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555 A Relativização ou Desconsideração da Coisa Julgada CAPíTULO 10 A RELATIVIZAÇÃO OU DESCONSIDERAÇÃO DA COISA JULGADA SUMÁRIO • 1. A relativização ou desconsideração da coisa julgada; 2. A premis- sa principal da relativização da coisa julgada: não há valores jurídicos absolutos; 3. Uma possível solução para o problema da impugnação da coisa julgada fora das hipóteses já previstas na legislação infraconstitucional (revisão atípica da coisa jul- gada); 4. Continuação: as técnicas para a revisão atípica da coisa julgada, pela via da ação rescisória 1. A RELATIVIZAçãO OU DESCONSIDERAçãO DA COISA JUL- GADA Não se poderia falar em relativização ou em desconsideração da coisa julgada sem antes se enfrentar e se definir o que é a coisa julgada. Uma vez cumprida a exigência, é hora de iniciar os comentários sobre o assunto principal da obra – a relativização da coisa julgada. A coisa julgada pode ser vista, grosso modo, como um impedimento à discus- são de questões que envolvem pessoas, pelo fato de que se percorreu um caminho pré-estabelecido (devido processo legal) no qual discutiu-se de quem era a razão, chegando-se a um veredicto final. A coisa julgada é o mais emblemático instrumento processual de positivação jurídica do valor segurança 1 , que move a vida dos homens, não só no âmbito do direito, mas também nos demais aspectos sociais: ao investir seus ganhos, o homem pensa em segurança; ao adquirir uma casa para morar, pensa na segurança que ela proporciona; ao adquirir um carro blindado, idem; ao evitar certos lugares, é na segurança que se pensa. A segurança é um dos valores que mais rodeiam a vida das pessoas pelo fato de que ela representa, de certa forma, um meio de manutenção da vida. Pode-se dizer, inclusive, que decorre de um instinto de sobrevivência passado de geração a geração, desde tempos imemoriais. 1. “A coisa julgada, neste cenário, transformou-se na expressão máxima a consagrar os valores de certeza e segurança perseguidos no ideal do Estado de Direito”. THEODORO JÚNIOR, Humberto; FARIA, Juliana Cordeiro de. O tormentoso problema da inconstitucionalidade da sentença passada em julgado, In: Relativização da coisa julgada – enfoque crítico. 2 ed. 2 tir. Salvador: JusPodivm, 2008, p. 182.

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A Relativização ou Desconsideração da Coisa Julgada

Capítulo 10

A RelAtivizAção ou DesconsiDeRAção

DA coisA JulgADASUMÁRIO • 1. A relativização ou desconsideração da coisa julgada; 2. A premis-sa principal da relativização da coisa julgada: não há valores jurídicos absolutos; 3. Uma possível solução para o problema da impugnação da coisa julgada fora das hipóteses já previstas na legislação infraconstitucional (revisão atípica da coisa jul-gada); 4. Continuação: as técnicas para a revisão atípica da coisa julgada, pela via da ação rescisória

1. a relativização ou desConsideração da Coisa jul-gada

Não se poderia falar em relativização ou em desconsideração da coisa julgada sem antes se enfrentar e se definir o que é a coisa julgada. Uma vez cumprida a exigência, é hora de iniciar os comentários sobre o assunto principal da obra – a relativização da coisa julgada.

A coisa julgada pode ser vista, grosso modo, como um impedimento à discus-são de questões que envolvem pessoas, pelo fato de que se percorreu um caminho pré-estabelecido (devido processo legal) no qual discutiu-se de quem era a razão, chegando-se a um veredicto final.

A coisa julgada é o mais emblemático instrumento processual de positivação jurídica do valor segurança1, que move a vida dos homens, não só no âmbito do direito, mas também nos demais aspectos sociais: ao investir seus ganhos, o homem pensa em segurança; ao adquirir uma casa para morar, pensa na segurança que ela proporciona; ao adquirir um carro blindado, idem; ao evitar certos lugares, é na segurança que se pensa.

A segurança é um dos valores que mais rodeiam a vida das pessoas pelo fato de que ela representa, de certa forma, um meio de manutenção da vida. Pode-se dizer, inclusive, que decorre de um instinto de sobrevivência passado de geração a geração, desde tempos imemoriais.

1. “A coisa julgada, neste cenário, transformou-se na expressão máxima a consagrar os valores de certeza e segurança perseguidos no ideal do Estado de Direito”. THEODORO JÚNIOR, Humberto; FARIA, Juliana Cordeiro de. O tormentoso problema da inconstitucionalidade da sentença passada em julgado, In: Relativização da coisa julgada – enfoque crítico. 2 ed. 2 tir. Salvador: JusPodivm, 2008, p. 182.

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Se o ser humano é dominado por essa necessidade de segurança – e verdadei-ramente o é – nada mais lógico que os produtos que desenvolva por força de sua inteligência espelhem esse valor.

O direito, como produto humano que é, não foge dessa sina. E a coisa julgada é, no contexto do ordenamento jurídico, o mais fidedigno exemplo da força que a segurança tem na vida humana.

Por isso, é normal que sobre esse valor jurídico tenha se assentado o moderno modelo de Estado, a partir do qual se desenvolveu o que hoje se chama de Estado Democrático de Direito, que foi o Estado Liberal.

A ânsia por segurança – ínsita ao ser humano – foi catalisada e expressada ainda com mais força devido à conjuntura da época na qual surge o modelo liberal, em que se vivia sob os devaneios de monarcas ou imperadores que faziam leis ao seu bel prazer. Obter segurança era uma necessidade premente2.

Por isso foi ela, a segurança, que já é uma preocupação sempre presente do ser humano, supervalorizada a partir da construção do modelo de Estado Liberal, que se infiltrou na Europa, nos Estados Unidos e na América de um modo geral, dando condições ao desenvolvimento primário do modelo econômico que até hoje domi-na o mundo: o capitalismo.

Segurança: bastava ela para que a economia se desenvolvesse3. Previsibilidade era o que demandava a chamada burguesia, ou seja, a classe que expandia a produ-ção de bens e a circulação de riquezas no mundo. Para eles, o modelo ideal era o de intervenção mínima e de previsibilidade das instituições4. De certo modo, para a classe menos favorecida, também era um avanço, visto que tributos, penas, sanções de um modo geral tornaram-se algo estável e previamente estabelecido.

Mas em dado momento, o Estado Liberal, já consolidado e dotado de quali-dades e de defeitos, torna-se um modelo insuficiente de regulação social, visto que o impacto inicial de suas vantagens passou a ser obscurecido por suas desvantagens. O ser humano – a raça humana em geral – tende ao progresso e não à estagnação. Por isso, críticas começam a ser dirigidas ao modelo liberal, insuficiente por se preo-cupar, de modo principal, com os valores liberdade e segurança, agindo de modo mínimo no controle da sociedade.

Exigiu-se um modelo de maior intervenção, hábil a diminuir as diferenças so-ciais e a exploração dos mais pobres pelos mais ricos. Surge um antagonista de peso

2. Vide as considerações de MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. São Paulo: RT, 2006, p. 23 e ss.

3. E nesse contexto de busca por segurança, para o fim de obtenção do crescimento econômico, a coisa julgada desempenhava papel singular. Vide SILVA, Ovídio Baptista. Coisa julgada relativa?. In: Relativi-zação da coisa julgada – enfoque crítico. 2 ed. 2 tir. Salvador: JusPodivm, 2008, p. 307.

4. Vide as interessantes informações de MESQUITA, Eduardo Melo de. O princípio da proporcionalidade e as tutelas de urgência. 2 tiragem. Curitiba: Juruá, 2007, p. 69 e ss.

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ao modelo Liberal de Estado, arcabouço jurídico do capitalismo inicial: o modelo socialista, alijado do conceito de propriedade privada. A novidade assola o mundo e faz com que os estados capitalistas se movam, também premidos por problemas econômicos ligados ao crescimento desenfreado que o liberalismo inicial criou e principalmente pela quebra dos Estados Unidos (o crack da Bolsa, em 1929).

Como resposta a essa conjuntura, surge o Estado de Bem-Estar Social (o Welfare State) ou Estado Social de Direito, que mantém as bases do Estado Liberal – liber-dade e segurança – mas cria instrumentos regulatórios mais firmes da sociedade, como a intervenção econômica, a instituição de direitos sociais dos trabalhadores, praticando atos comissivos e não só omissivos.

O modelo também se desgasta, visto que o Estado assume proporções gigantes-cas e passa a atuar de forma deficitária nas várias frentes que assumiu, deixando de prover adequadamente os serviços que seriam essenciais – como saúde, educação, saneamento básico.

Trazendo essas considerações para a história brasileira, tem-se como momento culminante deste modelo de Estado Social, provedor e intervencionista, a Ditadura Militar, que agregava a esses valores o autoritarismo, que usa como uma de suas principais armas a vedação ao pensamento crítico, valorativo, ao que Tércio Sam-paio Ferraz Júnior chamaria de pensamento zetético.

A presença de um Estado Forte, interventivo e ainda por cima autoritário, não abriu espaço para que dogmas que advêm da própria cultura humana e do modelo liberal – como é exemplo a segurança jurídica – fossem contestados e debatidos.

Nota disso é a inexistência, nesse período, de uma sólida cultura de estudo do direito infraconstitucional à luz da Carta Magna Federal, sendo de se destacar poucos, mas valorosos esforços, como os de Ada Pellegrini Grinover5. Predominava a produção técnica de exegese do direito infraconstitucional.

Havia a necessidade de um rompimento com os modelos antecedentes para que se inaugurasse um período de estudo crítico do direito e de reavaliação de seus valores pretéritos, o que antes fora impossível devido a elementos da conjuntura social, política e econômica anteriores.

O rompimento se deu com o fim da Ditadura Militar, as eleições indiretas, de que saiu vencedor Tancredo Neves e, principalmente, com o advento da Constitui-ção Federal de 1988, que inaugurou um novo modelo de Estado, conhecido como “Estado Democrático de Direito”, uma síntese dos dois modelos anteriores.

5. GRINOVER, Ada Pellegrini. Os princípios constitucionais e o Código de Processo Civil. São Paulo: Bushatsky, 1975; GRINOVER, Ada Pellegrini. A garantia constitucional do direito de ação e sua rele-vância no processo civil. Dissertação apresentada para o concurso de livre-docência em Direito Judi-ciário Civil da Faculdade de Direito da USP. São Paulo, 1972. A incipiência do estudo do processo civil à luz da Constituição Federal está clara no próprio título do item 5 das considerações preliminares da alvissareira obra: “tendências constitucionais do processo civil”.

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Com a promessa de um modelo democrático e livre das amarras e apreensões que uma ditadura militar traz à camada social produtora de cultura, ressurgiu o estudo crítico do direito, preocupado com seus valores e com a integralidade e a in-terdisciplinaridade do fenômeno jurídico. Torna-se essencial estudar o direito civil, o direito processual, o direito penal, o direito tributário, etc, à luz da Carta Magna, que concentra os princípios basilares dessas disciplinas6.

Além disso, a sociedade, principalmente na década de noventa, é assolada por grandes descobertas e evoluções, nos mais variados campos, como o científico, o econômico, o comportamental, o social, com reflexos no direito, que precisou ser revisto e repensado, sob pena de se tornar anacrônico. Hoje os tribunais travam discussões sobre o aborto de fetos anencéfalos; sobre o casamento de homossexuais, sobre as pesquisas com células-tronco, etc.

Nesse ponto da história, começam a emergir as contestações aos dogmas que, durante décadas ou até mesmo séculos, restaram incontestes7. Dentre eles, a segu-rança jurídica e sua principal personificação: a coisa julgada.

Quando se fala, então, de relativização da coisa julgada, o que se tem em mente é a discussão sobre a ampliação da possibilidade de impugnação de decisões que, num primeiro momento, não mais poderiam ser discutidas, dado o impedimento que a coisa julgada institui. É, pois, uma das formas mais agudas de discussão do dogma da segurança jurídica, que é um valor social transportado ao direito e forte-mente arraigado no sistema jurídico.

Ressalta-se, mais uma vez, com apoio nas sempre sábias palavras de José Carlos Barbosa Moreira8, que a relativização da coisa julgada, ou seja, a impugnação das decisões irrecorríveis, transitadas em julgado, não se trata de uma novidade, como se antes fosse o instituto algo absoluto; mas sim da ampliação de um fenômeno antes escasso e, por isso, pouco meditado, quase que unicamente restrito aos poucos casos de cabimento da ação rescisória.

“Relativização da coisa julgada”, “desconsideração da coisa julgada”, “coisa jul-gada inconstitucional” são termos que englobam as tentativas da doutrina e da

6. “Lei Suprema que é, a Constituição Federal situa-se no ponto culminante da hierarquia das fontes do direito, contendo os fundamentos institucionais e políticos de toda a legislação ordinária”. TUCCI, José Rogério Cruz e. Limites subjetivos da eficácia da sentença e da coisa julgada civil. São Paulo: RT, 2006, p. 104.

7. Não se pode esquecer, todavia, que, desde a década de 40, um dos maiores processualistas da história já tecia críticas contundentes à visualização da coisa julgada como uma garantia absoluta, que erige a segurança jurídica como valor máximo, em contraste com a certeza: trata-se de Couture. Vide COUTU-RE, Eduarco Juan. Fundamentos do direito processual civil. Campinas: Red, 1999, p. 329-332; COU-TURE, Eduardo Juan. Estudios de derecho procesal civil, tomo III. 3 ed. Buenos Aires: Depalma, 2003, p. 267 e ss. Ainda antes de Couture, Chiovenda também tratara do tema, in Chiovenda, Giuseppe. Instituições de direito processual civil, v. III. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 1969, p. 274.

8. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Considerações sobre a chamada “relativização” da coisa julgada ma-terial. In: Temas de direito processual – nona série. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 235-236.

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jurisprudência de dilatarem a impugnação das decisões não mais passíveis de recur-so. Esse é o sentido amplo das expressões. Quer-se, pois, ir além dos estritos limites da ação rescisória e, principalmente, dos arts. 485 e 495 do CPC, que são os verda-deiros elementos restritivos da impugnação das decisões irrecorríveis.

Para tanto, duas são as técnicas científicas utilizadas pela doutrina e refletidas na prática forense:

a) a identificação e, porque não dizer, a expansão das hipóteses em que uma decisão judicial não faz coisa julgada material, por estar eivada de inexis-tência jurídica;

b) a formulação de raciocínios jurídicos que demonstrem ser possível decidir novamente uma determinada questão mesmo que (i) sobre ela tenha se formado a coisa julgada material e que (ii) seja incabível a rescisória.

No primeiro caso (a), não se trata propriamente de “relativizar” a coisa julgada, ou seja, de desconsiderar o impedimento que era constitui e se decidir novamente em desapego ao seu efeito negativo: trata-se de “escapar pela tangente”, defendendo que uma determinada decisão, não obstante irrecorrível, não produz coisa julgada e pode, por isso, ser impugnada e revista.

Embora se refira a esse conjunto de ideias, lato sensu, como “relativização da coisa julgada”, trata-se de doutrina que visa, justamente, fugir ao confronto com a res iudicata. Um caminho, sem dúvida, mais simples e que, por isso mesmo, precisa ser analisado com muito cuidado e parcimônia, sob pena de que se tenha uma ava-lanche de casos de inexistência processual.

O tema da inexistência processual e de sua impugnação, que fazem parte de uma concepção ampla de relativização da coisa julgada (relativização lato sensu) serão objeto de estudo na Parte 3 deste Manual.

Por agora, tratar-se-á da relativização da coisa julgada stricto sensu, ou seja, das formulações teóricas que têm por objetivo a defesa da ampliação das hipóteses e dos meios de impugnação das decisões que efetivamente tornam-se imutáveis, fazendo coisa julgada material.

O que se fará logo no tópico seguinte é organizar as ideias que justificam essa nova concepção ampliativa da impugnação das decisões transitadas em julgado.

2. a premissa prinCipal da relativização da Coisa julgada: não há valores jurídiCos absolutos

A Constituição Federal, ao criar as bases do direito no Brasil, elege quais são os valores que considera essenciais para o desenvolvimento social. Prova disso é o caput do art. 5º, que assim dispõe:

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art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabi-lidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.

Vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade. São esses os valores fun-damentais que a Constituição protege. Ao olhar-se para as palavras eleitas pelo le-gislador para representar quais são os elementos essenciais, os valores máximos que devem ser protegidos pelo Estado de Direito, vê-se que se tratam de signos dotados de ampla possibilidade semântica, ou seja, de muitos possíveis significados.

Por conta disso é que a própria Carta Magna indica e delimita o sentido da proteção a esses importantes valores, ao dizer que:

a) “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” – tutela da liberdade;

b) “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou de-gradante” – tutela da vida;

c) “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição” – tutela da igualdade;

d) “é garantido o direito de propriedade” – tutela da propriedade;

c) “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” – tutela da segurança.

Mas garantir direitos fundamentais, por meio da eleição de valores essenciais à sociedade, não é uma atividade tão simples, visto que, em diversos casos, as deman-das e problemas da vida contrapõem dois ou mais desses valores, sendo necessário que se opte pela prevalência de um ou alguns deles em face de outro(s).

Exemplos disso não faltam na Carta Magna:a) “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas,

de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de inves-tigação criminal ou instrução processual penal” – faz-se uma proporcio-nalidade entre os valores liberdade e segurança, dando-se prevalência ao último quando haja a necessidade de se apurar a ocorrência de um crime;

b) “no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano”- no embate entre a propriedade e a segurança pública, dá-se prevalência à última;

c) “não haverá penas de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos ter-mos do art. 84, XIX” – faz-se um juízo de valor que envolve o bem vida e o bem segurança nacional, dando-se prioridade ao segundo.

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Como esses exemplos, há muitos outros, o que bem demonstra que nas si-tuações concretas da vida é plenamente possível que direitos fundamentais – que representam valores jurídicos fundamentais – se choquem, devendo-se decidir qual deles deve prevalecer em relação ao outro.

Justamente nesse ponto surge um questionamento: será que a Constituição foi tão minuciosa a ponto de prever todos os casos em que há incompatibilidade entre os princípios fundamentais, uma vez aplicados em uma situação concreta (igualdade contra liberdade; vida contra patrimônio)? Será que a Constituição é um livro fechado ou, antes disso, é um guia hermenêutico que permite a construção de soluções que não foram previamente ofertadas?

Encarar a Constituição como um diploma fechado seria torná-la anacrônica em face das novas necessidades sociais que surgem a cada dia que se inicia. Seria datar um documento normativo que é criado com o intuito de se perenizar (basta lembrar do exemplo da Constituição Norte-Americana).

Se é certo que, em muitas situações, a Carta Magna já apresenta as soluções para as demandas sociais, por meio de regras de conteúdo descritivo, tem-se como sua principal função a de prover os caminhos para que os aplicadores do direito possam, nos incontáveis números de casos não previstos no diploma constitucional, alinhar e balancear seus princípios fundamentais e, com o apoio do direito infra-constitucional, prover solução para os conflitos intersubjetivos de direito.

Dessa forma, há muito que se construir a partir dos dados e valores que a Constituição Federal consagra nos princípios que estabelece, por meio da técnica hermenêutica da proporcionalidade e da razoabilidade9.

Samuel Meira Brasil, na excelente monografia com a qual conquistou o título de mestre em direito processual civil pela USP, resume com maestria a questão:

O conflito entre duas regras resolve-se no plano da validade, seja através de uma cláusula de exceção, seja por intermédio de meta-regras (critério cronoló-gico, hierárquico, ou de especificidade), que afastam permanentemente a apli-cação de uma das regras em conflito (critério do tudo-ou-nada).

A colisão entre princípios, porém, resolve-se no plano do valor, ou, mais pre-cisamente, na dimensão do peso de cada princípio, segundo o contexto de concreção.

9. “O princípio da razoabilidade, que alguns confundem com o princípio da proporcionalidade, conquan-to não se confundam, impõe ao legislador uma atuação racional, ou seja, que não enuncie comandos absurdos, sem sentido. Já o princípio da proporcionalidade vai além. Como esclarece Helenilson Cunha Pontes, acertadamente, esse princípio não exige apenas ‘que a atuação estatual e a decisão jurídica sejam razoáveis, mas, que sejam os melhores meios de maximização das aspirações constitucionais”. MESQUITA, Eduardo Melo de. O princípio da proporcionalidade e as tutelas de urgência. 2 tiragem. Curitiba: Juruá, 2007, p. 67.

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Torna-se essencial, portanto, estabelecer os critérios de prioridade entre os princípios jurídicos, na hipótese de colisão. Em outras palavras, é necessário estabelecer como um princípio terá precedência a outro10.

São a proporcionalidade e a razoabilidade critérios de hermenêutica dos prin-cípios e não princípios colocados em linha de igualdade com aqueles cuja aplicação visam a regular. Ademais, deve-se destacar que a proporcionalidade e a razoabilida-de são critérios decisórios, dos quais o julgador lança mão quando necessita elaborar a norma concreta de conduta e observa que há dois princípios fundamentais que se chocam (colidem), devendo, pois, ponderar e optar pela prevalência de um ante o outro.

Como diz, com apuro, Sérgio Gilberto Porto,O princípio da proporcionalidade (verhältnismässigkeits-prinzip), tem por escopo – como sua designação deixa antever – a vontade de evitar resultados desproporcionais e injustos, baseado em valores fundamentais conflitantes, ou seja, o reconhecimento e aplicação do princípio permite vislumbrar a cir-cunstância de que o propósito constitucional de proteger determinados valores fundamentais deve ceder quando a observância intransigente de tal orientação importar na violação de outro direito fundamental ainda mais valorado11.

A demonstração desse raciocínio deixa claro que a Constituição não é uma “obra fechada”, mas sim um edifício em “eterna construção”, sendo a fonte última na busca por uma sociedade que consiga conciliar, do melhor modo possível, os valores que entenda serem os mais relevantes para sua manutenção.

A segurança jurídica e a coisa julgada se inserem nessa construção paulatina e também são objeto de valoração, tanto por parte do legislador, quando do operador do direito, do magistrado.

A Carta Magna deu à coisa julgada status e força constitucional12, embora essa afirmação seja contestada por doutrina minoritária de autoridade13.

10. BRASIL JR., Samuel Meira. Justiça, direito e processo – a argumentação e o direito processual de re-sultados justos. São Paulo: Atlas, 2007, p. 95. No mesmo sentido: ARMELIN, Donaldo. Flexibilização da coisa julgada. In: Relativização da coisa julgada – enfoque crítico. 2 ed 2 tiragem. Salvador: JusPodivm, 2008, p. 84.

11. PORTO, Sérgio Gilberto. Coisa julgada civil. 3 ed. São Paulo: RT, 2006, p. 126.12. Vide, nesse sentido: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Considerações sobre a chamada “relativização”

da coisa julgada material. In: Temas de direito processual – nona série. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 247. O mestre diz que é superficial a leitura que enxerga no artigo da constituição somente uma norma de direito intertemporal; DONADEL, Adriane. A ação rescisória no direito processual civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 126-127; BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 49 e ss.

13. THEODORO JÚNIOR, Humberto; FARIA, Juliana Cordeiro de. O tormentoso problema da inconstitucio-nalidade da sentença passada em julgado, In: Relativização da coisa julgada – enfoque crítico. 2 ed. 2 tir. Salvador: JusPodivm, 2008, p. 190 e ss.; no mesmo sentido: LIMA, Paulo Roberto de Oliveira. Teoria da coisa julgada. São Paulo: RT, p. 84; DELGADO, José Augusto. Efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais. Palestra proferida no IV Congresso Brasileiro de Processo Civil e Trabalhista, Natal/RN, 22.09.2000.

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A Relativização ou Desconsideração da Coisa Julgada

Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro, por exemplo, constroem sua ideia de relativização da coisa julgada com base na premissa de que a qualidade de imutabilidade das decisões judiciais não teria assento na Constituição, visto que o art. 5º, XXXVI, da CF seria, tão-somente, uma norma que prevê a irretroatividade da lei nova. Diz o citado artigo da Constituição:

art. 5º. Omissis.

XXXVI – A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

Uma hermenêutica possível da norma, mas que soa superficial – como acres-centa Barbosa Moreira14 – ante a mensagem mais ampla que o art. 5º, XXXVI visa a passar, qual seja, a de que nenhum ente público ou privado (e nem mesmo a lei, que é o instrumento que de forma mais contundente regula as relações sociais) deve discutir ou tentar ignorar uma decisão transitada em julgado.

Não é necessário buscar uma interpretação tão restritiva de uma cláusula pétrea de tamanha importância, para justificar a possibilidade de sua relativização, típica ou atípica. Que é um caminho mais simples, isso não se nega, visto que a coisa julgada, ou seja, a qualidade de imutabilidade do conteúdo da decisão judicial seria um instrumento meramente infraconstitucional se aceita a concepção exposta.

Mesmo aceitando-se a categoria e a natureza constitucional da proteção à coisa julgada, é plenamente possível defender a sua relativização, principalmente em ca-sos que fujam do alcance da ação rescisória, com base no emprego do princípio da proporcionalidade.

Mas como fazê-lo? Desenvolvendo-se o seguinte percurso lógico:A proteção à coisa julgada é um princípio constitucional fundamental, assim

como o são os princípios de proteção à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade; como também o é o princípio da moralidade, da impessoalidade, da supremacia do interesse público, da dignidade da pessoa humana.

Tais princípios, que se harmonizam no campo abstrato, podem vir a colidir em situações concretas, exigindo que o hermeneuta, o aplicador do direito tome partido sobre qual deles prevalecerá ante o outro.

Muitos desses embates se dão enquanto o processo está em trâmite. É muito comum que o magistrado seja chamado a decidir sobre a prevalência que dará ao princípio de proteção à vida, em face do princípio de proteção ao patrimônio, nas demandas em que segurados de plano de saúde requerem, liminarmente, a realização de procedimentos cirúrgicos, que as empresas alegam não fazer parte da cobertura contratada.

14. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Considerações... p. 247.

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Rodrigo Klippel e Antônio Adonias Bastos

Em um caso como o relatado no parágrafo anterior, o que faz o juiz é, com base na regra da proporcionalidade, resolver a colisão de princípios e dar precedência a um deles.

O mesmo tipo de atividade que se desenvolve corriqueiramente em processos pendentes também pode ocorrer nos casos em que o juiz se encontra de frente a um processo finalizado – protegido pelo manto da coisa julgada material – mas que apresenta um erro absurdo, intolerável e flagrante.

No caso em tela, é lícito ao julgador implementar o mesmo tipo de juízo de valor que aplica em processos pendentes e, com base na regra da proporcionalidade, optar por um dos valores em jogo (segurança x dignidade da pessoa humana; segu-rança x patrimônio; segurança x vida), desconsiderando a coisa julgada e novamen-te decidindo o conflito de interesses?15

É possível considerar que a coisa julgada, ao tornar indiscutível uma violação a princípio constitucional (uma inconstitucionalidade) seja ela mesma um instru-mento inconstitucional, daí falar-se de coisa julgada inconstitucional?

Ou será que a coisa julgada, pela importância estratégica que possui na estru-turação do Estado de Direito, não pode ser objeto deste tipo de atividade fora dos limites traçados pelo próprio legislador ordinário, por meio da ação rescisória?

Basicamente essa é a dúvida que acirra os ânimos da doutrina e que influi na prática forense. Não há dificuldade em se demonstrar o raciocínio jurídico com base no qual se permite a desconsideração da coisa julgada fora dos casos já permitidos pelo sistema. Essa é a tarefa mais simples. Em poucas palavras, ditas no parágrafos anteriores, se resumiu a essência da fundamentação desta doutrina.

O problema maior é e sempre será axiológico: aceita-se ou não que o valor segurança jurídica possa ser objeto de flexibilizações fora aquelas que o próprio or-denamento expressamente consignou, por meio da impugnação atípica das decisões envolvidas pela autoridade da coisa julgada material?

Ao defender tal ou qual posição, vê-se que o debate extravasa o campo da técni-ca jurídica e deságua no campo valorativo das pessoas, criando defesas apaixonadas e ferrenhas. De se citar, por exemplo, a que faz Nelson Nery Jr. contrariamente à relativização.

Afirma o reconhecido processualista paulista que a coisa julgada, como instru-mento inserido no Estado Democrático de Direito, é sua pedra de toque, ou seja,

15. Donaldo Armelin, no excelente artigo que dedicou ao tema da flexibilização da coisa julgada, resumiu, de modo simples e objetivo, que todas as colisões de princípios que decorrem da tentativa de flexibili-zar de forma atípica a coisa julgada se resumem na fórmula “segurança x justiça”. ARMELIN, Donaldo. Flexibilização da coisa julgada. In: Relativização da coisa julgada – enfoque crítico. 2 ed 2 tiragem. Salvador: JusPodivm, 2008, p. 86-87.

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A Relativização ou Desconsideração da Coisa Julgada

seu elemento e sustentáculo central16. Por isso, desconsiderá-la, enfraquecê-la por meio da aplicação de juízos de proporcionalidade, deixando-a de lado em privilé-gio de outros princípios fundamentais, seria uma construção de veio nazista17, que substituiria a segurança fornecida pelo Estado de Direito por uma falsa legalidade, apta a encobrir interesses ilegítimos.

Voltando ao que já tinha dito um pouco acima: o legislador constitucional, ao construir a Carta Magna, já elabora juízos de valor por meio dos quais demonstra qual o alcance da proteção que pretende ofertar aos princípios constitucionais. E nos casos em que não age de forma tão específica, lança as bases para que o operador do direito atue, em respeito aos princípios e às regras que emanam da Constituição.

No caso da coisa julgada, que a Constituição Federal permite seja impugnada por meio da ação rescisória – o que reconhece quando prevê a competência do STF, do STJ e do TRF para processarem e julgarem tais demandas – será que é vedado ao operador do direito alargar essa valoração feita pelo Constituinte originário, im-pondo outras técnicas de impugnação (relativização da coisa julgada), que não a ação rescisória?

Essa é a pergunta central para que se conclua pelo cabimento ou não do alar-gamento das hipóteses de impugnação da coisa julgada (revisão atípica da coisa julgada). De acordo com a concepção que se tenha, será possível defender a relativi-zação atípica da autoridade da coisa julgada (fora dos casos previstos em lei) ou será a mesma considerada atividade juridicamente impossível.

3. uma possível solução para o problema da impug-nação da Coisa julgada fora das hipóteses já pre-vistas na legislação infraConstituCional (revisão atípiCa da Coisa julgada)

Após meditar sobre todas essas questões, entendo que a relativização da coisa julgada (ou seja, a sua impugnação) não é uma questão fechada na Constituição Federal, embora da Carta Magna devam ser retirados subsídios e regras das quais não se pode fugir, sob pena de se perpetrar atos inconstitucionais.

Em primeiro lugar, se a coisa julgada fosse realmente uma proteção absoluta na Carta Magna, ela própria não abriria a exceção que traz, prevendo a sua impugna-ção por meio da ação rescisória. Ao fazê-lo, ou seja, ao aprovar que haja um meio

16. NERY JR., Nelson. A polêmica sobre a relativização (desconsideração) da coisa julgada e o Estado de-mocrático de direito. In: Relativização da coisa julgada – enfoque crítico. 2 ed. 2 tir. Salvador: JusPodi-vm, 2008, p. 288.

17. “O processo é instrumento da democracia e não seu algoz. Não se pode utilizar o processo como ins-trumento (consciente ou não, propositado ou não) nazista”. NERY JR., Nelson. Coisa julgada e estado democrático de direito. In: Estudos em homenagem à Professora Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: DPJ, 2005, p. 707.

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distribuído para uma de suas turmas, sorteando-se o relator dentre os ministros que componham o colegiado competente. O RESP poderá ser julgado:

a) monocraticamente, se preenchidos os requisitos do art. 557 do CPC, dessa decisão cabendo agravo interno (chamado de regimental nos tribu-nais superiores) para a turma;

b) pelo colegiado (turma). É importante ressaltar que a competência para o julgamento do RESP poderá se deslocar para a seção ou para a corte espe-cial nos casos previstos nos arts. 14 e 16 do Regimento Interno do STJ2.

Concluído o julgamento do RESP (por meio da realização de novo juízo de admissibilidade e, a depender de seu resultado, do juízo de mérito do recurso), agora o processo seguirá ao STF, se ainda for útil julgar o RE (sobre essa utilidade, vide abaixo 2.2).

A ordem de julgamentos, quando haja RESP e RE concomitantes, pode ser invertida em relação àquela acima exposta. Trata-se do comando descrito no art. 543, § 2º do CPC, que decreta:

art. 543. Omissis.

§ 2º. Na hipótese de o relator do recurso especial considerar que o recurso extraordinário é prejudicial àquele, em decisão irrecorrível sobrestará o seu jul-gamento e remeterá os autos ao Supremo Tribunal Federal, para o julgamento do recurso extraordinário.

A prejudicialidade entre o RESP e o RE, que é o elemento central para se identificar as hipóteses em que se deve inverter a ordem de julgamento dos recursos extraordinários, será avaliada no item 2.2 abaixo.

2.1. CabimentoO cabimento do RE e do RESP é um requisito muito mais complexo de se

preencher do que, por exemplo, o cabimento da apelação. Enquanto a última é recurso ordinário e de fundamentação simples, os primeiros são recursos extraordi-nários e de fundamentação vinculada, o que faz com que seja muito mais restrita a sua utilização, o que se reverte em regras mais complexas de cabimento.

Seguindo-se a linha de raciocínio defendida, por exemplo, por Nelson Nery Jr3, afirma-se que cabimento dos recursos extraordinários deve ser avaliado e preen-chido por etapas. Vencidas todas essas etapas, com sucesso, ter-se-á um recurso cabível.

Neste primeiro momento, em que são estudados os elementos de admissibi-lidade comuns do RE e do RESP, serão objeto de estudo as etapas do cabimento

2. No Regimento Interno do STF existe regra análoga a dos arts. 14 e 16, que permite deslocar a compe-tência para julgamento do RE da turma para o plenário. Trata-se do art. 11.

3. NERY JR, Nelson. Princípios fundamentais – teoria geral dos recursos, 5 ed, p. 251 e ss.

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Recurso Especial e Recurso Extraordinário

aplicáveis a um e a outro recurso. Aquilo que for peculiar ao RE e ao RESP será analisado no item 3 abaixo.

2.1.1. Prévio esgotamento das instâncias ordináriasA análise do prévio esgotamento das instâncias ordinárias deve partir da leitura

das normas constitucionais de onde se extrai esse comando. Trata-se dos arts. 102, III e 105, III da CF, in verbis:

art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

III – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:

art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:

III – julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última ins-tância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida:

Para que sejam cabíveis o RE e o RESP, o primeiro requisito é o de que a deci-são judicial não seja mais recorrível nas instâncias ordinárias, ou seja, que contra ela não caiba recurso ordinário, como embargos infringentes, recurso ordinário consti-tucional, agravo interno4.

Não existe, no direito brasileiro, a figura do recurso per saltum, ou seja, um caso em que se possa pular a sequência de recursos estabelecida pela lei a fim de se utilizar, desde logo, o último deles. O recurso seguinte só pode ser manejado se o anterior foi interposto.

Observa-se, a partir da leitura dos arts. 102, III e 105, III, que ambas as normas mencionam a decisão proferida em única ou em última instância como aquela que pode ser atacada por RE ou RESP. A distinção faz sentido, pois há casos em que não existirá, nas instâncias ordinárias, qualquer recurso que anteceda aos extraordi-nários, o que significa que, proferida a decisão em primeiro grau jurisdicional, sua impugnação se fará exclusivamente por um dos recursos excepcionais.

Exemplo de decisão proferida em única instância, irrecorrível pelas vias ordi-nárias, é o acórdão de mandado de segurança de competência originária do tribunal de justiça ou do TRF que conceda a segurança pedida. Nessa situação, é incabível o recurso ordinário constitucional, como estudado no Capítulo 12, o que faz com que, antes dos recursos excepcionais, a causa tenha sido julgada em única instância.

4. “Essa irrecorribilidade há de derivar do fato de já terem sido esgotadas todas as vias comuns, não porque se tenha deixado de usar uma delas, ou porque a decisão se tenha tornado irrecorrível em via comum por ter a parte decaído do prazo do recurso comum cabível, ou por qualquer motivo do direito de recorrer. Mas por não haver cabimento de qualquer outro recurso ordinário, via comum”. SILVA, José Afonso. Do recurso extraordinário no direito processual brasileiro, p. 246.

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As maiores dúvidas, no entanto, não dizem respeito à expressão única instân-cia, mas sim à “última instância”, visto que a locução não significa exatamente a mesma coisa para fins de RE ou de RESP. Explica-se:

O leitor atento, ao comparar a redação dos arts. 102, III e 105, III, verificou que o primeiro (102, III) fala, tão somente, em única ou última instância, enquanto o segundo (105, III) diz única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Fede-rais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios.

O que significa isso? Que para fins de cabimento do RESP, a única ou a última instância será, necessariamente, o tribunal de justiça ou o tribunal regional federal. Para fins de cabimento do RE, não se faz essa restrição.

Qual é o efeito mais conhecido dessa distinção? É o não cabimento de RESP contra acórdãos proferidos pelas Turmas ou Colegiados Recursais dos Juizados Es-peciais e, por outro lado, o cabimento do RE contra tais acórdãos (desde que preen-chidas as demais etapas de verificação do cabimento. O tema é objeto da súmula 203 do STJ e da súmula 640 do STF, que definem:

203. Não cabe recurso especial contra decisão proferida por órgão de segundo grau dos Juizados Especiais.

640. É cabível recurso extraordinário contra decisão proferida por juiz de pri-meiro grau nas causas de alçada, ou por turma recursal de juizado especial cível e criminal.

A necessidade de que as vias de discussão ordinárias tenham se esgotado – seja porque a decisão recorrida foi proferida em única instância, seja porque esgotados todos os recursos cabíveis nos órgãos de piso (última instância) – é um tema re-corrente nos tribunais superiores, tanto que produziu duas súmulas, uma do STF (281) e outra do STJ (207):

281. É inadmissível recurso extraordinário, quando couber, na Justiça de ori-gem, recurso ordinário da decisão impugnada.

207. É inadmissível recurso especial quando cabíveis embargos infringentes contra o acórdão proferido no tribunal de origem.

Na praxis forense são muito comuns dois tipos de equívoco, por parte dos operadores jurídicos, que terminam por acarretar o trânsito em julgado e a impossi-bilidade de se continuar a impugnar a decisão dentro da mesma relação processual (restando, pois, a excepcional ação rescisória):

a) o sucumbente acha que não vale a pena interpor agravo interno (agravo regimental) contra a decisão do relator que inadmitiu o recurso ou o jul-gou no mérito, nos termos do art. 557 do CPC, pois crê que a decisão será mantida no colegiado e resolve, desde logo, interpor o Recurso Especial. Mesmo estando convicto de que será derrotado também no julgamento do agravo interno, é dever da parte interpô-lo caso pretenda, posterior-mente, discutir a causa por meio de RE ou de RESP;

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Recurso Especial e Recurso Extraordinário

b) o sucumbente desconhece as regras de cabimento dos embargos infringen-tes – ou as interpreta equivocadamente – e deixa de interpor os infringen-tes, dirigindo-se diretamente ao STJ ou ao STF. A frequência com que se comete este equívoco fez com que fosse editada a súmula 207, específica para este caso.

2.1.2. PrequestionamentoO prequestionamento é, com certeza, o requisito de forma dos recursos ex-

traordinários que mais suscita dúvidas e discussões, tanto as de cunho teórico quan-to as eminentemente pragmáticas.

A primeira delas relaciona-se à natureza jurídica do prequestionamento: trata- se de um (i) requisito de admissibilidade específico do RE e do RESP ou de (ii) etapa no preenchimento do cabimento desses recursos?

Alfredo Buzaid, em pronunciamento muito famoso proferido no STF e citado em diversas obras5, defende que o prequestionamento é “uma das condições de admissibilidade do recurso extraordinário”6.

Como já exposto anteriormente, adota-se neste Manual a concepção de que o prequestionamento se trata de uma etapa necessária ao preenchimento do cabimen-to do RE e do RESP7, visto que seria inconstitucional que o STF e o STJ criassem um requisito de admissibilidade não descrito em lei (usurpação de competência).

A resposta a essa dúvida conduz a outra: se o prequestionamento é uma etapa do cabimento do RE e do RESP, em que norma jurídica está previsto, sabendo-se que nos arts. 102 e 105 da CF se encontram listadas as hipóteses de cabimento de ambos os recursos?

Trata-se o prequestionamento de uma exigência constitucional ou infracons-titucional? A resposta para a pergunta é a de que se trata de uma exigência consti-tucional, que se extrai da leitura dos arts. 102, III e 105, III da CF, que mais uma vez serão transcritos:

art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

5. Por exemplo: MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Recurso extraordinário e recurso especial, 5 ed, p. 163/164.

6. AgRg no ED no RE 96.802. Vale à pena a leitura, na íntegra, do voto proferido pelo Min. Buzaid, visto que contém uma aula sobre a origem norte-americana do instituto, bem como o que significa o mes-mo. Não é possível encontrá-lo na pesquisa de jurisprudência do site do STF. Todavia, no mesmo site se acha a peça. Basta que o interessado consulte o campo “Publicações”; “RTJ Eletrônica” e busque pela RTJ 109/299.

7. Além de Nelson Nery Jr, anteriormente citado, defendem que o prequestionamento corresponde a uma etapa na verificação do cabimento e não a um requisito específico de admissibilidade: MEDINA, José Miguel Garcia. O prequestionamento nos recursos extraordinário e especial, 2 ed, p. 218-219.

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III – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:

art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:

III – julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última ins-tância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida:

Segundo Cássio Scarpinella Bueno8, a expressão causas decididas possui duplo significado: tanto se presta a identificar o prévio esgotamento das instâncias ordiná-rias quanto o prequestionamento.

Chega-se à primeira conclusão: causas decididas é a expressão constitucional por meio da qual se consagra o prequestionamento como elemento presente na Carta Magna.

Caso o prezado leitor esteja se deparando com essa informação “pela primeira vez em sua vida”, talvez ache “estranha” e “forçosa” a conclusão. Mas, em verdade, ela não apresenta esses atributos e possui vasto lastro histórico, que se passa a revi-sitar, com o apoio das lições de Buzaid.

A inspiração do prequestionamento se encontra na Lei Judiciária norte-ame-ricana de 24/09/1789 (Judiciary Act). O diploma legislativo em tela admitiu que se interpusesse recurso para a Suprema Corte contra decisões proferidas pelas mais altas cortes dos Estados, chamado de writ of error.

A finalidade desse recurso seria (i) reavaliar decisões estaduais que questiona-ram a validade de lei, tratado ou ato federal, considerando-os inválidos; (ii) rever decisões estaduais que consideraram válidos atos e leis locais após terem sido con-testados em face da Constituição dos Estados Unidos, de leis federais ou tratados; (iii) reapreciar decisões estaduais que denegaram algum direito, título, privilégio ou imunidade que foi reclamado em face da Constituição, lei ou ato de autoridade federal e tratado. Vê-se, nitidamente, o intuito de proteção à integridade da Consti-tuição e da lei federal nessas previsões, ideia análoga a dos nossos RE e RESP.

O ponto que nos interessa analisar mais de perto, referente às características formais do writ of error, é a de que o mesmo deverá levar à Suprema Corte o pedido de reanálise de uma questão que foi enfrentada e decidida pela corte estadual, e não somente e originariamente alegada nas razões do writ. Segundo Buzaid9, “a doutri-na prevalecente nos Estados Unidos, é que a questão federal tenha sido suscitada e resolvida pelo Tribunal do Estado. Não basta, pois, alegá-la no writ of error”.

Foi essa concepção que se importou para o Brasil, tendo sido primeiramente prevista na Constituição de 1891, que era expressa ao dizer, no art. 59, III, “a”:

8. BUENO, Cássio Scarpinella. Quem tem medo de prequestionamento? In: Revista dialética de direito processual, v. 1, 2003; Curso sistematizado de direito processual civil, v. 5, p. 240.

9. BUZAID, Alfredo. RTJ 109/303.

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art. 59. Omissis.

III – Das sentenças das Justiças dos Estados, em última instância, haverá recur-so para o Supremo Tribunal Federal:

a) quando se questionar sobre a validade ou a aplicação de tratado e leis federais e a decisão do tribunal do Estado for contra ela.

Nota-se que na primeira constituição republicana, a cláusula “decisão do tri-bunal do Estado for contra ela” deixa muito claro que na instância anterior deve ter havido decisão sobre a questão federal. Também claras são as Constituições de 1934 (art. 76, III), de 1937 (ar. 101, III) e 1946 (101,III).

Sendo assim, existe forte lastro histórico para interpretar a expressão causa decidida como questão constitucional ou federal infraconstitucional decidida pela última instância ordinária.

A constatação do caráter constitucional do prequestionamento, a partir da de-monstração de que a cláusula causa decidida apresenta também esse significado, conduz ao último dos questionamentos básicos sobre o tema:

O que é prequestionamento?

Principalmente por conta do que foi dito acerca da origem do requisito, é intuitivo que o prequestionamento tem íntima relação com o fato de a decisão judicial contra a qual se quer interpor o RE ou o RESP ter decidido uma questão, ou seja, uma controvérsia, por meio da aplicação ao caso concreto de norma cons-titucional ou de norma federal infraconstitucional.

Todavia, existe discussão na doutrina e na jurisprudência sobre o que é o pre-questionamento. Basicamente, são três as teses10:

a) prequestionamento como ato da parte: em apego ao nome prequestiona-mento, diz-se que se trata de ato da parte, de alegar antes do julgamento na instância de piso a questão referente à aplicação da lei federal ou cons-titucional;

b) prequestionamento como ato judicial: trata-se da atitude do órgão juris-dicional responsável por proferir a decisão em única ou última instância ordinária, de decidir a questão de direito referente à aplicação da lei fede-ral infraconstitucional ou de norma constitucional a um caso concreto;

c) prequestionamento como ato misto: trata-se do ato da parte de alegar a questão e do órgão jurisdicional de decidi-la.

Tratá-lo como ato da parte significa desconsiderar a literalidade da súmula 282 do STF e da súmula 211 do STJ, que afirmam:

10. Nesse sentido: DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil, v. 3, 8 ed, p. 258-259.

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282. É inadmissível o recurso extraordinário, quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada.

211. Inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito da oposi-ção de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo Tribunal a quo.

Tratá-lo como um ato misto – conjugação da prévia alegação e debate seguidos da decisão da questão – levaria a ignorar que existe prequestionamento de uma questão federal quando, ex officio e sem que ninguém tenha alegado a mesma, o tribunal reconhece um vício de ordem pública (como carência de ação ou de pres-supostos processual), fundamentando nele a extinção do processo. Tem-se causa (questão) decidida e, portanto, prequestionamento.

Pelas razões acima é que se deve fixar a regra11 de que prequestionamento é:a atitude que compete ao órgão jurisdicional prolator da decisão proferida em única ou última instância, a ser impugnada por RE e/ou RESP, de se pronun-ciar sobre questão de direito que envolva a aplicação da lei federal ou tratado a um caso concreto (RESP) ou sobre questão de direito decidida à luz da Cons-tituição Federal (RE)12.

É necessário ressaltar que o prequestionamento considera-se inexistente se a questão federal infraconstitucional tiver sido decidida somente no(s) voto(s) venci-do(s), visto que se trata de um ato que não produz efeito jurídico, sendo um mero elemento histórico do processo13. Nesse sentido, a súmula 320 do STJ:

320. A questão federal somente ventilada no voto vencido não atende ao requi-sito do prequestionamento14.

Definido o que é o prequestionamento (ter-se decidido, no acórdão recorrido, a questão que se quer reavaliar no STJ e no STF), é importante dizer que os tribu-nais superiores divergem sobre o que é necessário para que se considere a questão decidida.

Pode-se concluir o seguinte: ambos – STJ e STF – definem que existe preques-tionamento quando a questão de direito federal ou constitucional foi decidida no

11. Mais à frente se demonstrará que há uma exceção à regra de que o prequestionamento é a decisão expressa da questão federal ou constitucional no acórdão que se pretende atacar por RE ou RESP. Trata-se do chamado prequestionamento ficto, para o STF.

12. “O prequestionamento revela-se em ato de inteligência, que é o provimento judicial. Diz-se ocorrido quando na decisão impugnada têm-se o debate e a adoção de entendimento sobre os fatos jurígenos empolgados pela parte recorrente. O conhecimento de um recurso de natureza extraordinária não pode ficar ao sabor da capacidade intuitiva do juiz. Este dado, inafastável, cola ao prequestionamento a qualidade de explícito. Obscuridades, dúvidas e contradições são corrigíveis mediante remédio pró-prio – o recurso de embargos declaratórios – com o qual não se confunde o extraordinário, mesmo porque competente para declarar a decisão proferida é o próprio Órgão prolator”. (AI 136383 AgR, Relator Min. Marco Aurélio, Segunda Turma, DJ 13/08/1991)

13. O voto vencido só tem eficácia jurídica, no processo civil brasileiro, em sede de embargos infringentes.14. No STF, vide: AgRg no AI 682.486.

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acórdão recorrido. Todavia, há divergência nos tribunais sobre o que se considera a questão ter sido decidida.

Basicamente, são duas ordens de problemas, que serão enfrentados em sequência.

2.1.2.1. Prequestionamento explícito (numérico) e implícitoAs questões decididas, que correspondem às matérias prequestionadas, são

questões de direito.

Isso significa que a discussão que se levará a efeito em sede de RESP e de RE diz respeito a saber se a aplicação do direito ao fato foi feita de forma adequada.

Acontece que, em muitas situações, ao decidir a questão de direito, ou seja, ao determinar de que modo o ordenamento jurídico incidiu nos fatos, o julgador se omite em demonstrar qual artigo de lei utilizou para chegar a uma conclusão.

É muito comum que se leia nas decisões judiciais pronunciamentos como o seguinte: “o presente recurso é intempestivo, visto que foi interposto fora do prazo legal de 15 dias”. Perceba que há uma questão federal aqui. Aplicou-se o ordena-mento federal infraconstitucional ao caso concreto, concluindo-se que o recurso interposto havia desrespeitado o comando normativo que prevê a sua interposição do recurso em 15 dias. Todavia, não se fez qualquer menção ao artigo de lei que contém esse comando.

Quando a questão é decidida à luz do ordenamento jurídico, mas não se faz menção ao artigo de lei que embasou a decisão, diz-se que o prequestionamento é implícito.

O adjetivo implícito significa justamente que, embora tenha se discutido o ponto controvertido em confronto com o ordenamento jurídico, o acórdão guer-reado não fez menção expressa ao artigo de lei que contém a moldura normativa com base na qual se decidiu.

Em outras situações, percebe-se que o órgão judicial, ao decidir a questão de direito (ao demonstrar como se deve qualificar juridicamente certos fatos da causa), indica qual o artigo de lei utilizou como base jurídica para seu raciocínio. Veja o se-guinte exemplo: “não é extra petita, e por isso não viola o teor do art. 460 do CPC, a sentença que condena o réu a pagar juros de mora não requeridos pelo autor, visto que se trata de condenação ex officio prevista no art. 293 do CPC”.

Observe que, neste último caso, a questão federal foi decidida fazendo-se men-ção expressa aos artigos do CPC utilizados para compor o raciocínio do julgador. Neste caso, diz-se que o prequestionamento é numérico ou explícito.

Uma vez identificadas as duas formas pelas quais a questão federal infracons-titucional ou constitucional pode ser decidida, surge a pergunta: como o STJ e o STF lidam com o tema?

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No Supremo Tribunal Federal:Diz-se prequestionada a matéria quando a decisão impugnada haja emitido juízo explícito a respeito do tema, inclusive mencionando o preceito constitu-cional previamente suscitado nas razões do recurso submetido à sua aprecia-ção15. (AgRg no RE 449137, Relator Min. Eros Grau, Segunda Turma, DJe 04/04/2008)

Trata-se de entendimento amplamente majoritário, contando-se poucos pro-nunciamentos em sentido contrário16.

O STF adota, de forma amplamente majoritária, o prequestionamento numé-rico.

No STJ, é amplamente majoritária a tese do prequestionamento implícito, ou seja, não há necessidade de que o artigo de lei seja mencionado ao se decidir a questão federal no acórdão recorrido. Nesse sentido:

O chamado prequestionamento implícito ocorre quando as questões debati-das no recurso especial tenham sido decididas no acórdão recorrido, sem a explícita indicação dos dispositivos de lei que o fundamentaram. (AgRg no Ag 1263401/RS, Rel. Ministro Vasco Della Giustina, Terceira Turma, DJe 23/04/2010)17

No STJ notam-se muitos acórdãos que negam categoricamente que o preques-tionamento precise se expressar de forma numérica. Nesse sentido:

Já é pacífico nesta E. Corte que, tratando-se de prequestionamento, é desneces-sária a citação numérica dos dispositivos legais, bastando que a questão posta tenha sido decidida. (EDcl no RMS 18.205/SP, Rel. Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, DJ 08/05/2006)18

Prequestionamento numérico – STF; Prequestionamento implícito – STJ. Parte das dúvidas está sanada. Resta ainda outra a desvendar.

2.1.2.2. Prequestionamento e o uso dos embargos de declaração

Outro ponto que distancia bastante o STJ do STF, no que se refere ao preen-chimento do prequestionamento, diz respeito ao uso dos embargos de declaração

15. AgRg no RE 449137; AgRg no AI 768904; AgRg no AI 753365; AgRg no AI 413.963.16. “O prequestionamento para o RE não reclama que o preceito constitucional invocado pelo recorrente

tenha sido explicitamente referido pelo acórdão, mas é necessário que este tenha versado inequivoca-mente a matéria objeto da norma que nele se contenha”. (AI-AgR 585604/RS; Relator Min. Sepúlveda Pertence; Primeira Turma; DJ 29-09-2006)

17. Nesse sentido: AgRg no REsp 1076155; AgRg no Ag 843.512; AgRg no Ag 1190273; AgRg no REsp 1118442.

18. Também rechaçam expressamente o prequestionamento numérico: AgRg no Ag 564.177; AgRg no AgRg no Ag 416.406; AgRg no Ag 843.512; AgRg no REsp 852.499.

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Recurso Especial e Recurso Extraordinário

para o fim de suprir a omissão do acórdão que não havia “prequestionado” a questão federal ou a questão constitucional originariamente.

Aqui, perceba uma coisa: não é todo acórdão que precisará ser atacado por em-bargos de declaração para que, a partir de então, o prequestionamento se preencha; mas tão somente aqueles que estejam omissos por não terem decidido a questão constitucional ou federal que a parte pretende rediscutir em sede extraordinária.

O Supremo Tribunal Federal editou, na década de 60, a súmula 356, que adota o entendimento que ficou conhecido como “prequestionamento ficto”:

356. O ponto omisso da decisão, sobre o qual não foram opostos embargos declaratórios, não pode ser objeto de recurso extraordinário, por faltar o requi-sito do prequestionamento.

O entendimento do STF pode ser resumido da seguinte forma: caso o acórdão contra o qual se pretende interpor o RE não tenha decidido a questão constitucio-nal (não tenha prequestionado a questão), basta que a parte interessada oponha os embargos de declaração e estes sejam conhecidos, mesmo que o tribunal não sane a falha. O prequestionamento terá se aperfeiçoado.

Veja que, segundo a explicação acima, não houve expressa decisão sobre a ques-tão constitucional alegada pela parte. Na verdade, o tribunal não enfrentou o tema. Mesmo assim, o STF reconhece que há prequestionamento.

Perceba que, no caso em tela, não houve decisão judicial sobre a questão cons-titucional. Por esse motivo se diz que o prequestionamento é ficto. E mais: nessa hipótese em especial, o prequestionamento deixa de ser ato do juiz e passa a ser ato da parte, o que se trata de exceção à regra enunciada no item 2.1.2 deste capítulo.

Tem-se, no STJ, entendimento totalmente distinto do que prevalece no STF (prequestionamento ficto), representado pela súmula 211, que decreta:

211. Inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito da oposi-ção de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo Tribunal a quo.

Observe, caro leitor, o maior rigor do Superior Tribunal de Justiça, no que tan-ge ao preenchimento do prequestionamento por meio dos embargos de declaração. Não basta que os embargos de declaração tenham sido opostos e conhecidos: para que o prequestionamento se realize é essencial que o tribunal a quo aprecie, emita juízo de valor, sobre a questão federal. Não se admite o prequestionamento como ficção; como simples ato da parte.

O acórdão que julgar os embargos de declaração precisa decidir a questão fe-deral infraconstitucional, emitir um juízo de valor sobre ela. Se assim não fizer, prequestionamento não há.

Uma vez compreendido o teor da súmula 211 do STJ – e observado que se trata de um entendimento muito mais rígido e formalista do que o da súmula 356

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Rodrigo Klippel e Antônio Adonias Bastos

do STF – é preciso resolver uma dúvida criada pela forma como o Superior Tribunal de Justiça entende o tema:

o que fazer para obter o prequestionamento caso o tribunal a quo, ao julgar os embargos de declaração, não supra a omissão, esquivando-se de emitir juízo de valor sobre a questão federal suscitada?

Duas são as técnicas aptas a resolver o problema, fazendo com que o tribunal de piso emita efetivamente juízo de valor sobre a questão federal de interesse da parte:

a) oposição de embargos dos embargos, visto que o acórdão de embargos de declaração, ao deixar de se manifestar sobre o ponto omisso, incidiu em nova omissão.

O problema é que esse expediente provavelmente não se reverterá em correção do vício e ainda pode trazer como efeito a aplicação da multa do art. 538, parágrafo único do CPC, caso se entenda, erroneamente, que o intuito dos segundos embar-gos era protelar.

b) a interposição de Recurso Especial contra o pronunciamento dos embar-gos de declaração, alegando que o mesmo violou a legislação federal ao não suprir a omissão levantada (falta de prequestionamento), visto que é função dos declaratórios, de acordo com o art. 535, II do CPC, por fim a esse tipo de falha da decisão, integrando-a.

Reconhecido pelo STJ que o acórdão de embargos não sanou falha evidente (a omissão da decisão embargada), terá o mesmo contrariado a lei federal (art. 535, II), devendo-se anular a decisão e determinar ao juízo de piso que profira outro acórdão, emitindo juízo de valor sobre as questões federais.

Quando toda essa verdadeira via crucis estiver completa, poderá a parte inter-por o RESP que gostaria de ter, originariamente, ajuizado.

O entendimento defendido pelo STJ na súmula 211 é inconstitucional por violar o princípio constitucional da duração razoável do processo. Exigir que a pes-soa se utilize de dois recursos especiais até conseguir obter a tutela jurisdicional esperada, sabendo-se do abarrotamento de processos que atinge o STJ, é um excesso que colide contra o princípio citado.

Ao cabo de todas as informações trazidas sobre o prequestionamento, um alerta a advogados e aos magistrados em exercício nos tribunais de justiça e nos tribunais regionais federais: como o prequestionamento apresenta peculiaridades em se tratando de recurso extraordinário e de recurso especial, é preciso observar essas diferenças antes de se concluir que (i) o prequestionamento já existe no caso concreto e que (ii) os embargos de declaração são mero instrumento de protelação.

Por outro lado, é dever do julgador aplicar a multa do art. 538, parágrafo úni-co, caso o prequestionamento, de fato, já exista e a parte tenha se utilizado mesmo

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Recurso Especial e Recurso Extraordinário

assim dos declaratórios. Mas a multa deve vir acompanhada de uma explicação sobre o tema do prequestionamento, a fim de que tenha um caráter didático, visto que muitos somente aprendem dessa forma.

2.1.3. Questões de fato e os recursos excepcionais (súmulas 5 e 7 do STJ; 279 e 454 do STF)

O presente item tem por intuito tratar de uma restrição cognitiva dos recursos excepcionais: a reavaliação de questões fáticas. As quatro súmulas mencionadas no título representam duas facetas dessa vedação, devendo-se ressaltar que as súmulas 5 e 454 tratam de uma dessas facetas e as súmulas 7 e 279 de outra.

Como introdução, transcrevem-se os enunciados:

STJ STF

5. A simples interpretação de cláusula contra-tual não enseja recurso especial.

279. Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário.

7. A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.

454. Simples interpretação de cláusulas con-tratuais não dá lugar a recurso extraordinário.

Como afirmado acima, existe uma espécie de unidade teleológica entre as sú-mulas 5 e 7 do STJ, bem como entre as súmulas 454 e 279 do STF, ou seja, todas têm a mesma razão de ser: a vedação à revisão do aspecto fático do direito subjetivo objeto de tutela, em sede extraordinária, já que o RESP e o RE têm uma finalidade distinta e única no sistema jurídico, que é manter a coesão do ordenamento jurídico em situações-tipo, a fim de que o direito não se torne fragmentado. O REsp e o RE são responsáveis diretos pela própria manutenção da higidez do Estado de Direito, tendo importante papel cívico.

Identificado o ponto comum que une todas as súmulas mencionadas, é hora de avaliar suas peculiaridades.

2.1.3.1. As súmulas 5 do STJ e 454 do STFNão há dúvidas de que se utilizar de recurso excepcional para o fim de reava-

liar a intenção das partes ao contratar – ou seja, para interpretar o que quer dizer a cláusula de um contrato – significa revolver a matéria fática, o que atenta contra a finalidade do RE e do RESP.

Trata-se de uma súmula frequentemente utilizada na prática forense do STF19 e do STJ20, sendo motivo determinante para o não conhecimento do RE e do RESP,

19. Nesse sentido: AgRg no AI 790533, Rel. Min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, DJe 03/09/2010; AgRg no RE 242.816, Rel. Min. Ayres Britto, Primeira Turma, DJe 06/08/2010; AgRg no AI 475917, Rel. Min. Cezar Peluso, Segunda Turma, DJe 26/02/2010.

20. Nesse sentido: AgRg no Ag 990.192/PR, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, Quarta Turma, DJe 09/03/2009; AgRg no Ag 948.207/RJ, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe 26/02/2009.