul durante meses. Os impactos de temperaturas tão baixas sobre as plantas dependeriam, entre outras coisas, da época do ano em que ocorressem, da sua duração, e da tolerância das diferentes espécies vegetais ao resfriamento. Um resfriamento brusco é particularmente prejudicial. Depois de uma guerra nuclear, prevê-se que as temperaturas cairiam verticalmente em curto espaço de tempo; assim, é improvável que plantas normalmente resistentes ao frio se aclimatassem antes de serem expostas a temperaturas letais. Além disso, mesmo temperaturas bem acima do ponto de congelamento podem ser nocivas a algumas plantas, e outras agressões não mostradas no Quadro 1 intensificariam os danos infligidos à vegetação pelo resfriamento ou congelação. Acresce que plantas doentes ou lesadas têm uma capacidade reduzida de aclimatar-se ao frio. Tudo isso se resume em que virtualmente todas as plantas terrestres no Hemisfério Norte seriam lesadas ou destruídas numa guerra que ocorresse durante a estação do crescimento ou pouco antes. Provavelmente a maior parte das culturas anuais seria prontamente

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exterminada, e muitas plantas perenes sofreriam igualmente danos graves se a guerra ocorresse no período do seu crescimento ativo. Obviamente, os danos seriam menores se ela acontecesse na fase de hibernação. Se fosse no outono ou no inverno, as fontes principais de alimento para a humanidade - trigo, arroz, milho e outros cereais - teriam sido colhidas. Mas provavelmente o tempo permaneceria anormalmente frio por muitos meses, impedindo o cultivo na primavera e no verão subseqüentes, ainda que outras condições fossem favoráveis. Outrossim, como as temperaturas de inverno estariam muito abaixo das mínimas normais, muitas plantas perenes (por exemplo, árvores frutíferas e componentes importantes da vegetação natural) provavelmente morreriam. De modo geral, as sementes estocadas de plantas de zonas temperadas não seriam afetadas pelo frio, mas as de muitas plantas tropicais o seriam.

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Se bem que em latitudes mais setentrionais uma guerra no outono ou no inverno teria provavelmente um impacto menos violento sobre as plantas do que na primavera ou no verão, ainda assim poderia haver um sério impacto nos trópicos, onde as plantas crescem o ano inteiro. As únicas partes do Hemisfério Norte onde as plantas não seriam devastadas por um frio intenso seriam zonas costeiras e ilhas, onde a temperatura seria moderada pelos oceanos. As faixas costeiras, porém, experimentariam condições atmosféricas de extrema turbulência, em vista das enormes diferenças de temperatura que se criariam entre a terra e o mar. Lembrem-se de que o frio é apenas um dos castigos a que as plantas verdes seriam submetidas. O bloqueio da luz solar, causa do frio, também reduziria ou eliminaria a atividade da fotossíntese. Isto traria inúmeras conseqüências, que se transmitiriam em cascata através das cadeias de alimento, inclusive as que dão sustento à espécie humana. A produtividade primária diminuiria mais ou menos na proporção da diminuição da luz, ainda que a vegetação não sofresse outras espécies de danos. Se o nível de iluminação caísse a 5% ou menos dos níveis normais - como provavelmente aconteceria por vários meses nas latitudes médias do Hemisfério Norte -, a maioria das plantas teria o seu crescimento interrompido. Assim, mesmo se as temperaturas permanecessem normais, a produtividade das culturas e dos ecossistemas naturais seria enormemente reduzida pela intercepção da luz do sol decorrente de uma guerra. Combinados, o frio e a escuridão constituiriam uma catástrofe sem precedentes para esses sistemas.

Luz Ultravioleta Quando o frio e a escuridão abrandassem, as plantas verdes passariam a sofrer outro sério insulto. As bolas de fogo nucleares introduziriam na estratosfera grandes quantidades de óxidos de

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nitrogênio. A conseqüência seria uma forte redução do escudo protetor estratosférico de ozônio - da ordem de 50%. Normalmente, o ozônio filtra a radiação UV-B. Nas semanas ou meses imediatamente seguintes à guerra, a fuligem e a poeira em suspensão impediriam essa UV-B acrescida de alcançar o solo. Mas a escassez de ozônio persistiria por mais tempo que a fuligem e a poeira, e, quando a atmosfera limpasse, os organismos seriam submetidos a níveis de radiação UV-B muito mais altos que os considerados perigosos para os ecossistemas e para os seres humanos. Uma das respostas das plantas ao aumento da UV-B é a redução da fotossíntese. Além disso, folhas que se desenvolvem em baixa luminosidade são duas ou três vezes mais sensíveis à UV-B do que as desenvolvidas em plena luz do sol. Dessa forma, a UV-B irá potenciar os danos antes causados por baixos níveis de luz. Sabe-se que os sistemas imunológicos do Homo sapiens e de outros mamíferos são suprimidos mesmo por doses baixas de UV-B. Assim, os mamíferos submetidos a radiação ionizante acrescida (que também inibe o sistema imunológico), a doenças e a uma série de outras agressões num mundo de pós-guerra teriam comprometida uma de suas principais defesas. Há também indicações de que a exposição prolongada a um excesso de UV-B poderia provocar de modo generalizado a perda da visão. As pessoas e outros animais sobreviventes poderiam ver-se novamente em trevas pouco tempo depois que o céu tivesse clareado.

Precipitação Radioativa Os ecos sistemas do Hemisfério Norte seriam também submetidos a níveis muito mais altos de radiação ionizante originada da precipitação radioativa do que se imaginava antes. Uma estimativa sugere que um total de uns 5 milhões de quilômetros quadrados estendendo-se dos pontos de detonação na direção do vento ficariam expostos a 1.000 ou mais rems de radiação, principalmente nas primeiras 48 horas. Esses

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níveis de radiação seriam letais para todas as pessoas expostas e para muitas outras espécies animais e vegetais sensíveis. Até 30% das áreas continentais de médias latitudes do Hemisfério Norte seriam expostas a mais de 500 rems de radiação no primeiro dia. Tal dose causaria a morte de cerca de metade dos indivíduos adultos sadios a ela expostos. No entanto, submetidos a outros fatores de debilitação, poucos adultos nessas áreas se manteriam sadios, e a radiação poderia acabar de liquidar muitos milhões de sobreviventes feridos, doentes, enregelados, famintos e sedentos. Os que não morressem ficariam doentes por semanas e propensos ao câncer pelo resto de suas vidas. O número total de pessoas afetadas certamente passaria de um bilhão, podendo mesmo abranger a totalidade das populações do Hemisfério Norte - dependendo dos detalhes do conflito nuclear. Níveis mais baixos de exposição anormal, ainda centenas de vezes maiores que a radiação normal "de fundo", ocorreriam em metade ou mais do hemisfério, tornando os sobreviventes mais suscetíveis à doença, acarretando a produção de câncer e provocando mutações genéticas. Os efeitos ecossistêmicos de níveis elevados de radiação são mais difíceis de prever. Organismos não-humanos são diferentemente suscetíveis a lesões por radiação. Entre os mais vulneráveis estão a maioria das coníferas que formam florestas extensas nas zonas mais frias do Hemisfério Norte. É possível que sobreviesse a morte de coníferas numa superfície equivalente a 2% de toda a área de terras do Hemisfério Norte. Isto, por sua vez, criaria condições propícias à propagação de incêndios de enorme extensão. Além das coníferas, aves e mamíferos destacam-se entre os grupos mais sensíveis. Combinada a outras agressões, a precipitação, em muitas regiões, poderia agravar a ruptura da mecânica normal de ecossistemas. Além do que, isótopos radioativos entrariam em ciclos alimentares, ganhando no processo maior concentração, e talvez somando novos riscos para os sobreviventes humanos.

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Fogo, Smog e Sinergismos Essa narrativa de modo algum esgota os impactos que os ecossistemas experimentariam. É claro que muitos deles seriam destruídos ou lesados pelas explosões, pelo fogo e pela radiação de milhares de detonações de armas nucleares. Poços de petróleo, jazidas e depósitos de carvão, turfeiras, etc., poderiam continuar queimando por meses ou anos. Incêndios florestais secundários, cobrindo talvez 5% ou mais da área continental do Hemisfério Norte, teriam efeitos devastadores diretos sobre os ecossistemas - especialmente aqueles não adaptados a queimas periódicas. Explosões múltiplas no ar sobre a Califórnia no fim do verão ou princípio do outono poderiam calcinar grande parte do estado, ocasionando enchentes e erosão de dimensões calamitosas durante a estação chuvosa subseqüente. Assoreamento, escoamentos tóxicos e chuvas radioativas poderiam causar a mortandade de uma grande parte da fauna de águas doces e costeiras. Sobreviventes humanos procurando alimentar-se de mariscos como mexilhões a beira-mar provavelmente verificariam estarem eles mortos ou com radioatividade concentrada de tal ordem que seria letal consumi-los. Há grande incerteza com respeito à extensão de tempestades ígneas, porque as condições de combustível e de inflamação que as originam são pouco conhecidas. Em certas circunstâncias, essas conflagrações gigantescas podem aquecer o solo o suficiente para matar as sementes dormentes nele contidas - os "bancos de sementes" dos quais depende a regeneração da flora. A tempestade ígnea relativamente pequena que destruiu Hamburgo na Segunda Guerra Mundial lançou labaredas no céu a 4.500 metros de altura e fumaça a 12.000 metros. A temperatura do fogo foi suficiente para fundir alumínio, e abrigos subterrâneos ficaram tão quentes que quando se abriram, dando entrada ao oxigênio, materiais inflamáveis e até cadáveres explodiram em chamas. Essa tempestade cobriu cerca de 15 quilômetros quadrados; as muitas tempestades ígneas produzidas

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numa guerra nuclear provavelmente seriam cada qual cem ou mais vezes maior. Os incêndios e as tempestades ígneas gerariam um smog hemisférico de espessura variável, enriquecido a sotavento de cidades incendiadas por diversas substâncias altamente tóxicas, como os cloretos de vinil. Uma provável conseqüência da injeção na atmosfera de óxidos de enxofre e nitrogênio produzidos por incêndios seriam chuvas fortemente ácidas localizadas. E a modificação da dinâmica da atmosfera poderia resultar em estiagens prolongadas noutras regiões. Em geral, a sujeição de ecossistemas a várias combinações de escuridão, frio, fogo, radiação ultravioleta, smog, chuvas ácidas e seca seria de molde a provocar surtos sem precedentes de doenças e pragas das plantas, os quais poderiam estender-se, no espaço e no tempo, muito além da devastação direta produzida pela guerra. Em muitos casos, como dito atrás, o impacto de dois fatores adversos simultâneos seria muito maior que a soma dos seus efeitos se eles ocorressem separadamente. Alguns desses sinergismos são fáceis de identificar. Por exemplo, a falta de luz solar é de molde a intensificar os efeitos de outros fatores adversos sobre as plantas porque se requereria energia (e portanto insolação) adicional para resistir a esses efeitos e para reparar os danos por eles provocados. Não temos meios de quantificar outros sinergismos que sem dúvida nenhuma ocorreriam em ecossistemas radicalmente alterados em virtude de um ataque. No entanto tudo indica que podemos prever com segurança que haveria muitos deles - e que de modo geral eles se revelariam muito mais destrutivos do que alguns dos efeitos isolados.

O que Aconteceria aos Vertebrados e aos Organismos do Solo

O desastre que acometeria grande parte ou a maioria das espécies vegetais do Hemisfério Norte por obra dos efeitos de uma guerra nuclear concorreria para um desastre comparável ou maior para os

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animais superiores. Herbívoros e carnívoros selvagens e animais de criação ou sucumbiriam prontamente ao frio ou morreriam de fome ou de sede porque as águas superficiais ficariam congeladas. Se a guerra ocorresse no outono ou no inverno, animais hibernantes em regiões mais frias talvez sobrevivessem, só para enfrentar condições extremamente hostis numa primavera e num verão de frio e escuridão. Os animais necrófagos que resistissem às temperaturas glaciais previstas teriam condições de florescer no período de pós-guerra, tendo em vista os bilhões de corpos insepultos de homens e animais. Com as altas taxas de multiplicação que os caracterizam, depois do degelo, ratos, moscas e baratas poderiam, pouco tempo decorrido da Terceira Grande Guerra, ocupar o lugar de espécies dominantes. Os organismos do solo não dependem diretamente da fotossíntese, e em muitos casos podem manter-se em estado de vida latente por períodos prolongados. Esses estariam relativamente imunes ao frio e à escuridão. Mas em muitas regiões a perda da vegetação de superfície exporia o solo a um intenso processo de erosão pelo vento e pela água. Com isso, ainda que os organismos do solo não sejam excessivamente suscetíveis aos efeitos retardados sobre a atmosfera de uma guerra nuclear, é provável que ecossistemas inteiros do solo fossem de qualquer maneira destruídos.

Impactos em Sistemas Agrícolas Os ecossistemas agrícolas seriam submetidos aos mesmos tipos de impactos que os ecossistemas naturais, mas merecem atenção especial porque atualmente sustentam populações humanas muito acima das cargas suportáveis pelos ecossistemas naturais. As reservas de alimentos básicos nos centros de população humana são pequenas, e a maior parte da carne e dos gêneros é suprida pela produção corrente. Somente os cereais são armazenados em quantidades maiores, mas os locais de armazenagem situam-se geralmente em pontos distantes. Por isso, depois de uma guerra

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nuclear, as reservas de alimentos do Hemisfério Norte estariam destruídas ou contaminadas, guardadas em locais inacessíveis, ou em pouco tempo esgotadas. As pessoas que sobrevivessem aos outros efeitos da guerra logo estariam morrendo de fome. Além disso, países que hoje dependem de grandes importações de alimentos, ainda que intocados por explosões nucleares, sofreriam a imediata e completa cessação do ingresso de suprimentos. Teriam de voltar-se para os ecossistemas agrícolas e naturais locais. Para muitos países em desenvolvimento, isso poderia significar a inanição de grandes parcelas dos seus habitantes. A recuperação da agricultura após a guerra seria com certeza muitíssimo difícil. Em sua maioria as culturas requerem complementos substanciais de energia e de fertilizantes. Além disso, safras aproveitáveis requerem insolação integral, água adequada, supressão de pragas e ausência relativa de agentes adversos como poluição do ar e UV-B. Poucos desses requisitos estariam presentes no mundo do pós-guerra imediato. Depois que as condições ambientais voltassem mais ou menos ao "normal" (exceto pela perda de solos irrecuperáveis), a facilidade da restauração da agropecuária em escala apreciável iria depender da possibilidade de reorganização dos sistemas sociais (determinada por fatores como disponibilidade de energia e condição psicológica da população) e da proporção em que sementes e animais de criação reprodutores houvessem sobrevivido. Como as sementes destinadas à grande maioria das culturas norte-americanas, européias e soviéticas não são colhidas e armazenadas em fazendas individuais, a variedade genética já limitada de plantas cultivadas seria ainda mais reduzida por perdas inevitáveis de sementes estocadas. Além disso, é provável que as variedades que sobrevivessem se adaptassem mal aos meios ambientes de pós-guerra em que seriam plantadas. Nas primeiras estações, o mais certo é que o clima permanecesse mais hostil e imprevisível do que de costume, resultando em colheitas incertas e, com freqüência relativa, em frustrações de safras. Mesmo alterações climáticas pequenas podem ter grandes efeitos sobre a

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agricultura. Por exemplo, uma simples queda de 3ºC na temperatura média de julho empurraria o limite norte da produção confiável de milho vários graus de latitude para o sul, até o sul do Iowa e o centro do Illinois. Por fim, deve-se observar que os ecossistemas agrícolas dependem inevitavelmente dos ecossistemas naturais em que estão embutidos. Alterações causadas nestes pela guerra, especialmente se afetando a sua capacidade de prestar serviços de suprimento de água doce, controle de pragas e polinização, também poderiam retardar a recuperação da agricultura.

O que Aconteceria com os Trópicos Até aqui, concentrei minhas observações nos efeitos produzidos na Zona Temperada Norte, terreno provável da guerra. Mas o que aconteceria nos trópicos e no Hemisfério Sul? Naturalmente, isso dependeria em grande parte da exata configuração dos alvos escolhidos e de quantas tempestades ígneas se produzissem (pois estas poderiam injetar enormes quantidades de material na estratosfera, onde ele seria facilmente transportado do Hemisfério Norte para o Sul). Em qualquer cenário de guerra, a propagação do frio e da escuridão às extensas áreas tropicais do Hemisfério Norte é altamente provável, e é pelo menos possível que se estendesse igualmente às áreas tropicais do Hemisfério Sul. Ainda que o frio e a escuridão ficassem em grande parte confinados às regiões temperadas do norte, pulsos de ar frio poderiam penetrar bastante fundo nas zonas tropicais. Portanto é oportuno mencionar as prováveis conseqüências de tal propagação. Muitas plantas de zonas tropicais e subtropicais não possuem mecanismos de liberação que lhes permitam suportar estações frias. Nessas regiões, danos em grande escala seriam infligidos às plantas pelo esfriamento, ainda que as temperaturas não chegassem a cair ao

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ponto de congelamento. Além disso, considera-se que vastas áreas de vegetação tropical estão muito próximas do "ponto de compensação" fotossintético - a quantidade de dióxido de carbono que absorvem é apenas ligeiramente maior que a que liberam. Se o nível de luz caísse, essas plantas definhariam, mesmo em ausência de resfriamento. Se a luz permanecesse escassa por um tempo prolongado, ou se a baixos níveis de iluminação se combinassem baixas temperaturas, florestas tropicais poderiam desaparecer em grande parte, levando consigo quase por inteiro um dos recursos não-renováveis mais preciosos da Terra: suas reservas de diversidade genética, compreendendo a maioria das espécies animais e vegetais. Animais tropicais, seres humanos neles incluídos, são também muito mais sujeitos a morrer de frio que os seus semelhantes das zonas temperadas. Em resumo: onde regiões tropicais fossem afetadas por alterações climáticas, as conseqüências poderiam ser muito mais sérias do que as provocadas por mudanças similares numa zona temperada. Mais que isso, mesmo na ausência de frio e escuridão, a dependência dos povos tropicais de alimentos e fertilizantes importados criaria problemas de suma gravidade. Um grande número de habitantes seria forçado a deixar as cidades e a tentar cultivar áreas remanescentes de floresta tropical úmida, acelerando a sua destruição na medida em que os sistemas fossem levados muito além da sua capacidade de carga.

O que Aconteceria aos Sistemas Aquáticos Finalmente, o que aconteceria às partes do planeta que são cobertas de água? Os organismos aquáticos tendem a ser protegidos de variações dramáticas da temperatura do ar pela lentidão com que as variações se propagam à água. Assim, em geral, os sistemas aquáticos sofreriam ruptura menos acentuada que os terrestres. Não obstante, muitos sistemas de água doce se congelariam a profundidades não pequenas (ou completamente). Por exemplo, após uma guerra nuclear na primavera, formar-se-ia um metro ou mais de

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gelo em todas as massas de água doce, pelo menos na Zona Temperada Norte. Isto reduziria ainda mais os níveis de iluminação em lagos, charcos, rios e arroios num mundo escurecido. Haveria baixa de oxigênio, e muitos organismos aquáticos seriam exterminados. Além disso, a profundidade de congelamento tornaria extremamente difícil o acesso de pessoas e outros animais sobreviventes à superfície da água. Nos mares, a escuridão inibiria a fotossíntese nas minúsculas plantas verdes (algas) que formam a base de todas as cadeias alimentares marinhas importantes. A reprodução dessas plantas, conhecidas coletivamente como fitoplâncton, seria retardada ou interrompida em muitas regiões, e o fitoplâncton que sobrevivesse seria em pouco tempo devorado pelos pequenos animais flutuantes (zooplâncton) que dele se alimentam. Próximo à superfície do mar, a produtividade do fitoplâncton é reduzida pelos níveis atuais de UV-B; depois de uma guerra, um aumento dessa espécie de radiação seria uma agressão adicional. No Hemisfério Norte, as cadeias alimentares marinhas poderiam ser rompidas por um lapso suficientemente longo para causar a extinção de muitas espécies valiosas de peixes, principalmente após uma guerra nuclear de primavera ou de verão. Não apenas a vida marinha seria dizimada em águas costeiras ricas como as de Georges Bank, como as águas seriam agitadas por tremendos temporais. Na proporção em que se encontrassem no porto ao ocorrer a guerra, as frotas pesqueiras e os pescadores de ofício que hoje colhem as riquezas do oceano teriam sido em grande parte convertidos em partículas dispersas, que contribuiriam para sombrear os mares. Os sobreviventes aptos e dispostos a pescar teriam grande dificuldade em encontrar combustível e instalação portuárias e de processamento utilizáveis. De modo geral, não há muito por que acreditar que, pelo menos no Hemisfério Norte, as formas de vida marinha que servem de importante fonte de alimento para o homem fossem acessíveis aos sobreviventes.

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O que Aconteceria com a Terra Podem-se elaborar cenários de guerra plausíveis em que os efeitos atmosféricos predominantes, frio e escuridão, se estenderiam virtualmente à totalidade do planeta. Nessas circunstâncias, a sobrevivência humana se restringiria quase que exclusivamente a ilhas e faixas costeiras do Hemisfério Sul, e a população humana poderia reduzir-se aos níveis da pré-história. Muitos de nós, lendo o livro de Jonathan Schell The Fate of the Earth, nos comovemos fortemente pelo modo impressionante em que ele apresenta a sua tese, mas eu desconfio que os biólogos em sua maioria, como eu mesmo, acharam um tanto exagerado imaginar que a nossa espécie viesse a desaparecer literalmente da face do planeta. Com base no que sabíamos então, não parecia verossímil. Depois, os biólogos tiveram de considerar a possibilidade de que o frio e a escuridão se espalhassem sobre a Terra inteira e sobre todo o Hemisfério Sul. Ainda assim pareceu-Ihes improvável que isso resultasse de pronto na morte de todas as pessoas do Hemisfério Sul. Imaginou-se que em ilhas, por exemplo, longe das fontes de radioatividade e onde as temperaturas seriam moderadas pelos oceanos, alguns habitantes haveriam de sobreviver. De fato, é provável que restassem sobreviventes esparsos em várias partes do Hemisfério Sul, e mesmo numas poucas partes do Hemisfério Norte. Mas cabe inquirir sobre a persistência a longo prazo desses pequenos grupos de população, ou de indivíduos isolados. O ser humano é um animal social por excelência. Depende em alto grau das estruturas sociais que construiu. Terá de arrostar um meio enormemente alterado, que não apenas lhe será estranho senão muito mais adverso do que jamais enfrentou. Os sobreviventes retornarão a uma espécie de estágio de caçador-apanhador. Mas os caçadores e apanhadores do passado possuíram sempre um íntimo conhecimento cultural do ambiente em que viviam; sabiam como tirar o seu sustento da terra. Depois de um holocausto nuclear, populações sem essa espécie de

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bagagem cultural estarão de repente se esforçando por viver num ambiente que jamais foi experimentado por ninguém em parte alguma. Com toda a probabilidade, enfrentarão um meio totalmente novo, condições meteorológicas sem precedentes e altos níveis de radiação. Se forem grupos muito reduzidos, haverá a possibilidade de cruzamento consangüíneo. E, é claro, os sistemas sociais, econômicos e de valores serão completamente esfacelados. O estado psicológico dos sobreviventes não é fácil de imaginar. É consenso do nosso grupo que, nessas condições, não há como excluir a possibilidade de os sobreviventes dispersos simplesmente não serem capazes de reconstruir suas populações, de, num lapso de dezenas ou mesmo centenas de anos, acabarem por desvanecer-se. Em outras palavras, não há como excluir a possibilidade de uma guerra nuclear acarretar a extinção do Homo sapiens.

Sumário Permitam-me uma breve recapitulação. Uma guerra nuclear em grande escala, ao que nos é dado prever, deixaria quando muito sobreviventes esparsos no Hemisfério Norte, e esses sobreviventes enfrentariam frio intenso, fome, falta de água, smog espesso, etc.,etc., e enfrentariam tudo isso na penumbra ou no escuro, e sem o apoio de uma sociedade organizada. Os ecossistemas de que em grau extremo eles seriam dependentes sofreriam fortes distorções, transformando-se em modos que dificilmente podemos predizer. Seus processos seriam entravados. Os ecologistas não conhecem suficientemente esses sistemas complicados para poderem prever a sua exata condição depois de "recuperados". Se a biosfera voltaria a ser um dia algo parecido ao que é hoje, ninguém é capaz de dizer. É altamente improvável que a sociedade do Hemisfério Norte perdurasse. Na zona tropical do Hemisfério Sul, os eventos dependeriam em grande parte do grau de propagação dos efeitos

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atmosféricos do norte para o sul. Mas podemos estar certos de que, ainda que não houvesse essa propagação, as populações que vivem nessas áreas seriam fortissimamente afetados pelos efeitos da guerra - pelo simples fato de ficarem isoladas do Hemisfério Norte. E, repetindo, se os efeitos atmosféricos se alastrassem por todo o planeta, não podemos ter certeza de que o Homo sapiens sobreviveria.

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Figura 1. Deslocamento urbano provável: Uma semana após uma guerra nuclear, a quantidade de luz solar ao nível do solo a grandes distâncias dos objetivos do Hemisfério Norte possivelmente se reduziria a uma pequena percentagem da normal. Os sobreviventes urbanos defrontar-se-iam com frio intenso, falta de água, falta de alimentos e de combustíveis e pesadas cargas de radiação, poluentes e doenças. Provavelmente tentariam abandonar as cidades em busca de comida. Figura 2. Impacto na agricultura: No caso de uma guerra de primavera ou de verão, temperaturas abaixo do ponto de congelamento destruiriam ou comprometeriam praticamente todas as culturas no Hemisfério Norte. Os baixos níveis de iluminação inibiriam a fotossíntese, e as conseqüências propagar-se-iam em cascata ao longo de todas as cadeias alimentares. Os animais de criação morreriam ou se debilitariam grandemente por efeito da radiação: Os que sobrevivessem em pouco tempo morreriam de sede, pois as águas doces superficiais estariam congeladas no interior dos continentes. Figura 3. Vazamentos químicos: Explosões nucleares nas vizinhanças de cidades incendiariam instalações de armazenagem de petróleo e gás e romperiam tanques contendo produtos tóxicos, que se derramariam nas águas correntes, matando os organismos aquáticos.

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Figura 4. O frio e a escuridão que se seguiriam a uma guerra nuclear no Hemisfério Norte provavelmente haveriam de estender-se às zonas sub-tropicais e tropicais de ambos os hemisférios, causando danos generalizados às plantas e animais daquelas regiões e afetando seriamente ou destruindo florestas tropicais úmidas, o grande reservatório da diversidade orgânica da Terra. Em lugares como a América Central (figura) as populações teriam de perambular à procura de abrigo e alimento. Figura 5. Aqui se mostra uma paisagem tranqüila nas matas do norte. Um castor acabou de construir a sua represa, dois ursos pretos vagueiam à cata de comida, uma borboleta do gênero Papilio adeja no primeiro plano, um mergulhão passa nadando calmamente, um martim-pescador espreita um peixe suculento.

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Figura 6. Depois de uma guerra nuclear, formar-se-Ia nos si temas de água doce uma camada de gelo de considerável espessura, acabando com o alimento dos animais selvagens. A precipitação radioativa mataria as coníferas.

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Figura 7. Coníferas mortas e secas serviriam de acendalhas para extensos incêndios florestais.

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Figura 8. Uma vista em corte do oceano em condições normais mostra representantes da vida marinha em várias profundidades. Entre eles, arraias-do-mar, cavalas, arenques, meros: atuns, caranhos-vermelhos, jubarte, polvo gigante e tubarão. As águas rasas da plataforma continental sustentam estrelas-do-mar e -corais. Um barco de pesca apanha camarões. Os pequenos organismos do plâncton servem de alimento a outros seres marinhos. Figura 9. Aqui se vê a mesma seção de oceano da Figura 8 depois de uma guerra nuclear. Em conseqüência do escuro e da cessação da fotossíntese, o fitoplâncton em pouco tempo se extingue, as cadeias alimentares se rompem e a vida marinha degenera. Silte e toxinas drenados da terra contaminam a zona costeira. O diferencial térmico entre as massas continentais intensamente frias e os oceanos mais quentes origina violentas tempestades ao longo do litoral. As fontes marinhas de alimento para a humanidade se perdem e o acesso às remanescentes é muito dificultado.

Perguntas DR. OWEN CHAMBERLAIN (professor de Física da Universidade da Califórnia em Berkeley; Prêmio Nobel de Física de 1959): O senhor pode fazer o favor de repetir alguns pontos capitais sobre a cultura do trigo? Que queda de temperatura se requer para eliminá-Ia? Imagino que é fácil perder-se a produção de um ano simplesmente porque o sol foi insuficiente para operar um ciclo vital completo do trigo, mas o senhor mencionou alguns dados com respeito à queda de temperatura. EHRLICH: Eu me referi ao cenário do Dr. Sagan de 3.000 megatons de contra-força - creio que algo em torno de 80C de queda. Veja que não se trata. apenas da temperatura que uma planta em pé pode suportar num dado espaço de tempo. Por exemplo, se a temperatura

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média cai, o período de crescimento é abreviado. Na verdade, é uma questão complicada, a que os ecologistas têm dificuldades em responder com precisão. Mas eu julgo razoável afirmar que esse grau de declínio de temperatura, em termos de média em toda a área, é mais que suficiente para estancar a produção de trigo. Além disso, as variedades hoje cultivadas são altamente adaptadas às exatas condições em que são cultivadas. Assim, ainda que fosse teoricamente possível cultivar o trigo, depois da guerra não haveria tempo para reformular a agricultura e desenvolver e plantar variedades ajustadas às novas condições. ARTHUR KUNGLE, JR. (presidente do Library Tree Project): Além dos problemas de suprimento de grãos, o senhor ou os seus colegas consideraram os efeitos das modificações de luz, temperatura e radioatividade nos organismos do solo, nos micorrizos e em diferentes categorias de algas? EHRLICH: Eu prefiro parafrasear a pergunta: consideramos o que aconteceria ao sistema ecológico enormemente complexo existente nos solos? A resposta é sim, consideramos, e estamos convencidos de que haveria uma larga variedade de efeitos. O solo não é simplesmente rocha decomposta. É um sistema vivo, que inclui, por exemplo, os fungos micorrízicos, que desempenham uma função capital no transporte de substâncias nutritivas do solo para muitas árvores. Quando se olha uma floresta, pode parecer que as plantas dominantes são árvores. Na verdade, são micorrizos. Se os fungos micorrízicos morressem, as árvores desapareceriam. Infelizmente, nosso conhecimento dos ecos sistemas do solo é ainda muito precário. A química é muito complexa, a biologia é mal compreendida. Não há dúvida de que haveria problemas, mas ninguém sabe dizer exatamente quais seriam. Esse é um assunto muito sério, e eu desconfio que é um dos aspectos em que os nossos prognósticos foram moderados.

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WARD MOREHOUSE (presidente da Council on International and Public Affairs, Inc.): Mesmo num mundo sem guerra nuclear, muitos biólogos, ao que me consta, estão preocupados com a perda acelerada e aparentemente irreversível das reservas mundiais de material genético. No caso de uma guerra nuclear, qual seria o impacto provável sobre essas reservas genéticas, em que medida elas seriam irreparavelmente perdidas e até que ponto isso afetaria a capacidade dos ecossistemas agrícolas de se regenerarem? EHRLICH: Em nossa opinião, haveria a perda de uma grande parte da variedade genética das plantas de cultivo, obviamente, pela perda de estoques de sementes, e também, se os eventos se estendessem às zonas tropicais, uma enorme perda de variedade. Mas creio que cabe observar que na opinião de muitos - embora neste caso eu fale por mim mesmo - basicamente o que uma guerra nuclear faria em talvez uma hora e meia é o que o Homo sapiens aparentemente está em vias de fazer dentro dos próximos 50 a 150 anos. O efeito de uma guerra nuclear em todas essas frentes é condensar a ação num tempo muito menor. DR. GERALD O. BARNEY (Barney and Associates, Inc.): Para levar o público em geral e os nossos governantes a entenderem a gravidade deste assunto, é importante examinar as coisas com base na hipótese pior. E a sua análise, se bem entendo, aplica-se principalmente ao caso de 10.000 megatons... EHRLICH: Não é verdade. BARNEY: Poderia dizer-nos alguma coisa sobre a variação de caso para caso e de que modo as conclusões a que os senhores chegaram variam de um cenário para outro? EHRLICH: A conclusão básica dos biólogos é que mesmo o cenário de 100 megatons com ataque a cidades, ou o ataque de contra-força

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de 3.000 megatons, teriam conseqüências biológicas incrivelmente desastrosas. O ataque "cirúrgico" de 3.000 megatons, destruindo a agricultura de grãos em grande parte do Hemisfério Norte, poderia, mesmo que nem uma única pessoa fosse diretamente morta ou lesada, produzir uma catástrofe sem precedentes na história da nossa espécie. Alguns números, por exemplo os níveis de radiação, foram tirados do caso de 10.000 megatons porque nos pareceu conveniente apresentar aos biólogos as condições-limite, e alertar os detentores do poder de decisão sobre os riscos máximos plausíveis. Mas, como observado pelo Dr. Sagan e como agora eu quero sublinhar, esses resultados subsistem ao longo de uma ampla gama de cenários. Os detalhes podem variar. Mas, em qualquer cenário, enormes perturbações afetariam os sistemas ecológicos do Hemisfério Norte pelo menos. E isto por sua vez afetaria em grau catastrófico os sobreviventes humanos. Para os biólogos a principal incerteza não é o que aconteceria nas latitudes médias do Hemisfério Norte, mas que proporção desses efeitos invadiria inicialmente as zonas tropicais do Hemisfério Norte e em seguida as do Hemisfério Sul. Dada a maneira como funciona o mundo do ponto de vista biológico, se se considera o comércio de alimentos e outras coisas, os resultados seriam terríveis mesmo sem a propagação dos efeitos atmosféricos ao sul do equador. DR. PETER SHARFMAN (Comissão de Avaliação Tecnológica do Congresso dos Estados Unidos): Aceitando que a sua conclusão mais importante é a contestação da afirmativa do estudo de 1975 da Academia Nacional de Ciências, de que com toda a probabilidade a espécie humana sobreviveria, parece-me ainda assim que o senhor deveria focalizar melhor algumas das variações, como aparentemente fizeram o Dr. Sagan e seus colaboradores. Olhando rapidamente, pois não tive tempo para mais, a família de curvas gerada pelos relatórios TTAPS, noto que algumas delas são fortemente onduladas, e outras mais suaves. Evidentemente faz muita diferença para a agricultura quando o senhor fala de uma guerra no verão, que é provavelmente o pior caso, ou logo após a colheita, que provavelmente é o melhor. E a

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simples afirmativa de que os resultados subsistem para quase todas as variações não é tão convincente quanto seria a análise de alguns efeitos ou ausência de efeitos em algumas das variações mais definidas. EHRLICH: Ninguém disse que não vamos prosseguir aprofundando o assunto. É claro que, estudando mais, provavelmente encontraremos situações em que se 5.000 megatons explodissem numa certa época do ano os efeitos seriam menos graves que se os mesmos 5.000 megatons explodissem em outra época do ano. Por exemplo, uma guerra de inverno pode ter efeitos piores nos trópicos, e os desdobramentos podem ser piores, pois na primavera a agricultura é muito mais sensível que em qualquer outra época do ano. É certo que haverá variações dos efeitos biológicos. O que subsiste é que eles serão terríveis, e que haverá tantos, e de tal modo superpostos, e de tal modo sinérgicos, que é difícil ver em qualquer desses cenários uma situação em que o impacto sobre as populações por intermédio dos sistemas ecológicos não fosse pelo menos tão brutal quanto os efeitos diretos. Eu não estou dizendo que todos os cenários produziriam os mesmos efeitos. Nem poderia dizê-lo, pois os próprios físicos não são ainda capazes de proporcionar-nos todos os detalhes. E ainda que os tivéssemos, o conhecimento de como funcionam os sistemas ecológicos é tão incipiente que previsões detalhadas do que aconteceria se eles fossem perturbados de diferentes maneiras são sumamente difíceis. Afinal, normalmente não podemos realizar experiências - e no caso da guerra nuclear não desejamos fazê-lo. Desconfio que este é um desses casos, tanto em relação a efeitos atmosféricos como a efeitos sobre ecossistemas, em que teremos de nos contentar com generalidades,. pois nestas próximas décadas não teremos resultados mais precisos, se é que os teremos um dia. DR. JACK VALLENTYNE (cientista senior do Centro Canadense de Águas do Interior em Burlington, Ontário): Desejo fazer um

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comentário e uma pergunta. O comentário é que eu acho que muitos aspectos da sua exposição são terríveis, e não acho que o senhor os tenha exagerado. Mas em diversas passagens o senhor empregou os verbos no futuro. E isto implica uma certeza que em realidade não existe. EHRLICH: Mea culpa. Eu tenho esperança de que as coisas não "acontecerão". Espero que, com informações como estas, os povos do mundo se reunirão e encontrarão meios de acertar suas diferenças por maneiras outras que não a de explodir o planeta. É claro que concordo com o senhor. Não devemos usar o tempo futuro. VALLENTYNE: Minha pergunta é que não é para mim intuitivamente óbvio que o ambiente marinho viesse a sofrer conseqüências tão graves. Provavelmente uma grande quantidade de substâncias nutritivas é despejada nele. Existem coisas como os pesqueiros de 16cios no lago Erie que, tão logo cessasse a pesca comercial, voltariam a multiplicar-se. Da mesma forma os do Mar do Norte. Os predadores - os pescadores humanos estariam menos presentes. EHRLICH: Estou de acordo. A recuperação será provavelmente mais rápida nos ambientes marinhos. Mas de imediato eles sofrerão muito com a diminuição da luz, que exterminará o fitoplâncton. É de presumir que o fitoplâncton não será uniformemente eliminado em toda parte. Haverá de reconstituir-se, e alguns dos sistemas recompor-se-ão. É opinião dos biólogos marinhos neste estudo que se perderia um bom número de espécies, ou pelo menos grandes populações, de peixes comerciais. É provável que os sistemas marinhos se restaurassem mais depressa, mas não estariam imunes só pelo amortecimento térmico da água. INTERPELANTE NÃO IDENTIFICADO: Eu gostaria de observar que, se o senhor não vai discutir política, nós teremos de entregar o assunto à Providência divina. E não está certo o senhor impor o seu

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ponto de vista político se nós não vamos discuti-Io. Os pressupostos referentes ao nível de 100 megatons envolvem uma série de questões. EHRLICH: Nós não vamos tratar de política nesta conferência. Mas, pelo que sei, todos os biólogos que participaram deste estudo, sem exceção, e creio que todos os físicos igualmente, têm idéias próprias em matéria de política. Imagino que todos eles teriam muito prazer em discuti-Ias em reuniões apropriadas. Aqui, não pretendemos impor nenhum ponto de vista político. O ataque de 100 megatons a cidades não é uma previsão. O grupo TTAPS fez simplesmente o que os cientistas sempre fazem quando abordam um assunto muito complicado - tomou alguns casos hipotéticos para analisá-Ios de forma mais detida. Este é simplesmente um caso hipotético. Ninguém imagina que haverá uma guerra nuclear em que exatamente 100 megatons (1.000 bombas de 100 quilotons cada) serão distribuídos por exatamente 1.000 cidades como é o caso no cenário. Nem ninguém imagina que haverá um ataque cirúrgico de exatamente 3.000 megatons. Mas para elaborar modelos é preciso partir de algum ponto. Eu, pessoalmente, acho que a equipe TTAPS fez um trabalho brilhante selecionando uma série de modelos que cumprem a função dos modelos em ciência, que é a de proporcionar uma maneira de refletir sobre o mundo, de raciocinar a respeito de questões complexas, com um certo grau de simplificação. Na reunião anterior de físicos e climatologistas que examinaram o estudo TTAPS, basicamente não houve reclamações quanto ao modo como foram escolhidos os modelos, embora tenha havido uma porção de perguntas cuidadosamente formuladas a respeito de outros pontos. Mas ao término da reunião, todos os presentes acharam que o grupo TTAPS realizou um magnífico trabalho analisando com bom senso, embora com recursos limitados, um tema de importância capital, com base num conjunto de modelos perfeitamente razoáveis.

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Mas o emprego dos modelos nada tem a ver com política. Eles estão aí, qualquer um é capaz de entender os resultados, e os condutores da política podem fazer uso deles e tirar suas próprias conclusões. DR ROBERT EHRLICH (Universidade George Mason, Virgínia): Pelo que entendi, os principais danos biológicos são causados pelo frio e pela escuridão. Mas o senhor disse, em sua exposição, que os demais efeitos - em particular a precipitação radioativa, a destruição da camada de ozônio, etc. - também seriam, individualmente, catastróficos para o ambiente. Não é verdade? PAUL EHRLICH: Em graus variáveis. Depende do efeito e do lugar, mas é verdade. ROBERT EHRLICH: Creio que o Dr. Sagan mencionou que o efeito relativo à camada de ozônio é basicamente o mesmo referido no estudo de 1975 da Academia Nacional de Ciências, e que naquele estudo o efeito da destruição da camada de ozônio, ou da fração da mesma que se deduziu seria destruída, foi dado como significante mas certamente não catastrófico. PAUL EHRLICH: Eu não vou argumentar com o senhor a respeito de palavras como significante e catastrófico. Mas não conheço nenhum ecologista que ache possível expor ecos sistemas naturais a um tal fluxo de UV-B e esperar que não ocorra toda uma série de graves alterações, muitas das quais ainda não somos capazes de prever. Esse é um dos efeitos significantes que poderia ser, por si só, catastrófico. DR. ED PASSERINI (Carrying Capacity, Washington, D.C.): O senhor deu a entender que um aspecto favorável era a possibilidade de que algumas árvores de folhas grandes sobrevivessem. Mas nem o senhor nem o Dr. Sagan, embora mencionando frio, escuridão e tempestades

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no mar, falaram muito de chuva. Ora, considerando os perfis de temperatura em função da altitude que temos diante de nós, e a quantidade de poeira que teremos, parece lógico que em pouco tempo haveria lavagem pela chuva. Isto é, que a evaporação dos mares produziria precipitações locais e grande parte das chuvas que normalmente se deslocam para terra não chegariam lá. Os senhores analisaram estes aspectos e qual a sua influência nos efeitos? EHRLICH: Isso foi examinado e discutido. É certo que algumas árvores poderiam mudar as folhas e sobreviver por possuírem reservas, por exemplo. Mas provavelmente seriam castigadas pela seca. Provavelmente seriam afetadas pelo frio. Quando tentassem lançar novas folhas, é provável que estas fossem comidas. Não há garantia de que as árvores sobrevivessem muito tempo. Elas estariam lançando renovos frágeis e delicados num ambiente em que estariam presentes herbívoros inusitados. Pessoas ameaçadas de morrer de inanição lançariam mão de brotos tenros. Ratos e coelhos famintos buscariam alimentos que normalmente não consomem. Além do mais, a vegetação que não morresse pelo frio, pela falta de luz e pela radiação enfrentaria uma atmosfera enfumaçada contendo muitos poluentes fitotóxicos, especialmente nocivos a folhas novas e frágeis. Não cabe muito conjeturar se a W-B desorientaria tantos polinizadores que os ecos sistemas passariam a sofrer sérios distúrbios quando a maior parte das plantas tivesse sido eliminada pelo frio, e o restante pela escuridão e pelo smog. Restariam muito poucos animais e plantas para serem desorientados, cegados, privados de defesa imunológica, queimados, etc., pela UV- B. INTERPELANTE NÃO IDENTIFICADO: O senhor arriscaria um palpite sobre quanto tempo seria necessário, admitindo-se que o homem sobrevivesse, para que se restaurasse uma civilização comparável, por exemplo, à de 5.000 anos atrás? E depois, possivelmente, uma comparável à de hoje? A minha impressão é de que isso levaria da ordem de centenas de milhares de anos, se é que viria a acontecer.

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Não umas poucas gerações, nem mesmo dez gerações. Eu gostaria de ouvir a sua opinião. EHRLICH: Eu diria simplesmente que isso dependeria em grande parte do cenário, e de coisas que nós não sabemos. O que importa, penso eu, para a maior parte dos seres humanos, é que o mundo em que vivemos hoje simplesmente deixaria de existir. Quanto ao que viria substituí-lo e quanto a qual seria o curso da evolução biológica e social, é matéria de adivinhação, e iria depender basicamente de quantos artefatos e que parcela de conhecimentos fossem conservados. Se todos os artefatos, todo o conhecimento e todos os recursos explorados se perdessem, de fato a humanidade teria recuado, em tempo evolutivo, centenas de milhares de anos. E uma nova evolução cultural, se viesse a processar-se, é bem possível que seguisse um curso totalmente diferente. Contudo, se alguns centros importantes de estudo fossem preservados, e se algumas metrópoles organizadas subsistissem no Hemisfério Sul, a cultura humana poderia retornar bem mais depressa a níveis "adiantados". Mas eu diria que há nisso uma boa dose de arrogância e atitude pessoal. Eu vivi entre os esquimós, e poderia demonstrar que em muitos sentidos a cultura deles é bem mais adiantada do que a nossa hoje. INTERPELANTE NÃO IDENTIFICADO: Eu gostaria de fazer uma pergunta a respeito do que muitos considerariam um aspecto secundário do modelo. Nos anos 60 e 70, a maior parte dos estudos sobre ecossistemas naturais não levava em conta a possibilidade de tempestades ígneas, ou a considerava remota - ou que não temos dados suficientes, ou que pouco sabemos a respeito de tempestades ígneas. O senhor comentou que o seu grupo foi cauteloso em relação a esse ponto. E eu gostaria de saber se essa cautela foi a mesma dos anos 60 e 70.

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EHRLICH: Bem, acho que é basicamente um problema de falta de dados. Uma questão de como conduzir a experimentação. Há na literatura tentativas de determinar o volume de combustíveis requerido para produzir uma tempestade ígnea. Há muitas informações coligidas sobre incêndios florestais em termos de aquecimento do solo, etc., e sabe-se que mesmo em ecossistemas de chaparral, que são adaptados ao fogo, em certas circunstâncias, quando o solo é úmido, pode haver perdas importantes de nitrogênio do solo, destruição de sementes, etc. Talvez o que realmente nos falte saber é o que acontece se houver incêndio simultâneo em grandes extensões de território. Ocorreria urna tempestade ígnea em vez de urna propagação de frentes de fogo? Isto, que me conste, ninguém sabe. INTERPELANTE: Mas os melhores exemplos que temos de tempestades ígneas são as explosões de Hiroxima, Nagasáqui e Dresda. EHRLICH: Não, isso não é exato. As observações in loco não foram imediatas nem suficientemente completas em Nagasáqui e Hiroxima. E há controvérsias quanto à exata natureza dos incêndios nesses casos. As melhores observações que temos são de Dresda e Hamburgo, onde havia grandes depósitos de combustíveis e as áreas incendiadas foram relativamente limitadas. Nós tiramos muito poucas conclusões, em relação ao que seria teoricamente possível, dos eventos de Hiroxima e Nagasáqui. Até hoje se discute na literatura a respeito das seqüelas médicas, e se houve de fato uma tempestade ígnea. VICE-MARECHAL-DO-AR J. SALATUN (membro do Parlamento da Indonésia): Pouco depois das bombas de Hiroxirna e Nagasáqui, lembro-me de ter lido nos jornais declarações de cientistas dizendo que nos próximos 75 anos nada cresceria naquelas duas cidades. A história mostrou que estavam enganados, pois um ano depois houve

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colheita de melões, horti-granjeiros e outras plantas. Em face disto, minha pergunta é: qual o grau de precisão das suas conclusões? EHRLICH: Creio que são perfeitamente sólidas. É possível que alguns cientistas tenham feito declarações como essa, se bem que não consigo imaginar em que se teriam baseado, considerando o estado da ciência naquela ocasião. Mas sempre houve cientistas fazendo declarações absurdas, individualmente, em diferentes lugares. No entanto, o que aqui apresentamos representa pelo menos o consenso de um grupo muito grande de cientistas. Há que ter em mente que nada deixa um cientista mais feliz do que mostrar que as conclusões de outros são falsas. Eu tenho grande confiança nestes resultados. Nós os estamos expondo e continuaremos a fazê-Io sob rigorosa crítica científica. Se houver mudanças significativas - o que parece extremamente improvável -, é assim que a ciência marcha. Mas o fato de terem crescido melões em Hiroxima e Nagasáqui depois das bombas não tem muito a ver com a natureza dos efeitos de que estamos falando. THOMAS M. LEVENSON (repórter da revista Discover): Existe um limiar no número de extinções de qualquer gênero, além do qual as extinções se sucederão em cascata ao longo da cadeia alimentar? EHRLICH: Pelo que sabemos com base em modelos de ecossistemas, parece provável que haveria limiares em certas extinções. O problema é que não sabemos onde; não temos como fixar números. Os biólogos ainda não determinaram se existem no planeta entre 2 e 5 milhões de espécies diferentes, ou 30 milhões. Nossa ignorância é profunda. Mas, pelo que sabemos a respeito de sistemas ecológicos, é de supor que haja limiares dessa natureza, e em sistemas menores nós os encontramos. Se certas espécies chamadas fundamentais são exterminadas, segue-se de imediato a extinção de outras espécies na mesma área.

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DR. THOMAS C. HUTCHINSON (Universidade de Toronto): De que ordem seria a acumulação de poeira ou de solo em termos de campo aberto? EHRLICH: A acumulação de poeira no Hemisfério Norte dependeria, entre outras coisas, do padrão dos ventos. Evidentemente haveria uma enorme precipitação de pó em várias áreas, e o pó por si mesmo é muitas vezes biocida, como o senhor deve saber. Esta seria apenas uma agressão a mais que as plantas e os insetos sofreriam.

PAINEL SOBRE AS CONSEQÜÊNCIAS ATMOSFÉRICAS E CLIMÁTICAS

DR. GEORGE M. WOODWELL (presidente da Conferência): Neste momento tenho o prazer de abrir este tópico a novos debates, como parte do processo geral de apressar a difusão e verificação das conclusões. Agora será a vez das perguntas difíceis. O primeiro painel é presidido pelo meu colega Dr. Thomas F. Malone. DR. THOMAS F. MALONE (presidente do Painel sobre Conseqüências Atmosféricas e Climáticas): Em prosseguimento às magníficas exposições gerais proferidas por Carl Sagan e Paul Ehrlich, passaremos a examinar alguns detalhes e embasamentos importantes dessas apresentações. Tendo em vista o impacto quase inacreditável das armas nucleares, vale a pena relembrar que na Segunda Guerra Mundial a arma de maior poder, isoladamente, foi a bomba arrasa-quarteirão de 10 toneladas. Quando a bomba atômica foi lançada em Hiroxima, esse poder explosivo foi multiplicado por mil. A invenção da bomba H elevou a carga útil outras mil vezes. Agora estamos falando de uma arma única de poder um milhão de vezes maior que as empregadas na Segunda Guerra Mundial. É por isso que há conseqüências globais. Está em jogo a sobrevivência da espécie humana. Ao longo

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de bilhões de anos, as espécies da Terra tiveram em média uma duração de 10 milhões de anos. Este é simplesmente um valor médio, e nós já percorremos a metade dele. A pergunta é: será que venceremos mais cinco milhões de anos de modo a cumprir a outra metade? DR. JOHN P. HOLDREN (membro do painel): Não falo como um dos autores responsáveis pelas conclusões apresentadas nesta Conferência, mas como participante convidado, com algum conhecimento de arsenais nucleares, seleção de objetivos e cálculo de precipitações. Gostaria de abordar aqui duas questões que talvez lhes tenham ocorrido. A primeira é se os modelos apresentados constituem uma base verossímil para a análise das conseqüências de possíveis guerras nucleares, dadas as dimensões dos arsenais existentes e o conhecimento disponível de como esses arsenais poderiam ser usados. A segunda questão é se os vários números que ouvimos com referência a doses de radiação oriunda de precipitação radioativa são de fato intrinsecamente coerentes e compatíveis com os calculados por outros analistas. Em 1983 os arsenais mundiais de armas nucleares estratégicas utilizáveis consistiam de 19.000 ogivas, ou cerca de 10.000 megatons (Quadro 1). O termo "utilizáveis" refere-se ao número de ogivas instaladas em mísseis e bombas carregadas em aviões de bombardeio que poderiam ser lançadas se os dois lados utilizassem todos os seus projéteis e veículos transportadores uma única vez. Isto é, recarga de mísseis e vôos múltiplos de bombardeios não são considerados. QUADRO 1. ARSENAIS NUCLEARES MUNDIAIS, 1983 Categoria No. De Ogivas Megatons

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"Estratégicas" utilizáveis EUA 9.800 4.000 URSS 8.600 6.000 Outro 300 200 Sub-Total 19.000 10.000 Teatro, Navais e Reserva EUA 16.000 2.000 URSS 14.000 3.000 Outro 600 150 Sub-Total 30.000 5.000 Totais 50.000 15.000 Nessa categoria, os Estados Unidos têm 9.800 ogivas somando cerca de 4.000 megatons, a União Soviética tem 8.600 ogivas somando cerca de 6.000 megatons. Os números soviéticos incluem os mísseis de médio alcance SS-4, SS-5 e SS-20 apontados para a Europa e para a Ásia, pois essas armas têm funções principalmente estratégicas. Analogamente, os números para os Estados Unidos incluem os bombardeiros supersônicos FB-111 de asas retráteis, que são arrolados na parte estratégica das forças nucleares norte-americanas. Arsenais nucleares menores são mantidos pela França, Reino Unido e China. Embora sejam arsenais modestos comparados aos das superpotências, as megatonagens são ainda menores se lembrarmos que mesmo um conflito na faixa de 100 megatons pode, em certas circunstâncias, produzir as terríveis conseqüências atmosféricas e biológicas examinadas nesta assembléia. A segunda categoria inclui armas nucleares "de teatro", de campo de batalha, de defesa aéreas e navais, bem como as reservas de ambos os lados não-instaladas no momento em sistemas de lançamento. Nesta categoria estão 16.000 bombas e ogivas dos arsenais dos Estados Unidos, totalizando 2.000 megatons, e aproximadamente

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14.000 bombas e ogivas da União Soviética; não temos dados seguros sobre a megatonagem do arsenal de teatro da URSS, mas ela deve ser da ordem de 3.000 megatons. A França, o Reino Unido e a China têm cerca de 600 ogivas com talvez 150 megatons, embora estes sejam números bastante incertos. As somas totalizam aproximadamente 30.000 ogivas e 5.000 megatons nas várias categorias não-estratégicas. Chega-se assim a um total global em torno de 50.000 bombas e ogivas - representando cerca de 15.000 megatons. Ora, neste contexto vemos que o cenário de referência apresentado nesta Conferência nada tem de extravagante. O cenário de referência do relatório TTAPS, de 5.000 megatons, corresponde ao uso de mais ou menos um terço dos estoques mundiais totais, ou cerca de metade dos estoques estratégicos. Está na mesma classe de outros cenários de referência elaborados e usados por outros grupos há vários anos. Por exemplo, o cenário do estudo publicado no número "The Aftermath" da revista Ambio, publicação internacional sobre meio-ambiente da Real Academia Sueca de Ciências (que é de certo modo um precursor do presente trabalho) era de 5.700 megatons. Um conjunto recente de cenários organizados no Laboratório Nacional Lawrence Livermore para análise das mesmas questões adota como cenário de referência 5.300 megatons. Pode-se perguntar se números mais altos que também já foram explorados - por exemplo, 10.000 megatons - são plausíveis, isto é, se há cenários realistas em que se pudessem atingir totais tão elevados. Infelizmente, a resposta é afirmativa. Em circunstâncias adversas, pode-se conceber uma guerra nuclear começando com o emprego de armas nucleares de campo de batalha, ao que se seguiria uma escalada para o emprego de armas de teatro e finalmente para o dos arsenais estratégicos. Se isso acontecesse, as piores circunstâncias poderiam com efeito resultar numa guerra nuclear envolvendo totais da ordem de 10.000 megatons ou mais.

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Planos atuais de "modernização" dos arsenais nucleares estratégicos, se executados, resultarão no aumento do número de ogivas, possivelmente sem aumento da megatonagem total. Nas duas últimas décadas, a megatonagem diminuiu enquanto o número de ogivas aumentava, porque a potência média reduzida das ogivas modernas supercompensa o crescimento do número de unidades. Seja como for, a multiplicação de incêndios produtores de fuligem é mais sensível ao número de ogivas detonadas que à megatonagem total. Outra questão importante que pode ter sido suscitada pela exposição do Dr. Sagan é a da dose de radiação produzida por precipitação. As pessoas podem absorver radiação de fontes externas e internas. Geralmente a dose externa é calculada contando apenas a dose recebida em todo o corpo de fontes externas de raios gama. A radiação também pode ser absorvida pela ingestão de alimentos e água contaminados por substâncias radioativas. O Quadro 2 mostra algumas estimativas de radiação por precipitação tiradas do estudo TTAPS e as compara com números obtidos em outros estudos. QUADRO 2. DOSES DE RADIAÇÃO DAS PRECIPITAÇÕES À MÉDIO PRAZO Dose externa corporal Estudo Área e Tipo de Radiação (rems) _______________________________________________________ TTAPS Hemisfério Norte, Média, só gama 20 5.000 megatons Hemisfério Norte, Médias Latitudes só gama 40-60 Hemisfério Norte, Médias Latitudes Total 100

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Knox, LLNL Hemisfério Norte, Médias Latitudes 5.300 megatons Só gama 20 Hemisfério Norte, áreas críticas Só gama 40-100 Hemisfério Norte, Médias Latitudes, Ataque contra instalações de energia Nuclear +200-300 TTAPS Curto Prazo, 30% da área Continental de Médias Latitudes Maior 500 (Caso exposto por Ehrlich e outros) No cenário de 5.000 megatons do TTAPS, a dose externa corporal de raios gama à médio prazo foi calculada em 20 rems, em média, para o Hemisfério Norte. A dose à médio prazo não inclui a dose a curto prazo proveniente das precipitações isoladas de milhares de explosões nucleares. Representa unicamente a contribuição da precipitação à médio prazo, definida como a que ocorreria no período compreendido entre alguns dias e mais ou menos um mês após o conflito nuclear. A maior parte dos cálculos precedentes concentrou-se ou na precipitação à curto prazo (dentro dos primeiros dias) ou na de longo prazo (mais de um mês depois do conflito) vinda da estratosfera. A precipitação intermediária é produzida pelo material radioativo em partículas elevado à alta troposfera e baixa estratosfera que cai no intervalo compreendido entre alguns dias e um mês depois das explosões. As doses hemisféricas estimadas devem-se à categoria intermediária anteriormente desprezada, e contribuem adversamente para a dose total a que os sobreviventes das explosões e dos efeitos térmicos seriam submetidos. Nas latitudes médias do Hemisfério Norte, ocorreriam precipitações locais à médio prazo muito mais intensas como resultado da

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concentração de explosões nucleares nessa região. O grupo TTAPS estimou que nessas latitudes a dose externa corporal seria de 40 a 60 rems. E, considerando tudo, não apenas a exposição corporal aos raios gama mas também a possibilidade de doses internas fornecidas por emissores radioativos ingeridos com alimentos e água, a dose média total para os habitantes das latitudes médias chegou à faixa de 100 rems. Para efeito de comparação, podemos tomar um estudo recente realizado por Joe Knox no Laboratório Nacional Lawrence Livermore (LLNL). No cenário de 5.300 megatons do LLNL, a dose de radiação gama para latitudes médias do Hemisfério Norte foi de 20 rems, a comparar com o valor de 40-60 rems do estudo TTAPS para as mesmas latitudes. Temos assim uma concordância bastante aproximada, se considerarmos a ampla faixa de disparidades possíveis entre os pressupostos adotados com relação à distribuição das explosões. Os pressupostos dizem respeito ao número de explosões no solo, a baixa altura e a grande altura, à distribuição de potências das bombas, etc. Para mim, esse grau de concordância é bastante expressivo. Ao incluir nos cálculos as áreas críticas do Hemisfério Norte, o grupo de Knox obteve números na faixa de 40 a 100 rems. E, em comunidades informais, Knox e seus colegas do Laboratório Livermore sugeriram que a contribuição das doses internas poderia ser algo maior do que a admitida pelo grupo TTAPS. Isso tenderia a reduzir a talvez a metade a discrepância inicial entre os resultados do TTAPS e os do LLNL com respeito à dose de radiação gama nas latitudes médias do Hemisfério Norte. Finalmente, quero colocar em perspectiva o número a que Paul Ehrlich se referiu ontem ao falar nos estudos dos biólogos. Lembrem-se de que os biólogos consideraram um cenário de 10.000 megatons, e que o número mais alto a que chegaram, 500 rems em cerca de 30% da área continental do Hemisfério Norte, resultou de incluir-se como fator a precipitação a curto prazo oriunda dos penachos. de explosões isoladas. É claro que um cenário de 10.000 megatons

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envolve um grande número de explosões. Esses números são perfeitamente coerentes em método e em contexto geral com os outros números aqui mencionados. Repetindo: tanto os números do TTAPS como os de Knox representam tentativas de calcular não a precipitação à curto prazo dos penachos individuais de milhares de armas detonadas, mas a precipitação a médio prazo ocorrente entre alguns dias e um mês. Esse tipo de precipitação é a que foi mais desprezada em cálculos anteriores. Essa precipitação da escala intermédia de tempo contribui substancialmente para a dose total. Knox e seus colegas calcularam um número terrificante para uma hipótese não considerada no estudo TTAPS. A do que aconteceria se as instalações de força nuclear do Hemisfério Norte - reatores, usinas de reprocessamento e depósitos de rejeitos - fossem deliberadamente alvejados com armas de poder suficiente para vaporizar esses repositórios de materiais nucleares. A resposta é uma contribuição adicional à dose de exposição corporal nas latitudes médias de 200 a 300 rems, o que representa uma cifra realmente atordoante. DR. RICHARD P. TURCO (membro do painel): Tratarei em termos gerais de alguns aspectos dos incêndios produzidos num ataque nuclear. Um dos efeitos mais impressionantes de uma explosão nuclear é a sua capacidade de queimar e carbonizar uma vasta área à sua volta. Cerca de um terço do total da energia de uma explosão nuclear a baixa altura é emitido pela bola de fogo em forma de uma intensa pulsação de "luz de bomba". Sob o aspecto espectral, essa luz é muito semelhante à luz solar, salvo pelo fato de ser altamente concentrada. Por exemplo, a uma distância de 10 quilômetros de uma explosão aérea de 1 megaton a baixa altura, o brilho da bola de fogo atingiria 1.000 vezes o do sol em um ou dois segundos, para em seguida enfraquecer rapidamente. Mas nesse breve intervalo, tecidos, papel e outros materiais irradiados pela luz de bomba seriam calcinados e se inflamariam. A pele exposta sofreria queimaduras de terceiro grau.

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O único emprego bélico de armas nucleares ocorreu em Hiroxima e Nagasáqui em agosto de 1945. Duas bombas relativamente pequenas na faixa de 10 a 20 quilotons de força explosiva - foram detonadas no ar sobre os centros daquelas cidades. O que podemos dizer sobre as características dos incêndios nucleares urbanos com base nas experiências japonesas? Primeiro, as áreas queimadas foram muito extensas: cerca de 13 quilômetros quadrados em Hiroxima e de 7 quilômetros quadrados em Nagasáqui. Dentro das zonas de fogo, a maior parte dos materiais combustíveis foi consumida. Enormes penachos de fumaça ergueram-se acima dos incêndios, e na direção do vento caíram chuvas negras oleosas. Segundo uma narração, em Hiroxima "a temperatura caiu rapidamente em meio à chuvarada, e em pleno verão as pessoas tremiam de frio". Isso sugere que já de início houve um forte efeito sobre a luz e o aquecimento, com sensível queda de temperatura sob o penacho de fumo do incêndio. As fotografias das duas cidades ilustram graficamente a imensa área que pode ser reduzida a cinzas e escombros por uma bomba nuclear mesmo pequena. Em Hiroxima e Nagasáqui, vários efeitos nucleares concorreram para o vulto dos incêndios. A luz de bomba provocou em vários pontos a combustão com ou sem chamas de materiais diversos numa extensa área. O jato de ar da explosão apagou alguns desses focos primários, mas ateou incêndios secundários espalhando detritos incandescentes, derramando combustíveis e produzindo fagulhas. A geração de incêndios em seguida a um terremoto é muito semelhante à geração dos incêndios secundários produzidos por uma explosão nuclear. O pé-de-vento também destroçou estruturas, espalhou materiais inflamáveis e impediu combate eficiente ao fogo causando baixas nas equipes, estrago de equipamentos, ruptura de encanamentos de água e obstrução de ruas. A bola de fogo nuclear em ascensão produziu atrás de si uma tiragem, e a forte circulação assim estabelecida ativou as chamas. Os efeitos observados das explosões nucleares e incêndios no Japão corroboram a nossa concepção das conseqüências de um ataque

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nuclear maciço. É perfeitamente razoável extrapolar a destruição registrada em Hiroxima e Nagasáqui para figurar a produzida num ataque contra uma cidade moderna muito maior. Essa extrapolação também se justifica através de avaliações teóricas detalhadas - efetuadas por órgãos de governo - dos efeitos de explosões nucleares em grandes centros urbanos. Deve-se notar que as tempestades ígneas da Segunda Guerra Mundial em Hamburgo, Dresda e outras cidades alemãs pressagiam a ferocidade dos incêndios nucleares que ocorreriam em metrópoles modernas. Contudo os incêndios prefigurados numa guerra nuclear futura seriam numa escala inédita e muito mais intensos, deixando longe as conflagrações da Segunda Guerra. Há cinco estágios na evolução de um incêndio nuclear urbano. No primeiro estágio, o relâmpago de luz de bomba vaporiza e incendeia matérias inflamáveis numa extensa área. No segundo - o estágio de sopro - a onda de pressão explosiva propaga-se pela cidade, derrubando edifícios, ateando incêndios secundários e criando condições adversas ao trabalho dos bombeiros. Neste ponto a bola de fogo começa a subir, criando fortes correntes de convecção sobre a área incendiada. O terceiro estágio do incêndio desenvolve-se na esteira da explosão. Em meio à devastação geral, muitos dos pequenos incêndios iniciais crescem de intensidade, produzindo densos penachos de fumaça. Há certas dúvidas sobre o curso deste estágio. É possível que, na maioria dos casos, os incêndios continuariam a intensificar-se e a propagar-se, talvez por vários dias. Essa queima destrutiva acabaria consumindo uma grande parte da cidade. Nas cidades mais compactamente edificadas, poderia, ocorrer o quarto e mais espetacular estágio - uma "tempestade ígnea". Nesta, muitos incêndios grandes independentes se fundem numa única e violenta massa de fogo que envolve todo o núcleo da cidade. Numa tempestade ígnea há um rápido desprendimento de energia térmica e um poderoso fluxo de ar acima do fogo, com ventos ao nível do solo soprando impetuosamente para o centro com a força de um furacão.

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As tempestades ígneas criam gigantescos cúmulos sobre a área incendiada. e densas chuvas negras na direção dos ventos. No quinto e último estágio de um incêndio nuclear urbano, só resta o esqueleto abrasado da cidade, coberto por um manto de fumaça acre. Estes são apenas alguns rápidos vislumbres do que poderia acontecer logo após um ataque nuclear. Embora uma grande soma de trabalho já tenha sido aplicada em estimar os efeitos do fogo nuclear, entre outros por Paul Crutzen, John Birks e o grupo TTAPS, é necessário ainda muito mais para apurar a nossa compreensão. Não obstante, todas as informações científicas aqui referidas levam a crer que a inimaginável destruição imediata de um ataque nuclear pode ser apenas um prelúdio de conseqüências retardadas ainda mais catastróficas para os sobreviventes. DR. PAUL J. CRUTZEN (membro do painel): Meu interesse neste assunto começou há cerca de três anos, quando fui convidado a escrever um artigo para a Ambio, a revista internacional de estudos do ambiente da Real Academia Sueca de Ciências. Devo confessar que, ao receber o convite para pôr-me a refletir nas conseqüências atmosféricas de uma guerra nuclear senti uma grande relutância; até tentei passar adiante a incumbência. Mas a editora-chefe, Jeannie Peterson, insistiu em que eu escrevesse a respeito, e eu por fim capitulei e passei a trabalhar no tema, junto com o Dr. John Birks. Começamos, por reexaminar a questão da perturbação do ozônio. Sabia-se pelo estudo de 1975 da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos que haveria empobrecimento de ozônio quando os óxidos de nitrogênio produzidos por explosões nucleares atingissem a estratosfera. Depois disso, porém, viemos a verificar que os óxidos de nitrogênio, embora destruam o ozônio na estratosfera, quando depositados na troposfera têm o efeito oposto, produzindo ozônio. Foi este o primeiro ponto por nós considerado. Quando NO e NO2 entram em ação, a oxidação do monóxido de carbono com duas moléculas de oxigênio dá origem a CO2 e ozônio como produtos finais.

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Isso constituía uma importante modificação em relação ao que se conhecia a partir do relatório de 1975. Tendo conseguido assim alguma coisa sobre que trabalhar, estabelecemos novas estimativas da formação de ozônio na troposfera pelas reações do smog anteriormente mencionadas nesta Conferência. Enquanto esse trabalho prosseguia, voltamos também nossa atenção para a absorção de luz solar pelo dióxido de nitrogênio, que é parte do esquema. Apuramos que os resultados eram significativos. Entretanto, trabalhando nesse assunto, ocorreu-nos de repente que no caso de ataques a cidades, pressuposto no cenário de guerra nuclear elaborado pela Ambio, seriam ateados inúmeros incêndios. O fumo, naturalmente, invadiria a atmosfera. E assim passamos a raciocinar sobre a absorção de luz solar pelas partículas de fuligem negra em suspensão. A idéia ocorreu-nos apenas três meses antes da data aprazada para a entrega do artigo à Ambio. Havíamos levantado uma questão momentosa a respeito da qual tínhamos pouquíssimas informações, elevamos cerca de dois meses à procura de estudos que tratassem do problema. Não encontramos nenhum (sabemos hoje que nada existia na literatura). A princípio isso deixou-nos muito, nervosos. Imaginamos que os militares já deviam ter investigado o assunto, mas que não teríamos acesso às conclusões. Não somos especialistas em física de aerossóis e transferência de radiação; mesmo assim, resolvemos enveredar por esse rumo. Na primeira fase da análise, examinei principalmente um fenômeno de que possuía algum conhecimento: incêndios florestais. Juntamente com alguns colegas, eu andara pesquisando efeitos atmosféricos de incêndios florestais nas regiões tropicais do Brasil. Estimamos a quantidade de fuligem que seria produzida numa guerra nuclear. Para grande surpresa nossa, verificamos que a fumaça e fuligem dos incêndios interceptaria uma grande porção da luz solar que normalmente chega à superfície da Terra. Darei ciência aos senhores de alguns resultados de outro estudo que realizei com o Dr. lan Galbally da CSIRO na Austrália, em que

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procuramos estimar a quantidade de fumaça que seria produzida por incêndios urbanos e industriais. Embora na memória original de Crutzen-Birks esse ponto fosse mencionado como potencialmente de enorme importância, estes novos resultados não constaram daquele trabalho. No novo estudo, o Dr. Galbally e eu consideramos a coagulação e as propriedades ópticas das partículas de aerossol. As partículas que nos interessam são principalmente as da faixa compreendida entre um décimo de micro e um micro. Em sua maior parte, as partículas produzidas por incêndios florestais têm inicialmente cerca de um décimo de micro de diâmetro. Por coagulação, elas aumentam de tamanho. Enquanto não ultrapassam um micro, são eficientes no bloqueio da luz solar; e as partículas dessa faixa de tamanho são as que persistem por mais tempo na atmosfera. Calculando as propriedades ópticas efetivas das partículas em função das suas dimensões (relação entre os tamanhos das partículas e os comprimentos de onda), aplicamos fatores de eficiência medidos para absorção e dispersão da luz. Consideramos também a coagulação de partículas, pois quando estas se agregam tornam-se menos eficientes por grama de material em absorver e dispersar a luz. Ao calcular a quantidade de material que queimaria no caso de incêndios em cidades, admitimos que um pulso de calor de 20 calorias por centímetro quadrado seria suficiente para iniciar incêndios extensos. Pode ser uma estimativa moderada. Coincide com a experiência no caso de Nagasáqui, mas no de Hiroxima um pulso de calor da ordem de apenas 7 calorias por centímetro quadrado foi suficiente para atear incêndios em massa. Nossos cálculos, baseados no cenário de guerra nuclear da Ambio, mostram que mais ou menos meio milhão de quilômetros quadrados de cidades queimariam. Admitiu-se que a massa de matérias combustíveis em cidades fosse da ordem de 40 quilos por metro quadrado. Parece-me que esse valor foi consideravelmente subestimado, pois na maior parte das grandes cidades, pelo menos no leste dos Estados Unidos e na Europa, a massa de matérias

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combustíveis deve ser em torno de 200 quilos ou mais por metro quadrado. Admitiu-se também que só metade do material queimaria, porque o sopro das detonações apagaria incêndios. Como esse sopro também pode atear outros incêndios, esta é uma área de incerteza. Em razão dessa indeterminação, é possível que tenhamos calculado por baixo. Isto reflete uma decisão consciente que adotamos no trato da questão. Mesmo partindo de hipóteses moderadas, os resultados são tão impressionantes que não há risco de exagero, principalmente quando demonstrando a importância de um estudo desse alcance. Nossa intenção era evitar que as nossas estimativas pecassem por excesso. No total, nossa análise mostrou uma produção de 300 a 400 milhões de toneladas de fumaça, das quais 30% seriam de carbono elementar, que absorve fortemente a luz (Quadro 1).

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Nosso estudo indica que na faixa situada entre 30 e 60 graus de latitude norte, onde de início ocorreriam os incêndios (área total de aproximadamente 6 x 10 elevado a 13 metros quadrados), praticamente nenhuma luz solar penetraria. A luz solar ao nível do solo seria menos de um milionésimo da normal. Em seguida, a fumaça seria transportada em grandes extensões, da troposfera, e depois de um mês cobriria a maior parte do Hemisfério Norte. Entrando na atmosfera, as partículas têm uma vida de 10 a 30 dias, e quando alcançam a estratosfera a sua duração é ainda maior, resultando em diferentes graus de transmissão da luz solar à superfície da Terra. Nossos cálculos mostram que ao fim de um mês, considerando uma vida de 30 dias das partículas em suspensão na atmosfera, e também o efeito da coagulação, não mais que 10% da luz solar alcançariam o solo. Com persistência mais curta das partículas, é claro, a quantidade de luz atingindo a superfície seria maior. Mas mesmo nesses casos, de 10 a 20% da luz solar seriam interceptados. Inversamente, se a persistência das partículas em suspensão fosse maior, a situação seria muitíssimo pior. Neste ponto eu encerro a minha intervenção, pois o grupo TTAPS dispõe dos modelos para prosseguir daqui. Eles já apresentaram os seus impressionantes resultados, e com relação a esse trabalho eu nada tenho a criticar. São especialistas de alta competência em pesquisas climáticas, e dispõe dos melhores modelos no campo da radiação. Por isso, suas conclusões devem ser vistas com grande seriedade. DR. GEORGIY S. GOLITSYN (membro do painel): Há cerca de meio ano, pediram-me que refletisse nas conseqüências atmosféricas e climáticas de um conflito nuclear global. Por muitos anos eu me ocupei de estudos planetários e participei nos programas espaciais da União Soviética para Marte e Vênus. Dediquei cerca de um ano e meio ao estudo das tempestades de poeira.

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As tempestades de poeira de Marte originam-se numa faixa bastante estreita, temperada, de latitudes do hemisfério sul do planeta. Em poucas semanas uma tempestade de poeira espalha-se sobre o planeta inteiro. Esse efeito de expansão deve-se principalmente à forte realimentação não linear. A luz solar é absorvida pelas nuvens de poeira, aquecendo a atmosfera no seu interior, ao passo que nas regiões adjacentes a atmosfera é limpa e permanece fria. Em conseqüência, cria-se uma circulação local de mesoscala que concorre para espalhar a nuvem por sobre todo o globo com grande rapidez. O próximo membro do painel irá mostrar como isso atua nos modelos de circulação geral. Mas os modelos devem ser verificados, e eu penso que o exemplo de Marte serve bem para aferir as nossas previsões. O exame dos resultados do estudo, marciano suscitou esta pergunta: Que importância tem isso para a humanidade? Vemos agora que eles servem a uma necessidade básica: têm relação com a nossa sobrevivência. Mostram o que poderia acontecer. Durante uma tempestade de poeira a temperatura cai consideravelmente; isto foi registrado por sondas Viking ao longo de vários anos na superfície de Marte. Com a chegada de uma tempestade de poeira a temperatura baixa entre 10 e 15ºC. Nosso modelo simples mostra claramente essa queda de temperatura. Com o advento de tempestades de poeira, o gradiente vertical de temperatura da atmosfera marciana torna-se muito estável. A atmosfera torna-se quase isotérmica. E isso tem uma profunda influência na estrutura da circulação geral. Com o aumento da estabilidade estática, a chamada instabilidade baroclínica da atmosfera, responsável pela formação de ciclones, é amortecida. Na atmosfera limpa de Marte os ciclones são muito regulares, muito mais regulares que na Terra. Mas quando chega a poeira, os ciclones deixam de existir, em conformidade com a teoria. É de esperar que o mesmo acontecesse na Terra, com a nuvem de fumaça e pó cobrindo o nosso planeta.

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Como foi mencionado por Carl Sagan, eu tenho algumas concepções sobre como e por que uma nuvem dessa espécie poderia influir seriamente no ciclo hidrológico. Esse ciclo é importantíssimo - e não só para nós seres humanos - porque continuamente recicla o suprimento de água da Terra. E é principalmente pelas chuvas que a poeira, fuligem e outros aerossóis são eliminados da atmosfera. No caso da formação de uma nuvem nuclear de fumaça e poeira, o que sucederia ao ciclo hidrológico? Haveria muito maior estabilidade estática - um gradiente quase isotérmico - e até mesmo inversões. Com isso, o ritmo de trocas de água entre a superfície e a atmosfera por efeito de calor poderia ser seriamente afetado. Isto está bem claro, porque a micrometeorologia da camada limítrofe é bem conhecida. Há uma outra observação que eu fiz quando estudava as tempestades de poeira, há uns 10 ou 12 anos. A atmosfera, quando carregada , de partículas pesadas, como poeira, adquire estabilidade adicional porque a poeira é mantida em suspensão pelas turbulências. Deste modo a estabilidade atmosférica é aumentada, reduzindo grandemente as trocas de calor e água com a superfície subjacente. Por esta simples razão, haverá menos umidade absoluta, isto é, menos vapor de água na atmosfera. A atmosfera se aquecerá, como foi demonstrado por Carl Sagan, e como o nosso modelo também mostra. A umidade relativa da atmosfera diminuirá consideravelmente, e as condições necessárias à condensação de gotículas de água estariam praticamente ausentes. As condições de condensação seriam ainda menos favoráveis numa atmosfera densamente carregada de partículas de aerossol. A competição entre os centros de condensação, se os dois primeiros efeitos estivessem operando, impediriam as gotículas de água de atingir as dimensões de gotículas de chuva. Outro efeito climático potencial que me ocorreu relaciona-se com a diferença de temperatura entre os mares e os continentes. Os mares não esfriariam tanto quanto os continentes, e assim se conservariam

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mais quentes que estes. Isto poderia resultar numa circulação do tipo da monção, no caso a monção de inverno. Eu concordo com as pessoas que disseram aqui haver razões para esperar muitas outras conseqüências negativas que ainda não nos ocorreram. DR. STEPHEN H. SCHNEIDER (membro do painel): Eu gostaria de falar-lhes sobre "solidez". É uma palavra que os senhores ouviram várias vezes nesta Conferência, principalmente na sessão de perguntas e respostas. Refere-se ao fato de que os cálculos resistem a críticas. Os senhores também ouviram Paul Crutzen, Carl Sagan e outros declararem que houve em cada um dos elementos grandes incertezas, as quais se traduziram em divergências com respeito a detalhes, mas em concordância quanto aos princípios gerais. "Como é possível?", ouvi várias pessoas murmurarem no auditório. Por isso abordarei esse ponto. Mostrar-lhes-ei também os pressupostos básicos adotados num modelo tridimensional de cálculo que desenvolvemos. Começamos com o nosso modelo de circulação geral, e introduzimos nele um aerossol de fumaça. O valor que aplicamos é de 200 milhões de toneladas métricas, distribuídas uniformemente entre 300 e 700 de latitude norte. Esse valor baseia-se no "caso de referência" do último estudo da Academia Nacional de Ciências, presidido por George Charrier. Essa quantidade de fumaça leva a uma profundidade ótica de absorção igual a três. A profundidade ótica é um valor determinado pela quantidade de partículas em suspensão na atmosfera no trajeto de um feixe luminoso diretamente incidente. Nossa profundidade ótica de absorção de três foi aplicada a uma faixa entre 30 e 70 graus de latitude norte. Se a nuvem de fumaça cobrisse o hemisfério inteiro, a profundidade ótica seria cerca de 1,5. E se certos processos, de que falarei adiante, fizessem a fumaça espalhar-se globalmente sem nenhuma forma de eliminação, a profundidade óptica seria da ordem de 0,7.

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Diria alguém: "Então o que há de sólido? A profundidade óptica parece estar diminuindo muito rapidamente." Mas agora deve-se considerar a quantidade de luz que passaria; é o que se chama transmissão. Como os raios do sol têm uma trajetória oblíqua, o ângulo típico multiplica o percurso dos raios por dois. Assim, para uma profundidade ótica de absorção igual a três entre 30ºN e 70ºN, apenas cerca de 0,2 a 1% da luz do sol atravessaria a nuvem de fumaça no cenário de latitudes médias, o que quase certamente resultaria em escurecimento e frio, como foi dito. Em base hemisférica, passariam cerca de 5% da luz solar, pois no Hemisfério Norte 95% seriam absorvidos pela nuvem de fumaça. Isto é perfeitamente coerente com o cenário de referência do TTAPS. Em base global, 200 milhões de toneladas de fumaça resultam em que a transmissão seria da ordem de 25%, significando que 75% da luz solar seriam absorvidos acima da superfície. Isto ainda implica um distúrbio climático de grandes proporções. Os resultados mostram-se sólidos porque o valor de 200 milhões de toneladas métricas adotado para a quantidade total de fumaça está longe de representar o pior caso; um caso pior pode envolver uma quantidade várias vezes maior de fumaça e pó. Há quem argumente que processos de eliminação e outros fenômenos poderiam reduzir esse valor. No entanto, dada a natureza exponencial da profundidade ótica, fica ainda uma boa probabilidade, pelo menos em extensas áreas do Hemisfério Norte, de que a maior parte da luz solar seria absorvida acima da superfície durante as primeiras semanas depois dos incêndios. O que significam essas profundidades óticas de absorção no cálculo de um modelo de clima? Existem diferenças entre modelos de uma, duas e três dimensões, e o tempo não me permite abordar mais que um ou dois detalhes dessas diferenças. Os modelos unidimensionais usados nos relatórios TTAPS supõem a atmosfera passiva, isto é, que basicamente ela fica como está e irradia energia para cima e para baixo. Introduz-se a fumaça, ou a poeira, e calculam-se as temperaturas com base na troca de energia radiante. O que acontece

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no mundo real, é claro, é que a fumaça e a poeira se dispersarão absorvendo energia solar que modificará as temperaturas atmosféricas, o que, por sua vez, causará uma perturbação nos movimentos da atmosfera, que transportarão a fumaça em diversas direções. Isso pode agravar ou reduzir os efeitos climáticos; isto é, pode produzir realimentação negativa ou positiva dos resultados do modelo de clima. O que agora podemos fazer com o nosso modelo tridimensional é contar apenas metade da história. Podemos introduzir a fumaça, que então perturba os movimentos; podemos observar como os movimentos são perturbados, como isso influi na temperatura e a probabilidade de a fumaça ser transportada para fora da zona de guerra. Infelizmente, nem nós do NCAR (Centro Nacional de Pesquisas Atmosféricas) nem ninguém mais foi ainda capaz de tomar essa fumaça e transportá-Ia de um lado para outro no modelo de modo realista, o que, como eu disse antes, poderia melhorar ou piorar a situação. Falarei agora de alguns resultados de modelo que dão margem a especulações quantitativas com relação a uma e outra possibilidade. Trabalhando com um modelo tridimensional, meus colegas Curt Covey e Starley Thompson e eu consideramos primeiro um caso de julho em que 200 milhões de toneladas métricas de fumaça se distribuíssem uniformemente entre aproximadamente 30 e 70 graus de latitude no Hemisfério Norte. Verificamos que haveria perturbações importantes da temperatura da atmosfera. Haveria altas temperaturas atmosféricas no plano superior da nuvem, e intenso esfriamento abaixo dela, próximo à superfície, nas áreas continentais. A temperatura na nuvem aumentaria da ordem de 80ºC, e o ar abaixo da nuvem ficaria mais frio. Nesse caso a temperatura máxima na alta atmosfera seria de uns 300 graus Kelvin (27ºC) e ocorreria entre 50 e 70 graus de latitude e a uns 8.000 metros de altitude. Também isto é coerente com os resultados do TTAPS, ainda que os números sejam diferentes, porque o nosso modelo é sazonal e tridimensional, levando em conta os efeitos dos ventos, e o TTAPS é um modelo unidimensional, com base em médias anuais e sem efeitos dos ventos.

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Vejamos agora as temperaturas superficiais, ainda para um caso de julho. Temos três ilustrações (Fig. 1). A primeira (t = 0) é o caso de controle, representando as temperaturas normais típicas de um dia de julho. Nas áreas hachuradas as temperaturas são inferiores a 270 graus Kelvin ou menos três graus centígrados. A segunda ilustração mostra o que acontece dois dias depois da injeção de uma nuvem de fumaça entre as latitudes de 30ºN e 70ºN. Há temperaturas de congelamento da água no noroeste dos Estados Unidos, bem como em bolsões na Europa central, no planalto tibetano e numa parte da URSS. O que aconteceu, naturalmente, é que a luz do sol foi em grande parte interceptada e as temperaturas de julho caíram abaixo do ponto de congelamento no espaço de apenas dois dias. A princípio esses resultados nos surpreenderam, até que nos lembramos de que a diferença de temperatura da noite para o dia é da ordem de 5 a 20ºC. Assim, dois dias sem quase nenhuma luz alcançando a superfície da Terra equivalem mais ou menos a quatro noites contínuas; portanto não chega a ser tão espantoso que as temperaturas caiam tão depressa.

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Figura 1: Temperatura superficial no modelo NCAR de perturbação por fumaça: simulação de julho, em três instantes dados. t = 0 dias é o tempo imediatamente anterior à introdução de fumaça na atmosfera. As isotermas são traçadas de 10 em 10 graus K. As áreas com temperaturas inferiores a 2700K (i.e., abaixo do ponto de congelamento da água) são hachuradas. O valor máximo das isotermas na zona tropical é de 300ºK (27ºC). (Fonte: C. Covey, S.H. Schneider e S. L. Thompson, "Global Atmospheric Effects of Massive Smoke Injections from a Nuclear War: Results from General Circulation Model Simulations", Nature, Vol. 308, pp. 21-25, março de 1984.) A terceira ilustração representa a situação 10 dias após a introdução da fumaça na atmosfera do modelo. A essa altura o frio se espalhou e a temperatura caiu bem abaixo do ponto de congelamento em regiões extensas da América do Norte e da Eurásia. Na Europa faz menos frio que no Dia 2, em parte porque a perturbação resultou em ventos mais fortes do mar para a terra, o que tende a reduzir o efeito de esfriamento. Em média, as temperaturas na superfície das terras caem 20ºC em julho, e talvez metade disso no caso de abril. Também usamos o modelo para estudar as alterações dos ventos. Considere-se, por exemplo, o mês de abril (ver Fig. 2). Em condições normais, o ar sobe na faixa do equador e zona tropical, depois inflete para fora e desce nas zonas subtropicais dos dois hemisférios. Essa é a maneira normal, e recebe o nome de circulação tropical de Hadley. Mas 16 a 20 dias depois do aparecimento da fumaça, o comportamento dos ventos seria muito diferente. Daqui a pouco, Vladimir Aleksandrov irá mostrar-lhes uma simulação russa que é bastante semelhante à nossa no NCAR. Em contraste com a circulação normal de Hadley, o comportamento alterado dos ventos de julho, ou de abril, seria como o de um outro planeta. Em razão das mudanças na circulação atmosférica, provavelmente a fumaça subiria nas latitudes médias e em seguida seria arrastada para o Hemisfério Sul. Sem dúvida isto vem reforçar

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quantitativamente certas especulações do ano passado de que a fumaça ou poeira seria carreada para o alto, atingindo a estratosfera e passando para o outro lado do equador. Infelizmente no modelo NCAR a fumaça não interage com os ventos, de modo que é difícil dizer se a nuvem se espalharia mais depressa ou mais devagar do que indicam os nossos mapas de ventos alterados. Também, a resolução do nosso modelo é muito grosseira para permitir uma simulação realista dos efeitos da chamada "mistura de mesoscala", que poderiam remover e dispersar a fumaça em tempos diferentes dos previstos. Nossos estudos também mostram que as mudanças de circulação variam consideravelmente de uma estação para outra. São muito mais pronunciadas em julho e menos em janeiro, embora sejamos levados a crer que uma parte da fumaça poderia ser transportada para fora das latitudes médias do Hemisfério Norte em qualquer estação. É preciso examinar os resultados obtidos de modelos tridimensionais com processos interativos de radiação, remoção e transporte para chegar a um grau razoável de segurança quantitativa. No entanto tudo que até aqui vimos sugere que, embora os detalhes dos diversos estudos atmosféricos das conseqüências de uma guerra nuclear variem, o quadro básico de grave preocupação subsiste. E nós continuamos trabalhando para comprovar com precisão a solidez dos resultados finais. DR. VLADIMIR ALEKSANDROV (membro do painel): Eu gostaria de exibir alguns dos resultados por nós obtidos com emprego de um modelo tridimensional hidrodinâmico de clima no Centro de Computação da Academia de Ciências da URSS. O programa de clima que usamos foi criado alguns anos atrás. O trabalho que vou apresentar foi inspirado pela minha participação num seminário em Cambridge em abril de 1983, promovido pela Conferência sobre o Mundo após uma Guerra Nuclear. Aplicando o cenário TTAPS, nós espalhamos os poluentes - fuligem e poeira - uniformemente sobre o Hemisfério Norte no tempo zero, isto

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é, imediatamente após uma guerra nuclear. A fuligem e a poeira em suspensão absorvem energia, de modo que a nuvem de poluentes se aqueceria; mas embaixo, próximo à superfície da Terra, haveria queda de temperatura. Quarenta dias depois da formação da nuvem de fuligem e poeira (Fig. 3), a temperatura no Hemisfério Norte teria caído em 20 graus centígrados. E ao fim de oito meses, 243 dias após o Dia 0, a baixa de temperatura ainda seria da ordem de 10 graus centígrados. A taxa de declínio, ou o gradiente vertical de temperatura do ar, mostra como a temperatura atmosférica varia com a altitude. Nosso modelo demonstrou que haveria fortes desvios da taxa normal de declínio em seguida a uma guerra nuclear. Isto poderia alterar a circulação geral, suprimindo consideravelmente o movimento vertical da atmosfera. O ciclo hidrológico seria interrompido, impedindo a lavagem natural da poeira e fuligem da atmosfera pelas chuvas.

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Figura 2: Circulação atmosférica no modelo do INCAR para a simulação de abril. As setas indicam a direção do movimento. O tempo médio corresponde aos Dias 16 a 20. A área da carga de fumaça introduzida é indicada pelo retângulo tracejado. São mostrados o caso de controle (simulação sem fumaça) e o caso de perturbação (ensaio de fumaça). O padrão circulatório normal é drasticamente alterado no caso de perturbação (Fonte: S. L. Thompson, V. V. Aleksandrov, G. L. Stenchikov, S. H. Schneider, C.

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Covey e R. M. Chervin, “Global Climatic Consequences of Nuclear War: Simulations with Three-Dimensional Models”, no prelo, Ambio).

Figura 3: A variação das temperaturas do ar na superfície (graus centígrados) com a latitude, do Pólo Norte ao Pólo Sul, nos Dias 40, 243 e 378 após o começo de uma guerra nuclear.

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Figura 4: Circulação atmosférica nos Dias 0 (a) e 297 (b). Figura 5: A mudança de temperatura do ar na superfície no Dia 40. Linhas cheias – temperatura de 0ºC ou menos. Cada isoterma

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representa uma diferença de cinco graus para mais ou para menos em relação à vizinha.

Figura 6: A mudança de temperatura do ar na superfície no Dia 243. As linhas cheias indicam temperatura de 0ºC ou menos. As linhas interrompidas indicam temperaturas acima de 0ºC. Também estudamos a função fluxo; Stephen Schneider já mostrou os resultados análogos do seu estudo. Verificamos que os padrões de circulação geral da atmosfera mudariam drasticamente: mesmo 297

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dias após a injeção da fuligem e poeira (Fig. 4b), os padrões de circulação natural ter-se-iam alterado a um ponto tal que a fuligem e a poeira atmosféricas produzidas no Hemisfério Norte seriam transportadas para o Hemisfério Sul. Assim, a situação do Hemisfério Sul, incluídas as zonas tropicais, seria tão má quanto a do Hemisfério Norte. Num espaço de 40 dias a contar do Dia O (Fig. 5), a temperatura superficial na parte ocidental dos Estados Unidos teria baixado em até 30 graus centígrados, no leste dos Estados Unidos em até 40ºC, na Europa em até 50ºC, no golfo Pérsico em até 50ºC e no Ártico em até 15ºC. Oito meses (242 dias) após a injeção de poeira e fumaça na atmosfera, a temperatura nos Estados Unidos e na União Soviética ainda estaria 30ºC abaixo da normal (Fig. 6). Na Arábia Saudita estaria 20ºC abaixo da normal; na África, até 10ºC abaixo da normal. Ao fazermos esses cálculos, nós não levamos em conta o transporte de fuligem e poeira dos Hemisférios Norte e Sul (embora devêssemos tê-Io feito). Se tivéssemos considerado esse efeito em nossos cálculos, a situação no Hemisfério Sul seria ainda mais séria que a mostrada nas ilustrações. Eu gostaria de ressaltar a importância de um certo efeito que descobrimos quando trabalhávamos nessa simulação. Oito meses depois do surgimento da fuligem e poeira, a parte superior da troposfera torna-se muito quente e altitudes menores muito frias. Em conseqüência, os sistemas de montanhas altas seriam submetidos a um aquecimento intenso: o ar no planalto tibetano ficaria até 20ºC mais quente que o normal, e nas Montanhas Rochosas até 7ºC mais quente que o normal. Isso causaria a fusão da neve e das geleiras das montanhas, provavelmente resultando em enchentes de dimensões continentais - repito, para frisar: de dimensões continentais. Agora voltamos nossa atenção para a dinâmica da função fluxo da circulação geral. Devido às perturbações causadas pela fuligem e poeira, o ramo sul da Célula de Hadley aumentaria de intensidade e Se deslocaria para o sul em 35 dias a contar do Dia 0. Em

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conseqüência, a fuligem e poeira do Hemisfério Norte seriam carreadas para o Hemisfério Sul. Ao mesmo tempo, a intensidade do ramo norte da Célula de Hadley de circulação geral reduzir-se-ia umas 10 vezes. A mesma tendência continuaria até o Dia 70. Até o Dia 105, o padrão da função de fluxo normal estaria completamente alterado. Eu gostaria de frisar que as nossas experiências foram extremamente simples. O meio que estudamos, o ar, é fluido, portanto procuramos calcular como esse fluido reagiria à variação de densidade ótica induzi da pelas conseqüências de uma guerra nuclear. Foi nesta Conferência que vi pela primeira vez as ilustrações apresentadas por Steve Schneider relativas ao trabalho feito no Centro Nacional de Pesquisa Atmosférica. Tive grande satisfação em ver que embora os seus experimentos sejam completamente diferentes dos nossos - os modelos são diferentes e os computadores também - os resultados são basicamente os mesmos.

Perguntas DR. THOMAS MALONE: Este painel mostrou que existem análises científicas amplas e diversificadas que corroboram a apresentação de Carl Sagan. DR GEORGE M. WOODWELL: Estamos todos impressionados pelo caráter óbvio dessas revelações. Ao mesmo tempo que impressionado, sinto-me um tanto curioso quanto ao porquê de não termos sabido isso antes. É raro alcançar uma tal unanimidade entre a comunidade científica, e isto deve significar que estamos tratando de matéria de senso comum. Por que, então, terão sido precisos 38 anos para que essa brilhante e capacitada comunidade científica se pusesse de acordo num tema de tanta importância e magnitude? MALONE: Estávamos à espera de que um Paul Crutzen nos estimulasse as idéias.

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JOHN STEINBACK: Se a temperatura sobe radicalmente, rompendo o ciclo hidrológico, não ocorreria uma acumulação gradual de evaporação na atmosfera? E após um tempo, quando as partículas de pó começassem a assentar, não sobreviriam a certa altura, bem depois do cataclismo, chuvas torrenciais de grande intensidade que desnudariam por completo a vegetação? DR. STEPHEN SCHNEIDER: Eu confio muito pouco nas projeções dos nossos modelos além de uma ou duas semanas, simplesmente porque eles não são interativos: não misturam a fumaça a outras coisas. Portanto, qualquer coisa que eu dissesse seria pura especulação intuitiva. E a resposta intuitiva que eu lhe daria é: "Depende." As temperaturas dos mares não mudariam muito. A evaporação poderia diminuir. Nosso modelo sugere que as camadas inferiores da atmosfera teriam maior umidade relativa, mas menor umidade absoluta, e as camadas mais altas muito pouca umidade e ausência de nuvens. O que aconteceria em relação a chuvas é muito difícil de prever, se bem que, em ocorrendo modificações de tamanha envergadura, quase tudo pode acontecer. DR. ALAN ROBOCK (professor de Meteorologia do Departamento de Meteorologia da Universidade de Maryland): Recentemente, Cliff Mass e eu fizemos um estudo que, penso eu, constitui um bom análogo para o que aconteceria com a nuvem de poeira. Nós examinamos as temperaturas superficiais depois da erupção vulcânica do Monte St. Helens, quando a atmosfera ficou saturada de pó por vários dias. Verificamos que as temperaturas superficiais não baixaram, mas que permaneceram relativamente constantes. As noites foram mais quentes do que seriam sem a poeira, e os dias mais frios do que seria de esperar. Interpretamos o fato como significando que a superfície estava entrando em equilíbrio com a atmosfera saturada de pó, e que, completamente isolada da radiação solar provinda do espaço exterior,

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não esfriava porque era aquecida pela radiação infravermelha da poeira. Eu perguntaria aos elaboradores do modelo: os senhores levaram em consideração a radiação de ondas longas em seus cálculos? Porque se se elimina a radiação de ondas curtas haverá, naturalmente, um efeito de esfriamento. Mas a camada quente de poeira em suspensão deveria produzir um efeito de aquecimento na superfície. SCHNEIDER: Eu gostaria de comentar esse ponto. A situação de pós-guerra nuclear não seria, a meu ver, análoga à do Monte St. Helens. As propriedades dos aerossóis de fumaça nuclear, ao que nos é dado observar, são tais que a opacidade ao infravermelho é uma ordem de grandeza inferior à opacidade à luz visível. Para uma profundidade ótica de 3 a 5 no espectro visível, a profundidade ótica no infravermelho é menos de 1. Por isso a luz solar é bloqueada em grandes altitudes, e a superfície ainda esfria pela irradiação de energia de infravermelho para o espaço através da camada de fumaça. Daí resulta uma inversão progressiva, e esta é a explicação para o esfriamento da superfície. De fato, se houvesse dez vezes mais fumaça, talvez se evitasse um esfriamento pronunciado da superfície, pois se a opacidade da atmosfera ao infravermelho é suficientemente grande, a atmosfera torna-se quase isotérmica, como no caso da nuvem de cinzas do Monte St. Helens. É irônico que, no caso peculiar de um excesso de fumaça, o efeito de esfriamento da superfície poderia desaparecer. (posteriormente, quando parte da fumaça se dissipasse, o esfriamento ocorreria.) Só quando a opacidade visível da fumaça está na faixa de 1 a 10 é que a opacidade ao infravermelho é tão baixa que na verdade deixa de ser um fator importante. Pelo menos é o que mostram os modelos unidimensionais de radiação-convecção. DR. PETER SHARFMAN (Comissão de Avaliação Tecnológica do Congresso dos Estados Unidos): Refletindo a exposição anterior do Dr. Sagan, não consigo perceber de que forma a quantidade de

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fuligem na atmosfera responde a diferentes fatores: número de armas, megatonagem total, ou talvez megatonagem equivalente total; ou percentagem de explosões sobre áreas urbanas, florestas ou silos de mísseis; ou explosões de superfície em silos de mísseis. Alguém do painel poderia explicar como essas coisas se relacionam? DR. RICHARD TURCO: Os valores relativos à quantidade de fuligem são função da potência explosiva total sobre áreas urbanizadas e sobre florestas; naturalmente, isso depende dos cenários. No estudo TTAPS nós levamos em conta um grande número de cenários e uma ampla gama de suposições com respeito a ataques dirigidos a cidades ou arredores de cidades. As emissões de fuligem dependem em alto grau do número de explosões sobre áreas urbanas, as quais contêm a maior concentração de matérias inflamáveis que produzem a fumaça mais escura. Não obstante, explosões sobre florestas e pastagens podem gerar quantidades adicionais de fumaça. Outros fatores importantes são a carga de materiais combustíveis e a probabilidade de queima, e quanto a isto os dados disponíveis são limitados. DR. J. ALLAN KEAST (professor de Biologia da Universidade Queens em Kingston, Ontário, Canadá): Poderia o Dr. Schneider ou o Dr. Aleksandrov pormenorizar o mecanismo de transferência de material do Hemisfério Norte para o Sul? Segundo o Dr. Aleksandrov, uma transferência substancial começaria em cerca de 35 dias. O Dr. Sagan, se bem entendi, mencionou uma diferença de temperatura que afetaria em grau considerável esse movimento. De acordo com o cenário que nos foi apresentado, haveria a formação inicial de uma frente de fumaça no Hemisfério Norte, que em seguida se deslocaria rapidamente para o Sol. Que mecanismo determinaria isso, e o deslocamento não seria de penachos em vez de em massa? ALEKSANDROV: Nossos enfoques iniciais deste problema mostram que a transferência deve refletir-se no modelo elaborado. Embora os resultados possam até certo ponto variar, a variação deve-se a que a

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transferência da nuvem de fuligem e poeira para o Hemisfério Sul produziria resultados bastante diferentes na situação por mim apresentada e na que foi apresentada pelo Dr. Schneider. Portanto é essencial considerar a transferência para o Hemisfério Sul. SCHNEIDER: O cavalheiro da Universidade Queens está absolutamente certo; o mecanismo de transporte que encontramos não é um movimento meridional médio de baixa velocidade. Lembre-se, também, de que o nosso modelo não é interativo. Nós verificamos que o movimento médio em direção ao Sul em abril e julho é da ordem de 3 a 5 metros por segundo no ramo superior da Célula de Hadley alterada, de modo que levaria três semanas para deslocar a fuligem das latitudes médias para a zona tropical se fosse esse o mecanismo de transporte. O movimento médio é o resíduo de muitos jatos pequenos, e esses jatos têm velocidades entre 20 e 50 metros por segundo. Isto significa que feixes ou manchas de fuligem poderiam partir, por exemplo, da costa leste dos Estados Unidos ou da Sibéria e chegar aos trópicos em tempo bastante curto. Nós estudamos feixes a 500 e 200 milibares (cerca de 5 e 12 mil metros de altitude, respectivamente). Aliás, em um dos casos que estudamos, uma mancha de fumaça poderia ter alcançado a Austrália em mais ou menos três dias. É certo que isto não bastaria necessariamente para cobrir de fumaça todo o Hemisfério Sul, mas se grandes nuvens de fuligem fossem transportadas milhares de quilômetros e persistissem ainda que por poucos dias, poderiam resultar quedas bruscas de temperatura no espaço de alguns dias. O quadro geral seria a princípio bastante descontínuo; haveria um grande número de feixes, que acabariam por misturar-se. DR. PAUL CRUTZEN: De início, nas nuvens de fumaça, principalmente na parte superior das nuvens, o aquecimento pela radiação solar seria tão desmedido que se formariam sistemas locais de circulação intensa. Eu calculei uma taxa de aquecimento de 40

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graus por hora na parte de cima das nuvens. Pode-se imaginar o que aconteceria então: a fumaça subiria rapidamente para a alta atmosfera. ALEKSANDROV: Os penachos projetados da nuvem de pó e fuligem podem formar gradientes de temperatura fortemente acentuados, dependendo da latitude. No caso mencionado pelo Dr. Schneider, o quadro será absolutamente tridimensional, e só modelos tridimensionais podem resolver essas questões. DR. MARTIN H. EDWARDS (diretor do Departamento de Física do Colégio Real Militar do Canadá; ex-presidente da Federação Canadense da Natureza): Os que não querem acreditar nos resultados destes estudos irão recorrer ao que esperam seja uma única falha fatal na argumentação, e eu estou certo de que alegarão o fato de já ter havido milhares de testes de armas nucleares. Houve até casos de um único teste produzindo 58 megatons, e não ocorreu nenhum efeito climático catastrófico. Acho que deve ser esclarecida a improcedência dessa crítica potencial, e pediria ao painel que o fizesse. DR. JOHN HOLDREN: Como foi dito várias vezes ontem, os testes realizados, embora somando uma megatonagem bastante considerável, representam eventos isolados e foram todos levados a efeito em condições que não produziram grandes incêndios. Um dos pontos capitais que deve ser repetidamente enfatizado é a fonte primária da diferença entre os cálculos apresentados nesta Conferência e cálculos anteriores. Os novos cálculos levam em conta os incêndios em grande escala e a grande produção de fuligem que, naturalmente, não ocorreu nas circunstâncias de nenhum teste nuclear, mas que ocorreria numa ampla gama de circunstâncias em caso de uma guerra nuclear real.

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DR. JOSEPH ROTBLAT (professor emérito de Física da Universidade de Londres; Conferências do Conselho Pugwash sobre Ciência e Assuntos Mundiais): Que hipóteses foram adotadas com respeito à duração do conflito nuclear? Levaria uma hora, dias, semanas? E qual a sensibilidade do seu modelo à duração do conflito? TURCO: Nossa suposição foi de que uma guerra nuclear duraria um tempo muito curto, da ordem de dias. Embora haja outros conceitos de guerra nuclear, em que o conflito se estenderia por meses, consideramos mais realista supor que a troca de ataques seria bastante breve. O efeito de uma guerra prolongada dependeria da duração absoluta. Se o conflito durasse uma semana, os efeitos óticos e climáticos seriam provavelmente piores porque o material seria mais extensamente dispersado pelos ventos atuantes durante um maior período de injeção. Se o conflito se estendesse por meses ou anos - se é que um tal conceito de guerra nuclear sequer mereça ser considerado -, os efeitos do inverno nuclear seriam possivelmente reduzidos, porque haveria tempo para que nuvens isoladas de fumaça e poeira fossem eliminadas por processos naturais antes que outras fossem injetadas, e não ocorreria a acumulação de detritos. ROTBLAT: Minha observação é que, no seu cenário, 43% das explosões são no ar. Ora, se se começasse por outras armas que produzissem uma certa carga de partículas, especialmente na atmosfera, e depois ocorressem explosões no ar, os produtos seriam aprisionados na troposfera e poderiam resultar ulteriormente numa precipitação atmosférica maior. Também devemos considerar as informações apresentadas pelo Dr. Golitsyn, que podem contrabalançar este aspecto. Os cálculos aqui apresentados dão um nível de radiação secundária de cerca de 50 rads. Esses 50 rads, em raios gama externos, distribuir-se-iam por um espaço de tempo mais longo. Portanto não produziriam sintomas sérios. A taxa de degeneração das células sanguíneas é maior do que a taxa em que seria recebida a radiação.

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Assim, creio que não devemos incluir esse efeito como causa de afecções iniciais. Por quê? Porque há efeitos sérios à longo prazo - efeitos carcinogênicos e possivelmente genéticos. A mim me parece que os efeitos aqui descritos já são tão sérios que a consideração dos efeitos da radiação pouco acrescenta às conclusões. TURCO: O comentário sobre a exposição à precipitação radioativa é justo. Nós só enfatizamos os valores da exposição retardada à radiação porque a sua ordem de grandeza é maior que a anteriormente estimada. Isto faz ressaltar a necessidade de contínua reavaliação e atualização dos efeitos potenciais de uma guerra nuclear. JOHN A. HARRIS (Clube de Roma): Em sua exposição, o Dr. Sagan disse que se A atacasse e destruísse B, A seria apanhado em sua própria rede. Eu gostaria de saber o que o painel pensa a respeito, pois isso tem implicações políticas tremendas, como os senhores obviamente sabem. Também gostaria de saber se os soviéticos pensam do mesmo modo. MALONE: Haverá alguém neste painel que discorde da afirmação de Carl Sagan de que um primeiro ataque seria de fato suicida? Não foi o que você disse, Carl? SAGAN: Alguns primeiros ataques não seriam suicidas. Um primeiro ataque pode não ultrapassar o limiar. Mas a essência da maioria dos cenários de primeiro ataque, como eu os entendo, é neutralizar decisivamente uma fração considerável da capacidade de retaliação do outro lado. De pronto isto sugere o emprego de grande potência explosiva, que excederia o limiar. Há pouco, George Woodwell colocou uma questão importante, pois, pelo que sei, os conhecimentos básicos de física e química necessários à previsão do inverno nuclear já existiam entre 10 e 20 anos atrás. Afinal, existem grandes departamentos nos órgãos de

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defesa dos Estados Unidos e da União Soviética, com verbas de centenas de milhões de dólares por ano, cuja responsabilidade é analisar as conseqüências de uma guerra nuclear. Ademais, é função deles informar ao presidente dos Estados Unidos e ao presidente da União Soviética o que pode acontecer se tais ou quais linhas de ação forem seguidas. É portanto uma boa pergunta, para a qual também eu gostaria de ter a resposta: por que não era tudo isso do conhecimento dos órgãos de defesa 20 anos atrás? SCHNEIDER: Eu gostaria de responder à pergunta sobre se nós do painel concordamos com a declaração de que um primeiro ataque seria suicida. Vários dos doutores meus colegas e eu discutimos este ponto; é o que chamamos de "cenário de feedback de primeiro ataque", em que o atacante é vencedor durante duas semanas, até que a nuvem nuclear de fumaça e poeira volta sobre ele. Mas, naturalmente, a afirmação só vale se a escala do primeiro ataque for suficientemente grande para ultrapassar o limiar de que falamos aqui. Só que não devemos tomar o termo "limiar" muito literalmente, pois não existe uma linha mágica subitamente cruzada quando se passa dos 100 megatons. Como foi dito ontem, os números correspondentes aos efeitos de super-esfriamento baseiam-se em toda uma série de suposições; e se estas forem exageradamente otimistas, o "limiar" para efeitos climáticos sérios pode situar-se abaixo de 100 megatons. Em suma, eu vejo a questão dos efeitos climáticos como um espectro contínuo com probabilidade decrescente de conseqüências agravadas, isto é, quedas rápidas localizadas de temperatura no extremo mais favorável do espectro, e inverno nuclear global prolongado no outro extremo. Mas se a megatonagem total atingir ou ultrapassar as vizinhanças do chamado limiar, e muitas cidades forem atingidas, não há motivo para duvidar que o atacante sofra os mesmos efeitos ambientais de escuridão e frio que o atacado.

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DR. KARL Z. MORGAN (professor-adjunto do Departamento de Física e Astronomia da Universidade Estadual dos Apalaches; antes, do Laboratório Nacional de Oak Ridge): Com respeito à radiação, a ênfase parece ter sido colocada na exposição corporal, talvez em relação direta com a leucemia. Contudo dever-se-ia dar mais atenção às afecções malignas que atacariam órgãos específicos, como os pulmões, o cólon e a tiróide. Eu gostaria de comentar outro ponto relativo à radiação. Ouvimos várias vezes que a dose letal para 50% dos indivíduos expostos (LD50) seria em torno de 400 a 450 rems. No entanto, havendo lesão do sistema imunológico ou do sistema reticular do endotélio, há bons motivos para crer que a LD50 seria por volta de 50 a 100 rems. Por enquanto há poucos dados em relação ao homem; só há registro de 10 casos de morte por síndrome de radiação, e num desses casos, a dose estimada de radiação foi de menos de 200 rems. HOLDREN: Eu gostaria de frisar que o objetivo central do trabalho apresentado nesta Conferência não foi analisar as conseqüências relativamente imediatas de altas doses de radiação, tendo sido este um dos aspectos mais exaustivamente estudados da guerra nuclear em pesquisas precedentes. Os novos valores no tocante à exposição à radioatividade surgiram mais ou menos como um resultado inesperado do estudo dos efeitos retardados. Foi o cálculo da precipitação à médio prazo, em particular, que concorreu para valores de dose total maiores que os anteriormente estimados. Um estudo detalhado da adição da precipitação à médio prazo às conseqüências já bem estudadas da precipitação imediata exigiria uma grande soma de trabalho. Eu concordo que as questões que o senhor levantou devem ser examinadas. E acrescentaria que as doses de radiação são importantes no contexto deste estudo, não apenas em termos de efeitos diretos no homem câncer, alterações genéticas, etc. - como são de alto interesse para o ecologista, em termos de conseqüências para os sistemas ecológicos de doses de radiação na faixa de

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dezenas e centenas de rems atuando em grande escala e em vastas extensões. Há muitos detalhes a serem estudados no futuro. No entanto transcenderia os fins deste estudo inicial entrar nos pormenores deste tema. SRA. MYRTLE JONES (Sociedade Audubon de Mobile Bay): É com grande satisfação que vejo o comparecimento dos soviéticos aqui e sua participação neste evento. Minha pergunta é: seria possível uma conferência desta natureza na Rússia, com pessoas das mais diversas profissões discutindo este tema? E haveria a possibilidade de os seus governantes e os nossos e os governantes da China e da Inglaterra se reunirem em tomo de uma mesa, serem cientificados destas descobertas e chegarem a soluções razoáveis? DR. GEORGIY GOLITSYN: Em maio último tivemos em Moscou uma conferência semelhante a esta, em que várias conseqüências - biológicas, climatológicas e sócio-psicológicas - foram debatidas. Os trabalhos foram divulgados nas Atas da Academia de Ciências de setembro. SRA. JONES: Em inglês? GOLITSYN: Por enquanto só em russo, mas eu tenho comigo algu mas cópias, caso alguém se interesse. Imaginei que poderiam ser traduzidas neste país.

PAINEL SOBRE CONSEQÜÊNCIAS BIOLÓGICAS DR. GEORGE M. WOODWELL (presidente do Painel sobre Efeitos Biológicos): Em se tratando de problemas complexos como estes, que afetam a Terra inteira, e em que a experimentação e a própria coleta de dados são difíceis, requerem-se equipes de especialistas e equipamentos complicados para incrementos aparentemente

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insignificantes de progresso. Num mundo cada vez mais complicado, cada vez mais intensivamente explorado, é essencial que haja muitas dessas equipes realizando pesquisas redundantes. É esse o custo do uso intensificado da biosfera: pesquisa e análise constantes de modo a assegurar que as informações fundamentais, as idéias, os fluxos de perguntas e respostas se mantenham, e a evitar surpresas, como estamos fazendo no momento. A matéria é tão nova para os biólogos quanto para os meteorologistas. A comunidade científica está criando um começo, uma nova partida para um Grande Problema. Nós congregamos um grupo de cientistas ilustres para iniciar esse processo. DR. JOHN HARTE (membro do painel): Todos nós dependemos dos ecossistemas que nos cercam como um doente em tratamento intensivo depende de frascos de soro e equipamentos médicos de sustentação de vida. Empreender uma guerra nuclear seria como atirar uma banana de dinamite acesa numa unidade de tratamento intensivo, rompendo as ligações vitais que garantem a sobrevivência. Entre as funções essenciais de sustentação de vida exercidas por um meio ambiente natural normal e saudável está a regulação do ciclo hidrológico, que minimiza a ocorrência de chuvas excessivas e secas prolongadas; um exemplo são as encostas revestidas de vegetação, que moderam as enxurradas e abrandam a correnteza dos rios. Outra dessas funções é a minoração da poluição do ar e das águas e o tratamento de resíduos sólidos por processos naturais atmosféricos e microbiais. Uma terceira é a moderação do clima, de novo exemplificada pelo papel das grandes reservas de vegetação viva, capazes de criar um micro-clima essencial à sua própria existência. Nos primeiros três a seis meses após uma guerra nuclear, estas e outras funções ecológicas seriam virtualmente suspensas. A perda de um ano de produção agrícola será discutida por outros oradores. Quanto a mim, quero abordar vários aspectos relacionados à água e em seguida tecer alguns comentários gerais sobre as perspectivas de restabelecimento à longo prazo de funções ecológicas prejudicadas.

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Ao tomar conhecimento, ano passado, dos resultados do estudo TTAPS com respeito às baixas violentas de temperatura superficial, ocorreu-me que os reservatórios de água doce que abastecem as populações humanas e os animais de criação ficariam congelados. Meus cálculos mostraram que haveria a formação de uma camada de gelo de aproximadamente um metro nas águas superficiais de regiões interiores. Sem combustível nem eletricidade para derreter o gelo ou bombear água de poços para a superfície, muitas pessoas e animais de criação morreriam de sede. Os níveis reduzidos de precipitação pluviométrica previstos agravariam o problema. Nesse contexto é oportuno observar que os sinergismos parecem trabalhar a nosso favor nas situações normais, e voltar-se contra nós quando nós e a natureza sofremos uma debilitação. Outro exemplo disto: com as canalizações congeladas, não haveria o escoamento dos dejetos, exacerbando o problema das epidemias, já agravado pela redução das resistências às moléstias e infecções induzida pela radiação. O efeito de um período de escuridão prolongada em organismos aquáticos foi estimado através de experiências em meu laboratório e de modelos matemáticos elaborados pelos Drs. Chris McKay e Dave Milne. Os dois tipos de pesquisa produziram resultados semelhantes. Cadeias alimentares compostas de fitoplâncton, zooplâncton e peixes devem sofrer grandemente com a extinção da luz. Com apenas alguns dias de escuridão, o fitoplâncton - base da cadeia alimentar - morreria ou entraria em estado de vida latente. Na zona temperada, em cerca de uns dois meses no fim da primavera ou no verão, e em três a seis meses no inverno, os animais aquáticos mostrariam drásticos declínios de população, que para muitas espécies poderiam ser irreversíveis. Essas estimativas (baseadas na redução da luz) provavelmente subestimam as conseqüências para a vida marinha das condições de pós-guerra nuclear, pois não levam em conta os efeitos térmicos, nem os do aumento de turbidez das águas provocado pela erosão das costas e pela deposição de fuligem e poeira. A sensibilidade da vida marinha à escuridão prolongada seria provavelmente maior nos trópicos do que na zona temperada, porque

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nos trópicos as reservas nutritivas são menores e as necessidades metabólicas maiores. Nas regiões polares, onde a adaptação a invernos escuros é uma condição de vida, a sensibilidade seria reduzida. Os lagos de água doce tornar-se-iam altamente anóxicos depois que a poeira assentasse e a temperatura subisse. Grandes quantidades de resíduos orgânicos, inclusive cadáveres em decomposição, tornariam letal a água de abastecimento. Há poucas razões para pensar que as principais formas de vida aquática que hoje nos servem como fontes de alimento viessem a sobreviver a uma guerra nuclear de primavera ou de verão em número suficiente para serem de proveito para o homem, pelo menos nos primeiros anos do pós-guerra. Anos depois da guerra, a capacidade de sustentação de vida do meio terrestre estará ainda grandemente reduzida, ainda que os níveis de luz e temperatura estejam próximos das condições de antes da guerra. A favorabilidade do clima local, a arabilidade do solo, a constância e qualidade da água e a disponibilidade de recursos gênicos seriam seriamente degradadas pelos meses de condições extremas que se seguiriam à guerra. A destruição de extensas áreas de vegetação pelo fogo ou pela escuridão resultaria em condições locais alteradas de clima e de solo que muito dificilmente seriam propícias ao replantio. Com muitos de seus inimigos naturais exterminados, pragas de insetos frustrariam as tentativas de retomada da produção agrícola, como o faria a erosão do solo nas terras escalvadas e desprotegidas. A radiação ultravioleta provavelmente persistiria como agressão ecológica por bem mais de um ano. Seriam os poucos sobreviventes restantes capazes de restabelecer com os ecossistemas sustentadores de vida as ligações vitais necessárias à sobrevivência? Esse restabelecimento só poderia ocorrer depois de recuperados os ecossistemas, e somente se os remanescentes da sociedade fossem capazes de mobilizar a organização social e a tecnologia requeridas para a exploração dos ecossistemas restaurados. O tempo necessário para que ocorresse a segunda condição é difícil de estimar, mas certamente seria no

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mínimo tão longo quanto para a primeira, pois sem ecossistemas que assegurem as necessidades básicas da vida, é impossível uma sociedade tecnológica organizada. Provavelmente a restauração dos ecossistemas devastados exigiria não menos de um decênio - estimativa baseada na experiência de ecologistas com dados tirados de exemplos históricos de ecossistemas muito combalidos. Sendo a recuperação tão demorada, o mais provável é que a pequena população humana remanescente continuaria a minguar, aumentando assim as probabilidades de extinguir-se por completo. DR. OWEN CHAMBERLAIN (Universidade da Califórnia em Berkeley): O senhor sabe se existem planos para testar a sensibilidade do fito-plâncton às mudanças de temperatura? HARTE: Os únicos planos de que tenho conhecimento, pelo menos para o futuro próximo, são planos de examinar os efeitos da escuridão prolongada. Os efeitos das mudanças de temperatura na vida marinha não são de tão grande interesse em vista da grande capacidade térmica dos oceanos, que impediria oscilações maiores na temperatura das águas oceânicas. INTERPELANTE NÃO IDENTIFICADO: Os senhores examinaram a possível proliferação de bactérias, fungos e organismos inferiores, bem como de insetos? HARTE: Isso deverá ser feito. Muitos ecologistas estão hoje interessados em estudar essas questões experimentalmente. Pelo menos com respeito a pequenos organismos, como o plâncton e os fungos, pode-se iniciar esse estudo no laboratório. Espero que isso venha a acontecer futuramente, mas por ora não posso anunciar resultados sobre efeitos de escuridão prolongada em organismos do solo.

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DAVID MCGRATH (diretor-adjunto da Global Tomorrow Coalition em Washington, D.C.): Até aqui ninguém mencionou especificamente a questão de se a ausência de fotossíntese por um período longo reduziria de forma apreciável a quantidade de oxigênio na atmosfera, e quais as conseqüências disso. HARTE: Isso não nos preocupa muito. Os números sugerem que as variações do oxigênio, bem como do dióxido de carbono (C02), seriam insignificantes. São efeitos de importância terciária, por isso não nos empenhamos muito em analisá-los. WOODWELL: Eu os promoveria a secundários. DR. JOSEPH A. BERRY (membro do painel): Minha incumbência aqui hoje é examinar algumas das bases técnicas da previsão de que a fotossíntese seria fortemente inibida em escala global pelas condições da atmosfera do pós-guerra. E eu gostaria de lembrar-lhes que, como foi salientado repetidamente nas exposições, a fotossíntese constitui o principal suprimento de energia química à biosfera e a principal força motriz para a operação dos ecossistemas naturais e cultivados. Para que se dê a fotos síntese, duas coisas são basicamente necessárias. Primeiro, a luz tem de penetrar até a superfície da Terra, onde as plantas estão localizadas. E, segundo, a luz deve ser absorvida pelos pigmentos fotossintéticos das plantas em condições, sob outros aspectos, favoráveis. Vejamos a pergunta: de que modo a redução da luz que penetra a atmosfera afetaria a fotossíntese? Muitas experiências demonstraram que a fotossíntese total de florestas e culturas é proporcional à intensidade da luz recebida (Fig. 1). Mesmo em dias normais, a fotossíntese varia com a luz, atingindo o seu máximo ao meio-dia com céu limpo e decrescendo em períodos nublados e de manhã ou de noite. A soma total de fotossíntese num dado intervalo de tempo é proporcional à soma total de luz recebida. Segue-se que uma redução de luz causaria uma redução proporcional do total de fotossíntese. Essa relação não leva em conta o fato de que

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as plantas têm de manter-se a si mesmas e produzir excedentes que sirvam de alimento para o homem ou forragem para os animais.

Figura 1: A fotossíntese total de plantas cultivadas (expressa sob a forma de energia equivalente dos produtos formados, em watts por metro quadrado) é proporcional à energia luminosa absorvida. Estes dados são de algodoais, medidos em condições de campo num dia típico de verão sem nuvens. (Reproduzido de Baker e outros, Crop Science 12: 431 [1972].) Em geral, requerem-se pelo menos 15 a 20% da fotossíntese total diária para suprir a demanda respiratória das plantas. Em ecossistemas complexos, que compreendem grandes quantidades de biomassa permanente e muitos consumidores neles encerrados, como

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é o caso das florestas tropicais úmidas, essa fração ainda é maior, correspondendo quase à fotossíntese total. Sendo a fotossíntese total proporcional à luz, se a intensidade da luz se reduz a 15 ou 20% da normalmente recebida, a produtividade liquida das plantas cultivadas cessará. E em florestas úmidas cessará mesmo antes disso. Naturalmente, isso importa na interrupção do crescimento de brotos, frutos e sementes, que são as partes mais nutritivas e comestíveis das plantas. Sendo as plantas consumidas pelos animais, a biomassa vegetal poderia ser drasticamente reduzida por um período extenso de escassez de luz. Quando os níveis de iluminação voltassem ao normal, haveria menos biomassa para absorver a luz e portanto menos fotossíntese até que a cobertura vegetal fosse restabelecida. Outro fator a influenciar a densidade da biomassa vegetal é o frio extremo que segundo as previsões se seguiria a um conflito nuclear, já que as baixas temperaturas podem lesar ou mesmo matar as plantas (Quadro 1). Existem no mundo regiões térmicas muito diferentes, e as plantas dessas regiões têm sensibilidades correspondentes a baixas temperaturas. As plantas tropicais, por exemplo, vivem em áreas onde raramente ou nunca ocorrem temperaturas de congelamento, e estas podem matá-las. Em áreas de invernos rigorosos, os gomos dormentes das plantas, quando convenientemente pré-condicionados, toleram temperaturas de até -80ºC. Em qualquer habitat, a tolerância das plantas à temperatura corresponde de modo geral às temperaturas mais baixas passíveis de ocorrerem neste habitat (ver Fig. 2). É provável que as temperaturas no ambiente de pós-guerra cairiam abaixo das mínimas normais. E é provável que as baixas temperaturas matassem as plantas, especialmente nas áreas em que o frio não é um fator ecológico normal. Nos habitats mais frios, o efeito das baixas temperaturas dependeria de estarem as plantas em hibernação ou em seu estado ativo de verão. As folhas ativas das plantas de qualquer região são muito sensíveis às baixas temperaturas. Temperaturas de 4 ou 5ºC já podem afetar seriamente o desempenho de plantas tropicais.

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Espécies de coníferas nativas em regiões alpinas podem ser prejudicadas no verão, quando estão crescendo ativamente, por temperaturas de -10ºC. Assim, numa guerra de verão, em que essas espécies experimentariam um rápido declínio de temperatura, é provável que suas folhas fossem lesadas, deixando menos biomassa disponível para continuar a fotossíntese quando a luz voltasse ao normal. O que aconteceria com a fotossíntese em base mundial nos anos seguintes a um conflito nuclear? A produtividade fotossintética do mundo tem sido provavelmente muito constante ao longo do tempo geológico, mais ou menos 5% do valor de 100%. No primeiro ano, em razão da forte redução da luz que alcança a superfície da Terra, é de prever que a produtividade fotossintética do Hemisfério Norte cairia para uns 10-20% da normal. Muito provavelmente, a que restasse ocorreria nos trópicos. No segundo ano, embora a luz, a força motriz essencial da fotossíntese, tivesse re tomado, a biomassa - as folhas das plantas, as algas do oceano - seria menos densa, donde absorveria menos luz e operaria menos fotossíntese. Com isso, tenho a impressão de que a fotossíntese não se restabeleceria tão depressa quanto a luz. A continuação de baixas temperaturas e a presença de luz ultravioleta (UV-B) também retardaria o desenvolvimento de folhas e algas. Imagino que a cobertura vegetal e a fotossíntese acabariam por voltar aos níveis normais de antes da guerra, levando talvez entre uma e algumas décadas. É muito difícil prever como se apresentariam finalmente os ecossistemas contendo essa biomassa.

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DR. THOMAS C. HUTCHlNSON (Universidade de Toronto): Supõe-se que todas as plantas que existem no momento estariam no lugar, prontas para recuperar-se? BERRY: Não é o que se supõe. É claro que se todas as plantas estivessem aí e prontas para recuperar-se, a perspectiva seria de que a fotossíntese retornaria em pouco tempo aos níveis anteriores, já que a previsão é de que a luz se restabeleceria bastante rapidamente no segundo ano. Acho que basicamente a demora na recuperação do potencial fotossintético é na verdade a demora na restauração da cobertura vegetal na superfície da terra. HUTCHINSON: O senhor sugere então que haveria uma demora de uns quatro anos no restabelecimento de uma cobertura vegetal? BERRY: Sim, mas isto é uma simples conjetura. Depende do grau em que as plantas fossem afetadas no primeiro ano. MARK A. HARWELL (membro do painel): Esta Conferência concentrou-se nas conseqüências de médio e longo prazos de uma guerra nuclear, com atenção especial para as novas e surpreendentes análises das alterações climáticas previstas para o caso de uma guerra nuclear em grande escala e para as óbvias e inevitáveis catástrofes biológicas que adviriam de tais agressões à biosfera global. Uma vez percebidas a natureza e a magnitude das conseqüências atmosféricas, foi fácil para o grande grupo de ecologistas e biólogos que se reuniu em Cambridge em abril de 1983, para uma discussão preliminar dessas questões, concordar com o que diz respeito às conseqüências biológicas correspondentes. Esse consenso foi apresentado aqui por Paul Ehrlich e detalhado no artigo composto por um comitê biológico, que trata das conseqüências retardadas e indiretas em particular. Minha intenção aqui não é repetir esses relatos, mas enfatizar alguns pontos referentes à interação

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homem-ecossistema e apresentar uma breve descrição geral dos impactos totais sobre o homem, pelos efeitos imediatos de detonações nucleares e no período mais longo subseqüente a uma guerra nuclear, com base numa série de análises a que procedi nos últimos meses. Primeiro, quero assinalar as íntimas vinculações que existem entre o homem e o meio. Praticamente toda a vida da Terra depende em última análise da luz solar para obter a energia que passa através dos sistemas ecológicos e impulsiona a multiplicidade de fluxos de matéria necessários à manutenção dos organismos vivos. As plantas e os animais são essencialmente máquinas movidas à energia solar, inclusive a espécie que mais nos interessa, o Homo sapiens. O homem depende dos sistemas ecológicos para a maior parte das suas funções de conservação. Em primeiro lugar, é claro, estão o alimento e a água incontaminada. Também são essenciais abrigo, energia, melhoramento do clima, purificação do ar, controle de pragas e doenças e uma série de outros serviços. Há que fazer distinção entre dois tipos de ecos sistemas - naturais e manipulados. Estes são principalmente os sistemas agrícolas, mas também compreendem outros sistemas de manipulação de recursos como as florestas e os minerais. Em geral, esta classe pode ser definida de modo aproximado como sistemas de base biológica que são diretamente controlados pelo homem e pelos sistemas societários. Eu faço essa distinção pelo seguinte: hoje a população do mundo é de mais de 4,5 bilhões. Embora possa não haver consenso entre os ecologistas e outros quanto à capacidade de carga da Terra para sustentar a espécie humana mediante ecossistemas naturais e manipulados, uma coisa é certa: a capacidade de carga dos ecossistemas naturais, por si sós, é muito inferior à população humana atual. Quer dizer, os ecossistemas naturais simplesmente não podem sustentar 4,5 bilhões de caçadores-colhedores; não há o que caçar ou colher em quantidade bastante para alimentar tantos indivíduos - mesmo com ecossistemas sadios. Os sistemas biológicos manipulados que sustentam os seres humanos dependem totalmente da sociedade humana organizada para

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manutenção e reforço. Obviamente, um sistema não produzirá alimentos se o homem não suprir as sementes, o cultivo, os adubos e em muitos casos a água, além de várias outras atividades que mantêm produtivos os ecos sistemas manipulados. Além disso, mesmo com produção adequada de alimentos, a população humana não poderia ser abastecida sem uma extensa rede de sistemas de transporte e distribuição. O problema é que esse apoio humano aos sistemas manipulados deixaria de ser operativo após uma guerra nuclear da escala considerada nesta Conferência. Assim, após uma guerra nuclear, o homem perderia o sustento dos sistemas manipulados mesmo sem as agressões climáticas e outras até aqui mencionadas. Os sobreviventes humanos seriam obrigados a recorrer ao mundo natural em busca de um nível de sustento que a Terra não poderia fornecer mesmo em condições saudáveis, justamente quando os sistemas naturais estariam padecendo distúrbios sem precedentes. Em suma, os sistemas naturais hoje só poderiam sustentar uma pequena fração da população do mundo; depois de uma guerra nuclear, esses sistemas não estariam em boa forma, e sua capacidade de prover às necessidades humanas estaria drasticamente reduzida. Um tópico relacionado diz respeito às vinculações entre o homem e o meio depois de passado o pior, isto é, nos anos subseqüentes ao inverno nuclear do que falamos. Dependendo de quanto se tenha reduzido o nível de população humana, e de até que pontos os sistemas ecológicos tenham regredido, é provável que a recuperação humana não possa operar-se mais depressa que o ritmo de recuperação dos sistemas naturais, e a dependência acrescida do homem em relação a esses sistemas naturais pode levar a um retardamento dos processos de recuperação. Para dar apenas um exemplo, um grupo de sobreviventes famintos poderia despojar sistemas ecológicos da sua energia excedente a custo captada para crescimento, reprodução, reservas nutritivas, etc., dessa forma retardando os processos naturais requeridos para o restabelecimento e recuperação dos ecossistemas.

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Já foram mencionados os problemas que seriam encontrados pelos sobreviventes que tentassem recorrer aos ecossistemas costeiros para sustento. Foi dito que as regiões costeiras seriam batidas por tempestades de grande violência, produzidas pelo acentuado gradiente de temperatura entre as massas de ar continentais e marítimas; elas receberiam um quinhão desigual de radionuclídeos e destruição de habitats por várias razões, entre as quais: porque as áreas urbanas localizam-se predominantemente em regiões costeiras; devido às táticas de barragem da guerra anti-submarina; e porque os estuários ficam a jusante da maioria dos sistemas e recebem uma parte desproporcionada das águas de escoamento. Acresce que os ecossistemas marinhos são particularmente vulneráveis tanto às reduções de luz como aos aumentos de UV-B, o que poderia resultar na devastação da base alimentar do fitoplâncton. Concluiu-se que essas perturbações, conjugadas à insuficiência de energia e de barcos para pesca ao largo, indicam pequena capacidade de sustentação do homem depois de uma guerra nuclear. A questão agora é que com os ecossistemas terrestres as coisas não seriam muito melhores. Por exemplo, praticamente todos os sistemas de água potável nas áreas continentais do Hemisfério Norte congelariam por completo, a profundidades de 1 a 1,5 metro. E seriam cobertos por precipitação de radionuclídeos, fuligem e substâncias tóxicas, de modo que água de beber para os seres humanos e outra biota seria escassa. Além disso, quando finalmente viesse o degelo, haveria enchentes de grandes proporções, possivelmente agravadas pelo aumento de temperatura que ocorreria à médio prazo em regiões de montanha, como sugerido nesta Conferência por Aleksandrov da URSS. Entre outros fatores, haveria um impacto desproporcionado nos componentes comestíveis das plantas terrestres. Por exemplo, o solo congelado inutilizaria tubérculos e raízes. Frutos, bagas e brotos não seriam produzidos em condições de pouca luz e baixas temperaturas. Assim, praticamente toda a biomassa permanente dos ecossistemas terrestres seria constituída por compostos de celulose. Infelizmente,

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os seres humanos não podem consumir nem digerir troncos de árvores. Tal como o homem, a maior parte dos outros vertebrados terrestres sofreria mortalidade em massa. Suas carcaças congeladas só temporariamente forneceriam alimento aos homens. As populações animais, ao se restaurarem, provavelmente seriam dizimadas para servir de alimento tão rapidamente quanto se reproduzissem, mantendo muito baixos os níveis de população, já que os humanos despenderiam quantidades incomuns de energia na obtenção de carne. Somente as espécies capazes de multiplicação rápida reconstituiriam em tempo curto as suas populações; mas estas são as espécies nocivas, que não se prestam a fornecer energia e que trazem consigo uma série de influências negativas, entre elas a propagação de doenças. Mesmo sem outras formas de intervenção humana, a recuperação de ecossistemas poderia levar mais tempo do que à primeira vista pode parecer. Perda de solos e substâncias nutrientes, perda de sementes, efeitos continuados de UV-B acrescida, temperaturas relativamente baixas com possível redução de chuvas, exposição continuada ao ozônio, a radionuclídeos e a outros fatores adversos, tudo isso tenderia a retardar a recuperação. Reações à longo prazo a alguns anos de luz e temperatura alteradas poderiam resultar em menor produtividade florestal e alterações nas composições de espécies durante dezenas de anos. Numa palavra, os ecossistemas terrestres não proporcionariam sustento fácil aos sobreviventes. Vejamos agora um panorama das baixas humanas causadas por efeitos diretos e indiretos de uma guerra nuclear. Um estudo recente da Organização Mundial de Saúde prevê 1,1 bilhão de mortes e 1,1 bilhão de lesões diversas em todo o mundo como decorrência de explosões e outros efeitos imediatos. O estudo da Ambio indicou três quartos de bilhão de casos fatais em toda a Terra. Meus colegas e eu analisamos em maior detalhe os efeitos na população americana. Utilizando um cenário muito semelhante ao proposto pela Ambio de uma guerra nuclear representativa em grande escala, envolvendo

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aproximadamente 5.700 megatons de energia total, eu considerei os efeitos de um ataque combinado de contra-força (i.e., contra objetivos militares) e contra-valor (contra alvos civis e industriais) aos Estados Unidos, em que todas as áreas urbanas de mais de 100.000 habitantes e a maior parte das instalações militares e principais concentrações industriais fossem alvejadas. Preparei um diagrama sintético dos efeitos resultantes (ver Quadro 2). As mortes produzidas pelas explosões poderiam atingir de 50 a 80 milhões de americanos, de uma população em risco (i.e., dentro das áreas urbanas atacadas) de 110 milhões, com mais 30 milhões de feridos graves em conseqüência de explosões. A exposição direta à radiação infravermelha e as queimaduras resultantes poderiam matar outros 1 a 15 bilhões, e de 1 a 7 milhões poderiam morrer nos incêndios e tempestades ígneas nas áreas urbanas. A radiação ionizante inicial não aumentaria o número de mortos e feridos, pois para as armas consideradas no cenário (100 quilotons a 1 megaton de potência cada) as áreas letais determinadas por explosão e radiação térmica excedem aquelas em que os nêutrons rápidos e raios gama das detonações nucleares seriam fatais; os que em outras condições morreriam por radiação inicial aguda já estariam mortos. No entanto a precipitação local poderia matar entre 12 e 18 milhões de pessoas que tivessem sido expostas no primeiro dia, e mais 40 ou 50 milhões seriam expostas a níveis mortais de precipitação nos dias e semanas subseqüentes. No total, uns 125 a 170 milhões de americanos morreriam no nosso cenário de referência, e mais 30 a 50 milhões sofreriam lesões exigindo cuidados médicos, tudo isso pelos efeitos imediatos e diretos das detonações. Portanto, restariam entre 10 e 75 milhões de americanos e entre 2 e 3 bilhões de habitantes do mundo para enfrentar o inverno nuclear e os anos seguintes. A maior parte dos outros efeitos relacionados no citado Quadro 2 (i.e., a prazo mais longo e por mecanismos indiretos) já foi referida neste livro e não será repetida aqui. Alguns outros aspectos devem ser comentados.

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A poluição do ar poderia produzir efeitos dilatados; por exemplo, o estudo TTAPS prevê concentrações médias de ozônio durante vários meses, nas latitudes médias, de 150 partes por bilhão em volume, próximas dos níveis que em exposições de apenas duas horas causam lesões evidentes à maior parte das espécies vegetais. A escassez de alimentos resultante do inevitável colapso dos sistemas agrícolas, da paralisação dos sistemas de transporte e distribuição e da incapacidade das plantas cultivadas de sobreviver às alterações de clima poderia levar à morte pela fome centenas de milhões ou bilhões de pessoas em todo o mundo. Isto abarcaria não apenas as nações diretamente envolvidas na guerra, como também países distantes do conflito direto mas fortemente dependentes das exportações de alimentos da América do Norte. A demora no restabelecimento de agroecossistemas, devida a impedimentos físicos e societários, teria grandes reflexos no ritmo de recuperação das populações humanas durante muitos anos depois de uma guerra nuclear. Os sistemas médicos também deixariam de existir, como declarou a organização dos Médicos pela Responsabilidade Social, e pouca ou nenhuma assistência restaria para os milhões de indivíduos afetados. Com o passar do tempo, grandes surtos de moléstias contagiosas matariam milhões, especialmente nas primeiras fases do pós-guerra, quando as pessoas se aglomerariam em abrigos para proteger-se das intempéries, da radiação e de bandos de outros indivíduos, numa ocasião em que sistemas sanitários e água incontaminada teriam virtualmente desaparecido. Com isso, ocorreriam principalmente doenças entéricas. Mais tarde, alastrar-se-iam epidemias e pandemias veiculadas por animais transmissores, como peste bubônica e hidrofobia. Finalmente, um fator importante para os sobreviventes humanos seria a tremenda sobrecarga psíquica que afetaria a todos em todo o mundo. Concomitantemente, haveria o colapso dos sistemas societários em geral, na medida em que a civilização organizada deixaria de existir, e em que a espécie humana, reduzida ao nível do indivíduo ou de pequenos grupos, seria lançada de repente num

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mundo de condições extremamente hostis, em que estaria em competição sem precedentes por recursos drasticamente reduzidos. É quase impossível prever que condutas os sistemas societários iriam adotar, mas sem dúvida nenhuma a competição intensa por recursos limitados imporia à espécie um conseqüente tributo adicional. O quadro evidente que resulta dessas considerações é que o mundo de pós-guerra nuclear seria um lugar inóspito para a maioria ou para a totalidade dos homens da Terra. Uma guerra nuclear de qualquer categoria que não a mais limitada constitui não simplesmente uma guerra entre os combatentes, mas uma guerra contra a biosfera e contra todos os seus habitantes humanos. As conseqüências humanas dificilmente se restringiriam às mortes imediatas nas proximidades das detonações; ao contrário, uma guerra nuclear afetaria fundamentalmente todos os seres humanos existentes e todas as gerações previsíveis que se seguissem, se, aliás, o Homo sapiens não chegasse ao estado irreversível da extinção. WOODWELL: Os efeitos aqui descritos como produto inevitável de quase qualquer uso hostil de armas nucleares constituem não apenas uma transformação fundamental do habitat do homem, como uma transformação do habitat de todos os organismos da Terra, uma transformação radical e irreversível da biosfera. Nós não conhecemos nenhum outro lugar onde ocorra vida - não há vida em Vênus, nem em Marte, nem em Júpiter, nem na Lua - em parte alguma. As circunstâncias físicas de cada um desses vizinhos mais próximos da Terra estão muito além dos limites compatíveis com a sustentação da vida, em cada um deles por motivos diferentes. E está claro agora como seria fácil libertar na biosfera uma quantidade de energia suficiente para modificar radicalmente a Terra, limitando, e talvez eliminando, grandes segmentos da biota. Que espécies de transformações ocorreriam de início? O que sobreviveria? O que desapareceria primeiro? Nós pensamos no homem como ocupando na biosfera um posto dominante. No entanto a sua agricultura cobre não mais de 10% da

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superfície das terras; o resto do planeta é constituído por comunidades naturais, afetadas mas não manipuladas pelo homem. A biosfera é fortemente influenciada por essas comunidades. Por exemplo, o teor de dióxido de carbono da atmosfera foi e continua sendo modulado, talvez determinado, pelo menos dentro de certos limites, pelo metabolismo das florestas. Em todas as concepções de como a biosfera opera, as florestas têm papel preponderante; são elas a principal vegetação da maior parte da porção da Terra habitada pelo homem; elas contêm de duas a três vezes mais carbono do que a atmosfera; são elas o principal reservatório de diversidade biótica em termos globais. As florestas oferecem um foco apropriado para a compreensão do caráter das alterações bióticas que seriam de esperar. Qual seria esse caráter? O que representariam tais alterações para o homem, se a essa altura ele ainda existisse? Apesar da falta de experiência direta, é possível inferir como seria esse mundo. Paul Ehrlich sugeriu que extinções seriam comuns. Extinção, é claro, significa a eliminação de uma espécie - a eliminação do pool gênico. As extinções são irreversíveis; geralmente ocorrem quando o habitat é drasticamente alterado. A experiência, pelo menos nesse contexto, é limitada. Que espécies são vulneráveis? Quais são resistentes? Se o homem sobrevivesse, como se apresentaria o mundo? Alguns exemplos podem ser usados como base de dedução. Entre elas, as devastadoras deformações da paisagem produzidas pela fusão de minérios de cobre e outros em Copperhill no Tennessee, em Palmerton na Pensilvânia e em Sudbury no Ontário. Mas um dos estudos mais pertinentes e mais facilmente interpretados é uma análise, ao longo de 15 anos, das mudanças provocadas numa floresta de carvalhos e pinheiros na região central de Long Island, Estado de Nova York, por exposição crônica a radiação ionizante. A exposição variou de alguns milhares de roentgens por dia a níveis residuais, que são de menos de 1/10 de roentgen por ano no meio normal. Exposições de alguns roentgens por dia produziram alterações drásticas na floresta. Essas alterações, embora produzidas

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por radiação ionizante, uma agressão incomum na maior parte da biosfera, foram semelhantes às observadas em outras partes em resposta a gradientes de exposição a condições climáticas extremas, como na transição de floresta para tundra, e à poluição, como em Sudbury e outros lugares. Tais alterações são hoje reconhecidas como causadas por uma larga gama de perturbações; constituem o que chamamos de empobrecimento biótico. Em termos hemisféricos, e talvez globais, os princípios gerais do empobrecimento biótico, definidos principalmente nesses exemplos, aplicar-se-iam após praticamente qualquer uso de armas nucleares numa guerra. O estudo de Long Island, realizado no Laboratório Nacional de Brookhaven, tinha por fim examinar os efeitos ecológicos da radiação ionizante. Uma fonte potente de raios gama, que são semelhantes aos raios X, foi colocada no centro de uma floresta cuidadosamente escolhida. No primeiro ano da experiência determinou-se o padrão de alteração em torno da fonte. Nos anos seguintes as alterações simplesmente tornaram-se mais pronunciadas e o círculo de danos, maior. A floresta foi afetada sistematicamente. As árvores em geral mostraram-se mais vulneráveis; o pinheiro, Pinus rigida, de todas as espécies era a mais sensível, mas pinheiros e carvalhos foram eliminados em conjunto, deixando intacta uma comunidade de arbustos, ervas e gramíneas, musgos e líquens. Com exposições mais altas foram eliminados os arbustos lenhosos; depois as ervas e gramíneas; e com exposições ainda mais altas só restaram certos musgos e líquen. E no interior de cada um desses grupos houve uma seleção; as formas de menor corpo e crescimento mais lento mostraram-se mais resistentes. Líquens crustáceos resistiram mais que as formas eretas folhosas e fruticosas. Os princípios gerais extraídos dessa experiência e de outras similares com empobrecimento biótico sistemático são simples mas importantes. Em geral, as espécies mais vulneráveis a qualquer tipo de alteração crônica ou aguda do habitat são as de grande corpo e ciclos reprodutivos longos. As mais resistentes são as de pequeno

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corpo e alto potencial reprodutivo. Neste grupo reconhecemos espécies que competem eficazmente com o homem e lhes damos o nome de "pragas". São as ervas daninhas e os insetos dos jardins, as espécies de beira de estrada e de outros locais cronicamente perturbados. Todo meio crônica ou intensamente perturbado é sujeito a esse padrão de alteração - e no nosso mundo existem hoje muitos desses locais. O olho exercitado percebe constantemente ao nosso redor essa contínua sucessão de transições. Uma guerra nuclear acarretaria uma série de transições quase inimagináveis. Num mundo de pós-guerra as espécies pequenas e de multiplicação rápida seriam grandemente favorecidas; as grandes se extinguiriam. O homem é vulnerável a essa espécie de mudança; são-no igualmente a maior parte dos mamíferos, as árvores, muitos arbustos e muitas plantas superiores. As mais resistentes são as formas inferiores: bactérias, fungos, certos musgos, líquens, algas e protozoários. As florestas seriam raras nesse novo mundo, inicialmente destruídas em grandes extensões por explosões, fogo e radiação, e mais tarde, em escala continental, pela escuridão e pelo frio prolongado. É difícil exagerar a gravidade do desastre, mas é provável que em alguns bolsões as florestas fossem preservadas e sobrevivessem indivíduos de uma diversidade de espécies: refúgios, talvez. A questão é vasta, fundamental e premente, e requer análises muito mais profundas. Mas, a este primeiro exame, os efeitos possíveis estendem-se muito além dos limites dos estudos objetivos correntes da ecologia e entram num novo domínio, suficientemente incerto para levar a supor que as extinções previstas nessa onda de empobrecimento venham a incluir, pelo menos potencialmente, o Homo sapiens. DR. THOMAS EISNER (membro do painel): Inicialmente, minha intenção, como último expositor deste painel, era apresentar um sumário das conseqüências biológicas de uma guerra nuclear. Mas isso seria repetitivo, tendo em vista o que foi dito pelos que me

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antecederam. Portanto, vou falar de dois pontos específicos, e terminar fazendo um apelo. O primeiro ponto diz respeito à conceituação de uma grandeza. Qual a dimensão do arsenal nuclear do mundo, perguntam-nos com freqüência, e como é possível "sentir" essa magnitude? Vamos expressá-lo assim. A bomba de Hiroxima tinha um poder explosivo (equivalente de TNT) de 13.000 toneladas. Sabemos o que a bomba fez, pois vimos as fotografias. O estoque nuclear estratégico do mundo, em contraste, tem um poder explosivo potencial de mais de 13.000 megatons. Quer dizer, nós temos hoje a capacidade de desencadear o equivalente a um milhão de Hiroximas. Tentem imaginar o que isso significa. Suponham que eu começasse a largar bombas do tamanho da de Hiroxima, uma de cada vez, a partir deste momento, à razão de uma por segundo, 60 por minuto, 3.600 por hora. Quando acabariam as minhas bombas? A resposta espantosa é: 11,6 dias. Para esgotar o arsenal mundial nas 48 horas de duração desta Conferência, eu precisaria lançar as minhas bombas num ritmo ininterrupto de seis por segundo! Não admira que uma guerra nuclear - mesmo uma guerra limitada em que menos da metade do arsenal do mundo fosse detonada - deva produzir uma catástrofe de amplitude inaudita. Meu segundo ponto diz respeito ao grau em que nós, os biólogos que participamos desta Conferência, concordamos com as conclusões aqui expressas. Repetidamente têm-me perguntado no curso destes trabalhos se nós estamos de acordo com os prognósticos dos físicos especialistas em atmosferologia, e se as nossas opiniões coincidem em todos os aspectos relativos às implicações biológicas dessas previsões. Em primeiro lugar, deve ficar claro que não existem divergências quanto aos efeitos à curto prazo de um conflito nuclear, isto é, quanto aos efeitos das explosões, do fogo e da radiação, que num conflito de 5.000 a 10.000 megatons devem resultar em mais de um bilhão de mortes imediatas e em número igual de feridos graves. E, segundo, deve ficar clara a nossa convicção de que um "inverno nuclear", com todo o seu cortejo de calamidades biológicas, é sem

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dúvida nenhuma uma perspectiva bem real como decorrência de uma guerra nuclear. Estamos convencidos de que um período prolongado de temperaturas glaciais e baixos níveis de iluminação, conjugado à exposição acrescida a radiação ionizante e ultravioleta, pode destruir o sistema de sustentação biológica da civilização, com certeza no Hemisfério Norte e possivelmente, pelo extravasamento dos efeitos climáticos e biológicos, em áreas não alvejadas do Hemisfério Sul. Embora estejamos de acordo nos pontos principais, alguns de nós conjeturam se não estaríamos subestimando os efeitos biológicos. Sinergismos e efeitos em cascata são uma conseqüência comum de rupturas ambientais, e tendem a ser imprevisíveis e só verificáveis a posteriori. O que é previsível em matéria de conseqüências biológicas de uma guerra nuclear já é bastante mau; não seriam as conseqüências reais ainda piores? Por 40 anos nós permanecemos na ignorância da possibilidade de um inverno nuclear. O que mais nos terá passado despercebido? Chegaremos a ver a extinção da espécie humana como conseqüência inevitável de uma guerra nuclear? E a essa altura, com a contínua escalada das armas, não teremos avançado para ainda mais perto do abismo? O apelo que quero fazer é simples. Há muitos anos tenho pensado na guerra nuclear, mas não me pareceu que a questão devesse suscitar o meu envolvimento direto na qualidade de biólogo. Tenho-me ocupado de conservação, e como ecologista e naturalista entusiasta, tenho dedicado meu tempo a iniciativas educacionais e a esforços de preservação da Terra. Agora dei-me conta de que o impacto de uma guerra nuclear é abrangente e fundamentalmente biológico. Daí o meu apelo, que quero estender aos eleitores americanos que alguns anos atrás me nomearam presidente da AAAS (Associação Americana para o Progresso da Ciência), bem como aos biólogos de todo o mundo. Já não creio que um único biólogo possa permanecer isento de envolvimento na questão da guerra nuclear. Não importa qual a especialidade ou quais os cursos ministrados, o envolvimento se impõe, pois tanto a especialidade como os cursos relacionam-se inevitavelmente a algum aspecto das conseqüências biológicas de

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uma guerra nuclear. Nas suas aulas e nos seus escritos, os biólogos têm de manifestar-se. O que ficamos sabendo sobre o inverno nuclear precisa ser divulgado, e a preocupação expressa nesta Conferência tem de ser transmitida ao mundo inteiro. Só pelo esclarecimento poderemos impedir o "escurecimento" nuclear. A questão não é de confronto político, mas de sobrevivência biológica. O inimigo não é a União Soviética, nem os Estados Unidos, mas as próprias armas nucleares.

A CONEXÃO MOSCOU UM DIÁLOGO ENTRE CIENTISTAS NORTE-

AMERICANOS E SOVIÉTICOS DR. THOMAS F. MALONE (presidente): A Conferência sobre o Mundo após a Guerra Nuclear é uma iniciativa científica que visa reunir conclusões existentes e novas sobre os efeitos atmosféricos e climáticos globais à longo prazo de uma guerra nuclear e suas conseqüências para a vida. Os organizadores da Conferência evitaram rigorosamente extrair quaisquer implicações políticas das suas conclusões. Nosso objetivo é esclarecer questões e não advogar tal ou qual ponto de vista. Todos os participantes deste programa entendem e concordam que a Conferência não é um fórum para discutir linhas de ação ou temas de política. Um compromisso semelhante está subentendido nesta troca de pareceres entre Cientistas reunidos em Washington e em Moscou. Comigo na tribuna estão o Dr. Carl Sagan, astrônomo e cientista espacial da Universidade Cornell; o Dr. Paul Ehrlich, ilustre biólogo da Universidade Stanford; e o Dr. Walter Orr Roberts, meu velho amigo, astrônomo, meteorologista e ex-presidente da Associação Americana para o Progresso da Ciência. Essa comunhão de preocupações entre cientistas e entre a comunidade científica e o público é mais um passo num processo que começou há mais de um ano em Roma, quando os líderes científicos

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do mundo fizeram em uníssono esta declaração: “A partir de 1945 a natureza da guerra mudou tão profundamente que o futuro da espécie humana, de gerações ainda por nascer, está em risco". O debate das questões científicas relevantes terá prosseguimento brevemente em Estocolmo, sob os auspícios do Conselho Internacional de Uniões Científicas. Agora tenho o prazer de apresentar um velho amigo, o acadêmico Yevgeniy Velikhov, vice-presidente da Academia de Ciências da URSS. VELIKHOV (em Moscou): Está aqui comigo hoje o Dr. Yuri Israel, membro correspondente da Academia de Ciências da URSS e diretor do Comitê de Hidrometeorologia e Controle do Ambiente. Quero apresentar também o acadêmico Alexander Bayev, especialista em biologia e genética molecular e secretário do Departamento de Fisiologia Bioquímica, Biofísica e Química da Academia de Ciências da URSS; e Nikolai Bochkov, acadêmico da Academia Médica de Ciências e diretor do Instituto de Genética da Academia de Ciências da URSS. Agora gostaríamos de ouvir o Dr. Carl Sagan, do outro lado do Atlântico. SAGAN: Fui incumbido de recapitular as conclusões físicas e climáticas do estudo apresentado no início desta Conferência, estudo esse realizado juntamente com meus colegas Drs. Turco, Toon, Ackerman e Pollack, e conhecido como TT APS, iniciais dos autores. Nós investigamos uma série de conseqüências de diversos cenários de guerra nuclear. Por exemplo, analisamos o perfil atmosférico da estratosfera e da troposfera (ver Fig. 1A, p. 43). O material injetado na estratosfera por uma explosão nuclear precipita muito lentamente; o injetado na troposfera precipita mais rapidamente. Assim, explosões de armas nucleares de alta potência transportam poeira na bola de fogo ascendente e no penacho da nuvem em cogumelo e elevam-na à estratosfera, donde ela precipita lentamente, ao passo que armas

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nucleares de baixa potência introduzem poeira na troposfera, donde ela precipita com relativa rapidez. Se uma guerra nuclear resulta na queima de cidades e florestas, partículas finas partículas de fumaça, fuliginosas, muito escuras - entram na baixa atmosfera. Essa combinação de poeira levantada por explosões nucleares de alta potência e fuligem de cidades e florestas incendiadas por detonações aéreas de qualquer potência produz, segundo os nossos cálculos, um manto de material em suspensão que escurece e esfria acentuadamente a Terra. A estrutura do que era anteriormente a troposfera seria profundamente alterada. Entre os cenários que estudamos há o caso de referência de uma guerra de 5.000 megatons, em que a temperatura no interior dos continentes cai abruptamente em poucas semanas a algumas dezenas de graus abaixo do ponto de congelamento da água, e leva meses para retornar às condições ambientais (ver Quadro 1, p. 49). Outro cenário considerado foi um ataque só de contra-força de 3.000 megatons, em que não há queima de cidades. É um ataque bastante modesto no contexto das doutrinas estratégicas modernas. Nesse cenário a temperatura baixa uns 7 ou 8 graus e leva cerca de um ano para voltar ao normal. Uma queda de 7 a 8 graus na temperatura global já é suficiente para destruir a produção de trigo e milho dos Estados Unidos, Canadá e União Soviética, e por si só representaria urna agressão extremamente desastrosa ao meio do planeta. Também estudamos alguns casos bem piores. Talvez o fato mais interessante a surgir foi que um ataque de 100 megatons, em que armas de centenas de quilotons sejam detonadas sobre áreas metropolitanas, pode produzir fumaça suficiente para provocar sérias catástrofes climáticas com a duração de muitos meses. Além do escurecimento e da queda de temperatura, uma guerra nuclear teria outras conseqüências. Haveria gases tóxicos produzidos nos incêndios de cidades. Haveria a radioatividade, que em grandes áreas do Hemisfério Norte atingiria níveis perigosos para o homem - 100 rads ou mais. E quando a fumaça e a poeira se dissipassem,

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haveria o fluxo de radiações ultravioleta da faixa UV-B aumentado de duas a quatro vezes, dependendo do total de energia liberada. Tendo em mente as indicações recentes de que também o Hemisfério Sul seria gravemente afetado, concluímos que após uma guerra nuclear, ainda que em escala relativamente reduzida, haveria um conjunto de agressões simultâneas de magnitude sem precedentes. contra a biosfera (ver Quadro 2, pp. 55-56). O limiar para produção dos efeitos climáticos situa-se de modo muito aproximado em torno de mil armas nucleares detonadas, dependendo principalmente da estratégia de seleção de objetivos. Sabemos que os arsenais estratégicos somados dos Estados Unidos e União Soviética superam de muito - cerca de 17 vezes - esse limiar. Sabemos agora que desde o começo dos anos 50 os dirigentes das duas nações têm tomado decisões sobre os negócios mundiais na ignorância das conseqüências climáticas possivelmente funestas do emprego de armas nucleares. E agora percebemos pela primeira vez que as conseqüências de uma guerra nuclear poderiam ser absolutamente arrasadoras para países muito afastados do conflito. Note-se, finalmente, que essas conclusões são apoiadas por uma ampla série de estudos, tanto nos Estados Unidos como na União Soviética. Agora passo a palavra ao Dr. Paul Ehrlich, ilustre professor de Biologia da Universidade Stanford. EHRLICH: É meu desagradável dever informar-lhes algo que imagino não constituirá surpresa para os meus colegas da União Soviética, a saber, que um grupo muito grande de proeminentes biólogos nos Estados Unidos, inteirado dos cenários que o Dr. Sagan acaba de descrever, chegou a urna conclusão unânime sobre as conseqüências para os sistemas biológicos. Tal unanimidade é rara em nossa ciência aqui, e estou certo de que na dos senhores também. Estamos falando do que acontece após uma guerra nuclear, depois que as bombas explodiram e causaram talvez um bilhão de mortes imediatas. O que acontece é que os sobreviventes - os sobreviventes humanos, assim como as plantas e os outros animais do planeta - são

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submetidos simultaneamente a uma série de agressões sem precedentes. A temperatura cai algumas dezenas de graus, descendo abaixo do ponto de congelamento, mesmo no verão; se a guerra ocorrer no inverno, as baixas temperaturas prolongam-se pela primavera. Ao mesmo tempo, a luz solar é bloqueada, de modo que a fotossíntese é reduzida ou eliminada. Os níveis de radiação alcançam valores suficientes para matar coníferas em grandes extensões, que podem chegar a 2% da área continental do Hemisfério Norte. Depois uma névoa tóxica - uma camada venenosa de poluição do ar - espalha-se por todo o Hemisfério Norte. Quando os efeitos atmosféricos começam a dissipar-se, quando avança o processo de remoção da fuligem, a Terra é inundada por um fluxo de luz ultravioleta, de UV-B. Assim, a base da produtividade do planeta, pelo menos no Hemisfério Norte, terá sido acometida por uma série de agressões, cada uma delas extraordinariamente deletéria. É evidente para todos nós, por exemplo, que a produtividade agrícola após uma guerra nuclear em grande escala se anularia no Hemisfério Norte por I um ano pelo menos, e provavelmente por muito mais tempo. Além disso, grande parte das disponibilidades existentes de alimentos seria destruída. E em muitas áreas seria difícil obter água porque as massas de água doce do interior dos continentes estariam congeladas a uma profundidade de talvez 1 a 2 metros. Em geral, é de prever um colapso dos sistemas de sustentação de vida, pelo menos nas zonas temperadas do Hemisfério Norte, levando a uma situação em que a sobrevivência da civilização nessas zonas seria extremamente difícil ou impossível. Há menos certeza quanto à propagação dos efeitos ao Hemisfério Sul. É praticamente certo que a nuvem de fumaça e fuligem penetraria as grandes áreas tropicais do Hemisfério Norte, o que em si já seria muito grave, visto que essas áreas constituem o maior reservatório de diversidade orgânica deste planeta. Plantas, outros animais e microorganismos são uma biblioteca genética inestimável da qual nós

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já retiramos a própria base da nossa civilização, e essa biblioteca seria ameaçada ou em grande parte destruída se os efeitos se estendessem para o sul. E se os efeitos se disseminassem generalizadamente no Hemisfério Sul, nossa conclusão é que por certo alguns grupos humanos sobreviveriam - talvez em áreas costeiras ou ilhas -, mas enfrentariam uma situação ecológica e social absolutamente insólita e extremamente maligna. Ao que nos parece, não se pode excluir a possibilidade de que a espécie humana, após um tal evento, venha a declinar aos poucos e finalmente extinguir-se. Achamos que as conclusões biológicas são óbvias e perfeitamente sólidas para toda a gama de cenários, desde um ataque de 100 megatons a cidades até um conflito de 10.000 megatons, com ataques de contra-força e contra-valor. Impressionou-nos muito uma das conclusões óbvias: teoricamente é possível à União Soviética ou aos Estados Unidos lançar um primeiro ataque de 3.000 megatons contra os silos do outro país e destruí-Ios, sem - em teoria, pelo menos - lesar um 11nico fio de cabelo de qualquer cidadão do país atacado, não receber fogo de resposta e, em o fazendo, destruir ambas as nações pela destruição da sua produtividade agrícola, resultante do escurecimento e baixa de temperatura. Não é preciso lembrar-lhes que o bastião alimentar do mundo é a produção de grãos do Hemisfério Norte, principalmente nas planícies centrais dos Estados Unidos e do Canadá, e que a sua anulação, num só ano que fosse, seria para a humanidade um desastre nunca visto. Basicamente, é fácil para um biólogo concluir dos resultados expostos pelos físicos e climatologistas que uma guerra nuclear oferece quase certamente perigos bem maiores que os já catastróficos efeitos instantâneos e mortes imediatas. ISRAEL: O uso intensivo dos recursos naturais e o desenvolvimento industrial acelerado em muitos países nas circunstâncias de uma crescente corrida armamentista já vem criando uma série de

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problemas ecológicos globais. É evidente que no caso de uma guerra nuclear a biosfera será comprometida em proporções multiplicadas, e que isso trará conseqüências catastróficas para a humanidade e para a biosfera como um todo. Hoje as conseqüências de uma possível guerra nuclear estão sendo discutidas em todas as partes do mundo. Na avaliação dos resultados, admite-se que a energia total liberada poderia alcançar de 6.000 a 15.000 megatons. Em meu pronunciamento eu gostaria de abordar sucintamente as conseqüências geofísicas e geológicas de vários fatores de exposição. Primeiro, uma grande quantidade de produtos radioativos seria descarregada na atmosfera. Esses produtos radioativos causarão danos por radiação nos sistemas ecológicos, alterações nas propriedades elétricas da atmosfera e alterações na ionosfera. E isso acarretará efeitos biológicos diversos. O segundo fator é a poluição da atmosfera por uma enorme quantidade de partículas de aerossol produzidas por explosões nucleares de alta potência, ou pelo desprendimento maciço de fuligem e poeira dos incêndios ateados pelas explosões. As partículas em suspensão modificarão as propriedades da atmosfera e dificultarão a entrada dos raios solares, através da atmosfera. Desse modo os sistemas ecológicos serão neutralizados, e ha. verá perturbações meteorológicas e climatológicas. Terceiro, os produtos gasosos dos incêndios - metano, ozônio troposférico e outros - também poluirão a atmosfera. Essa poluição influirá nas propriedades de absorção da atmosfera e por conseguinte no clima. Haverá formação de óxidos na bola de fogo das explosões, o que destruirá uma parte substancial da camada de ozônio. O resultado será um aumento de radiação ultravioleta que trará efeitos biológicos indesejáveis e mudanças climáticas. Para prever um dos maiores efeitos da produção de aerossóis, é importante estimar a quantidade de partículas que permanecerá na atmosfera por tempo prolongado. Os aerossóis troposféricos são de curta duração até duas semanas, aproximadamente -, portanto é

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necessário calcular que fração de aerossóis de alta dispersão alcançará a estratosfera. Pela nossa estimativa, essa fração será da ordem de 1%. Esse valor é comparável ao dos aerossóis de alta dispersão que entram na estratosfera por ocasião de erupções vulcânicas de grande intensidade. Não há dúvida de que os aerossóis troposféricos levarão a uma queda de temperatura superficial durante as primeiras semanas após as detonações. E isso terá conseqüências catastróficas para os ecossistemas e para a produção das plantações. Efeitos ainda piores poderiam advir, ao nosso ver, de uma possível elevação subseqüente de temperatura atmosférica após a precipitação, causada pela absorção de radiação de ondas longas. Esta resultará da presença na atmosfera de admistões gasosas, como ozônio troposférico, etano, metano e outras. A duplicação de CO2 elevará a temperatura em 3 ou 4 graus centígrados. A duplicação de ozônio na troposfera causará um aumento de temperatura de quase um grau centígrado. Atualmente, a concentração de ozônio na troposfera é de cerca de três partes por bilhão, e durante uma guerra nuclear essa concentração aumentará de três a quatro vezes. Haverá um aumento grande de metano, e a concentração de etano será 30 ou 40 vezes maior. Só o aumento de concentração dessas admistões gasosas resultará num aumento de temperatura de três ou quatro graus centígrados. Haverá um efeito de estufa, que pode levar a sérias alterações climáticas a longo prazo e ao colapso das atividades agrícolas da sociedade humana. Os efeitos da introdução dessas admistões gasosas na atmosfera também se farão sentir no Hemisfério Sul. Haverá de imediato uma queda de temperatura, e subseqüentemente um aumento gradual, com conseqüências ecológicas a longo prazo. No estágio inicial, com temperaturas baixas, haverá destruição de vegetação. Depois a temperatura subirá e haverá alterações climáticas duradouras, que destruirão a possibilidade de renovação de recursos biológicos. Eu gostaria de lembrar mais uma vez que as propriedades elétricas da atmosfera serão consideravelmente alteradas, principalmente na

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primeira fase após as explosões, devido à radioatividade. A concentração de produtos radioativos de um nanocurie por metro cúbico modificará a condutividade atmosférica em cerca de 10%, e isso levará a sérias alterações. Como já foi dito, haverá danos ecológicos porque a turbidez da atmosfera interromperá a luz solar. E haverá destruição da camada estratosférica de ozônio. Sabe-se que num conflito nuclear de 10.000 megatons haverá a produção de 10 elevado a 32 moléculas de óxidos de nitrogênio por megaton. Dependendo da altura alcançada pela nuvem na explosão, haveria uma destruição estável de cerca de 7% do ozônio por meses ou anos depois da explosão. Uma única explosão nuclear produz destruição na camada de ozônio, a qual em seguida se reconstitui em alguns dias. Havendo muitas explosões não haverá difusão e o ozônio não se reconstitui; a mudança na concentração de ozônio fica estável. Com exposição em altitudes de 25 a 30 mil metros, cerca de 60% do ozônio são destruídos. Deve ser lembrado que esse efeito se propagaria em pouco tempo ao Hemisfério Sul, mesmo que as explosões se limitassem ao Hemisfério Norte. De tudo que foi dito, deve ter ficado claro que explosões nucleares, principalmente em grande escala, levarão não apenas a conseqüências muito destrutivas localmente, mas também a destruição e a alterações em escala global. Levarão a mudanças irreversíveis do clima e à destruição da camada de ozônio, e comprometerão os ecos sistemas da Terra. Além do mais, os efeitos serão sinérgicos. Os efeitos ecológicos poderão levar ulteriormente a um número maior de mortos e vítimas que os efeitos diretos e imediatos, e isto tanto se aplica aos que forem diretamente envolvidos numa guerra nuclear como aos que forem envolvidos indiretamente, e mesmo numa guerra dita limitada. Isto sublinha o fato de que numa guerra nuclear não pode haver vitoriosos nem vencidos. Em última análise, todos os lados sofrem fatalmente. O Dr. Sagan já falou sobre isso. Portanto, a questão que estamos levantando é a da própria existência da vida na Terra.

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BAYEV: A opinião de biólogos e médicos especialistas sobre a guerra nuclear é perfeitamente definida: a guerra nuclear é imoral e inaceitável, tendo em vista os enormes prejuízos que infligiria à espécie humana. É inaceitável porque põe em dúvida a própria possibilidade de sobrevivência da humanidade e a própria continuação da vida da Terra nas formas que conhecemos. Eu gostaria de dizer alguma coisa sobre a morte de pessoas, a perda de vidas humanas. No caso de uma guerra nuclear, a avaliação quantitativa dos nossos cientistas coincide com a dos nossos colegas americanos. As perdas imediatas entre a população resultantes de um ataque nuclear podem ser calculadas com bastante exatidão, porque temos a triste experiência de Hiroxima e Nagasáqui e os testes nucleares até hoje realizados. Temos assim cálculos teóricos que nos fornecem os números e a possibilidade de estimar que cerca de um quarto da população na região do ataque nuclear perecerá. Quanto aos indivíduos queimados, feridos ou expostos à radiação, seus destinos serão obviamente trágicos. A maioria não sobreviverá, simplesmente porque não receberá socorro médico; não haverá meios de proporcionar conforto, nem suprimento normal de alimentos e água e haverá exposição continuada a fatores altamente hostis, como radiação e as perturbações meteorológicas que se seguirão. Essas condições resultarão na morte de outro quarto da população; portanto, perto da metade das pessoas expostas a um ataque nuclear perecerá quase imediatamente. Quanto aos que sobreviverem a esses primeiros efeitos, por tudo que ouvimos dos nossos colegas americanos, e por tudo que sabemos, sua vida subseqüente será difícil e problemática, e provavelmente a maioria dos remanescentes não terá como sobreviver. Haverá fome; haverá transformações meteorológicas; haverá rupturas em toda a estrutura social. Obviamente, isso só poderá levar a conseqüências desastrosas. Nossa previsão é pois que, na melhor das hipóteses, as populações de áreas submetidas a um ataque nuclear só sobreviverão como pequenas ilhas de humanidade num ambiente hostil e despojado de vida.

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Deve-se frisar que todas essas modificações terão efeitos sinérgicos; haverá exposição simultânea a muitos fatores adversos e nocivos. BOCHKOV: Quando falamos das conseqüências ecológicas e biológicas de uma guerra nuclear, é claro que temos em mente a humanidade. Portanto, ao pensarmos nas possibilidades da sobrevivência humana após uma catástrofe nuclear, não devemos recuar ante a conclusão de que as condições reinantes não permitiriam a sobrevivência do homem como espécie. Devemos partir da suposição de que o ser humano adaptou-se ao seu meio no correr de um longo processo evolutivo e pagou o preço da seleção natural. Só nos últimos milhares de anos ele adaptou o meio às suas necessidades e criou, por assim dizer, um meio artificial para proporcionar-lhe alimento, abrigo e outras necessidades. Sem este, o homem moderno não pode sobreviver. Em comparação com as dramáticas transformações do ambiente tecnológico, a natureza biológica não mudou no passado recente. Nas declarações do Dr. Ehrlich e do acadêmico Bayev, foram-nos apontadas as muitas limitações que se oporiam à sobrevivência do homem depois de uma catástrofe nuclear. Como também temos de considerar o futuro mais distante, cabe observar que a maior parte dos efeitos de uma guerra nuclear será de ordem genética. Se ilhas de humanidade ou como disse o Dr. Ehrlich, grupos de pessoas em alguma parte do oceano - sobrevivessem, o que iriam defrontar em termos de conseqüências genéticas? Se a população declinar drasticamente, surge a questão do número crítico de indivíduos necessário para assegurar a multiplicação. Por um lado, haverá um número mínimo de seres humanos; por outro, em razão desse pequeno número, haverá isolamento, Inevitavelmente haverá cruzamento consangüíneo, e com isso mutações letais se manifestarão devido à exposição fetal e neonatal à radiação e à precipitação. Novas mutações hão de surgir, genes e cromossomos serão danificados por obra da radiação, e com isso haverá um ônus genético a mais a suportar. Haverá deformidades naturais e mortes ao nascer, de tal modo que o ônus das afecções

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hereditárias será apenas parte de uma grande sobrecarga. Certamente isso conduzirá à eliminação da humanidade, porque o homem não será capaz de reproduzir-se como espécie. Eu gostaria de frisar que, em termos de reprodução humana, os efeitos sinérgicos desempenharão um papel particularmente deletério, porque o cruzamento consangüíneo, as mutações resultantes e as condições de vida extremamente difíceis não serão de molde a favorecer a sobrevivência do homem. Na seqüência de uma guerra nuclear, o futuro da humanidade deve evidentemente ser visto na perspectiva de um mundo em que os ecossistemas e os recursos ecológicos terão sido alterados ou destruídos. Assim, as condições biológicas e sociológicas não seriam de molde a permitir ao homem manter-se como espécie. MALONE: Agradeço aos nossos colegas de Moscou. Um dos cientistas soviéticos que está hoje em Washington conosco é o Dr. Nikita Moiseev, membro correspondente da Academia de Ciências da URSS e diretor-adjunto do Centro de Computação da Academia. Eu pediria ao Dr. Moiseev que informasse alguns dos resultados relevantes obtidos no estudo de computador da Academia Soviética - resultados que acreditamos confirmarão as conclusões fornecidas pelos nossos modelos meteorológicos. MOISEEV: Em primeiro lugar quero agradecer aos nossos colegas americanos por esta oportunidade de participar desta magnífica Conferência aqui em Washington. Nós partilhamos as preocupações dos nossos colegas americanos, e achamos que o estudo das conseqüências possíveis de um conflito nuclear é um dos principais objetos de interesse para os cientistas de todo o mundo. Também nós em nosso país estamos realizando várias pesquisas e estudos nessa área. No Centro de Computação da Academia de Ciências, que eu represento, estamos realizando estudos em três áreas principais.

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Primeiro, estamos estudando as possíveis conseqüências de uma guerra nuclear para o clima. Segundo, estamos estudando processos biológicos e alterações na produtividade da biota. Depois há um terceiro ponto e um terceiro problema. De modo geral, somos otimistas e esperamos que um dia a humanidade mostrará suficiente sensatez para abandonar de uma vez por todas qualquer idéia de empregar armas nucleares. Mas se isso acontecer, novos problemas e dúvidas irão surgir: como irá a humanidade utilizar o seu novo poderio e despender a sua nova riqueza? Se formos otimistas, devemos aplicar o nosso esforço em refletir também neste problema. Eu disse que esta Conferência é magnífica e falei sinceramente. Ela é magnífica não apenas pelas questões que levantou, mas também pelas oportunidades técnicas que nos proporcionou. Aqui em Washington eu vejo na tela dois dos meus colegas de Moscou que participaram diretamente em alguns dos cálculos de diferentes efeitos climáticos levados a efeito no Centro de Computação da Academia de Ciências da URSS: Drs. Georgi Stenchikov e Valeri Parkhomenko. Nossos estudos indicam que uma catástrofe nuclear global acarretará uma forte redução da temperatura média da Terra. Só depois de uns cinco ou seis meses haverá modulação da temperatura em base global. No entanto localmente as mudanças de temperatura serão muito mais pronunciadas. Ainda 240 dias (oito meses) após a guerra nuclear, a temperatura permanecerá em muitas regiões muito abaixo da temperatura anterior à guerra. Os senhores podem imaginar as conseqüências ecológicas de tal situação. Também estudamos a perturbação da circulação atmosférica que resultaria de um conflito nuclear global. Verificamos que o caráter da circulação se modificaria por completo. Em vez da circulação clássica, restaria uma única célula, e toda a poluição - todas as impurezas da atmosfera do norte - se deslocaria em direção ao Hemisfério Sul. Vê-se claramente que não haveria nenhum lugar da Terra que não sofresse as conseqüências de um conflito nuclear global.

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MALONE: Aos nossos colegas de Moscou quero dizer o quanto as nossas deliberações foram enriquecidas pelas contribuições dos Drs. Moiseev, Golitsyn e Aleksandrov. Também apreciamos esta oportunidade de trocar opiniões através da nova tecnologia de satélites. O Professor Moiseev colocou um ponto interessante ao mencionar a dramática alteração do que os meteorologistas chamam de circulação geral. Alguns de nós pensam ver fortes indicações de que haveria trocas inter-hemisféricas consideráveis. Esse tema recebeu uma boa dose de atenção nesta Conferência. Talvez um dos mais destacados meteorologistas do mundo, o Dr. Israel, queira comentar os pareceres que ele e seus colegas possam ter sobre a propagação dos efeitos cataclísmicos do Hemisfério Norte para o Hemisfério Sul. Suas idéias seriam bem-vindas, mesmo que conjeturais, pois é claro que ainda há um grande trabalho de análise a ser completado. ISRAEL: De fato, ocorreriam mudanças de temperatura depois de um conflito nuclear, compreendendo tanto a queda de temperatura logo após as explosões como, mais tarde, um possível aquecimento devido ao efeito de estufa. Sem dúvida isso afetaria a circulação da atmosfera. Mas eu concordo com o Dr. Malone em que são necessários estudos complementares e cálculos adicionais. Quanto à troca de massas de ar, e portanto também de poluentes e admistões gasosas, entre os Hemisférios Norte e Sul, estudos de radioatividade residual em experiências nucleares mostraram que essa troca entre os dois hemisférios realmente ocorre. Ocorre num período de meses e às vezes até de anos, mas ocorre, e eu estou completamente convencido de que, após uma catástrofe, as alterações verificadas no Hemisfério Norte certamente transferir-se-iam ao Hemisfério Sul. DR. KIRILL KONDRATYEV (membro correspondente da Academia de Ciências da URSS e ex-reitor da Universidade de Leningrado): Eu gostaria de juntar algumas observações às interessantes conclusões

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dos estudos sobre os efeitos retardados de explosões nucleares sobre o clima. Elas dizem respeito à análise de observações da luz solar. Medindo a radiação solar por meio de balões em altitudes de até 30 mil metros e em seguida analisando os dados, nós verificamos que um dos fatores importantes no enfraquecimento da radiação solar era o NO2, formado na atmosfera após explosões nucleares de grande potência nos testes realizados em 1962 e 1963. Ficou demonstrado que o NO2 contribuía em grau considerável para impedir a penetração da radiação solar até o nível do solo. Procuramos estimar o esfriamento produzido pelos testes de 1962-63 e verificamos que a contribuição do NO2 pode ter sido responsável por meio grau de esfriamento. Depois utilizamos o cenário publicado pela Ambio em 1982 e extrapolamos para ver o que aconteceria no caso de uma guerra nuclear. Os resultados mostraram um esfriamento global de 9,5 graus centígrados, o que, naturalmente, é em si mesmo significativo. Mas ainda mais significativo a meu ver é o fato de que o NO2 é um gás, e nós estamos falando da estratosfera, portanto esse é um fenômeno a longo prazo, muito mais longo que partículas de smog ou poluição na troposfera. A transferência desse efeito ao Hemisfério Sul é muito grave, e pode significar que as conseqüências retardadas serão tão nocivas para o Hemisfério Sul quanto para o Hemisfério Norte. Nós percebemos esse efeito do NO2 observando a radiação solar em 1963, e também o percebemos muito claramente em 1964 e 65. E isso foi em circunstâncias de circulação normal da atmosfera. No entanto nossos colegas mostraram que se houver circulação transequatorial, o efeito será ainda mais sensível. MALONE: Evidentemente nós inauguramos uma era em que é possível exprimir através de métodos de análise científica a impressão intuitiva que muitos de nós vínhamos tendo há vários anos. Agora temos a oportunidade de trocar pontos de vista sobre os modos de prosseguir nos caminhos abertos por esta Conferência e através desta Conexão Moscou. Espero que agora possamos ter alguns debates.

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EHRLICH: Eu pediria ao Dr. Kondratyev que esclarecesse um biólogo sobre um ponto de física. Pelo que entendi, o senhor disse que o efeito do NO2 na camada de ozônio criaria um esfriamento superficial de 8 a 9 graus centígrados? KONDRATYEV: Não, não foi disso que eu falei; eu me referi ao fato de que o NO2 tem uma raia de absorção muito intensa em aproximadamente meio micro, de modo que o NO2 atmosférico absorve radiação solar muito intensamente na banda de absorção do NO2 . É exatamente onde está o máximo no espectro da radiação solar. Portanto, isso nada tem a ver com o ozônio. É um aspecto diferente da ação do óxido de nitrogênio na atmosfera. SAGAN: Talvez eu possa levantar uma questão de ordem geral. Antes, permitam-me dizer que é muito gratificante ver que pesquisas mais ou menos independentes nos Estados Unidos e na União Soviética chegaram a conclusões tão semelhantes sobre um assunto tão grave como as conseqüências retardadas de uma guerra nuclear. Existe nesses estudos uma série de incertezas: nos cenários escolhidos, na questão da quantidade de fuligem introduzida na atmosfera pelos incêndios e da quantidade de poeira produzida por explosões de grande potência no solo, nas questões da aglomeração de partículas na atmosfera e do tempo que elas levarão para precipitar, questões de circulação atmosférica e questões das doses de radiação, instantânea e a médio e longo prazos. Em parte elas dependem de critérios de cálculo, e em parte dos dados introduzidos. Dependem, por exemplo, dos dados relativos à distribuição de dimensões das partículas resultantes de incêndios ou da explosão de armas nucleares, e do coeficiente de absorção e índice de refração dessas partículas. Nossos colegas soviéticos acham possível fornecer-nos dados sobre a função de distribuição de dimensões de detritos, obtidos nos testes soviéticos de armas nucleares antes do Tratado limitado de Proibição de Testes de 1963, e informações sobre dimensões e coeficientes de absorção de partículas produzidas em grandes incêndios na União Soviética? E mais, estariam dispostos a

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eventualmente transmitir-nos uma gama de cenários de guerra nuclear que consideram prováveis? ISRAEL: Acho que o nosso diálogo e o debate dessas importantíssimas questões devem ter prosseguimento, provavelmente por ocasião de encontros de cientistas em conferências. De minha parte, tenho muitas perguntas a fazer a colegas americanos com respeito aos dados iniciais empregados na construção dos seus modelos. Em particular, tenho perguntas relativas à distribuição de partículas por dimensões, e a quantidades e dimensões de partículas de aerossol injetadas na atmosfera. Por exemplo, posso dizer que em nossos cálculos da quantidade de partículas de aerossol de alta dispersão nós calculamos em cerca de 1% ou pouco menos a proporção de partículas de menos de um micro. Esse número, provavelmente próximo do que o senhor, Dr. Sagan, citou no seu trabalho - creio que o senhor adotou 0,5% de aerossóis de alta dispersividade (pequenas dimensões) - é inferior a 1%. Esses são aspectos estritamente científicos, e certamente o senhor desejará discuti-Ios no futuro com maior detalhe. Também concordo com o Dr. Sagan em que um aspecto muito interessante deste nosso encontro é o fato de que os cálculos feitos, de forma basicamente independente, levaram-nos a conclusões muito semelhantes com respeito às linhas gerais das conseqüências ecológicas, geofísicas e biológicas de uma guerra nuclear. ACADÊMICO ROALD SAGDEYEV (diretor do Instituto de Estudos Cósmicos da Academia de Ciências da URSS): Eu gostaria de dizer que a elaboração de cenários da evolução da biosfera e da atmosfera após uma guerra nuclear, que se vem fazendo nos últimos 20 anos, deu-nos finalmente um modelo muito sério, cujos resultados foram relatados por dois grupos independentes, o representado pelo Dr. Sagan e o formado pelos nossos cientistas. A seriedade que vemos nesses modelos hoje atesta o fato de que nós aprendemos a aplicar o enfoque planetário - um enfoque interdisciplinar - no desenvolvimento

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dos modelos. Acho que devemos concordar em manter estreita cooperação no desenvolvimento adicional desses modelos. Talvez os dados que nós obtivemos em testes nucleares nos últimos 10 anos, por exemplo sobre a dispersão e composição de aerossóis, possam ser utilizados nesses estudos. Agora temos a tecnologia espacial à nossa disposição. Temos também alguns fenômenos naturais que, embora ocorram em pequena escala, podem ser úteis para modelar as conseqüências de uma guerra nuclear. Temos observações não só de atividade vulcânica, que ejeta partículas de aerossol, como também de erupções solares que provocam modificações na estratosfera - por exemplo, a formação de óxidos nitrosos. Acredito que se fizermos disso uma atividade conjunta e empregarmos novos métodos planetários, especialmente usando a tecnologia espacial, será muito proveitoso. MALONE: Haverá oportunidade no futuro para intercâmbio de dados e desenvolvimento conjunto de cenários, para os quais muitos países podem contribuir, como ponto de partida no estudo das conseqüências de uma guerra nuclear. Eu aguardo com grande interesse um encontro com o acadêmico Scriabin, primeiro-secretário científico da Academia da URSS, e com o Professor Velikhov no fim deste mês, quando cientistas de muitos países se reunirão em Estocolmo para tratar justamente das questões que foram aqui levantadas com respeito à permuta de dados. SAGAN: Foi um grande prazer para mim ouvir as observações do acadêmico Roald Sagdeyev. O acadêmico Sagdeyev é diretor do Instituto de Pesquisas Cósmicas da Academia de Ciências da URSS, e responsável pelo programa soviético de exploração não-tripulada. Parece-me um fato extremamente interessante que um campo aparentemente tão distanciado das nefastas questões de vida e morte suscitadas pela guerra nuclear tenha desempenhado um papel tão importante na iniciativa destes estudos.

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Tanto o nosso trabalho, que começou pelo estudo da tempestade de poeira de 1971 em Marte, observada pela Mariner 9, como alguns dos trabalhos aqui mencionados pelo Dr. Golitsyn, foram estimulados por explorações planetárias não-tripuladas. Se é que existem dúvidas quanto ao valor prático da exploração planetária, penso que este trabalho basta para dissipá-Ias. EHRLICH: Desejo agradecer ao acadêmico Bochkov por abordar a questão genética, que nós não enfatizamos, em parte pelo fato de os efeitos biológicos imediatos e à curto prazo (um período de meses ou anos) serem tão esmagadores, pelo menos para os sobreviventes do Hemisfério Norte, no que se refere aos riscos enormemente aumentados de câncer e de anomalias genéticas em gerações futuras. Mas parece-me que ele tocou num ponto que também nós consideramos importantíssimo. A saber: os sobreviventes dispersos poderão sofrer sérios efeitos do cruzamento consangüíneo e incidência acrescida de câncer. Outro fator importante podem ser os efeitos das alterações genéticas . nos sistemas ecológicos. Não é claro para nós a que condições eles retornarão após uma guerra nuclear. As populações que os compõem terão sido submetidas a toda espécie de novas pressões seletivas, de modo que os pequenos grupos de sobreviventes humanos irão se deparar com um meio totalmente novo, com o qual talvez não tenham os recursos culturais para avir-se. Eles não serão como as antigas civilizações de caçadores e colhedores, que conheciam intimamente o meio em que viviam e eram capazes de extrair o seu sustento à nível de subsistência com grande facilidade. Os sobreviventes serão em sua maioria indivíduos afeitos a uma existência "civilizada", que tentarão subsistir num ecossistema radicalmente transformado. Isso deverá tornar os seus problemas extremamente difíceis, tanto econômica como psicologicamente. BOCHKOV: Eu gostaria de complementar o que disse o Dr. Ehrlich. Esperar uma renovação da humanidade para uma nova espiral de

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evolução seria. ingênuo, porque o homem entrará nessa nova era com as mesmas qualidades biológicas que tinha antes, mas haverá deficiências. As pessoas do pós-guerra nuclear terão deficiências somáticas e psíquicas, e o meio a que terão de adaptar-se será muito mais hostil que em qualquer tempo precedente. ACADÊMICO GEORGIY SCRYABIN (primeiro-secretário científico da Academia de Ciências da URSS): Meu velho amigo Professor Malone disse que voltaremos a ver-nos. Mas eu gostaria de dizer uma coisa hoje. Meu sentimento em relação a esta Conferência é um tanto ambivalente. Por um lado, há um sentimento de grande preocupação em face da possível tragédia que nos ameaça, que paira sobre todos nós - sobre crianças, mulheres, velhos, e todos os seres vivos da Terra. É uma tragédia potencial terrível, que não pode deixar de incomodar e desassossegar qualquer ser humano normal. Por outro lado, há nesta Conferência um grande motivo de satisfação: é o fato de que os grandes cientistas neste momento reunidos - nossos colegas americanos e cientistas russos - chegaram a um consenso. Estão unidos em sua opinião de que não deve haver uma guerra nuclear, de que esta representaria desastre e morte para a humanidade. Eu pessoalmente sinto-me satisfeito e confortado com isso porque, hoje em dia, a autoridade dos cientistas é grande, e todos nós devemos procurar fazer valer nossa influência no sentido de pôr fim à corrida armamentista e para que jamais venha a ocorrer uma guerra nuclear. VELIKHOV: Talvez algum dos nossos colegas americanos queira acrescentar alguma coisa. EHRLICH: Que mais podemos dizer senão que todos nós aqui partilhamos esse desejo ardentemente? Esperamos que os povos do mundo e os dirigentes do mundo prestem atenção ao fato de que o confronto Leste-Oeste ameaça não só a União Soviética, os Estados Unidos e seus aliados diretos, como ameaça todos os seres humanos

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do planeta, pelo menos com grandes sofrimentos e provavelmente, para a grande maioria, com a morte. Acho que esta deve ser a base de considerações para os chefes polí- ticos do mundo. MALONE: Eu tenho a impressão de que esta Conferência e esta troca de idéias poderão vir a ser vistas em anos futuros - justificadamente - como a virada decisiva nos rumos da humanidade. Lembra-me o incidente de 1954, quando as cinzas da explosão experimental de uma bomba de hidrogênio caíram no Dragão Feliz - um barco pesqueiro japonês. Criou-se em todo o mundo uma onda de grave preocupação porque os testes nucleares estavam pondo em risco a atmosfera, que é propriedade comum de todos os povos do mundo. Pouco depois adotaram-se medidas políticas no sentido de estabelecer um controle mais rigoroso sobre a realização de testes. Espero portanto que esta Conferência, que teve por finalidade o esclarecimento dessas questões e um intercâmbio cordial entre colegas, elevará o nível de conscientização dos faze dores de política e marcará a mudança de rumos que todos com tanto empenho esperamos. DR. ALEXANDER KUZIN (membro correspondente da Academia de Ciências da URSS): Como radiobiólogo, eu gostaria de chamar a atenção dos senhores para outro problema. Se uma catástrofe nuclear vier a acontecer, naturalmente haverá uma séria precipitação global de radionuclídeos e uma elevação do nível de radiação residual. Como radiobiólogo, eu sei como varia entre espécies diferentes a sensibilidade à radiação. O homem é uma das espécies mais sensíveis. A maior exposição à radiação provocará muitas mudanças; o sistema imunológico do homem será destruído. Ao mesmo tempo, microorganismos patogênicos que nós classificamos geralmente como pestes são muito resistentes a essa espécie de radioatividade. Com isso haverá um novo desequilíbrio ecológico, que contribuirá para a

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exterminação da pequena população humana que haja sobrevivido às conseqüências imediatas de uma catástrofe nuclear. É assim responsabilidade direta dos cientistas da União Soviética e dos Estados Unidos levar ao conhecimento de todos, os grandes perigos que seriam desencadeados por qualquer espécie de conflito nuclear, de modo a prevenir a própria possibilidade de uma guerra nuclear, cujo desfecho não apenas seria certamente o fim da civilização, senão que ameaçaria a vida como tal neste planeta que amamos. EHRLICH: Há mais um ponto. Se os efeitos se propagarem ao Hemisfério Sul e nós nos reduzirmos a pequenos grupos, e Caso alguns desses pequenos grupos consigam, a longo prazo, sobreviver a todos os efeitos de que aqui falamos, inclusive os apontados pelo Dr. Kuzin, devemo-nos lembrar - e devemos alertar os nossos governantes - de que uma vez perdida a civilização tecnológica, é altamente improvável que jamais venhamos a recuperá-Ia. Quando a humanidade se tornou civilizada e enveredou pelo caminho da industrialização, havia grande quantidade de minérios ricos à flor da terra, e para furar um poço de petróleo bastava enfiar uma vara no chão. Hoje temos de fundir minérios de baixíssimo teor metálico, e perfurar milhares de metros para extrair petróleo. Se as conseqüências de uma guerra nuclear se prolongarem por um tempo tal que a tecnologia se perca, e os estoques de ferro e de outros recursos importantes sejam destruídos pela corrosão e dispersados, é altamente improvável que um grupo de caçadores-colhedores ou lavradores de subsistência possa jamais refazer o 'caminho que 'leva à civilização tecnológica. VELIKHOV: Parece-me haver um consenso de que a Conferência é um passo importantíssimo; talvez ela dê de fato um novo impulso no sentido do desarmamento nuclear. Ela forneceu conclusões científicas, dados e informações a todos nós. Atualmente, todos

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deveriam ser capazes de tirar conclusões práticas dessas informações. Quanto a mim, penso que uma das conclusões importantes da nossa Conferência é que mesmo o emprego de uma pequena parte dos arsenais nucleares teria resultados catastróficos, não apenas pela morte imediata de multidões de inocentes como pelas drásticas transformações que causariam no meio e no clima, que poderiam trazer conseqüências infinitamente negativas. Falando em geral, mesmo hoje a humanidade existe num siso tema ecológico muito instável, de modo que qualquer desvio porá em risco a continuação dessa existência. Portanto, todas as colocações políticas que falam de guerras locais ou ditas "limitadas", de guerras "controladas", de reação flexível ou de guerra prolongada, são conceitos que, à luz do que agora sabemos, carecem de base totalmente. Todas elas trazem consigo os resultados horríveis e catastróficos que acabamos de ver. Entendemos que nenhum armamento militar ou psicológico - e há muitos - pode refutar esses resultados. A meu ver, a única conclusão possível é que os nossos artefatos nucleares não podem ser usados como armas de guerra ou como instrumentos de guerra; nem como instrumentos de política. São instrumentos de suicídio. Eu diria que as análises aqui apresentadas não se basearam no pior caso possível, pois não levaram em conta alguns fatores possivelmente envolvidos num conflito nuclear. Por exemplo, nós não consideramos os imensos depósitos de resíduos tóxicos e não calculamos o impacto resultante no caso de eles serem atingidos. Não consideramos os efeitos de serem atingidas usinas nucleares. Certamente isso viria agravar os resultados, principalmente à longo prazo. Conclui-se assim que a própria superioridade nuclear é uma ilusão, tendo em vista a enorme quantidade de armas nucleares que já acumulamos. Sabemos agora que as armas nucleares não são músculos do Estado moderno. São, sim, uma excrescência cancerosa que ameaça a própria vida do planeta. Assim como o doente de câncer não tem chance de viver uma vida longa e feliz, também a

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humanidade não tem chance de continuar coexistindo com a bomba para sempre. Ou nós destruímos o câncer, ou o câncer nos destruirá. Essa é uma decisão fundamental, e todas as decisões provisórias só podem ser provisórias. A meu ver, essa é a principal conclusão desta Conferência, e a mais fundamental. ROBERTS: Para mim é uma grande honra participar deste evento. Partilho com Tom Malone a impressão de que este debate com nossos colegas da União Soviética pode marcar uma mudança de rumo nos nossos modos de pensar e de agir com relação à guerra nuclear. Foi um diálogo muito produtivo, acadêmico Velikhov, e eu lhe agradeço e aos seus colegas por se juntarem a nós. Durante a nossa Conferência sobre o Mundo após a Guerra Nuclear, o Dr. Ehrlich fez um comentário muito interessante para o grupo aqui de Washington, a saber, que o que vier a acontecer como conseqüência de uma guerra nuclear pode incluir alguns perigos e possibilidades não previstos. Ouvi com grande interesse a exposição do Dr. Israel sobre a possibilidade de ocorrer um aquecimento subseqüente ao esfriamento. Parece-me que poderia ser mais um efeito imprevisto. E, considerando a perspectiva de uma guerra nuclear, lembramos as palavras do Dr. Sagan: "O que mais teremos deixado de levar em conta?” Mas mesmo deixando de levar em conta algumas outras conseqüências, é claro para mim que temos diante de nós evidências bastantes para demonstrar o imperativo que é para a humanidade evitar a guerra nuclear. E eu sinto que o debate aberto e franco que tivemos aqui em Washington, na Conferência sobre o Mundo após a Guerra Nuclear, e neste importante diálogo com nossos colegas soviéticos foi extremamente útil e gratificante. Todos nós temos consciência de que muitas questões científicas ainda não foram completamente resolvidas. É minha esperança sincera que possamos pensar juntos e combinar nossos esforços para esclarecer algumas dessas questões, reduzir as incertezas e assegurar que o que possamos ter esquecido não é tão importante, na

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perspectiva das coisas que sabemos. Entretanto, já sabemos o suficiente para nos darmos conta de que é imperioso, em nome de toda a humanidade, acelerar a busca da segurança do mundo no domínio da política, assim como no domínio da ciência. Como cidadãos de nossas nações, e como residentes desta frágil espaçonave que é a Terra, devemos conceber e pôr em prática novas políticas que garantam um futuro estável para o planeta e para todos os seus habitantes. Agradecemos aos nossos colegas soviéticos a sua participação neste debate de hoje. MALONE: Muito obrigado. Com essas palavras prudentes, declaramos encerrada esta Conexão Moscou. Eu me despeço com um pensamento. Nosso desafio é o da razão. Duzentos anos atrás, Emanuel Kant disse que a razão humana tende a centrar-se em três perguntas: "O que posso saber?" (ou o que me é possível conhecer), "O que devo fazer?" (ou quais são os imperativos morais) e, fInalmente, "O que posso esperar?" Nesta troca de idéias, eu vejo uma base de esperança. Levemos conosco esses pensamentos, principalmente o de que esta troca de idéias proporciona uma base de esperança.

CONCLUSÃO WALTER ORR ROBERTS

William D. Ruckelshaus, diretor da Agência de Defesa Ambiental dos Estados Unidos, em recente artigo na revista Science, disse que o debate de questões ambientais é freqüentemente dominado por um clima de medo. Ele recomenda aos cientistas que façam maiores esforços no sentido de explicar ao público de modo simples e fundamentado as conclusões subjacentes das pesquisas, incluindo a exposição das incertezas das noções fundamentais, e portanto dos riscos estimados. Entre as opções com que a humanidade se defronta, nenhuma ilustra melhor essa recomendação que as

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conseqüências biológicas de uma guerra nuclear em escala mundial. Nenhum prejuízo ambienta! para a vida do planeta representa uma ameaça potencial maior, principalmente quando combinada à consideração da destruição e da perda de vidas diretamente decorrentes de uma guerra nuclear. Em seu artigo, Ruckelshaus cita estas palavras de Thomas Jefferson: "Se julgamos [o povo] insuficientemente esclarecido para exercitar o seu controle com discrição razoável, o remédio não é arrebatá-Io dele, mas informar a sua discrição.” Esse propósito norteou magnificamente a Conferência sobre o Mun . do após a Guerra Nuclear. Nosso objetivo foi informar os povos do mundo, na convicção de que o esclarecimento levará ao exercício de uma discrição universal razoável. Nós nos propusemos ater-nos estritamente a questões científicas, explicar algumas descobertas novas, não previstas, de alta relevância para a higiene do planeta, e reexaminar, na perspectiva de trabalhos mais recentes, algumas das pesquisas precedentes sobre o assunto. Basicamente estamos de acordo no que diz respeito aos temas físicos e biológicos tratados na Conferência. Provavelmente há menos unanimidade quanto a como lidar com as questões políticas levantadas por essas verificações científicas. Estou certo de que muitos de nós divergem quando se trata de optar entre as alternativas sociais, econômicas, políticas e mesmo éticas que nos defrontam como membros que somos de nações-Estados e da comunidade universal dos povos. Por isso evitamos propositalmente o debate de questões e opções de ordem política nesta Conferência. É claro que as questões políticas são de suma importância, e devem ser profundamente meditadas, extensamente discutidas e finalmente aplicadas à ação. E o que é mais, há urgência em mudar para um novo terreno na área da política. Thomas W. Wilson, Jr. enfatizou recentemente a prioridade dessas questões políticas numa excelente análise intitulada "Conceitos Modificados de Segurança Nacional", da qual citarei uma breve passagem:

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Finalmente esse tema [segurança nacional] corre solto no domínio público - mais ou menos fora dos limites estritos do isolamento burocrático, do sigilo oficial e da complexidade esotérica dos cálculos estratégicos... ainda estamos nos estágios preliminares de um reexame cabal das nossas crenças, teorias, tradições, doutrinas e idéias feitas em que se baseiam a política e a estratégia no campo da segurança das nações e dos povos. e provável que este venha a revelar-se um processo doloroso, demorado e turbulento - às vezes, talvez, raiando pelo trauma - pois o que está em jogo é muito grande, e os temas muito emocionais... No mundo real de hoje os interesses nacionais dos diferentes Estados convergem na necessidade de suster e defender os sistemas vivos do planeta Terra - e isso nos inclui. O que vale dizer que o único modo de salvar a nossa própria pele a tornar a Terra segura. E assim a segurança do mundo é uma política para pragmáticos - e também para poetas. Oferece uma estratégia talhada para santos e também para soldados. É importante, na medida do possível, que esse "processo doloroso, demorado e turbulento" de debate nasça de um terreno comum de compreensão dos conhecimentos físicos e biológicos subjacentes. Foi o que o Comitê de Orientação desta Conferência definiu como nosso objetivo, e eu louvo os participantes e o auditório por sua adesão a essas normas básicas. O cenário principal de referência de guerra nuclear envolve um intercâmbio de 5.000 megatons, que projeta uma porção considerável da poeira e da fuligem produzidas por incêndios de cidades e florestas na alta troposfera (parte superior da baixa atmosfera) e na baixa estratosfera (parte inferior da alta atmosfera), acima do nível normal das nuvens. Essa tonelagem é bem menos da metade dos arsenais somados dos Estados Unidos e URSS. É também aproximadamente a escala de conflito nuclear analisada no relatório publicado em junho de

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1982 pela revista Ambio, da Real Academia Sueca de Ciências, e em vários outros estudos preliminares. Conflitos nucleares mais limitados parecem produzir da mesma forma grandes perturbações ambientais e grandes danos biológicos, além e acima dos causados pelas explosões e pela radiação. Parece que as perturbações ambientais não guardam muita proporção com a escala da guerra, desde que a tonelagem seja suficiente para provocar grandes incêndios. Estudaram-se modelos com tonelagens de apenas 100 megatons, e mesmo nestes demonstrou-se a probabilidade de efeitos adversos importantes no caso de ataques a concentrações urbanas. Muitos dos efeitos descritos no cenário de 5.000 megatons fizeram-se presentes em conflitos bem menores. Com o cenário de 5.000 megatons para definir as condições iniciais, pelo menos três grupos analisaram modelos meteorológicos globais na tentativa de estimar as conseqüências do ponto de vista da meteorologia e climatologia. Esses modelos matemáticos alcançaram um tal nível de sofisticação que a maioria dos cientistas dedicados ao problema inclina-se a acreditar que eles simulam de forma realista as características gerais do mundo real da meteorologia quando as hipóteses básicas são bem compreendidas. As últimas conclusões são bastante alarmantes. As enormes tempestades ígneas produzidas numa guerra nuclear desempenham um papel considerável nos danos ambientais, em função do smog e da fuligem transportados às camadas altas da atmosfera. Essas nuvens de partículas alteram dramaticamente o equilíbrio da radiação na atmosfera. Podem não apenas produzir "trevas ao meio-dia" como primeiro sugerido por Crutzen e Birks em 1982, mas também modificar radicalmente os padrões globais dos ventos, das chuvas e das neves. O cenário utilizado representa uma guerra em grande escala no Hemisfério Norte (mas não numa escala implausível, em termos dos arsenais mundiais de armas nucleares). Em conseqüência de uma guerra como essa, como os senhores ouviram, é quase certo que a quantidade média de luz solar a atingir a superfície da Terra no Hemisfério Norte será drasticamente reduzida, talvez a uma diminuta

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percentagem dos níveis diurnos normais. Nesse cenário, as tempestades cairão bruscamente nos primeiros dias seguintes à guerra. O tempo de recuperação para a radiação solar, temperatura, chuvas e ventos será de alguns meses a alguns anos. O principal estudo físico apresentado nesta Conferência por Carl Sagan baseia-se no modelo construído por Turco, Toon, Ackerman, Pollack e Sagan - designado como modelo TTAPS. Na primavera passada um grupo de físicos debateu e criticou uma primeira minuta do relatório TTAPS. O principal estudo biológico foi apresentado por Paul Ehrlich, e também se baseia num amplo consenso de um grande grupo de eminentes biólogos que se reuniram na primavera passada, logo após o seminário dos físicos. O modelo TTAPS nos diz que se a guerra ocorrer no verão do Hemisfério Norte, as temperaturas cairão muito abaixo do ponto de congelamento em extensas áreas de cultura de latitudes médias como os cinturões de trigo e milho da América do Norte, principal fonte mundial de exportação de grãos. Segundo o modelo, um conflito nuclear limitado de apenas 100 megatons que envolvesse centros urbanos poderia produzir, mesmo no verão, temperaturas continentais abaixo do ponto de congelamento durante vários meses. A energia solar necessária à fotossíntese de matéria vegetal será radicalmente reduzida - a maior parte das plantas cultivadas simplesmente não produz na sombra, mesmo que haja calor suficiente. Ao que parece, a fumaça responsável pelo escurecimento pode ser rapidamente transportada para o outro lado do equador. Assim, os efeitos meteorológicos e os efeitos sobre a vida vegetal produzidos pela guerra nuclear podem propagar-se globalmente em tempo relativamente curto. Mesmo em áreas tropicais, como a bacia amazônica, segundo modelos paralelos e suplementares trabalhados por Schneider, Covey e Thompson do NCAR, que usaram o mesmo cenário, é provável a ocorrência de temperaturas glaciais já nos primeiros dias após a guerra. Suas conclusões, como as do TTAPS, indicam frio extremo em regiões agrícolas de latitudes médias mesmo após uma guerra de

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verão. No seu modelo, o rápido esfriamento dos dias imediatamente seguintes à guerra é sucedido em tempo relativamente curto por urna recuperação da temperatura nas vizinhanças das costas ocidentais produzida pelo efeito moderador dos oceanos, termicamente estáveis, na medida em que ventos fortes transportarão o calor dos oceanos a grandes distâncias terra à dentro. Mas danos sérios já terão sido causados às lavouras e a outras fontes de alimentos. É provável que grande parte da produção de alimentos agrícolas e silvestres no Hemisfério Norte seja quase anulada no período de um ano, e também nos trópicos e no Hemisfério Sul a produção de alimentos pode ser consideravelmente reduzida. Mesmo com reservas normais de alimentos, é possível que um terço da população do mundo venha a morrer de doenças ligadas à desnutrição, somando-se ao terço que pode morrer pelos efeitos diretos das explosões e da radiação local instantânea numa guerra nuclear mundial em grande escala. Novas calamidades serão provocadas pela escuridão e pelo frio intenso. Perdas adicionais resultarão da falta de água potável e outros serviços em virtude do congelamento, estrago ou poluição de sistemas naturais de suprimento e falta de apoio infra-estrutural humano. Mesmo as populações de países em desenvolvimento situados em zonas tropicais distantes dos cenários da guerra enfrentarão terríveis problemas de alimentação. A região africana do Sael, que já sofre grave escassez de alimentos e depende em alto grau da importação de produtos agrícolas, não escapará aos efeitos adversos de uma conflagração remota. Além do mais, com toda a probabilidade as bolas de fogo da guerra nuclear gerarão óxidos de nitrogênio (NOx) em quantidade suficiente para reduzir a camada de ozônio e com isso aumentar várias vezes a radiação solar ultravioleta durante vários anos, impedindo a recuperação de plantas e animais por um longo período. Até o plâncton marinho pode ser afetado, e por conseqüência os alimentos tirados do mar. Pode haver grande incidência de cegueira em homens e animais em razão de cataratas e lesões da córnea induzidas pela radiação ultravioleta. Outro perigo ê a redução das defesas

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imunológicas do homem e de outros mamíferos, e conseqüente alastramento de doenças. A multiplicação de insetos e outras pragas adaptadas de forma oportunista às novas condições ambientais é uma possibilidade definida. Ehrlich explicou que "todos os sistemas humanos estão contidos em ecossistemas e dependem totalmente deles para a produção agrícola e para uma série de outros 'serviços públicos' gratuitos. Esses serviços incluem a regulação dos climas e manutenção da composição gasosa da atmosfera; suprimento de água doce; remoção de resíduos; reciclagem de elementos nutrientes (inclusive os indispensáveis à agricultura e à silvicultura); geração e preservação de solos; controle da imensa maioria das pragas potenciais das lavouras e vetores de enfermidades humanas; suprimento de alimentos do mar; e manutenção de uma vasta 'biblioteca' genética da qual a humanidade já tirou a própria base da civilização - inclusive todas as plantas cultivadas e animais de criação". E fez notar que uma guerra nuclear truncaria esses serviços gratuitos prestados pela natureza numa ocasião em que as pessoas mais precisariam deles. Em todos os modelos meteorológicos e climáticos existem incertezas. O modelo TTAPS, o do NCAR e o apresentado pelos nossos colegas da URSS diferem em alguns detalhes - como se viu nos debates do painel. Por exemplo, o modelo soviético mostrou que depois do esfriamento brusco as temperaturas poderão subir acima do "normal" anterior. Mas todos eles mostram o esfriamento imediato e desastroso. Além disso, as conseqüências biológicas não somente guardam dependência dos modelos físicos, que têm suas limitações, como têm igualmente suas incertezas próprias. Mas as conclusões gerais são sólidas mesmo em face dessas diferenças e incertezas, e quando menos dão o que pensar. Se é que ainda precisamos de outros incentivos para prevenir um holocausto nuclear além dos que encontramos nas conseqüências diretas da guerra, eles nos dão dados em abundância. Esta Conferência não tratou das medidas políticas necessárias ao controle do confronto nuclear global. Mas forneceu evidências de que as ameaças à sobrevivência dos sistemas

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biológicos são maiores do que anteriormente se supunha, e que realmente podem pôr em risco tudo quanto conquistamos em milênios de civilização. Como disse Carl Sagan, "é possível que a população do Homo sapiens se reduza a níveis pré-históricos ou a menos ainda, e a própria extinção da espécie humana não pode ser excluída". Paul Ehrlich disse mais ou menos a mesma coisa em palavras um pouco diferentes. Donald Kennedy abriu a nossa Conferência com uma exposição brilhante. Nela, ele observou que há grandes incertezas no que foi apresentado, mas também que "estas descobertas são parte de um processo ordenado na evolução do pensamento científico, através do qual pouco a pouco viemos deslocando o foco de nossas atenções dos efeitos mais imediatos e mais óbvios para os mais complexos e duráveis". Disse a seguir que esses novos efeitos são ainda mais sérios, posto que muito mais difíceis de estimar com precisão. E disse mais, que "... a incerteza deveria ser uma advertência temática para os planejadores políticos. O que as nossas projeções mais ponderadas mostram é que um choque nuclear em grande escala haverá de produzir, entre os seus muitos efeitos plausíveis, as maiores convulsões biológicas e físicas deste planeta nos últimos 65 milhões de anos - um período mais de 30 mil vezes maior que o tempo decorrido do nascimento de Cristo, e mais de 100 vezes o tempo de existência até aqui da nossa espécie". "É preciso que a avaliação dos riscos prováveis", disse ele, "se constitua numa base de considerações para todos aqueles que de têm a responsabilidade pelas decisões de segurança nacional, aqui e em outras partes." Esperamos que as nossas apresentações venham contribuir definitivamente para o objetivo da exortação de Thomas Jefferson no sentido de informar a discrição do povo, para que ele possa exercitar tal discrição de modo esclarecido e razoável. As questões científicas, é óbvio, ainda não foram plenamente resolvidas. Eu tenho a satisfação de saber que organismos internacionais como o SCOPE, Comitê Científico para Problemas do

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Ambiente, entre outros, têm planos para dar continuidade seriamente ao estudo desses pontos. A parte científica do processo deve prosseguir, para que as incertezas se reduzam. Mas nós já sabemos o suficiente com respeito aos riscos para compreender que é imperioso, em nome da humanidade, acelerar a busca da segurança do mundo no campo da política. Como cidadãos de nossos Estados nacionais, e como residentes da "espaçonave Terra", devemos de fato conceber e praticar políticas que assegurem um futuro estável ao planeta, aos seus pragmáticos, poetas, santos, soldados e enfim, a todos os seres vivos sencientes.

APÊNDICE

O INVERNO NUCLEAR: CONSEQÜÊNCIAS GLOBAIS DE EXPLOSÕES MÚLTIPLAS

NUCLEARES Tem-se manifestado Uma preocupação com respeito às conseqüências a curto e a longo prazos da poeira, fumaça, radioatividade e gases tóxicos que seriam produzidos numa guerra nuclear. A descoberta de que nuvens densas de partículas de solo podem ter desempenhado um papel importante em extinções em massa ocorridas na Terra no passado incentivou a reconsideração dos efeitos de uma guerra nuclear. Também, recentemente, Crutzen e Birks sugeriram que grandes incêndios ateados por explosões nucleares poderiam gerar quantidades de fumaça fuliginosa que atenuariam a luz solar e perturbariam o clima. Essas circunstâncias levaram-nos a calcular, utilizando novos dados e modelos aperfeiçoados, os possíveis efeitos ambientais globais de nuvens de poeira e fumaça (daqui por diante designadas poeira nuclear e fumaça nuclear) geradas numa guerra nuclear. Provavelmente a maior parte da população do mundo sobreviveria ao conflito nuclear inicial e herdaria o meio de pós-guerra. Dessa forma, os efeitos retardados e

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globais de uma guerra nuclear poderiam vir a revelar-se não menos importantes que as conseqüências imediatas da guerra. Para estudar esses fenômenos, nós utilizamos uma série de modelos físicos: um modelo de cenário de guerra nuclear, um modelo de microfísica de partículas e um modelo de radiação-convecção. O modelo de cenário de guerra nuclear especifica a poeira, a fumaça e a radioatividade em função da altitude, e as injeções de NOx para cada explosão num conflito nuclear (supondo a potência, número e tipo das detonações, inclusive altura de explosão, local geográfico e fração de energia de fissão liberada). O modelo-fonte de fixação de parâmetros é explicado adiante e numa memória mais detalhada. O modelo físico unidimensional prediz a evolução no tempo das nuvens de poeira e fumaça, que por hipótese se dispersariam rápida e uniformemente. O modelo unidimensional de radiação-convecção (1-D RCM) aplica as distribuições calculadas de dimensões de partículas de poeira e fumaça, as constantes óticas e a teoria de Mie para calcular propriedades óticas nas faixas visível e infravermelha, fluxos de luz e temperaturas do ar em função do tempo e da altura. Como as temperaturas do ar calculadas são sensíveis às capacidades térmicas superficiais, elaboram-se simulações distintas para meios terrestres e oceânicos, para definir possíveis contrastes de temperatura. As técnicas empregadas nos cálculos do nosso 1-D RCM estão bem documentadas. Os modelos por nós empregados, embora podendo fornecer estimativas aproximadas dos efeitos médios de nuvens de poeira e fumaça disseminadas em grandes extensões, não permitem prever com precisão efeitos locais ou a curto prazo. A aplicabilidade dos nossos resultados depende da velocidade e da extensão da dispersão das nuvens de explosões e dos penachos produzidos por incêndios. Logo após um conflito nuclear de grandes dimensões, milhares de nuvens isoladas de poeira e fumaça distribuir-se-iam em toda a faixa de latitudes médias setentrionais e em altitudes de até 30.000 metros. Difusão horizontal turbulenta, arrastamento vertical pelo vento e emissão continuada de fumaça poderiam espalhar as nuvens de

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detritos nucleares pela zona inteira, tendendo a preencher os claros entre as nuvens em uma a duas semanas. As simulações desse período inicial de dispersão das nuvens com base em valores espaciais médios devem ser vistas com cautela; os efeitos seriam menores em certos locais e maiores em outros, e variariam com o tempo em qualquer local determinado. Os presentes resultados também não refletem a forte conjugação entre os movimentos atmosféricos em todas as escalas de extensão e as taxas modificadas de aquecimento e esfriamento atmosféricos por radiação solar e infravermelha computadas com o 1-D RCM. É quase certo que os padrões de circulação global se alterariam em resposta às grandes perturbações das forças agentes aqui calculadas. O 1-D RCM, embora só possa predizer condições correspondentes a valores horizontais, diurnos e sazonais médios, é capaz de estimar as respostas climáticas de primeira ordem da atmosfera, que constituem o objeto deste estudo.

Cenários Um balanço dos arsenais nucleares do mundo mostra que as armas primárias estratégicas e de teatro representam 12.000 megatons (MT) de potência transportados por 17.000 ogivas. Em potência explosiva esses arsenais equivalem aproximadamente a um milhão de bombas de Hiroxima. Embora o número total de ogivas de alta potência esteja diminuindo com o tempo, cerca de 7.000 MT ainda correspondem a ogivas de mais de 1 MT. Existem também 30.000 ogivas táticas e munições de baixa potência, que não são consideradas nesta análise. Os cenários de emprego possível de armas nucleares são complexos e discutíveis. Historicamente, os estudos dos efeitos à longo prazo de uma guerra nuclear têm-se concentrado num conflito em grande escala, na faixa de 5.000 a 10.000 MT. Esses conflitos são possíveis, tendo em vista os arsenais atuais e a natureza imprevisível de uma

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guerra, particularmente de uma guerra nuclear, em que poderia ocorrer uma escalada maciça do conflito. O Quadro 1 mostra um sumário dos cenários adotados neste estudo. Nosso cenário de referência supõe um conflito de 5.000 MT. Os demais casos cobrem uma gama de potência total de 100 a 25.000 MT. Muitas instalações industriais e militares de alta prioridade localizam-se nas vizinhanças ou dentro de zonas urbanas. Em vista disso, a fração da potência total atribuída a objetivos urbanos ou industriais (15-30%) é modesta. Tendo em vista a grande potência das ogivas estratégicas (em geral mais de 100 quilotons [KT]), ataques "cirúrgicos" contra objetivos isolados são difíceis; por exemplo, uma explosão aérea de 100 KT pode arrasar e queimar uma área de 50 km2, e uma explosão aérea de 1 MT, uma área 5 vezes maior, o que implica estragos colaterais extensos em quaisquer ataques de "contra-valor", e em muitos dos de "contra-força".

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As propriedades da poeira e da fumaça nucleares são fatores críticos para a presente análise. A fixação dos parâmetros básicos é mostrada nos Quadros 2 e 3, respectivamente; detalhes podem ser encontrados na Ref. 15. Para cada cenário de detonações, as quantidades fundamentais que têm de ser conhecidas para efeito de previsões óticas e climáticas são as injeções atmosféricas totais de poeira fina (raio menor ou igual a 10 u) e fuligem.

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Explosões nucleares no solo ou próximas do solo podem gerar partículas finas por vários mecanismos: (i) ejeção e desagregação de partículas de solo, (ii) vaporização e renucleação de terra e rocha, e (iii) assopramento e arrastamento vertical de poeira e fumaça da superfície. Análises de dados de testes nucleares indicam que aproximadamente 1 x 10 elevado a 5 a 6 x 10 elevado a 5 toneladas de poeira por megaton de potência explosiva são contidas nas nuvens estabilizadas de detonações superficiais em terra. Além disso, a análise de dimensões de amostras de poeira recolhidas em nuvens nucleares indica uma fração submicrométrica substancial. Detonações nucleares na superfície podem ser muito mais eficientes em gerar poeira fina do que erupções vulcânicas, que foram impropriamente utilizadas no passado para estimar os impactos de uma guerra nuclear. A intensa luz emitida pela bola de fogo nuclear é suficiente para iniciar a combustão de matérias inflamáveis numa extensa área. As explosões sobre Hiroxima e Nagasáqui atearam incêndios de grandes proporções. Em ambas as cidades, a região pesadamente destruída pelo sopro foi também consumida pelo fogo. Avaliações feitas nestes últimos 20 anos sugerem fortemente que ocorreriam incêndios extensos na maior parte dos casos de detonações sobre florestas e cidades. O Hemisfério Norte tem 4 x 10 elevado a 7 km2 de áreas florestais, que contêm matérias combustíveis na proporção média de 2,2 g/cm2. As zonas urbanas e suburbanas do mundo cobrem uma área de 1,5 x 10 elevado a 6 km2. Os centros de cidades, que ocupam entre 5 e 10% da área urbana total, contêm entre 10 e 40 g/cm2 de matérias combustíveis, enquanto as áreas residenciais contêm entre 1 e 5 g/cm2. A emissão de fumaça de incêndios florestais e de incêndios urbanos de grandes proporções situa-se provavelmente na faixa de 2 a 8% em massa do combustível queimado. A fração fuliginosa, de alto coeficiente de absorção (principalmente carbono grafítico) pode chegar a 50% da emissão em peso. Em incêndios florestais, e

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provavelmente em incêndios urbanos, mais de 90% da massa de fumaça são constituídos de partículas de menos de 1u de raio. Nos cálculos relativos à faixa de luz visível, atribuiu-se à parte imaginária do índice de refração da fumaça o valor 0,3 elevado a 50.

Simulações De modo geral, as previsões de modelo aqui referidas representam efeitos médios no Hemisfério Norte (HN). As explosões nucleares e incêndios iniciais seriam na maior parte circunscritos às latitudes setentrionais médias (30º a 60ºN). Assim sendo, a opacidade média prevista por efeito da poeira e fumaça poderia ser duas a três vezes maior nas latitudes médias, e menores em outras partes. As profundidades óticas médias hemisféricas nos comprimentos de onda visíveis para as nuvens mistas de poeira e fumaça nucleares correspondentes aos cenários do Quadro 1 são mostradas na Figura 1. A profundidade ótica vertical é um diagnóstico útil das propriedades da nuvem nuclear, e pode ser utilizada de modo aproximado para calcular os níveis de luminosidade e temperatura atmosféricas para os diversos cenários. No cenário de referência (Caso 1, 5.000 MT), a profundidade ótica inicial no HN é 4, sendo 1 devido à poeira estratosférica 3 à fumaça troposférica. Depois de um mês a profundidade ótica ainda é 2. Ao fim de dois a três meses, a poeira domina os efeitos óticos, pois a maior parte da fuligem é arrastada ou lavada pela chuva. No caso de referência, cerca de 240.000 km2 de áreas urbanas são parcialmente queimados (50%) por 1.000 MT de explosões (apenas 20% da energia total liberada). Isso corresponde aproximadamente a 1/6 da área continental urbanizada do mundo, a 1/4 da área desenvolvida do HN e à metade da área dos centros urbanos de mais de 100.000 habitantes dos países da OTAN e do Pacto de Varsóvia. A quantidade média de matérias combustíveis consumidas na área incendiada é1,9 g/cm2. Incêndios florestais ateados pelos restantes 4.000 MT de energia

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queimam outros 500.000 km2 de árvores, campos e pastos, consumindo dessa forma 0,5 g/cm2 de matérias combustíveis

Figura 1: Profundidades óticas verticais (dispersão mais absorção, médias hemisféricas) de nuvens de poeira e fumaça nucleares no comprimento de onda de 550 nm, em função do tempo. Profundidades

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óticas menor ou igual a 0,1 são desprezíveis, 1 são significativas, e maior que 2 implicam a possibilidade de conseqüências de vulto. Em profundidades óticas maior ou igual a 1 a transmissão da luz solar torna-se altamente não-linear. São mostrados resultados para vários casos do Quadro 1. Profundidades óticas calculadas para a nuvem da erupção do El Chichón em expansão são mostradas para efeito comparativo. A emissão total de fumaça no caso de referência é de 225 milhões de toneladas (desprendidas no correr de vários dias). Em comparação, a emissão global anual de fumaça hoje é estimada em 200 milhões de toneladas, mas o grau de perturbação da atmosfera por ela produzido é provavelmente menos de 1% do da fumaça nuclear. As simulações de profundidade ótica para os Casos 1, 2, 9 e 10 na Figura 1 mostram que uma gama de energia liberada entre 3.000 e 10.000 MT poderia produzir efeitos semelhantes. Mesmo os Casos 11, 12 e 13, ainda que menos severos em seu impacto absoluto, produzem profundidades óticas comparáveis ou superiores às de uma grande erupção vulcânica. É interessante notar que erupções como a do Tambora em 1815 podem ter causado perturbações climáticas significativas, mesmo com uma redução média de temperatura superficial inferior a 1ºK.

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Figura 2: Variações da temperatura superficial (médias hemisféricas) após um conflito nuclear. São mostrados resultados para vários casos do Quadro 1. (Note-se que, diferentemente da Fig. 1, a escala de tempo é linear.) Em geral, as temperaturas aplicam-se ao interior das massas continentais. Somente nos Casos 4 e 11 são desprezados os efeitos dos incêndios. O Caso 14 representa um ataque de 100 MT a cidades, com 1.000 ogivas de 10 KT. No ataque, 25.000 km2 de áreas urbanas construídas são incendiados (essa área corresponderia aproximadamente a 100 grandes cidades). A emissão de fumaça é

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calculada com parâmetros de incêndios diferentes dos do caso de referência. A carga média de matérias combustíveis em áreas urbanas centrais é de 20 g/cm2 (contra 10 g/cm2 no Caso 1) e o fator médio de emissão de fumaça é 0,026 g de fumaça por grama de material queimado (contra o valor moderado de 0,011 g/g adotado para incêndios em centros de cidades no caso de referência). Cerca de 130 milhões de toneladas de fumaça urbana são injetadas na troposfera em cada caso (no Caso 14 nenhuma fumaça alcança a estratosfera). No caso de referência, só cerca de 10% da fumaça urbana se originam de incêndios em áreas urbanas centrais (Quadro 3). O limiar de injeção de fumaça para perturbações óticas importantes em escala hemisférica parece situar-se em 1 x 10 elevado a 8 toneladas. Com base no Caso 14, pode-se esperar o desprendimento de 1 x 10 elevado a 6 toneladas de fumaça de cada uma das 100 grandes cidades incendiadas, consumindo 4 x 10 elevado a 7 toneladas de matérias combustíveis por cidade. Esses incêndios podem ser ateados por 100 MT de explosões nucleares. Inesperadamente, menos de 1% dos arsenais estratégicos existentes, se empregado contra cidades, poderia produzir distúrbios óticos (e climáticos) muito maiores que os anteriormente associados a um conflito nuclear maciço de 10.000 MT2. A Figura 2 mostra a perturbação da temperatura superficial em áreas continentais do HN calculada a partir das profundidades óticas de poeira e fumaça para diversos cenários. O mais Impressionante são as temperaturas extremamente baixas que ocorrem em três a quatro semanas após um conflito em grande escala. No caso de referência de 5.000 MT, prediz-se uma temperatura mínima em áreas continentais de 250ºK (-23°C) ao fim de três semanas. Temperaturas abaixo de 0ºC persistem por

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Figura 3: Perturbações das temperaturas troposféricas e estratosféricas no Hemisfério Norte (em graus Kelvin; 1ºK = 1°C) após o conflito nuclear de referência (Caso 1). A área hachurada indica esfriamento. Também são dadas. as pressões ambientes em milibars. vários meses. Entre os casos mostrados, as menores quedas de temperatura em terra são de 5º a 10ºC (Casos 4, 11 e 12), suficientes para transformar o verão em inverno. Assim, são de esperar conseqüências climáticas severas em todos esses casos. O cenário de 100 MT de explosões aéreas sobre cidades (Caso 14) produz um intervalo de dois meses de temperaturas abaixo de 0ºC em terra, com um mínimo também aqui, próximo de 250ºK. O restabelecimento da temperatura neste caso é acelerado pela absorção da luz solar em nuvens de fuligem remanescentes oticamente tênues (ver abaixo). Cenários comparáveis com e sem emissão de fumaça (p. ex., Casos 10 e 11) mostram que as camadas troposféricas de fuligem causam um esfriamento superficial abrupto de curta duração, ao passo que a

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poeira fina estratosférica é responsável por esfriamento prolongado, durando um ano ou mais. (Do ponto de vista do clima, um esfriamento superficial de apenas 1ºC já é significativo.) Em todos os casos, a poeira nuclear age no sentido de esfriar a superfície da Terra; a fuligem também tende a esfriar a superfície, salvo quando a nuvem de fuligem é oticamente tênue e localizada próximo à superfície (um caso pouco importante, pois com isso não se obtêm mais que pequenos aquecimentos transitórios de menos de 20K). As variações preditas de temperatura do ar sobre os oceanos ligadas às alterações do transporte atmosférico de radiação são sempre pequenas (esfriamento inferior a 3ºK) por causa do grande conteúdo de calor e rápida mistura das águas superficiais. No entanto, variações nos padrões de circulação atmosférica zonal (ver abaixo) podem alterar de modo considerável as correntes e vagas marinhas, como ocorreu há pouco tempo em menor escala no leste do Pacífico (El Niño). O reservatório oceânico de calor também moderaria os declínios preditos de temperatura continental, principalmente em regiões costeiras. Esse efeito é difícil de estimar em vista da probabilidade de distúrbios da circulação atmosférica. Os declínios efetivos de temperatura no interior dos continentes poderiam ser uns 30% menores que os aqui preditos, e ao longo dos litorais uns 70% menores. No caso de referência, portanto, as temperaturas continentais podem cair a 260ºK antes de voltar aos níveis ambientes. As variações preditas no perfil vertical de temperaturas para o cenário de referência são Ilustradas em função do tempo na Figura 3. As características dominantes da perturbação de temperatura são um grande aquecimento (até 80ºK) da baixa estratosfera e alta troposfera, e um grande esfriamento (até 400K) da superfície e baixa troposfera. O aquecimento é causado pela absorção da radiação solar na parte superior das nuvens de pó e fumaça; persiste por um período longo em razão da residência prolongada das partículas na alta atmosfera, da sua baixa emissividade de infravermelho e das temperaturas inicialmente baixas nas grandes altitudes. O esfriamento superficial é o resultado da atenuação do fluxo solar incidente pelas nuvens de

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aerossol (ver Figura 4) durante o primeiro mês da simulação. O efeito de estufa deixa de ocorrer em nossos cálculos porque a energia solar é depositada acima da altura em que a energia de infravermelho é irradiada para o espaço. A Figura 4 mostra os declínios de insolação para vários cenários de guerra. O caso de referência indica fluxos solares médios hemisféricos no solo Inferiores a 10% dos valores normais durante várias semanas (não considerando descontinuidades nas nuvens de pó e fumaça). Além de causar as quedas de temperatura acima mencionadas, a insolação atenuada pode afetar o ritmo de crescimento das plantas e o vigor das cadeias alimentares marinhas, litorâneas e terrestres. No caso "severo" de 10.000 MT, os níveis médios de luz ficam abaixo do mínimo requerido para a fotossíntese por cerca de 40 dias em grande parte do Hemisfério Norte. Em vários outros casos a insolação pode cair durante mais de dois meses abaixo do ponto de compensação em que a fotossíntese é apenas suficiente para manter o metabolismo vegetal. Dada a probabilidade de as nuvens nucleares se manterem descontínuas nas primeiras uma ou duas semanas após o conflito, a passagem da luz solar por claros nas nuvens pode permitir a atividade de crescimento das plantas acima do nível predito para condições médias das nuvens; no entanto, é provável que em pouco tempo os claros se fechem.

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Figura 4: Fluxos de energia solar ao nível do solo no Hemisfério Norte após uma guerra nuclear. São mostrados resultados para vários casos do Quadro 1. (Note-se que a escala de tempo é linear). Os valores são médios para o ciclo diurno e para o hemisfério. Nos Casos 4 e 16 desprezam-se os incêndios. Indicam-se também o nível de fluxo aproximado para o qual a fotossíntese deixa de acompanhar o ritmo respiratório da planta (ponto de compensação) e aquele em que a fotossíntese cessa. Esses limites variam para espécies diferentes.

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Figura 5: Profundidades óticas verticais (absorção mais dispersão em 550 nm) de nuvens nucleares em função do tempo, numa análise de sensibilidade. As profundidades óticas são valores médios para o Hemisfério Norte. Todos os casos mostrados correspondem a variações de parâmetros do modelo em referência (Caso 1) e consideram a poeira aplicável a cada qual: Caso 3, não há

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tempestades ígneas; Caso 4, não há incêndios; Caso 22, tempo de lavagem pelas chuvas reduzidos de um fator 3; Caso 25, fumaça inicialmente confinada aos primeiros 3.000 m da atmosfera; Caso 26, fumaça inicialmente distribuída entre 13.000 e 19.000 m em todo o globo; e Caso 27, parte imaginária do índice de refração da fumaça reduzida de 0,3 para 0,1. Para efeito de comparação, no Caso 4, só se considera a poeira do modelo de referência (não se consideram os incêndios).

Testes de Sensibilidade Um grande número de testes de sensibilidade foi efetuado como parte deste estudo. Os resultados são resumidos a seguir. Variações razoáveis nos parâmetros da poeira nuclear no cenário de referência produzem profundidades óticas médias hemisféricas iniciais de poeira que variam aproximadamente de 0,2 a 3,0. Assim, a poeira nuclear por si só poderia produzir um impacto climático importante. No caso de referência, a opacidade da poeira é muito maior que a opacidade total de aerossol associada às erupções do El Chichón e do Agung; mesmo quando se atribuem aos parâmetros de poeira os seus valores menos adversos dentro da faixa plausível, os efeitos são comparáveis aos de uma grande explosão vulcânica. A Figura 5 compara profundidades óticas de nuvens nucleares para algumas variações dos parâmetros de fumaça do modelo de referência (com a poeira incluída). No caso de referência, admite-se que tempestades ígneas injetem somente uma pequena fração (5%) da emissão total de fumaça na estratosfera. Assim, os Casos 1 e 3 (sem tempestades ígneas) são muito semelhantes. Numa digressão extrema, toda a fumaça nuclear é injetada na estratosfera e rapidamente difundida a toda a volta da Terra (Caso 26); profundidades óticas elevadas podem persistir por um ano (Fig. 5). Também se obtém um prolongamento dos efeitos óticos no Caso 22, em que o tempo de eliminação troposférica das partículas de fumaça

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aumenta de 10 a 30 dias próximo do solo. Em contraste, quando a fumaça nuclear se mantém inicialmente próximo do solo e se supõem processos dinâmicos e hidrológicos de remoção inalterados, a eliminação da fumaça ocorre muito mais depressa (Caso 25). Mas, mesmo neste caso, parte da fumaça ainda se difunde para a alta troposfera e ali permanece durante vários meses. Num grupo de cálculos ópticos, fez-se variar o índice de refração imaginário da fumaça entre 0,3 e 0,01. As profundidades ópticas calculadas para índices entre 0,1 e 0,3 praticamente não mostram diferenças (Casos 1 e 27 na Fig. 5). Com um índice de 0,05, a profundidade ótica de absorção se reduz em apenas 50%, e com 0,01 em 85%. Por outro lado, a opacidade total (absorção mais dispersão) aumenta em 5%. Esses resultados mostram que a absorção de luz e o aquecimento nas nuvens de fumaça nuclear permanecem elevados até que a fração de carbono grafítico da fumaça caia abaixo de uns poucos pontos percentuais. Um dos testes de sensibilidade (Caso 29, não figurado) considera os efeitos óticos no Hemisfério Sul (HS) da poeira e fuligem transportadas da estratosfera do HN. Nesse cálculo, a fumaça do Caso 13 (300 MT, HS) se soma à metade da poeira e fumaça estratosféricas do caso de referência (com dispersão global rápida na estratosfera). A profundidade ótica inicia! é 1 no HS, caindo para 0,3 em três meses. As temperaturas médias preditas nas superfícies continentais do HS caem 8ºK em algumas semanas e permanecem pelo menos 4ºK abaixo do normal por quase oito meses. No entanto, a influência sazonal deve ser levada em conta. Por exemplo, as piores conseqüências para o HN resultariam de um conflito de primavera ou de verão, quando as plantações são vulneráveis e o perigo de fogo é maior. O HS, que estaria então no outono ou no inverno, seria nesse caso menos sensível ao escurecimento e esfriamento. Não obstante, as implicações deste cenário para as regiões tropicais de ambos os hemisférios parecem sérias e merecedoras de uma análise suplementar. Fatores sazonais também podem modular a resposta

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atmosférica às perturbações pela fumaça e poeira, e devem ser consideradas.

Figura 6: Profundidades óticas verticais (absorção mais dispersão em 550 nm) em função do tempo para casos ampliados de energia explosiva ou produção de poeira e fumaça nucleares. As condições são detalhadas noutro lugar. As quantidades de energia explosiva liberada são as mesmas dos casos nominais de igual total constantes do Quadro 1 (os Casos 16 e 18 também estão relacionados). Os

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casos “severos” consideram geralmente um aumento de seis vezes na injeção de poeira fina e de duas vezes na emissão de fumaça. Nos casos 15, 17 e 18, a fumaça é responsável pela maior parte da opacidade durante os primeiros um, dois meses. Nos casos 17 e 18, a poeira contribui com a principal parcela para os efeitos óticos depois de um, dois meses. No Caso 16 desprezam-se os incêndios e toda a opacidade é produzida pela poeira de explosões na superfície. Alguns testes de sensibilidade para casos mais severos foram levados a efeito com liberações de energia variando de 1.000 a 10.000 MT e valores mais adversos, mas não implausíveis, atribuídos aos parâmetros de poeira e fumaça. Os efeitos preditos são consideravelmente piores (ver abaixo). As menores probabilidades desses casos mais severos devem ser pesadas contra os desfechos catastróficos que eles pressupõem. Seria política prudente medir a importância desses cenários em termos do produto das suas probabilidades pelos custos dos efeitos respectivos. Infelizmente, não temos meios de quantificar com precisão as probabilidades aplicáveis. No entanto, pela sua própria natureza, os casos mais severos devem ser os mais importantes a considerar com vistas ao emprego de armas nucleares. Com essas reservas, apresentamos na Figura 6 as profundidades óticas para alguns dos casos mais severos. Opacidades elevadas podem persistir por um ano, e temperaturas superficiais continentais podem cair a 230-240ºK, ou seja, cerca de 50ºK abaixo do normal. Combinados a baixos níveis de luz (Fig. 4), esses cenários severos levantam a possibilidade de conseqüências ecológicas catastróficas e generalizadas. Dois testes de sensibilidade foram efetuados para determinar aproximadamente as propriedades óticas da aglomeração de aerossol nas nuvens em início de expansão. (As simulações já levam em conta a coagulação contínua das partículas nas nuvens dispersas.) Admitiu-se uma dispersão muito lenta nas nuvens iniciais estabilizadas de poeira e fumaça, levando cerca de oito meses para cobrir o HN. A

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coagulação de partículas reduziu a opacidade média ao fim de três meses em cerca de 40%. Quando a eficiência adesiva das partículas em colisão também foi maximizada, a opacidade média ao fim de três meses reduziu-se em 75%. Na situação mais provável, porem, a aglomeração e coagulação imediata reduziria as profundidades óticas médias hemisféricas das nuvens em 20 a 50%.

Outros Efeitos Foram considerados também, com menos detalhe, os efeitos à longo prazo da precipitação radioativa, do NOx gerado pelas bolas de fogo, e dos gases tóxicos e pirogênicos. A física da precipitação radioativa é bem conhecida. Nossos cálculos referem-se principalmente à acumulação externa na escala intermediária de tempo da precipitação devida ao arrastamento e deposição seca da poeira nuclear dispersa. Para estimar níveis possíveis de exposição, adotamos uma fração de energia de fissão de 0,5 para todas as armas. Quanto à exposição apenas à emissão gama da poeira radioativa, que no cenário de referência (5.000 MT) começa a precipitar depois de dois dias, a dose total média hemisférica acumulada por humanos em alguns meses seria de 20 rads, supondo-se ausência de abrigo e de remoção da poeira por agentes meteorológicos. Durante esse tempo a precipitação ficaria restrita principalmente às latitudes médias do HN; ali, portanto, a dose poderia ser 2 a 3 vezes maior. Considerando a ingestão de radionuclídeos biologicamente ativos e exposição ocasional a precipitação localizada, a dose crônica total média nas latitudes médias de radiação ionizante no caso de referência seria mais de 50 rads de radiação gama externa no corpo inteiro, somados a mais de 50 rads em órgãos internos específicos, provenientes de emissores internos de radiações beta e gama. No caso de 10.000 MT, com as mesmas suposições, as doses médias seriam multiplicadas por dois. Estas doses sõao mais ou menos uma ordem de grandeza maiores que as das estimativas precedentes, que desprezaram o arrastamento

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e precipitação na escala intermediária de tempo de resíduos nucleares troposféricos produzidos por detonações de baixa potência (menos de 1 MT). O problema do NOx produzido nas bolas de fogo das explosões de alta potência, e da resultante redução do ozônio atmosférico, foi tratado em vários estudos. No nosso caso de referência, encontrou-se para o empobrecimento médio hemisférico de ozônio um valor máximo de 30%. Este seria bem menor se as potências das ogivas individuais fossem todas reduzidas a menos de 1 MT. Considerando a relação entre o acréscimo da radiação UV-B e o decréscimo de ozônio, são previstas doses de UV-B aproximadamente iguais ao dobro do normal no primeiro ano após o conflito no caso de referência (depois de dissipadas a poeira e a fuligem). Efeitos maiores de UV-B resultariam de ataques com ogivas de maior potência (ou artefatos multidetonantes). Os incêndios nucleares gerariam uma grande variedade de gases tóxicos (piratoxinas), inclusive CO e HCN. Segundo Crutzen e Birks, uma densa capa de poluição atmosférica, incluindo concentrações aumentadas de ozônio, poderia recobrir o HN durante vários meses. Preocupam-nos também as dioxinas e os furanos, compostos extremamente tóxicos e persistentes que são liberados na combustão de substâncias orgânicas sintéticas de largo emprego. Num conflito nuclear poderiam ser geradas centenas de toneladas de dioxinas e furanos. As conseqüências ecológicas à longo prazo dessas pirotoxinas nucleares merecem estudos mais aprofundados.

Perturbações Meteorológicas Variações horizontais da absorção de luz solar na atmosfera e na superfície são as forças impulsoras básicas da circulação atmosférica. Em vários dos casos considerados neste estudo são indicadas modificações de vulto nessas forças. Por exemplo, desigualdades de temperatura superiores a 10ºK entre áreas continentais do HN e os

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oceanos contíguos podem induzir uma forte circulação do tipo monção, análoga em certos aspectos ao padrão de inverno nas vizinhanças do subcontinente Indiano. Do mesmo modo, o contraste de temperaturas entre regiões atmosféricas carregadas de resíduos e regiões adjacentes ainda não ocupadas pela fumaça e poeira deve produzir novas modalidades de circulação. Assim, pois, as nuvens de poeira e fumaça nucleares poderão ocasionar perturbações climáticas de monta e efeitos correspondentes, através de mecanismos variados: reflexão de radiação solar para o espaço e absorção de luz solar na alta atmosfera, resultando em esfriamento superficial generalizado; modificação dos padrões de absorção da luz solar e aquecimento que promovem a circulação atmosférica em pequena escala e em grande escala; introdução de maior quantidade de vapor de água e de núcleos de condensação de nuvens, que afetam a formação de nuvens e o regime de chuvas; e alteração do albedo superficial por incêndios e fuligem. Esses efeitos conjugam-se intimamente para determinar a resposta atmosférica geral a uma guerra nuclear. Por ora não é possível prever em detalhe as alterações nos campos combinados da circulação atmosférica e da radiação, e no comportamento do tempo e dos microclimas, que resultariam das injeções maciças de poeira e de fumaça aqui analisadas. Portanto, a especulação tem de limitar-se a considerações muito gerais. A evaporação dos oceanos é uma fonte contínua de umidade para a camada marinha Iimítrofe. Uma camada densa semipermanente de bruma ou nevoeiro poderia recobrir grandes porções de água. As conseqüências para a precipitação pluviométrica marinha não são claras, principalmente se os ventos dominantes normais forem grandemente alterados pelo agente solar perturbado. Algumas regiões continentais poderiam sofrer nevadas contínuas durante vários meses. As chuvas podem promover a remoção da fuligem, se bem que o processo possa não ser muito eficiente no caso de nuvens nucleares. É provável que, em média, as taxas de precipitação pluviométrica fossem em geral menores que na atmosfera ambiente: a

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principal fonte restante de energia para a formação de tempestades é o calor latente da evaporação oceânica, e a atmosfera superior fica mais quente que a inferior, o que elimina a convecção e a formação de chuvas. Apesar da possibilidade de grandes nevadas, não é provável que uma guerra nuclear desencadeasse uma glaciação. O período de esfriamento (menos de um ano) provavelmente é curto demais para vencer a considerável inércia do sistema climático da Terra. O reservatório de calor que são os oceanos haveria de forçar o clima no sentido dos padrões contemporâneos nos anos seguintes à guerra. Do ponto de vista climatológico, a introdução de CO2 pelos incêndios nucleares não é expressiva.

Transporte Inter-Hemisférico Em estudos anteriores foi admitido que um transporte inter-hemisférico significativo de detritos nucleares e radioatividade demandaria um ano ou mais. Isto com base em observações de transporte em condições ambientes, inclusive a dispersão de nuvens de detritos produzidas por testes nucleares atmosféricos isolados. No entanto, nuvens densas de poeira e fumaça produzidas por milhares de explosões quase simultâneas seriam de molde a provocar distúrbios dinâmicos intensos em seguida a uma guerra nuclear. Podo-se estabelecer uma analogia aproximada com a evolução das tempestades de poeira de escala global em Marte. A baixa atmosfera marciana assemelha-se em densidade à estratosfera da Terra, e o período de rotação é quase igual ao da Terra (embora a insolação seja apenas metade da terrestre). As tempestades de poeira que se formam em um dos hemisférios de Marte não raro se intensificam e se propagam rapidamente ao planeta inteiro, cruzando o equador num tempo médio de 10 dias. Aparentemente, a explicação está no aquecimento da poeira levantada, que passa a suplantar outras fontes de calor e a determinar a circulação. Haberle e outros empregaram um modelo

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bidimensional para simular a evolução das tempestades de poeira em Marte e concluíram que a poeira em baixas latitudes, no núcleo da circulação de Hadley, é o fator mais Importante de modificação dos ventos. Num conflito nuclear, a maior parte da poeira e fumaça seria injetada em latitudes médias. Entretanto, Haberle e outros não conseguiram encaixar em seus cálculos as ondas de escala planetária. Perturbações da amplitude de ondas planetárias podem influir consideravelmente no transporte de detritos nucleares entre médias e baixas latitudes. Efeitos atmosféricos de vulto poderiam produzir-se no HS (i) pela injeção de poeira e fumaça resultante de explosões em objetivos do HS, (ii) pelo transporte de detritos do HN através do equador meteoro lógico por ventos do tipo monção 4, e (iii) por transporte inter-hemisférico na alta troposfera e na estratosfera, promovido pelo aquecimento solar das nuvens de poeira e fumaça nucleares. Observações fotométricas da nuvem produzida pela erupção do vulcão El Chichón (origem 14ºN) pelo satélite Solar Mesosphere Explorer mostraram que 10 a 20% do aerossol estratosférico foram transportados para o HS após 7 semanas.

Discussão e Conclusões Os estudos aqui esboçados sugerem efeitos climáticos sérios à longo prazo como conseqüência de um conflito nuclear de 5.000 MT. Apesar das incertezas no que se refere às quantidades e propriedades da poeira e da fumaça produzidas por explosões nucleares, e das limitações dos modelos usados para análise, podem tirar-se em primeira aproximação as seguintes conclusões: (1) Em desacordo com a maior parte dos estudos anteriores (p. ex., Ref. 2), nós concluímos que uma guerra nuclear global produziria um grande impacto sobre o clima - manifestado em escurecimento considerável da superfície durante muitas semanas, temperaturas

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continentais glaciais persistindo por até vários meses, grandes perturbações nos padrões de circulação global e alterações dramáticas de condições meteorológicas locais e regimes de chuvas - um rigoroso "inverno nuclear" em qualquer estação. Transporte inter-hemisférico acelerado de detritos nucleares na estratos fera também poderia ocorrer, embora se façam necessários estudos de modelo para quantificar esse efeito. Com a rápida mistura inter-hemisférica, o HS poderia sofrer grandes injeções de detritos nucleares pouco tempo depois de um conflito no HN. Antes, supunha-se que os efeitos no HS seriam de pouca monta. Embora se preveja que os distúrbios climáticos durem mais de um ano, parece improvável que fosse deflagrada uma transformação climática de vulto à longo prazo, como uma glaciação. (2) Efeitos climáticos relativamente grandes poderiam resultar mesmo de um conflito nuclear relativamente pequeno (100 a 1.000 MT) se os ataques se concentrassem em áreas urbanas, pois 100 MT já são suficientes para arrasar e incendiar algumas centenas de grandes centros urbanos do mundo. Um limiar tão baixo de energia para emissões maciças de fumaça, embora dependendo do cenário, implica que mesmo conflitos nucleares limitados podem deflagrar conseqüências graves. Tanto menos provável é que a liberação de 5.000 a 10.000 MT tivesse apenas efeitos leves. (3) Prevê-se que o impacto climático da fumaça negra de incêndios nucleares ateados por explosões aéreas será mais importante que o da poeira levantada por detonações na superfície (quando os dois efeitos ocorrerem). A fumaça absorve eficientemente a luz solar, ao passo que a poeira de solo é geralmente não-absorvente. As partículas de fumaça são extremamente pequenas (tipicamente raio inferior a 1 u), o que prolonga o seu tempo de residência atmosférica. Há também uma alta probabilidade de que explosões nucleares sobre cidades, florestas e campos ateariam incêndios de grande extensão,

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mesmo em ataques limitados a silos de mísseis e outros alvos militares estratégicos. (4) A fumaça de incêndios urbanos pode ser mais importante que a de incêndios florestais colaterais por duas razões pelo menos: (i) num conflito em grande escala, é provável que cidades contendo grandes depósitos de matérias combustíveis sejam diretamente atacadas; e (ii) tempestades ígneas intensas poderiam bombear fumaça para a estratosfera, onde o tempo de residência é de um ano ou mais. (5) A poeira nuclear também pode contribuir para o impacto climático de um conflito nuclear. O efeito climático da poeira é muito sensível à maneira de condução da guerra; é de esperar um efeito menor se forem empregadas armas de menor potência e se houver predominância de detonações aéreas sobre detonações no solo. A ocorrência de detonações múltiplas poderia agravar os efeitos climáticos da poeira nuclear, mas não há dados suficientes para avaliar esta questão. (6) A exposição à precipitação radioativa pode ser mais intensa e generalizada do que o predito por modelos empíricos de exposição que desprezam a precipitação intermediária, a qual pode estender-se por dias e semanas, tanto mais se grandes quantidades de detritos de fissão fossem bruscamente liberadas na troposfera por explosões de potência abaixo de 1 MT. Num conflito de 5.000 MT, podem verificar-se em latitudes médias do HN doses médias de raios gama (exposição corporal) de até 50 rads; doses maiores podem ocorrer nos penachos de precipitação que partindo dos objetivos se estenderiam centenas de quilômetros na direção do vento. Essa estimativa deixa de levar em conta uma dose provavelmente não insignificante de radiação interna devida a radionuclídeos biologicamente ativos. (7) Sinergismos entre efeitos à longo prazo de uma guerra nuclear - como baixos níveis de luz, temperaturas glaciais, exposição à

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precipitação radioativa intermediária, alto grau de poluição pirogênica do ar e fluxo acrescido de UV-B -, agravados pela supressão de socorros médicos, suprimento de alimentos e serviços civis, poderiam aumentar em muito o número de baixas e afetar seriamente o ecossistema global. Uma avaliação das possíveis conseqüências biológicas à longo prazo dos efeitos de uma guerra nuclear quantificadas neste estudo foi feita por Ehrlich e outros. Nossas estimativas dos impactos físicos e químicos de uma guerra nuclear são necessariamente imprecisas porque nós utilizamos modelos unidimensionais, porque os dados básicos são incompletos e porque o problema não é passível de investigação experimental. Também não nos é possível prever a natureza exata das alterações da dinâmica atmosférica e da meteorologia apontadas pelos nossos cenários de guerra nuclear, nem o efeito de tais alterações na manutenção ou dispersão das nuvens iniciais de poeira e fumaça. Não obstante, sendo tão grande a magnitude dos efeitos de primeira ordem, e tão sérias as implicações, esperamos que as questões científicas aqui levantadas sejam enérgica e criticamente examinadas.

CONSEQÜÊNCIAS BIOLÓGICAS À LONGO PRAZO DE UMA GUERRA NUCLEAR

Estudos recentes de uma guerra nuclear em grande escala (liberação de 5.000 a 10.000 MT) estimaram que haveria 750 milhões de mortes imediatas somente por ação das explosões; um total de 1,1 bilhão de mortes provocadas pelos efeitos combinados de explosões, fogo e radiação e aproximadamente outro tanto de feridos necessitando cuidados médicos. Assim, as baixas imediatas de uma guerra nuclear poderiam representar de 30 a 50% da população do mundo. A grande maioria das baixas ocorreria no Hemisfério Norte, principalmente nos Estados Unidos, URSS, Europa e Japão. Esses números enormes

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têm sido tipicamente citados para definir em toda a sua magnitude o potencial catastrófico de uma guerra dessa espécie. No entanto elementos novos aqui apresentados sugerem que os efeitos biológicos à mais longo prazo resultantes de alterações climáticas podem ser pelo menos tão graves quanto os imediatos. Nossa preocupação neste artigo é com os dois ou três bilhões de pessoas não imediatamente mortas, inclusive as de países situados a grandes distâncias do conflito nuclear. Consideram-se principalmente os resultados de uma guerra nuclear em que poeira e fumaça são injetadas na atmosfera em quantidade bastante para interceptar a maior parte da radiação solar incidente, possibilidade esta inicialmente sugerida por Ehrlich e outros, e inicialmente quantificada e divulgada por Crutzen e Birks. Numa ampla gama de cenários de conflito nuclear, com liberação de energia variando de 100 a 10.000 MT, sabemos agora que a luz solar poderia ser absorvida e dispersada em grau suficiente para provocar escuridão e frio em áreas extensas, (esses trabalhos são coletivamente designados TTAPS). Em todos os casos as computações indicam conseqüências biológicas de extrema gravidade. Todos os cenários estão perfeitamente enquadrados nas possibilidades atuais, e do ponto de vista estratégico não parecem improváveis. Além disso, é possível que a probabilidade de uma guerra nuclear com altíssima liberação de energia tenha sido de modo geral subestimada. Examinam-se também as conseqüências da propagação de efeitos atmosféricos ao Hemisfério Sul. Consideramos como caso de referência o Caso 17 dos cenários estudados no TTAPS. É o caso de um conflito de 10.000 MT em que aos parâmetros que definem as propriedades dos aerossóis de poeira e fuligem são atribuídos valores adversos mas não implausíveis, e em que 30% da fuligem são carreados por tempestades ígneas a altitudes estratosféricas. As perturbações ambientais resultantes, com as respectivas margens de incerteza, estão relacionadas para os Hemisférios Norte e Sul no Quadro 1, A e B.

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Tomando valores médios para o Hemisfério Norte, independentemente da estação do ano, os fluxos calculados de luz visível reduzir-se-iam a aproximadamente 1% do normal, e as temperaturas superficiais no interior dos continentes poderiam cair a aproximadamente -40°C. Seria necessário no mínimo um ano para que a luz e a temperatura retornassem às condições normais. Em zonas de objetivos, de início a escuridão poderia ser total, mesmo ao meio-dia. Uma porção estimada de 30% das áreas continentais de latitudes médias do Hemisfério Norte receberia uma dose de radioatividade superior a 500 R imediatamente após as explosões. Essa dose, produzida por emissores gama externos da precipitação radioativa, igualaria ou excederia a dose aguda média letal (LD50) para adultos sadios. Nos dias e semanas seguintes, a precipitação contribuiria uma dose externa adicional superior a 100 R em 50% das latitudes médias norte. Doses internas contribuiriam outros 100 R ou mais concentrados em sistemas orgânicos específicos como a tiróide, os ossos, o trato gastrointestinal e o leite das lactantes. Após o assentamento da poeira e da fumaça, o fluxo superficial de radiação solar ultravioleta (UV-B, 320 a 290 nm) seria aumentado várias vezes durante alguns anos em virtude do empobrecimento da ozonosfera por ação do NOx gerado pelas bolas de fogo. Os efeitos no Hemisfério Sul envolveriam níveis mínimos de luz inferiores a 10% do normal, temperaturas mínimas continentais na superfície inferiores a -18ºC e aumentos de UV-B de dezenas de pontos percentuais durante anos. Os impactos potenciais das alterações climáticas induzidas por uma guerra nuclear são sumariados no Quadro 2. Evidentemente são possíveis guerras termonucleares menos adversas para o meio, mas efeitos climáticos semelhantes aos aqui delineados poderiam resultar de conflitos muito mais limitados, de não mais de algumas centenas de megatons, no caso de ataques a cidades. Mesmo que não houvesse efeitos climáticos globais, as conseqüências regionais de uma guerra nuclear poderiam ser sérias (Quadro 3). Achamos, no entanto, que os detentores do poder de decisão devem ser plenamente informados das conseqüências

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potenciais dos cenários mais prováveis de desencadear efeitos prolongados. Por isso, concentramo-nos; neste artigo, no caso "severo" de 10.000 MT, em vez de no caso de referência de 5.000 MT do TTAPS. De qualquer modo, por causa dos sinergismos, as conseqüências de qualquer dado cenário de guerra nuclear podem ser mais graves que as que abaixo se descrevem. Nosso conhecimento do funcionamento detalhado dos ecossistemas globais é ainda muito incompleto para podermos avaliar todas as interações, e por conseguinte os efeitos cumulativos, dos muitos fatores adversos a que as populações humanas e os ecossistemas seriam submetidos. Cada sinergismo não avaliado é provavelmente um fator negativo multiplicador.

Temperatura O impacto de temperaturas dramaticamente reduzidas sobre as plantas dependeria da época do ano em que elas ocorressem, da sua duração e dos limites de tolerância de cada espécie vegetal. Particularmente importante é a queda brusca de temperatura. O trigo de inverno, por exemplo, pode suportar temperaturas de até -15º a -20ºC quando pré-condicionado a baixas temperaturas (como ocorre naturalmente nos meses de outono e de inverno), mas uma temperatura de -5ºC pode matar as mesmas plantas se expostas durante o crescimento ativo de verão. Até plantas de regiões alpinas, como por exemplo o Pinus cembra, que toleram temperaturas de até -50ºC no meio do inverno, podem ser mortas por temperaturas de -5ºC a -10ºC ocorridas no verão. Os cálculos do TTAPS indicam que as temperaturas cairiam em tempo curto aos seus níveis mínimos (Quadro 1); nessas circunstâncias é improvável que plantas normalmente resistentes ao frio pudessem "endurecer" (desenvolver tolerância ao congelamento) antes de alcançadas temperaturas letais. Outros traumas infligidos às plantas pela radiação, por poluentes do ar e por baixos níveis de iluminação imediatamente após a guerra

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multiplicariam os danos provocados pelo esfriamento. Além disso, plantas doentes ou danificadas têm reduzidas a sua capacidade de suportar condições de frio extremo. Mesmo temperaturas bem acima do ponto de congelamento podem ser danosas para certas plantas. Por exemplo, a exposição do arroz ou do sorgo a uma temperatura de apenas 13ºC na época crítica pode inibir a formação de grãos porque o pólen produzido é estéril. O milho (Zea mays) e a soja (Glycine max), duas culturas importantes na América do Norte, são muito sensíveis a temperaturas de menos de 10ºC. Se bem que uma guerra nuclear no outono ou no inverno teria provavelmente efeitos menores sobre as plantas do que na primavera ou no verão, a vegetação tropical é vulnerável às baixas temperaturas em todas as épocas do ano. As únicas regiões em que as plantas terrestres poderiam escapar à devastação pelo frio extremo seriam aquelas situadas junto às costas e em ilhas, onde as temperaturas seriam moderadas pela inércia térmica dos mares. Contudo, essas áreas experimentariam condições meteorológicas excepcionalmente violentas devido ao forte gradiente lateral de temperatura entre os oceanos e o interior dos continentes.

Luz Visível A ruptura da fotossíntese pela atenuação da luz solar incidente teria conseqüências que se propagariam em cascata ao longo das cadeias alimentares, muitas das quais incluem o homem como consumidor. A produtividade primária se reduziria mais ou menos na proporção do grau de atenuação da luz, mesmo na hipótese pouco realista de que a vegetação não fosse afetada de outros modos. Vários estudos têm examinado os efeitos do escurecimento sobre o ritmo da fotossíntese, o crescimento das plantas e o rendimento das safras. Embora folhas individuais possam ser saturadas por níveis de luz abaixo da metade da luz solar normal, plantas inteiras, que têm

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várias camadas de folhas orientadas em diferentes ângulos em relação ao sol e sombreando parcialmente umas as outras, geralmente não são saturadas. Assim, uma redução de luz de apenas 10%, ainda que não reduzisse a fotossíntese numa folha inteiramente exposta, poderia reduzi-la no conjunto da planta devido à presença de folhas não saturadas no folhame. Aliás, visto que as plantas também respiram, é provável que na maioria dos casos todo crescimento seria interrompido se o nível de luz caísse uns 5% abaixo dos níveis ambientes normais do habitat (ponto de compensação). Nos níveis previstos para os primeiros meses seguintes a um conflito nuclear de vulto, as plantas seriam seriamente afetadas e muitas morreriam pela redução substancial de sua produtividade causada unicamente pela redução de luz.

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Radiação lonizante

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A exposição à radiação ionizante num conflito nuclear seria o resultado direto do fluxo de nêutrons e raios gama da bola de fogo, dos detritos radioativos depositados na direção do vento. e da parte dos detritos que seria transportada pelo ar e circularia globalmente. O grau de dano dos organismos dependeria do tempo e intensidade da exposição, sendo os efeitos tanto mais graves quanto maiores o tempo e a exposição total. A exposição letal média para o homem é geralmente calculada em 350 a 500 R recebidos no corpo inteiro em menos de 48 horas. Para a maior parte dos outros mamíferos e para algumas plantas a exposição letal média é inferior a 1.000 R. Se o tempo de exposição diminui, a dose letal média aumenta. A área submetida à radiação intensa produzida pela bola de fogo também seria diretamente afetada pelo sopro e pelo calor. O raio dentro do qual a pressão do sopro ultrapassa cinco libras por polegada quadrada é definida como a zona letal de sopro, e a área em que o fluxo térmico ultrapassa 10 cal/cm2, como a zona letal de calor. O raio dentro do qual se calcula que a radiação ionizante da bola de fogo seria letal para o homem é menor que os raios de letalidade definidos pela pressão ou pelo calor. Não se deu aqui atenção especial adicional aos efeitos da radiação ionizante produzida pelas bolas de fogo. Uma estimativa, baseada no cenário da revista Ambio e parecida com o caso de referência do TTAPS, envolve a liberação de 5.742 MT e cerca de 11.600 detonações, sem superposição de campos de precipitação; sugere que cerca de 5 x 10 elevado a 6 km2 seriam expostos a 1.000 R ou mais em áreas situadas na direção do vento. Cerca de 85% dessa exposição total seriam recebidos em 48 horas. Essa exposição é letal para todas as pessoas expostas, e pode causar a morte de espécies vegetais sensíveis como a maioria das coníferas - árvores que formam florestas extensas na maior parte das zonas mais frias do Hemisfério Norte. Se reatores, depósitos de rejeitos radioativos e usinas de reprocessamento de combustível nuclear fossem atingidos num ataque, a área afetada e os níveis de radiação ionizante poderiam ser ainda maiores.

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Na hipótese de que mais ou menos a metade da área afetada por radiação de precipitação na faixa de 1.000 a 10.000 R fosse coberta de florestas, seriam aproximadamente 2,5 x 10 elevado a 6 km2 dentro dos quais ocorreria extensa mortalidade de árvores e muitas outras plantas. Com isso criar-se-ia a possibilidade de incêndios de grandes proporções. A maior parte das coníferas morreria numa área equivalente a cerca de 2,5% de toda a superfície terrestre do Hemisfério Norte. A possibilidade de até 30% da área continental de latitudes médias ser exposta a 500 R ou mais de radiação gama acentua a escala e a gravidade do perigo (Quadro 1A). Uma exposição total de 500 R, embora tivesse pouco efeito sobre a maior parte das populações vegetais, provocaria mortalidade generalizada entre todos os mamíferos, seres humanos inclusive. Os sobreviventes expostos ficariam doentes por semanas, e mais propensos ao câncer pelo resto de suas vidas. O total de pessoas afetadas excederia um bilhão.

Radiação UV-B Nas semanas seguintes ao conflito, a poeira e fuligem troposféricas e estratosféricas absorveriam o fluxo de UV-B que sem isso seria transmitido pela ozonosfera parcialmente destruída. Mas quando, alguns meses passados, a poeira e a fuligem se dissipassem, os efeitos da rarefação de O3 far-se-iam sentir na superfície. No Hemisfério Norte, o fluxo de UV-B aumentaria aproximadamente duas vezes no caso de referência do TTAPS e quatro vezes no da guerra de 10.000 MT considerado no Quadro 1A. Tal como acontece no caso de uma ozonosfera inaIterada, a dose de UV-B seria bem maior nas latitudes equatoriais do que nas temperadas. Mesmo empobrecimentos bem menores de O3 são considerados perigosos para os ecossistemas e para o homem. Se a banda inteira de UV-B aumentasse em cerca de 50%, a quantidade de UV-B no extremo de energia mais alta da banda, em torno de 295 nm,

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aumentaria umas 50 vezes. Essa região tem importância biológica especial devido à fone absorção de energia nesses comprimentos de onda pelos ácidos nucléicos, pelos aminoácidos aromáticos e pela ligação peptídica. Em grandes doses, a UV-B é muito destrutiva para as folhas, enfraquecendo as plantas e reduzindo a sua produtividade. Sabe-se que a produtividade do plâncton marinho próximo à superfície é consideravelmente deprimida por níveis ambientes atuais de UV-B; aumentos mesmo pequenos poderiam ter "conseqüências profundas" para a estrutura das cadeias alimentares marinhas. Em pelo menos quatro outros modos, níveis acrescidos de UV-B são sabidamente prejudiciais aos sistemas biológicos: (i) sabe-se que os sistemas imunológicos do Homo sapiens e de outros mamíferos são suprimidos mesmo por doses relativamente baixas de UV-B18. Particularmente em condições de radiação ionizante aumentada e outras sobrecargas fisiológicas, essa supressão dos sistemas imunológicos conduz a um aumento de incidência de doenças. (ii) Folhas que atingem a maturidade sob baixas intensidades de luz são duas ou três vezes mais sensíveis à UV-B do que as que se desenvolvem sob iluminação intensa. (iii) A sensibilidade das bactérias à UV-B é aumentada por temperaturas baixas, que suprimem o processo normal de reconstituição do ADN, processo esse que depende da luz visível. (iv) Exposição prolongada a doses excessivas de UV-B pode induzir danos da córnea e cataratas, produzindo cegueira no homem e em mamíferos terrestres. Assim, os efeitos do aumento de UV-B podem estar entre as mais sérias conseqüências antes não previstas de uma guerra nuclear.

Efeitos Atmosféricos Numa guerra nuclear, grandes quantidades de poluentes do ar, entre eles Co, O3, NOx, cianetos, cloretos de vinil, dioxinas e furanos, seriam liberadas junto à superfície. Haveria smog e chuvas ácidas em extensas áreas depois do conflito. Talvez essas toxinas não tivessem

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efeitos imediatos significativos sobre uma vegetação já devastada; entretanto, dependendo da sua persistência, poderiam certamente obstar a sua recuperação. Por outro lado, o seu transporte pelos ventos para ecossistemas mais distantes, de início não afetados, poderia ser um importante efeito adicional. Incêndios em grande escala conjugados a uma interrupção da absorção do CO2 fotossintético produziriam um aumento a curto prazo da concentração atmosférica de CO2. A quantidade atual de CO2 na atmosfera equivale à que é consumida por vários anos de fotossíntese e recebe a influência estabilizadora das reservas de carbono inorgânico dos oceanos. Dessa forma, se o clima global e a produtividade fotossintética dos ecossistemas se restabelecessem em níveis próximos do normal no curso de alguns anos, é improvável que viesse a ocorrer uma alteração de longo prazo na composição da atmosfera. Contudo, não é fora dos domínios do possível que um evento abrangendo os dois hemisférios, com os conseqüentes danos aos organismos fotossintéticos, causasse um brusco aumento de concentração de CO2 e assim alterações climáticas duráveis. Para efeito de comparação. o tempo de reciclagem de O2 através da biosfera é de aproximadamente 2.000 anos.

Sistemas Agrícolas As reservas de alimentos básicos nos centros de população humana são pequenas, e a maior parte da carne e dos produtos frescos é suprida diretamente pelas fazendas. Somente grãos de cereais são armazenados em quantidades expressivas, mas os locais de armazenagem situam-se com freqüência em pontos distantes dos centros urbanos. Em seguida a uma guerra na primavera ou no princípio do verão, as safras do ano seriam quase certamente perdidas. Numa guerra de outono ou de inverno os grãos teriam sido colhidos, mas como o clima permaneceria extremamente frio por

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muitos meses, a época seguinte de plantio seria também desfavorável ao crescimento das plantas. Em suma, após uma guerra nuclear as fontes potenciais disponíveis de alimentos no Hemisfério Norte seriam destruídas ou contaminadas, ou estariam em locais inacessíveis, ou logo se esgotariam. Nos países diretamente envolvidos na guerra haveria escassez de alimentos em muito pouco tempo. Outrossim, países que hoje precisam de grandes importações, ainda que não atingidos por explosões nucleares, sofreriam uma pronta interrupção de abastecimento, o que os obrigaria a contar unicamente com seus ecossistemas agrícolas e naturais locais. Este seria um seríssimo problema para muitas nações menos desenvolvidas, principalmente nas regiões tropicais. Em sua maior parte, as principais culturas são anuais, e dependem em alto grau de subsídios energéticos e nutritivos fornecidos por sociedades humanas. Além disso, a fração da sua produção utilizável para consumo humano requer a fixação de um excesso de energia acima das necessidades respiratórias das plantas, o que exige insolação abundante e minimização de agressões ambientais por pragas, insuficiência de água, partículas em suspensão no ar, poluição, etc. Depois de uma guerra nuclear, proporcionar tais condições seria muitíssimo difícil, se não impossível, na maior parte da Terra ou possivelmente em toda ela. Portanto, para todos os efeitos práticos, a agricultura tal como a conhecemos deixaria de existir.

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Como na maior parte das culturas norte-americanas, européias e soviéticas as sementes são colhidas e armazenadas não em fazendas individuais mas predominantemente em áreas-objetivos ou em seus arredores, os estoques de sementes para anos subseqüentes seriam quase com certeza seriamente desfalcados, e é provável que a variabilidade genética dessas culturas, já limitada, fosse drasticamente reduzida. Além do mais, as áreas potenciais de cultura experimentariam modificações climáticas locais, altos níveis de contaminação radioativa e solos empobrecidos ou erodidos. A recuperação da produção agrícola teria de ocorrer na ausência de subsídios maciços de energia (especialmente sob a forma de combustível de trator e de fertilizantes) aos quais a agricultura das nações desenvolvidas veio a adaptar-se. Exceto ao longo das costas, os regimes continentais de chuvas reduzir-se-iam substancialmente durante algum tempo após um

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conflito nuclear. Mesmo hoje, a precipitação pluviométrica é o principal fator condicionante da produção agrícola em muitas áreas, e a irrigação, com seus requisitos de energia e de sistemas de suporte humano para bombeamento de água do solo, não seria exeqüível depois de uma guerra. Ademais, nos meses seguintes à guerra a maior parte da água disponível estaria congelada, e o restabelecimento das temperaturas em seus níveis normais seria lento.

Ecossistemas Terrestres Temperados Na medida em que decaísse a agricultura organizada, os 2 ou 3 bilhões de sobreviventes aos efeitos imediatos da guerra seriam obrigados a voltar-se para os ecossistemas naturais. E justamente quando estes seriam solicitados a prover sustento a uma população humana muito acima da sua capacidade de carga, o funcionamento deles próprios seria entravado seriamente pelos efeitos da guerra nuclear. A ação sobre os ecossistemas de baixas temperaturas, fogo, radiação, tempestades e outras agressões físicas (muitas delas ocorrendo simultaneamente) resultaria em sua maior suscetibilidade a surtos de pragas e doenças, provavelmente prolongados. A produtividade primária reduzir-se-ia dramaticamente nos baixos níveis de luz reinantes; e, por causa da UV-B, do smog, dos insetos, da radiação e de outros fatores adversos, é improvável que voltasse em pouco tempo aos níveis normais, mesmo depois de restabelecidos os valores de luz e temperatura. Ao mesmo tempo em que teriam o seu suprimento de alimentos vegetais seriamente limitado, quase todos, se não todos, os vertebrados não imediatamente mortos pelas explosões e pela radiação ionizante ou morreriam congelados, ou enfrentariam um mundo de escuridão em que sucumbiriam de fome ou de sede, já que as águas superficiais estariam congeladas e portanto inaproveitáveis. Muitos dos sobreviventes estariam isolados, e em

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muitos casos doentes, resultando na extinção ligeiramente retardada de muitas outras espécies. A par de alimento e abrigo, os ecossistemas naturais suprem a civilização de uma série de serviços essenciais. Entre estes, a regulação da composição atmosférica, a moderação do clima e das intempéries, a regulação do ciclo hidrológico, a geração e preservação de solos, a degradação de resíduos e a reciclagem de substâncias nutrientes. Do ponto de vista humano, entre os papéis mais importantes dos ecossistemas estão a sua função direta no fornecimento de alimento e a manutenção de um vasto acervo de espécies do qual o Homo sapiens retirou as bases da civilização. A perda acelerada desses recursos genéticos pela extinção seria uma das conseqüências potenciais mais sérias de uma guerra nuclear. Incêndios florestais seriam um efeito importante nos ecossistemas temperados do norte, sua escala e distribuição dependendo de fatores como o cenário de guerra e a estação do ano. Outra incerteza ponderável é a extensão das tempestades ígneas, que poderiam aquecer as camadas profundas do solo em grau suficiente para lesar ou destruir bancos de sementes, principalmente em tipos de vegetação não adaptados a queimas periódicas. Detonações aéreas múltiplas em áreas sazonalmente secas como a Califórnia no fim do verão ou princípio do outono poderiam calcinar grande parte das áreas de mata e de campo do Estado, ocasionando inundações e erosões catastróficas na estação chuvosa subseqüente. Aluvionamento, escoamentos tóxicos e chuvas radioativas poderiam matar grande parte da fauna de águas doces e costeiras, e níveis concentrados de radioatividade em populações de mariscos sobreviventes poderiam tornar perigoso o seu consumo por períodos prolongados. Outras conseqüências importantes de uma guerra nuclear para ecossistemas terrestres compreendem (i) desintoxicação mais lenta do ar e da água, como resultado secundário dos danos em plantas que são hoje importantes eliminadores metabólicos de toxinas; (ii) evaporação-transpiração reduzida nas plantas, contribuindo para uma taxa menor de entrada de água na atmosfera, principalmente em

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regiões continentais, e portanto para um ciclo hidrológico mais lento; e (iii) alterações consideráveis da superfície do solo, resultando em erosão acelerada e, provavelmente, grandes tempestades de areia. A recuperação da vegetação poderia assemelhar-se superficialmente à que se segue a incêndios locais. No entanto, os efeitos da radiação, do smog, da erosão, da poeira e das chuvas tóxicas sobrepor-se-iam aos do frio e da escuridão, prolongando e modificando a sucessão do pós-guerra de modos que retardariam a restauração das funções ecossistêmicas. É provável que as alterações de ecossistemas fossem em sua maior parte, passageiras. Certas alterações estruturais e funcionais, porém, poderiam ser mais duradouras, e possivelmente irreversíveis, na medida em que os ecossistemas sofressem mudanças qualitativas para estados alternativos estáveis. As perdas de solos por erosão seriam sérias em áreas de ocorrência de incêndios extensos, morte das plantas e condições climáticas extremas. Tudo dependeria em grande parte das características de ventos e chuvas que se desenvolvessem durante o primeiro ano após a guerra. A diversidade de muitas comunidades naturais seria quase com certeza substancialmente reduzida, e numerosas espécies de plantas, de animais e de microorganismos se extinguiriam.

Ecossistemas Terrestres Tropicais O grau em que as regiões tropicais seriam submetidas a condições dos gêneros acima descritos dependeria de fatores como a seleção de objetivos, prevalência de tempestades ígneas, ruptura da distinção entre troposfera e estratosfera e taxa de mistura inter-hemisférica em função da altitude. A propagação de nuvens densas de poeira e fuligem e de temperaturas glaciais às regiões tropicais do norte é altamente provável, e ao Hemisfério Sul pelo menos possível, portanto é propositado examinar as conseqüências prováveis dessa propagação (Quadro 1B).

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Por exemplo, as sementes das árvores de matas tropicais tendem a ter vida bem mais curta que as das zonas temperadas. Se a escuridão ou as baixas temperaturas, ou ambas, atingissem os trópicos em grande escala, as florestas tropicais poderiam desaparecer em grande parte. E isto redundaria na extinção da maioria das espécies vegetais, animais e microbianas da Terra, com conseqüências prolongadas da maior importância para a adaptabilidade das populações humanas. Se a escuridão se estendesse aos trópicos, vastas áreas de vegetação tropical, que se consideram muito próximas do ponto de compensação, entrariam em definhamento. Além disso, muitas plantas de climas tropicais e subtropicais não possuem mecanismos de dormência que lhes permitam suportar estações frias, mesmo em temperaturas bem acima do ponto de congelamento. Ainda que a escuridão e o frio se limitassem principalmente às regiões temperadas, ondas de ar frio e fuligem poderiam induzir quedas bruscas de temperatura em grandes extensões da faixa tropical. Isso corresponderia a uma intensificação do fenômeno conhecido como "friagem", termo empregado para descrever os efeitos de frentes frias, originadas na América do Sul temperada, que penetram na Bacia Amazônica equatorial, onde produzem a morte de grandes quantidades de aves e peixes. Pelos indícios existentes dos efeitos de esfriamento no plistoceno e suas conseqüências, pode-se prever que áreas continentais de baixas latitudes seriam seriamente afetadas por baixas temperaturas do ar e redução de chuvas. A dependência de populações tropicais em relação a alimentos e fertilizantes importados teria conseqüências graves, mesmo que os trópicos não fossem diretamente afetados pela guerra. Grandes números de pessoas seriam forçadas a abandonar as cidades e a tentar cultivar as áreas remanescentes de floresta, acelerando a sua destruição e conseqüente velocidade de extinção. Tais atividades também aumentariam grandemente a quantidade de fuligem na atmosfera pela prática improvisada de derrubada e queima em grande escala. Não importa qual a exata distribuição dos efeitos imediatos da

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guerra, ao cabo todos os habitantes da Terra seriam profundamente afetados.

Ecossistemas Aquáticos De modo geral, os organismos aquáticos são protegidos contra oscilações extremas de temperatura do ar pela inércia térmica da água. Não obstante, muitos sistemas de água doce congelariam a profundidades consideráveis ou totalmente em virtude das alterações climáticas causadas por uma guerra nuclear. O efeito da escuridão prolongada em organismos marinhos já foi estimado. Produtores primários na base da cadeia alimentar marinha são particularmente sensíveis a níveis baixos de luz demorados; níveis tróficos superiores sofrem com retardo efeitos propagados de menor intensidade. Além disso, a produtividade do plâncton marinho próximo à superfície é consideravelmente deprimida pelos níveis atuais de UV-B; mesmo pequenos aumentos de UV-B podem ter conseqüências profundas para a estrutura das cadeias alimentares marinhas. Muitos imaginam que as margens Oceânicas seriam uma fonte importante de sustento para os sobreviventes de uma guerra nuclear; no entanto, os efeitos combinados da escuridão, da UV-B, das tempestades litorâneas, da destruição de navios na guerra e da concentração de radionuclídeos em sistemas marinhos de águas rasas lançam fortes dúvidas sobre essa possibilidade.

Conclusões Os prognósticos de mudanças climáticas são bastante sólidos, e indicam que, qualitativamente, de uma guerra limitada de 500 MT ou menos em que se atacassem cidades decorreriam os mesmos tipos de agressões que de uma guerra em grande escala de 10.000 MT. Em essência, todos os serviços de suporte dos ecossistemas seriam seriamente comprometidos (Quadros 2 e 3). Acentue-se que os

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sobreviventes, ao menos no Hemisfério Norte, enfrentariam frio extremo, escassez de água; falta de alimentos e de combustíveis, fortes cargas de radiação e poluentes, doenças e enormes tensões psíquicas - tudo isso em penumbra ou em completa escuridão. Existe a possibilidade de que o escurecimento e as baixas temperaturas se propagassem ao planeta inteiro. Se isso acontecesse, poderia resultar um processo acentuado de extinção, que deixaria uma Terra grandemente transformada e biologicamente empobrecida. Poder-se-ia esperar a extinção da maior parte das espécies vegetais e animais tropicais, da maior parte dos vertebrados terrestres das regiões temperadas do norte, de um grande número de plantas, de muitos organismos de água doce e de alguns marinhos. Parece, entretanto, improvável que mesmo nessas circunstâncias o Homo sapiens fosse de pronto levado à extinção. Quanto à possibilidade de alguns indivíduos persistirem muito tempo em face de comunidades biológicas grandemente alteradas, de climas modificados, de sistemas agrícolas, sociais e econômicos desfeitos, de tensões psíquicas inusitadas e de todo um séquito de outras dificuldades, é uma questão em aberto. É evidente que os efeitos de uma guerra termonuclear em grande escala sobre os ecossistemas seriam por si sós suficientes para destruir a civilização presente, pelo menos no Hemisfério Norte. Somada às baixas diretas, em número superior a um bilhão, a combinação dos efeitos intermediários e a longo prazo de uma guerra nuclear sugere que ao fim de algum tempo poderiam não restar sobreviventes no Hemisfério Norte. Além do mais, o cenário aqui descrito não é em absoluto o pior que se possa imaginar, tendo em vista os arsenais mundiais existentes e os previstos para um futuro próximo. Qualquer conflito nuclear em grande escala entre as superpotências seria de molde a produzir modificações ambientais globais suficientes para causar a extinção de uma fração considerável das espécies animais e vegetais da Terra. Nesse caso, a possibilidade da extinção do Homo sapiens não pode ser excluída.

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