capítulo 10 - variação linguistica - perspectiva dialectológica

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Introduo lingustica geral e portuguesa. 2 ed. Lisboa: Caminho, cop. 1996. cap. 10, p. 477-484. Notas prvias: Produzido pelos Servios de Biblioteca, Informao Documental e Museologia da Universidade de Aveiro. Organizao da paginao: topo da pgina. [477] Captulo 10 [479]

Variao lingustica: perspectiva dialectolgicaManuela Barros Ferreira, Ernestina Carrilho, Maria Lobo, Joo Saramago e Lusa Segura da Cruz H diferenas muito grandes. Uma vez, eu 'tava a falar, em Portalegre. [...] E depois eu perguntei assim: amigo! 'C fazia favor, dizia-me aqui onde que era o caminho...p'ra ir... [...] ...dizia-me o caminho aqui p'ro...p'ra Torre de Palma [...] Dizia-me assim uma pessoa [...]: Olhe, c no se engana. Voc vai por esta carretra fora... uma carretra uma estrada, l [...]. 'C acol adiante mete p'la linda abaixo uma linda uma estrema realmente um nome bem empregado: uma linda uma estrema; uma estrema bonito ...V pl' aquela linda fora... l mais adiante encontra um arrebenta-diabos... uma encruzilhada... encontra um arrebentadiabos... voc volta sua esquerda, t uma b'reda mal seguida, vai l ter mmo ao casal. Mas depois mais tarde que a gente foi descobrir isto: o arrebentadiabos era um' encruzilhada [...] e uma b'reda mal seguida era um carrro... um caminho... um carrrozito que ia por ali fora. T a ver? Como isto h diferenas de nomes de terras p'ra terras?! (Inqurito em Montalvo, Santarm Gravaes para o ALEPG, S6, cass. 4, Id. b, m. 1231)

A variao modo de a lngua ser vivaA lngua que usamos est sujeita a variao. Qualquer pessoa se pode aperceber disso. No caso do trecho acima transcrito, trata-se de variao regional, noutros, ser histrica, social, ou situacional. Estando todas as lnguas vivas sujeitas a factores de mudana, a variao que deles decorre faz parte integrante da linguagem humana e pode ser estudada e descrita. Por sua vez, a variao, a hesitao entre diversas formas, ocorrida num dado momento, produz a longo termo mudana na lngua. No entanto, s se pode estudar a variao se a relacionarmos com algo que consideremos minimamente estvel e homogneo. [480]

A maior parte das teorias lingusticas que se desenvolveram no sculo XX fazem abstraco dos fenmenos de variao lingustica, por motivos tericos e metodolgicos, estudando as regularidades da lngua enquanto sistema. Mas, na realidade, a lngua vive atravs da diversidade. A lingustica estruturalista europeia (da escola de Eugenio Coseriu), utilizando o prefixo dia-, que significa ao longo de, atravs de, estabeleceu uma srie de compartimentos com o objectivo de delimitar os campos de estudo da variao: diacronia, diatopia, diastratia e diafasia. Fala-se em variao diacrnica (do grego dia+kronos, tempo) ou histrica, para designar as diversas manifestaes de uma lngua atravs dos tempos. evidente que as mudanas que ocorrem nunca so repentinas, no se do em saltos bruscos. H geralmente um perodo de transio, onde encontramos variao sincrnica entre duas ou mais formas concorrentes, acabando uma delas por prevalecer. A substituio de uma forma por outra progressiva e nem sempre sistemtica. Cabe Lingustica Histrica estudar este tipo de variao. Existem, naturalmente, vrios nveis em que a variao pode operar: fontico e fonolgico, morfolgico, sintctico, semntico e lexical. No excerto transcrito no incio deste captulo, observam-se vrios casos de variao lexical o uso de palavras diferentes por diferentes comunidades para designar os mesmos conceitos. Quando, como neste caso, a variao est relacionada com factores geogrficos diferentes usos da lngua em regies diferentes fala-se em variao diatpica (do grego topos, lugar) ou geolingustica ou ainda dialectal. Todos sabemos que a fala de um nortenho no igual de um alentejano, por exemplo. A fala utilizada em diferentes regies possui caractersticas prprias. A Dialectologia a disciplina que as procura descobrir e descrever, tentando identificar reas mais ou menos coesas, assim como determinar os factores que levaram sua formao. Sabemos, por outro lado, que o homem vive integrado numa sociedade, a qual tem a sua hierarquia, a sua organizao prpria, os seus grupos. Cada um destes grupos sociais (etrios, socioprofissionais, etc....) possui cdigos de comportamento que o diferenciam dos demais e permitem, dentro do grupo, a identificao mtua. O modo de falar faz parte desse conjunto de cdigos. A este tipo de variao lingustica, relacionada com factores sociais, costuma chamar-se variao diastrtica (do grego stratos, camada, nvel) ou variao social. Cabe Sociolingustica estudar este tipo de variao, tentando estabelecer correlaes entre variveis sociais e fenmenos lingusticos. Foi a Sociolingustica que permitiu observar que a heterogeneidade faz parte integrante da economia lingustica da comunidade e necessria para satisfazer as exigncias lingusticas da vida quotidiana (Labov, 1982) e que a estratificao do uso da lngua na sociedade no catica, obedecendo antes a determinadas regularidades, por vezes extremamente subtis. [481] Alguns linguistas chamam sociolecto a uma variedade lingustica que partilhada por um grupo social, permitindo demarc-lo em relao a outros. Se a maior parte dessas variedades , tal como toda a lngua ou dialecto materno, inconscientemente adquirida, transmitindo-se no uso quotidiano e natural da

palavra, existem no entanto sociolectos que resultam do desejo de diferenciao de um grupo em relao sua comunidade lingustica. o caso das grias, que se podem definir como cdigos forjados por determinados grupos com o objectivo de se tornarem completamente ininteligveis para os no iniciados. Geralmente, basta introduzir modificaes no lxico ou na configurao ou ordem das slabas para que os enunciados se tornem incompreensveis. Por exemplo, a seguinte frase da gria dos antigos vendedores ambulantes de Castanheira de Pera, o lante: Aroga os tres leios que astram aquimes jordam enroba significa Agora os trs homens que esto aqui vo embora (Barros Ferreira, 1985). Uma gria distingue-se de uma linguagem tcnica ou tecnolecto pelo facto de afectar todo o discurso, enquanto a linguagem tcnica, sendo desprovida de intenes de hermetismo, se limita a introduzir os termos de maior rigor que lhe so estritamente necessrios. Existe ainda um aspecto de variao lingustica que tem merecido estudo. Consoante a situao mais ou menos formal em que se encontra ou o tipo de situao discursiva (oralidade, escrita,...), cada falante pode usar diversos estilos ou registos lingusticos. Numa entrevista com o director de uma empresa, para obter emprego, usar certamente um nvel de lngua diferente daquele que usa para falar com os amigos, quando vo juntos assistir a um jogo de futebol. A variao que est relacionada com estes factores pragmticos e discursivos e que implica o conhecimento por parte do falante de um cdigo socialmente estabelecido para cada situao, d--se o nome de variao diafsica (do grego phasis, fala, discurso). Cada ser humano, por outro lado, no conjunto de todos os seus actos de fala, tem hbitos discursivos prprios, usa preferencialmente determinadas construes gramaticais, determinadas palavras que, de alguma forma, o individualizam. Cada falante tem uma maneira prpria de usar a lngua o seu idiolecto. A linguagem humana, simultaneamente una e mltipla, decompe-se assim numa rede de variedades. [482] Apenas algumas delas ganham o estatuto social de lngua. O que se entende por lngua, afinal? Houve j muitas tentativas de definir esta noo. As definies dadas pelos diferentes linguistas muitas vezes no coincidem, j que, por um lado, as fronteiras entre estas realidades esto longe de ser estanques e, por outro, o termo lngua usado com vrios sentidos, que aqui convm distinguir. Lngua, no uso mais comum, uma noo poltico-institucional. Corresponde a um sistema lingustico abstracto que, por razes polticas, econmicas e sociais, adquiriu independncia tanto funcional como psicolgica para os seus falantes. Do conta do funcionamento desse sistema instrumentos prprios, tais como gramticas, dicionrios, pronturios,... Assim, deste ponto de vista, fala-se do Chins como lngua, unificado em todo o territrio poltico da China atravs de um sistema ideogrfico de escrita comum, apesar de no existir identidade lingustica real. De facto, existem mltiplos sistemas lingusticos muito diferentes o Cantons, o

Mandarim... cujos falantes no se compreendem mutuamente, a no ser atravs do recurso escrita. Na mesma linha, referem-se tambm o Noruegus e o Dinamarqus como lnguas diferentes, apesar de partilharem um sistema lingustico praticamente idntico e de haver mtua inteligibilidade entre os falantes de cada uma das variedades. Esta autonomia lingustica advm do facto de a Noruega e a Dinamarca serem Estados independentes, com peso poltico, econmico e cultural prprios (e de os falantes terem assim adquirido a conscincia lingustica da individualidade da variedade que usam ou de quererem us-la como instrumento de poder). Numa segunda acepo, o termo lngua usado numa perspectiva histrica, e est relacionado com a noo de dialecto. Tambm aqui, nem sempre fcil estabelecer fronteiras entre estas duas realidades, porque, com o passar dos anos, aquilo que era um dialecto pode tornar-se de tal modo preponderante em relao aos dialectos seus vizinhos que passa a funcionar como lngua de referncia (o Romeno literrio em relao ao Istro-Romeno, por exemplo). Do mesmo modo, aquilo que era inicialmente uma s lngua, embora sempre com variaes de alguma ordem, pode, por razes histricas e geogrficas, por condies melhores ou piores de comunicao, fragmentar-se em variedades que passam a evoluir separadamente tornando-se por sua vez dialectos ou lnguas, conforme as circunstncias. Diferenas de valor estritamente lingustico entre lngua e dialecto no existem. Existem, sim, diferenas de estatuto: o dialecto sempre uma variedade de um determinado sistema lingustico reconhecido oficialmente como Lngua. Geralmente considera-se dialecto de uma lngua a variedade lingustica que caracteriza uma determinada zona. [483] Os dialectos tm pois um antecedente lingustico e um sistema comuns. Assim, hoje, o Portugus est vivo na sua variante europeia e na sua variante sulamericana, por exemplo, cada uma delas divisvel em variedades lingusticas menores, numericamente inferiores, que ocupam zonas geogrficas mais restritas. No entanto, todas elas partilham um conjunto de traos gramaticais que no difere substancialmente, embora o Portugus do Brasil tenda a seguir um rumo autnomo, divergente, na sua evoluo (ou como dialecto ou como lngua). Estas noes so, assim, sempre relativas. O grau de semelhana entre dois dialectos pode variar bastante, mas independentemente dessa maior ou menor semelhana continuamos a chamar-lhes, a todos, dialectos. Alguns dialectlogos distinguem entre variedades lingusticas mais distanciadas umas das outras ou da lngua padro a que chamam dialectos e variedades que apresentam menor grau de afastamento a que chamam falares. esta a posio adoptada por M. Paiva Bolo (Bolo e Silva, 1962), por exemplo. Na prtica da escola dialectolgica de Lisboa, iniciada por Lindley Cintra, o termo dialecto utilizado para variedades que definem uma zona, enquanto falar reservado a variedades que ocupam apenas uma localidade. Para esta escola, o falar , por conseguinte, sinnimo de locolecto. A realidade lingustica demonstra que no h geralmente fronteiras ntidas entre variedades faladas em pases vizinhos e muito menos entre

variedades faladas dentro do mesmo territrio poltico. Por isso, a delimitao entre os vrios dialectos ou grupos de dialectos uma operao bastante delicada. Observa-se normalmente uma diferenciao progressiva, uma zona de transio que partilha caractersticas dos dialectos seus vizinhos. Existe um contnuo dialectal que faz com que a diviso entre dialectos seja muitas vezes arbitrria, dependendo dos traos lingusticos que tivermos escolhido para essa classificao. Por esta razo, foi possvel terem sido propostas vrias classificaes dos dialectos portugueses, baseadas em diferentes traos lingusticos. Entre as variedades faladas num territrio, uma delas, por diversas razes, pode adquirir maior prestgio e impor-se como norma ou lngua padro. Os factores que determinam essa escolha so normalmente sociopolticos, histricos, comunicativos e at pedaggicos. Nada, de um ponto de vista estritamente lingustico, leva a que uma determinada variedade seja preferida como norma de uma lngua. S factores extralingusticos influem nessa escolha. A variedade proclamada padro funcionar como lngua oficial, de cultura, de ensino. Se uma lngua for falada em mais do que um pas, com peso poltico e cultural prprios, pode ter mais do que uma norma. [484] o caso do Ingls falado em Inglaterra, nos Estados Unidos da Amrica, na Austrlia, que possui vrias normas lingusticas. O mesmo acontece com o Portugus: no Portugus Europeu, as variedades faladas pelas camadas cultas das regies de Lisboa e de Coimbra funcionam como norma lingustica; no Portugus do Brasil, foram as variedades faladas no Rio de Janeiro e S. Paulo que se impuseram. Nas pginas que se seguem passamos a apresentar um conjunto de mtodos que permitem a demonstrao sistemtica da variao diatpica.