caragea, mioara - história, para o e-dicionário de termos literários carlos ceia
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HISTÓRIA, por MIOARA CARAGEA
“E-Dicionário de Termos Literários de Carlos Ceia”, em:
<http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=250&Itemid=2>
A palavra história apresenta uma dualidade referencial: designa tanto
a realidade de uma determinada época (res gestae) como o discurso
científico sobre o passado (historia rerum gestarum). Algumas línguas
(entre as quais o português) apresentam um terceiro sentido: o de conto,
narrativa imaginária, ficção. A fluidez polissemântica da palavra não é
acidental. Assinala a ambiguidade da relação que mantém o discurso
histórico com o seu objecto: pretendendo-se discurso verdadeiro sobre
as res gestae, a historiografia “une o lado subjectivo com o lado objectivo e
denota tanto a historia rerum gestarum como as próprias res gestae
abarcando tanto o que aconteceu como a narração do que aconteceu”.
Na realidade a história decide do que é “histórico” ou seja, digno de
ser preservado pela memória dos homens, e do que o não é, construindo um
mapa cognitivo, um “plano do passado[1]”, que tende geralmente a
substituir e apagar a própria realidade histórica. Por sua vez, a homonímia
entre a história-ciência e a história-ficção chama a atenção para a estrutura
comum aos dois géneros discursivos, postulando por um lado que a história
é naturalmente narrativa e sugerindo pelo outro uma possível concorrência
entre dois discursos que se disputam a mesma realidade.
Essa rivalidade potencial já estava presente nas distinções que
Aristóteles estabeleceu entre o discurso histórico e a ficção. Para
Aristóteles, tanto a história como a literatura representam uma mimèsis:
“imitação” ou melhor, “representação” de uma acção temporal. As duas
efectuam uma operação de arranjo/disposição de uma sequência de
acontecimentos numa intriga. A diferença consiste no estatuto ontológico
da sequência de acontecimentos narrados: a matéria da história é o factual,
o vero (a história conta o que realmente tem acontecido) ao passo que o
domínio da literatura é o possível, o verosímil, o simulacro da própria
história ( a poesia conta o que teria podido acontecer). À narração real da
história opõe-se a narração fingidamente real da literatura.
Com a constituição do campo simbólico literário no século XVIII e a
aquisição do estatuto de ciência pela história no século XIX, entre os dois
discursos abre-se uma verdadeira clivagem epistemológica que os
demarcará durante muito tempo como duas formações discursivas rivais e
antagónicas, pertencentes aos campos opostos da ciência e da arte. Definida
desde os seus primórdios como o próprio paradigma da verdade: (“Quem
ignora que a primeira lei da história é não dizer nada falso? E a segunda,
ousar dizer toda a verdade?” perguntava Cícero no De Oratore, II, 15, 62),
a história chegou a atribuir-se, no século XIX, com o historicismo, o
domínio único e absoluto do real, considerando a escrita uma operação
secundária, inerente à retórica da comunicação, mas sem repercussões
sobre a constituição do objecto histórico.
O discurso histórico acaba assim por ignorar o seu carácter textual,
apresentando-se seja como discurso puramente denotativo /literal/ seja
como discurso que adopta uma forma literária por razões estratégicas, de
comunicação. A discriminação clássica entre o vero e o verosímil desliza
para uma oposição de categorias lógicas: vero/falso, verdade/mentira, aliás
já defendida por Platão. Vista sob este ângulo, a história teria um contrato
absoluto com a verdade objectiva, enquanto a literatura se situaria, por
oposição, no domínio da invenção, que só obliquamente alude à verdade.
Assim, a ficção acaba logicamente por cair no domínio da mentira e sobre
ela pesará uma recorrente acusação de irresponsabilidade epistemológica,
que a literatura tentará superar por vários meios. O romance histórico, na
sua forma clássica, instituída por Walter Scott com o ciclo de Waverley,
ambicionará completar o discurso histórico, trazendo à história erudita «a
vida» que lhe faltava pelo recurso ao imaginário. O romance realista
competirá com o discurso histórico no plano da história imediata, tentando
como Balzac constituir mapas cognitivos completos e estruturados da
sociedade sua contemporânea.
O corte entre a história e a literatura como géneros discursivos foi
posto em causa pela teoria e pela arte contemporânea. Michel Foucault
pergunta-se na Arqueologia do saber[2]" se é legítimo admitirmos como
natural a distinção das grandes formações discursivas que opõem umas às
outras a ciência, a literatura, a filosofia, a história, a ficção, como se de
grandes individualidades históricas se tratasse. Longe de apresentar
articulações naturais do campo discursivo, os cortes genéricos são
"categorias reflexivas, princípios de classificação, regras normativas, tipos
institucionalizados”, marcados pela historicidade, e que devem ser eles
próprios submetidos à análise. Não possuem caracteres intrínsecos,
autóctones e universalmente recognoscíveis". A História e a literatura são
categorias recentes e a sua articulação não pode ser aplicada às culturas
pertencentes ao passado a não ser através de "uma hipótese retrospectiva e
um jogo de analogias formais ou de semelhanças semânticas[3]"
Convenções culturais e ideológicas, as tipologias discursivas são
modalidades de organização “tão inevitáveis como derisórias", que,
destinadas a ordenar o universo discursivo, não conseguem em última
instância outra coisa senão torná-lo ainda mais confuso. ”Somos
condenados a pensar uma mistura inextricável do mesmo e do outro, uma
rede de relações permanentemente aberta[4].” Se aceitarmos, com Jean-
Michel Adam[5] que:
“Discurso = Texto + contexto
Texto = Discurso - contexto”
então as diferenças entre a história e a ficção poderiam ser procuradas
seja ao nível contextuai, propriamente discursivo, seja ao nível textual.
Sabemos assim de que discurso se trata graças às várias marcas que nos
informam sobre o estatuto oficial do texto e a sua pertença a uma
instituição cultural: o pacto genérico garantido pelo título, o subtítulo ou o
próprio autor, a presença ou a ausência do aparelho científico (notas,
comentários, prefácios, posfácios). É de notar que esses traços definem os
dois tipos discursivos como arquitextos[6], isto é, como elementos situados
dentro de séries genéricas, o que permite várias transgressões. Os
romancistas imitam vários tipos de paratextos específicos da história ou
apelam para a forma ostensivamente intertextual das obras históricas,
criadora de heterogeneidade e de variedade discursiva, a fim de simular a
seriedade científica e conseguir seria ou parodicamente um efeito de real
(tanto de re, como de dictu). Os historiadores por sua vez podem evitar ou
ocultar o paratexto científico, deslocando as notas, como faz Georges
Duby, para o fim do livro, a fim de aproximar o mais possível o seu texto
do modo de apresentação de uma obra artística, entendendo que a escrita,
longe de representar na história um aspecto superficial, de ordem
redaccional, constitui pelo contrário um problema interno da disciplina. A
história, diz Georges Duby, “ é acima de tudo uma arte, uma arte
essencialmente literária. A história só existe pelo discurso. Para que seja
boa, é preciso que o discurso seja bom[7].”
O estatuto oficial do texto pode modificar-se sem que o texto se
modifique, pela simples mudança do contexto ou do protocolo de leitura.
Podemos ler um texto histórico como um texto de ficção, optando pelo que
Gerard Genette[8]chama "o regime condicional da literariedade" que
"depende de uma apreciação estética subjectiva e sempre revogável" do
texto. Uma série de textos pertencendo à literatura não-ficcional em prosa
podem ser recuperados, em função das circunstâncias, como objectos de
prazer estético[9], chegando até a constituir séries integráveis em domínios
diferentes do original: é o que acontece, por exemplo, com as obras
historiográficas de estatuto ambíguo ( as crónicas medievais) que tanto
podem pertencer à série literária (Fernão Lopes é o primeiro monumento de
prosa artística em português), como à série historiográfica (a sua obra é
uma primeira amostra de metodologia científica, em sentido moderno).
Uma obra de história pode assim sobreviver à sua função científica ou
documental através de uma decisão individual ou colectiva que faz passar
para o primeiro plano as suas qualidades estéticas. Pode ser lida como
ficção e por motivos menos nobres, devido ao desconhecimento por parte
do leitor da enciclopédia cultural subjacente ao texto e à impossibilidade da
verificação do seu contracto com o real na ausência do universo referencial,
o que induz uma leitura que privilegia os aspectos estéticos ou a fertilidade
imaginária da obra.. A poética condicionalista responde à pergunta: "Em
que condições ou em que circunstâncias pode um texto, sem nenhuma
modificação interna, tornar-se obra[10]", que substitui a interrogação
tradicional, essencialista: “O que é a arte?” por outra: “Quando é arte[11]”.
Além do nível da literariedade - circunstanciada e mutável, as
diferenças entre a História e a ficção foram procuradas ao nível
propriamente textual. Para alguns investigadores não existe nenhuma
característica interna do texto que o pudesse situar categoricamente num ou
noutro discurso na ausência do contexto. John Searle, por exemplo,
contesta a existência de quaisquer "propriedades textuais, sintácticas ou
semânticas que poderiam permitir a identificação de um texto enquanto
obra de ficção[12]", enquanto para um historiador como Hayden White a
diferença entre a história e uma representação ficcional da realidade é “uma
questão de grau e não de tipo/espécie[13]”, as duas pertencendo “à mesma
classe do ponto de vista da estrutura narrativa[14]".
A questão da narratividade foi um dos pontos mais debatidos pela
teoria literária e historiográfica contemporânea. A narratologia dedicou-se a
descobrir se a narrativa factual (de que a narração histórica é uma das
espécies) e a narrativa ficcional se comportam de forma diferente em
relação à história que relatam. Depois de aplicar às narrativas factuais o
protocolo estabelecido noDiscours du récit: ordem, velocidade, frequência,
modo e voz, Gérard Genette conclui que deve ser fortemente “atenuada a
hipótese de uma diferença a priori de regime narrativo entre ficção e não-
ficção[15] Se considerarmos as práticas reais, devemos admitir que “os
dois regimes não são tão distantes um do outro como pretendem, nem tão
homogéneos como poderíamos supor[16]”, podendo haver mais diferenças
entre duas narrativas de ficção do que entre uma ficcional e outra histórica..
As diferenças mais notáveis, que podem ser consideradas “traços
distintivos da diferença entre os dois tipos de texto[17]”, parecem afectar
essencialmente as estratégias subjectivizantes, características modais
intimamente ligadas à “oposição entre o saber relativo, indirecto e parcial
do historiador e a omnisciência elástica” de que usufrui o ficcionista.
“Internacional, trans-histórica, transcultural[18], segundo Roland
Barthes, a narrativa “é um meta-código, um universal humano[19]. que
pode ou não ser usado para a representação da realidade, em função do
desígnio pragmático do sujeito da enunciação[20].” Olhada ao princípio
com desconfiança pelos historiadores da Escola dos Anais que, vendo nela
“o próprio paradigma de ideologização do passado[21]”, procuraram
formas não-narrativas de fazer a história, a história-conto foi substituida
pela história problema[22] e desdramatizada pela rejeição da história
política e événementielle, voltando contudo nos anos mais recentes, sob
formas mais romanescas[23], que tematizam o passado, encenando tanto
as realia como os possíveis (ainda) não realizados da história.
“Literatura de viagem”, “ficção científica”, a história abre-se ao
imaginário, criando “um espaço de possíveis a imaginar ou a pensar acerca
de si mesmo”, e sugere “outras formas de existência”, que oferecem “saídas
e uma linguagem objectiva a desejos prestes a partir para outros modos de
relação, de trabalho, de festas[24].
Apesar de representar uma forma quase universal de organização do
saber histórico, a narração não é contudo, como acreditava a historiografia
tradicional, um determinismo imanente às res gestae: sendo geralmente
narrativa, a história não tem no entanto “uma articulação natural[25]”. “Um
conto - histórico ou não - é uma construção e, sob a sua aparência honesta e
objectiva, procedeu a toda uma série de escolhas não explícitas[26].” Como
o romance, a história é feita de intrigas, selecciona e articula os factos
numa montagem narrativa em função de uma pergunta que o historiador
dirige ao passado. A intriga histórica é uma das trajectórias possíveis no
espaço do passado, cientificamente autorizada e caucionada. Um mesmo
acontecimento tem um sentido diferente em função da intriga, do contexto
em que está inserido. Segundo Collingwood, as intrigas históricas são
geradas por certas “pre-generic plot structures”, mythoi culturalmente
dados que brotam da imaginação construtiva do historiador[27].
De forma semelhante à literatura, embora em menor grau, a história
realiza uma modelização do mundo empírico, pretendendo contudo manter
uma correspondência rigorosa com o real. Esta modelização é, segundo
Hayden White, tropológica: as narrativas históricas têm como estrutura
profunda um dos quatro tropos fundamentais: metáfora, metonímia,
sinédoque ou ironia[28].
Um objectivo fundamental da narração histórica é a procura das
causas. Reconstruída a posteriori pelo historiador, a sequência causal é
percebida pelos destinatários do discurso histórico não só como
encadeamento cronológico, mas também lógico: daí o sentimento de
“necessidade” ou de fatalidade histórica: o que é é porque devia ser. A
historiografia do século XX reconheceu a importância epistemológica do
“presente” a partir do qual o historiador procede á reconstrução do passado.
Ao passo que a historiografia da época positivista acreditava poder falar de
uma época do seu interior, explicando os acontecimentos em função do
momento em que sucederam e ignorando e apagando tudo o que se passou
depois, os historiadores convenceram-se a partir de Croce que “Toda a
história é contemporânea[29]”, e que o passado só se torna inteligível a
partir dos seus efeitos que retroactivamente recortam na confusão do
passado um itinerário causal que os fundamenta e os justifica. Realçando
certos elementos, descurando outros, a escrita histórica confere um certo
relevo valórico ao passado, decidindo de modo sub-reptício do que vale a
pena ser rememorado, do que é digno da história e do que o não é. Essas
trajectórias pelo passado representam uma tópica (um sistema de
perguntas) feitas a partir dos interesses do presente, que muitas vezes
colide com a visão do passado sobre si próprio: o trabalho do historiador
consiste então em grande medida numa luta contra a óptica imposta pelas
fontes[30], tanto mais forte quanto estas se apresentarem sob a forma
narrativa, i.e. como um relato ingénuo do encadeamento do que foi.
Quando ao historiador faltam os elementos causais, ele recorre à
retrodicção: aplica ao passado um modelo analógico deduzido a partir de
outros encadeamentos semelhantes, suprindo o real pelo verosímil e
preenchendo as lacunas da história com ficções[31].
Tal como num drama ou num romance, o historiador vê-se obrigado a
fornecer uma explicação plausível sobre os motivos de certas acções
decididas pelas suas “personagens”. Como porém, depois dos positivistas,
já não se acredita na existências das leis na história, os historiadores
recorrem a hipóteses comportamentais que são recolhidas no repositório
das experiências comuns, coligidas sobretudo pela literatura. Esses
truismos[32] psicológicos constituem muitas vezes “a base da explicação
histórica”, abrindo uma nova brecha por onde se introduz no discurso
histórico uma perspectiva determinada pela competência enciclopédica do
historiador.
A pior acusação que pode ser feita a um historiador e que este receia
acima de tudo é a de anacronismo. Sabendo que fala inevitavelmente a
partir de um presente, do seu presente, o historiador deve combater não só a
visão que o passado transmite de si próprio, mas também os preconceitos
com que ele próprio está imbuído devido à sua pertença a um determinado
contexto socio-cultural. Como diz expressivamente Arthur Danto[33]:
“One does not go naked into the archives”. A objectividade absoluta é
inatingível, apenas um horizonte que sempre se afasta, “uma ideia
limite[34]”, mas é um ideal que a história se obstina a perseguir, um pouco
tragicamente, tentando encontrar novas vias de acesso ao passado. Para
diminuir, por exemplo, os efeitos da quase inevitável identificação inter-
subjectiva com a humanidade de outras eras e a consequente redução do
seu sistema de interacção com o mundo a um esquema conhecido (o da
actualidade do historiador), recorre-se cada vez mais a ciências que se
tornaram auxiliares da história como a antropologia, a sociologia ou os
estudos estatísticos de quantificação.
Neste “reino do inexacto”, que é a história - segundo a expressão de
Paul Ricoeur[35] -, o próprio facto histórico é uma construção marcada
pelas escolhas subjectivas do historiador. A história não se contenta com
seriar as realia numa intriga que lhes distorça o sentido de uma certa
maneira (sendo mimesis é distorção[36]) mas também talha o facto
histórico de modo a que este corroborasse a hipótese que serve de
programa de investigação. “Os factos históricos são constituidos, isto é são
seleccionados pelo historiador que lhes dá estatuto de dados/data/. Numa
segunda etapa os dados/as data/ são constituídos uma segunda vez como
elementos duma estrutura verbal que é sempre produzida com um
desígnio(manifesto ou latente) específico. A História nunca é simples
história, mas História-para, história escrita com um objectivo
infracientífico[37]”.
O facto histórico não é portanto dado, ou encontrado tal e qual no
passado, mas é, pelo contrário, o produto de uma elaboração. “Inventando e
fabricado” (segundo a expressão de Lucien Febvre, usada na sessão
inaugural no Collège de France a 13 de Dezembro de 1933) o facto
histórico é uma “criação” do historiador. É também impossível precisar os
limites do que seria um facto histórico elementar, uma unidade minimal
dotada de pertinência e autonomia suficiente para abrir uma série histórica:
é em vão que os historiadores procuram “átomos événementiels[38]”,
“historemas[39]”. Os acontecimentos não são surpreendidos de modo
directo, mas através dos vestígios que deixaram, restos do discurso que
uma época elaborou sobre si própria. “Arte de tratar os restos[40]”, a
história é por excelência intertextual e interdiscursiva. Transforma os
documentos em monumentos (segundo a expressão de Foucault[41]),
reconhecendo o seu carácter fabricado, produzido de forma não-inocente
pelas instituições do passado encarregadas com a transmissão da memória.
Identifica e denuncia neles os jogos do poder e as estratégias
institucionalmente usadas para interpor entre o seu presente e o futuro a
que se dirigem uma certa imagem-écran que tanto revela como oculta,
tentando legitimar o status quo, com o seu sistema de distribuição do poder
político e simbólico.
Por isso, a história não consiste numa travessia dos documentos até se
encontrar um real, integralmente recuperável, suposto existir antes e
debaixo dos textos, como acreditava a historiografia “realista” do século
passado, mas, numa visão reconhecidamente nominalista, admite não haver
outra realidade do passado além de uma interminável produção de
discursos que o historiador deve deconstruir e desmontar antes de criar um
novo patch-work discursivo, sempre provisório, sempre renovável.. O
passado já não é descrito como se fosse percebido, mas torna-se presente
apenas pela mediação da historio-grafia, como “artefacto literário[42]”. A
história, sempre provisória, surge como um processo infinito de reescrita
do passado, de rectificação, de releitura “plena de perdas e ressurreições,
falhas de memória e revisões[43]”
Reconhecendo-se múltipla e parcial, uma história em migalhas, uma
história serial, uma história descontínua, a historiografia contemporânea
rejeita a utopia de uma História global ou total, identificando nela o sonho
totalitário de ordenar e normalizar o passado de acordo com a visão dos
“vencedores”. Ela recorta no passado novos objectos históricos - a história
dos povos vencidos, das classes ou categorias silenciadas. as mulheres, os
jovens, os loucos, os marginais, as mentalidades populares, a opinião
pública, o mito, o inconsciente, o corpo, as doenças- que, inscrevendo-se na
duração longa como formas de resistência ao main stream imposto pelas
classes dominantes, representam loci alternativos de construção identitária
para a diversidade do público que, graças aos progressos da democracia,
tem actualmente acesso ao saber histórico, procurando nele maneiras de
legitimar a sua diferença.
Na época pós-moderna em que vivemos, nota-se, segundo
Lyotard[44], uma desconfiança generalizada em relação às grandes
narrativas meta-históricas: dispositivos narrativos de alcance universal que
pretendem integrar e unificar domínios tão heterogéneos como a filosofia, a
investigação e a arte num único jogo de linguagem de carácter normativo e
prescriptivo que tem como objectivo fundamentar e legitimar um
determinado status quo, inscrevendo-o na dinâmica finalista de um sentido
único. Olhadas com desconfiança pela historiografia (Lucien Febvre:
“Filosofar, significa… dito por um historiador o crime capital.[45]”), as
historiosofias sobrevivem e prosperam no entanto na vulgata histórica
difundida pelas instituições que se atribuem a missão de propagar e
preservar a memória colectiva: a escola, os media, a literatura de
vulgarização, o discurso político e o calendário comemorativo que organiza
a dramaturgia de auto-representação do Estado. Longe de coincidir com a
ciência histórica, esta vulgata representa um subproduto do discurso
histórico na sua diacronia, um amalgama de discursos heterogéneos, mas
ideologicamente orientados, que visam à perpetuação do status quo e à
cimentação da identidade. Entre o discurso científico sobre a história e
a doxa histórica existe a distinção que Maurice Halbwachs[46] fazia entre a
memória-dialogo, representada pela história como prática cognitiva, e a
memória-mensagem, que tende para a reificação ideológica do passado,
excluindo todo o diálogo.
Sem obrigatoriamente falsificar os factos históricos, a doxa histórica
articula-os de modo a criar ficções colectivas, imbuídas de violência
simbólica, que visam a integrar o poder que celebram numa genealogia
prestigiosa, “instituindo-o como o herdeiro legítimo de tudo o que de
«bom», de »glorioso», de «racional» se tenha empreendido no
passado[47]”. Estas ficções - as metanarrativas - supõem um labor de
integração simbólica de acontecimentos históricos muitas vezes
conflictuais, de memórias centrífugas, anómicas dentro de um projecto
meta-histórico que mobiliza o passado histórico como fonte de um futuro
épico de toda uma colectividade (segundo os casos, um grupo étnico ou
religioso particular, uma nação específica, a humanidade no seu todo),
assentando numa política da memória que é ao mesmo tempo uma política
do esquecimento. Trata-se de um “gestão dos vestígios[48]”, uma “gestão
da saga identitária[49]”, que transforma a história na “palavra dos pais”,
segundo a expressão de Bakhtine[50], de que é preciso libertar-se. A
libertação da história não consiste num simples acto de rejeitar ou ignorar
a doxa histórica de que está saturada a nossa sociedade, mas numa
interrogação individual das res gestae e da historia rerum gestarum, que se
constitui afinal como uma variante entre outras do esforço de «mapear a
totalidade» daquilo que Jameson[51] chama «o hiperespaço pósmoderno»,
caracterizado pela desorientação espacial e cognitiva.
Bibliografia
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congress, International Federation for Modern Languages and Literature,
held at New York University, August 25 to 31, 1963.
(1965); AAVV: L’Histoire Littéraire (2001);Claudio Guillén: Teorías de la
historia literaria (1989); Douwe W. Fokkema: Literary History,
Modernism, and Postmodernism (1984); Hans Robert Jauss: Historia
literária como desafio à ciência literária, trad. de Ferreira de Brito (Vila
Nova de Gaia, 1974); Jacinto do Prado Coelho: Problemática da História
Literária (1961); João Barrento (org.): História literária: problemas e
perspectivas (1982); Oscar Tacco: La historia literaria (1968); René
Wellek: Historia literaria (Barcelona, 1983);Românica, nº6: “História da
Literatura” (Lisboa, 1997).
http://www.literaryhistory.com/index.htm
http://acd.ufrj.br/pacc/literaria/historialit.html