capítulo 3: o território reivindicado

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O Território Reivindicado A “Família Silva” atualmente ocupa uma área de 4.445,71 m 2 , conforme mapa em anexo. Ao norte, um limite de 72,13 m os separa de uma área cercada pela empresa ASTIR. Ao norte dessa área, encontra-se a rua Edwaldo Campos e a Praça Arquiteta Berenice, também conhecida como Praça Paris. Esta delimitação é composta por marcos de granito colocados pelo avô dos Silva, a maioria dos quais se encontram cobertos pela vegetação. Ao sul, o limite totaliza 76,26 m. Por 13,65 m na parte mais a leste do limite sul, confrontam-se com o início da Vila Beco do Resvalo.

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O Território Reivindicado

A “Família Silva” atualmente ocupa uma área de 4.445,71 m2, conforme

mapa em anexo. Ao norte, um limite de 72,13 m os separa de uma área cercada

pela empresa ASTIR. Ao norte dessa área, encontra-se a rua Edwaldo Campos e

a Praça Arquiteta Berenice, também conhecida como Praça Paris. Esta

delimitação é composta por marcos de granito colocados pelo avô dos Silva, a

maioria dos quais se encontram cobertos pela vegetação.

Ao sul, o limite totaliza 76,26 m. Por 13,65 m na parte mais a leste do limite

sul, confrontam-se com o início da Vila Beco do Resvalo.

Esta divisa é consensual e unânime, tanto entre os integrantes da “Família

Silva” quanto entre os moradores do Resvalo. Além disso, por 50,52 m também ao

sul, limita-se com o muro de um condomínio.

A implantação do mesmo é recente, e os Silva o acusam de ter avançado

desnecessariamente quatro metros sobre seu terreno, tendo sobrado, na parte de

cima, outros quatro metros. A sobreposição do mapa da área atualmente ocupada

com o aerofotogramétrico de 1982, feito pela unidade cartográfica do DEMHAB,

confirma a narrativa da comunidade. Efetivamente, uma parcela de seu terreno

era, há vinte anos, mais ao sul do que nos dias de hoje.

A oeste, 46,96 metros de altíssimos muros os separam de residências de

luxo. A leste, uma cerca de 74 metros de extensão lhes separa de um terreno,

considerado área verde pela Secretaria da Fazenda da Prefeitura Municipal de

Porto Alegre, sem constar o nome de qualquer lote ou dono. No entanto, o mesmo

encontra-se em processo de urbanização, pela empresa Bortoncello. Segundo

relatos de integrantes do grupo, a cerca que a separa desta área sofreu diversos

deslocamentos nos últimos anos. Entre avanços e recuos, o resultado total foi o

de reduzir o território por eles ocupado, já que originalmente, parte considerável

daquele terreno definido como área verde lhes pertencia.

Ali eram realizadas plantações, extraídas ervas medicinais, bem como

existia a moradia dos avôs Naura e Alípio e, mais tarde de um agregado de nome

Zeca. A casa deste último pode ser visualizada no aerofotogramétrico de 1982. A

divisa norte, composta por marcos de granito se estende até o terreno em

questão, confirmando as narrativas do grupo acerca de seu domínio sobre a área.

Recomendamos, portanto, que os marcos e a figueira preservada na

pavimentação da rua Lobélia sejam considerados pontos de referência para os

limites do território reivindicado pela “Família Silva”, conforme desejo expresso. O

serviço de topografia do DEMHAB não pôde medir o limite leste solicitado em

virtude das atividades de urbanização ali postas em prática, mas apontaram em

seu levantamento os marcos referidos anteriormente. Quanto aos demais limites,

há coincidência entre o território atualmente ocupado e o reivindicado.

A fim de instrumentalizar os trabalhos dos órgãos públicos envolvidos no

processo de demarcação e titularização destas terras, apresentamos algumas

informações sobre os processos judiciais nos quais os Silva estiveram envolvidos

e sobre a cadeia dominial da área em questão.

Resumo das Ações Judiciais

Processo nº (apensado ao processo n 01178306211 citado na sequência)

Autor: João José de Freitas

Objeto da Ação: Usucapião

Área pretendida: 37.784,57 m2

20 de abril de 1964

Nesse processo João José de Freitas alega ocupar por mais de 32 anos

uma área com as seguintes confrontações: NORTE , Novo Educandário Anchieta

e Terras de Irmãs Bernadinas, SUL E LESTE, por um arroio e um loteamento da

Schilling, Kuss e Cia Ltda, OESTE, por uma área cultivada pelo senhor Angelino

Boeira. Para tanto solicita o testemunho de Alípio Marques dos Santos, Olímpio

Alves Silveira, Agenor Pereira Nunes, José Dutra e Oscar Mello.

Em sua declaração Alípio informa que em 1942 o autor da ação lhe cedeu

uma área para que ele pudesse instalar uma casa e ali morar. Diz também que a

área que ocupa é de 1 hectáre e que quando ali se instalou pagava ao autor cento

e cinqüenta mil cruzeiros mensais, mas que já não pagava mais.

Existe um documento assinado por Alípio Marques dos Santos ( á rogo por

que ele era analfabeto), Carlos Freitas, Hélio Freitas, Valdomiro Freitas ( parentes

de João José de Freitas com certeza), Fausta Nunes e José Lopes Silva, onde

eles declaram que eram inquilinos do Sr. João José de Freitas, residindo em

terras de sua propriedade, mediante pequenas contribuições mensais.

Ao longo do processo a empresa Schilling, Kuss e Cia Ltda propõe uma

ação reivindicatória da área em questão, apresentando testemunhas que alegam

que João José de Freitas não habitava aquela região há 32 anos, mas tão

somente há 17. Ela também apresenta os registros Torrens do referido imóvel e

alega que teria exercido a propriedade através de medições e demarcações que

teria executado na década de 50. Ao final do processo o pedido de usucapião é

negado e o autor, assim como seus pretensos inquilinos são condenados a se

retirar do local.

Esse processo, mais precisamente essa declaração de Alípio, é resgatada

em todos os processos judiciais envolvendo os Silva que se seguem, por isso

entendemos ser necessário fazer algumas ponderações. Não era do

conhecimento da comunidade que o avô pagasse qualquer valor a qualquer

pessoa que fosse, à título de aluguel das terras. Em conversa com João, filho de

criação de Naura e Alípio, eles nos disse que:

A”:- Ele pagava alguma coisa para o João Freitas quando ele foi

testemunhar? Era isso? Ele pagava alguma coisa para estar aqui

ou não, ele tinha a concessão do João pra estar aqui?

J:- Não, lindeiro é um vizinho.

A:- Ah, vizinho. Tá, mas não se sabe se alguém pagava alguma

coisa para alguém quando veio para cá. Ninguém pagava nada

para ninguém?

J:- Não, não. Ninguém pagava nada para ninguém. Todos os que

estavam aqui, eles tinham a posse, mas não eram proprietários.

Tinham a posse, mas ninguém era proprietário.

A:- Não, é porque neste resumo que a gente acessou o que dizia

era que a declaração do Alípio era essa, de que ele pagava aluguel

para o João Freitas.

J:- Quem deu essa declaração?

A:- É a declaração que diz que está no processo. Por isso que eu

estou te perguntando, entendeu? Estou te perguntando pelo que eu

li.

J:- Desde que...Aí não. Desde que...Aí, tá, seria locatário. Seria

locatário. Desde que eu me conheço por gente, aqui dentro nunca

houve isto de pagar aluguel para ninguém. Ninguém pagava

aluguel para ninguém. Cada um tinha o seu pedaço e

trabalhava como queria. Ele [referindo-se a Alípio] era uma

pessoa que tinha renite asmática, que tinha problema de

coração. Ele vivia só do que a gente plantava aqui e do

rendimento da falecida mãe, que era faxineira, cozinheira,

passadeira. Trabalhou algum tempo em obra, mas não teve mais

condições para continuar em obra. Não era aposentado, então

não tinha como ele pagar isso aí também. Não tinha como ele

pagar .”1

Por outro lado, embora existisse uma decisão judicial que prescreveu que

todos deveriam sair da área, ela foi aplicada, a princípio, apenas a João José de

Freitas, pois Alípio e seus descendentes permaneceram no local.

Processo nº:01178306211

Autor: Naura Silva dos Santos

Objeto da Ação: Usucapião

Área Pretendida: 6.598,46 m2

12/07/1972

Nessa ação, Naura Silva dos Santos, então viúva de Alípio Marques dos

Santos, se declara horticultora e sucessora de seu marido na posse do território

em questão. Com o falecimento de Naura, habilitaram-se no feito Anna Maria da

Silva e seu marido Euclides José da Silva. Posteriormente Anna Maria veio a

falecer. A ação é julgada improcedente por que as testemunhas ouvidas na fase

introdutória ( ou seja quando Naura ainda estava viva), não se referiam a posse

de Anna Maria e Euclides. Essas pessoas teriam sido: Maria José Feijó Borges,

Joaquim Rodrigues, Job Borges, Alencar Feijó da Silva e Angelino Boeira.

Maria, Job e Alencar eram parentes e conheciam Naura em função das

relações de trabalho e compadrio que a mesma detinha com integrantes dessa

família, relações estas originárias de São Francisco de Paula conforme

1 Entrevista realizada com João Brito Soares em 05 de junho de 2004.

demonstrado no capítulo 1. É certo que eles conheceram Anna Maria e Euclides,

pois até hoje seus filhos falam da Vó Branca, forma como eles tratavam Maria

José Feijó Borges. Esse também era o caso de Angelino Boeira, tendo em vista

que posteriormente um integrante de sua família uniu-se a uma descendente do

casal em questão. No entanto, resta saber por que as testemunhas deveriam

fazer referencias a eles se era Naura quem estava a frente do processo de

usucapião que requeria posse individual.

Outra justificativa para a negativa foi o fato de Alípio ter testemunhado no

processo de João José de Freitas como arrendatário como anteriormente referido.

Além disso, a área que ocupavam teria sido reintegrada a Schilling Kuss e Cia

Ltda em 1969, embora essa questão tenha se processado juridicamente não o foi

de fato, pois ali continuaram a viver durante todos esses anos.

Processo nº:01190039824

Autor: Euclides José da Silva, seus filhos e Lucival Mendes Rabello.

Objeto da Ação: Usucapião

Área Pretendida: 4. 788,74 m2

04/01/1990

Euclides reivindica-se como sucessor de Naura e seus filhos como

sucessores de sua mãe Anna Maria em virtude dos já referidos falecimentos. Na

inicial, era destacado que todos filhos de Euclides nasceram naquela terra, o que

caracteriza a duração da ocupação da região. O advogado que os representa,

Lucival Mendes Rabello, integra o feito como polo ativo, em virtude de uma

escritura pública de cessão de direitos da quarta parte do todo que lhe foi

repassada por Euclides. Ao que tudo indica, essa foi a única maneira que ele

encontrou de remunerar um advogado para promover a ação de ususcapião. A

ação foi julgada improcedente por que os autores reivindicavam área coincidente

com aquela solicitada por Naura e por que ao se proclamarem sucessores

mantinham o caráter da posse que lhes foi transmitida. Em outras palavras, por

invocarem um direito em termos sucessórios e de parentesco (extremamente

coerente com a lógica do grupo) a mácula do testemunho de Alípio que prejudicou

a ação de Naura lhes foi repassada. No entanto, a habilitação como sucessores

dela foi interpretada como o reconhecimento de que a posse, até então, era

exercida por ela, não por eles. Para serem reconhecidos como possuidores do

imóvel deveriam opor-se ao pedido de usucapião promovido por ela e não

habilitarem-se como sucessores nos seus autos. Tendo em vista que Naura

falecera em 1980, a posse dos autores da ação só poderia ser reconhecida

transcorrido o tempo previsto a partir desse ano. Evidencia-se nesse processo a

ineficácia dos meios jurídicos empregados. A posse coletiva e simultânea não

pode ser considerada e a sucessão familiar é interpretada como algo negativo

para a demanda.

Chama-nos a atenção que o parentesco e a sucessão inter-geracional não

foi reconhecida no usucapião promovido por Naura, isto é, sua posse não foi

levada em conta quando o processo foi assumido por Anna Maria e Euclides.

Quando este elemento é reconhecido, no segundo processo, atua no sentido de

negar deferimento à demanda, já que tratava-se de questão anteriormente

julgada. Percebemos uma desigualdade de critérios entre ambos processos,

sempre desfavorável à comunidade.

Processo nº: 1198180786

Autor: José Antonio Mazza Leite, Emílio Rothfuchs Neto, Maria Coelho de

Souza Rothfuchs

Objeto da Ação: Ação Reivindicatória

02/04/1998

Autores apresentam registros dos imóveis e solicitam a desocupação da

área. A ação é considerada procedente, porém os Silva foram julgados à revelia.

Curiosamente, embora se soubesse o endereço dos réus, eles nunca receberam

nenhuma intimação. Ao longo do processo, os requerentes desistiram da

demanda em relação a Lídia Marina da Silva Santos, Euclides José da Silva, Luiz

Valdir da Silva e Maria de Lourdes da Silva, em uma certidão anterior a 10/8/1999

e anexada aos autos à folha 55v. Além desses, Lorivaldino da Silva, Zeneide da

Silva, Euclides Guaraci da Silva não chegaram a ser citados, e Lígia Maria da

Silva foi citada mas ao longo do processo desaparecem as referências a ela.

Evidencia-se com isso, que os autores não tinham informações precisas quanto à

localização de seus lotes e de quem se tratava os habitantes que pretendiam

remover.

Durante o processo os autores propõem instalar os removidos em um local

cedido em Belém Velho e em outro nas vizinhanças do cemitério Jardim da Paz.

São feitas tentativas de despejo simultâneas a ofertas de dinheiro, num evidente

reconhecimento do direito adquirido pelos moradores do local. Os Silva apelam

alegando que nas tentativas de despejo estava se buscando remover todos os

habitantes, inclusive os que não foram citados, informando também que moviam

uma ação de usucapião. Em 7 de novembro de 2002, a juíza Elaine Harzheim

Macedo decidiu pela permanência da posse, ainda que provisória, de suas

frações, daqueles que atualmente ocupam o território. O processo continua em

andamento.

Processo nº:0107150600

Autor: Lorivaldino da Silva, Lígia Maria da Silva, Angela Maria da Silva,

Zuleica Briolandi da Silva, Jair da Silva, Euclides Guaraci da Silva, Ana

Cristina da Silva, João Carlos Muraro Barbosa, Lígia Letícia de Oliver, Alceu

Rosa da Silva.

Objeto da Ação: Usucapião

Área Pretendida: 4. 744,37 m2

25/06/2001

Ação promovida pela maior parte dos atuais moradores do território em

conjunto com Alceu Rosa da Silva, pessoa que lhes foi apresentada durante o

período de negociação de sua remoção como dono de uma cooperativa de

imóveis. Foi solicitado o usucapião especial coletivo. Na petição inicial, os

requerentes, inclusive Alceu Rosa da Silva, colocavam-se como descendentes de

um tronco familiar em comum. Isso evidencia a má-fé deste último, já que não

pertencia à “Família Silva”. Diversos comportamentos deste indivíduo,

considerados reprováveis pela comunidade, levaram a que ela perdesse a

confiança nele. Na petição inicial, era argumentado o seguinte:

os requerentes mantêm plantações de verduras, legumes e

árvores dos mais variados tipos de frutas, assim como animais

domésticos de pequeno porte. Com o suor do seu labor, os

requerentes construiram casas sobre o terreno antes descrito,

acrescentando benfeitorias ao imóvel.

O processo encontra-se em momento de convocação das partes envolvidas para

que as mesmas sejam ouvidas e possam argumentar e incluir documentos.

Processos nºs: 109290958 e 108420184

Autor: Gelson Marchi de Carvalho, Maria Lúcia Rossetti, Alexandre Correa

Torres, Beatriz Helena Colletto Torres.

Objeto da Ação: Ação Reivindicatória com pedido de Tutela Antecipada e

Interdito Proibitório

05/11/2001

Autores apresentam os registros dos imóveis e alegam temer a invasão

destes por “inúmeros posseiros” que encontravam-se no terreno ao lado sob risco

de remoção. Procuravam demonstrar que a posse da “Família Silva” era indevida.

Simultaneamente, os réus apelam, argumentando que buscavam regularizar a

situação através de usucapião coletivo. O processo encontra-se em andamento

promovendo citações e aguardando as partes.

Histórico da cadeia dominial:

De acordo com o representante legal de uma das partes interessadas no

Inquérito Civil Público n. 11/2002 – Quilombo Urbano – Porto Alegre – Família

Silva, as terras em discussão seriam originárias da matrícula número 907 do

Registro Torrens2. Esse documento, anexado ao Inquérito3, demonstra a situação

da região em fins do século XIX.

“Este imóvel é constituído por dois terrenos contíguos, Estrada do

Meio [atual Carlos Gomes], com um pequeno prédio rural; o

prédio e de construção má, não é forrado nem assoalhado, tendo

seis compartimentos internos; está edificado a 50m00 da

Estrada, com porta e duas janelas a frente, coberto de telhas.

Dimensões: frente 6m70, fundos 7m80. Acha-se em mau estado

de conservação; o terreno é dobrado e todo cercado de valos e

maricas, exceto nas partes que limitam-se com Orlando Coelho e

Marcos Fontoura, com estes existe unicamente um valo, não

existem matos nem roças, e as terras são compostas de

pedregulho e barro vermelho.”4

Tendo em vista que o imóvel em questão, de 276 m2, “limitava-se pela

frente” com a atual Av. Carlos Gomes, podemos afirmar que ele não coincidia com

o território reivindicado pela comunidade, situado a várias quadras daquele

logradouro. Não há, portanto, ao menos de forma evidente, nenhuma correlação

direta entre as duas áreas, quiçá a sobreposição alegada pelo representante legal

de Alexandre Corrêa Torres, Beatriz Helena Colletto Torres, Gelson Marchi de

Carvalho e Maria Lúcia Rossetti. Acreditamos que o uso de tal informação tem o

2 Instituído no Brasil em 1890, o Registro Torrens se manteve nos códigos de 1939 e 1973. Instituição de

pouco uso, “apenas imóveis rurais” eram “registráveis no Sistema Torrens”. CENEVIVA, Walter. Lei dos

registros públicos comentada. São Paulo: Saraiva, 1991. Os terrenos da região em questão seguiram sendo

inscritos no Torrens até fins dos anos de 1950, o que é um demonstrativo de que até aquela ocasião os

arredores da Carlos Gomes eram pensados enquanto área rural. 3 Uma das partes contrárias à “Família Silva” emitiu a seguinte opinião, em documento anexado ao InquéritoCivil Público: “Deve ser salientado inicialmente que parte da gleba objeto, está devidamente matrícula doSistema Torrens, sob n. 907, junto ao Ofício Imobiliário da 1a Zona de Porto Alegre, DESDE 11 DEDEZEMBRO DE 1894” Inquérito Civil Público n. 11/2002 – Quilombo Urbano – Porto Alegre – FamíliaSilva f. 465-466; v. 3 (anexado em 28 de janeiro de 2004)4 Citação extraída do registro do sistema Torrens n 907.

intuito de confundir o andamento da demanda e de desconstituir a definição de

quilombo, já que, a existência de registros de propriedade em período

imediatamente posterior a abolição invalidaria a existência de tal forma de

organização social naquele local5. Como não compartilhamos das mesmas

definições por ele empregadas, não tomamos essa informação como

contraproducente das hipóteses que nortearam nosso trabalho de pesquisa.

A citação referida evidencia a situação de abandono do imóvel em questão,

embora se localizasse próximo à Estrada do Meio. O que dizer, então, de terras

que se encontravam mais distantes de tal via? Cabe ressaltar que os participantes

desta venda – Maria Antônia da Costa e Maria Felisberta da Silva Costa

(transmitentes) e José Francisco da Silva Costa (adquirente) – residiam em

Gravataí.

Em nossa pesquisa cartorial, encontramos o registro Torrens número 5929,

de certidão aqui anexada, no qual Marcellino Costa, sua mulher e outros,

venderam terreno de 15700 m2 para Francisco Limongi, na data de 3 de fevereiro

de 1914. Os limites da área negociada eram imprecisos. Ao norte, fazia divisa

com terrenos de Adolpho Silva e Companhia Predial. Este Adolpho aparece como

lindeiro no registro anteriormente analisado. Como já se demonstrou, era

impossível que aquele se referisse às terras da comunidade. No entanto, em

ambos documentos aparecem propriedades de Adolpho Silva como limite norte.

5 O representante legal de José Antonio Mazza Leite e Emilio Rothfuchs Neto, partes interessadas nademanda pertinente ao Inquérito Civil Público 11/2002 – Quilombo Urbano – Porto Alegre – Família Silva,expressa sua percepção do termo quilombo: “(...) é certo que jamais os historiadores rio-grandensesnoticiaram a existência de quilombos em Porto Alegre. Reduto de negros não perfaz um quilombo. Istoporque os quilombos abrigavam negros fugitivos em um lugar cercado e fortificado. (...) Mas em PortoAlegre, jamais, salvo engano houve o apontamento da existência de quilombos”. f. 88-89, v. 1 (anexado em23 de janeiro de 2003). Ao longo do texto, vem sendo discutida a pertinência de tais afirmações.

Ou este proprietário tinha muitas terras na região, em diferentes lugares, ou há

equívocos quanto à informação dessa divisa.

Em relação aos demais limites são referidas ruas projetadas, ou seja, que

existiam apenas no planejamento urbano municipal. Há que observar que a

pavimentação da rua Portulaca (limite sul) só foi executada no ano de 1997; da

Ipê, atual João Caetano (limite leste), no trecho em questão não foi realizada; da

Guarani, atual Luiz Manuel Gonzaga, no ano de 19786. Até estas ocasiões,

portanto, quaisquer referências às mesmas enquanto limites eram meramente

ilustrativas e indicativas, carecendo da precisão necessária ao Registro Torrens7.

Em 24 de outubro de 1924, Francisco Limongi e sua esposa venderam a

Manuel Gonçalves Poças e Romeu Gaudêncio de Almeida um terreno de 9800m2,

que se definem pelos mesmos limites referentes à área maior de 15700m2 citada

anteriormente. É estranho que um território que equivale a 1,6 vezes o outro tenha

como divisas as mesmas indicações. Permanecem as imprecisões anteriormente

destacadas em relação à área maior.

Este terreno fazia parte de um todo maior que desde então passou a ser

chamado de “Chácara Limongi”, e que compreendia mais 9 quadras. Esta

propriedade se estendia, em direção à Estrada do Meio até a projetada rua

Açucena, atual Ildefonso Simões Lopes. Chegava próxima à atual Carlos Gomes,

sem contudo nunca fazer frente a ela. As dez quadras da Chácara Limongi

6 Informações obtidas junto à Secretaria de Planejamento Municipal.7Eram os seguintes os princípios que nortearam a criação do Registro Torrens em 1890; 1) “instituição de

processo expurgativo, destinado a precisar e delimitar a propriedade, a “fixar de modo irrevogável, paracom todos, os direitos do proprietário, autenticando-os em um título público”; 2) criação de um sistemaadequado a patentear exatamente a condição jurídica do solo; 3) mobilização da propriedade territorial, demodo a assegurar sua pronta transmissão e a constituição fácil de hipotecas e sua cessão por via deendosso.”CENEVIVA, Op. cit. Grifos nossos. Percebe-se, portanto, que um dos fundamentos da inscrição noRegistro Torrens, a delimitação precisa da propriedade, encontrava-se comprometido no caso em questão.

encontram-se registradas no Sistema Torrens da Primeira Zona sob os números

de 8172 até 8181. A matrícula 8172, referente à quadra B é a que mais nos

interessa, por ser a que mais se aproxima do território dos Silva e que fundamenta

a pretensão de partes interessadas naquele terreno.

Durante o período em que Manoel Gonçalves Poças e Romeu Gaudêncio

de Almeida foram proprietários do terreno registrado no Sistema Torrens sob o

número 8.172 (anexado a este capítulo), dimensionado em 9.800 m2, foi

freqüentemente hipotecado para garantia de dívidas. Citamos como exemplos a

hipoteca de 30 de agosto de 1926 ao Banco Nacional do Comércio, para garantir

um crédito de 63:000$000 contraído por Romeu Gaudêncio de Almeida e a

hipoteca ao Banco Popular do Rio Grande do Sul para garantir um crédito no valor

de 160:000$000. A parte da propriedade que cabia a Romeu Gaudêncio de

Almeida foi adjudicada pelo Banco Regional do Rio Grande do Sul em execução

de hipoteca firmada por este em 15 de setembro de 1936.

Outra constante foram as transações de compra e venda. Manuel G. Poças

e sua mulher venderam, através de escritura pública, sua parte para Arnaldo da

Cunha Dexheimer em 06 de dezembro de 1928. Em 22 de maio de 1934 tal

operação foi cancelada em virtude de processo judicial movido pelo próprio

Manuel. Ao advogado que o representou nessa questão foi prometido, a título de

pagamento, 55% da área em litígio. No entanto, em julho de 1944, Manuel

Gonçalves Poças, alegando ter sido enganado por seu representante legal,

ingressou em juízo com ação ordinária contra o Dr. Antonio Portas e outros

envolvidos a quem foram prometidas parcelas da área referida.

Tais transações tinham como objetivo dar garantias ou mesmo pagar

dívidas que Poças não conseguia saldar. Em processo concluído em 1961,

Arnaldo Dexheimer o acusava de enriquecimento ilícito. Ele declarou que em

virtude de contínuas retiradas de numerário da empresa Poças e Dexheimer ( de

propriedade do autor da ação e do irmão do réu), Manuel penhorara suas

propriedades. O mesmo relato demonstra que essas dívidas foram contraídas

para atender às despesas da lavoura de arroz que Poças possuía em Belém

Novo. A safra da granja de arroz já se encontrava comprometida como garantia

de outras dívidas do réu, juntamente com o terreno no Mont’Serrat. Em suma,

tratava-se de endividar-se para quitar outra dívida, e em ambas dar os mesmos

bens em garantia. Antonio Poças Sobrinho, seu irmão e sócio de Dexheimer,

depondo no referido processo, declarou que Manuel nunca pôde desfrutar dos

terrenos objeto da disputa, e que nos últimos anos de sua vida vivia às custas de

suas filhas8.

Aqueles a quem o advogado Antonio Portas transferiu a cessão de

promessa de dação em pagamento, Euclides Lanza e Feliz Brzzinski transferiram,

por sua vez, à Empresa Territorial Suburbana, que também recebera o quinhão

referente a Romeu Gaudêncio de Almeida. A empresa Territorial Suburbana foi

sucedida pela companhia Schilling e Kuss, que entrou em acordo com a viúva,

Zulmira Barcellos da Rocha Poças, e as filhas de Manuel Gonçalves Poças, Maria

da Rocha Poças e Zuraida da Rocha Poças9, ao fim de alongadas contendas

8 APERGS, Porto Alegre, ação ordinária, processo s/n, maço 111, ano 1961, partes : Arnaldo da CunhaDexheimer e sua mulher , Manuel Gonçalves Poças e sua mulher, 2 Cartório do Cível e Comércio.9 Manuel Gonçalves Poças faleceu em 09 de agosto de 1950.

judiciais10. Cabia a cada parte (Poças e empresa Schilling e Kuss) 50% de cada

uma das quadras da chácara Limongi, mas em processo de negociação houve

permuta de lotes entre eles. De um total da Chácara, então estipulado em

118.202m2, ficaram a totalidade da quadra A, e maior parte da quadra C para a

Schilling e Kuss; enquanto para às Poças coube o conjunto da quadra B (território

da “Família Silva”) e área maior das glebas E, G, J e Q. A área denominada

“reservada” foi por elas repartida11.

Evidencia-se que a referida propriedade nunca teve para seus donos outro

valor e utilidade que não o de moeda, de mercadoria objetivando a garantia de

transações pecuniárias. Jamais foi utilizada como meio de produção ou a ela foi

atribuído valor simbólico. Ao contrário do que significava e ainda significa para os

integrantes da “Família Silva”, que apesar das constantes ofertas nunca aceitaram

comercializar o seu direito sobre o território que ocupam12.

As contendas judiciais supracitadas não se referiam às populações que

habitavam o local. Entretanto, no processo movido pelas Poças contra a empresa

Schilling e Kuss, no ano de 1955, encontramos menção de agregados que

residiam no local, sob o consentimento das autoras, de nomes Antônio Espindola

e Olímpio Serra. Também vivia na área Onofre Antônio do Nascimento, com a

10 Informações extraídas da Certidão do Registro Torrens n. 8.172 e dos processos que encontram-se emAPERGS, Porto Alegre, Ação Ordinária, partes: Zulmira Barcellos da Rocha Poças, Schilling Kuss e CiaLtda e outros, auto 7078, maço 180, ano 1955, 2. Cartório do Cível e Comércio ; Ação Ordinária, partes:Arnaldo da Cunha Dexheimer e sua mulher e Manuel Gonçalves Poças e sua mulher, autos s/n, maço 111,ano 1961, 2 Cartório do Cível e Comércio. 11 APERGS, Porto Alegre, Ação Ordinária, partes: Zulmira Barcellos da Rocha Poças, Schilling Kuss e CiaLtda e outros, auto 7078, maço 180, ano 1955, 2. Cartório do Cível e Comércio; p. 4812 Salvo os casos em que a boa fé do grupo foi manejada por pessoas inescrupulosas que tentaram obtervantagens de uma situação de fragilidade econômica e inabilidade em lidar com o código jurídico dasociedade envolvente. Tal questão será abordada mais detalhadamente em ponto específico posterior.

permissão de Arnaldo Dexheimer13.Desse modo, é patente que as autoras sabiam

que residiam nessas áreas diversas pessoas por um longo período de tempo.

Apenas em 1958 se concluiu o inventário da herança de Manuel Gonçalves

Poças. A demora para a realização da partilha pode ser interpretada, por um lado,

pela dificuldade para estabelecer o que lhe pertencia, em meio a tantos

endividamentos, ações judiciais e a própria imprecisão dos limites territoriais. Por

outro lado, também estavam em jogo os já citados embates e negociações com a

Schilling, Kuss e Companhia. Em 30 de outubro daquele ano, no dia

imediatamente posterior à divisão com o condomínio de Schilling e Kuss,

finalmente se efetuou a partilha dos terrenos.

Há que se fazer algumas observações. Ao registrarem no Torrens (Primeira

Zona de Imóveis, número 23496) a quadra B da Chácara Limongi, as Poças

descreveram o terreno de uma forma diferente do que no Torrens de número

8172. No registro original, datado de 1924, simplesmente se afirmava que o

terreno tinha 9800 m2, que seus limites eram ruas projetadas: ao sul, a Portulaco,

a Leste, a Ipê e a Oeste, a Guarani. O limite norte, extremamente impreciso, era a

Companhia Predial e Agrícola. 34 anos após, o terreno era caracterizado de forma

diferenciada, atribuindo medidas a cada um daqueles limites. É estranho observar

que a localização dos pontos cardeais muda. O limite oeste, pelo lado da

Portulaco (no registro original, Sul) era definido como 100 metros. Ora, para

perfazer 9.800m2, obedecendo à lógica das demais quadras que compunham a

Chácara Limongi (com limites quadrangulares pelo norte, sul, leste e oeste), seria

13 Dados extraídos de APERGS, Porto Alegre, Ação Ordinária, partes: Zulmira Barcellos da Rocha Poças,Schilling Kuss e Cia Ltda e outros, auto 7078, maço 180, ano 1955, 2. Cartório do Cível e Comércio, página47.

evidente esperar dos limites pelo lado da Ipê e da Guarani 98 metros de

comprimento. No entanto, de uma forma inusitada, o imóvel possuía limites de

150 metros pela Ipê e 55 metros pela Guarani14, assumindo um formato poligonal

totalmente diverso do que seria o esperado, não presente no registro original, de

1924, mas atribuído pela divisão de 1958.

É importante notar, como se verá em mapa em anexo, que este avanço

para o norte pelo lado da rua Ipê sobrepõe-se à área da “Família Silva”. Por outro

turno, os terrenos contornados através desta surpreendente manobra seriam os

mais tarde adquiridos (1964) ou usucapidos (1981) por Hermínio Zamprogna15.

Este personagem é lembrado por João Brito, filho de criação de Naura e Alípio,

como um industrial que se aproximara da comunidade e com seus integrantes

estabelecera relações de amizade. Segundo o seu relato, quando Hermínio

conquistou a confiança de Alípio, declarou que era proprietário de uma área

localizada nos fundos do território que o grupo hoje ocupa. Sem apresentar

nenhum documento, cercou e vendeu a referida propriedade16.

De acordo com o relato de Jorge Bertoíno Gomes, neste período esta era

uma prática corrente. Ele conheceu os Silva justamente por ter vindo à região,

que era um “descampado com poucas casas”, com o objetivo de tomar posse de

dois terrenos em rua vizinha17.

14 O limite pela Ipê, originalmente constante como Leste, aqui aparece como Sul; o limite pela Guarani,primeiramente constante como oeste, aqui transforma-se em Norte. 15 Matrículas números 19064 e 37912 da Registro de Imóveis da Quarta Zona. Necessário observar que namatrícula não consta o nome da pessoa a quem Zamprogna comprou; e que o mesmo está dentro dos 98metros estimados para a quadra B da Chácara Limongi. 16 Entrevista com João Brito Soares no dia 5 de junho de 200417 Depoimento de Jorge Bertoíno Gomes no dia 21 de maio de 2004

Uma vez tendo sido definida a divisão das quadras da Chácara Limongi

com a Schilling e Kuss, e atribuído um polígono irregular à quadra B, esta, como

as demais, foi subdividida em lotes menores. No inventário de Zulmira Barcellos

da Rocha Poças, datado de 16 de fevereiro de 1979, diversos lotes encontravam-

se prometidos para vendas, dentre eles “um terreno de forma irregular, na quadra

formada pelas ruas João Caetano, Portolagos, Guarani e terras da Sociedade

Territorial Vila Luciana (...)” para Eloy Julius Garcia18.

João Brito recorda que data da década de 1960 o loteamento de áreas

vizinhas19, quais sejam, o da Chácara das Pedras, em direção ao leste, e das Três

Figueiras, rumo sudeste (no entorno do Colégio Farroupilha). Ambos loteamentos

foram realizados pela empressa Schilling, Kuss e Cia. Localizamos junto ao

Arquivo Histórico de Porto Alegre os mapas destes loteamentos.

18 Inventário de Zulmira Barcellos da Rocha Poças. 16 de fevereiro de 1979. Anexado ao Inquérito CivilPúblico n. 11/2002 – Quilombo Urbano – Porto Alegre – Família Silva f. 371-38219Entrevista com João Brito Soares no dia 5 de junho de 2004. Muitas das famílias que viviam no entornoforam saídas – indenizadas, em reconhecimento à legitimidade de sua presença ali – enquanto os Silvapermaneceram. Data destes anos de transformação também o crescimento das vilas. Era a urbanizaçãochegando a uma área que até então podia ser entendida como rural: “era tudo fazendas, tambos e chácaras. Anossa era uma chácara”. Então “Deixou de ser aquelas famílias, as chácaras. Tudo começou a ser Vilamesmo, aí parou-se.” A empresa que loteou os territórios ali próximos, a Schilling, Kuss e Cia. tinha amplaexperiência em empreendimentos dessa natureza, tendo anteriormente loteado os bairros Petrópolis e

Higienópolis. Ver QUEVEDO, Maria Augusta e RIOS, Renata Lerina Ferreira. Memória dos Bairros –

Petrópolis. Porto Alegre: Unidade Editorial, 2002. p. 22

É importante destacar que o loteamento Chácara Limongi é distinto do Três

Figueiras, embora faça parte do bairro que adquiriu este nome. Ainda no ano de

1985 o projeto referente à Chácara Limongi encontrava-se sob júdice20.

Em depoimento para o Inquérito Civil Público n. 11/2002 – Quilombo

Urbano – Porto Alegre – Família Silva, Eloy Julius Garcia declarou que “por volta

de 1960 teve notícia de oferta de lotes no bairro Três Figueiras, em Porto Alegre”.

Na ocasião em que adquiriu o imóvel não havia ali qualquer traçado de

arruamento. Tal fato foi apontado como impecilho para identificação da área, e

para o seu posterior registro. Dois anos após a compra, visitou a área e encontrou

pessoas que ali residiam e uma plantação que “indicava uma presença alongada”

naquele local. Posteriormente, Garcia teve notícia da ação de usucapião

requerida por Naura. “Procedeu a venda do mesmo, já que não iria mesmo

construir ali, pois havia uma família que não saía de lá de jeito nenhum”21.

O relato de Garcia comprova o conhecimento e reconhecimento de uma

presença consolidada em 1962. Demonstra também a imprecisão com que estes

terrenos eram pensados e comercializados. Achamos bastante curioso o fato de

hoje se atribuir àqueles registros uma exatidão que não possuíam, com o objetivo

de esbulhar uma família negra e pobre.

As irmãs Poças desfizeram-se de seus terrenos na região e retiraram-se

para o Rio de Janeiro. Conforme referido anteriormente,este fato encontra

respaldo em histórias sobre a região contadas por moradores da Vila Beco do

20Informação obtida a partir do processo movido pelos moradores do Beco do Resvalo, no ano de 1985,contra a sua expulsão dali; anexado ao Inquérito Civil Público n. 11/2002 – Quilombo Urbano – PortoAlegre – Família Silva. f. 628-629.21 Inquérito Civil Público n. 11/2002 – Quilombo Urbano – Porto Alegre – Família Silva –Termo dedepoimento de Eloy Julius Garcia f. 621-622

Resvalo. Os integrantes da família Silva não têm as irmãs Poças em suas

lembranças. O que está muito claro para eles é que aquelas terras lhes

pertencem desde há muito.

Outros lotes, pretensamente integrantes da Chácara Limongi, se

sobrepõem ao território da comunidade. O lote 2, prometido pelas Poças para

venda a Eloy Julius Garcia em 1972, foi por este adquirido em 1974. As

dimensões nos permitem deduzir englobar também o lote 1. Conforme o

depoimento supracitado, ele o revendeu por ter percebido não poder gozá-lo, haja

visto a presença de outras pessoas que o ocupavam há muito tempo. Muito

embora o tenha adquirido nos anos 1970, o imóvel só foi devidamente matriculado

em 1990. Em 6 de setembro de 1995, foi firmado um compromisso de compra e

venda entre Garcia e Gelson Marchi de Carvalho, Maria Lúcia Rosa Rossetti,

Alexandre Corrêa Torres e Beatriz Helena Coletto Torres.

Da mesma forma, em 1971 as irmãs Poças venderam o que seria o lote 3

da quadra B para Egon Deutschendorf e Joiceline Deutschendorf, que o

repassaram cinco anos mais tarde para José Antônio Mazza Leite. Em 8 de maio

de 1972, as Poças venderam a João Oly Titton os lotes 4 e 5 da quadra B, para

quem se encontravam prometidos em inventário; no mesmo dia foram passados

adiante por um valor dez vezes superior, para Emílio Rothfuchs Neto. Chama a

atenção o fato de que, aqueles que tiveram oportunidade de passar adiante o

terreno adquirido às Poças assim o fizeram, provavelmente pelo mesmo motivo

explicitado por Eloy Julius Garcia, isto é, pelo reconhecimento da ocupação do

território.

Um processo judicial objetivando a retificação do registro realizado por

Rothfuchs Neto, julgado no ano de 1984, nos fornece pistas para compreender

melhor como foram sendo construídos os títulos de propriedade em questão. Se

entre 1924 e 1958 as delimitações do terreno sofreram uma metamorfose, o

mesmo se dá na ocasião em questão. Como vimos, naquela ocasião o limite, pela

João Caetano (então Ipê), era dimensionado em 150 metros, e pela Luiz Manoel

Gonzaga (então Guarani), em 55 metros. Os limites em relação ao leste (ou norte)

eram definidos em 50m e 51m. Contudo, no registro original não se explicitava a

dimensão do segmento a ligar as medidas de 50 e de 51 metros entre si. Após

tentativas de definir esta medida em cartório e perante a justiça, havendo

entendimentos divergentes de que se trataria de 77 ou 80 metros, a sentença

final entendeu pela segunda opção22.

À decisão judicial foram juntados esclarecedores mapas (reproduzidos em

anexo) que evidenciam o exótico formato assumido pelo terreno, longo em

direção à atual avenida Nilo Peçanha, pelo lado da João Caetano, e curto pelo

lado da Luiz Manuel Gonzaga. O território da comunidade por nós analisada foi

muito prejudicado por esta redefinição. Cumpre lembrar que absolutamente nada

no registro Torrens 8.172, de que todas essas transações são originárias, permite

imaginar tão peculiar delimitação espacial. Queremos demonstrar através desse

exemplo que a configuração atribuída a este terreno, e que sustenta a pretensão

de alguns indivíduos à propriedade daquelas terras, é bastante recente,

certamente muito posterior ao estabelecimento da “Família Silva” naquela região.

22 Processo 01178806517, Vara de Registros Públicos da Comarca de Porto Alegre, movido em 1984 porEmílio Rothfuchs Neto. Anexado ao Inquérito Civil Público n. 11/2002 – Quilombo Urbano – Porto Alegre– Família Silva. fs. 200-218

Reforçando esta idéia, lembramos que o mapa que redefiniu limites para os lotes

em questão, na decisão judicial aqui discutida, revela algumas inconsistências. A

área total por ele abarcada é de 9.875 m2, e não de 9.800 m2. Além disso,

certamente há algum erro, já que, como Pitágoras demonstrou, é

matematicamente impossível que um triângulo retângulo de catetos 50 e 15 tenha

uma hipotenusa de 5123. Em nosso entendimento, essas incoerências

demonstram que os pretensos proprietários tinham parcos conhecimentos acerca

dos terrenos que afirmavam ser seus.

De qualquer forma, também podemos questionar até que ponto os mesmos

realmente tiveram interesse em manter essa propriedade e legitimar algum

domínio sobre ela, na medida em que nunca tiveram o hábito de pagar os

impostos municipais referentes. Quando alguém tem sua propriedade posta em

dúvida, ocupada por terceiros, questionada através de usucapião, como alegam

os pretensos proprietários, seria lógico esperar que se preocupassem em manter

os impostos em dia, a fim de configurar o domínio alegado. Esse interesse passou

longe dos indivíduos em questão, e é por essa razão que hoje Mazza Leite, Eloy

Julius Garcia e Marchi de Carvalho24 acumulam hoje dívidas consideráveis diante

da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Sofrem processos de execução fiscal e

correm o risco de perder tais terrenos, conforme documentação anexa.

23Referimo-nos à extremidade do terreno, que assume uma feição triangular, distinta do restante do terreno,de feições retangulares.24 Emílio Rothfuchs Neto e Alexandre Correa Torres sequer possuem cadastro de imóvel naquela região,segundo informações da Secretaria Municipal da Fazenda.