capitalismoecolonização
TRANSCRIPT
CAPITALISMO E COLONIZAÇÃO NA LONGA DURAÇÃO DO
ATLÂNTICO PORTUGUÊS (um rascunho)
Maximiliano M. Menz
1. Senhorialismo: a base da expansão mercantil europeia.
Um dos problemas fundamentais da historiografia clássica brasileira estava na confusão
entre comércio e capitalismo. Sendo assim, e retomando o “debate da transição”, é importante
separar as práticas mercantis, que precedem o modo de produção capitalista, do capitalismo
propriamente dito (caracterizado pelo comando do capital sobre o trabalho)1.
O grande comércio no mundo senhorial estruturava-se sobre relações sociais não-
capitalistas. Basta lembrar aqui o trabalho clássico de E. Kosminsky: este demonstrou que na
Inglaterra do século XIII as áreas mais ligadas ao comércio de grãos eram caracterizadas pela
grande propriedade e por prestações de trabalho tipicamente senhoriais2.
É fato que durante o século XIV desapareceram os laços mais visíveis de servidão
pessoal da Europa Ocidental3. No entanto, o senhorialismo, relação baseada na subordinação
e na exploração extra-econômica dos camponeses por parte da nobreza4, ainda que em suas
formas compósitas, caracterizou a paisagem agrária da Europa na Época Moderna. Mesmo em
Portugal, apesar das antigas polêmicas sobre a existência do “feudalismo”, é consenso entre a
historiografia mais recente a presença do senhorialismo durante a época moderna5.
Desta perspectiva, a expansão marítima Ibérica a partir do século XV não pode ser vista
como uma expansão do “capitalismo comercial”, mas sim como uma continuação da
1 Cf. HILTON, R. Introdução. A transição do feudalismo para o capitalismo. In: A Transição do Feudalismo
para o Capitalismo. Um debate. São Paulo: Paz e Terra, 1977 e WOOD, Ellen Meiskins. A Origem do
Capitalismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. Como de 2 Cf. KOSMINSKY, E. Studies in the Agrarian History of England in the Thirteenth Century, Oxford, Basil
Blackwell, 1956, pp. 176-177. 3 Cf. ASHTON, T. H. e PHILIPIN, C.H.E. (eds.). El Debate Brenner. Estructura de clases agraria y desarrollo
económico en la Europa preindustrial. Barcelona: Editorial Crítica, 1988. 4Godechot sintetiza o problema entre os conceitos de feudalismo e senhorialismo e define feudalismo como “un
tipo de régimen que se caracterizaba por uma forma particular de propriedade, com frecuencia por la
sevidumbre y siempre por el pago de los llamados censos feudales y señoriales” (GODECHOT, J. Prólogo. (1-3)
In: GODECHOT, J, et. ali. La abolición del feudalismo en el mundo occidenatal, Madrid, Siglo XXI, p. 3). 5 Cf. MONTEIRO, Nuno G. A questão dos forais na conjuntura vintista. In: Elites e Poder, entre o Antigo
Regime e o Liberalismo, (179-206). 2ª ed. Lisboa, ICS, 2007. Ver também HESPANHA, Antonio M. As
vésperas do Leviathan. Coimbra, Almedina, 1994, pp. 352-437.
2
expansão mercantil medieval de longuíssima duração, iniciada já no século XII e apenas
parcialmente interrompida pelo colapso agrícola do século XIV. É importante recordar ainda
que a expansão deveu muito ao espírito cruzadista que caracterizara o processo de reconquista
da Península Ibérica durante o século XIV; acreditavam os portugueses que pela costa da
África seria possível flanquear os muçulmanos e tomar contato com o Reino Cristão da
Etiópia. À nobreza portuguesa interessava a combater na África como modo de obter honra e
riqueza e servir ao Rei.6
A produção açucareira nos primórdios da colonização Atlântica também pode ser
interpretada por este prisma: o açúcar era produzido em pequena escala para o consumo
suntuário da nobreza europeia, validando o status e diferenciando o grupo senhorial dos
demais estamentos sociais7. Nas ilhas do Atlântico o açúcar era produzido em pequenas
propriedades – se comparadas à produção americana posterior –, com mão de obra mista de
escravos e trabalhadores obrigados e com a utilização de regadio, reproduzindo um padrão
mediterrânico8.
O cultivo de cana no Brasil, a partir da década de 1540, também ocorreu com mão-de-
obra mista, mas como realça Galloway, desde o início em uma outra escala, graças à
possibilidade de se constituírem grandes propriedades, da maior fertilidade das terras e das
chuvas mais regulares do nordeste brasileiro, em contraste com o terreno restrito e desigual
das ilhas do Atlântico. Assim, era possível empregar um maior número de braços e
praticamente foi abandonada a utilização de adubos e de irrigação9.
Segundo Stuart Schwartz, foi apenas nas duas primeiras décadas do século XVII que os
escravos africanos superaram os trabalhadores forçados da terra. Do lado da demanda, as
epidemias, particularmente graves durante a década de 1560, e as limitações ao cativeiro
6 Cf. THORNTON, J. The Portuguese in Africa. in: BETHENCOURT, F. e CURTO, D. Portuguese Oceanic
Expansion, 1400-1800. Cambridge: Cambridge University Press, 2007 e THOMAZ, L. F. A idéia imperial
manuelina in: DORÉ, Andréa, LIMA, L.F. e SILVA, L. G. Facetas do Império na História, conceitos e
métodos, (39-104). São Paulo, Hucitec, 2008, DELGADO, R. História de Anola, 1º vol. Luanda: Edições do
Banco de Angola, s/d, passim, 7 MINTZ, Sidney. Dulzura y Poder: el lugar del azúcar en la Historia Moderna. Mexico: Siglo XXI, 1996, pp.
129-137. 8 Cf. ROMERO MAGALHÃES, Joaquim. O açúcar nas ilhas portuguesas do Atlântico. Varia História, vol. 25,
n 41, (151-175), 2009. 9 GALLOWAY, J. H. Traditions and innovation in the American Sugar Industry, c. 1500-1800: An explanation.
Annals of the Association of American Geographers. Vol. 75, n3, sep. 1985, 334-351.
3
indígena dificultavam o recrutamento de mão-de-obra nativa, já as inovações no
beneficiamento, com a introdução do “engenho de três palitos”, e os preços positivos, até
mais ou menos 1619, incentivavam a expansão da produção.
Do lado da oferta, as guerras de conquista de Angola, a partir de 1575, facilitaram a
conexão de Angola ao Brasil10
. Como mostram os dados de Leonor da Freire Costa, as zonas
de resgate de escravos no Atlântico Norte voltaram-se ao fornecimento da América
Espanhola, já as embarcações negreiras que tinham o Brasil como destino entre 1580 e 1640
partiam principalmente do porto de Luanda11
.
De acordo com Birmgham, durante os séculos XVI e XVII eram principalmente três as
formas de se obter os escravos: pela guerra, pelo tributo pago pelos sobados e pelo comércio.
O comércio movimentava conchas, sal, produtos europeus e asiáticos e diversas mercadorias
de origem europeia e asiática, além dos têxteis de produção africana; o produto português por
excelência no escambo era o vinho. As guerras e a ação armada comandada pelos
governadores eram, no entanto, essencial na manutenção da oferta de escravos12
.
A escravidão, vale lembrar, não chegou a ser uma inovação Atlântica: a presença de
escravos em Portugal, assim como em todo o Mediterrâneo, foi comum durante a Idade
Média; ao mesmo tempo, há quem procure nas formas de dependência pessoal preexistentes
na África os fundamentos da escravidão americana. Ademais, os “arcaísmos” do “sistema
colonial moderno” eram muitos: os planters do mundo lusitano eram senhores de engenho
aos quais se ligavam os lavradores de cana obrigada; as capitanias hereditárias eram “uma
concessão típica do senhorio português do final da Idade Média”.13
Os poderes tradicionais de Portugal foram favorecidos pela expansão: a colonização
conquistou milhares de almas para a Igreja, favoreceu a criação de cargos na administração
10 Cf. SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos. São Paulo: Cia das letras, p. 68. CASTRO, Antonio Barros de.
Brasil 1610: mudanças técnicas e conflitos sociais. Pesquisa e Planejamento Econômico, Rio de Janeiro, v. 10,
n. 3, 1980. 11
Retirei os dados de COSTA, Leonor. O Transporte no Atlântico e a Companhia Geral do Comércio do Brasil,
1580-1663, Lisboa, CNCDP, 2002, Vol. 2. Note-se que Angola também fornecia muitos escravos para as Índias
de Castela. 12
BIRMGHAM, David, Trade and Conflict in Angola. The Mbundu and their neighbours under the influence of
the Portuguese 1483-1790. Oxford: Clarendon Press, 1966 e ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos
Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 13
JOHNSON, Harold. A colonização portuguesa do Brasil, 1500-1580. in: BETHELL, História da Anérica
Latina, Vol. 1. (241-281), São Paulo: Edusp, 1998, p. 254.
4
colonial à fidalguia e aos oficiais, gerou riqueza e postos de honra para os pequenos
proprietários e, finalmente, garantiu rendas para a monarquia, distendendo eventuais conflitos
entre o Rei e os demais corpos da sociedade portuguesa14
.
O veredito de Weber, acompanhado por parte da historiografia anglo-saxã, é que a
colonização portuguesa foi de tipo senhorial15
.
2. Os sentidos da colonização: senhorialismo e capital mercantil.
Mas vejamos isto com mais cuidado: os senhores de engenho produziam para um
mercado que era cada vez mais mundial, ao senhorialismo das capitanias hereditárias faltavam
os camponeses16
e os laços que prendiam senhores e lavradores eram contratos, geralmente de
curta duração, e não a tradição e o costume17
. No laboratório Atlântico as tentativas de repetir
as relações sociais europeias geravam coisas bem distintas18
. Além disso, ainda que a Coroa
tenha mantido o equilíbrio com os outros poderes na Península, procurou impedir sua
extensão às colônias pelo menos a partir do século XVII19
.
Ademais, faltou lembrar ainda que os homens de negócio foram um dos principais
agentes da colonização, ainda que o comércio não fosse uma esfera de atividades claramente
delimitada. Eram seus os navios que carregaram os padres, os nobres, os senhores e os
escravos, era sobre o movimento de suas mercadorias que a Coroa cobrava os impostos, eram
eles que transportavam as correspondências entre o centro lisboeta e as periferias coloniais.
Desde o início, portanto, uniam-se senhorialismo e capital mercantil, tanto do lado da
produção, pela presença de antigos mercadores entre a elite agrária colonial, como do lado da
comercialização, pela associação entre homens de negócio e governadores. Também no lado
do consumo observa-se esta aproximação, como nota S. Mintz “A medida que los poderosos
14 HESPANHA, Antonio M. As vésperas do Leviathan. Coimbra, Almedina, 1994, pp. 144-145.
15 WEBER, Max. Historia económica general. (1923) Mexico, FCE, 1997, p. 254 e GENOVESE, Eugenio. O
Mundo dos Senhores de Escravos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. 16
BLACKBURN, R. A Construção do Escravismo no Novo Mundo. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 139. 17
Cf. SCHWARTZ, op. cit., p. 250. 18
Cf. NOVAIS, Fernando. Condições da Privacidade na Colônia. In: História da Vida Privada no Brasil. Vol I.
Cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. 19
Basta recordar a retomada de capitanias e concessões originais (como os casos emblemáticos da capitania de
Pernambuco e do Reino de Angola).
5
usaban cada vez más los distintos tipos de azúcar, los vínculos entre este consumo y las redes
mercantiles del reino se hacían más íntimos”20
.
É possível dizer, portanto, que com suas letras de câmbio e de risco, com suas contas
correntes e empréstimos a juros, os mercadores emprestavam ao negócio colonial uma
racionalidade e uma contabilidade capitalista. Ainda que antes do século XVIII a
contabilidade dos comerciantes portugueses provavelmente não fosse “moderna” pelos
critérios weberianos21
.
No entanto, os estudos sobre os homens de negócio, particularmente os coloniais,
mostram que mesmo no final do século XVIII e início do século XIX, a tendência era de
investirem os capitais obtidos no comércio em escravos e terras22
. O conservadorismo nos
investimentos dos mercadores na Época Moderna foi observado também por F. Braudel que
chamaria a compra de cargos, arrendamentos estatais e títulos de nobreza de “traição da
burguesia”23
. Ideia repisada por Vitorino Magalhães Godinho ao tratar da sociedade
portuguesa: as causas do bloqueio “à burguesia” eram a predominância numérica do clero e
da nobreza frente a uma “contracção da população ocupada na produção de subsistência de
base” e as formas de mentalidade “arcaizantes” ligadas a esta estrutura24
.
Parece-me, porém, que o problema está colocado de modo equivocado, pois os
investimentos em terras e escravos na colônia, ou em propriedades rurais e arrendamentos de
impostos na Metrópole eram, seguramente, os mais seguros e racionais25
. Há, portanto, uma
20 MINTZ, op. cit. , p. 130.
21 Cf. WEBER, op. cit., p. 236. Basta lembrar as tentativas de Pombal em estabelecer o uso de partidas dobradas
na contabilidade dos homens de negócio portugueses. 22
Cf. FRAGOSO, João e FLORENTINO, Manolo. O Arcaísmo como Projeto. Mercado atlântico, sociedade
agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia Rio de Janeiro, c. 1790 – c. 1840. 4ª ed. revista. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 23
Cf. BRAUDEL, F. El Mediterraneo.(1946), 2ª ed., Mexico: FCE, 1997, p.99. 24
Cf. GODINHO, V. M. A estrutura na antiga sociedade portuguesa. Lisboa, Arcádia, 1971, p. 93 25
Schwartz estima a taxa de lucro da produção açucareira entre 5 e 10% (SCHWARTZ, op. cit., p. 204), já os
contratos poderiam gerar retornos bem mais altos: Pedreira calculou o lucro líquido do contrato do pescado seco
em 20% entre 1767 e 1772, já Helen Osório estimou as taxas de lucro dos contratos do Rio Grande do Sul no
final do século XVIII e início do XIX entre 17,4% e 28,2%. Gustavo Acioli encontrou taxas bem menos
significativas para o dízimo do açúcar na primeira metade do século XVIII, entre 1 e 4,6% anual. Todas estas
estimativas, podem ser comparadas com os estimativas da lucratividade no tráfico de escravos que podiam variar
entre 3 e 16%. (OSÓRIO, Helen. Estancieiros, Lavradores e Comerciantes na Constituição da Extremadura
Portuguesa na América: Rio Grande de São Pedro, 1737-1822. Niterói: Tese de doutorado, UFF, 1999, p. 227,
LOPES, Gustavo Acioli. Negócio da Costa da Mina e comércio atlântico - tabaco, açúcar, ouro e tráfico de
escravos: Pernambuco (1654-1760). São Paulo, USP [tese de doutorado], 2008, p. 26, MENZ, Maximiliano. A
6
contrariedade nos papeis desempenhados pelos mercadores no desenvolvimento do
capitalismo, “revolucionário” em certas circunstâncias e “reacionário” em outras. Mas esta
contrariedade é aparente, pois os mercadores buscavam apenas os lucros e estes dependiam
das relações sociais de produção às quais o capital mercantil conectava-se. Ressalto que a
transitoriedade na profissão de mercador no Antigo Regime estava ligada ao caráter das
relações de produção; mas isto não modifica o fato que era a busca do lucro que orientava as
suas operações na esfera mercantil26
.
Seja como for, não basta julgar a colonização portuguesa única e exclusivamente sobre
os seus efeitos ao espaço econômico ibérico. Aqui vale citar a opinião de Eugene e Elizabeth
Fox-Genovese:
The history of capitalism as a world-conquering mode of production cannot be separated
from the creation of a world market, but the emergence of that market must be understood as
new quality, not as a mere quantitative extension of older long-distance markets in luxuries
and other goods specific to the seigneurial ruling class and even the early national state27
.
A expansão ibérica deu uma escala global aos mercados28
, não obstante, tratava-se
ainda de um mercado baseado na comercialização de produtos luxos. A produção açucareira
no Brasil estabeleceu um padrão ligeiramente distinto, fato que é comprovado pelas suas
inovações técnicas e pela expansão do mercado graças aos ganhos de produtividade e
decorrente diminuição dos custos. Enquanto as exportações do açúcar da ilha da Madeira,
depois de um pico de 230 mil arrobas em 1508, vegetava nas 36 mil arrobas anuais no final
do século XVI, a produção no Brasil saltará das 350 mil arrobas para algo em torno das 1
milhão de arrobas anuais entre 1580 e 1600. Enquanto os 60 engenhos de São Tomé
produziam 2.500 arrobas cada um por volta de 1540-1541, no final do século XVI e início do
Companhia de Pernambuco e Paraíba e o funcionamento do tráfico de escravos em Angola (1759-1775/80).
Artigo inédito, em anexo, PEDREIRA, Jorge. Os Homens de Negócio da Praça de Lisboa de Pombal ao
Vintismo (1755-1822). Diferenciação, reprodução e identificação de um grupo social. Lisboa: Universidade
Nova de Lisboa, 1995, p. 152. 26
Por isto acredito que tanto de um ponto de vista weberiano, como de um ponto de vista marxista, podemos
considerar os homens de negócio da época Moderna como “capitalistas”. No primeiro caso, o mercador se
enquadraria num “tipo ideal” capitalista (lembrando que este não existe na sua forma concreta), porque suas
operações visavam essencialmente o lucro. No segundo caso, o capital mercantil é um capital (é valor que se
valoriza), mas este não penetra no mundo da produção. 27
GENOVESE, E. FOX-GENOVESE, E. Fruits of Merchant capitalism. New York, oxford university press,
1983, p.4 28
Cf. SMITH, Adam. A Riqueza das Nações (1776). Vol. I, São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 373.
7
século XVII os engenhos brasileiros produziam uma média entre 3.500 e 4.500 arrobas
anuais29
.
A verdade é que o consumo de açúcar brasileiro expandiu-se apenas para as bordas da
sociedade senhorial. No seu teto, a exportação de açúcar brasileiro daria para fornecer apenas
760 gramas de açúcar per capta à Europa Ocidental30
. O mercado de massas para os produtos
coloniais é, portanto, uma realidade do século XVIII, engendrada no conjunto do Império
inglês, sobre o qual direi algumas palavras31
.
De todo o modo, é um equívoco falar em “projeto arcaizante” para a colonização
portuguesa tendo em vista a verdadeira “revolução” produzida pelo capital mercantil no
Atlântico Português, onde havia terras livres, ausência de servidões coletivas e mão-de-obra
disponível através do comércio de homens. No entanto, a passagem de uma economia
senhorial a uma economia capitalista e industrializada não ocorreu na Península Ibérica
fundamentalmente por causa de suas condições “internas”, revelando, por assim dizer, o
caráter conservador do capital mercantil. Configura-se assim na colonização portuguesa uma
espécie de “modernidade possível” para os séculos XVI e XVII presidida pelo capital
mercantil.
Mas como sintetizar analiticamente a experiência colonizadora lusitana nos seus dois
primeiros séculos, particularmente em seus desdobramentos americanos? A unidade entre
Portugal e seus domínios era, num primeiro nível, política e institucional: o serviço nas
conquistas estreitava o laço do monarca com os seus súditos do Ultramar e eram reproduzidas
as instituições lusitanas (câmaras, santa casas de misericórdia, etc.) nas colônias, mas, como
já foi dito, era o capital mercantil que organizava os fluxos e dava unidade ao diverso. Um
império mercantil.
29 Dados da produção da Madeira e de São Tomé retirados de ROMERO MAGALHÃES, op. cit. pp. 159-160 e
p. 171 Dados para o Brasil, ver SIMONSEN, Roberto. História Econômica do Brasil. 3ª ed., São Paulo: Cia.
Editora Nacional, 1957, p. 114, SCHWARTZ, op. cit., p. 150. Simonsen dá valores entre 1e 4 milhões de
arrobas para o início do século XVII. Creio, porém, que é improvável que a produção brasileira tenha
ultrapassado em muito a 1 milhão de arrobas neste período. 30
Calculando uma exportação de 4 milhões de arrobas em 1610, que julgo bastante exagerada como já expressei,
segundo número de SIMONSEN, op. cit., p. 114 e uma população de 75,9 milhões, segundo Kriedte (apud:
ROMANO, Ruggiero. Coyunturas opuestas. Mexico: FCE, 1993, p. 32). 31
Aliás, como nota Mintz: “La declinación de la importância simbólica del azúcar ha ido a la par com el
aumento de su importância económica e diteática. A medida que se hacia más barato y abundante, su potencial
como símbolo de poder cayó, mientras que su potencial como fuente de ganancia fue aumentando
gradualmente.” MINTZ, op. cit., p. 135.
8
3. A Inglaterra. Estrutura de propriedade na agricultura e colonização.
A historiografia marxista recente vem afirmando que o impulso para o desenvolvimento
do capitalismo surgiu em regiões restritas da Europa Ocidental, nos Países Baixos e
principalmente na Inglaterra. Foi na Inglaterra onde ocorreu um processo irreversível de
dissociação entre o produtor direto e os meios de produção, com a decorrente consolidação de
uma relação social de produção baseada na subordinação do trabalho ao capital.
Os fundamentos das mudanças estavam na agricultura, pela dissolução da economia
camponesa e pela geração de um novo modo de produção que permitiu a geração de
excedentes de mão-de-obra, matérias prima e alimentos, condições necessárias para a
Revolução Industrial do final do século XVIII32
.
As transformações na agricultura inglesa têm origens no que alguns autores da tradição
marxista chamaram de declínio da servidão e decorrente “crise do feudalismo” 33
. Como se
sabe, o colapso demográfico do século XIV e as revoltas camponesas fizeram que a servidão
caísse em desuso por toda a Europa Ocidental. Mas a evolução nas relações agrárias foi
bastante desigual: na Inglaterra os senhores conseguiram apropriar-se das terras livres,
abandonadas durante o século XIV, que passaram a ser controladas de modo contratual;
também as terras dos antigos domínios passaram por um processo parecido34
.
Já no século XVI, tem início o que a historiografia convencionou chamar de
cercamentos, estimulados pelo crescimento do comércio de lã. Sucede assim um processo de
longa duração com a concentração das parcelas de terras abertas em blocos unidos e
compactos, conversão de terra de agricultura em prados e a ampliação do perímetro das terras
dos grandes proprietários e dos yeomen em detrimento dos terrenos comunais35
. O resultado,
segundo Ellen Wood, foi que:
um número crescente [de arrendamentos] ficou sujeito a aluguéis pagos em dinheiro –
aluguéis fixados não por padrões legais ou consuetudinários, mas pelas condições do
mercado. Havia, de fato, um mercado de arrendamentos. Os arrendatários eram obrigados a
32 Cf. O‟BRIEN, P. Inseparable connections: trade, economy, fiscal state, and the expansion of Empire, 1688-
1815. (53-77). MARSHALL, P. J. (ed.) The Oxford history of the British Empire, the eighteenth century. New
York: Oxford University Press, 1998. 33
Cf. HILTON, R. H. The Decline of Serfdom in Medieval England. London, MacMillan, 1969. 34
BRENNER, R. Estructura de clases agrarias y desarollo económico en la europa preindustrial. In: ASHTON,
T. H. e PHILIPIN, C.H.E. (eds.). El Debate Brenner. Barcelona: Editorial Crítica, 1988. 35
SLICHER VAN BATH, B. Historia Agraria de Europa Ocidental, 500-1850. 2ª ed. Barcelona, ediciones
península, 1978, p.
9
competir não só no mercado de consumidores, mas também num mercado de acesso à terra.
Quando a segurança do arrendamento dependia da capacidade de pagar o aluguel vigente, a
produção não competitiva podia significar a perda direta da terra. Para fazer frente aos
pagamentos monetários, numa situação em que outros arrendatários potenciais competiam
pelos mesmos arrendamentos, os arrendatários eram obrigados a produzir por um custo
eficiente, sob pena de serem desapropriados36
.
Mas o processo dos cercamentos teve um efeito secundário e não menos importante. A
população rural pobre na Inglaterra, geralmente proprietária de pequenas parcelas de terras
que mal serviam para sustentar a família, e os pequenos artesãos rurais dependiam dos
comuns para complementar a sua renda. A população rural, privada do acesso à parte de seus
meios de subsistência, precisou se engajar no trabalho rural sazonal. Tal situação se
consolidou no final do século XVIII quando a tríade latifundiários, arrendatários capitalistas e
trabalhadores assalariados tornou-se a estrutura característica do campo inglês37
.
A formação de um “capitalismo agrícola”, para usar a expressão de Ellen Wood, na
Inglaterra e as transformações na organização estatal38
daquele país, sustentaram a expansão
comercial e o crescimento do Império a partir da segunda metade do século XVII. A renda
gerada pela maior produtividade agrícola criou a demanda pelos produtos coloniais e, de
modo indireto, a expansão da exportação de produtos manufaturados ingleses para as colônias
como pagamento pelas importações de açúcar e tabaco39
. As inovações na taxação e na
organização da dívida pública a partir da Revolução Gloriosa garantiram a hegemonia
colonial inglesa frente à concorrência das demais nações da Europa40
.
No entanto, não se deve dar um protagonismo exclusivo para a agricultura, pois como
argumenta Blackburn:
Sem desenvolvimento industrial concomitante, os aperfeiçoamentos agrícolas teriam criado
mais desemprego e poderiam ter afundado o próprio avanço agrícola ao negar-lhe um fluxo
de implementos e um mercado preparado41
.
36 WOOD, op. cit. p. 84.
37 ID. E é a pressão da concorrência que levará aos arrendatários ingleses a adotarem o “sistema Norfolk”,
caracterizado pela rotação quadrienal das culturas e da conjugação de cultivo de cereais com a criação de gado
(cf. FONTANA, J. Introdução ao Estudo da História Geral. Bauru, Edusc, 2001., p. 118). 38
Cf. O‟BRIEN, op. cit. 39
Como nota Brenner, o comércio inglês se expandiu nos séculos XVI e XVII graças ao aumento das
importações (BRENNER, R. Merchants and Revolution. London: Verso, 2003, pp. 3-50). 40
ID. 41
BLACKBURN, op. cit., p. 643.
10
Neste sentido, há uma transição importante entre a “modernidade possível” lusitana e o
capitalismo inglês, particularmente no que diz respeito à experiência colonial. Foi na década
de 1650 que a produção de açúcar deslanchou no Caribe graças à fuga em massa dos
holandeses, oriundos da carreira sul-atlântica. Os refugiados da restauração pernambucana
trouxeram para Barbados a experiência com a produção açucareira e o tráfico de escravos: em
1638 eram 2.000 indenturent servants e 200 escravos, em 1653 a população de trabalhadores
da ilha passou para 20.000 escravos e 8.000 indenturent servants42
.
De acordo com Richard Sheridan, uma “revolução do açúcar” atravessou Barbados
entre 1640-1660, estendendo-se mais tarde para outras ilhas. Esta revolução consistiu na
transformação das pequenas fazendas de tabaco em grandes propriedades de uso intensivo de
capital e trabalho que produziam açúcar e rum para o mercado externo; na dependência frente
à importação de mercadorias, alimentos, serviços financeiros e de transporte; na mudança
para o uso de mão de obra escrava africana; no surgimento de uma oligarquia proprietária
conectada ao governo inglês; na transformação dessas colônias em uma das principais fontes
de disputa entre as potências europeias43
. A revolução, porém, não foi apenas o resultado de
do transplante da experiência açucareira no Atlântico-sul, mas a combinação desta com novos
hábitos e práticas mercantis originadas a partir da economia inglesa44
.
Os dados sobre as plantations das Índias Ocidentais Britânicas mostram diferenças
quantitativas importantes: nas fazendas inglesas, ao que tudo indica, os plantéis de escravos
eram maiores e o uso da terra mais intensivo, resultando numa produtividade superior às suas
ancestrais brasílicas45
. No final do século XVII o açúcar de produção inglesa dominava o
mercado europeu, fornecendo quase 50% do produto consumido na Europa Ocidental46
.
42 Cf. BLACKBURN, op. cit. pp. 279-281.
43 SHERIDAN, R. The Formation of Caribbean Plantation Society. (394-414). MARSHALL, P. J. (ed.) The
Oxford history of the British Empire, the eighteenth century. New York: Oxford University Press, 1998 p. 395. 44
Cf. Cf. DUNN, R. Sugar and Slaves. New York: Norton Library, 1973, p. 65. 45
A comparação entre produtividade é bastante complexa, pois seria necessário levar em consideração as
diferentes conjunturas, regiões, a quantidade produzida de açúcar branco e mascavo e a produção de bebidas
alcóolicas (rum e cachaça) sobre a qual não temos dados comparáveis. Os dados reunidos por Schwartz - que
calcula a produção média pelo número de engenhos em diferentes capitanias do Brasil e em um período que vai
de 1610 até 1786 (mas com uma maior incidência sobre a Bahia) -, apontam uma produtividade que giraria entre
1.034 e 4.762 arrobas por engenho (excluídas duas estimativas absurdas). Por sua vez, dados de Richard
Sheridan para a Jamaica durante o século XVIII permitem calcular uma produção média entre 3.773 e 5.159
arrobas por engenho (ainda que estes números devam ser encarados com reserva, pois dependem de uma
conversão de hogshead para arrobas). O curioso é que a tendência da produtividade dos engenhos brasileiros é
11
Mais importante ainda era a maior integração das primeiras com a economia inglesa.
As plantations caribenhas compravam têxteis, ferragens, produtos manufaturados em geral,
transporte e serviços financeiros da Metrópole, enquanto que os alimentos e parte do
transporte passaram a ser adquiridos nas colônias do continente durante o século XVIII47
.
Além disso, o açúcar era refinado na Inglaterra, favorecendo um ramo específico da indústria
metropolitana48
. Na síntese de R. Balckburn:
O comércio com as colônias quebrou o padrão anterior, no qual a Inglaterra só tinha uma
manufatura de exportação: tecidos de lã. As colônias importavam pregos, panelas, fivelas,
ferramentas e utensílios de todos os tipos, além de vários produtos têxteis. Os Atos de
Navegação não só canalizaram os produtos das plantations para a metrópole mas garantiram
a transformação das colônias em grandes consumidoras de mercadorias inglesas. Eles
possibilitaram um padrão de comércio multilateral entre a Inglaterra, a África, a zona de
plantation e as colônias americanas mais ao norte. A Nova Inglaterra e a Pensilvânia tinham
poucos produtos para exportar para a Inglaterra; isso poderia fazer delas um mercado pobre
para o exportador inglês. Mas o sistema colonial permitiu-lhes conseguir um excedente com
a venda de provisões para as plantations e a construção de navios para o comércio atlântico;
com este excedente puderam comprar, e compraram, produtos manufaturados ingleses49
.
Também na organização do tráfico de escravos observam-se mudanças: no negócio
lusitano a obtenção de escravos não se dissociou da guerra até bem entrado o século XVIII,
outrossim, a participação dos produtos nacionais portugueses era negligenciável, com a única
exceção do vinho. No tráfico inglês, desde o seu estabelecimento regular, eram introduzidas
manufaturas de fabricação nacional no negócio50
.
negativa, ou seja, os números referentes ao século XVII são maiores, enquanto que a jamaicana é positiva. É
possível que a diminuição da produtividade do açúcar no Brasil tenha sido causada pelo aumento na produção da
jeribita que ocorre no final do século XVII com o seu uso no tráfico de escravos (Dados em SCHWARTZ, op.
cit., p. 150 e SHERIDAN, R. B. The Wealth of Jamaica in the Eighteenth Century. The Economic History
Review, New Series, Vol. 18, n 2 (1965), 292-311, p. 303, Sobre a cachaça, ver CURTO, José C. Álcool e
Escravos. O comércio luso-brasileiro do álcool em Mpinda, Luanda e Benguela durante o tráfico atlântico de
escravos (c. 1480-1830) e o seu impacto nas sociedades da África Central e Ocidental. (trad.) Lisboa: Vulgata,
2002). 46
Cf. DUNN, R. Sugar and Slaves. New York: Norton Library, 1973, p. 48 e 210-211. 47
Vale dizer que parte da renda obtida pelas colônias da Nova Inglaterra sobre as Índias Ocidentais era utilizada
para pagar a importação de manufaturados da metrópole. 48
Sobre os diferentes estímulos das plantations à economia inglesa, ver SHERIDAN, R. B, The Wealth op. cit. ,
esp. p.305. 49
BLACKBURN, op. cit. p. 323. 50
Cf. DAVIES, K. G. The Royal African Company. (2a ed.), New York: Atheneum, 1970 e INIKORI, Joseph,
Slavery and the revolution in the cotton textile production in England. (145-182) in: INIKORI, Joseph and
ENGERMAN, Stanley. (eds.). The Atlantic Slave Trade: Effects on Economies, Societies, and Peoples in Africa,
the Americas, and Europe. (1-21). Durham/London: Duke University Press, 1992
12
Por último, a plantation inglesa revolucionou o mercado de consumo: de um produto de
luxo o açúcar tornou-se um acompanhante indispensável (ao lado do café e do chá) à nova
sociabilidade burguesa do fim do século XVII e início do século XVIII. Para a década de
1690 Carole Shammas calcula que as importações inglesas de açúcar poderiam fornecer
produto suficiente para ¼ da população adulta inglesa51
.
Ressalte-se que a “nova plantation” das Índias Ocidentais não era apenas resultado das
forças produtivas capitalistas produzidas na metrópole ou então da mentalidade “mais
capitalista” dos planters ingleses, aliás, espero já ter demonstrado o equívoco de expressões
deste tipo. Pois o estímulo para o crescimento da produtividade vinha em grande parte da
concorrência pelo mercado do continente onde o açúcar inglês disputava com a produção de
Saint-Domingue e do Brasil52
. Mais um ponto de confluência entre a experiência colonizadora
lusitana e o “novo sistema colonial” britânico.
4. Portugal: da crise “geral” do século XVII à crise do ouro.
O surgimento da Inglaterra como potência colonial e econômica principal, após a
Guerra de Sucessão Espanhola, e o auge da produção de açúcar da América Portuguesa foram
separados por mais ou menos um século, quando ocorreram dois eventos de grande
transcendência para a Europa: a crise do século XVII e a Guerra dos 30 anos.
Na análise clássica de Hobsbawm, a crise afetou particularmente as zonas ligadas ao
Mediterrâneo que haviam sido beneficiadas pela expansão dos séculos XV e XVI. Zonas de
economias senhoriais, ligadas à produção de produtos de luxo, em que o investimento
geralmente tomava as vias das obras urbanas e da compra de propriedades senhoriais. Zonas
estas onde o tradicionalismo das relações sociais no campo teria produzido uma crise “de tipo
antigo”, com a queda na produção rural e decorrente crise demográfica. No noroeste da
Europa, onde predominavam as já referidas relações sociais capitalistas, os resultados da crise
foram bem diferentes, a aceleração nas transformações do campo, o recrudescimento da
51 Apud: BLACBURN, op. cit.
52 Sobre a concorrência, particularmente a francesa, cf. Sheridan, op. cit. 406-409.
13
“proto-indústria” rural, o surgimento de um novo tipo de colonialismo e a “captura” dos
mercados tradicionais pelos mercadores e pelas marinhas holandesa e inglesa53
.
Importa aqui discutir os efeitos da crise e da guerra dos 30 anos sobre o complexo
Atlântico português: em primeiro lugar, a guerra teve como efeito imediato a dissolução de
certos arranjos institucionais e mercantis que favoreciam os grupos mercantis multinacionais
no interior do Império Habsburgo. Em 1591 a expulsão dos rebeldes da Holanda e Zelândia
do comércio direto com o Brasil, reiterada pela proibição ao acesso dos domínios coloniais
portugueses pelos navios estrangeiros em 1605, definiu o exclusivo metropolitano, reiterado
durante os dois séculos seguintes.
Estas medidas não chegaram a excluir de todo os grupos mercantis cristãos-novos que
atuavam desde Amsterdam e Lisboa no comércio de açúcar, mas obrigaram a uma
reorganização nos métodos de comercialização e financiamento, ademais, segundo Leonor
Freire Costa o seu resultado do ponto de vista da proteção à indústria naval portuguesa foi
efetivo54
. Vale dizer que apenas mais tarde desenvolveram-se as reflexões mercantilistas,
particularmente entre autores ingleses e franceses, retardatários no processo de expansão
colonial, mas que terão forte influência sobre as políticas e o pensamento português depois da
Restauração55
.
Outro desdobramento da guerra foi a intervenção das Províncias Unidas no Atlântico-
Sul entre 1621 e 1654, capturando portos no Brasil na Costa da África, isto num momento em
que os preços do açúcar já reagiam à queda demanda europeia, nos princípios da crise geral
do século XVII. Só que a guerra na verdade salvou o negócio do açúcar de mergulhar na
depressão, pois a destruição do parque produtivo, as perdas pelo corso e as demoras nas frotas
53Cf. HOBSBAWM, E. A crise geral da economia europeia no século XVIII. (7-76), in: As Origens da
Revolução Industrial. São Paulo: Global, 1979. Ver também ROMANO, Ruggiero. Coyunturas opuestas.
Mexico: FCE, 1993 que considera a que a crise não afetou a América. 54
Cf. Cf. PUNTONI, Pedro. A Mísera Sorte. A escravidão africana no Brasil Holandês e as guerras do tráfico no
Atlântico-sul, 1641-1648. São Paulo: Hucitec, 1999, pp. 32-58 e COSTA, op. cit., p. 142 e passim. 55
Cf. WILSON, Charles. „Mercantilism‟: some vicissitudes of an Idea. The Economic History Review, New
Series, Vol. 10, no. 2 (1957), pp. 181-188, SCHMOLLER, Gustav. The Mercantile System and its Historical
Significance (1884). Evergreen Review, 2008, 55
CLEMENT, Alain. English and French mercantilist thought
and the matter of colonies during the 17th century. Scandinavian Economic History Review, Vol 54, no. 3, 2006
(291-323), MACEDO, Jorge B. Mercantilismo. in: Joel Serrão (dir). Dicionário de História de Portual. Porto:
Liv. Figueirinhas, T-III, 2002, p. 272 e CARDOSO, José L. Pensar a Economia em Portugal: Digressões
Históricas. Lisboa: Difel, 1997, pp. 59-80.
14
dificultavam o abastecimento de produtos coloniais à Europa, aumentando as margens de
preços entre os dois continentes e incentivando o investimento na produção em novas áreas56
.
O fato é que a crise atrasou-se por mais ou menos cinquenta anos, até cair com peso
sobre o conjunto do Império português. Assim, se entre 1650 e 1660 Portugal enfrentou os
custos crescentes da guerra de Restauração, nas duas décadas seguintes os problemas se
estenderam em razão de uma forte crise econômica, afetando as receitas do Estado e a balança
de pagamentos; reflexos de uma redução geral nos preços dos produtos coloniais, açúcar,
tabaco e cravo, e da diminuição do comércio de sal português que trazia saldos de prata ao
Reino.
A pressão sobre as receitas do Estado obrigaram à monarquia a procurar novas fontes de
renda, gerando impostos sobre o produto interno e procurando reestabelecer o comércio com a
Índia57
. Além disto, foram colocados em prática os projetos do Conde de Ericeira e do
marquês da Fronteira para criar manufaturas sob o patrocínio Real, as leis suntuárias de 1677
e a desvalorização da moeda de 1688.
A relação de preços favoreceu os produtos manufaturados em detrimento das mercadorias
coloniais, estimulando a transferência dos capitais do comércio para as manufaturas e gerando
um surto manufatureiro em Portugal. A industrialização portuguesa de finais do século XVII
foi, contudo, um “voo de galinha”, a retomada nos preços dos produtos coloniais e a
descoberta do ouro no interior do Brasil recuperaram a capacidade portuguesa de importar58
.
Também as receitas produzidas pelos quintos permitiu congelar as reformas no aparato fiscal
português. Seria necessário esperar a ascensão de Pombal e uma nova crise econômica para as
reformas serem retomadas59
.
Por sua vez, o Tratado de Methuen (1693) garantiu mercado para o vinho português. Com
mercados e lucratividade certos os capitais voltaram a se concentrar no comércio colonial e na
vinicultura. Os têxteis ingleses invadiram Portugal e a comunidade mercantil inglesa passou a
56 Cf. ROMANO, op. cit., COSTA, op. cit. p. 218.
57 Cf. CARRARA, Angelo. As receitas imperiais portuguesas. Estruturas e conjunturas, working paper, p. 13.
Ver Ainda HESPANHA, op. cit., p. 142. 58
Toda esta descrição da crise é baseada em GODINHO, Vitorino M. Portugal, as frotas do açúcar e as frotas do
ouro (1670-1770). in: Ensaios II (295-315), Lisboa: Livraria Sá e Costa, 1968. 59
HESPANHA, op. cit.
15
fornecer as mercadorias necessárias para atrair o metal amarelo para a Europa durante o
século XVIII60
.
A superação da crise do século XVII teria sido um primeiro “momento crucial no
subdesenvolvimento português” pela industrialização e a reforma do Estado perdidas? A
historiografia dos séculos XIX e XX gastou rios de tinta no debate a respeito dos efeitos do
Tratado de Methuen e do colapso das experiências manufatureiras durante o reinado de D.
Pedro II61
; já as pesquisas mais recentes de Hespanha e Carrara permitem colocar a questão
do ponto vista da fiscalidade e da organização estatal (ou seja, com a descoberta do ouro se
reduziriam os impulsos para uma modernização fiscal e do Estado).
Aliás, esta “imobilidade” da economia portuguesa na primeira metade do século XVIII
verifica-se por uma população praticamente estagnada, pela macrocefalia de Lisboa e pelo
peso das atividades tradicionais, de modo que o ouro favoreceu principalmente a vinicultura62
.
O fato a ser destacado por enquanto é a impossibilidade de Portugal absorver nesta
conjuntura os estímulos econômicos do império, de maneira que a relação entre colonização e
indústria nacional pode ser interpretada, nesses quadros, pela oposição. As coisas mudarão no
final do século XVIII, mas isto será avaliado depois. Portanto, na passagem do século XVII
para o XVIII o estímulo da colonização ao desenvolvimento industrial deve ser procurado
alhures.
A historiografia clássica procurou ressaltar os vínculos entre a economia inglesa e o
Império português, especialmente durante o “ciclo do ouro”. Dados reunidos por Virgílio
Noya Pinto mostraram a sincronia entre os défices da balança de pagamentos portuguesa, a
produção de ouro brasileira e as cunhagens de moeda em Londres63
. Também o papel da
60 GODINHO, As frotas, op. cit.
61 Para a interpretação tradicional sobre os efeitos negativos do Tratado de Methuen ver SIDERI, Sandro.
Comércio e Poder: Colonialismo informal nas relações anglo-portuguesas. Lisboa/Santos: Edições
Cosmos/Martins Fontes, 1978, para uma crítica PEDREIRA, Jorge. Estrutura Industrial e Mercado Colonial
Portugal e Brasil (1780-1830). Lisboa: Difel, 1994, pp. 41-43. 62
Ver PEDREIRA, Jorge. As conserquências económicas do Império: Portugal (1415-1822). Análise Social,
vol. XXXII, (146-147), 1998, (2º, 3º), 433-461. 63
PINTO, Virgílio Noya. O Ouro Brasileiro e o Comércio Anglo-português. São Paulo: Cia. Ed. Nacional,
1979,, pp. 288, 313. Cf. ainda FISHER, H. E. S. De Methuen a Pombal. O comércio anglo-português de 1700 a
1770. Lisboa: Gradiva, 1984.
16
comunidade mercantil inglesa, estabelecida em Portugal, no financiamento do comércio com
o Brasil foi demonstrado por este e outros trabalhos64
.
As pesquisas mais recentes confirmam a imagem legada pelos historiadores do século
passado e enriquecem ainda mais o quadro. Rita Martins de Souza deu números à sangria de
metais preciosos na metrópole, os pagamentos externos teriam consumido com 72% das
emissões de ouro; já Leonor Freire Costa sugere que parte das remessas de ouro português era
na verdade investimentos no mercado de capitais de Londres, principalmente na dívida
pública e na South Sea Company65
. Mas apesar dos vínculos com a Inglaterra, a organização
do comércio tinha pouco que ver com as redes mercantis multinacionais do século XVI, pois
como registra Leonor F. Costa:
Os créditos a longo prazo concedidos a um grupo nacional que manobrava melhor as redes
brasileiras proporcionavam aos negociantes ingleses, no fecho dos circuitos, tanto o ouro
como a prata peruana (a que a colónia do Sacramento dava escoamento), vincando assim a
submissão dos restantes grupos nacionais ou estrangeiros às estratégias comerciais
inglesas66
.
Este comércio baseado em reexportações teve efeitos positivos sobre a economia
inglesa. Do ponto de vista do comércio, estimulou a navegação entre a Inglaterra e o sul da
Europa e, indiretamente, a ligação marítima com o norte-nordeste, visto que os déficits com o
Báltico eram saldados com moedas de origem ibérica. Observa-se, aliás, um efeito de
encadeamento sobre a indústria naval inglesa, pois uma boa parte dos seus insumos era
adquirida no norte da Europa. Do ponto de vista da agricultura, é importante lembrar que o
comércio anglo-português estava associado ao fornecimento de cereais a Lisboa, em razão das
deficiências da agricultura portuguesa. Já a produção manufatureira era claramente
estimulada, visto que os lanifícios foram uma parte importante das importações de Portugal.
64 CHRISTELOW, Allan. Great Britain and the Trades from Cadiz and Lisbon to Spanish America and Brazil,
1759-1783. In: HAHR. (2-29), nº 27, 1947, MANCHESTER, Alan K. Preeminência Inglesa no Brasil. São
Paulo: Brasiliense, 1973, p. 41, MAXWELL, Kenneth. Pombal e a nacionalização da economia luso-brasileira.
In: Chocolate, Piratas e Outros Malandros. Ensaios Tropicais. (125-156). São Paulo: Paz e Terra, 1999. 65
SOUZA, Rita M. Moeda e Metais Preciosos no Portugal Setecentista. Lisboa, Casa da Moeda, 2005, p. 245 e
COSTA, Leonor F. In: LAINS, Pedro e SILVA, Álvaro F. (org.). História Económica de Portugal. Vol I. [o
século XVIII]. (263-298) Lisboa: ICS, 2005, p.269. 66
COSTA, op. cit., 2005, p. 282.
17
Finalmente, o próprio Estado e as instituições financeiras associadas absorveram ouro e
capitais lusitanos67
.
Até agora sugeri a contribuição do ouro sobre a economia inglesa no sentido do
desenvolvimento do capitalismo, ainda que, como já procurei deixar claro, estes efeitos
econômicos positivos tenham a ver com as transformações estruturais que esta sociedade
vinha sofrendo a partir “de dentro”. Também chamei a atenção para a aparente “imobilidade”
da estrutura social portuguesa durante a primeira metade do século XVIII. Falta abordar as
repercussões da descoberta aurífera no Brasil.
Comecemos pela população, no longo século do ouro a população brasileira saltou de
aproximadamente 200 mil habitantes no final do século XVII para 1.555.200 pessoas no ano
de 1776, quando já se enfrentava a depressão aurífera. Crescimento para dentro, tendo em
vista que a capitania de Minas Gerais era a mais populosa neste final de século; já a Bahia que
no final do Seiscentos concentrava em torno de metade da população (100 mil), havia
crescido bastante, mas nada comparável com a expansão do sertão, 288.648 habitantes em
177668
. De resto, a historiografia já escrutinou a maior parte dos efeitos do rush minerador: a
maior integração dos mercados coloniais, o crescimento no preço dos escravos, o avanço para
o interior, o desenvolvimento de uma agricultura de abastecimento no centro-sul, a
urbanização, etc. 69
Mas acredito que do ponto de vista imperial é sobre a fiscalidade que o impacto é maior.
Se durante o século XVII a despesa havia determinado a receita, durante o século XVIII o
Estado do Brasil, influenciado pelo fenômeno minerador, passou a produzir superávits fiscais
constantes, resultando em transferências líquidas avultadas para a metrópole. Angelo Carrara
calcula que as remessas de Minas Gerais apenas somaram 41.676.471.267 réis entre 1700 e
67 Cf. INIKORI, Joseph. African and the Industrial Revolution in England: A study in international trade and
economic development. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, pp. 206-209. O comércio com Portugal e
Espanha foi particularmente importante para a manufatura de lã na Inglaterra durante a primeira metade do século
XVIII, tendo em vista que as exportações destes têxteis para a Europa Continental estagnaram, com a única exceção da
Península Ibérica. (cf. DAVIS, R. English foreign trade, 1770-1774. The Economic History Review,(285-303). New
Series, Vol. 15, n 2 (1962), p. 287. 68
Dados do final do século XVII, CARRARA, op. cit., 2011, pp. 32-33, para 1776, ALDEN, Dauril. O período
final do Brasil colônia, 1750-1808. In: BETHELL, Leslie. História da América Latina. Vol. II (527-592), São
Paulo: Edusp, 1999, p. 529. 69
CARRARA, Angelo Alves. Minas e Currais. Produção Rural e Mercado Interno de Minas Gerais, 1674-
1807. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2007 e
18
1808, valor que teria permitido adquirir em torno de 200 mil escravos; ou seja, o fisco custou
a Minas algo próximo a 2 mil escravos por ano70
.
Tamanha drenagem da riqueza produzida só pode ser resultado da invenção de uma
verdadeira máquina fiscal. De fato, a historiografia já havia notado as diferentes inovações da
administração local a partir da descoberta do ouro, particularmente na cobrança do quinto que
teve no sistema de captações (1734-1750) sua manifestação mais espetacular71
. Mas a esta
pressão sobre o imposto mais célebre deve-se somar a unificação da escrituração fiscal de
Minas, aliada à separação da capitania de Minas Gerais de São Paulo em 1720.
As repercussões da produção mineradora sobre a administração e a fiscalidade foram,
outrossim, imperiais. Como mostra o trabalho de Guilherme Conigiero, nas décadas de 1720 e
1730 cresceram as pressões sobre o conjunto do Império: a Coroa aumentou os impostos
sobre as exportações de escravos em Angola, reprimiu a prática de comércio por parte dos
governadores e demais oficiais e centralizou a arrematação dos contratos no Conselho
Ultramarino em Lisboa que antes eram arrematados nas provedorias do Brasil. Este último
ponto é importante porque não foram apenas os contratos de Minas, mas os mais rentáveis do
conjunto do Atlântico português, revelando um processo de centralização. Deste modo,
A centralização das arrematações dos contratos do ultramar foi fundamental à coroa para
garantir as remessas que os provedores das capitanias passaram a fazer. Primeiramente
porque conferiu o maior controle da coroa sobre os preços dos contratos. Em segundo lugar
porque, tendo pleno conhecimento das rendas das capitanias (que provinham dos
pagamentos dos contratos), o rei saberia o quanto poderia pressionar os provedores no
tocante às remessas. Por último, sendo os contratos preferencialmente arrematados e
controlados por homens de negócio metropolitanos, mesmo os descaminhos parariam, em
grande parte, na metrópole, nas mãos dos emprestadores da coroa. Claro que a centralização
das arrematações em Lisboa não excluiu por completo a possibilidade dos negociantes
residentes na colônia, através de procuradores, arrematarem rendas reais, o que de fato
aconteceu algumas vezes. Na prática, no entanto, muito provavelmente os coloniais não
conseguiam competir com os da metrópole, não só em termos financeiros como na questão
da estreiteza das relações com a coroa72
.
70 CARRARA, Angelo. Receitas e despesas da Real Fazenda no Brasil, século XVIII, Juiz de Fora, UFJF, 2009,
p. 61. A quantidade de escravos que poderiam ser comprados foi calculada a partir de um preço estimado de 200
mil réis, já que os preços dos escravos adultos em Minas Gerais parecem ter variado entre 150 e 350 mil réis
durante o século XVIII (cf. p. 257. 71
PINTO, op. cit., pp. 60-61. Ver também GUERZONI Fo., Política e crise do sistema colonial em Minas
Gerais. Mariana: UFOP/ICHS, 1986, pp. 22-37. 72
CONIGIERO, Guilherme. Os contratos de Angola no século XVIII, notas de pesquisa. working paper, p. 6.
Em anexo neste relatório.
19
Some-se a isto a maior regulação no abastecimento, com as tentativas de centralizar as
exportações minerais no porto do Rio de Janeiro, o controle das rotas do interior por uma rede
de alfândegas secas, o reforço no sistema de frotas escoltadas em torno dos três principais
portos do Brasil e a tentativa de regular o tráfico de escravos, especialmente na Costa da Mina
onde o ouro era contrabandeado para as feitorias holandesas e inglesas. Tudo isto para
garantir que o comércio e os tributos não se descaminhassem em meio ao Atlântico.
As transformações na colônia contrastam com a imobilidade metropolitana na primeira
metade do século XVIII. Ao mesmo tempo, o sucesso da centralização fiscal sugere que a
mão do Estado, ao menos no que realmente interessava, pesava mais aqui do que em Portugal;
talvez porque os poderes concorrentes instalados aqui fossem muito mais frágeis, refletindo a
geral transitoriedade do Ultramar73
. Minha conclusão: é um equívoco simplesmente
transplantar os modelos societários reinóis à colônia, ainda que formalmente repitam-se
fórmulas e instituições portuguesas.
Contudo, na década de 1760 a produção de ouro já mostrava sinais de esgotamento: a
redução, porém, apresenta-se de modo lento, refletindo o caráter particular da extração do
minério. Na década de 1770 é que se constata uma verdadeira depressão, todas as atividades
coloniais acompanham a mineração em sua trajetória negativa em parte porque a execução de
dívidas e o pagamento de créditos podem ter contaminado as atividades agrárias não
diretamente ligadas ao ouro74
.
4. A conjuntura: 1776-1807
Mas antes mesmo da depressão alcançar o seu ponto máximo observaram-se algumas
modificações na regulação mercantil do Império, entre as quais o fim do regime de frotas e
das limitações na navegação africana. Mais importante ainda foi a criação das companhias de
comércio monopolistas, exemplo mais bem acabado do “mercantilismo tardio” português,
com sérias repercussões sobre a evolução posterior da economia imperial. Vale a pena tratar
um pouco mais sobre estas instituições:
73 Discordo, portanto, da opinião de Alberto Gallo, cf. GALLO, Alberto. Racionalidade Fiscal e ordem colonial.
Texto apresentado no Colóquio Internacional Economia e Colonização na Dimensão do Império Português, São
Paulo, 30 de Setembro, 2008. 74
Cf. MENZ, Maximiliano M. Reflexões sobre duas crises econômicas no Império Português. (artigo inédito),
pp. 9-10. Em anexo neste relatório.
20
Segundo um papel chamado “Razões Políticas pelas quais as Companhias Gerais de
Comércio se julgam úteis e necessárias ao Reino de Portugal”, anexo à correspondência de
Mendonça Furtado e talvez de autoria dele ou de Pombal, o maior problema de Portugal era a
ausência de manufaturas nacionais que deixava o povo na miséria e, pela importação destas ao
estrangeiro, exauria a moeda da nação. Sendo assim,
É muito necessário o estabelecimento de fábricas para fazer-nos felizes e independentes
nesta parte do jugo Estrangeiro, se considerou também que as Fábricas não poderiam se
sustentar-se no Reino sem que houvesse uns corpos que tendo a regulação do comércio, se
vissem ao mesmo tempo, não só de protetores das Fábricas, mas também animassem a
cultura das Terras (...) nos Domínios da América.
O texto vai mais longe, reconhecendo que companhias privativas podiam ser
prejudiciais a um reino onde as manufaturas já estivessem estabelecidas, para Portugal,
“aonde as manufaturas não estão estabelecidas e se pretendem estabelecer, é muito
necessário que se estabeleçam companhias”75
. Esta citação basta para expressar minha
opinião a respeito de uma velha controvérsia, sobre a divisão da política pombalina entre uma
primeira fase comercial e uma segunda fase manufatureira, demarcadas pelo casuísmo das
circunstâncias76
. Afinal as companhias de comércio eram parte de um projeto de fomento
manufatureiro, nos quadros de uma política mercantilista bastante coerente77
.
De todo o modo, é equivocado transformar o marquês do Pombal no demiurgo do
“capitalismo português”. Afinal, é surpreendente como foi possível levantar capitais (3.715
contos) para as três principais companhias num período relativamente curto, especialmente
considerando o generalizado fracasso de tentativas anteriores (nos séculos XVII e XVIII) e
que estas companhias foram formadas logo após o terremoto, com todas as perdas que
acarretou à comunidade mercantil de Lisboa.
Parece-me que parte da explicação esteja justamente na renovação do grupo mercantil
após o terremoto e nas mudanças estruturais que atravessaram o Brasil na primeira metade do
75 AHU, Avulsos, Pará, cx.39, doc. 3674, anexo na correspondência de Francisco Xavier Mendonça Furtado,
10/11/1755. 76
Cf. GODINHO, As frotas, op. cit., p. 313 e MACEDO, Jorge. Problemas de História da Indústria Portuguesa
no século XVIII. 2ª ed. Lisboa: Querco, 1982, p. 189. 77
Como, aliás, Maxwell já havia notado (MAXWELL, Kenneth. Pombal e a nacionalização da economia luso-
brasileira. In: Chocolate, Piratas e Outros Malandros. Ensaios Tropicais. (125-156). São Paulo: Paz e Terra,
1999 e MAXWELL, Keneth. Marquês de Pombal Paradoxo do Iluminismo. São Paulo: Paz e Terra, 1997).
21
século. Como escreve Pedreira, uma boa parte dos homens de negócio de Lisboa havia
experimentado um estágio no Brasil, de onde se originava a maior parte de suas fortunas;
sendo o retorno a Portugal o culminar de uma carreira bem sucedida78
. A destruição de boa
parte do grupo mercantil após 1755 teria atraído um novo grupo, alguns deles vindos do
Brasil, com capitais ávidos por novas oportunidades de valorização. Assim, se esta hipótese é
correta, a “acumulação endógena” colonial da primeira metade do século teria se
transformado em “acumulação primitiva” na metrópole durante a segunda metade, graças ao
seu investimento em companhias e manufaturas.
Mas qual o alcance desta experiência que visava associar o capital mercantil português
ao capital manufatureiro? Segundo Nuno Luís Madureira, a “acção das companhias contribui
decisivamente para a unidade do Atlântico”79
, integra-se em torno de dois grandes
monopólios que fornecem escravos, compram os produtos coloniais e vendem as mercadorias
manufaturadas sem concorrência em Pernambuco, Paraíba, Maranhão e Grão Pará.
No que diz respeito ao tráfico, o movimento de capitais parece ser pequeno tanto para a
Companhia de Pernambuco como para a Companhia do Grão Pará80
. Além disso, no caso da
primeira, a venda de escravos comprados em Angola produz lucros nulos ou até mesmo
prejuízos, mas no conjunto do negócio o lucro é de 12-16%, graças à venda das mercadorias
de resgate na África. Já no tráfico de Bissau, comandado pela segunda, as cargas de
mercadorias coloniais superaram as cargas de escravos nas rotas triangulares: ambas as
experiências demonstram as vantagens da integração vertical do negócio Atlântico81
.
Mais importante do que isto foi o impacto das companhias sobre o esforço
manufatureiro português. Segundo um documento da época entre 1760 e 1777 a companhia
de Pernambuco havia exportado para o Brasil um valor de 4.551.903.179 réis em fazendas do
norte da Europa e 582.326.313 réis em fazendas das fábricas do Reino, a este valor seria
78 PEDREIRA, Jorge. Os Homens de Negócio da Praça de Lisboa de Pombal ao Vintismo (1755-1822).
Diferenciação, reprodução e identificação de um grupo social. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1995,
passim e PEDREIRA, J. Os negociantes de Lisboa na segunda metade do século XVIII: padrões de recrutamento
e percursos sociais. Análise Social, vol. XXVII, 1992, (2º, 3º ), 407-440, p. 431. 79
MADUREIRA, Nuno L. Mercados e Privilégios. A indústria portuguesa entre 1750-1834. Lisboa: Estampa,
1997, p. 93. 80
Cf. MENZ, Maximiliano. A Companhia de Pernambuco e Paraíba e o funcionamento do tráfico de escravos
em Angola (1759-1775/80). Artigo inédito, em anexo. e MARTINS, Diego C. O tráfico de escravos em Bissau e
a dinâmica da economia Atlântica Portuguesa, 1756-1808. Working paper, em anexo. 81
ID.
22
possível acrescentar 254.446.339 réis de têxteis de linho das ilhas do Atlântico e
1.619.234.143 réis de “efeitos da terra” exportados da cidade do Porto, ambas as categoria
reunindo muito provavelmente produtos de artesanato e da proto-indústria rural. Ou seja,
dependendo do critério, a indústria nacional representaria algo entre 11 e 35% do total de
manufaturas exportadas pela companhia82
.
Mesmo descartando o produto das duas últimas categorias, o documento mostra ainda
uma tendência para a alta no uso de mercadorias nacionais e para a diversificação na
produção. Além disso, a ação das companhias pode ter sido importante para popularizar o uso
de produtos nacionais, ainda que a contragosto dos consumidores coloniais, como atestam as
459 dúzias de tesouras enviadas pela Junta de Lisboa, contra a vontade da direção sediada em
Recife, que provavelmente haviam sido adquiridas na fábrica de tesouras no Sobral83
.
Além de reativar os mercados para as fazendas nacionais, as companhias foram
responsáveis pela compra e mesmo pelo incentivo à produção de insumos, o algodão é o que
teve mais importância no desenvolvimento manufatureiro, mas há de se acrescentar a urzela,
marfim, goma copal e goma jutabá, produtos que eram fornecidos às fábricas e permitiam
saldar parte das compras84
.
O balanço das companhias, para Madureira, é “um saldo positivo a favor da autoridade
do Estado e da repressão do contrabando e um déficit no desenvolvimento económico das
colónias”; considero que esta opinião é em parte equivocada, pois a ação da Companhia do
Grão Pará claramente favoreceu o desenvolvimento da agricultura escravista no norte do
Brasil; já o saldo da Companhia de Pernambuco é mais controvertido. Seja como for, é
82 AHU, Avulsos, Pernambuco, cx. 128, doc. 9717. Mapa da despesa das fazendas compradas nas fábricas do
Reino, 31/12/1777. Os “efeitos da terra” da cidade do Porto estão separados dos “comestíveis”. Aceitando o
número maior (35%), a conclusão seria que a Companhia de Pernambuco de fato preferia utilizar fazendas de
produção nacional (ver adiante). 83
No contexto do debate a respeito da renovação do privilégio da companhia, a direção de Pernambuco, que
administrava o comércio localmente, produziu uma lista com todos os gêneros pedidos e os efetivamente
remetidos pela Junta de Lisboa para se escusar das acusações de má administração. No caso das tesouras, haviam
sido pedidas apenas 20 dúzias e a Junta enviou 479 dúzias. (cf. AHU, Avulsos, Pernambuco, cx. 130, doc. 9823,
anexo na correspondência de José César de Meneses, 13/07/1778). 84
MADUREIRA, op. cit., p. 95.
23
necessário recordar que estas empresas sofreram com uma crise econômica que lhes foi
alheia85
.
Na década de 1770, em razão da depressão mercantil, foi acelerado o fomento às
manufaturas, privilegiando a produção de substitutos a similares importados. Mas os
resultados ainda eram modestos, as manufaturas nacionais portuguesas eram menos de 25%
do total exportado para o ultramar em 177786
.
Contudo, na década de 1780 a conjuntura começou a virar: ao norte do Equador, o
Maranhão e o Pará cresciam estimulados pelas importações crescentes de escravos e pelas
exportações de algodão, estas passaram de 15 mil arrobas em 1770 para 47 mil arrobas em
178087
. Também os produtos tradicionais exportados pelas praças centrais - Pernambuco,
Bahia e Rio de Janeiro - se recuperaram. O tabaco saltou de uma média anual de 226 mil
arrobas para as 440 mil arrobas exportadas entre 1781-1785, e o açúcar que durante a década
de 1770 não passava as 600 mil arrobas anuais, talvez tenha alcançado algo entre 800 mil e
900 mil arrobas. A média de toneladas anuais de produtos brasileiros descarregados em
Lisboa passou de 21.241 na década de 1770 para 36.651 na década de 178088
.
É na década seguinte, porém, que sucedeu uma inflexão decisiva na conjuntura
comercial, reflexo da Revolução Francesa. O ano de 1791 testemunhou uma revolução no
mercado internacional de produtos coloniais, com a exclusão de Saint-Domingue. A guerra
marítima entre a Inglaterra e a França, iniciada em 1793, também dificultou o abastecimento
de produtos tropicais à Europa. Ocorreu assim um forte crescimento no volume das
exportações do Brasil: entre 1796 e 1807, o Brasil exportou médias anuais de 385 mil arrobas
de algodão, 1.985 mil arrobas de açúcar e em torno de 480 mil arrobas de tabaco89
.
85 ID., p. 91. Madureira sugere que a crise foi aprofundada pela própria ação das companhias, por uma estratégia
de “estrangulamento econômico” (p. 97). Creio, porém, que a ideia é equivocada visto que todas as capitanias
sofreram com a crise. Assim, comparando o período de 1746-1760 com 1760-1775 pelos dados do database
constata-se que a depressão no tráfico de escravos foi mais severa na Bahia (-24%), onde havia comércio livre do
que em Pernambuco (-15%). 86
87
ALDEN, p. 566, NARDI, p. 339, tabela XI.2. As exportações de tabaco contabilizadas por Nardi incluem
Costa da Mina e Índia. 88
FRUTUOSO, E., GUINOTE, P., LOPES, A. O Movimento do Porto de Lisboa e o Comércio Luso-Brasileiro
(1769-1836). Lisboa: CNCDP, 2001, p. 58. 89
ARRUDA, tabela 53.
24
É fato que Portugal não logrou manter-se totalmente alheio ao conflito e, portanto, o
corso francês aumentou o custo e o risco nas transações - levando Portugal a retomar o
sistema de frotas comboiadas. Mas a mudança nas alianças europeias, com a Espanha
apoiando uma vez mais a França em 1797, teve consequências econômicas positivas para o
Império luso-brasileiro. A incapacidade marítima da aliança franco-espanhola obrigou à
Espanha utilizar a frota portuguesa para o transporte das mercadorias do Rio da Prata. As
oportunidades no tráfico de escravo também cresceram entre 1794 e 1798, pois os franceses
foram excluídos do negócio pela sua proibição por parte da Convenção. Já a Espanha liberou
a compra de escravos pelas colônias às nações neutras; embarcações de Portugal e do Brasil
passaram a frequentar os portos platinos para negociar escravos90
.
Sobre o tráfico de escravos é necessário dizer algumas coisas: na segunda metade do
século XVIII existiam três zonas de resgate associadas à América Portuguesa, cada uma com
as suas particularidades no que diz respeito ao financiamento, mercadorias utilizadas e grupos
mercantis envolvidos. Ao norte do equador situavam-se as praças de Bissau e Cacheu,
responsáveis por 6% dos escravos embarcados para o Brasil entre 1750 e 1807, zona
conectada às capitanias do Norte onde embarcações de origem reinol faziam rotas
triangulares. Quase na linha situava-se a Costa da Mina, onde foram carregados 23% dos
escravos destinados principalmente ao nordeste; esta zona era dominada pelas embarcações
coloniais que faziam o comércio direto com o Brasil, ainda que esporadicamente navios da
metrópole visitassem a região. Na África centro-ocidental encontrava-se o Reino de Angola,
dividindo-se em dois portos principalmente, Luanda, ao norte, de onde foram deportados 45%
dos escravos e Benguela mais ao sul, que forneceu 15%.91
90 Os números do The Tran-saltlantic Slave Trade Database mostram que entre 1791-1795 entraram 1.633
escravos no Rio da Prata, entre 1796 e 1800 foram 2.889, enquanto que entre 1801-1805 foram importados
14.913 escravos. O fornecimento de escravos dividiu-se principalmente entre embarcações espanholas (30%),
norte-americanas (26%) portuguesas (20%) e inglesas (18%).
http://slavevoyages.org/. Consultado em 12/11/2009. 91
Os dados foram retirados do Transatlantic Slave Trade Database, (http://slavevoyages.org/, consultado em
15/08/2011), utilizando como filtros os portos específicos analisados. É fato, porém, que Costa da Mina era uma
denominação genérica designando diversas praças na região conhecida pelos ingleses de Bight of Benin. Se se
utiliza o filtro de Bight of Benin no Database a participação da “Costa da Mina” sobe a 30%. As informações
sobre o tráfico nestas regiões baseiam-se em MARTINS, op. cit., LOPES, Gustavo Acioli. Negócio da Costa da
Mina e comércio atlântico - tabaco, açúcar, ouro e tráfico de escravos: Pernambuco (1654-1760). São Paulo,
USP [tese de doutorado], 2008 e LOPES, Gustavo Acioli e MENZ, Maximiliano M. Resgate e Mercadorias:
25
No porto do norte os homens de negócio de Lisboa, ligados ao contrato de escravos e às
companhias de comércio, comandavam o financiamento do negócio entre 1750 e a metade da
década de 1770. O fim dessas instituições resultou numa retração dos capitais lisboetas e na
invasão do negócio pelos mercadores do Brasil que até então atuavam principalmente no
negócio de fretes. Os testemunhos do secretário de marinha e Ultramar, Martinho de Mello e
Castro e mais tarde do governador de Angola, o Barão de Mossâmedes, apontam nesta
direção. Os números de passaportes retirados em Lisboa para viagens a Angola confirmam a
retração metropolitana na década de 177092
.
Não se trata de uma retirada definitiva, na década de 1780 e início da de 1790 as
embarcações metropolitanas oscilam em números até que a partir de 1798 observa-se uma
nova invasão de navios metropolitanos que certamente foram responsáveis por fornecer mais
da metade das mercadorias para o tráfico entre 1796 e 180793
. A explicação está na retirada
dos navios franceses que faziam uma forte concorrência na África Centro-Ocidental, nas
oportunidades de comércio com os espanhóis e na recuperação dos preços dos escravos no
Brasil.
O negócio de escravos em si, apesar de garantir saldos comerciais importantes para a
capital do Império, era pouco relevante no conjunto das trocas portuguesas e para a indústria
portuguesa. Basta dizer que as exportações portuguesas para Angola entre 1796 e 1807
equivalem a 34% do ouro exportado pelo Rio de Janeiro, 25% dos mantimentos exportados
pela Bahia e 34% do algodão exportado por Pernambuco. Em suma, em termos de mercado
para as exportações portuguesas, o Brasil valia pelo menos 22 Angolas. Mas é a
transformação de 19 mil contos de réis, investidos em escravos entre 1796 e 1807, em 118 mil
contos exportados em mercadorias e ouro pelo Brasil entre 1796 e 1807 que revela a essência
da “troca desigual” na relação colonial94
.
Uma análise comparada do tráfico luso-brasileiro em Angola e na Costa da Mina (século XVIII). Afro-Ásia, nº
37, 2008. Vale dizer que os números do Database são bastante incompletos. 92
AHU, Avulsos, Angola, cx62, doc.57, minuta de Martinho de Mello e Castro, 22/06/1779, AHU, Avulsos,
Angola, cx 71, doc 52, 15/10/1786. AHU, Códices de Passaportes, livros 773-787. 93
Cf. MENZ, A companhia, op. cit. e MENZ, Maximiliano. O triângulo revelado (artigo inédito, anexo ao
relatório de 2010). 94
19 mil contos entre 1796 e 1807 é a estimativa grosseira do gasto na compra dos escravos importados pelo
Brasil de todas as feitorias da África. Este valor foi estimado a partir dos números de ALENCASTRO, Luiz
Felipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000 e
26
Se no comércio Atlântico a situação era de euforia, do ponto de vista fiscal existiam
problemas: apesar do crescimento das receitas oriundas do Ultramar, particularmente da
alfândega, o aumento dos gastos provocado pela guerra e a inflação comprimiam as rendas
reais. Em 1796 faz-se uso do papel moeda e em 1807 a paralisação do comércio provocou um
verdadeiro colapso, mas a Coroa hesitava em inovar do ponto de fiscal; é fato que a situação
fiscal portuguesa e os seus desdobramentos sociais não chegaram aos pontos extremos da
França pré-revolucionária ou da Espanha na viragem do século, mas os óbices políticos e
sociais eram provavelmente os mesmos 95
.
Ao mesmo tempo, os grandes contratadores, geneticamente ligados às finanças do
Estado, não tinham nada a reclamar, pois obtinham altíssimos lucros com os estancos e
cobrança de impostos. Os grandes lucros obtidos, aliás, desestimulariam o investimento em
áreas de inovação e de risco96
. Mais uma vez estaríamos diante do “arcaísmo lusitano”?
Creio que não. O crescimento da indústria, mesmo após a recuperação comercial da
década de 1790 mostra o fim da associação entre surto manufatureiro e conjuntura comercial
depressiva. Entre 1796 e 1807 a participação das manufaturas portuguesas no mercado
ultramarino subiu para algo em torno de 42 e 52%; os produtos manufaturados ultrapassaram
em valor as mercadorias da agricultura nacional nas exportações; o Brasil era, ademais, o
principal mercado consumidor da moderna indústria de algodão que se desenvolvia ao redor
de Lisboa97
.
Além disso, é notável a forte participação do capital mercantil na organização do
próprio esforço industrial português98
. Ou seja, apesar da imobilização de capitais no
dos preços de escravos de MILLER, Joseph. Slave Prices in the Portuguese Southern Atlantic, 1600-1830. in:
LOVEJOY, Paul (ed.). Africans in Bondage. Studies in slavery and slave trade. Winscosin: African Studies
Program, University of Winscosin, 1986. É claro que não eram apenas os escravos novos que produziam
mercadorias para a exportação, mas no cálculo do milagre da multiplicação colonial não constam as atividades
ligadas ao abastecimento nem a exportação de produtos coloniais para a própria África. Os demais dados foram
retirados de ARRUDA, José Jobson de. O Brasil no Comércio Colonial. São Paulo: Ática, 1980 e MENZ, O
triângulo, op. cit. 95
MADUREIRA, op. cit., p. 127. 96
ID. pp. 115-122. 97
ALEXANDRE, Valentim. Um momento crucial do subdesenvolvimento português: efeitos económicos da
perda do Império Brasileiro. In: Ler História, n 7 (3-45), 1986, p. 20, PEDREIRA, Jorge. Estrutura Industrial e
Mercado Colonial Portugal e Brasil (1780-1830). Lisboa: Difel, 1994, pp. 292-295 e PEDREIRA, As
conseqüências, op. cit., p. 455. 98
Cf. PEDREIRA, Estrutura, op. cit. pp. 160-168.
27
comércio e nos contratos, a prosperidade do final do século XVIII permitia a multiplicação e a
diversificação dos investimentos; vale dizer que as necessidades de capital fixo não eram
assim tão grandes durante a primeira Revolução Industrial99
. Deste modo teríamos em
Portugal um processo análogo ao que a historiografia sobre a industrialização brasileira
chamou de “vazamento do capital cafeeiro para a indústria”, com o capital gerado no
complexo agroexportador sendo investido na indústria em busca de outras alternativas de
valorização100
.
Resta responder a pergunta feita uma vez por Valentim Alexandre: foi a perda do Brasil
um momento crucial do subdesenvolvimento português?
Jorge Pedreira responde a esta questão negativamente, pois para ele o colapso de 1808
está inscrito no mesmo conjunto de causas da expansão mercantil e industrial (ou seja, a
conjuntura política). Além disto, considera limitada a influência social do surto manufatureiro
português, portanto, conclui:
A prosperidade de finais do século XVIII e dos primeiros anos do século XIX, alicerçada no
comércio colonial, de forma alguma conduziria o país ao limiar de um processo de
industrialização semelhante aos que a França, Flandres e a Suíça haviam já (...) iniciado. Faz
lembrar, isso sim, os surtos industriais característicos das economias de Antigo Regime, em
que o incremento da produção encontra rapidamente os seus limites101
.
E, numa síntese publicada um pouco depois:
embora as manufaturas portuguesas tenham registrado algum progresso, nunca desalojaram
as grandes importações de têxteis da Europa e da Ásia, que preenchiam mais da metade das
expedições de panos para o Brasil. Convém salientar que o desenvolvimento da indústria
portuguesa na última fase do antigo sistema colonial não levou Portugal ao limiar da
industrialização moderna. Portanto, o colapso desse sistema, apesar de grave, não pode ser
considerado a causa da incapacidade do país para integrar o grupo dos primeiros países
industrializados.102
Pedreira tem razão em destacar que a expansão e o posterior colapso foram
determinados pelo contexto político europeu. Mas existe algo de teleológico em sua
explicação, tendo em vista que as disputas entre França e Inglaterra não precisavam resultar
99 Cf. Mas sim de capital circulante e este era fornecido pelos mercadores. Ver INIKORI, Africans, op. cit., p.
315 que analisa o caso inglês. 100
Cf. SILVA, Sergio. Expansão Cafeeira e Origens da Indústria no Brasil. São Paulo: Alfa-ômega, 1976. 101
PEDREIRA, Estrutura, op. cit., p. 373. 102
PEDREIRA, As consequências, op. cit., p. 455.
28
necessariamente na ocupação napoleônica ou então na perda do mercado brasileiro. Ceteris
paribus, a pacificação da Europa encerraria a conjuntura comercial positiva, mas não
precisaria redundar numa retração geral das manufaturas portuguesas no mercado colonial103
.
Além disso, os problemas internos da sociedade portuguesa não devem ser encarados
como constrangimentos absolutos. Afinal, as manufaturas portuguesas eram vendidas em
grande parte no Ultramar e não no mercado interno; deste modo não creio que seja correto
equiparar de modo puro e simples o surto português do final do século e XVIII e início do
XIX com “os surtos industriais característicos das economias de Antigo Regime”, já que
Portugal tinha garantidos os mercados e a maior parte da matéria-prima104
.
Assim, ainda que teórica e retrospectivamente possamos apontar alguns gargalos
importantes para o desenvolvimento da indústria portuguesa, é muito provável que
poderíamos encontrar problemas parecidos em regiões mais avançadas da Europa Ocidental
durante o mesmo período. De resto, como lembra W. Cole: “O fato de que o crescimento nos
países industrializados tem sido sustentável na longa duração não prova que a primeira fase
de industrialização torna o crescimento automático em nenhum sentido do termo.”105
Ou seja, de acordo com a historiografia sobre a industrialização brasileira é apenas com
o surgimento de uma indústria de bens de capitais, capaz de se adiantar à demanda e
determinar o processo de desenvolvimento industrial, que se consolida o capitalismo da
grande indústria e a subordinação real do trabalho ao capital106
. E só a partir daí que o capital
passa a se auto-determinar.
Por isto concordo com Valentim Alexandre que a perda do Brasil foi um momento
crucial do subdesenvolvimento português, o que naturalmente não significa dizer que esta foi
103 Isto supondo, segundo o próprio Pedreira, que a pressão inglesa sobre o mercado brasileiro não era ainda
inexorável. 104
Na análise de Braudel, a quem Pedreira se refere, os ciclos industriais do Antigo Regime estariam
condicionados ao surgimento de gargalos “no nível das matérias-primas, da mão-de-obra, do crédito, da técnica,
da energia, do mercado interno e externo”. (BRAUDEL, Fernand. Civilização Material Economia e
Capitalismo: Vol. III, O jogo das trocas. São Paulo: Martins Fontes, 1998, vol. II, p. 305). 105
COLE, W.A. The growth of national incomes. in: The Cambridge Economic History of Europe (Vol VI, Pat
1), p. 10. 106
MELLO, João Manuel Cardoso de. O Capitalismo Tardio. 6ª ed. SP: Brasiliense, 1987, p. 110.
29
“a causa da incapacidade do país para integrar o grupo dos primeiros países
industrializados”.107
Conclusão : As afinidades eletivas, o capitalismo inglês e o colonialismo português.
Portugal lançou as bases da economia Atlântica, desenvolvendo um Império mercantil
que articulava as bordas da Europa, África e América e um tipo de colonização que
sintetizava velhas experiências do senhorialismo com as condições sociais do Novo Mundo.
No início do século XVII este modelo de colonização, premido pelos conflitos europeus e por
uma profunda depressão na economia europeia, deu claros sinais de esgotamento.
Simultaneamente, o noroeste da Europa, particularmente a Inglaterra, passava por
mudanças significativas nas relações sociais de produção e nas estruturas de propriedade. À
constituição de um “capitalismo agrário” liga-se um novo colonialismo, onde se repetem parte
das práticas portuguesas; mas, numa linguagem marxista, diríamos que o colonialismo inglês
“supera” o português. A produção manufatureira inglesa, ainda nos quadros da “proto-
industrialização”, conecta-se a uma nova agricultura e a um novo sistema colonial, tudo isto
presidido por um novo tipo de Estado. As associações positivas e a integração entre as partes
tornam-se cada vez maiores no desenrolar do século XVIII.
Mas o Império português não permaneceu alheio, é preciso lembrar que superar
dialeticamente significa também incorporar. Os mercados coloniais ibéricos possuíram uma
importância marginal para as manufaturas inglesas durante todo o século XVIII; além disso,
transformações na maior colônia portuguesa durante a primeira metade do século XVIII
prepararam significativas mudanças na economia metropolitana nos 50 anos posteriores.
É no final do século XVIII que se integrou o desenvolvimento manufatureiro
metropolitano com a expansão mercantil suscitada pela colônia num processo que guarda
algumas semelhanças com o ocorrido na Inglaterra. Poderíamos falar que no conjunto do
Império português desenvolviam-se forças produtivas capitalistas, a partir do núcleo
manufatureiro/exportador, visto que a agricultura e as instituições portuguesas ainda eram de
Antigo Regime.
107 Pois Portugal necessitaria ainda passar por outras etapas no processo de industrialização, sujeitas a diferentes
problemas. Agora, a perda do Brasil foi crucial porque fez com que o processo de industrialização gorasse na
primeira etapa, por assim dizer.
30
A ruptura em 1808 separa dois destinos de transição capitalista que até então estavam
unidos. Numa margem do Atlântico, o Brasil, à deriva de uma economia escravista que passa
por dificuldades em reconectar-se aos centros mundiais de desenvolvimento capitalista, até a
segunda metade do século XIX com o advento do café. Na outra margem, Portugal,
protagonista de uma longa “Revolução Burguesa” entre as décadas de 1820-1840 que
moderniza as instituições e revoluciona as relações sociais no campo, mas que sem o apoio
colonial sofrerá com grandes dificuldades na transição capitalista.
ANAC o X o o o o o o o o o o D o 02 O 3 o أµ D CD o o a O o أµ o o o o o 3 D o o o O -Q o CD O o O o
Microsoft 32. o o o o o 2 o o o 2. o 2. o o tri o o o o o 2. o o 6 o o 2. o o o o . o o o o o 2. Z o
I-1 %o o% o% %o %o %o %o %o %o t %o آ؛ t %o %o %o %o 8 %o% %o %o o% % 8 %o %o %o t %o %o %o %o %o %o
CD O O o o o o O O a o O o O O o o o O o tri O o a o a O o o a o O o O o . o CD CD o 0 o o O o o a o
Sin t£tulo-2 - 2 a) o o o o o o o Q o o CD o o o o o: o -Q o o o o o o o o co o o o o 8 n) o o o: o
Mintz & price - O Nascimento da Cultura Afro Americana 0-4 O o o O o o o O O o O o E O o O O o o o o
El portal أ؛nico del gobierno. | gob.mx O o o o c o D D O o o o o o o (D O o N o o o o o D D o o o o