cardozo, josé eduardo - conselho de Ética e decoro parlamentar

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Cardozo, José Eduardo - Conselho de Ética e Decoro Parlamentar

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  • O contedo dos artigos de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), que cederam Comisso de Ps-Graduao em Direito, da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo, os respectivos direitos de reproduo e/ou publicao. No permitida a utilizao desse contedo para fins comerciais.

    CONSELHO DE TICA E DECORO PARLAMENTAR

    CONSULTA N. 001/2007

    Jos Eduardo Cardozo Ministro da Justia

    n. 4, 2011

  • Cadernos de Ps-Graduao em Direito, Comisso de Ps-Graduao da Faculdade de Direito da USP, So Paulo, n. 4, 2011

    2011 Comisso de Ps-Graduao da Faculdade de Direito da USP

    Qualquer parte desta publicao pode ser reproduzida desde que citada a fonte

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO Reitor: Joo Grandino Rodas Vice-Reitor: Hlio Nogueira da Cruz Pr-Reitor de Ps-Graduao: Vahan Agopyan Faculdade de Direito Diretor: Antonio Magalhes Gomes Filho Vice-Diretor: Paulo Borba Casella Comisso de Ps-Graduao Presidente: Monica Herman Salem Caggiano Vice-Presidente: Estvo Mallet

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    FICHA CATALOGRFICA Elaborada pelo Servio de Biblioteca e Documentao

    Faculdade de Direito da USP

    Cadernos de Ps-Graduao em Direito : estudos e documentos de trabalho / Comisso de Ps-Graduao da Faculdade de Direito da USP, So Paulo, n. 1, 2011-. Mensal ISSN: 2236-4544 Publicao da Comisso de Ps-Graduao em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo 1. Direito 2. Interdisciplinaridade. I. Comisso de Ps-Graduao da Faculdade de

    Direito da USP CDU 34

  • Cadernos de Ps-Graduao em Direito, Comisso de Ps-Graduao da Faculdade de Direito da USP, So Paulo, n. 4, 2011

    Os Cadernos de Ps-Graduao em Direito, da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo, constitui uma publicao destinada a divulgar os trabalhos apresentados em eventos promovidos por este Programa de Ps-Graduao. Tem o objetivo de suscitar debates, promover e facilitar a cooperao e disseminao da informao jurdica entre docentes, discentes, profissionais do Direito e reas afins.

    Monica Herman Salem Caggiano Presidente da Comisso de Ps-Graduao da

    Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo

  • Cadernos de Ps-Graduao em Direito, Comisso de Ps-Graduao da Faculdade de Direito da USP, So Paulo, n. 4, 2011

    SUMRIO

    CONSELHO DE TICA E DECORO PARLAMENTAR - CONSULTA N. 001/2007 ................................................................... 5 Jos Eduardo Cardozo

    CADERNOS DE PS-GRADUAO EM DIREITO: ESTUDOS E DOCUMENTOS DE TRABALHO .................................................. 34 Normas para Apresentao

  • Cadernos de Ps-Graduao em Direito, Comisso de Ps-Graduao da Faculdade de Direito da USP, So Paulo, n. 4, 2011

    CONSELHO DE TICA E DECORO PARLAMENTAR - CONSULTA N. 001/2007

    Jos Eduardo Cardozo Ministro da Justia

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    Cadernos de Ps-Graduao em Direito, Comisso de Ps-Graduao da Faculdade de Direito da USP, So Paulo, n. 4, 2011

    CONSELHO DE TICA E DECORO PARLAMENTAR

    CONSULTA N. 001/2007

    Os lderes do PMDB, do PT, do PP e do PR consultam sobre a admissibilidade de instaurao de procedimento disciplinar contra parlamentar quando o fundamento da representao tiver por base ato ou procedimento supostamente ocorrido em momento anterior a processo eleitoral que confirma novo mandato.

    VOTO EM SEPARADO

    Jos Eduardo Cardozo Ministro da Justia

    PREMBULO

    Tem sido costume poltico em nosso pas, mormente ao longo da vida parlamentar brasileira, a retrica defesa de proposituras no plano abstrato, com o objetivo manifesto e indisfarvel de atendimento a situaes concretas, bem definidas, individualizadas, em tica impregnada por posturas pragmticas, casusticas e, por que no dizer, oportunistas. Teses favorveis reeleio daqueles que exercem mandatos so apresentadas e defendidas quanto ao seu mrito e no plano dos princpios, mas com o objetivo bem localizado de permitir a concreta e casustica reeleio de um especfico portador de mandato eletivo; prazos de aposentadorias de agentes pblicos recebem proposta de alterao constitucional acompanhados de argumentao lastreada na sua correo axiolgica ou no mrito de tal ou qual atividade, mas visam objetivamente atender apenas a certos interesses concretos e pessoais; tetos de remunerao de agentes polticos e servidores so discutidos no plano das idias, mas tm direcionamento especfico para certos beneficirios. esta a triste realidade de um meio pouco afeto, por sua tradio e por sua cultura histrica, a discusses efetivamente republicanas e democrticas. Onde a impessoalidade da motivao decisria deveria ser vista como uma obrigatria imposio tica e isonmica, prevalece quase sempre o uso retrico e hipcrita de princpios cuja invocao depende no da sua vigncia ou do seu mrito, mas dos interesses e da posio concreta de seres de carne e osso que aguardam para si os benefcios ou os malefcios daquilo que ser decidido.

    Por isso, em nosso meio social, lastreou-se a presuno universal quase sempre absoluta, de que a defesa de uma tese por um poltico guarda sempre uma inteno ardilosa oculta em algum interesse carnal concreto, individualizado e casustico que se pretende seja contemplado. Dir-se- que,

    Os lideres do PMDB, do PT, do PP e do PR formularam, em 2007, Consulta com base no Cdigo de tica e de Decoro Parlamentar, (inciso IV do art. 6 da Resoluo n. 25/2001).

    Texto elaborado por ocasio de consulta formulada no perodo em que o autor era Deputado Federal pelo PT.

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    se a tese ampliativa de direitos, porque algum da estreita relao do que a defende ser aquinhoado. Ao revs, se restritiva de vantagens, porque algum inimigo do seu defensor ser atingido. Tertium non datur.

    Assim, se no mundo do Direito se reconhece e se ensina que as decises administrativas (atos administrativos) so marcados por uma presuno de veracidade, no sem certa dose de ironia, mas com honestidade intelectual, tomaremos a liberdade de denominar esta presuno a que nos referimos de presuno da no veracidade da argumentao poltica. Presuno relativa, em alguns povos, na medida em que admitem que o poltico demonstre a honestidade, a veracidade e a real convico com que defende as suas posies, por mais equivocadas que possam parecer aos olhos de terceiros, mas quase sempre tida como absoluta entre os brasileiros, uma vez que a desonestidade, o carter no verdadeiro, a ausncia de sincera convico por parte do poltico ser sempre afirmada, pouco importando sua histria de vida e as provas que apresente do contrrio.

    Esta presuno , sem dvida, um dos graves problemas que atingem todos os que, no mundo poltico brasileiro, se propem a ter como guia maior da sua conduta a tica e a viso republicana de mundo. Sempre que enfrentam um embate poltico rduo e difcil, em que posies antagnicas entram em choque, a presuno do uso retrico dos princpios se afirma e o julgamento preconceituoso quase nunca deixa de transitar em julgado em seu desfavor. Se isto defende porque algum lhe interessava favorecer ou prejudicar. Se calado permanece por ter dvidas e justifica seu comportamento dizendo que quer ouvir antes para melhor formar a sua convico, ser um dissimulado porque com algum se acumpliciou. Em qualquer das rotas que decida seguir, nadar contra a mar ser o seu obstculo, e o seu castigo, o afogamento nas ondas das opinies adversas.

    Sou daqueles que acredita que sempre, pagando-se o preo que tiver de ser pago, necessrio nadar contra a mar das preconceituosas presunes absolutas no mundo da poltica. sempre prefervel sentir no corpo as dores de uma convico defendida com tica e princpios, a receber aplausos e sentir na conscincia a punhalada do oportunismo. Acredito que na poltica, como na cincia e em todos os quadrantes da vida humana, a ningum dado o dom de ser neutro ou absolutamente impermevel aos valores que norteiam o agir humano. Contudo, tambm acredito que possvel agir no mundo na poltica tendo por premissas a tica e uma leitura assumidamente impessoal dos princpios que informam o Estado de Direito e a Democracia. Creio que possvel chegar-se, de modo honesto e sincero, a decises polticas no casusticas e autenticamente impessoais, a partir destas mesmas premissas. Creio que se deve recusar a prtica de primeiro saber-se o que se deseja para depois se fazer a escolha arbitrria dos princpios que retoricamente podem fundamentar nosso ato de vontade. Opto por lembrar GRACIN quando diagnosticou, ainda no sculo XVII, que vulgar agravio de la poltica es confundirla con la astcia.

    Tomo a liberdade de fazer estas consideraes preliminares por ter conscincia de que esta ser a situao de todos os que, membros desse DD. Conselho, optarem por analisar a matria com absoluto distanciamento dos fatos concretos que politicamente parecem envolver a presente consulta e desejarem firmar suas convices com racionalidade e honestidade no plano abstrato dos princpios que devem nortear as respostas aos quesitos apresentados.

    Deveras, como a ningum dado ignorar, existem casos concretos, individualizados, e a deciso de abertura ou no dos respectivos procedimentos pode vir a depender da resposta que ser dada a esta Consulta. Dificilmente qualquer deciso dos membros deste Conselho escapar de aplausos ou vaias motivados pela presuno da no veracidade da argumentao poltica acima

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    referida. Quando expressarmos posio contrria daqueles que nos observam, seremos abutres que se alimentam da desgraa alheia, cmplices ou vendidos, conforme a posio que venhamos a assumir. Quando expressarmos posio em favor dos que nos julgam, seremos sempre oportunistas, s que dessa vez agindo do lado certo.

    Busquemos um exemplo hipottico que melhor permitir aclarar o que pretenderemos dizer a partir de agora.

    Imaginemos, em tese, que um deputado federal, no exerccio do seu mandato, da Tribuna do Parlamento viesse a proferir um violento discurso contra a inrcia governamental na realizao da reforma agrria e conclamasse a todos os semterra e excludos que imediatamente fizessem, em protesto, ocupaes de terras em todo o pas. Na seqncia desse pronunciamento, imaginemos ainda que inmeras ocupaes de reas pblicas e privadas ocorressem. Diante destes fatos, como seria provvel, consideremos a hiptese de que um partido poltico, sustentando a tese de que a inviolabilidade de um parlamentar quanto s suas palavras e opinies atinge apenas as punies de natureza civil e penal (art. 53, caput, da Constituio Federal) e no as infraes de natureza tico-disciplinar, venha a apresentar representao, na forma do nosso Cdigo de tica, propondo a abertura de processo destinado aplicao da pena de cassao a esse parlamentar. Alegar, para tanto, a ocorrncia de ato incompatvel com o decoro (art. 55, III, e 1., da Constituio Federal c/c. art. 4 do Cdigo de tica da Cmara dos Deputados), por ter o parlamentar abusado de uma prerrogativa do seu mandato (usar da tribuna) ao incitar publicamente a prtica de um crime (crime de esbulho possessrio previsto no art. 161, II, do Cdigo Penal), o que seria conduta tipificada at criminalmente pela legislao em vigor (art. 286 do Cdigo Penal). Avaliando pela reao da maioria de seus pares de que a representao seria certamente acolhida com a subseqente aplicao da pena de cassao de mandato, antes da efetiva abertura do processo disciplinar, o parlamentar acusado renuncia ao seu mandato alegando que submeter a sua conduta ao julgamento direto e legtimo do povo brasileiro. Reunindo condies legais de elegibilidade, participaria o ento ex-parlamentar de novo processo eleitoral, vindo a obter, nas urnas, um novo mandato de deputado federal. Imaginemos, por fim, que no exerccio desse novo mandato uma nova representao contra ele seja apresentada propondo-se a aplicao da pena de cassao em face do discurso anteriormente proferido durante a legislatura anterior.

    A pergunta se colocaria, ento, da mesma forma que hoje nos apresentada, mas diante de situao concreta obviamente diferente: seria jurdica e politicamente correta, no caso, apesar do resultado das urnas, a abertura de um processo de cassao que tenha por motivo um fato j apreciado quando da sua nova eleio pela populao? Seria correto, justo e legtimo que representantes do povo viessem a extinguir um mandato outorgado diretamente pelo prprio povo por fatos que este, no exerccio da soberania popular, no considerou motivo para a recusa de um novo mandato?

    Naturalmente, aqueles que presumem que o direito de propriedade um direito natural, intocvel, expressivo de um valor sagrado e consagrado pela histria dos povos, olhando os fatos concretos, e presos ao casusmo e s humanas emoes do momento, diro que sim, que seria correta a abertura do processo de cassao do parlamentar subversivo. J os que com outra formao ideolgica entendem como legtima a ocupao de terras na luta pela justia social, diro olhando os mesmos fatos concretos, presos ao mesmo casusmo e s mesmas humanas emoes do momento que no, e montaro barricadas para defender a legitimidade popular do mandato daquele

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    herico parlamentar. Ambos os lados formularo teses para sustentar as suas verdades retoricamente como se fossem princpios que devem orientar todos os casos, no presente ou no futuro. Mas nestas teses apenas estaro considerando o casusmo dos fatos, guiados pelo prprio senso de justia neste ou naquele sentido.

    Considerando-se este hipottico exemplo, certamente, as opinies estariam divididas na resposta a estas questes, da mesma forma que hoje tambm esto divididas diante dos fatos que envolvem a presente consulta. S que com uma diferena: aqueles que diante do casusmo atual defendem uma tese invocando certos princpios, muito provavelmente diante dos fatos exemplificados acima, com a mesma altivez e sinceridade de propsitos, talvez defendessem a tese oposta amparando-se em princpios diferentes. O casusmo que impregna a nossa cultura poltica, e que faz os mais valorosos e sinceros terem sua viso turvada pelo momento, freqentemente nos pega peas desta natureza. Fazem com que princpios sejam construdos em decorrncia do atendimento de desejos concretos e imediatos de justia, de vingana, de medo da opinio pblica ou de compadrio, trazendo no futuro, muitas vezes no to longnquo, um dolorido ricocheteio das palavras do passado nos ouvidos de quem as proclamou. Mesmo quando com bons propsitos, e em defesa de uma causa que entendemos como justa, abdicamos de um exame racional e sincero dos princpios que devem orientar a Democracia e o Estado de Direito, seguramente, o casusmo que justificar a nossa ao no presente, talvez trazendo hoje afagos, aplausos ou gloria, poder ser o mesmo que aniquilar nossa a boa inteno amanh.

    O que fazer ento na anlise da presente Consulta, luz dos fatos e do casusmo que a envolve? Ignorar, mesmo que fosse com propsitos de justia, a racionalidade do princpio que afirma que vivemos em um Estado Democrtico de Direito e fixar pragmaticamente uma tese que nos satisfaa diante da realidade casustica que hoje nos envolve? Ou tentar uma abstrao profunda desta mesma realidade olhando com racionalidade os princpios que devem reger hoje, amanh e sempre este Estado?

    Os que optarem por pragmaticamente seguir a nossa tradio poltica, olharo casuisticamente as situaes concretas que motivam a presente consulta e que se postam imediatamente abaixo do seu nariz, avaliaro o posicionamento que lhes trar maior benefcio ou menor perda, e apresentaro com ares de impolutos e imparciais julgadores a tese que mais se adapta a seus interesses pessoais, fundamentando-a nos princpios de ocasio. E se no futuro forem outros os fatos, e tambm outras as convenincias dos seus interesses, ento pacincia, que se mude a tese e que se reformulem os princpios. Estaro, assim, dando sustentao real, efetiva, ftica j referida presuno da no veracidade da argumentao poltica. Confirmaro a regra histrica do pragmatismo e do oportunismo poltico brasileiro e muito provavelmente, assim tristemente tem nos ensinado a vida, tero sempre melhor sorte diante da opinio pblica dos que optarem por seguir caminho oposto.

    Firmo este Voto em Separado para lastrear minha posio na linha que segue na contramo desta tradio pragmtica. Minha argumentao se prender racional e exclusivamente s convices que tenho da tica, e dos princpios do Estado de Direito e da Democracia. Certo ou errado, sei que a presuno da no veracidade da argumentao poltica poder incidir sobre meu voto, fazendo-me arcar com os danos polticos desse comportamento. Alis, no foram poucos os que, embora convencidos das minhas boas intenes na apreciao dessa matria, por conhecerem a mim, a minha histria de vida, e a minha atual situao poltica, disseram que eu deveria seguir um caminho mais pragmtico, ou que no me expusesse tanto s crticas que meu ponto de vista poder suscitar.

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    Recuso-me terminantemente a isso. Se tenho uma convico, devo explicit-la, independentemente dos seus resultados polticos concretos, dos aplausos ou das vaias que porventura possa receber. necessrio lutar contra a presuno da no veracidade da argumentao poltica que tira legitimidade dos nossos polticos, mesmo que o afogamento se imponha ao se tentar lutar contra a mar. Assim me posiciono, por estar convencido de que so corretas as palavras de DE GAULLE ao afirmar que a poltica mais dispendiosa, mais ruinosa, a de ser pequeno... (la politique la plus coteuse, la plus ruineuse, cest dtre petit ...).

    Por isso, com os riscos da incompreenso e at de possvel acusao de ingenuidade poltica, mas com a convico democrtica e de direito que tenho sobre esta matria, que apresento este Voto em Separado, para melhor expressar as razes que o fundamentam. Aos que dele discordarem peo apenas que o leiam de forma no preconceituosa para que, pelo menos, me dem a oportunidade de demonstrar que estou plenamente convencido do que sustento e que a presuno da no veracidade da argumentao poltica, mesmo em solo brasileiro, por vezes, pode ser tida como inexistente.

    I. RELATRIO

    Cuida o presente de Consulta firmada, nos termos do art. 6, IV, da Resoluo n 25/2001, pelos lderes do PMDB, PR, PT e PP, acerca de questes pertinentes admissibilidade da instaurao de procedimentos disciplinares contra deputados federais eleitos, e materializada, em sntese, na apresentao das seguintes indagaes:

    a) admissvel a instaurao de procedimento disciplinar contra parlamentar quando o fundamento da representao for baseado em ato ou procedimento supostamente ocorrido em momento anterior a processo eleitoral que confirma novo mandato ampla e suficientemente divulgado e debatido pelas autoridades competentes nos foros prprios e de conhecimento dos cidados poca do pleito?

    b) Tal hiptese no configuraria constrangimento ao exerccio de mandato, em flagrante subverso dos preceitos constitucionais e a vontade expressa pelo povo nas urnas?

    c) Essa mesma hiptese no encontraria bice regimental no disposto no art. 2 do Cdigo de tica e Decoro Parlamentar, na medida em que iria de encontro vontade do eleitor e, conseqentemente, garantia do pleno exerccio do mandato popular?

    Trata-se, por conseguinte, de consulta formulada em tese, ou seja, de consulta que dever ser apreciada apenas por meio de questionamentos ofertados in abstrato, e independentemente de qualquer anlise ftica ou concreta de situaes porventura j prefiguradas. E assim, naturalmente, apenas em tese haver de ser analisada e respondida. Em boa compreenso da matria, ao que nos parece, a sua resposta servir apenas como um balizamento orientador futuro para todos e quaisquer procedimentos cuja instaurao venha a ser doravante apreciada, in concreto, por este DD. Conselho no exerccio de sua competncia regimental.

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    Desse modo, data mxima venia, temos como pouco apropriadas as consideraes preliminares deduzidas no requerimento original acerca de recente episdio envolvendo vrios parlamentares acusados em participao de esquema de fraudes. Deveras, se a consulta feita em tese, como dito anteriormente, seu exame dever levar em conta exclusivamente a dimenso principiolgica e normativa aplicvel ao objeto da consulta, e no este ou aquele caso concreto que possa ter trazido s mentes dos consulentes as dvidas que formulam a este DD. Conselho. Assim sendo, em nada dever importar aqui aos membros do Conselho de tica, no momento da apreciao da matria ora posta sub examine, a identidade, os nomes, a condio partidria, poltica, ideolgica, ou mesmo os fatos concretos praticados por aqueles que podero a vir a se submeter no futuro aos eventuais efeitos benficos ou no desta consulta. Trata-se, repita-se pela derradeira vez, de consulta feita em tese sobre a admissibilidade de abertura de procedimentos disciplinares contra deputados luz da Constituio, da legislao e das normas regimentais em vigor. Por isso, alm de ser apreciada com irrestrito atendimento ao princpio da impessoalidade que, alis, deve orientar todas e quaisquer decises tomadas em consultas ou procedimentos disciplinares a serem instaurados - dever apenas considerar o plano abstrato das questes que motivam a presente. Os fatos concretos, por sua vez, apenas havero de ser considerados e avaliados quando da anlise dos procedimentos disciplinares cuja instaurao se requer.

    II. VOTO

    1. DEFINIES PRVIAS

    Segundo nos parece, a adequada compreenso da matria que informa a presente Consulta exige o desenvolvimento prvio de algumas definies bsicas. So estas:

    a) a caracterizao da natureza dos procedimentos de cassao de mandatos de parlamentares promovidos pelo Poder Legislativo em face da prtica de atos incompatveis com o decoro parlamentar;

    b) a admissibilidade jurdica de que parlamentares que cometem ilcitos ou infraes ticas no exerccio de um mandato possam vir a ser cassados em mandatos subseqentes em decorrncia destes mesmos ilcitos ou infraes;

    c) a definio dos limites discricionrios possveis na apreciao poltica do julgamento feito pelo Parlamento, nos casos de reeleio de parlamentar acusado da prtica de ato incompatvel com o decoro.

    Passemos ento ao seu exame.

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    1.1. A natureza do procedimento de cassao de mandatos parlamentares promovidos pelo Poder Legislativo em face da prtica de atos incompatveis com o decoro parlamentar

    Dois diferentes aspectos tm caracterizado as discusses doutrinrias e cientficas acerca do procedimento de cassao de mandatos parlamentares promovidos pelo Poder Legislativo. O primeiro, diz respeito definio da natureza da funo estatal (jurisdicional ou administrativa) realizada nestes casos. O segundo concerne natureza jurdica ou poltica da deciso tomada ao final dos processos de cassao promovidos pela prtica de ato incompatvel com o decoro parlamentar.

    Algumas rpidas consideraes devero ser dedicadas a estes questionamentos.

    1.2. A natureza jurisdicional ou administrativa dos procedimentos de declarao de extino ou de cassao de mandatos parlamentares

    Polmica tem sido, ao longo dos tempos, a definio da natureza dos procedimentos promovidos pelas Casas parlamentares para declarar a perda ou decidir a cassao dos mandatos de seus membros. Houve quem sustentasse que, considerando-se a clssica tripartio das funes estatais pioneiramente formulada por MONTESQUIEU e adotada como premissa de construo do Estado Moderno, ou Estado de Direito, teriam eles natureza tipicamente judicial ou jurisdicional. Afinal, a atividade de aplicar a lei com a atribuio de uma sano punitiva a algum em decorrncia da prtica de uma conduta parlamentar indevida haveria de ser tida propriamente como julgadora, e no como legislativa ou administrativa(executiva). Desse modo, embora pertencendo ao campo das funes estatais tpicas do Poder Judicirio, por determinao constitucional objetiva, exclusivamente no caso de infraes tico-disciplinares cometidas por parlamentares, o exerccio da funo jurisdicional seria atribudo ao Poder Legislativo. Tratar-se-ia, portanto, dentro dessa particular forma de ver o problema, de atividade judicial ou jurisdicional atpica atribuda em carter excepcional a este Poder.

    No esta, ao nosso ver e ao ver da melhor doutrina, a adequada compreenso da matria. Embora de difcil distino no plano cientfico, tem prevalecido modernamente, ao menos dentre aqueles estudiosos ptrios e estrangeiros que tm como possvel a adoo de critrios racionais de distino entre as trs funes estatais que fundamentam a teoria da tripartio dos Poderes do Estado, um claro elemento diferenciador entre atividade jurisdicional (judicial) e a administrativa (executiva). Este elemento diferenciador a impossibilidade de reviso jurdica das decises tomadas no exerccio da funo estatal, tradicionalmente denominada pelos juristas de autoridade de coisa julgada.

    Como bem afirmou LIEBMAN, o ilustre processualista italiano cujo pensamento tanto influenciou a elaborao do nosso Cdigo Processual Civil de 1973, entende-se por coisa julgada a qualidade de imutabilidade que atinge os efeitos de um ato jurdico, de modo a que possua uma eficcia natural erga omnes, ou seja, que se defina como imutvel por toda e qualquer pessoa ou rgo do Estado. Assim, somente uma nica funo estatal poder produzir como resultado de um ato seu esta qualidade: a funo jurisdicional (judicial). Somente ela poder produzir um ato jurdico que no

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    ser passvel de desconstituio no futuro por qualquer outra atividade estatal. Nem a lei, nem o ato administrativo, nem mesmo uma outra deciso judicial podem modificar ou desconstituir a coisa julgada quando esta atinge o seu grau mximo de eficcia jurdica.

    Disso decorre a importante constatao diferenciadora: a funo administrativa (executiva) do Estado no poder jamais produzir um ato ou uma deciso coberta pelo manto da autoridade de coisa julgada, e, por isso, poder sempre ser revista por um rgo que receba a misso constitucional de exercer a funo jurisdicional. Em outras palavras: os atos decisrios praticados no exerccio da funo administrativa (executiva) sempre podero ser revistos, sob o aspecto da sua legalidade (validade) ou no, pela funo jurisdicional do Estado.

    Donde se poder afirmar, com a segurana daqueles que se situam ao lado de grande parte dos jurisconsultos modernos, que a possibilidade de produzir atos revestidos da autoridade de coisa julgada o principal, seno o nico, critrio seguro que permite diferenciar o exerccio da funo jurisdicional (judicial) da administrativa (executiva).

    Firmada esta ponderao prvia, uma natural e irremovvel indagao subseqente se apresenta para o deslinde da questo que ora colocamos em exame: a deciso tomada pelo Parlamento acerca da perda ou da cassao de um de seus membros se reveste ou no da autoridade de coisa julgada? Se possuir esta autoridade, por definio, dever ser tida como tomada no exerccio da funo jurisdicional. Em caso contrrio, ser qualificada como prpria do exerccio da funo administrativa do Estado. Nisto se afirmar premissa menor de raciocnio que deve ser adotada para a indicao de uma resposta conclusiva para o questionamento em exame.

    E, ao nosso ver, no se deve ter como muito difcil esta definio.

    De fato, cada sistema jurdico, de acordo com as regras do seu respectivo direito positivo, poder apontar uma soluo diferente para o problema. Se a Constituio de um pas afirmar que a deciso tomada pelo Parlamento em procedimentos de cassao de seus membros ser definitiva, ou seja, impossvel de ser revista, gerando uma verdadeira situao de imutablidade intransponvel no mbito daquele conjunto orgnico estatal, ela ser de induvidosa natureza jurisdicional. Por ser tomada pelo Poder Legislativo, e no pelo Judicirio, ser considerada como funo jurisdicional atpica ou imprpria exercida por aquele primeiro Poder, uma vez que seria tpica ou prpria apenas se fosse exercida pelo Poder Judicirio, concebido e criado para exercer em carter ordinrio, tpico ou prprio a funo jurisdicional. Ao revs, se for revisvel por qualquer outra deciso tomada por rgo estatal distinto, no ser passvel de produzir a autoridade de coisa julgada e, por conseguinte, no ser uma deciso de natureza jurisdicional, mas meramente administrativa. Ser tida como funo administrativa atpica ou imprpria exercida pelo Poder Legislativo. Atpica ou imprpria do Legislativo porque a funo administrativa, no mbito da teoria da tripartio dos Poderes do Estado, ordinariamente exercida, ou seja, em carter tpico ou prprio, apenas pelo Poder Executivo.

    Apenas duas qualificaes possveis se apresentam, portanto, para a deciso tomada em procedimento de declarao da perda ou da cassao de mandatos parlamentares promovidos pelo Poder Legislativo: ou se trata de ato pertinente atividade jurisdicional atpica ou imprpria realizada por este Poder, ou de ato concernente atividade administrativa atpica ou imprpria por ele realizada. Nunca se definir como tpica ou prpria dele, porque, ordinariamente, tpica ou prpria desse Poder apenas a funo de produzir leis, ou seja, a funo legislativa do Estado. E no caso, por bvio, quando se decide declarar a perda ou desconstituir um mandato parlamentar no se est produzindo uma lei,

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    no se est legislando, no sentido material de se produzir um comando abstrato e genrico para orientar as condutas em uma sociedade, mas apenas um ato decisrio concreto.

    Pergunte-se ento: so definitivas no sistema brasileiro as decises tomadas pelo Poder Legislativo quando determina a perda ou a cassao do mandato de seus membros? Podem ser revistas por um outro rgo estatal? So dotadas da imutabilidade jurdica propiciada pela denominada autoridade de coisa julgada?

    Evidentemente que no. De muito no se precisa para que se possa chegar a esta concluso. Basta apenas lembrar, para que se evitem maiores delongas, um nico mandamento constitucional. Diz o art. 5, XXXV, in verbis, que a lei no excluir da apreciao do Poder Judicirio leso ou ameaa a direito. Ora, se assim , parece bvio que qualquer deciso tomada pelo Poder Legislativo quanto perda do mandato de quaisquer de seus membros, na medida em que poder implicar leso ou ameaa a direitos daquele que por ela atingido, sempre poder ser revista pelo Poder Judicirio. Logo, jamais ser imutvel, definitiva, impossvel de ser revista. Jamais produzir, per se, a denominada autoridade de coisa julgada.

    Por isso tem-se inclinado a mais autorizada doutrina brasileira, e a de pases que adotam sistemtica semelhante nossa, por entender que ao declarar ou decidir a extino do mandato dos seus membros nos termos do estabelecido na Constituio, o Poder Legislativo no estar exercendo propriamente nem funo legislativa, nem funo jurisdicional, mas verdadeira funo administrativa, em situao anloga quela que realiza o Executivo quando promove procedimentos ou processos para aplicar sanes punitivas a seus servidores (demisso, suspenses etc). Em nosso sistema e em outros assemelhados, o Poder Judicirio, por fora dos nossos mandamentos constitucionais, possui o monoplio exclusivo do exerccio da funo jurisdicional, sendo vedado a qualquer outro Poder o exerccio desta possibilidade.

    A respeito, e para que se evite aqui maior prolixidade, lembremos apenas as sempre cautelosas, mas seguras, palavras do ilustre publicista argentino AUGUSTIN GORDILLO que, indicando o carter polmico da discusso, acaba por resumir com muita propriedade o ponto de vista ora sustentado:

    El rgimen jurdico propio de la funcin jurisdiccional es que la decisin pueda ser definitiva y, fundamentalmente, que sea producida por un rgano imparcial (ajeno a la contienda; un tercero desinteressado del proceso) e independiente (no sujeto a rdenes o instrucciones de nadie(...) Concluimos as en que la administracin no ejerce en ningn caso funcin jurisdiccional. Si sus actos se parecen, en alguna hiptesis, por su contenido, a los de aquella funcin, no tienen sin embargo el mismo rgimen jurdico, esto es, la administracin no realiza funcin jurisdiccional.

    A igual conclusin cabe arribar el caso del Congreso, aunque podera aqu haber lugar a algunas dudas. El nico caso en que podra decirse que el Congreso ejerce funcin jurisdicional es en realidad el del judicio poltico. No compartimos tal criterio, por considerar que se trata simplesmente de la remocin de un funcionrio pblico acto eminentemente administrativo sujeta a ciertas garantas que salvaguardan el derecho de defensa del interesado; pero a todo evento prodra recordrselo como una hiptesis de excepcon. Con tal posible reserva, pues, concluimos tambin en que el Poder Legislativo no ejerce funcin jurisdiccional (grifos nossos) (Tratado de derecho administrativo: parte general. 7. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. t. 1, p. IX-13)

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    Donde podermos chegar de modo conclusivo primeira resposta acerca da natureza dos procedimentos em questo: so realizados pelo Poder Legislativo no exerccio de funo administrativa atpica ou imprpria. Podem ser revistos, apenas sob o aspecto da sua validade jurdica, pelo Poder Judicirio, no exerccio prprio da sua funo jurisdicional.

    1.3. A natureza jurdica ou poltica dos procedimentos de cassao de mandatos parlamentares em casos de falta de decoro parlamentar

    A definio da natureza administrativa dos processos de declarao de perda ou de cassao de mandatos parlamentares promovidos e julgados pelo Poder Legislativo auxilia sobremaneira a abordagem do aspecto seguinte. Trata-se de processos fundamentalmente jurdicos ou eminentemente polticos? Ou se revestiro da condio de ser uma verdadeira combinao de ambos?

    importante observar que, no sistema constitucional brasileiro, um parlamentar pode perder o seu mandato tanto pela ocorrncia de certos fatos jurdicos, por decises do Poder Judicirio, como tambm do Poder Legislativo. Com efeito, o art. 55 da Constituio Federal determina que:

    Art. 55. Perder o mandato o Deputado ou Senador:

    I - que infringir qualquer das proibies estabelecidas no artigo anterior;

    II - cujo procedimento for declarado incompatvel com o decoro parlamentar;

    III - que deixar de comparecer, em cada sesso legislativa, tera parte das sesses ordinrias da Casa a que pertencer, salvo licena ou misso por esta autorizada;

    IV - que perder ou tiver suspensos os direitos polticos;

    V - quando o decretar a Justia Eleitoral, nos casos previstos nesta Constituio;

    VI - que sofrer condenao criminal em sentena transitada em julgado.

    (...)

    2. Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato ser decidida pela Cmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e, maioria absoluta, mediante provocao da respectiva Mesa ou de partido poltico representado no Congresso Nacional.

    3. Nos casos previstos nos incisos III a V, a perda ser declarada pela Mesa da Casa respectiva, de ofcio ou mediante provocao de qualquer dos seus membros ou de partido poltico representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa. (grifos nossos).

    A distino constitucional clara. Nos casos de infrao s proibies estabelecidas no art. 54, de comportamento incompatvel com o decoro parlamentar e de condenao criminal por sentena transitada em julgado, a Cmara dos Deputados decidir sobre a perda do mandato. Indica aqui a lei maior as hipteses em que podero vir a ser cassados os mandatos de Deputados pelo Poder

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    Legislativo. J nos casos de ausncia injustificada a dado nmero de sesses ordinrias, suspenso dos direitos polticos ou deciso da Justia Eleitoral, o que se determina constitucionalmente que a Cmara dos Deputados, por sua Mesa, declarar a perda do mandato. Logo aqui no se est prevendo a cassao de mandatos, mas apenas o reconhecimento formal, por meio de uma mera declarao, da sua j verificada extino.

    A respeito, ensina em didtica lio JOS AFONSO DA SILVA que: cassao a decretao da perda do mandato por ter seu titular incorrido em falta funcional definida em lei e punida com esta sano. Fcil agora verificar que so casos de cassao de mandato dos congressistas os previstos no art. 55, I, II e VI, que dependem da deciso da Cmara ou do Senado, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocao da respectiva Mesa ou de partido poltico representado no Congresso Nacional, assegurada a ampla defesa. que a se instaura um processo poltico de apurao das causas que justificam a decretao da perda do mandato, isto , da cassao deste pela Casa a que pertencer o imputado. Trata-se de deciso constitutiva. Quanto extino de mandato, preleciona: define-se como tal o perecimento do mandato pela ocorrncia de fato ou ato que torna automaticamente inexistente a investidura eletiva, tal como a morte, a renncia, o no-comparecimento a certo nmero de sesses expressamente fixado (desinteresse m que a Constituio eleva condio de renncia), perda ou suspenso dos direitos polticos. Os casos do art. 55, III, IV, e V, so de simples extino do mandato, de sorte que o pronunciamento pela Mesa da perda deste meramente declaratrio, pois apenas o reconhecimento da ocorrncia do fato ou do ato de seu perecimento; por isso feito pela Mesa da Casa a que pertencer o congressista, de ofcio ou mediante provocao de qualquer dos seus membros ou de partido poltico representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa (in Comentrio contextual Constituio. So Paulo: Malheiros Ed., 2005. p. 423).

    Tratando-se os atos que declaram a perda ou decidem a cassao de mandatos parlamentares de atos praticados no exerccio de funo administrativa como j salientado anteriormente, ou seja, de verdadeiros atos administrativos, h que se indagar do campo de liberdade que possui o Poder Legislativo quanto sua realizao. Em outras palavras: so atos discricionrios ou vinculados?

    A resposta, em face do texto constitucional e do que resta acima exposto, parece ser bvia. A deciso de cassao do mandato possui natureza tipicamente discricionria. A mera declarao de extino do mandato de ato tipicamente vinculado.

    De fato, como notrio dentre os estudiosos do Direito Administrativo, ramo do direito que se dedica a estudar a funo administrativa do Estado e seus atos, os atos discricionrios so os praticados com certa margem de liberdade de avaliao ou deciso segundo critrios de convenincia e oportunidade, e os atos vinculados so os realizados sem qualquer liberdade decisria ou margem de apreciao subjetiva. A diferena nuclear entre ambos reside no fato de que nos vinculados a autoridade no dispe de liberdade alguma, posto que a lei j regulou antecipadamente em todos os aspectos o comportamento a ser adotado, enquanto nos discricionrios h certa liberdade para decidir-se em face das circunstncias concretas do caso (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antnio. Curso de direito administrativo. 22. ed. So Paulo: Malheiros Ed., 2007. p. 412).

    Claro, pois, que quando a Constituio estabelece que em certos casos o Legislativo apenas declarar a perda do mandato, garantido um procedimento em que seja assegurada a ampla defesa ao parlamentar, quer apenas o reconhecimento formal de uma extino j preexistente. O fato extintivo do mandato j ocorreu. Ao Legislativo caber apenas o dever de formalizar, em ato vinculado, a extino

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    ocorrida, no podendo fazer qualquer avaliao quanto a convenincia ou oportunidade poltica de manter-se ou no o mandato. Dever unicamente fazer a mera confrontao dos fatos com as hipteses normativas vigentes, no tendo qualquer liberdade decisria. Se os fatos estiverem adequados norma, ter o dever de declarar a perda do mandato. Se no estiverem ter o dever de no faze-lo. De maior liberdade, com efeito, in casu, no usufruir. Exercer apenas o exerccio de um dever-poder vinculado.

    J, porm, quando afirma a nossa lei maior que em algumas hipteses o Legislativo decidir sobre a perda do mandato, est imputando a este Poder a possibilidade de decidir sobre a matria, isto , de formar, em face do caso concreto, um elemento de convico e de avaliao. Est lhe atribuindo, portanto, uma certa margem de apreciao de mrito, para avaliar com alguma liberdade de compreenso se o caso que examina deve resultar ou no na cassao mandato. Est a deferir, por conseguinte, nesse caso, alguma liberdade discricionria, para que o Parlamento decida a respeito.

    Donde concluir-se que os procedimentos instaurados pela Cmara dos Deputados nas hipteses dos incisos I, II e VI, do art. 55 da Constituio geraro, ao seu final, um ato administrativo vinculado em que apenas se declarar e formalizar a extino do mandato. J os casos dos incisos III a V do mesmo artigo envolvero uma deciso discricionria em que com certa margem de liberdade decisria se deliberar a respeito da necessidade da sua desconstituio ou no.

    por isso que tradicionalmente se costuma afirmar que os procedimentos de perda de mandato por prtica de ato incompatvel com o decoro parlamentar (hiptese prevista no art. 55, II, da C.F.) teriam uma dimenso de apreciao poltica. Na medida em que envolvem um mbito de apreciao discricionria do Parlamento, inegavelmente, implicam um juzo de convenincia e oportunidade poltica sobre a perda do mandato. Deve-se avaliar, a partir da realidade poltica, se conveniente ou no a sua desconstituio. esta a razo, alis, pela qual tais procedimentos foram deferidos pela Constituio apreciao decisria direta do Legislativo. Trata-se de hiptese em que se considera a dimenso tica do comportamento parlamentar e a relevncia poltica da deciso sancionatria, em face dos atos praticados pelo acusado. Fossem julgamentos exclusivamente tcnicos, jurdicos, de natureza no discricionria, em que a dimenso poltica das circunstncias devesse ser por imposio constitucional ignorada, e haveriam de ser julgamentos atribudos ao Judicirio. Note-se, alis, que o que ocorre com as situaes em que se perde o mandato por fora de suspenso dos direitos polticos em face da prtica de ato de improbidade (art. 37, 4. e art. 55, IV, da CF). Aqui o Judicirio, sem considerar quaisquer situaes polticas e discricionrias, julga o agente pblico imputando-lhe a pena, e o Legislativo, como acima salientado, apenas se limita a declarar a perda do mandato sem nada poder avaliar quanto dimenso poltica do caso. J nos casos de falta de decoro parlamentar, no , em bom direito, o que estabelece a Constituio. Nestes deve o Parlamento decidir a respeito, considerando os fatos e fazendo uma avaliao poltica sobre a relevncia da matria e a convenincia do afastamento do infrator.

    Ademais, impende observar que a natureza poltica da sano atribuda nestes processos que autoriza que um parlamentar que tenha seu mandato cassado por falta de decoro parlamentar possa, pelo mesmo fato que ensejou aquela punio, e sem que se verifique a vedao do bis in idem, ser condenado criminalmente ou em ao de improbidade pelo Poder Judicirio. A pena poltica de perda do mandato no inibe as sanes pertinentes que podero, em mbito dos processos judiciais respectivos, ser decididas pelo Poder Judicirio, no exerccio de suas funes tpicas. So sanes de naturezas rigorosamente distintas e que decorrem de tipificaes normativas igualmente diversas.

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    Esta formulao tem forte e praticamente indiscutvel apelo doutrinrio e jurisprudencial em nosso pas e em todo o mundo. Embora considerando o processo de impeachment, em obra magistral e clssica (O impeachment. 3. ed. So Paulo: Saraiva, 1992), Paulo Brossard faz consideraes que, por analogia e por serem de idntica natureza, so inteiramente aplicveis aos procedimentos de cassao de parlamentares por atos incompatveis com o decoro parlamentar. Diz ele, com apoio em lies clebres de Story, Lawrence, Lieber, Von Holst, Black e Toqueville, e em autores nacionais e julgados das Cortes brasileiras que entre ns, porm, como no direito norte-americano e argentino, o impeachment tem feio poltica, no se origina seno de causas polticas, objetiva resultados polticos, instaurado sob consideraes de ordem poltica e julgado segundo critrios polticos julgamento que no exclui, antes supe bvio, a adoo de critrios jurdicos. Isso ocorre mesmo quando o fato que o motive possua iniludvel colorido penal e possa, a seu tempo, sujeitar a autoridade por ele responsvel a sanes criminais, estas, porm aplicveis exclusivamente pelo Poder Judicirio (p. 76). Tambm afirma o ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal: a circunstncia de uma falta constituir, ao mesmo tempo, ilcito poltico e ilcito penal, crime de responsabilidade e crime comum, dando origem a dois processos, um no mbito parlamentar, outro perante cortes de justia, tem contribudo, paradoxalmente, para alimentar confuso acerca das caractersticas do impeachment no direito brasileiro. (...) Com a sano criminal nada tem que ver a sano poltica a que est sujeita esta ou aquela autoridade. Mesmo quando haja concorrncia de sanes, elas so distintas, como diversos os processos que visam sua aplicao. E no por outro motivo que, sem incorrer na pecha de bis in idem, podem conviver e efetivamente convivem ambas as penas, que so ajustadas a ilcitos autnomos e diferentes (op. cit. p 74). E conclui: a predominncia do carter poltico marca a sua verdadeira natureza (p. 77)

    Todavia, de se notar que, como ressalta Brossard, ao contrrio do que sugerem alguns, a natureza dos processos de cassao de mandatos parlamentares por falta de decoro, embora tenham uma dimenso poltica de apreciao, acabam por exigir a existncia de certos pressupostos jurdicos. Neles indubitavelmente existe uma predominncia do carter poltico, mas no uma exclusividade.

    A razo bvia. Sendo a deciso de cassao de um mandato um ato administrativo discricionrio, ela deve ser tomada dentro dos limites que os princpios e regras vigentes na ordem jurdica impem para o exerccio deste poder decisrio. Discricionariedade no significa possibilidade de ao decisria ilimitada. Discricionariedade significa poder decisrio que se realiza dentro de limites objetivamente definidos pela Constituio e pela lei. por isso que a discricionariedade, nos Estados de Direito, no se confunde com a arbitrariedade. Discricionariedade o exerccio de um poder decisrio que se expressa dentro de limites, a partir de opes inteiramente adequadas ao mundo do direito. Arbitrariedade o excesso, o abuso do poder, a tomada de uma deciso que ultrapassa os limites decisrios admitidos pelas normas vigentes. o abuso da discricionariedade.

    Logo, a possibilidade de cassao de mandatos por atos incompatveis com o decoro parlamentar exige o atendimento de certos pressupostos jurdicos intransponveis. Exige a prova de um fato que possa ser em boa acepo jurdica tipificado como incompatvel com o decoro parlamentar, seja porque ocorreu um abuso de prerrogativas asseguradas a um membro do Congresso Nacional, seja porque houve a percepo de vantagens indevidas, seja porque, finalmente, verificou-se a prtica de conduta como tal qualificada pelo regimento interno da Casa a que pertence o parlamentar. o que determina o 1. do art. 55 da Constituio Federal. Sem um fato que se subsuma a uma destas tipificaes, e esteja devidamente provado na sua ocorrncia, no poder haver a cassao.

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    No fosse assim, o poder discricionrio que possuiria o Parlamento na cassao de mandatos seria ilimitado e aleatrio. Todo e qualquer mandato, independentemente da prtica ou da prova de qualquer comportamento indevido, poderia ser extinto pela deciso da maioria dos membros do Legislativo. E nisso haveria uma grave ofensa ao princpio democrtico, na medida em que a representao de uma parcela de eleitores seria eliminada ao livre arbtrio e critrio da manifestao conjunta de representantes de outras parcelas de cidados.

    Por isso, pode-se dizer que, embora envolvendo uma deciso discricionria acerca da convenincia poltica ou no da manuteno de um mandato, este juzo decisrio somente poder ser tomado a partir da prefigurao dos pressupostos jurdicos delineados pelas normas de Direito em vigor, dentre os quais se destacam nesse momento, dentre outros, a ocorrncia provada do fato tipificador da falta de decoro parlamentar (motivo), o respeito ao quorum decisrio exigido e s regras de tramitao ao princpio do contraditrio e da ampla defesa, e a observncia de todos os demais aspectos da tramitao regimentalmente estabelecidos (requisitos procedimentais e formalizao dos atos). Sem o atendimento a estes pressupostos jurdicos e a outros que resultam do nosso ordenamento, a deciso poltica no poder ser tomada, sob pena de invalidade da sano aplicada. Alis, sob a inocorrncia destes pressupostos jurdicos, ao nosso ver, embora existam opinies em contrrio, o Judicirio, pelo exerccio do direito de ao de algum legitimado, poder ser chamado a intervir e a rever o que contrariamente ter sido decidido pelo Legislativo.

    A respeito, fazendo referncia cassao de mandatos de parlamentares municipais, preleciona Hely Lopes Meirelles que certo que no cabe ao Judicirio pronunciar-se sobre cassao de mandato antes que o Plenrio o faa, nem lhe permitido reexaminar o mrito da soluo sob o aspecto da justia, oportunidade ou convenincia do decidido pelos vereadores, mas poder e dever sempre verificar se ocorrem os pressupostos de direito e de fato que autorizam a cassao e se foram observadas as exigncias legais e regimentais para a deliberao, tais como o quorum necessrio, a oportunidade de defesa, a tramitao estabelecida para o processo e demais cautelas que devem acompanhar a deciso da Cmara, a sr consubstanciada em decreto legislativo quando condenatria(...) O que o Judicirio no pode valorar os motivos, para considerar justa ou injusta a deliberao do Plenrio, porque isso matria interna corporis da Cmara e sujeita unicamente a seu juzo poltico. Mas o Judicirio pode e deve- sempre que solicitado em ao prpria, verificar se foram atendidas as exigncias procedimentais estabelecidas pela lei e pelo regimento interno e se realmente existem os motivos que embasaram a condenao... (Direito municipal brasileiro. 13. ed. So Paulo: Malheiros Ed., 2003. p. 678-679).

    Esta a razo pela qual alguns, no raro, com bvio acerto conceitual, definem a natureza destes processos de cassao como jurdico-poltica. Jurdica, porque sem a verificao de certos pressupostos jurdicos bsicos a deciso de cassar no poder ser tomada, e se tomada, ser invlida. Poltica, porque uma vez existentes os pressupostos jurdicos haver, dentro dos limites delineados pela ordem normativa constitucional e regimental, a apreciao discricionria dos membros do Poder Legislativo quanto convenincia e oportunidade poltica da cassao.

    Ser nos termos e na dimenso acima expostos que fixaremos o nosso entendimento de que nos processos de cassao de mandatos pela prtica de atos incompatveis com o decoro parlamentar (art. 55, II, da CF) existem pressupostos jurdicos de indispensvel presena para a tomada da deciso relativa perda do mandato. Inocorrentes estes pressupostos, a cassao no poder ser validamente decidida pelo Parlamento. E uma vez presentes estes requisitos, um juzo de apreciao acerca da

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    convenincia e oportunidade poltica da extino do mandato do acusado haver de ser formado pelo Parlamento. A deciso administrativa final, portanto, ser sempre marcada por forte margem de discricionariedade. Entretanto, como em todo exerccio de poder discricionrio, esta deciso dever ser tomada dentro dos limites jurdicos claramente postos pela ordem normativa vigente, sob pena de se configurar abuso de poder. Donde, finalmente, afirmarmos que o processo em que esta deciso de cassao ser tomada, em boa acepo e compreenso da matria, ter sempre inegvel natureza jurdico-poltica.

    1.4. A possibilidade jurdica de que parlamentares acusados da prtica de ilcitos ou infraes ticas no exerccio de um mandato possam vir a ser cassados em mandatos subseqentes em decorrncia destes mesmos ilcitos ou infraes

    Estabelecidas as premissas decisrias intrnsecas compreenso da matria, torna-se indispensvel o enfrentamento de uma questo que permeia toda a dimenso lgica das respostas que devem ser ofertadas Consulta sub examine. possvel do ponto de vista jurdico a abertura de procedimento de cassao fundado no art. 55, II, da CF, invocando-se como motivo configurador da violao do decoro parlamentar comportamento ocorrido ao longo de mandato anterior quele em que efetivamente poder se dar a abertura deste? A reeleio de um parlamentar, de fato, atribuiria assim uma anistia poltica a infraes ocorridas antes do novo mandato obtido nas urnas?

    A resposta a estas indagaes, prima facie, poderia encontrar amparo no denominado princpio da unidade de legislatura. Leciona sobre este princpio JOS AFONSO DA SILVA, no seu sempre citado Processo constitucional de formao das Leis (2. ed. So Paulo: Malheiros Ed., 2006. p. 51-52): a legislatura tem a durao de quatro anos e corresponde a perodo que vai do incio do mandato dos membros da Cmara dos Deputados at o seu trmino (CF, art. 44, pargrafo nico). Isso porque o Senado contnuo por ser renovvel apenas parcialmente em cada perodo de quatro anos (CF, art. 46, 2.). (...) Sua unidade implica observncia do seu conceito tanto pela Cmara dos Deputados como pelo Senado Federal, que, em cada legislatura, funcionam como um novo Congresso, comeando sua tarefa sem relao com a legislatura anterior. No final de cada uma, consideram-se terminados todos os assuntos, seja qual for o estado da sua deliberao, tanto que as proposies so, ento, arquivadas, com algumas excees previstas no regimento interno (RISF arts. 322 e 333). Assim se exonera a cada legislatura do peso morto das propostas que no puderam ser discutidas e votadas na legislatura anterior.

    No seria correto, porm, esse entendimento. De fato, independentemente de qualquer considerao quanto aos limites discricionrios que definiro os marcos da apreciao da convenincia e da oportunidade da deciso favorvel cassao de um mandato nessas circunstncias, em tese, correto afirmar-se que seria de manifesto equvoco a defesa da posio de que sempre, em todo e qualquer caso e sob quaisquer circunstncias, por fora do aludido princpio da unidade de legislatura, seria impossvel a abertura de processos de cassao diante de parlamentares reeleitos, apesar dos atos ofensivos ao decoro parlamentar terem se verificado em mandato antecedente j extinto. A anlise detida da matria assim o demonstra.

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    Quando estabelece a Constituio Federal a possibilidade de cassao de mandatos por procedimento incompatvel com o decoro parlamentar (art. 55, II), o que pretende preservar o prestgio e a dignidade do Parlamento como valor maior que deve informar a Casa em que se renem os representantes eleitos pelo povo para exercer o poder em seu nome (Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonalves. Comentrios Constituio Brasileira de 1988. So Paulo: Saraiva, 1997. v. 1, p. 330). Atos indecorosos devem retirar daquele que os praticou a possibilidade de atuar com legitimidade em nome dos cidados que, em confiana, lhe outorgaram um mandato popular.

    Ora, se assim , seria estranho que, ao encerrar de uma legislatura, sempre e em qualquer caso, se entendesse que atos incompatveis com o decoro parlamentar no pudessem ser mais vistos formalmente pela sociedade como ofensivos dignidade do rgo constitudo por representantes do povo. O indigno pela prtica de atos pretritos pode ser qualificado como indigno no presente, mormente quando o conhecimento dos fatos, ou a sua prova, s vieram no presente ser clareados pela luz do dia. Seria, pois, rigorosamente incorreto imaginar-se que ao trmino de uma legislatura os atos desabonadores praticados por um parlamentar, por mais graves e hediondos que fossem, estivessem sempre juridicamente impedidos de ser apreciados pelo Parlamento para fins de que se pudesse vir a decretar a cassao do seu mandato no termos do art. 55, II, da Constituio Federal. Assim entender seria dar uma dimenso temporal, formal e rgida a uma qualificao desabonadora que eminentemente poltica e passvel de ser formada a qualquer instante a partir do conhecimento de fatos que poderiam estar ocultos no passado. Seria construir uma indefensvel precluso de apreciao poltica e valorativa a fatos que talvez antes, pelo seu desconhecimento, no poderiam ter sido antes poltica ou valorativamente considerados. Seria considerar que o ato indigno perderia a possibilidade de no mais ser julgado como indigno pela populao ou por seus representantes eleitos apenas pelo fato de no ter sido conhecido dentro dos marcos temporais admissveis para tanto, ou seja, os marcos temporais da legislatura em que se verificaram.

    Imagine-se a hiptese de um parlamentar ter cometido um delito tico grave, como por exemplo, uma extorso para a votao de um projeto de lei. Imagine-se que o conhecimento da autoria desse delito, ou a prova de sua autoria, s viesse a aparecer na legislatura seguinte quela em que foi praticado, tendo o seu autor sido reconduzido ao mandato pelo voto popular. A indignidade da sua conduta aos olhos da populao e dos seus demais representantes eleitos, a incompatibilidade da sua permanncia no Legislativo, estaria ento descartada politicamente apenas pelo fato de que se exonera a cada legislatura do peso morto das propostas que no puderam ser discutidas e votadas na legislatura anterior (princpio da unidade de legislatura)? Ora, se o fato delituoso, ou seja, a extorso, ou a sua prova, s foram conhecidos em momento posterior ao encerramento da legislatura, e obviamente da prpria reconduo pelas urnas do parlamentar acusado, por bvio, seria impossvel ter sido discutida e votada a sua cassao pelo Parlamento ao longo da legislatura encerrada. A prpria populao no teve a oportunidade de apreciar estes fatos no momento em que decidiu, pelo voto, se o parlamentar deveria ser reconduzido ou no ao Parlamento. Admitir-se, por conseguinte, esta impossibilidade de apreciao pelo mero encerramento temporal da legislatura em que se verificaram os fatos desabonadores do parlamentar seria estabelecer uma estranha precluso poltica possibilidade de um julgamento valorativo a fatos que antes no poderiam jamais ter sido julgados pelo prprio parlamento ou pelo povo diretamente. Seria o curioso estabelecimento de uma precluso poltica ao exerccio de um direito de julgamento poltico que antes no tinha condies de fato e de direito de ser exercido.

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    Por isso se evidencia em total razo o entendimento de que ser impossvel defender-se, a priori, e sob quaisquer condies, a tese de que jamais poder um parlamentar ser cassado no exerccio do seu novo mandato por procedimento incompatvel com o decoro parlamentar (art. 55, II, da CF), apenas por ter se encerrado a legislatura anterior durante a qual o motivo da pretendida punio se verificou no plano ftico.

    Este posicionamento respaldado por decises anteriores j tomadas pela Cmara dos Deputados e pela prpria jurisprudncia.

    Em 1999, em face de representao feita pela Mesa da Cmara dos Deputados Comisso de Constituio e Justia e de Redao objetivando a perda do mandato parlamentar do ento Deputado PEDRO TALVANE LUS GAMA E ALBUQUERQUE NETO, e do acolhimento desta por este DD. rgo parlamentar pela aprovao de parecer firmado pelo ilustre relator Deputado Aloysio Nunes Ferreira, foi impetrado mandado de segurana junto ao Supremo Tribunal Federal. Na petio inicial do mandamus sustentou-se a necessidade de ser extinto o procedimento aberto para a cassao do mandato pela alegao de que fatos ocorridos antes da diplomao do parlamentar tm prazo certo, at fixado constitucionalmente, para serem argidos perante o rgo competente. Acontecimentos que datam de antes da diplomao do parlamentar, no importando que antes ele j estivesse exercendo outro mandato, no mais lhe podem ser imputados, uma vez iniciado o novo mandato poltico. Terminada a legislatura, os fatos que porventura tenham ocorrido ao seu tempo, no podem ensejar procedimento de perda do novo mandato obtido. A cassao do novo mandato fica restrita hiptese de, no curso da nova legislatura, verificarem-se acontecimentos, dela contemporneos, capitulveis como atentatrios do decoro parlamentar.

    Naquela ao, como de direito, prestou informaes o Presidente da Cmara dos Deputados. Nestas firmou a convico da Casa ao dizer, em consonncia plena com a tese acima por ns sustentada, in verbis:

    28. Dvida inexiste, pois, que a quebra de decoro parlamentar afeta direta e imediatamente s Casas Legislativas, transferindo a m imagem do congressista indecoroso prpria instituio que integra.

    29. Assim, tomando de emprstimo ao Direito Penal seus conceitos, temos que o sujeito ativo do ato atentatrio ao decoro parlamentar o congressista faltoso; o sujeito passivo o prprio corpo legislativo, tomado em sua totalidade ou inteireza; e o bem jurdico tutelado a boa imagem ou, mesmo, a credibilidade que o Parlamento deve ter perante a nao, como condio primeira para o eficaz exerccio de suas funes institucionais.

    30. Em assim sendo, considerando que a manuteno da imagem do Poder Legislativo no pode se ater a critrios exclusivamente cronolgicos, ligados durao das legislaturas, pois a instituio parlamentar permanente, tem-se tambm que o expurgo dos maus congressistas que conspurcam a sua imagem, no deve se limitar a coexistncia entre a prtica dos atos indecorosos e o momento em que o poder censrio da instituio faz operar seus efeitos.

    31. Destarte, nada obsta que Deputado, autor de atos atentatrios ao decoro parlamentar em determinada legislatura, possa responder a procedimento disciplinar destinado perda de seu mandato em legislatura posterior subseqente, para a qual se reelegeu; isto porque o dano a imagem do corpo

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    legislativo, de ter no seu seio autor de fato indecoroso, persiste ntegro, independente da legislatura em que foi praticado aquele ato.

    (...)

    52. Na verdade, tendo os atos atentatrios ao decoro parlamentar, imputados ao impetrante, ocorrido a partir de meados de outubro de 1998 (item 2 da inicial), ou seja aps as eleies realizadas no dia 04 daquele ms e ano, certo que o seu eleitorado no teve a menor oportunidade de fazer qualquer julgamento sobre sua conduta, como quer fazer crer. (grifos nossos)

    Em apreciao ao pedido de tutela jurisdicional em apreo, com base nas informaes prestadas, a concesso do writ foi negada, por unanimidade, a partir de posicionamento firmado pelo relator Ministro NRI DA SILVEIRA. Acolhendo no julgamento a tese sustentada pela Cmara dos Deputados, registra-se a seguinte ementa do acrdo respectivo:

    Mandado de Segurana. 2. Ato da Mesa da Cmara dos Deputados, confirmado pela Comisso de Constituio e Justia e Redao da referida Casa Legislativa, sobre a cassao do mandato do impetrante por comportamento incompatvel com o decoro parlamentar. 3. Pretende-se a extino do procedimento de perda do mandato. Sustenta-se que a cassao do mandato, para nova legislatura, fica restrita hiptese de, no curso dessa legislatura, se verificarem condutas, dela contemporneas, capitulveis como atentatrias do decoro parlamentar. 4. No configurada a relevncia dos fundamentos da impetrao. Liminar indeferida. 5. Parecer da Procuradoria-Geral da Repblica pela prejudicialidade do mandado de segurana, em face da perda do objeto; no mrito, pela denegao da ordem. 6. Tese invocada, acerca da inexistncia de contemporaneidade entre o fato tpico e a competncia da atual legislatura, que se rejeita. 7. No h reexaminar, em mandado de segurana, fatos e provas. 8. No cabe, no mbito do mandado de segurana, tambm discutir deliberao interna corporis, da Casa Legislativa. Escapa ao controle do Judicirio, no que concerne ao seu mrito, juzo sobre fatos que se reserva, privativamente, Casa do Congresso Nacional formul-lo. 9. Mandado de segurana indeferido. (grifo nosso).

    Igual deciso foi tambm tomada pelo STF, no Mandado de Segurana n. 24458/DF impetrado pelo ento Deputado FRANCISCO PINHEIRO LANDIM. Acusado de envolvimento em trfico de influncia, junto Justia Federal, em benefcio de narcotraficantes, pretendeu o parlamentar acusado a concesso do writ para que fossem paralisadas as atividades de Comisso de Sindicncia instaurada para apurar o fato em 3 de fevereiro de 2003. Mencionando e adotando como elemento de convico o julgado anteriormente citado, decidiu o Relator Ministro CELSO DE MELLO pela improcedncia do mandamus, afirmando em abono tese em apreo:

    O princpio da unidade de legislatura no impede a instaurao de procedimento de cassao de mandato legislativo, ainda que por atos atentatrios ao decoro parlamentar cometidos, por titular de mandato legislativo, na legislatura anterior.(...) que a ordem jurdica no pode permanecer indiferente a condutas de membros do Congresso Nacional ou de quaisquer outras autoridades da Repblica que hajam eventualmente incidido em censurveis desvios ticos, no desempenho de elevada funo de representao poltica ao povo brasileiro. Foi por tal motivo que o Plenrio desta Suprema Corte,

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    atento aos altssimos valores que informam e condicionam todas as atividades governamentais no importando o domnio institucional em que elas tenham lugar -, veio a proferir o seu dictum, reconhecendo a possibilidade jurdico-constitucional de qualquer das Casas do Congresso Nacional adotar medidas destinadas a reprimir, com a cassao do mandato de seus prprios membros, fatos atentatrios a dignidade do ofcio legislativo e lesivos ao decoro parlamentar, mesmo que ocorridos no curso de anterior legislatura, desde que j ento, o infrator ostentasse a condio de membro do Parlamento. (...) Qualquer ato de ofensa ao decoro parlamentar culmina por atingir, injustamente, a prpria respeitabilidade institucional do Poder Legislativo, residindo, nesse ponto, a legitimidade tico-jurdica do procedimento constitucional de cassao do mandato parlamentar, em ordem a excluir, da comunho dos legisladores, aquele qualquer que seja que se haja mostrado indigno do desempenho da magna funo de representar o Povo, de formular a legislao da Repblica e de controlar as instncias governamentais do poder... (grifo nosso)

    Donde ser forosa a concluso de que a eleio para um mandato subseqente, por si s considerada, no elimina a possibilidade jurdica da aplicao da sano poltica a um parlamentar reeleito, pela prtica de ato incompatvel com o decoro ao longo do mandato antecedente. A reeleio no pode ser vista como uma anistia poltica incondicional dada pelas urnas. Caso assim fosse, todo e qualquer ato ilcito ou imoral praticado ao longo de um mandato, mesmo que apenas revelado a posteriori do momento eleitoral estaria resguardado pelo manto da impunidade poltica. Como chegou a registrar o v. acrdo proferido no M.S. 23.388-5-DF do Supremo Tribunal Federal, no j citado caso Pedro Talvane Neto a cristalizar-se o entendimento de que determinada legislatura no pode conhecer de fatos ocorridos na anterior,estaremos estabelecendo perodo de verdadeiro vale-tudo ....

    Desse modo, a reeleio de um parlamentar no pode ser vista como um antdoto absoluto e incondicional s faltas graves praticadas ao longo de um mandato antecedente. possvel, nesses casos, em tese, e desde que respeitados os estritos limites discricionrios do julgamento poltico feito pelo Congresso Nacional, a aplicao da pena de cassao.

    Esta nos parece ser a melhor deciso jurdica sobre a matria. tambm, at agora, a posio sacramentada em julgados do Supremo Tribunal Federal.

    1.3. Os limites discricionrios possveis na apreciao poltica feita pelo Parlamento nos casos de reeleio do parlamentar acusado da prtica de procedimento incompatvel com o decoro

    Como j se disse anteriormente, o poder discricionrio da Cmara dos Deputados nos julgamentos jurdico-polticos dos seus membros acusados da prtica de ato incompatvel com o decoro parlamentar no ilimitado e aleatrio. Alis, ele nunca e em qualquer caso o ser. Nos Estados modernos, a prpria noo de direito envolve sempre a noo de limite como ensinam os modernos publicistas. Ter um direito significa ter uma prerrogativa cujo exerccio jamais poder ultrapassar os limites que definem a prpria amplitude desse mesmo direito.

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    Logo, quando a Constituio outorga ao Parlamento o direito de decidir sobre a cassao dos seus membros pela prtica de ato incompatvel com o decoro, se d a esse rgo um direito passvel de ser exercido apenas dentro dos limites jurdicos objetivos estabelecidos pelas regras e pelos princpios em vigor.

    J vimos acima que a reeleio de um parlamentar no retira o direito do Parlamento de puni-lo pela prtica de ato incompatvel com o decoro parlamentar praticado no exerccio do mandato antecedente. O voto popular no pode ser visto como uma forma anmala de anistia poltica.

    Todavia, h que se perguntar: de algum modo o voto popular depositado nas urnas capaz de trazer, em si e por si, limitao jurdica ou mesmo poltica ao julgamento que poder ser empreendido pelo Parlamento diante da acusao de prtica de ato incompatvel com o decoro ao longo do exerccio de mandato antecedente? Dever ele ser totalmente ignorado pelos representantes do povo em relao a estas faltas, presumindo-se que a vontade popular expressa nas urnas em nenhum caso deve prevalecer sobre a vontade de seus representantes? Pode, em todo e qualquer caso, e sob quaisquer condies, ser ignorado o desejo popular e democrtico de reconduzir algum ao Parlamento para, em seu nome, exercer o poder?

    A questo complexa, e seguramente enseja aguda polmica jurdica e poltica. As prprias decises jurisprudenciais firmadas pelo STF que admitem genericamente a possibilidade da abertura de processos de cassao motivados por condutas realizadas ao longo de mandato anterior, no enfrentam especificamente esta questo. A doutrina, ao menos ao que nos consta, parece praticamente silenciar a respeito.

    Ser necessrio assim trilharmos aqui caminho pouco explorado, procurando nos princpios constitucionais, e na boa compreenso do nosso modelo de Estado, o farol seguro para o deslinde da matria.

    Ao que penso, o julgamento popular colhido nas urnas sobre a reeleio de um parlamentar no pode ser ignorado sempre, e em qualquer caso, na possibilidade de aplicao da pena de cassao em decorrncia de fato ocorrido ao longo de mandato anterior j extinto.

    Deveras, do mesmo modo que admitir uma anistia poltica ampla, geral e irrestrita para todas as faltas morais e ilcitos praticados por parlamentar em mandato anterior seria a instaurao de um inaceitvel vale-tudo, admitir que a vontade popular livremente expressa nas urnas nunca possa representar uma fronteira ou um limite discricionariedade de um julgamento jurdico-poltico na aplicao da pena de cassao ser uma afronta autoritria, elitista, democracia, e um desrespeito aberto e escancarado soberania do voto popular.

    necessrio, assim, que se proceda a uma combinao equilibrada das duas diferentes dimenses axiolgico-jurdicas que envolvem a matria. De um lado, a necessidade de se preservar a dignidade e a imagem do Parlamento, de modo a que no seja conspurcada por parlamentares indignos. Afinal esta, como j salientado anteriormente, a ratio do mandamento constitucional que autoriza o Parlamento a cassar os seus membros pela prtica de ato ofensivo ao decoro parlamentar. De outro lado, o dever democrtico de se considerar o voto popular como fonte legtima do poder de todos os que atuam no parlamento, inclusive daqueles que devero julgar os seus pares pela prtica de infraes tico-polticas.

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    Creio que a nica forma de se combinar, em compreenso equilibrada e razovel, os dois termos opostos desta equao a considerao efetiva das circunstncias fticas que se tinham como presentes no momento em que se processou a eleio e se consumou a escolha do parlamentar reeleito. Deveras, em certos casos, no momento em que o povo vai s urnas proceder escolha dos seus futuros representantes, a sociedade pode j ter tido conhecimento pleno dos fatos desabonadores que podem pesar contra o candidato que postula a sua reconduo a um novo mandato. Se assim , se possua o candidato condies legais de ser eleito, e se parcela significativa dos cidados o escolhe para ser o seu representante, ser descabido, pelo prprio princpio democrtico, ignorar incondicionalmente este julgamento popular direto. Com efeito, diz a nossa lei maior que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituio (art. 1., pargrafo nico). Desse modo, no podem os representantes eleitos pelo povo, e que exercem o poder em seu nome, retirar a posteriori dos fatos j conhecidos e amplamente noticiados no perodo que antecede eleio, o mandato de um parlamentar eleito exclusivamente por estes mesmos fatos, sem que nada de novo tenha ocorrido. No podem os representantes do povo, diante dos mesmos fatos e da mesma realidade inalterada em que se fez o juzo eleitoral e democrtico dos cidados em relao a quem devem ser estes mesmos representantes, decidir em sentido diferente daquele que a urna indicou. Seria uma ofensa escancarada ao princpio da soberania do voto popular e democracia. Seria ilegtimo, uma vez que o voto que elege os parlamentares que julgaro o acusado o mesmo que reelegeu o parlamentar acusado. A fonte de poder do julgador, no caso, a mesma do julgado. Seria, portanto, um desrespeito ao princpio firmado no art. 1., caput, da Constituio Federal que afirma que a Repblica Federativa do Brasil um Estado Democrtico de Direito.

    Ademais, pondere-se que, na medida em que nos julgamentos jurdicos-polticos empreendidos pelo Parlamento a fonte de poder que atribuiu o mandato ao acusado a mesma que atribuiu mandato equivalente aos julgadores, qual seja, o povo, admitir-se que os representantes de uma parcela da populao possam, por fatos j conhecidos e pblicos no momento da eleio, suprimir mandatos legalmente outorgados pelas urnas ser estabelecer, de fato, que certos cidados, por intermdio de seus representantes, tm o direito de impor aos outros cidados os seus critrios de escolha de um representante. Criar-se-iam, desse modo, cidados que, com hierarquia intelectual e poltica superior, podem no s dizer votaram errado os outros, mas como tambm, ultrapassando o limite da crtica poltica, sustentar que, em decorrncia desse equvoco, pela ao de seus representantes, ser necessrio suprimir o mandato mal outorgado pelos cidados mais incultos e equivocados. Equivaleria dizer, com elitismo que diante de fatos que todos conheciam, mesmo que a lei admita a eleio, o mandato mal outorgado por cidados de segunda categoria dever ser eliminado. A tese, naturalmente, lembraria a fina ironia de GEORGE ORWELL quando ao abordar a questo da isonomia, na sua clebre Revoluo dos Bichos, que igualdade em algumas sociedades significa que todos so iguais perante a lei, mas alguns so mais iguais que outros.

    Temos, desse modo, que estando a sociedade ciente dos fatos e das acusaes que recaem sobre um parlamentar, em sendo ele reeleito, sem que exista qualquer alterao desta realidade ftica capaz de permitir uma efetiva mudana da convico poltica expressa no momento da eleio, ser inadmissvel a cassao decidida em julgamento jurdico-poltico pelo Parlamento. A perda do mandato poder se dar por decises legalmente tomadas por outra esfera de poder, como no caso o Judicirio, mas no por meio da apreciao de convenincia e oportunidade poltica feita por representantes do povo. Se o povo, conhecendo todos os fatos desabonadores que pairavam sobre um candidato, decidiu que ele poderia ser eleito e nele votou, como podero os representantes deste mesmo povo, em sede

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    de juzo poltico, decidir pela inconvenincia da manuteno deste mesmo mandato, a partir da avaliao exclusiva e intocada destes mesmos fatos? Podem os representantes fazer o oposto daquilo que os outorgantes da representao diretamente disseram que deve ser feito? Os poderes do representante devem ser vistos como superiores aos daqueles que outorgam os mandatos? Evidentemente que no.

    Questo interessante que deve ser aqui conhecida se liga natureza poltica ou jurdica dessa limitao discricionariedade decisria do Parlamento em caso de processos de cassao de mandatos pela prtica de procedimento incompatvel com o decoro parlamentar. A impossibilidade de cassao, nestes casos, uma imposio apenas poltica ou decorre da prpria Constituio? Que se trata de uma imposio poltica bvio, mas creio que se trata tambm de uma imposio de natureza jurdico-constitucional, por tudo que foi exposto. Ou seja: por fora do princpio democrtico est juridicamente impedido o Parlamento de cassar, por falta de decoro, aquele parlamentar reeleito cuja acusao se prende a fato verificado em legislatura anterior, j conhecido plenamente no momento da eleio, desde que no tenha ocorrido aps o resultado das urnas qualquer mudana ftica ou de conhecimento em relao aos fatos, que pudesse alterar, ao menos em tese, a convico do eleitorado.

    Por outro lado, evidente que se os fatos que motivam a acusao de falta de decoro no eram conhecidos no momento da eleio, ou se novos elementos de convico surgirem aps a escolha eleitoral do representante, a concluso ser outra. Havendo fatos novos, elementos probatrios novos, circunstncias novas, reveladas a posteriori do momento eleitoral, em condies que, em tese, poderiam alterar o juzo poltico do eleitor, o Parlamento, por meio de seus representantes, ter total liberdade jurdica para formar a sua convico poltica sobre a necessidade de cassao ou no do mandato. Aqui o representante estar agindo em nome do povo que o elegeu para apreciar circunstncias novas, publicamente inexistentes no momento em que se expressou o juzo eleitoral dos cidados. Aqui ter legitimidade democrtica para faz-lo. Estar agora agindo legitimamente, no exerccio da representao popular, apreciando fatos novos, examinando elementos probatrios novos, formando, em nome daqueles que representa, uma nova convico poltica de convenincia e de oportunidade quanto necessidade de manuteno ou no de um mandato, a partir de uma nova realidade desenhada aps as eleies. Agora o princpio democrtico no estar ofendido, mas atendido na sua plenitude.

    Assim conclumos que: pode o Parlamento decidir pela cassao de mandato parlamentar em decorrncia de fato ocorrido em mandato anterior j extinto, sem qualquer constrangimento em relao ao voto popular dado nas urnas, desde que novos elementos fticos, de convico ou de prova surjam em relao quele mesmo fato original aps o momento eleitoral. Estes novos elementos tero que produzir a convico poltica de que a sua ocorrncia seria capaz de, em tese, modificar o posicionamento do eleitor no momento da escolha eleitoral.

    Com este entendimento, s.m.j., ficam equilibrados os termos da equao axiolgico-jurdica que permeia a presente discusso. Se por um lado uma eleio no equivaler a uma incondicional anistia poltica ou permitir um vale-tudo, de outro, o julgamento das urnas, feito diante de fatos pblicos e de todos conhecidos, no ser ignorado por representantes cuja fonte de poder advm do mesmo julgamento eleitoral.

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    Obviamente, esta tese poder suscitar dvidas, crticas e polmicas, algumas das quais podem desde j ser antevistas e adequadamente, por antecipao, respondidas. Podemos relacionar os seguintes questionamentos crticos:

    a) possvel afirmar-se que quem pode suprimir o mandato de um parlamentar acusado pela falta de decoro parlamentar a maioria dos representantes eleitos pela sociedade. Logo, seria incorreta a tese de que ofenderia o princpio democrtico a abertura de processo de cassao nas condies acima expostas. Com efeito, possvel sustentar-se a tese de que seria democrtica e legtima a deciso dos representantes da maioria da populao em relao supresso do mandato outorgado por uma minoria de cidados, na medida em que o seu exerccio atinge a dignidade do Parlamento, que um valor que a toda a sociedade diz respeito. A deciso de uma pequena parcela

    da populao ao escolher uma pessoa indigna, assim, no poderia ser imposta maioria que deseja ver respeitada e mantida a dignidade do Legislativo e dos poderes constitudos, e tem direito a um governo honesto;

    b) No caso de o parlamentar ter sido eleito por um percentual de votos inferior ao coeficiente eleitoral exigido, e por conseqncia ter obtido sua eleio pela somatria dos votos outorgados legenda e totalidade dos candidatos do seu partido, ser possvel dizer-se, ainda assim, que teria havido um julgamento das urnas pelos eleitores, capaz de absolv-lo politicamente em face dos fatos j conhecidos?

    c) E se o parlamentar reeleito for condenado pela Justia em ao prpria em face dos mesmos fatos j conhecidos da populao no momento da eleio? A tese ora defendida no implicar que mesmo nesse caso o parlamentar no possa ser cassado por falta de decoro?

    Passemos a analisar estas questes, dentro do que nos parece adequado abord-las.

    Em primeiro lugar, creio que seria profundamente equivocada a refutao do ponto de vista que acima sustentamos pela argumentao simplista de que a maioria dos representantes do povo (maioria dos membros do Parlamento) ter direito a entender como indigna a escolha eleitoral de um parlamentar feita por um segmento da populao. A Cmara dos Deputados , na conformidade do que estabelece a nossa lei maior, composta pelo sistema proporcional. Nele, todos os segmentos da populao, desde que atinjam o coeficiente eleitoral estabelecido pela somatria dos votos obtidos, tm o direito de ser representados. Conforme j se fez salientar anteriormente, no pode a maioria da populao, por meio dos seus representantes, ao entender que um segmento da sociedade escolheu mal um parlamentar, extinguir esta representao poltica. Desde que a lei admita a possibilidade de eleio, o candidato poder ser escolhido livremente por parte da populao, pouco importando o juzo poltico negativo ou de reprovao absoluta da maioria da sociedade a respeito. Se aos olhos da maioria a escolha foi incorreta, por ser o eleito pessoa reconhecidamente subversiva, adepta a prticas sexuais que afrontem a moral mdia, supostamente envolvida em atos de terrorismo, mentirosa ou desonesta, desde que a lei admita a possibilidade de eleio, isto no importar do ponto de vista estritamente democrtico e representativo da composio da Cmara dos Deputados, por mais absurda e pattica que esta opo possa parecer aos olhos de muitos. No fosse assim, e a maioria teria sempre e em qualquer caso juzo de vida e morte sobre os mandatos dos parlamentares

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    que reputasse incmodos, indesejveis, ou indignos de terem assento no Parlamento. O princpio da proporcionalidade da representao estaria irremediavelmente ferido.

    Algum poder ento tentar refutar este ponto de vista indagando em tom crtico: ter ento o povo direito de outorgar um mandato a um corrupto afrontando a concepo poltica da maioria da sociedade? A isso responderemos: desde que a condio de corrupto seja apenas uma qualificao atribuda por uma opinio corrente na sociedade, mas no afirmada juridicamente por uma condenao judicial que suspenda os direitos polticos do candidato, ser, sim, plenamente possvel esta outorga de mandato parlamentar. a nossa Constituio que assegura, como um dos princpios basilares do Estado de Direito, que ningum ser considerado culpado at o trnsito em julgado de sentena penal condenatria. Quaisquer juzos de valor pejorativos, corretos ou no, que antecedam a este julgamento final, no podero ser tomados como passveis de fazer uma restrio de direitos, inclusive no plano poltico-eleitoral.

    Alis, quantas vezes no ficamos surpresos com resultados eleitorais que permitem malversadores notrios do dinheiro pblico, torturadores reconhecidos, pessoas supostamente vinculadas ao crime organizado, em suma, pessoas socialmente vistas como indignas aos olhos da maioria da sociedade, ocuparem cadeiras no Parlamento. Talvez nunca fossem eleitos para o exerccio de cargos majoritrios, mas so eleitos por uma parcela da populao. Sem dvida isto nos entristece, nos propicia revolta e indignao. Podemos e devemos questionar aqueles que acreditam no absurdo rouba mas faz, que assassino de bandido bom moo , e que quem d benefcios diretos ao povo deve ser eleito, independentemente da origem do dinheiro que os paga. Contudo, por entendermos que votaram errado alguns cidados, no podemos suprimir a representao popular que outorgaram com a livre expresso do seu voto. Os cidados tm direito subjetivo e poltico de serem representados por aqueles em que votaram. Se o voto foi inconsciente, trocado por favores, despolitizado, negador de posturas ticas e republicanas, isso deve ser criticado, debatido e combatido, mas vale como voto e como tal democraticamente deve ser respeitado. Se os cidados so incultos, desinformados, despreparados no plano da poltica, ao ver de alguns, isso no os faz perderem a condio de cidados e de escolherem livremente o seu representante. Todo cidado tem o direito de dizer o que pensa e de votar como quer, desde que a lei no o vede, por mais estranho e ignbil que isso possa parecer aos olhos da maioria da sociedade. Que se melhore a educao poltica da sociedade, que se desperte a conscincia crtica e republicana dos cidados; que se aumente a informao sobre os malefcios da improbidade e da ofensa aos princpios humansticos; mas que no se retire, a partir de concepes elitistas e autoritrias, o direito de voto e o direito de representao de todos os cidados to caro e to prprio ao Estado Democrtico de Direito.

    Finalmente, pondere-se que se a maioria dos representantes do povo acha que certas situaes de indignidade no poderiam ser aceitas no Parlamento, que mudem a lei. Tm eles o poder de fazer novas leis, de emendar a Constituio, de legislar. Podem firmar novas condies de elegibilidade que tenham por mais justas e adequadas. Garantida, porm, constitucional e legalmente, a condio de elegibilidade, o julgam