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CAPITALISMO E COLONIZAÇÃO NA LONGA DURAÇÃO DO ATLÂNTICO PORTUGUÊS (um rascunho) Maximiliano M. Menz 1. Senhorialismo: a base da expansão mercantil europeia. Um dos problemas fundamentais da historiografia clássica brasileira estava na confusão entre comércio e capitalismo. Sendo assim, e retomando o “debate da transição”, é importante separar as práticas mercantis, que precedem o modo de produção capitalista, do capitalismo propriamente dito (caracterizado pelo comando do capital sobre o trabalho) 1 . O grande comércio no mundo senhorial estruturava-se sobre relações sociais não- capitalistas. Basta lembrar aqui o trabalho clássico de E. Kosminsky: este demonstrou que na Inglaterra do século XIII as áreas mais ligadas ao comércio de grãos eram caracterizadas pela grande propriedade e por prestações de trabalho tipicamente senhoriais 2 . É fato que durante o século XIV desapareceram os laços mais visíveis de servidão pessoal da Europa Ocidental 3 . No entanto, o senhorialismo, relação baseada na subordinação e na exploração extra-econômica dos camponeses por parte da nobreza 4 , ainda que em suas formas compósitas, caracterizou a paisagem agrária da Europa na Época Moderna. Mesmo em Portugal, apesar das antigas polêmicas sobre a existência do “feudalismo”, é consenso entre a historiografia mais recente a presença do senhorialismo durante a época moderna 5 . Desta perspectiva, a expansão marítima Ibérica a partir do século XV não pode ser vista como uma expansão do “capitalismo comercial”, mas sim como uma continuação da 1 Cf. HILTON, R. Introdução. A transição do feudalismo para o capitalismo. In: A Transição do Feudalismo para o Capitalismo. Um debate. São Paulo: Paz e Terra, 1977 e WOOD, Ellen Meiskins. A Origem do Capitalismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. Como de 2 Cf. KOSMINSKY, E. Studies in the Agrarian History of England in the Thirteenth Century, Oxford, Basil Blackwell, 1956, pp. 176-177. 3 Cf. ASHTON, T. H. e PHILIPIN, C.H.E. (eds.). El Debate Brenner. Estructura de clases agraria y desarrollo económico en la Europa preindustrial. Barcelona: Editorial Crítica, 1988. 4 Godechot sintetiza o problema entre os conceitos de feudalismo e senhorialismo e define feudalismo como “ un tipo de régimen que se caracterizaba por uma forma particular de propriedade, com frecuencia por la sevidumbre y siempre por el pago de los llamados censos feudales y señoriales” (GODECHOT, J. Prólogo. (1-3) In: GODECHOT, J, et. ali. La abolición del feudalismo en el mundo occidenatal, Madrid, Siglo XXI, p. 3). 5 Cf. MONTEIRO, Nuno G. A questão dos forais na conjuntura vintista. In: Elites e Poder, entre o Antigo Regime e o Liberalismo, (179-206). 2ª ed. Lisboa, ICS, 2007. Ver também HESPANHA, Antonio M. As vésperas do Leviathan. Coimbra, Almedina, 1994, pp. 352-437.

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CAPITALISMO E COLONIZAÇÃO NA LONGA DURAÇÃO DO

ATLÂNTICO PORTUGUÊS (um rascunho)

Maximiliano M. Menz

1. Senhorialismo: a base da expansão mercantil europeia.

Um dos problemas fundamentais da historiografia clássica brasileira estava na confusão

entre comércio e capitalismo. Sendo assim, e retomando o “debate da transição”, é importante

separar as práticas mercantis, que precedem o modo de produção capitalista, do capitalismo

propriamente dito (caracterizado pelo comando do capital sobre o trabalho)1.

O grande comércio no mundo senhorial estruturava-se sobre relações sociais não-

capitalistas. Basta lembrar aqui o trabalho clássico de E. Kosminsky: este demonstrou que na

Inglaterra do século XIII as áreas mais ligadas ao comércio de grãos eram caracterizadas pela

grande propriedade e por prestações de trabalho tipicamente senhoriais2.

É fato que durante o século XIV desapareceram os laços mais visíveis de servidão

pessoal da Europa Ocidental3. No entanto, o senhorialismo, relação baseada na subordinação

e na exploração extra-econômica dos camponeses por parte da nobreza4, ainda que em suas

formas compósitas, caracterizou a paisagem agrária da Europa na Época Moderna. Mesmo em

Portugal, apesar das antigas polêmicas sobre a existência do “feudalismo”, é consenso entre a

historiografia mais recente a presença do senhorialismo durante a época moderna5.

Desta perspectiva, a expansão marítima Ibérica a partir do século XV não pode ser vista

como uma expansão do “capitalismo comercial”, mas sim como uma continuação da

1 Cf. HILTON, R. Introdução. A transição do feudalismo para o capitalismo. In: A Transição do Feudalismo

para o Capitalismo. Um debate. São Paulo: Paz e Terra, 1977 e WOOD, Ellen Meiskins. A Origem do

Capitalismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. Como de 2 Cf. KOSMINSKY, E. Studies in the Agrarian History of England in the Thirteenth Century, Oxford, Basil

Blackwell, 1956, pp. 176-177. 3 Cf. ASHTON, T. H. e PHILIPIN, C.H.E. (eds.). El Debate Brenner. Estructura de clases agraria y desarrollo

económico en la Europa preindustrial. Barcelona: Editorial Crítica, 1988. 4Godechot sintetiza o problema entre os conceitos de feudalismo e senhorialismo e define feudalismo como “un

tipo de régimen que se caracterizaba por uma forma particular de propriedade, com frecuencia por la

sevidumbre y siempre por el pago de los llamados censos feudales y señoriales” (GODECHOT, J. Prólogo. (1-3)

In: GODECHOT, J, et. ali. La abolición del feudalismo en el mundo occidenatal, Madrid, Siglo XXI, p. 3). 5 Cf. MONTEIRO, Nuno G. A questão dos forais na conjuntura vintista. In: Elites e Poder, entre o Antigo

Regime e o Liberalismo, (179-206). 2ª ed. Lisboa, ICS, 2007. Ver também HESPANHA, Antonio M. As

vésperas do Leviathan. Coimbra, Almedina, 1994, pp. 352-437.

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expansão mercantil medieval de longuíssima duração, iniciada já no século XII e apenas

parcialmente interrompida pelo colapso agrícola do século XIV. É importante recordar ainda

que a expansão deveu muito ao espírito cruzadista que caracterizara o processo de reconquista

da Península Ibérica durante o século XIV; acreditavam os portugueses que pela costa da

África seria possível flanquear os muçulmanos e tomar contato com o Reino Cristão da

Etiópia. À nobreza portuguesa interessava a combater na África como modo de obter honra e

riqueza e servir ao Rei.6

A produção açucareira nos primórdios da colonização Atlântica também pode ser

interpretada por este prisma: o açúcar era produzido em pequena escala para o consumo

suntuário da nobreza europeia, validando o status e diferenciando o grupo senhorial dos

demais estamentos sociais7. Nas ilhas do Atlântico o açúcar era produzido em pequenas

propriedades – se comparadas à produção americana posterior –, com mão de obra mista de

escravos e trabalhadores obrigados e com a utilização de regadio, reproduzindo um padrão

mediterrânico8.

O cultivo de cana no Brasil, a partir da década de 1540, também ocorreu com mão-de-

obra mista, mas como realça Galloway, desde o início em uma outra escala, graças à

possibilidade de se constituírem grandes propriedades, da maior fertilidade das terras e das

chuvas mais regulares do nordeste brasileiro, em contraste com o terreno restrito e desigual

das ilhas do Atlântico. Assim, era possível empregar um maior número de braços e

praticamente foi abandonada a utilização de adubos e de irrigação9.

Segundo Stuart Schwartz, foi apenas nas duas primeiras décadas do século XVII que os

escravos africanos superaram os trabalhadores forçados da terra. Do lado da demanda, as

epidemias, particularmente graves durante a década de 1560, e as limitações ao cativeiro

6 Cf. THORNTON, J. The Portuguese in Africa. in: BETHENCOURT, F. e CURTO, D. Portuguese Oceanic

Expansion, 1400-1800. Cambridge: Cambridge University Press, 2007 e THOMAZ, L. F. A idéia imperial

manuelina in: DORÉ, Andréa, LIMA, L.F. e SILVA, L. G. Facetas do Império na História, conceitos e

métodos, (39-104). São Paulo, Hucitec, 2008, DELGADO, R. História de Anola, 1º vol. Luanda: Edições do

Banco de Angola, s/d, passim, 7 MINTZ, Sidney. Dulzura y Poder: el lugar del azúcar en la Historia Moderna. Mexico: Siglo XXI, 1996, pp.

129-137. 8 Cf. ROMERO MAGALHÃES, Joaquim. O açúcar nas ilhas portuguesas do Atlântico. Varia História, vol. 25,

n 41, (151-175), 2009. 9 GALLOWAY, J. H. Traditions and innovation in the American Sugar Industry, c. 1500-1800: An explanation.

Annals of the Association of American Geographers. Vol. 75, n3, sep. 1985, 334-351.

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3

indígena dificultavam o recrutamento de mão-de-obra nativa, já as inovações no

beneficiamento, com a introdução do “engenho de três palitos”, e os preços positivos, até

mais ou menos 1619, incentivavam a expansão da produção.

Do lado da oferta, as guerras de conquista de Angola, a partir de 1575, facilitaram a

conexão de Angola ao Brasil10

. Como mostram os dados de Leonor da Freire Costa, as zonas

de resgate de escravos no Atlântico Norte voltaram-se ao fornecimento da América

Espanhola, já as embarcações negreiras que tinham o Brasil como destino entre 1580 e 1640

partiam principalmente do porto de Luanda11

.

De acordo com Birmgham, durante os séculos XVI e XVII eram principalmente três as

formas de se obter os escravos: pela guerra, pelo tributo pago pelos sobados e pelo comércio.

O comércio movimentava conchas, sal, produtos europeus e asiáticos e diversas mercadorias

de origem europeia e asiática, além dos têxteis de produção africana; o produto português por

excelência no escambo era o vinho. As guerras e a ação armada comandada pelos

governadores eram, no entanto, essencial na manutenção da oferta de escravos12

.

A escravidão, vale lembrar, não chegou a ser uma inovação Atlântica: a presença de

escravos em Portugal, assim como em todo o Mediterrâneo, foi comum durante a Idade

Média; ao mesmo tempo, há quem procure nas formas de dependência pessoal preexistentes

na África os fundamentos da escravidão americana. Ademais, os “arcaísmos” do “sistema

colonial moderno” eram muitos: os planters do mundo lusitano eram senhores de engenho

aos quais se ligavam os lavradores de cana obrigada; as capitanias hereditárias eram “uma

concessão típica do senhorio português do final da Idade Média”.13

Os poderes tradicionais de Portugal foram favorecidos pela expansão: a colonização

conquistou milhares de almas para a Igreja, favoreceu a criação de cargos na administração

10 Cf. SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos. São Paulo: Cia das letras, p. 68. CASTRO, Antonio Barros de.

Brasil 1610: mudanças técnicas e conflitos sociais. Pesquisa e Planejamento Econômico, Rio de Janeiro, v. 10,

n. 3, 1980. 11

Retirei os dados de COSTA, Leonor. O Transporte no Atlântico e a Companhia Geral do Comércio do Brasil,

1580-1663, Lisboa, CNCDP, 2002, Vol. 2. Note-se que Angola também fornecia muitos escravos para as Índias

de Castela. 12

BIRMGHAM, David, Trade and Conflict in Angola. The Mbundu and their neighbours under the influence of

the Portuguese 1483-1790. Oxford: Clarendon Press, 1966 e ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos

Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 13

JOHNSON, Harold. A colonização portuguesa do Brasil, 1500-1580. in: BETHELL, História da Anérica

Latina, Vol. 1. (241-281), São Paulo: Edusp, 1998, p. 254.

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4

colonial à fidalguia e aos oficiais, gerou riqueza e postos de honra para os pequenos

proprietários e, finalmente, garantiu rendas para a monarquia, distendendo eventuais conflitos

entre o Rei e os demais corpos da sociedade portuguesa14

.

O veredito de Weber, acompanhado por parte da historiografia anglo-saxã, é que a

colonização portuguesa foi de tipo senhorial15

.

2. Os sentidos da colonização: senhorialismo e capital mercantil.

Mas vejamos isto com mais cuidado: os senhores de engenho produziam para um

mercado que era cada vez mais mundial, ao senhorialismo das capitanias hereditárias faltavam

os camponeses16

e os laços que prendiam senhores e lavradores eram contratos, geralmente de

curta duração, e não a tradição e o costume17

. No laboratório Atlântico as tentativas de repetir

as relações sociais europeias geravam coisas bem distintas18

. Além disso, ainda que a Coroa

tenha mantido o equilíbrio com os outros poderes na Península, procurou impedir sua

extensão às colônias pelo menos a partir do século XVII19

.

Ademais, faltou lembrar ainda que os homens de negócio foram um dos principais

agentes da colonização, ainda que o comércio não fosse uma esfera de atividades claramente

delimitada. Eram seus os navios que carregaram os padres, os nobres, os senhores e os

escravos, era sobre o movimento de suas mercadorias que a Coroa cobrava os impostos, eram

eles que transportavam as correspondências entre o centro lisboeta e as periferias coloniais.

Desde o início, portanto, uniam-se senhorialismo e capital mercantil, tanto do lado da

produção, pela presença de antigos mercadores entre a elite agrária colonial, como do lado da

comercialização, pela associação entre homens de negócio e governadores. Também no lado

do consumo observa-se esta aproximação, como nota S. Mintz “A medida que los poderosos

14 HESPANHA, Antonio M. As vésperas do Leviathan. Coimbra, Almedina, 1994, pp. 144-145.

15 WEBER, Max. Historia económica general. (1923) Mexico, FCE, 1997, p. 254 e GENOVESE, Eugenio. O

Mundo dos Senhores de Escravos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. 16

BLACKBURN, R. A Construção do Escravismo no Novo Mundo. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 139. 17

Cf. SCHWARTZ, op. cit., p. 250. 18

Cf. NOVAIS, Fernando. Condições da Privacidade na Colônia. In: História da Vida Privada no Brasil. Vol I.

Cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. 19

Basta recordar a retomada de capitanias e concessões originais (como os casos emblemáticos da capitania de

Pernambuco e do Reino de Angola).

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5

usaban cada vez más los distintos tipos de azúcar, los vínculos entre este consumo y las redes

mercantiles del reino se hacían más íntimos”20

.

É possível dizer, portanto, que com suas letras de câmbio e de risco, com suas contas

correntes e empréstimos a juros, os mercadores emprestavam ao negócio colonial uma

racionalidade e uma contabilidade capitalista. Ainda que antes do século XVIII a

contabilidade dos comerciantes portugueses provavelmente não fosse “moderna” pelos

critérios weberianos21

.

No entanto, os estudos sobre os homens de negócio, particularmente os coloniais,

mostram que mesmo no final do século XVIII e início do século XIX, a tendência era de

investirem os capitais obtidos no comércio em escravos e terras22

. O conservadorismo nos

investimentos dos mercadores na Época Moderna foi observado também por F. Braudel que

chamaria a compra de cargos, arrendamentos estatais e títulos de nobreza de “traição da

burguesia”23

. Ideia repisada por Vitorino Magalhães Godinho ao tratar da sociedade

portuguesa: as causas do bloqueio “à burguesia” eram a predominância numérica do clero e

da nobreza frente a uma “contracção da população ocupada na produção de subsistência de

base” e as formas de mentalidade “arcaizantes” ligadas a esta estrutura24

.

Parece-me, porém, que o problema está colocado de modo equivocado, pois os

investimentos em terras e escravos na colônia, ou em propriedades rurais e arrendamentos de

impostos na Metrópole eram, seguramente, os mais seguros e racionais25

. Há, portanto, uma

20 MINTZ, op. cit. , p. 130.

21 Cf. WEBER, op. cit., p. 236. Basta lembrar as tentativas de Pombal em estabelecer o uso de partidas dobradas

na contabilidade dos homens de negócio portugueses. 22

Cf. FRAGOSO, João e FLORENTINO, Manolo. O Arcaísmo como Projeto. Mercado atlântico, sociedade

agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia Rio de Janeiro, c. 1790 – c. 1840. 4ª ed. revista. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 23

Cf. BRAUDEL, F. El Mediterraneo.(1946), 2ª ed., Mexico: FCE, 1997, p.99. 24

Cf. GODINHO, V. M. A estrutura na antiga sociedade portuguesa. Lisboa, Arcádia, 1971, p. 93 25

Schwartz estima a taxa de lucro da produção açucareira entre 5 e 10% (SCHWARTZ, op. cit., p. 204), já os

contratos poderiam gerar retornos bem mais altos: Pedreira calculou o lucro líquido do contrato do pescado seco

em 20% entre 1767 e 1772, já Helen Osório estimou as taxas de lucro dos contratos do Rio Grande do Sul no

final do século XVIII e início do XIX entre 17,4% e 28,2%. Gustavo Acioli encontrou taxas bem menos

significativas para o dízimo do açúcar na primeira metade do século XVIII, entre 1 e 4,6% anual. Todas estas

estimativas, podem ser comparadas com os estimativas da lucratividade no tráfico de escravos que podiam variar

entre 3 e 16%. (OSÓRIO, Helen. Estancieiros, Lavradores e Comerciantes na Constituição da Extremadura

Portuguesa na América: Rio Grande de São Pedro, 1737-1822. Niterói: Tese de doutorado, UFF, 1999, p. 227,

LOPES, Gustavo Acioli. Negócio da Costa da Mina e comércio atlântico - tabaco, açúcar, ouro e tráfico de

escravos: Pernambuco (1654-1760). São Paulo, USP [tese de doutorado], 2008, p. 26, MENZ, Maximiliano. A

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6

contrariedade nos papeis desempenhados pelos mercadores no desenvolvimento do

capitalismo, “revolucionário” em certas circunstâncias e “reacionário” em outras. Mas esta

contrariedade é aparente, pois os mercadores buscavam apenas os lucros e estes dependiam

das relações sociais de produção às quais o capital mercantil conectava-se. Ressalto que a

transitoriedade na profissão de mercador no Antigo Regime estava ligada ao caráter das

relações de produção; mas isto não modifica o fato que era a busca do lucro que orientava as

suas operações na esfera mercantil26

.

Seja como for, não basta julgar a colonização portuguesa única e exclusivamente sobre

os seus efeitos ao espaço econômico ibérico. Aqui vale citar a opinião de Eugene e Elizabeth

Fox-Genovese:

The history of capitalism as a world-conquering mode of production cannot be separated

from the creation of a world market, but the emergence of that market must be understood as

new quality, not as a mere quantitative extension of older long-distance markets in luxuries

and other goods specific to the seigneurial ruling class and even the early national state27

.

A expansão ibérica deu uma escala global aos mercados28

, não obstante, tratava-se

ainda de um mercado baseado na comercialização de produtos luxos. A produção açucareira

no Brasil estabeleceu um padrão ligeiramente distinto, fato que é comprovado pelas suas

inovações técnicas e pela expansão do mercado graças aos ganhos de produtividade e

decorrente diminuição dos custos. Enquanto as exportações do açúcar da ilha da Madeira,

depois de um pico de 230 mil arrobas em 1508, vegetava nas 36 mil arrobas anuais no final

do século XVI, a produção no Brasil saltará das 350 mil arrobas para algo em torno das 1

milhão de arrobas anuais entre 1580 e 1600. Enquanto os 60 engenhos de São Tomé

produziam 2.500 arrobas cada um por volta de 1540-1541, no final do século XVI e início do

Companhia de Pernambuco e Paraíba e o funcionamento do tráfico de escravos em Angola (1759-1775/80).

Artigo inédito, em anexo, PEDREIRA, Jorge. Os Homens de Negócio da Praça de Lisboa de Pombal ao

Vintismo (1755-1822). Diferenciação, reprodução e identificação de um grupo social. Lisboa: Universidade

Nova de Lisboa, 1995, p. 152. 26

Por isto acredito que tanto de um ponto de vista weberiano, como de um ponto de vista marxista, podemos

considerar os homens de negócio da época Moderna como “capitalistas”. No primeiro caso, o mercador se

enquadraria num “tipo ideal” capitalista (lembrando que este não existe na sua forma concreta), porque suas

operações visavam essencialmente o lucro. No segundo caso, o capital mercantil é um capital (é valor que se

valoriza), mas este não penetra no mundo da produção. 27

GENOVESE, E. FOX-GENOVESE, E. Fruits of Merchant capitalism. New York, oxford university press,

1983, p.4 28

Cf. SMITH, Adam. A Riqueza das Nações (1776). Vol. I, São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 373.

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7

século XVII os engenhos brasileiros produziam uma média entre 3.500 e 4.500 arrobas

anuais29

.

A verdade é que o consumo de açúcar brasileiro expandiu-se apenas para as bordas da

sociedade senhorial. No seu teto, a exportação de açúcar brasileiro daria para fornecer apenas

760 gramas de açúcar per capta à Europa Ocidental30

. O mercado de massas para os produtos

coloniais é, portanto, uma realidade do século XVIII, engendrada no conjunto do Império

inglês, sobre o qual direi algumas palavras31

.

De todo o modo, é um equívoco falar em “projeto arcaizante” para a colonização

portuguesa tendo em vista a verdadeira “revolução” produzida pelo capital mercantil no

Atlântico Português, onde havia terras livres, ausência de servidões coletivas e mão-de-obra

disponível através do comércio de homens. No entanto, a passagem de uma economia

senhorial a uma economia capitalista e industrializada não ocorreu na Península Ibérica

fundamentalmente por causa de suas condições “internas”, revelando, por assim dizer, o

caráter conservador do capital mercantil. Configura-se assim na colonização portuguesa uma

espécie de “modernidade possível” para os séculos XVI e XVII presidida pelo capital

mercantil.

Mas como sintetizar analiticamente a experiência colonizadora lusitana nos seus dois

primeiros séculos, particularmente em seus desdobramentos americanos? A unidade entre

Portugal e seus domínios era, num primeiro nível, política e institucional: o serviço nas

conquistas estreitava o laço do monarca com os seus súditos do Ultramar e eram reproduzidas

as instituições lusitanas (câmaras, santa casas de misericórdia, etc.) nas colônias, mas, como

já foi dito, era o capital mercantil que organizava os fluxos e dava unidade ao diverso. Um

império mercantil.

29 Dados da produção da Madeira e de São Tomé retirados de ROMERO MAGALHÃES, op. cit. pp. 159-160 e

p. 171 Dados para o Brasil, ver SIMONSEN, Roberto. História Econômica do Brasil. 3ª ed., São Paulo: Cia.

Editora Nacional, 1957, p. 114, SCHWARTZ, op. cit., p. 150. Simonsen dá valores entre 1e 4 milhões de

arrobas para o início do século XVII. Creio, porém, que é improvável que a produção brasileira tenha

ultrapassado em muito a 1 milhão de arrobas neste período. 30

Calculando uma exportação de 4 milhões de arrobas em 1610, que julgo bastante exagerada como já expressei,

segundo número de SIMONSEN, op. cit., p. 114 e uma população de 75,9 milhões, segundo Kriedte (apud:

ROMANO, Ruggiero. Coyunturas opuestas. Mexico: FCE, 1993, p. 32). 31

Aliás, como nota Mintz: “La declinación de la importância simbólica del azúcar ha ido a la par com el

aumento de su importância económica e diteática. A medida que se hacia más barato y abundante, su potencial

como símbolo de poder cayó, mientras que su potencial como fuente de ganancia fue aumentando

gradualmente.” MINTZ, op. cit., p. 135.

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8

3. A Inglaterra. Estrutura de propriedade na agricultura e colonização.

A historiografia marxista recente vem afirmando que o impulso para o desenvolvimento

do capitalismo surgiu em regiões restritas da Europa Ocidental, nos Países Baixos e

principalmente na Inglaterra. Foi na Inglaterra onde ocorreu um processo irreversível de

dissociação entre o produtor direto e os meios de produção, com a decorrente consolidação de

uma relação social de produção baseada na subordinação do trabalho ao capital.

Os fundamentos das mudanças estavam na agricultura, pela dissolução da economia

camponesa e pela geração de um novo modo de produção que permitiu a geração de

excedentes de mão-de-obra, matérias prima e alimentos, condições necessárias para a

Revolução Industrial do final do século XVIII32

.

As transformações na agricultura inglesa têm origens no que alguns autores da tradição

marxista chamaram de declínio da servidão e decorrente “crise do feudalismo” 33

. Como se

sabe, o colapso demográfico do século XIV e as revoltas camponesas fizeram que a servidão

caísse em desuso por toda a Europa Ocidental. Mas a evolução nas relações agrárias foi

bastante desigual: na Inglaterra os senhores conseguiram apropriar-se das terras livres,

abandonadas durante o século XIV, que passaram a ser controladas de modo contratual;

também as terras dos antigos domínios passaram por um processo parecido34

.

Já no século XVI, tem início o que a historiografia convencionou chamar de

cercamentos, estimulados pelo crescimento do comércio de lã. Sucede assim um processo de

longa duração com a concentração das parcelas de terras abertas em blocos unidos e

compactos, conversão de terra de agricultura em prados e a ampliação do perímetro das terras

dos grandes proprietários e dos yeomen em detrimento dos terrenos comunais35

. O resultado,

segundo Ellen Wood, foi que:

um número crescente [de arrendamentos] ficou sujeito a aluguéis pagos em dinheiro –

aluguéis fixados não por padrões legais ou consuetudinários, mas pelas condições do

mercado. Havia, de fato, um mercado de arrendamentos. Os arrendatários eram obrigados a

32 Cf. O‟BRIEN, P. Inseparable connections: trade, economy, fiscal state, and the expansion of Empire, 1688-

1815. (53-77). MARSHALL, P. J. (ed.) The Oxford history of the British Empire, the eighteenth century. New

York: Oxford University Press, 1998. 33

Cf. HILTON, R. H. The Decline of Serfdom in Medieval England. London, MacMillan, 1969. 34

BRENNER, R. Estructura de clases agrarias y desarollo económico en la europa preindustrial. In: ASHTON,

T. H. e PHILIPIN, C.H.E. (eds.). El Debate Brenner. Barcelona: Editorial Crítica, 1988. 35

SLICHER VAN BATH, B. Historia Agraria de Europa Ocidental, 500-1850. 2ª ed. Barcelona, ediciones

península, 1978, p.

Page 9: capitalismoecolonização

9

competir não só no mercado de consumidores, mas também num mercado de acesso à terra.

Quando a segurança do arrendamento dependia da capacidade de pagar o aluguel vigente, a

produção não competitiva podia significar a perda direta da terra. Para fazer frente aos

pagamentos monetários, numa situação em que outros arrendatários potenciais competiam

pelos mesmos arrendamentos, os arrendatários eram obrigados a produzir por um custo

eficiente, sob pena de serem desapropriados36

.

Mas o processo dos cercamentos teve um efeito secundário e não menos importante. A

população rural pobre na Inglaterra, geralmente proprietária de pequenas parcelas de terras

que mal serviam para sustentar a família, e os pequenos artesãos rurais dependiam dos

comuns para complementar a sua renda. A população rural, privada do acesso à parte de seus

meios de subsistência, precisou se engajar no trabalho rural sazonal. Tal situação se

consolidou no final do século XVIII quando a tríade latifundiários, arrendatários capitalistas e

trabalhadores assalariados tornou-se a estrutura característica do campo inglês37

.

A formação de um “capitalismo agrícola”, para usar a expressão de Ellen Wood, na

Inglaterra e as transformações na organização estatal38

daquele país, sustentaram a expansão

comercial e o crescimento do Império a partir da segunda metade do século XVII. A renda

gerada pela maior produtividade agrícola criou a demanda pelos produtos coloniais e, de

modo indireto, a expansão da exportação de produtos manufaturados ingleses para as colônias

como pagamento pelas importações de açúcar e tabaco39

. As inovações na taxação e na

organização da dívida pública a partir da Revolução Gloriosa garantiram a hegemonia

colonial inglesa frente à concorrência das demais nações da Europa40

.

No entanto, não se deve dar um protagonismo exclusivo para a agricultura, pois como

argumenta Blackburn:

Sem desenvolvimento industrial concomitante, os aperfeiçoamentos agrícolas teriam criado

mais desemprego e poderiam ter afundado o próprio avanço agrícola ao negar-lhe um fluxo

de implementos e um mercado preparado41

.

36 WOOD, op. cit. p. 84.

37 ID. E é a pressão da concorrência que levará aos arrendatários ingleses a adotarem o “sistema Norfolk”,

caracterizado pela rotação quadrienal das culturas e da conjugação de cultivo de cereais com a criação de gado

(cf. FONTANA, J. Introdução ao Estudo da História Geral. Bauru, Edusc, 2001., p. 118). 38

Cf. O‟BRIEN, op. cit. 39

Como nota Brenner, o comércio inglês se expandiu nos séculos XVI e XVII graças ao aumento das

importações (BRENNER, R. Merchants and Revolution. London: Verso, 2003, pp. 3-50). 40

ID. 41

BLACKBURN, op. cit., p. 643.

Page 10: capitalismoecolonização

10

Neste sentido, há uma transição importante entre a “modernidade possível” lusitana e o

capitalismo inglês, particularmente no que diz respeito à experiência colonial. Foi na década

de 1650 que a produção de açúcar deslanchou no Caribe graças à fuga em massa dos

holandeses, oriundos da carreira sul-atlântica. Os refugiados da restauração pernambucana

trouxeram para Barbados a experiência com a produção açucareira e o tráfico de escravos: em

1638 eram 2.000 indenturent servants e 200 escravos, em 1653 a população de trabalhadores

da ilha passou para 20.000 escravos e 8.000 indenturent servants42

.

De acordo com Richard Sheridan, uma “revolução do açúcar” atravessou Barbados

entre 1640-1660, estendendo-se mais tarde para outras ilhas. Esta revolução consistiu na

transformação das pequenas fazendas de tabaco em grandes propriedades de uso intensivo de

capital e trabalho que produziam açúcar e rum para o mercado externo; na dependência frente

à importação de mercadorias, alimentos, serviços financeiros e de transporte; na mudança

para o uso de mão de obra escrava africana; no surgimento de uma oligarquia proprietária

conectada ao governo inglês; na transformação dessas colônias em uma das principais fontes

de disputa entre as potências europeias43

. A revolução, porém, não foi apenas o resultado de

do transplante da experiência açucareira no Atlântico-sul, mas a combinação desta com novos

hábitos e práticas mercantis originadas a partir da economia inglesa44

.

Os dados sobre as plantations das Índias Ocidentais Britânicas mostram diferenças

quantitativas importantes: nas fazendas inglesas, ao que tudo indica, os plantéis de escravos

eram maiores e o uso da terra mais intensivo, resultando numa produtividade superior às suas

ancestrais brasílicas45

. No final do século XVII o açúcar de produção inglesa dominava o

mercado europeu, fornecendo quase 50% do produto consumido na Europa Ocidental46

.

42 Cf. BLACKBURN, op. cit. pp. 279-281.

43 SHERIDAN, R. The Formation of Caribbean Plantation Society. (394-414). MARSHALL, P. J. (ed.) The

Oxford history of the British Empire, the eighteenth century. New York: Oxford University Press, 1998 p. 395. 44

Cf. Cf. DUNN, R. Sugar and Slaves. New York: Norton Library, 1973, p. 65. 45

A comparação entre produtividade é bastante complexa, pois seria necessário levar em consideração as

diferentes conjunturas, regiões, a quantidade produzida de açúcar branco e mascavo e a produção de bebidas

alcóolicas (rum e cachaça) sobre a qual não temos dados comparáveis. Os dados reunidos por Schwartz - que

calcula a produção média pelo número de engenhos em diferentes capitanias do Brasil e em um período que vai

de 1610 até 1786 (mas com uma maior incidência sobre a Bahia) -, apontam uma produtividade que giraria entre

1.034 e 4.762 arrobas por engenho (excluídas duas estimativas absurdas). Por sua vez, dados de Richard

Sheridan para a Jamaica durante o século XVIII permitem calcular uma produção média entre 3.773 e 5.159

arrobas por engenho (ainda que estes números devam ser encarados com reserva, pois dependem de uma

conversão de hogshead para arrobas). O curioso é que a tendência da produtividade dos engenhos brasileiros é

Page 11: capitalismoecolonização

11

Mais importante ainda era a maior integração das primeiras com a economia inglesa.

As plantations caribenhas compravam têxteis, ferragens, produtos manufaturados em geral,

transporte e serviços financeiros da Metrópole, enquanto que os alimentos e parte do

transporte passaram a ser adquiridos nas colônias do continente durante o século XVIII47

.

Além disso, o açúcar era refinado na Inglaterra, favorecendo um ramo específico da indústria

metropolitana48

. Na síntese de R. Balckburn:

O comércio com as colônias quebrou o padrão anterior, no qual a Inglaterra só tinha uma

manufatura de exportação: tecidos de lã. As colônias importavam pregos, panelas, fivelas,

ferramentas e utensílios de todos os tipos, além de vários produtos têxteis. Os Atos de

Navegação não só canalizaram os produtos das plantations para a metrópole mas garantiram

a transformação das colônias em grandes consumidoras de mercadorias inglesas. Eles

possibilitaram um padrão de comércio multilateral entre a Inglaterra, a África, a zona de

plantation e as colônias americanas mais ao norte. A Nova Inglaterra e a Pensilvânia tinham

poucos produtos para exportar para a Inglaterra; isso poderia fazer delas um mercado pobre

para o exportador inglês. Mas o sistema colonial permitiu-lhes conseguir um excedente com

a venda de provisões para as plantations e a construção de navios para o comércio atlântico;

com este excedente puderam comprar, e compraram, produtos manufaturados ingleses49

.

Também na organização do tráfico de escravos observam-se mudanças: no negócio

lusitano a obtenção de escravos não se dissociou da guerra até bem entrado o século XVIII,

outrossim, a participação dos produtos nacionais portugueses era negligenciável, com a única

exceção do vinho. No tráfico inglês, desde o seu estabelecimento regular, eram introduzidas

manufaturas de fabricação nacional no negócio50

.

negativa, ou seja, os números referentes ao século XVII são maiores, enquanto que a jamaicana é positiva. É

possível que a diminuição da produtividade do açúcar no Brasil tenha sido causada pelo aumento na produção da

jeribita que ocorre no final do século XVII com o seu uso no tráfico de escravos (Dados em SCHWARTZ, op.

cit., p. 150 e SHERIDAN, R. B. The Wealth of Jamaica in the Eighteenth Century. The Economic History

Review, New Series, Vol. 18, n 2 (1965), 292-311, p. 303, Sobre a cachaça, ver CURTO, José C. Álcool e

Escravos. O comércio luso-brasileiro do álcool em Mpinda, Luanda e Benguela durante o tráfico atlântico de

escravos (c. 1480-1830) e o seu impacto nas sociedades da África Central e Ocidental. (trad.) Lisboa: Vulgata,

2002). 46

Cf. DUNN, R. Sugar and Slaves. New York: Norton Library, 1973, p. 48 e 210-211. 47

Vale dizer que parte da renda obtida pelas colônias da Nova Inglaterra sobre as Índias Ocidentais era utilizada

para pagar a importação de manufaturados da metrópole. 48

Sobre os diferentes estímulos das plantations à economia inglesa, ver SHERIDAN, R. B, The Wealth op. cit. ,

esp. p.305. 49

BLACKBURN, op. cit. p. 323. 50

Cf. DAVIES, K. G. The Royal African Company. (2a ed.), New York: Atheneum, 1970 e INIKORI, Joseph,

Slavery and the revolution in the cotton textile production in England. (145-182) in: INIKORI, Joseph and

ENGERMAN, Stanley. (eds.). The Atlantic Slave Trade: Effects on Economies, Societies, and Peoples in Africa,

the Americas, and Europe. (1-21). Durham/London: Duke University Press, 1992

Page 12: capitalismoecolonização

12

Por último, a plantation inglesa revolucionou o mercado de consumo: de um produto de

luxo o açúcar tornou-se um acompanhante indispensável (ao lado do café e do chá) à nova

sociabilidade burguesa do fim do século XVII e início do século XVIII. Para a década de

1690 Carole Shammas calcula que as importações inglesas de açúcar poderiam fornecer

produto suficiente para ¼ da população adulta inglesa51

.

Ressalte-se que a “nova plantation” das Índias Ocidentais não era apenas resultado das

forças produtivas capitalistas produzidas na metrópole ou então da mentalidade “mais

capitalista” dos planters ingleses, aliás, espero já ter demonstrado o equívoco de expressões

deste tipo. Pois o estímulo para o crescimento da produtividade vinha em grande parte da

concorrência pelo mercado do continente onde o açúcar inglês disputava com a produção de

Saint-Domingue e do Brasil52

. Mais um ponto de confluência entre a experiência colonizadora

lusitana e o “novo sistema colonial” britânico.

4. Portugal: da crise “geral” do século XVII à crise do ouro.

O surgimento da Inglaterra como potência colonial e econômica principal, após a

Guerra de Sucessão Espanhola, e o auge da produção de açúcar da América Portuguesa foram

separados por mais ou menos um século, quando ocorreram dois eventos de grande

transcendência para a Europa: a crise do século XVII e a Guerra dos 30 anos.

Na análise clássica de Hobsbawm, a crise afetou particularmente as zonas ligadas ao

Mediterrâneo que haviam sido beneficiadas pela expansão dos séculos XV e XVI. Zonas de

economias senhoriais, ligadas à produção de produtos de luxo, em que o investimento

geralmente tomava as vias das obras urbanas e da compra de propriedades senhoriais. Zonas

estas onde o tradicionalismo das relações sociais no campo teria produzido uma crise “de tipo

antigo”, com a queda na produção rural e decorrente crise demográfica. No noroeste da

Europa, onde predominavam as já referidas relações sociais capitalistas, os resultados da crise

foram bem diferentes, a aceleração nas transformações do campo, o recrudescimento da

51 Apud: BLACBURN, op. cit.

52 Sobre a concorrência, particularmente a francesa, cf. Sheridan, op. cit. 406-409.

Page 13: capitalismoecolonização

13

“proto-indústria” rural, o surgimento de um novo tipo de colonialismo e a “captura” dos

mercados tradicionais pelos mercadores e pelas marinhas holandesa e inglesa53

.

Importa aqui discutir os efeitos da crise e da guerra dos 30 anos sobre o complexo

Atlântico português: em primeiro lugar, a guerra teve como efeito imediato a dissolução de

certos arranjos institucionais e mercantis que favoreciam os grupos mercantis multinacionais

no interior do Império Habsburgo. Em 1591 a expulsão dos rebeldes da Holanda e Zelândia

do comércio direto com o Brasil, reiterada pela proibição ao acesso dos domínios coloniais

portugueses pelos navios estrangeiros em 1605, definiu o exclusivo metropolitano, reiterado

durante os dois séculos seguintes.

Estas medidas não chegaram a excluir de todo os grupos mercantis cristãos-novos que

atuavam desde Amsterdam e Lisboa no comércio de açúcar, mas obrigaram a uma

reorganização nos métodos de comercialização e financiamento, ademais, segundo Leonor

Freire Costa o seu resultado do ponto de vista da proteção à indústria naval portuguesa foi

efetivo54

. Vale dizer que apenas mais tarde desenvolveram-se as reflexões mercantilistas,

particularmente entre autores ingleses e franceses, retardatários no processo de expansão

colonial, mas que terão forte influência sobre as políticas e o pensamento português depois da

Restauração55

.

Outro desdobramento da guerra foi a intervenção das Províncias Unidas no Atlântico-

Sul entre 1621 e 1654, capturando portos no Brasil na Costa da África, isto num momento em

que os preços do açúcar já reagiam à queda demanda europeia, nos princípios da crise geral

do século XVII. Só que a guerra na verdade salvou o negócio do açúcar de mergulhar na

depressão, pois a destruição do parque produtivo, as perdas pelo corso e as demoras nas frotas

53Cf. HOBSBAWM, E. A crise geral da economia europeia no século XVIII. (7-76), in: As Origens da

Revolução Industrial. São Paulo: Global, 1979. Ver também ROMANO, Ruggiero. Coyunturas opuestas.

Mexico: FCE, 1993 que considera a que a crise não afetou a América. 54

Cf. Cf. PUNTONI, Pedro. A Mísera Sorte. A escravidão africana no Brasil Holandês e as guerras do tráfico no

Atlântico-sul, 1641-1648. São Paulo: Hucitec, 1999, pp. 32-58 e COSTA, op. cit., p. 142 e passim. 55

Cf. WILSON, Charles. „Mercantilism‟: some vicissitudes of an Idea. The Economic History Review, New

Series, Vol. 10, no. 2 (1957), pp. 181-188, SCHMOLLER, Gustav. The Mercantile System and its Historical

Significance (1884). Evergreen Review, 2008, 55

CLEMENT, Alain. English and French mercantilist thought

and the matter of colonies during the 17th century. Scandinavian Economic History Review, Vol 54, no. 3, 2006

(291-323), MACEDO, Jorge B. Mercantilismo. in: Joel Serrão (dir). Dicionário de História de Portual. Porto:

Liv. Figueirinhas, T-III, 2002, p. 272 e CARDOSO, José L. Pensar a Economia em Portugal: Digressões

Históricas. Lisboa: Difel, 1997, pp. 59-80.

Page 14: capitalismoecolonização

14

dificultavam o abastecimento de produtos coloniais à Europa, aumentando as margens de

preços entre os dois continentes e incentivando o investimento na produção em novas áreas56

.

O fato é que a crise atrasou-se por mais ou menos cinquenta anos, até cair com peso

sobre o conjunto do Império português. Assim, se entre 1650 e 1660 Portugal enfrentou os

custos crescentes da guerra de Restauração, nas duas décadas seguintes os problemas se

estenderam em razão de uma forte crise econômica, afetando as receitas do Estado e a balança

de pagamentos; reflexos de uma redução geral nos preços dos produtos coloniais, açúcar,

tabaco e cravo, e da diminuição do comércio de sal português que trazia saldos de prata ao

Reino.

A pressão sobre as receitas do Estado obrigaram à monarquia a procurar novas fontes de

renda, gerando impostos sobre o produto interno e procurando reestabelecer o comércio com a

Índia57

. Além disto, foram colocados em prática os projetos do Conde de Ericeira e do

marquês da Fronteira para criar manufaturas sob o patrocínio Real, as leis suntuárias de 1677

e a desvalorização da moeda de 1688.

A relação de preços favoreceu os produtos manufaturados em detrimento das mercadorias

coloniais, estimulando a transferência dos capitais do comércio para as manufaturas e gerando

um surto manufatureiro em Portugal. A industrialização portuguesa de finais do século XVII

foi, contudo, um “voo de galinha”, a retomada nos preços dos produtos coloniais e a

descoberta do ouro no interior do Brasil recuperaram a capacidade portuguesa de importar58

.

Também as receitas produzidas pelos quintos permitiu congelar as reformas no aparato fiscal

português. Seria necessário esperar a ascensão de Pombal e uma nova crise econômica para as

reformas serem retomadas59

.

Por sua vez, o Tratado de Methuen (1693) garantiu mercado para o vinho português. Com

mercados e lucratividade certos os capitais voltaram a se concentrar no comércio colonial e na

vinicultura. Os têxteis ingleses invadiram Portugal e a comunidade mercantil inglesa passou a

56 Cf. ROMANO, op. cit., COSTA, op. cit. p. 218.

57 Cf. CARRARA, Angelo. As receitas imperiais portuguesas. Estruturas e conjunturas, working paper, p. 13.

Ver Ainda HESPANHA, op. cit., p. 142. 58

Toda esta descrição da crise é baseada em GODINHO, Vitorino M. Portugal, as frotas do açúcar e as frotas do

ouro (1670-1770). in: Ensaios II (295-315), Lisboa: Livraria Sá e Costa, 1968. 59

HESPANHA, op. cit.

Page 15: capitalismoecolonização

15

fornecer as mercadorias necessárias para atrair o metal amarelo para a Europa durante o

século XVIII60

.

A superação da crise do século XVII teria sido um primeiro “momento crucial no

subdesenvolvimento português” pela industrialização e a reforma do Estado perdidas? A

historiografia dos séculos XIX e XX gastou rios de tinta no debate a respeito dos efeitos do

Tratado de Methuen e do colapso das experiências manufatureiras durante o reinado de D.

Pedro II61

; já as pesquisas mais recentes de Hespanha e Carrara permitem colocar a questão

do ponto vista da fiscalidade e da organização estatal (ou seja, com a descoberta do ouro se

reduziriam os impulsos para uma modernização fiscal e do Estado).

Aliás, esta “imobilidade” da economia portuguesa na primeira metade do século XVIII

verifica-se por uma população praticamente estagnada, pela macrocefalia de Lisboa e pelo

peso das atividades tradicionais, de modo que o ouro favoreceu principalmente a vinicultura62

.

O fato a ser destacado por enquanto é a impossibilidade de Portugal absorver nesta

conjuntura os estímulos econômicos do império, de maneira que a relação entre colonização e

indústria nacional pode ser interpretada, nesses quadros, pela oposição. As coisas mudarão no

final do século XVIII, mas isto será avaliado depois. Portanto, na passagem do século XVII

para o XVIII o estímulo da colonização ao desenvolvimento industrial deve ser procurado

alhures.

A historiografia clássica procurou ressaltar os vínculos entre a economia inglesa e o

Império português, especialmente durante o “ciclo do ouro”. Dados reunidos por Virgílio

Noya Pinto mostraram a sincronia entre os défices da balança de pagamentos portuguesa, a

produção de ouro brasileira e as cunhagens de moeda em Londres63

. Também o papel da

60 GODINHO, As frotas, op. cit.

61 Para a interpretação tradicional sobre os efeitos negativos do Tratado de Methuen ver SIDERI, Sandro.

Comércio e Poder: Colonialismo informal nas relações anglo-portuguesas. Lisboa/Santos: Edições

Cosmos/Martins Fontes, 1978, para uma crítica PEDREIRA, Jorge. Estrutura Industrial e Mercado Colonial

Portugal e Brasil (1780-1830). Lisboa: Difel, 1994, pp. 41-43. 62

Ver PEDREIRA, Jorge. As conserquências económicas do Império: Portugal (1415-1822). Análise Social,

vol. XXXII, (146-147), 1998, (2º, 3º), 433-461. 63

PINTO, Virgílio Noya. O Ouro Brasileiro e o Comércio Anglo-português. São Paulo: Cia. Ed. Nacional,

1979,, pp. 288, 313. Cf. ainda FISHER, H. E. S. De Methuen a Pombal. O comércio anglo-português de 1700 a

1770. Lisboa: Gradiva, 1984.

Page 16: capitalismoecolonização

16

comunidade mercantil inglesa, estabelecida em Portugal, no financiamento do comércio com

o Brasil foi demonstrado por este e outros trabalhos64

.

As pesquisas mais recentes confirmam a imagem legada pelos historiadores do século

passado e enriquecem ainda mais o quadro. Rita Martins de Souza deu números à sangria de

metais preciosos na metrópole, os pagamentos externos teriam consumido com 72% das

emissões de ouro; já Leonor Freire Costa sugere que parte das remessas de ouro português era

na verdade investimentos no mercado de capitais de Londres, principalmente na dívida

pública e na South Sea Company65

. Mas apesar dos vínculos com a Inglaterra, a organização

do comércio tinha pouco que ver com as redes mercantis multinacionais do século XVI, pois

como registra Leonor F. Costa:

Os créditos a longo prazo concedidos a um grupo nacional que manobrava melhor as redes

brasileiras proporcionavam aos negociantes ingleses, no fecho dos circuitos, tanto o ouro

como a prata peruana (a que a colónia do Sacramento dava escoamento), vincando assim a

submissão dos restantes grupos nacionais ou estrangeiros às estratégias comerciais

inglesas66

.

Este comércio baseado em reexportações teve efeitos positivos sobre a economia

inglesa. Do ponto de vista do comércio, estimulou a navegação entre a Inglaterra e o sul da

Europa e, indiretamente, a ligação marítima com o norte-nordeste, visto que os déficits com o

Báltico eram saldados com moedas de origem ibérica. Observa-se, aliás, um efeito de

encadeamento sobre a indústria naval inglesa, pois uma boa parte dos seus insumos era

adquirida no norte da Europa. Do ponto de vista da agricultura, é importante lembrar que o

comércio anglo-português estava associado ao fornecimento de cereais a Lisboa, em razão das

deficiências da agricultura portuguesa. Já a produção manufatureira era claramente

estimulada, visto que os lanifícios foram uma parte importante das importações de Portugal.

64 CHRISTELOW, Allan. Great Britain and the Trades from Cadiz and Lisbon to Spanish America and Brazil,

1759-1783. In: HAHR. (2-29), nº 27, 1947, MANCHESTER, Alan K. Preeminência Inglesa no Brasil. São

Paulo: Brasiliense, 1973, p. 41, MAXWELL, Kenneth. Pombal e a nacionalização da economia luso-brasileira.

In: Chocolate, Piratas e Outros Malandros. Ensaios Tropicais. (125-156). São Paulo: Paz e Terra, 1999. 65

SOUZA, Rita M. Moeda e Metais Preciosos no Portugal Setecentista. Lisboa, Casa da Moeda, 2005, p. 245 e

COSTA, Leonor F. In: LAINS, Pedro e SILVA, Álvaro F. (org.). História Económica de Portugal. Vol I. [o

século XVIII]. (263-298) Lisboa: ICS, 2005, p.269. 66

COSTA, op. cit., 2005, p. 282.

Page 17: capitalismoecolonização

17

Finalmente, o próprio Estado e as instituições financeiras associadas absorveram ouro e

capitais lusitanos67

.

Até agora sugeri a contribuição do ouro sobre a economia inglesa no sentido do

desenvolvimento do capitalismo, ainda que, como já procurei deixar claro, estes efeitos

econômicos positivos tenham a ver com as transformações estruturais que esta sociedade

vinha sofrendo a partir “de dentro”. Também chamei a atenção para a aparente “imobilidade”

da estrutura social portuguesa durante a primeira metade do século XVIII. Falta abordar as

repercussões da descoberta aurífera no Brasil.

Comecemos pela população, no longo século do ouro a população brasileira saltou de

aproximadamente 200 mil habitantes no final do século XVII para 1.555.200 pessoas no ano

de 1776, quando já se enfrentava a depressão aurífera. Crescimento para dentro, tendo em

vista que a capitania de Minas Gerais era a mais populosa neste final de século; já a Bahia que

no final do Seiscentos concentrava em torno de metade da população (100 mil), havia

crescido bastante, mas nada comparável com a expansão do sertão, 288.648 habitantes em

177668

. De resto, a historiografia já escrutinou a maior parte dos efeitos do rush minerador: a

maior integração dos mercados coloniais, o crescimento no preço dos escravos, o avanço para

o interior, o desenvolvimento de uma agricultura de abastecimento no centro-sul, a

urbanização, etc. 69

Mas acredito que do ponto de vista imperial é sobre a fiscalidade que o impacto é maior.

Se durante o século XVII a despesa havia determinado a receita, durante o século XVIII o

Estado do Brasil, influenciado pelo fenômeno minerador, passou a produzir superávits fiscais

constantes, resultando em transferências líquidas avultadas para a metrópole. Angelo Carrara

calcula que as remessas de Minas Gerais apenas somaram 41.676.471.267 réis entre 1700 e

67 Cf. INIKORI, Joseph. African and the Industrial Revolution in England: A study in international trade and

economic development. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, pp. 206-209. O comércio com Portugal e

Espanha foi particularmente importante para a manufatura de lã na Inglaterra durante a primeira metade do século

XVIII, tendo em vista que as exportações destes têxteis para a Europa Continental estagnaram, com a única exceção da

Península Ibérica. (cf. DAVIS, R. English foreign trade, 1770-1774. The Economic History Review,(285-303). New

Series, Vol. 15, n 2 (1962), p. 287. 68

Dados do final do século XVII, CARRARA, op. cit., 2011, pp. 32-33, para 1776, ALDEN, Dauril. O período

final do Brasil colônia, 1750-1808. In: BETHELL, Leslie. História da América Latina. Vol. II (527-592), São

Paulo: Edusp, 1999, p. 529. 69

CARRARA, Angelo Alves. Minas e Currais. Produção Rural e Mercado Interno de Minas Gerais, 1674-

1807. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2007 e

Page 18: capitalismoecolonização

18

1808, valor que teria permitido adquirir em torno de 200 mil escravos; ou seja, o fisco custou

a Minas algo próximo a 2 mil escravos por ano70

.

Tamanha drenagem da riqueza produzida só pode ser resultado da invenção de uma

verdadeira máquina fiscal. De fato, a historiografia já havia notado as diferentes inovações da

administração local a partir da descoberta do ouro, particularmente na cobrança do quinto que

teve no sistema de captações (1734-1750) sua manifestação mais espetacular71

. Mas a esta

pressão sobre o imposto mais célebre deve-se somar a unificação da escrituração fiscal de

Minas, aliada à separação da capitania de Minas Gerais de São Paulo em 1720.

As repercussões da produção mineradora sobre a administração e a fiscalidade foram,

outrossim, imperiais. Como mostra o trabalho de Guilherme Conigiero, nas décadas de 1720 e

1730 cresceram as pressões sobre o conjunto do Império: a Coroa aumentou os impostos

sobre as exportações de escravos em Angola, reprimiu a prática de comércio por parte dos

governadores e demais oficiais e centralizou a arrematação dos contratos no Conselho

Ultramarino em Lisboa que antes eram arrematados nas provedorias do Brasil. Este último

ponto é importante porque não foram apenas os contratos de Minas, mas os mais rentáveis do

conjunto do Atlântico português, revelando um processo de centralização. Deste modo,

A centralização das arrematações dos contratos do ultramar foi fundamental à coroa para

garantir as remessas que os provedores das capitanias passaram a fazer. Primeiramente

porque conferiu o maior controle da coroa sobre os preços dos contratos. Em segundo lugar

porque, tendo pleno conhecimento das rendas das capitanias (que provinham dos

pagamentos dos contratos), o rei saberia o quanto poderia pressionar os provedores no

tocante às remessas. Por último, sendo os contratos preferencialmente arrematados e

controlados por homens de negócio metropolitanos, mesmo os descaminhos parariam, em

grande parte, na metrópole, nas mãos dos emprestadores da coroa. Claro que a centralização

das arrematações em Lisboa não excluiu por completo a possibilidade dos negociantes

residentes na colônia, através de procuradores, arrematarem rendas reais, o que de fato

aconteceu algumas vezes. Na prática, no entanto, muito provavelmente os coloniais não

conseguiam competir com os da metrópole, não só em termos financeiros como na questão

da estreiteza das relações com a coroa72

.

70 CARRARA, Angelo. Receitas e despesas da Real Fazenda no Brasil, século XVIII, Juiz de Fora, UFJF, 2009,

p. 61. A quantidade de escravos que poderiam ser comprados foi calculada a partir de um preço estimado de 200

mil réis, já que os preços dos escravos adultos em Minas Gerais parecem ter variado entre 150 e 350 mil réis

durante o século XVIII (cf. p. 257. 71

PINTO, op. cit., pp. 60-61. Ver também GUERZONI Fo., Política e crise do sistema colonial em Minas

Gerais. Mariana: UFOP/ICHS, 1986, pp. 22-37. 72

CONIGIERO, Guilherme. Os contratos de Angola no século XVIII, notas de pesquisa. working paper, p. 6.

Em anexo neste relatório.

Page 19: capitalismoecolonização

19

Some-se a isto a maior regulação no abastecimento, com as tentativas de centralizar as

exportações minerais no porto do Rio de Janeiro, o controle das rotas do interior por uma rede

de alfândegas secas, o reforço no sistema de frotas escoltadas em torno dos três principais

portos do Brasil e a tentativa de regular o tráfico de escravos, especialmente na Costa da Mina

onde o ouro era contrabandeado para as feitorias holandesas e inglesas. Tudo isto para

garantir que o comércio e os tributos não se descaminhassem em meio ao Atlântico.

As transformações na colônia contrastam com a imobilidade metropolitana na primeira

metade do século XVIII. Ao mesmo tempo, o sucesso da centralização fiscal sugere que a

mão do Estado, ao menos no que realmente interessava, pesava mais aqui do que em Portugal;

talvez porque os poderes concorrentes instalados aqui fossem muito mais frágeis, refletindo a

geral transitoriedade do Ultramar73

. Minha conclusão: é um equívoco simplesmente

transplantar os modelos societários reinóis à colônia, ainda que formalmente repitam-se

fórmulas e instituições portuguesas.

Contudo, na década de 1760 a produção de ouro já mostrava sinais de esgotamento: a

redução, porém, apresenta-se de modo lento, refletindo o caráter particular da extração do

minério. Na década de 1770 é que se constata uma verdadeira depressão, todas as atividades

coloniais acompanham a mineração em sua trajetória negativa em parte porque a execução de

dívidas e o pagamento de créditos podem ter contaminado as atividades agrárias não

diretamente ligadas ao ouro74

.

4. A conjuntura: 1776-1807

Mas antes mesmo da depressão alcançar o seu ponto máximo observaram-se algumas

modificações na regulação mercantil do Império, entre as quais o fim do regime de frotas e

das limitações na navegação africana. Mais importante ainda foi a criação das companhias de

comércio monopolistas, exemplo mais bem acabado do “mercantilismo tardio” português,

com sérias repercussões sobre a evolução posterior da economia imperial. Vale a pena tratar

um pouco mais sobre estas instituições:

73 Discordo, portanto, da opinião de Alberto Gallo, cf. GALLO, Alberto. Racionalidade Fiscal e ordem colonial.

Texto apresentado no Colóquio Internacional Economia e Colonização na Dimensão do Império Português, São

Paulo, 30 de Setembro, 2008. 74

Cf. MENZ, Maximiliano M. Reflexões sobre duas crises econômicas no Império Português. (artigo inédito),

pp. 9-10. Em anexo neste relatório.

Page 20: capitalismoecolonização

20

Segundo um papel chamado “Razões Políticas pelas quais as Companhias Gerais de

Comércio se julgam úteis e necessárias ao Reino de Portugal”, anexo à correspondência de

Mendonça Furtado e talvez de autoria dele ou de Pombal, o maior problema de Portugal era a

ausência de manufaturas nacionais que deixava o povo na miséria e, pela importação destas ao

estrangeiro, exauria a moeda da nação. Sendo assim,

É muito necessário o estabelecimento de fábricas para fazer-nos felizes e independentes

nesta parte do jugo Estrangeiro, se considerou também que as Fábricas não poderiam se

sustentar-se no Reino sem que houvesse uns corpos que tendo a regulação do comércio, se

vissem ao mesmo tempo, não só de protetores das Fábricas, mas também animassem a

cultura das Terras (...) nos Domínios da América.

O texto vai mais longe, reconhecendo que companhias privativas podiam ser

prejudiciais a um reino onde as manufaturas já estivessem estabelecidas, para Portugal,

“aonde as manufaturas não estão estabelecidas e se pretendem estabelecer, é muito

necessário que se estabeleçam companhias”75

. Esta citação basta para expressar minha

opinião a respeito de uma velha controvérsia, sobre a divisão da política pombalina entre uma

primeira fase comercial e uma segunda fase manufatureira, demarcadas pelo casuísmo das

circunstâncias76

. Afinal as companhias de comércio eram parte de um projeto de fomento

manufatureiro, nos quadros de uma política mercantilista bastante coerente77

.

De todo o modo, é equivocado transformar o marquês do Pombal no demiurgo do

“capitalismo português”. Afinal, é surpreendente como foi possível levantar capitais (3.715

contos) para as três principais companhias num período relativamente curto, especialmente

considerando o generalizado fracasso de tentativas anteriores (nos séculos XVII e XVIII) e

que estas companhias foram formadas logo após o terremoto, com todas as perdas que

acarretou à comunidade mercantil de Lisboa.

Parece-me que parte da explicação esteja justamente na renovação do grupo mercantil

após o terremoto e nas mudanças estruturais que atravessaram o Brasil na primeira metade do

75 AHU, Avulsos, Pará, cx.39, doc. 3674, anexo na correspondência de Francisco Xavier Mendonça Furtado,

10/11/1755. 76

Cf. GODINHO, As frotas, op. cit., p. 313 e MACEDO, Jorge. Problemas de História da Indústria Portuguesa

no século XVIII. 2ª ed. Lisboa: Querco, 1982, p. 189. 77

Como, aliás, Maxwell já havia notado (MAXWELL, Kenneth. Pombal e a nacionalização da economia luso-

brasileira. In: Chocolate, Piratas e Outros Malandros. Ensaios Tropicais. (125-156). São Paulo: Paz e Terra,

1999 e MAXWELL, Keneth. Marquês de Pombal Paradoxo do Iluminismo. São Paulo: Paz e Terra, 1997).

Page 21: capitalismoecolonização

21

século. Como escreve Pedreira, uma boa parte dos homens de negócio de Lisboa havia

experimentado um estágio no Brasil, de onde se originava a maior parte de suas fortunas;

sendo o retorno a Portugal o culminar de uma carreira bem sucedida78

. A destruição de boa

parte do grupo mercantil após 1755 teria atraído um novo grupo, alguns deles vindos do

Brasil, com capitais ávidos por novas oportunidades de valorização. Assim, se esta hipótese é

correta, a “acumulação endógena” colonial da primeira metade do século teria se

transformado em “acumulação primitiva” na metrópole durante a segunda metade, graças ao

seu investimento em companhias e manufaturas.

Mas qual o alcance desta experiência que visava associar o capital mercantil português

ao capital manufatureiro? Segundo Nuno Luís Madureira, a “acção das companhias contribui

decisivamente para a unidade do Atlântico”79

, integra-se em torno de dois grandes

monopólios que fornecem escravos, compram os produtos coloniais e vendem as mercadorias

manufaturadas sem concorrência em Pernambuco, Paraíba, Maranhão e Grão Pará.

No que diz respeito ao tráfico, o movimento de capitais parece ser pequeno tanto para a

Companhia de Pernambuco como para a Companhia do Grão Pará80

. Além disso, no caso da

primeira, a venda de escravos comprados em Angola produz lucros nulos ou até mesmo

prejuízos, mas no conjunto do negócio o lucro é de 12-16%, graças à venda das mercadorias

de resgate na África. Já no tráfico de Bissau, comandado pela segunda, as cargas de

mercadorias coloniais superaram as cargas de escravos nas rotas triangulares: ambas as

experiências demonstram as vantagens da integração vertical do negócio Atlântico81

.

Mais importante do que isto foi o impacto das companhias sobre o esforço

manufatureiro português. Segundo um documento da época entre 1760 e 1777 a companhia

de Pernambuco havia exportado para o Brasil um valor de 4.551.903.179 réis em fazendas do

norte da Europa e 582.326.313 réis em fazendas das fábricas do Reino, a este valor seria

78 PEDREIRA, Jorge. Os Homens de Negócio da Praça de Lisboa de Pombal ao Vintismo (1755-1822).

Diferenciação, reprodução e identificação de um grupo social. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1995,

passim e PEDREIRA, J. Os negociantes de Lisboa na segunda metade do século XVIII: padrões de recrutamento

e percursos sociais. Análise Social, vol. XXVII, 1992, (2º, 3º ), 407-440, p. 431. 79

MADUREIRA, Nuno L. Mercados e Privilégios. A indústria portuguesa entre 1750-1834. Lisboa: Estampa,

1997, p. 93. 80

Cf. MENZ, Maximiliano. A Companhia de Pernambuco e Paraíba e o funcionamento do tráfico de escravos

em Angola (1759-1775/80). Artigo inédito, em anexo. e MARTINS, Diego C. O tráfico de escravos em Bissau e

a dinâmica da economia Atlântica Portuguesa, 1756-1808. Working paper, em anexo. 81

ID.

Page 22: capitalismoecolonização

22

possível acrescentar 254.446.339 réis de têxteis de linho das ilhas do Atlântico e

1.619.234.143 réis de “efeitos da terra” exportados da cidade do Porto, ambas as categoria

reunindo muito provavelmente produtos de artesanato e da proto-indústria rural. Ou seja,

dependendo do critério, a indústria nacional representaria algo entre 11 e 35% do total de

manufaturas exportadas pela companhia82

.

Mesmo descartando o produto das duas últimas categorias, o documento mostra ainda

uma tendência para a alta no uso de mercadorias nacionais e para a diversificação na

produção. Além disso, a ação das companhias pode ter sido importante para popularizar o uso

de produtos nacionais, ainda que a contragosto dos consumidores coloniais, como atestam as

459 dúzias de tesouras enviadas pela Junta de Lisboa, contra a vontade da direção sediada em

Recife, que provavelmente haviam sido adquiridas na fábrica de tesouras no Sobral83

.

Além de reativar os mercados para as fazendas nacionais, as companhias foram

responsáveis pela compra e mesmo pelo incentivo à produção de insumos, o algodão é o que

teve mais importância no desenvolvimento manufatureiro, mas há de se acrescentar a urzela,

marfim, goma copal e goma jutabá, produtos que eram fornecidos às fábricas e permitiam

saldar parte das compras84

.

O balanço das companhias, para Madureira, é “um saldo positivo a favor da autoridade

do Estado e da repressão do contrabando e um déficit no desenvolvimento económico das

colónias”; considero que esta opinião é em parte equivocada, pois a ação da Companhia do

Grão Pará claramente favoreceu o desenvolvimento da agricultura escravista no norte do

Brasil; já o saldo da Companhia de Pernambuco é mais controvertido. Seja como for, é

82 AHU, Avulsos, Pernambuco, cx. 128, doc. 9717. Mapa da despesa das fazendas compradas nas fábricas do

Reino, 31/12/1777. Os “efeitos da terra” da cidade do Porto estão separados dos “comestíveis”. Aceitando o

número maior (35%), a conclusão seria que a Companhia de Pernambuco de fato preferia utilizar fazendas de

produção nacional (ver adiante). 83

No contexto do debate a respeito da renovação do privilégio da companhia, a direção de Pernambuco, que

administrava o comércio localmente, produziu uma lista com todos os gêneros pedidos e os efetivamente

remetidos pela Junta de Lisboa para se escusar das acusações de má administração. No caso das tesouras, haviam

sido pedidas apenas 20 dúzias e a Junta enviou 479 dúzias. (cf. AHU, Avulsos, Pernambuco, cx. 130, doc. 9823,

anexo na correspondência de José César de Meneses, 13/07/1778). 84

MADUREIRA, op. cit., p. 95.

Page 23: capitalismoecolonização

23

necessário recordar que estas empresas sofreram com uma crise econômica que lhes foi

alheia85

.

Na década de 1770, em razão da depressão mercantil, foi acelerado o fomento às

manufaturas, privilegiando a produção de substitutos a similares importados. Mas os

resultados ainda eram modestos, as manufaturas nacionais portuguesas eram menos de 25%

do total exportado para o ultramar em 177786

.

Contudo, na década de 1780 a conjuntura começou a virar: ao norte do Equador, o

Maranhão e o Pará cresciam estimulados pelas importações crescentes de escravos e pelas

exportações de algodão, estas passaram de 15 mil arrobas em 1770 para 47 mil arrobas em

178087

. Também os produtos tradicionais exportados pelas praças centrais - Pernambuco,

Bahia e Rio de Janeiro - se recuperaram. O tabaco saltou de uma média anual de 226 mil

arrobas para as 440 mil arrobas exportadas entre 1781-1785, e o açúcar que durante a década

de 1770 não passava as 600 mil arrobas anuais, talvez tenha alcançado algo entre 800 mil e

900 mil arrobas. A média de toneladas anuais de produtos brasileiros descarregados em

Lisboa passou de 21.241 na década de 1770 para 36.651 na década de 178088

.

É na década seguinte, porém, que sucedeu uma inflexão decisiva na conjuntura

comercial, reflexo da Revolução Francesa. O ano de 1791 testemunhou uma revolução no

mercado internacional de produtos coloniais, com a exclusão de Saint-Domingue. A guerra

marítima entre a Inglaterra e a França, iniciada em 1793, também dificultou o abastecimento

de produtos tropicais à Europa. Ocorreu assim um forte crescimento no volume das

exportações do Brasil: entre 1796 e 1807, o Brasil exportou médias anuais de 385 mil arrobas

de algodão, 1.985 mil arrobas de açúcar e em torno de 480 mil arrobas de tabaco89

.

85 ID., p. 91. Madureira sugere que a crise foi aprofundada pela própria ação das companhias, por uma estratégia

de “estrangulamento econômico” (p. 97). Creio, porém, que a ideia é equivocada visto que todas as capitanias

sofreram com a crise. Assim, comparando o período de 1746-1760 com 1760-1775 pelos dados do database

constata-se que a depressão no tráfico de escravos foi mais severa na Bahia (-24%), onde havia comércio livre do

que em Pernambuco (-15%). 86

87

ALDEN, p. 566, NARDI, p. 339, tabela XI.2. As exportações de tabaco contabilizadas por Nardi incluem

Costa da Mina e Índia. 88

FRUTUOSO, E., GUINOTE, P., LOPES, A. O Movimento do Porto de Lisboa e o Comércio Luso-Brasileiro

(1769-1836). Lisboa: CNCDP, 2001, p. 58. 89

ARRUDA, tabela 53.

Page 24: capitalismoecolonização

24

É fato que Portugal não logrou manter-se totalmente alheio ao conflito e, portanto, o

corso francês aumentou o custo e o risco nas transações - levando Portugal a retomar o

sistema de frotas comboiadas. Mas a mudança nas alianças europeias, com a Espanha

apoiando uma vez mais a França em 1797, teve consequências econômicas positivas para o

Império luso-brasileiro. A incapacidade marítima da aliança franco-espanhola obrigou à

Espanha utilizar a frota portuguesa para o transporte das mercadorias do Rio da Prata. As

oportunidades no tráfico de escravo também cresceram entre 1794 e 1798, pois os franceses

foram excluídos do negócio pela sua proibição por parte da Convenção. Já a Espanha liberou

a compra de escravos pelas colônias às nações neutras; embarcações de Portugal e do Brasil

passaram a frequentar os portos platinos para negociar escravos90

.

Sobre o tráfico de escravos é necessário dizer algumas coisas: na segunda metade do

século XVIII existiam três zonas de resgate associadas à América Portuguesa, cada uma com

as suas particularidades no que diz respeito ao financiamento, mercadorias utilizadas e grupos

mercantis envolvidos. Ao norte do equador situavam-se as praças de Bissau e Cacheu,

responsáveis por 6% dos escravos embarcados para o Brasil entre 1750 e 1807, zona

conectada às capitanias do Norte onde embarcações de origem reinol faziam rotas

triangulares. Quase na linha situava-se a Costa da Mina, onde foram carregados 23% dos

escravos destinados principalmente ao nordeste; esta zona era dominada pelas embarcações

coloniais que faziam o comércio direto com o Brasil, ainda que esporadicamente navios da

metrópole visitassem a região. Na África centro-ocidental encontrava-se o Reino de Angola,

dividindo-se em dois portos principalmente, Luanda, ao norte, de onde foram deportados 45%

dos escravos e Benguela mais ao sul, que forneceu 15%.91

90 Os números do The Tran-saltlantic Slave Trade Database mostram que entre 1791-1795 entraram 1.633

escravos no Rio da Prata, entre 1796 e 1800 foram 2.889, enquanto que entre 1801-1805 foram importados

14.913 escravos. O fornecimento de escravos dividiu-se principalmente entre embarcações espanholas (30%),

norte-americanas (26%) portuguesas (20%) e inglesas (18%).

http://slavevoyages.org/. Consultado em 12/11/2009. 91

Os dados foram retirados do Transatlantic Slave Trade Database, (http://slavevoyages.org/, consultado em

15/08/2011), utilizando como filtros os portos específicos analisados. É fato, porém, que Costa da Mina era uma

denominação genérica designando diversas praças na região conhecida pelos ingleses de Bight of Benin. Se se

utiliza o filtro de Bight of Benin no Database a participação da “Costa da Mina” sobe a 30%. As informações

sobre o tráfico nestas regiões baseiam-se em MARTINS, op. cit., LOPES, Gustavo Acioli. Negócio da Costa da

Mina e comércio atlântico - tabaco, açúcar, ouro e tráfico de escravos: Pernambuco (1654-1760). São Paulo,

USP [tese de doutorado], 2008 e LOPES, Gustavo Acioli e MENZ, Maximiliano M. Resgate e Mercadorias:

Page 25: capitalismoecolonização

25

No porto do norte os homens de negócio de Lisboa, ligados ao contrato de escravos e às

companhias de comércio, comandavam o financiamento do negócio entre 1750 e a metade da

década de 1770. O fim dessas instituições resultou numa retração dos capitais lisboetas e na

invasão do negócio pelos mercadores do Brasil que até então atuavam principalmente no

negócio de fretes. Os testemunhos do secretário de marinha e Ultramar, Martinho de Mello e

Castro e mais tarde do governador de Angola, o Barão de Mossâmedes, apontam nesta

direção. Os números de passaportes retirados em Lisboa para viagens a Angola confirmam a

retração metropolitana na década de 177092

.

Não se trata de uma retirada definitiva, na década de 1780 e início da de 1790 as

embarcações metropolitanas oscilam em números até que a partir de 1798 observa-se uma

nova invasão de navios metropolitanos que certamente foram responsáveis por fornecer mais

da metade das mercadorias para o tráfico entre 1796 e 180793

. A explicação está na retirada

dos navios franceses que faziam uma forte concorrência na África Centro-Ocidental, nas

oportunidades de comércio com os espanhóis e na recuperação dos preços dos escravos no

Brasil.

O negócio de escravos em si, apesar de garantir saldos comerciais importantes para a

capital do Império, era pouco relevante no conjunto das trocas portuguesas e para a indústria

portuguesa. Basta dizer que as exportações portuguesas para Angola entre 1796 e 1807

equivalem a 34% do ouro exportado pelo Rio de Janeiro, 25% dos mantimentos exportados

pela Bahia e 34% do algodão exportado por Pernambuco. Em suma, em termos de mercado

para as exportações portuguesas, o Brasil valia pelo menos 22 Angolas. Mas é a

transformação de 19 mil contos de réis, investidos em escravos entre 1796 e 1807, em 118 mil

contos exportados em mercadorias e ouro pelo Brasil entre 1796 e 1807 que revela a essência

da “troca desigual” na relação colonial94

.

Uma análise comparada do tráfico luso-brasileiro em Angola e na Costa da Mina (século XVIII). Afro-Ásia, nº

37, 2008. Vale dizer que os números do Database são bastante incompletos. 92

AHU, Avulsos, Angola, cx62, doc.57, minuta de Martinho de Mello e Castro, 22/06/1779, AHU, Avulsos,

Angola, cx 71, doc 52, 15/10/1786. AHU, Códices de Passaportes, livros 773-787. 93

Cf. MENZ, A companhia, op. cit. e MENZ, Maximiliano. O triângulo revelado (artigo inédito, anexo ao

relatório de 2010). 94

19 mil contos entre 1796 e 1807 é a estimativa grosseira do gasto na compra dos escravos importados pelo

Brasil de todas as feitorias da África. Este valor foi estimado a partir dos números de ALENCASTRO, Luiz

Felipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000 e

Page 26: capitalismoecolonização

26

Se no comércio Atlântico a situação era de euforia, do ponto de vista fiscal existiam

problemas: apesar do crescimento das receitas oriundas do Ultramar, particularmente da

alfândega, o aumento dos gastos provocado pela guerra e a inflação comprimiam as rendas

reais. Em 1796 faz-se uso do papel moeda e em 1807 a paralisação do comércio provocou um

verdadeiro colapso, mas a Coroa hesitava em inovar do ponto de fiscal; é fato que a situação

fiscal portuguesa e os seus desdobramentos sociais não chegaram aos pontos extremos da

França pré-revolucionária ou da Espanha na viragem do século, mas os óbices políticos e

sociais eram provavelmente os mesmos 95

.

Ao mesmo tempo, os grandes contratadores, geneticamente ligados às finanças do

Estado, não tinham nada a reclamar, pois obtinham altíssimos lucros com os estancos e

cobrança de impostos. Os grandes lucros obtidos, aliás, desestimulariam o investimento em

áreas de inovação e de risco96

. Mais uma vez estaríamos diante do “arcaísmo lusitano”?

Creio que não. O crescimento da indústria, mesmo após a recuperação comercial da

década de 1790 mostra o fim da associação entre surto manufatureiro e conjuntura comercial

depressiva. Entre 1796 e 1807 a participação das manufaturas portuguesas no mercado

ultramarino subiu para algo em torno de 42 e 52%; os produtos manufaturados ultrapassaram

em valor as mercadorias da agricultura nacional nas exportações; o Brasil era, ademais, o

principal mercado consumidor da moderna indústria de algodão que se desenvolvia ao redor

de Lisboa97

.

Além disso, é notável a forte participação do capital mercantil na organização do

próprio esforço industrial português98

. Ou seja, apesar da imobilização de capitais no

dos preços de escravos de MILLER, Joseph. Slave Prices in the Portuguese Southern Atlantic, 1600-1830. in:

LOVEJOY, Paul (ed.). Africans in Bondage. Studies in slavery and slave trade. Winscosin: African Studies

Program, University of Winscosin, 1986. É claro que não eram apenas os escravos novos que produziam

mercadorias para a exportação, mas no cálculo do milagre da multiplicação colonial não constam as atividades

ligadas ao abastecimento nem a exportação de produtos coloniais para a própria África. Os demais dados foram

retirados de ARRUDA, José Jobson de. O Brasil no Comércio Colonial. São Paulo: Ática, 1980 e MENZ, O

triângulo, op. cit. 95

MADUREIRA, op. cit., p. 127. 96

ID. pp. 115-122. 97

ALEXANDRE, Valentim. Um momento crucial do subdesenvolvimento português: efeitos económicos da

perda do Império Brasileiro. In: Ler História, n 7 (3-45), 1986, p. 20, PEDREIRA, Jorge. Estrutura Industrial e

Mercado Colonial Portugal e Brasil (1780-1830). Lisboa: Difel, 1994, pp. 292-295 e PEDREIRA, As

conseqüências, op. cit., p. 455. 98

Cf. PEDREIRA, Estrutura, op. cit. pp. 160-168.

Page 27: capitalismoecolonização

27

comércio e nos contratos, a prosperidade do final do século XVIII permitia a multiplicação e a

diversificação dos investimentos; vale dizer que as necessidades de capital fixo não eram

assim tão grandes durante a primeira Revolução Industrial99

. Deste modo teríamos em

Portugal um processo análogo ao que a historiografia sobre a industrialização brasileira

chamou de “vazamento do capital cafeeiro para a indústria”, com o capital gerado no

complexo agroexportador sendo investido na indústria em busca de outras alternativas de

valorização100

.

Resta responder a pergunta feita uma vez por Valentim Alexandre: foi a perda do Brasil

um momento crucial do subdesenvolvimento português?

Jorge Pedreira responde a esta questão negativamente, pois para ele o colapso de 1808

está inscrito no mesmo conjunto de causas da expansão mercantil e industrial (ou seja, a

conjuntura política). Além disto, considera limitada a influência social do surto manufatureiro

português, portanto, conclui:

A prosperidade de finais do século XVIII e dos primeiros anos do século XIX, alicerçada no

comércio colonial, de forma alguma conduziria o país ao limiar de um processo de

industrialização semelhante aos que a França, Flandres e a Suíça haviam já (...) iniciado. Faz

lembrar, isso sim, os surtos industriais característicos das economias de Antigo Regime, em

que o incremento da produção encontra rapidamente os seus limites101

.

E, numa síntese publicada um pouco depois:

embora as manufaturas portuguesas tenham registrado algum progresso, nunca desalojaram

as grandes importações de têxteis da Europa e da Ásia, que preenchiam mais da metade das

expedições de panos para o Brasil. Convém salientar que o desenvolvimento da indústria

portuguesa na última fase do antigo sistema colonial não levou Portugal ao limiar da

industrialização moderna. Portanto, o colapso desse sistema, apesar de grave, não pode ser

considerado a causa da incapacidade do país para integrar o grupo dos primeiros países

industrializados.102

Pedreira tem razão em destacar que a expansão e o posterior colapso foram

determinados pelo contexto político europeu. Mas existe algo de teleológico em sua

explicação, tendo em vista que as disputas entre França e Inglaterra não precisavam resultar

99 Cf. Mas sim de capital circulante e este era fornecido pelos mercadores. Ver INIKORI, Africans, op. cit., p.

315 que analisa o caso inglês. 100

Cf. SILVA, Sergio. Expansão Cafeeira e Origens da Indústria no Brasil. São Paulo: Alfa-ômega, 1976. 101

PEDREIRA, Estrutura, op. cit., p. 373. 102

PEDREIRA, As consequências, op. cit., p. 455.

Page 28: capitalismoecolonização

28

necessariamente na ocupação napoleônica ou então na perda do mercado brasileiro. Ceteris

paribus, a pacificação da Europa encerraria a conjuntura comercial positiva, mas não

precisaria redundar numa retração geral das manufaturas portuguesas no mercado colonial103

.

Além disso, os problemas internos da sociedade portuguesa não devem ser encarados

como constrangimentos absolutos. Afinal, as manufaturas portuguesas eram vendidas em

grande parte no Ultramar e não no mercado interno; deste modo não creio que seja correto

equiparar de modo puro e simples o surto português do final do século e XVIII e início do

XIX com “os surtos industriais característicos das economias de Antigo Regime”, já que

Portugal tinha garantidos os mercados e a maior parte da matéria-prima104

.

Assim, ainda que teórica e retrospectivamente possamos apontar alguns gargalos

importantes para o desenvolvimento da indústria portuguesa, é muito provável que

poderíamos encontrar problemas parecidos em regiões mais avançadas da Europa Ocidental

durante o mesmo período. De resto, como lembra W. Cole: “O fato de que o crescimento nos

países industrializados tem sido sustentável na longa duração não prova que a primeira fase

de industrialização torna o crescimento automático em nenhum sentido do termo.”105

Ou seja, de acordo com a historiografia sobre a industrialização brasileira é apenas com

o surgimento de uma indústria de bens de capitais, capaz de se adiantar à demanda e

determinar o processo de desenvolvimento industrial, que se consolida o capitalismo da

grande indústria e a subordinação real do trabalho ao capital106

. E só a partir daí que o capital

passa a se auto-determinar.

Por isto concordo com Valentim Alexandre que a perda do Brasil foi um momento

crucial do subdesenvolvimento português, o que naturalmente não significa dizer que esta foi

103 Isto supondo, segundo o próprio Pedreira, que a pressão inglesa sobre o mercado brasileiro não era ainda

inexorável. 104

Na análise de Braudel, a quem Pedreira se refere, os ciclos industriais do Antigo Regime estariam

condicionados ao surgimento de gargalos “no nível das matérias-primas, da mão-de-obra, do crédito, da técnica,

da energia, do mercado interno e externo”. (BRAUDEL, Fernand. Civilização Material Economia e

Capitalismo: Vol. III, O jogo das trocas. São Paulo: Martins Fontes, 1998, vol. II, p. 305). 105

COLE, W.A. The growth of national incomes. in: The Cambridge Economic History of Europe (Vol VI, Pat

1), p. 10. 106

MELLO, João Manuel Cardoso de. O Capitalismo Tardio. 6ª ed. SP: Brasiliense, 1987, p. 110.

Page 29: capitalismoecolonização

29

“a causa da incapacidade do país para integrar o grupo dos primeiros países

industrializados”.107

Conclusão : As afinidades eletivas, o capitalismo inglês e o colonialismo português.

Portugal lançou as bases da economia Atlântica, desenvolvendo um Império mercantil

que articulava as bordas da Europa, África e América e um tipo de colonização que

sintetizava velhas experiências do senhorialismo com as condições sociais do Novo Mundo.

No início do século XVII este modelo de colonização, premido pelos conflitos europeus e por

uma profunda depressão na economia europeia, deu claros sinais de esgotamento.

Simultaneamente, o noroeste da Europa, particularmente a Inglaterra, passava por

mudanças significativas nas relações sociais de produção e nas estruturas de propriedade. À

constituição de um “capitalismo agrário” liga-se um novo colonialismo, onde se repetem parte

das práticas portuguesas; mas, numa linguagem marxista, diríamos que o colonialismo inglês

“supera” o português. A produção manufatureira inglesa, ainda nos quadros da “proto-

industrialização”, conecta-se a uma nova agricultura e a um novo sistema colonial, tudo isto

presidido por um novo tipo de Estado. As associações positivas e a integração entre as partes

tornam-se cada vez maiores no desenrolar do século XVIII.

Mas o Império português não permaneceu alheio, é preciso lembrar que superar

dialeticamente significa também incorporar. Os mercados coloniais ibéricos possuíram uma

importância marginal para as manufaturas inglesas durante todo o século XVIII; além disso,

transformações na maior colônia portuguesa durante a primeira metade do século XVIII

prepararam significativas mudanças na economia metropolitana nos 50 anos posteriores.

É no final do século XVIII que se integrou o desenvolvimento manufatureiro

metropolitano com a expansão mercantil suscitada pela colônia num processo que guarda

algumas semelhanças com o ocorrido na Inglaterra. Poderíamos falar que no conjunto do

Império português desenvolviam-se forças produtivas capitalistas, a partir do núcleo

manufatureiro/exportador, visto que a agricultura e as instituições portuguesas ainda eram de

Antigo Regime.

107 Pois Portugal necessitaria ainda passar por outras etapas no processo de industrialização, sujeitas a diferentes

problemas. Agora, a perda do Brasil foi crucial porque fez com que o processo de industrialização gorasse na

primeira etapa, por assim dizer.

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30

A ruptura em 1808 separa dois destinos de transição capitalista que até então estavam

unidos. Numa margem do Atlântico, o Brasil, à deriva de uma economia escravista que passa

por dificuldades em reconectar-se aos centros mundiais de desenvolvimento capitalista, até a

segunda metade do século XIX com o advento do café. Na outra margem, Portugal,

protagonista de uma longa “Revolução Burguesa” entre as décadas de 1820-1840 que

moderniza as instituições e revoluciona as relações sociais no campo, mas que sem o apoio

colonial sofrerá com grandes dificuldades na transição capitalista.