capitalismo em crise, política social e direitos ocr

160
v Yv TM PDF Editor

Upload: fernanda-jg-vieira

Post on 25-Oct-2015

1.449 views

Category:

Documents


30 download

TRANSCRIPT

Capitalismo em Crise, Política
Social e Direitos é uma obra fundamental na atualidade para todas as pessoas que lutam pela emancipação política, tendo como horizonte a emancipação humana nesses tempos de barbárie. A abordagem teórica da temática realizada pelos autores é importante para analisar a atual crise estrutural do capital, seus impactos no Brasil, na Política Social e na garantia de direitos, pois refuta as teorias que não levam em consideração a luta de classes como motor da história, colocando-se na contramão das tendências acadêmicas predominantes. 0 livro está apresentado em duas partes. A primeira parte procura compreender a crise atual e desmistificar as análises que fazem referências ao Brasil de forma idealista, como se a crise não tivesse repercussão no país. Ressalta-se como importante a ênfase nas lutas sociais, isto é, a participação dos sujeitos
Capitalismo em crise, política social e direitos
MM H MI A Mil 141*4
Novo Texto
Ademir Alves da Silva Dilséa Adeodata Bonetti Elaine Rossetti Behring
Maria Lúcia Carvalho da Silva Maria Lúcia Silva Barroco
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Capitalismo cm crise, política social c direitos- Ivanete Boschctli. |ct al.| (ofgs,), São Paulo : C" orto/, 2010,
Outras organizadoras: Elaine Rossetti Behring, Silvana Mara dc Morais dos Santos, Regina Célia Tamaso Mioto
Vários autores. Apoio: C AVES/ 1'KOC A D, UnB. LI ; KJ, L I K V L H S C . ISBN" 978-85-249-166'M
l . Capitalismo 2. Desigualdade social 3. Dinritos sociais 4. Politica social 5. TYabalho e classes trabalhadoras I liosclietti, Ivanete. II. Behring, Elaine Rossetti. Ill Santos, Silvano Mara de Morais dm. IV. Mioto. Regina C ólia Tatnaso.
10-12(101 CDP-361 25
índices para catálogo sistemático:
1. Capitalismo e política social 361.23 2. Politica social e capitalismo 361.23
Ivanete Boschetti« Elaine Rossetti Behring Silvana Mara de Morais dos Santos • Regina Célia Tamaso Mioto
(Orgs.)
Apoio CAPES/PROCAD
* - C A P E S
TM
PDF Editor
CAPITALISMO KM CRISE, POLÍTICA SOCIAL E DIREITOS tv.mck> lioschetti • Elaine Rossetti l kh r ing • Silvana Mara de Morais d05 Santos • Regina Ci l ia Tamaso Mioto (Orgs.)
Cirpi: aeroestúdio
Linea Editora Ltda. Liii"uV'!.iy!Ín rt/ííer/rt/: Danilo A. Q. Morales
Xenluima parle desta obra pode st>r ivpnxhizida ou duplicada sem autorização expressa dos autores o do editor
•: 2010 by Organizadores
05014-001 - Sào Paulo SP
E-mail: eorte/.SVortezcditora.com.bi
©ÉSfSSS 5
Apresentação 7
PARTE I Crise do capital, politica social e lutas sociais n
1. Crise do capital, fundo publico e valor Elaine Rossetti Behriitg 13
2. Crise do capital e o socorro do fundo público Evilásio Salvador 35
3. 0s custos da crise para a politica social tvanele Boschetti 64
4. 0 persistente estado de crise: nexos entre Estado, política social e cidadania no Brasil Álvaro André Amorim 86
5. Política social: universalidade versus focalização. Um olhar sobre a América Latina Potyiira Amazoneida P. Pereira e Rosa Helena Stein 106
6. Que democracia? 5oberania popular ou soberania do mercado? Sandra Oliveira Teixeira 131
TM
6 IJOSCHETTI • BEHRING • SANTOS • MIOTO
7. Sociedade civil e lutas sociais na América Latina: entre a harmonização das ciasses e as estratégias de resistência Ire te Simionatto 152
PARTE II
A condição dos direitos no contexto da crise: questões teóricas e incidências particulares 183
8. Politica social e diversidade humana: crítica à noção de igualdade de oportunidade Silvana Mara de Morais dos Santos 185
9. Política educacional e direitos sociais: reconfiguração do ensino superior no Brasil A lha Tereza ti. de Castro 195
10. As contradições da política de assistência social neoliberal Camila Poti/ara Pereira e Marcos César Alves Siqueira 211
11. Desigualdade social e concentração de riqueza: algumas aproximações a partir da realidade de Natal-RN íris Maria de Oliveira e Maria Regina de Avila Moreira 230
12. Relações e condições de trabalho no universo produtivo: escravidão contemporânea ou acumulação por espoliação? Sezvrina Garcia 254
13. As politicas de geração de emprego e renda no Brasil: o arcaico reatuatizado Marcela Soares 271
14. Feminismo, prostituição e direitos - um debate contemporâneo Marlene Teixeira Rodrigues 292
7
Apresentação
Qs textos aqui apresentados resultam de pesquisas e reflexões reali- zadas no âmbito do Programa Nacional de Cooperação Académica (Pro- cad), que agregou, durante quatro anos, sete grupos de pesquisa da Uni- versidade cie Brasília (UnB), Universidade do Hstado do Rio de Janeiro (UHRJ), Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e Univer- sidade I ederal de Santa C atarina (UFSC). Hste l ivro finaliza o projeto, iniciado em 2006, e se soma à primeira coletânea de textos publicada em 2008, inti tulada Política social no capitalismo: tendências contemporâneos.
Diferentemente da anterior, esta obra reúne a produção de docentes e discentes dos programas de pós-graduação envolvidos no Procad/ ( apes, o que mostra a repercussão deste programa na formação de qua- dros de pesquisadores. Durante esse período, o apoio do Procad/Capes permit iu constituir uma rede de cooperação académica com 16 docentes c diversos estudantes ligados aos pesquisadores e aos grupos de pesqui- sa, ii que possibi l i tou a realização de seminários e debates conjuntos; a mobilização de docentes e pesquisadores entre os Programas; a partici- I >ação em bancas de trabalhos científicos; o desenvolvimento de estudos, I>esquisas, produção e difusão de conhecimento; a produção e divulgação de conhecimentos inéditos; a construção de mesas coordenadas nos even- tos de pesquisa da área de Serviço Social; e a publicação de dois livros.
Se em 2008 já analisávamos o processo de alocação do fundo público maioritariamente para o capital e indicávamos a tendência de avanço das políticas de caráter focalizado e destituídas de capacidade de reduzir a
TM
8 BOSCHETTI • BEHRING • SANTOS . MIOTO
desigualdade, este l ivro, elaborado durante a irrupção de uma grave crise do capital, cujas proporções são analisadas em alguns textos desta coletânea, demonstra, de modo inequívoco, a espantosa capacidade do capitalismo de se apropriar do fundo público para assegurar seu inces- sante processo de reprodução e acumulação ampliados.
Os capítulos da primeira parte art iculam reflexões em torno da Cri- se do Capital, Política Social e Lutas Sociais, e desmistificam compreensões que natural izam a crise atual, sublinhando seu caráter endêmico e dura- douro, bem como aquelas que af irmam que o Brasil estaria " imune" a seus efeitos. Os antídotos adotados pelo Brasil, seguindo tendências mundiais, são amargos para o trabalho e doces para o capital, sobretudo para o capital portador de juros, maior beneficiário no contexto da finan- ceirização. Nessa perspectiva, o fundo público é analisado como parte do circuito do valor, azeitando os processos de rotação do capital e cr iando contra tendências à queda da taxa de lucros. O mal-estar da democracia burguesa e as potencialidades e limites das lutas sociais no contexto da crise também são elementos discutidos, procurando respostas teóricas e políticas para a grande questão que se coloca: a participação e mobilização de sujeitos políticos que coloquem na cena pública respostas para além do capital, realizando uma disputa social de destino que ultrapasse as respostas burguesas à crise.
Na segunda parte do l ivro — intitulada A condição dos direitos no contexto da crise: questões teóricas e incidências particulares— realiza-se o debate sobre os direitos, a partir de mirantes de observação diversifica- dos. Os capítulos enfrentam a questão teórica central da relação entre emancipação política e humana eo lugar dos direitos na agenda das lutas sociais e da esquerda em diversos campos: da diversidade sexual e sua importância nas lutas contemporâneas contra o preconceito; dos direitos sociais de seguridade, com destaque para a assistência social; da educação e das políticas de ação afirmativa; da relação entre pobreza, riqueza e desigualdade; da condição das mulheres e sua luta por direitos, em espe- cial aquelas que estão envolvidas em processos de mercantilizaçao do própr io corpo; dos trabalhadores submetidos a processos de superexplo- ração no contexto de uma acumulação por espoliação, que marca as rela- ções de trabalho no agronegócio.
CAPITALISMO EM CRISE. POLÍUCA SOCIAL E DIREITOS 9
Trazemos a público, com muita satisfação, esta produção coletiva e c Duvidamos o(a) leitor(a) a mergulhar nestas páginas em que certamente encontrará muitas pistas e sugestões de caminhos para a pesquisa e, submetidas às críticas, nossas tentativas de respostas em meio a este momento de inflexão histórica que já altera os rumos do século XXI.
Brasília, agosto de 2010.
TM
Elaine Rossetti Behring"
Introdução
O presente texto é o resultado de um projeto intelectual acalentado há tempos e adiado pelas inúmeras tarefas acadêmicas e políticas nas quais estive envolvida nos últ imos a nas, e que finalmente tive condições de realizar, em função do suporte do Procad/Capes: reler O capital, de
* Este ensaio é um resultado do período de estágio de pesquisa pôs-dmiloral realizado no SER/ l íill, na condição cie professora pesquisadora colaboradora, por meio do Procad / Capes e com apoio .!.> I SS/UF.RJ. através do licença sabática, entre os meses de março e agosto de 2008 Nesse sentido, torno públicos meus agradecimento* aos professores do Departamento de Poiílica Social da FSS/ I I Ki e aoSEK/UriB, especialmenteaPotvara Pereira Pereira,coordenadora doNeppos/Unl leRosa Stein (Chefe do Departamento). Agradeço também aos estudantes do graduação e pós-graduaçáo que fazem parto do ÇOPSS/ L KR/, muitos sondo meus orientandos, e que compreenderam o apoia- ram este meu rápido afastamento, além do serem interlocutores preciosos. Este agradecimento 6 extensivo às(aos) companheiras do Cress 7' Região, que também fortaleceram esse projeto ao não contarem comigo nos primeiros meses da gestão {2008/2(111). Por fim. meu agradecimento muito especial ã Ivanete Boschetti. peio carinho, acolhimento, incentivo o troca naqueles meses de moradia na C olina.
1- Trata-se de um primeiro resultado, pois estamos preparando um ensaio teórico sobre a re laçSo entre valor e fundo público, aprofundando alguns dos elementos que serão tratados nas pá ginas que seguem.
TM
14 BOSCHETTl . BEHRING • SANTOS • AM OTO
Karl Marx, na íntegra, de forma sequencial e sistemática. A necessidade dessa releitura decorreu de uma demanda objetiva dos caminhos da pesquisa que venho realizando acerca do papel do fundo público no ca- pital ismo contemporâneo no âmbito do Grupo de Estudos e Pesquisas do Orçamento Público e da Seguridade Social (GOPSS/UERJ), realizando uma análise do orçamento públ ico brasileiro, desde sua alocação até sua execução, cujos resultados vimos publ icando em eventos científicos e profissionais, nacionais e internacionais. Trata-se agora de buscar e / o u apr imorar a apreensão dos fundamentos na crítica marxista da economia política para precisar a análise sobre o lugar estrutural do fundo públ ico no capitalismo. Tais aportes estão localizados principalmente nos volumes II e JíI, quando Marx trata do capitalismo em geral e da repartição da mais-valia socialmente produzida.
Não existe, porém, nesse texto fundamental, um momento analítico sobre o fundo públ ico e o Estado. Aliás, o termo fundo público aparece raríssimas vezes ao longo de todos os tomos. Afinal, nos tempos de Marx, este não tinha o mesmo peso quantitativo, ou seja, o Estado não extraía e transferia parcela tão significativa da mais-valia socialmente produzida e, ressaltamos desde já, não se apropriava do trabalho necessário como hoje s em se fazendo pela via tributária, especialmente na periferia do capital. O fundo público não possuía também nos tempos de Marx o papel qual i tat ivo que passa a ler no capitalismo monopolista e imperia- lista, sobretudo com o keynesianismo após a Segunda Guerra Mund ia l . Na verdade o que se observa e que o fundo públ ico assume tarefas o proporções cada vez maiores no capitalismo contemporâneo, diga-se, em sua fase madura e fortemente destrutiva, com o predomínio do neolibe- ralismo c da financeirização, nào obstante todas as odes puramente ideo- lógicas em prol do listado mínimo, amplamente difundidas desde os anos 80 do século XX. Basta observara reação capitalista à crise de 2008/2009, uma nítida crise estrutural do sistema, com a injeção de trilhões de dóla- res, euros e reais tendo em vista conter a espiral da crise, numa imensa socialização de custos, tão ou mais ampla que aquela desencadeada em 1929/1932. Os números são impressionantes e retomaremos o debate da crise atual na segunda seção deste trabalho.
CAPITALISMO EM CRISE, POLITICA SOCIAL E DIREITOS 15
Cabe, portanto, à crítica marxista contemporânea apanhar o conjun- to de determinações objetivas e subjetivas que operam no capitalismo maduro e que impl icam nesta dinâmica da valorização do capital, na qual interfere o fundo público. Qual é o sentido de retomar Marx , se queremos compreender os processos atuais? Nossa intenção, part indo do suposto marxiano de que o modo de produção capitalista é histórico, se modifica e complexif ica, é buscar na crítica fundadora de Marx e na sua descober- ta e sistematização da lei do valor e de seus desdobramentos na totalida- de concreta da sociedade burguesa elementos para a compreensão do papel do fundo públ ico, considerando que o capital ismo permanece orientado para a busca de superlucros, de valorização do capital e sua acumulação, por meio da produção de mais-valia, o que implica a per- manência do valor-traha lho como determinação fundamental das relações sociais de produção e desenvolvimento das forças produtivas, com fortes implicações para as condições gerais da luta de classes.
Supondo a atualidade, ademais impressionante, de O capital, apesar ile elementos necessariamente situados historicamente, trata-se de afinar a análise sobre o tema que inquieta e convoca: o significado do crescimen- to do fundo público e sua relação com o processo de valorização do capi- tal, nocontextò de uma crise sistêmica,estrutural, profunda eduradoura.
I .". . .a caça apaixonada do valor..."2 e sua relação com o fundo público
O volume I de O aipiUil (Marx, 1988) faz diversas alusões poéticas relacionando o valor a uma pulsao visceral do capital — como uma paixão que modifica a vida dos seres humanos incontrolavelmente* — para que se realize de forma plena o circuito D — M — D', ou seja, o ciclo de pro- dução e realização do valor, e que e necessariamente mediado pela pro-
2. Marx (1988, p. 126). 3. Veja-se, por exemplo, a referência irônica ao preço como 'os olho? amorosos com que o-,
mercadoria* piscam ao dinheiro" (Marx, 19S8, p. l)7). São muitas e táo betas analogias que chamam it atenção. Sobre a paixão, e*se sentimento mobil izador, conferir os belos ensaios contidos em O* ftTHfiifth- ,lu jniixão (Novaes [org.l, 21X19)
TM
16 BOSCHETTI . BEHRING • SANTOS . MIOTO
dução de mercadorias. Vamos resgatar brevemente aspectos que consi- deramos centrais desse processo, buscando cotejar algumas poucas, porém importantes, alusões feitas por Marx acerca do listado, fundo público e temas conexos neste trabalho maduro. O foco nesta primeira incursão é sistematizar o ponto de partida da análise marxtana, acompanhando seu movimento metodológico, de determinações mais simples para a totali- dade concreta, ou, dito de outra maneira, de como a sociedade burguesa aparece na sua epiderme e se chega ao concreto pensado: a lógica interna do capital marcada pela busca desenfreada e aguerrida do valor.
Marx menciona como a sociedade burguesa se mostra como um grande arsenal de mercadorias, constituindo-se esta a marca aparente por excelência desse modo de produção. O caminho de Marx para desvelar essa aparência é bastante conhecido:4 ele mostra que a produção de mer- cadorias para o capital, se tem nos valores de uso e no trabalho concreto a sua base material, se orienta efetiva e contundentemente para a produ- ção de valores de troca, ou seja, ao processo de valorização, no qual o trabalho humano comparece como trabalho abstrato, diga-se, como uma "gelatina indiferenciada" (1988, p. 67), como tempo de trabalho social- mente necessário, abstraindo-se as qualidades particulares do trabalho concreto. O que o capital persegue apaixonadamente é o acréscimo de valor que apenas a subsunção do trabalho ao capital e sua exploração no processo de produção, que conjuga ao mesmo tempo processo de trabalho e de valorização, podem concretizar. Para que capital e trabalho se de- frontassem nas condições requeridas pelo mundo do capital - um pro- cesso de acumulação prévia de riquezas prontas para serem convertidas em forças produtivas capitalistas e "trabalhadores livres como os pássaros"
foi necessário um longo processo histórico, constituído a ferro, fogo e sangue, como mostra o Capítulo XXIV, sobre "A assim chamada acumu- lação pr imi t iva" (Marx, 1982).
O núcleo central da contribuição marxiana para desvendar a essên- cia da sociedade burguesa é, portanto, a lei do valor. Criadas as condições
•1. n nossa pretensão no âmbito de um capitulo ê uma sistematização breve. Para acosso a de- senvolvimentos mais completos c densos, sugerimos: Mandel (1969); Harvey (1990), NjeJto e Brax (2íX)o) e lamamoto (2005. Capítulo I).
CAPITALISMO EM CRISE. POLITICA SOCIAL E DIREITOS
de oferta de força de trabalho e de sua exploração, o volume I, especial- mente no tomo 1, revela os caminhos do processo de produção de merca- dorias e de valor. Assim, tem-se que a força de trabalho (capital variável), .10 movimentar os ineios de produção (capital constante fixo e circulante)
o que é uma potência exclusiva do trabalho no processo, mesmo quan- do a maquinaria é poupadora de força de trabalho" — e produzir um determinado qumitum de mercadorias, além de transferir o valor agrega- do em capital constante (fixo e circulante) e em capital variável (seu próprio salário) para o valor final das mercadorias, acresce a elas um valor a mais. A análise de Marx revela que o processo de valorização ocorre porque a força de trabalho não é remunerada pelo que produz, mas pelo cálculo social de suas necessidades de reprodução como tal, que variam historicamente com o desenvolvimento das forças produtivas, das necessidades sociais e da luta de classes, mas que estão abaixo do que as torças do trabalho transferiram e acrescentaram de valor ao produto final. 1'arte da jornada de trabalho é trabalho necessário, cobrindo as necessi- dades de reprodução da força de trabalho na forma de salários; outra parte é trabalho excedente, ou seja, mais-valia, valor acrescentado. A magnitude da exploração da força de trabalho no processo de produção está relacionada à luta de classes e ao desenvolvimento das forças produ- livas, estas últimas implicando maior ou menor composição técnica e orgânica do capital. Esses dois elementos interferem em formas de extra- ção de mais-valia enunciadas por Marx - a extensão da jornada de tra- balho, com ampliação da parle excedente a mais-valia absoluta — e/ ou do processo de trabalho, produzindo mais em menos tempo — a mais-valia relativa. Segundo Marx, "o valor não traz escrito na testa o que
5. Pato que coloca em xeque as perspectivas, mesmo que diferenciadas, que apontam para o fim «11 centralidade do trabalho no momento presente em função dos avanços tecnológicos e da expulsão . le força He trabalho d» pnx.essO de produção, \esse sentido, vale retomar Marx quando aponta: "a mais-valia não se origina das forças de trabalho que o capitalista substitui pela máquina, mas, pelo i ontrarui, das forças de trabalho que ocupa com eia" (Marx. t. II, v. I, p. 31), intensificando a tornada dos que ficam, ou seja, incrementando a mais-valia relativa. Assim, a tecnologia torna-se uma força hostil ao trabalhador, um concorrente poderoso no contexto do capitalismo, com o que M-u potencial emancipador fica subsumido a uma dinâmica essencialmente perversa. Esses argu- mentos que envolvem o lugar da ciência apropriada pelo capital são desenvolvidos por Marx no • apitulo Maquinaria e grande indústria", do tomo II do volume I.
TM
'8 BOSCHETTI • BEHRING • SANTOS . MIOTO
ele é" (1988, p. 72), sendo que sua natureza de produto do trabalho hu- mano disfarçada sob o dinheiro é urna espécie de hieróglifo social a ser decifrado, ao lado da aparência de que se trata da relação entre coisas e não de uma relação social. Falamos aqui da importante referência mar- xiana ao fetichismo da mercadoria que marca a sociedade burguesa.
Neste mundo pseudoconcreto, repleto de elaros-escuros de verdade e engano, como nos ensina Kosik (1986), uma tendência que se impõe a partir da busca desenfreada de valorização, e que não é visível e muitas vezes se mostra a partir de suas contra tendências/ é a da queda tenden- cial da taxa de lucros, resultante de um modo de produção que se move pela concorrência, fortemente fundada na introdução de tecnologias em busca do diferencial de produtividade do trabalho num mesmo ramo ou entre países (Mandel, 1982). Há, como uma tendência intrínseca à dinâ- mica deste modo de produção, segundo Marx (1982,1.1, v. 111, p. 164-165), uma progressiva tendência de queda das taxas de lucro em função do decréscimo relativo do capital variável em relação ao capital constante, gerando uma composição orgânica crescentemente superior ao capital global. Trata-se da "proporção decrescente da própria mais-valia em re- lação ao capital global adiantado e, por isso, é independente de qualquer divisão que se faça dessa mais-valia em diferentes categorias". Marx quer alertar para o fato de que tal queda independe da repartição da mais-va- lia, já que opera no contexto de sua produção. Nosso autor também dife- rencia taxa de lucro e massa de lucro. A segunda pode estar em cresci- mento conjuntural apesar da operação da queda tendencial da taxa de lucros no médio prazo, gerando uma aparência de que este movimento essencial não ocorre. Na verdade, essa tendência não e mais contundente e profunda porque são desencadeadas "causas contrariantes", dentre as quais Marx destaca: a elevação do grau de exploração da força de traba- lho; a introdução de novas tecnologias capital-intensivas, que impõem óbices imediatos pela intensa exploração da força de trabalho, mas operam mediatamente para a queda das taxas de lucro, o que implica uma pro- funda contradição; a compressão do salário abaixo do seu valor médio;
6. t f tive a oportunidade de fazer referência a este tema em Behring (1998).
( APITAI ISMO EM CRISE. POLÍTICA SOCIAL E DIREITOS 19
o barateamento dos elementos do capital constante; o aumento da super- população relativa como pressão sobre os salários; e o comércio exterior. Vejamos a seguinte reflexão de Marx: "as mesmas causas que acarretam .i queda da taxa geral de lucro provocam efeitos contrários, que inibem, relardam e em parte paralisam essa queda. Eles não anulam a lei, mas debilitam seu efeito. Sem isso, seria incompreensível não a queda da taxa >•«• ra l de lucro, mas, pelo contrário, a relativa lentidão dessa queda. Assim, .1 lei só opera como tendência cujos efeitos só se manifestam de forma contundente sob determinadas circunstâncias e no decorrer de períodos prolongados" (1982,1.1, v. 111, p. 181). E, vale dizer, existem dois elemen- Uis que também interferem nessa dinâmica: a resistência dos trabalhado- res ã exploração e a ação do Estado, seja por meio de sua capacidade de regulação, seja especialmente agindo sobre o processo de rotação do ca- pital, considerando que o capitalismo é unidade entre produção e circu- lação para a realização do ciclo global, expresso em D— M — D'.
O fato é que há uma tendência de queda do valor das mercadorias, n,i medida em que se expulsa força de trabalho com a introdução de tec- nologias. Contudo, os capitalistas individuais permanecem trabalhando com preços médios, o que gera superlucros aos que partem na frente. ( Vorre que, na sequência, os demais buscam se recuperar nas relações concorrenciais adquir indo o novo padrão, equali/ando a taxa de lucro num patamar de valor mais baixo e criando novas e mais fortes contra- dições: "a produção capitalista procura constantemente superar essas barreiras que lhe são imanentes, mas só as supera por meios que lhe an- tepõe novamente essas barreiras e em escala mais poderosa. A verdadei- ra barreira da produção capitalista é o próprio capital" (Marx, 1982, 1.1, v 111, p . 189).
Os "dramas" permanentes do capital e que implicam a sua "luta heróica" (Harvey, 1993, p. 170), considerando suas tendências de dese- quilíbrio e crise, são principalmente dois. Em primeiro lugar, produzir mais-valia não é necessariamente realizá-la, inclusive porque parcelas significativas da força de trabalho ficam de fora do circuito do consumo, especialmente no contexto de crise e de busca de melhores condições de exploração pelo capital, com a expansão do desemprego e da superpo-
TM
20 BOSCHETTI • BEHRING . SANTOS • MIOTO
pulação relativa. Para que a mais-valia se realize e a mercadoria acrescida de mais-valia se metamorfoseie em dinheiro (sendo ambos formas de valor), é necessário que haja a mudança de forma de M' para D', proces- so que ocorre na circulação, o que aliás gerou historicamente a aparência de que a acumulação se produz nesse momento do ciclo, segundo a eco- nomia política clássica. Em segundo lugar, há a queda tendencial da taxa de lucros, referida anteriormente, sendo um processo que força a um conjunto de movimentos para que ela nâo se imponha como contradição nodal do mundo do capital.
A esta altura, o(a) leitor(a) deve estar se perguntando sobre a relação destas categorias ontológicas da economia política capitalista com o fun- do público. Vejamos. O fundo público se forma a partir de uma punção compulsór ia7 — na forma de impostos, contr ibuições e taxas — da mais-valia socialmente produzida, ou seja, é parte do trabalho excedente que se metamorfoseou em lucro, juro ou renda da terra e que é apropria- do pelo l istado para o desempenho de múlt iplas funções. O fundo públ i- co atua na reprodução do capital, retomando, portanto, para seus seg- mentos especialmente nos momentos de crise; e na reprodução da força cie trabalho, a exemplo da implementação de políticas sociais. Hm vários momentos de O capital os impostos aparecem como subfõrmas da mais-va- lia (Ex.: Marx, 1982, t. I, v. 111, p. 39). No entanto, se esta aproximação é pertinente nos tempos de Marx, ela é insuficiente para o contexto do ca- pital ismo monopolista plenamente desenvolvido, considerando que o instrumento de punção é o sistema tributário, e que parte cada vez maior do fundo públ ico é sustentada nos e pelos salários. Ou seja, o fundo pú- bl ico não se forma — especialmente no capital ismo monopol izado e maduro — apenas com o trabalho excedente metamorfoseado em valor, mas também com o trabalho necessário, na medida em que os trabalha- dores pagam impostos direta e, sobretudo, indiretamente, por meio do
7. Observemos como Marx vê essa punção e sua relação con\ ri produção de mais-valia: "A su- pressão de tais impostos não altera absolutamente nada no«jn/7fi/rwu dc- mais-valia que o capitalista extorque diretamente ao trabalhador. Ela modifica apenas a proporção em que o capitalista embolsa mais-valia ou precisa dividi- la com terceiros" {Marx, 198& t I. v. II. p. 115). Portanto, para M a r \ , a puução compulsória está relacionada à repartição da mais-valia socialmente produzida.
CAPITALISMO EM CRISE, POLÍTICA SOCIAL E DIREITOS 21
consumo, onde os impostos estão embutidos nos preços das mercadorias. Vamos sustentar, pelo exposto, que a exploração do trabalho na produção e complementada pela exploração tributária crescente nesses tempos de intensa crise e metabolismo do capital, formando o fundo público, espe- cialmente em espaços geopolíticos nos quais as lutas de classes não con- seguiram historicamente impor barreiras a sistemas tributários regressi- vos.s E qua l é o papel do f u n d o púb l i co na to ta l idade concreta, especialmente quando adquire proporções tão contundentes, como no período após a Segunda Guerra até os dias de hoje, contrariando os dis- cursos ideológicos neoliberais em favor de um Estado mínimo?
Sc retornarmos a Marx para encontrar pistas, pode-se inferir das suas reflexões que o fundo público atua constituindo "causas contrariantes" à queda tendencial da taxa de lucros, interferindo no r i tmo da circulação di ' mercadorias e dinheiro, estimulando a metamorfose de um em outro, enfim, intensificando e mediando os ri tmos do metabolismo do capital. Ou seja, o fundo públ ico participa do processo de rotação do capital, lendo em perspectiva o processo de reprodução ca pi ta lista como um todo, especialmente em contextos de crise. Por outro lado, o fundo público realiza mediações na própria repartição da mais-valia - pelo que é dis- putado polit icamente pelas várias facções burguesas, cada vez mais de- pendentes desta espécie de retorno mediado por um Estado, por sua vez, embebido do papel central de assegurar as condições gerais de produção (Mandel, 1982). No mesmo passo, participam também deste processo os trabalhadores retomando parte do trabalho necessário na forma de salá- i ios indiretos {políticas sociais) ou na forma de bens públicos de maneira geral, disputando sua repartição em condições desiguais, considerando a correlação de forças na sociedade e no Estado. Ressalta-se aqui a dimen- são política deste processo, num contexto de hegemonia burguesa e de f< »rte e sofisticada instrumentalização do Estado, em que pese não estarmos diante do "comitê executivo da burguesia" no sentido clássico.
Quando se fala em repartição da mais-valia socialmente produzida, t onsiderando o papel do Estado no circuito do valor, tem-se em Marx que
H. P,ira um debate sobre o sistema tr ibutário brasileiro eseu caráter regressivo, conferir o im- portante trabalho de Salvador (2010)
TM
22 80SCHETTI • BEHRING . SANTOS • MKJTO
a repartição da mais-valia socialmente produzida (a substância que se esconde) se dá pela chamada fórmula trinitária, entre lucro, juro e renda da terra, ainda que Marx em várias passagens trate de outros segmentos que part icipam da repartição, como o capital comercial e o própr io Esta- do. Marx refere-se ao capital industrial como o representante de todos os participantes do bu t im (1982,1.1, v. II, p. 151) aos que acrescenta os "pre- bendados do Estado" (1982,t.1, v. II, p. 175), com sua paixão pelo gasto, citando Malthus, ou em outro momento do texto "o governo e seus fun- cionários" (1982, v. II, p. 311), conforme Marx. Vale dizer que, em alguns momentos, o fundo públ ico em Marx comparece como uma espécie de fundo perdido, necessário para funções bastante limitadas, ainda que fundamentais para a reprodução ampliada do capital nas condições es- pecíficas do século XIX.
No contexto do capitalismo monopolista em sua fase madura e vi- vendo hoje uma profunda crise estrutural, o fundo público passou a se constituir como um elemento nem ex nnte, nem c.v po<! do processo de produção e reprodução capitalista, como se supõe que fosse no período concorrencial," mas um componente influx do mesmo, que está ali presen- te no ciclo D — .VI — D'. Sugerimos, partindo de Marx, observar a repar- tição da mais-valia em dois movimentos. N u m primeiro movimento, o excedente se reparte em lucros, juros, renda da terra e fundo público, sempre lembrando aqui que o Estado se apropria também do trabalho necessário, diga-se, dos salários, via tributação, com o que o lundo públi- co é um compósito de tempo de trabalho excedente e tempo de trabalho necessário. Mas essa repartição tem continuidade num segundo movimen- to: tio retorno de parcelas do fundo público na forma de juro - o que sem dúvida nenhuma é a destinação predominante no tempo presente, de fi- nanceii iziição do capital (Chesnais, 19%; Toussaint, 1998) por meio dos mecanismos da dívida publica — mas também nas outras formas; pela via das compras e contra tos estatais, oferta e regulação do crédito,1: pela com-
9. Aqui concordando com a caracterizarão do Oliveira (IWSf, com o qual mantemos um diálo- go ao longo deste texto, mas não incorporando aqui a ideia de antivalor. como já pudemos desen- volver em Behring (2008)-
IH. Observemos esta citação de Marx sobre o sistema de crédito: "com a produção capitalista constitui-se uma potência inteiramente nova, o sistema de crédito, que, em seus primórdios, se insi-
( AIMIAUSMO EM CRISE, POLÍTICA SOCIAL t DIKtITOS
plexa rede de relações público-privadas que se estabelece no capitalismo maduro, tendo em vista atuar no processo de rotação do capital, aceleran- do. interferindo nos ri tmos da metamorfose D — M — D', num contexto de monopolização do capital, no qual os automatismos do mercado efeti- vamente não funcionam para amortecer as tendências de crise e quando muda o lugar estrutural do Estado (Netto e Braz, 2006; Behring, 1998).
Voltemos a Marx para qualificar melhor a questão da rotação do « apit.il. Quando o capital fica imobi l izado em uma de suas formas M ou I >, ele "nào atua nem como formador de produto, nem como formador de valor" (1982, v. 11, p. 35). Ao contrário, a velocidade maior ou menor dessa metamorfose interfere diretamente na escala da produção. A para- lisação do ciclo, seja da produção ou da circulação de D — M ou M' — D', leva necessariamente a um contexto de crise, considerando que não é possível a transformação de D em D' sem a mediação da produção, em i (tu- pese "as nações de produção capitalista serem periodicamente assai i.ulas pela vert igem de querer fazer dinheiro sem a mediação do proces- Mi de produção" (1982, v. 11, p, 44). Nesse sentido, é um objetivo central para a reprodução do processo como totalidade encurtar a rotação do v apitai. Segundo Marx,
quanto mais curto o período de rotação do capital — portanto, quanto mais curtos forem os períodos em que sc renovam seus prazos de reprodução durante o ano — . tanto mais rapidamente st- transforma a parti? variável de seu capital, originalmente adiantada pelo capitalista em forma-dinheiro, em forma-dinheiro do produto-valor criado pelo trabalhador para repor esse capital variável (que além disso, inclui mais-valia); tanto mais curto é, portanto, o tempo pelo qual o capitalista precisa adiantar dinheiro de seu próprio fundo, tanto menor (•, em proporção ao volume dado da escala de produção, o capital que ele adianta em geral; c tanto maior é relativamente
nua furtivamente como modesto auxiliar da acumulação, lev.ir.do por fios invisíveis recurso® mo- iii-i.inos. dispersos em massas maiores ou menores pela superfície da sociedade, ãs màosdecapüa- h t . r . individuais ou associados, tnaslo^osc torna uma nova e temível arma na luta de concorrência . imalmente se transforma em enorme mecanismo social para a centralização dos Capitais" (1982, t. II •. I p 197) Vale notar que nos tomposde Marx não existia ocrêdito ao consumidor nas proporções iilii.tis, o cartão de crédito e a grande diversidade de papéis envolvendo o crédito, o que mostra a grande sagacidade marxiana para perceber tendências.
TM
24 BOSCHBTTI • BEHRING . SANTOS • MIOTO
a massa de mais-valia que, com dada taxa de mais-valia, ele extrai durante o ano, porque ele pode comprar mais frequentemente o trabalhador, sempre de novo com a for mo-dinheiro de seu próprio produto-valor, e colocar seu trabalho em movimento (1982, v. 11, p. 232-233).
A rotação do capital, segundo Marx, é esse movimento que se repe- te, envolvendo produção e reprodução, ou seja, o ciclo global, e que en- volve produção e circulação. Cada capital ind iv idual é uma espécie de fração do ciclo global (1982, v. II, p. 261), que abrange o tempo de produ- ção e o tempo de circulação. E esses tempos são determinados pela base material do processo produt ivo e reprodutivo, diga-se, uma operação mais longa na produção e circulação implica mais riscos, exigindo supor- tes de crédito maiores, sendo que o Estado pode cumpr i r importante papel, e efetivamente vem cumpr indo desde a "revolução keynesiana", seja contratando essas operações, seja ofertando crédito, seja mediando complexas relações de crédito e débito, financiando a rotação por meio do endividamento público. Portanto, no ciclo do capital parte dele está sempre "em alqueive", seja na forma de capital monetário, de estoques de matéria-prima, de capital-mercadoria não vendido, de créditos não \ encidos, pronto para ser mobil izado. !_• a luta do capital pela sua pere- nidade é a luta pela diminuição do tempo de rotação: "quanto mais bre- ve o tempo de rotação, tanto menor se torna essa parte em alqueive do capital, comparada com o todo; tanto maior se torna também, com as demais circunstâncias, a mais-valia apropriada" (l lngels, 1982, t. I, v. 111, p. 55). Se o principal meio de redução do tempo de rotação do capital é o aumento da produt iv idade do trabalho, entram aí também: o progresso das comunicações; o incremento do comércio mundial ; e acrescentamos à importante contribuição de Engels neste momento de O capital o lugar estrutural do fundo público como suporte à rotação mais rápida em con- texto de ampliação dos riscos dos investimentos, pelos efeitos da com- pressão espaço-temporal produzida peia busca da diminuição do tempo de rotação, como bem aponta Harvev (1993). No volume 111 (1982, t. II, p. 53), Marx faz uma referência ao crédito como o regulador da velocidade da circulação, o que interfere na rotação do capital, mas submete o pro- cesso como um todo a uma espécie de hipersensibilidade à crise, consi-
C.APITALISMO EM CRISE. POLITICA SOCIAL E DIREITOS 25
derando os processos especulativos e o caráter fictício que parte desses « reditos na forma de letras e papéis pode adquirir.
Para finalizar esta seção — vol tando a dizer que se trata de uma aproximação ainda parcial que pretendemos desenvolver num esforço de maior fôlego — cabem algumas palavras sobre o crescimento da impor- tância do fundo públ ico para a sustentação do modo de produção capi- talista. A chave heurística para uma reflexão sobre o fundo públ ico reside na seguinte afirmação de Marx:
Mas cada forma histórica determinada desse processo desenvolve ulterior- mente os fundamentos materiais e .is fornias sociais do mesmo. Tendo uma vez chegado a certo grau de maturidade, a forma histórica determinada é removida e dá lugar a uma mais elevada. Que o momento de tal crise tenha chligado mostra-se assim que a contradição e a oposição entre as relações de distribuição c, por isso, também, por um lado, a configuração historica- mente determinada das relações de produção que lhes correspondem, e por outro, as forças produtivas, a capacidade de produção, e o desenvolvimen- to de seus agentes, ganhe em amplitude e profundidade. Surge então um conflito entre o desenvolvimento material da produção e sua forma social (1982, t. II, v. Ill, p. 315).
O crescimento e as funções cada vez mais centrais do fundo público no capitalismo contemporâneo denotam o acirramento do conflito ao qual se refere Marx, socializando os custos cada vez mais elevados do capita- lismo em sua fase madura, destrutiva e com confirmações factuais do esgotamento de sua capacidade civil izatória. Evidentemente, a remoção desta forma histórica não está relacionada a qualquer automatismo do d e s e n v o l v i m e n t o das forças produtivas. Como fato histórico com sua hemorragia de sentidos (Bensaid, 1999), esse processo depende das rela- ções sociais, ou seja, das incidências da luta de classes.
2. Crise do capital e hipocrisia: o lugar do fundo público revelado
Prosseguindo nossa perseguição ao papel do fundo público no capi- tal ismo em geral, nesta seção vamos desenvolver elementos sobre o
TM
26 BOSCHETTI • 8EHRING • SANTOS • MIOTO
momento presente, desenvolvendo uma caracterização da crise que vem se aprofundando desde 2008/2009. Essa inferência visa esclarecer o quanto prevalece o pragmatismo burguês, quando se trata de sua sobre- vida. Melhor dizendo, cabe revelar a hipocrisia do discurso da crise do ou no Estado que veio atravessando esses anos de contrarreforma do Estado e de, ao contrário do anunciado, crescimento exponencial do fun- do público. Na verdade, observa-se uma redefinição do lugar do setor públ ico e do fundo públ ico no contexto dos ajustes contrarreformistas e que impl icaram o crescimento do seu lugar estrutural no processo infiux de produção e reprodução das relações sociais, conforme discutimos na seção anterior.
O acompanhamento das discussões sobre a crise de 2008-2009, cujos desdobramentos estão longe de serem debelados, como revelam os acon- tecimentos na Grécia, Portugal, Espanha e Romênia, nos mostra discursos sobre a crise, numa espécie de disputa de destino que se instaurou desde a sua eclosão. De que crise eles falam? Para os intelectuais libera l-burgue- ses mais ortodoxos a crise é nit idamente uma espécie de "l ipoaspi ração" do sistema capitalista, um ajuste inevitável adv indo dos mecanismos naturais do mercado ao qual se sucederá a recuperação do equilíbrio, tendência na qual os liberais depositam sua fé inabalável desde a Lei de Sav. Para tanto, é fundamental que haja redução de custos - nas empre- sas e especialmente no Estado — e todos façam o seu dever de casa. Sim, porque a crise é de todos e a saíde exige o sacrifício de todos também, o que confirma as importantes teses de Mota (1995) acerca de uma cultura da crise. Temos então uma disfunção passageira, segundo essa tese, que ademais é o argumento de ferro dos liberais.
Para os keynesianos — e "muitos governas, empresários e intelectuais orgânicos r 1a burguesia dormiram neoliberais e acordaram keynesianos após a falência do Lemon Brothers" (notas da intervenção de Valério Arcary, São
11. Partimos aqui de intervenções realizadas na Semana do Assistente Social em vários eventos de 2009. com especial destaque para a que fi/.emos no Maranhão, comparti lhando uma mesa de debates extremamente insligante e inspiradora com Valério Arcary. Estes elementos toram .sistema- tizados para o Seminário Nacional do Procad UnB, UERJ. LTSC e U F R \ . realizado na U1KI. em 28 e 2l> de março de 2010.
CAPITALISMO EM CRISE. POLITICA SOCIAL E DIREITOS 27
Luis, 2(X>9), que foi uma espécie de catalisador desta crise recente, n u m verdadeiro processo de reconversão — a crise é de falta de regulação, como se a desregulamentação tivesse sido uma espécie de capricho, de ivvanche liberal irresponsável. O processo de desregulamentação permi- tiu nos últ imos anos, com o ascenso dos neoliberais, a presença de inves- tidores gananciosos e inescrupulosos, exponenciando o capital fictício e .1 concessão irresponsável de créditos, em especial os empréstimos sub- prime — para casa própria de assalariados de baixa renda: as chamadas hipotecas tóxicas. Então, nessa perspectiva, a crise seria de excesso de o v d i t o sem escopo por parte dos devedores, gerando inadimplência e incapacidade dos bancos e instituições financeiras de sustentar essa gran- de oferta em condições de inadimplência. A saída da crise estaria, por- tanto, condicionada a fortes doses de regulação, o que Katz (2008) chama
ile "fantasia da regulação". A hipótese explicativa da crise que oferecemos neste texto, num
diálogo com vários analistas, parte da tradição marxista. Assim, a crise não é uma disfunção ou um problema de regulação, mas é parte consti- lut iva do movimento contraditório do capital. Nenhum automatismo do mercado leva à situação de equil íbrio, como insistem os liberais mais aguerridos numa atitude nit idamente ideológica; e mesmo a regulação kevnesiana tem grandes limites de estabelecer controles no capitalismo maduro, incontrolável,como nos diz Mészáros (2002). I larvey (2004) fala i le um processo de acumulação por espoliação avançando inclusive sua reflexão anterior sobre a acumulação flexível, apanhando determinações mais profundas desse momento histórico. A saída keynesiana da crise de 1929 propic iou os trinta "Anos Gloriosos" nas condições geopolíticas e econômicas específicas do pós-guerra, mas o deslocamento regressivo a partir dos anos 1970 mostrou claramente o esgotamento daquele período. A onda longa expansiva não resistiu aos movimentos de concorrência acirrados diante da queda da taxa de lucros em fins dos anos 1960, quan- do se equalizam as taxas de lucro, engendrando um longo período com tônica de estagnação, segundo a fecunda análise de Mandel (1982).
Estamos, pois, mergulhados nos últ imos quarenta anos nessa dinâ- mica, com recuperações breves sempre mui to comemoradas pelos arautos
TM
28 BOSCHETTI • BEHRING • SANTOS • MIOTO
do sistema, mas em meio a uma tendência geral de baixo crescimento. Isso ocorre apesar da grandiosa reação burguesa desencadeada por meio da combinação entre reestruturação produtiva acompanhada da quebra da espinha dorsal do movimento dos trabalhadores acima e abaixo da linha do Equador; neoliberalismo, com a contrarreforma do Estado por via dos chamados ajustes estruturais; e mundialização do capital, com a deslocalização de empresas, deslocamento do investimento externo dire- to, política concentradora de patentes, espraiar de relações capitalistas pelos antigos espaços do "socialismo real", a exemplo da China, o que alguns vêm chamando de restauração capitalista, entre outros intensos movimentos, como nos mostra o importante trabalho de Chesnais (1996), entre outros.
Se essa reação burguesa propiciou alguma retomada das taxas de lucro, não houve a retomada das taxas de crescimento, ou seja, não aden- tramos num ciclo virtuoso de crescimento do emprego e da renda. Por outro lado, a retomada das taxas de lucro deu-se a partir de uma dinâmi- ca de excesso de liquidez de capitais, ou seja, azeitando as instituições financeiras, sem dúvida as que mais se beneficiaram desse processo. As estimativas que vêm das análises econômicas falam de um PIB mundial de aproximadamente 55 a 60 trilhões de dólares e de um volume de ca- pitais fictícios que pode chegar a 550 trilhões de dólares. Isso nos diz da natureza dessa crise: uma crise de abundância de capitais, de superacu- mulação, em que grandes volumes de capitais não encontram caminhos de valorização, embora os busquem desesperadamente e com rentabili- dade máxima no contexto de um capitalismo tóxico, nos termos de Hus- son (2(X)8), inclusive penetrando em territórios antes não tào mercantili- zados, a exemplo da educação, da saúde e da previdência, fortemente mercantilizados neste últimos anos.1 Esses capitais encontram refúgio na atividade financeira com a punção de capitais na forma de dinheiro, mas aí também passam a encontrar limites, já que a expansão fictícia de capi- tais sem lastro na economia real vai encontrando dificuldades para pros-
12 .0 que Mondei (19S2) caracteri/ii corro um processo de >upercapitalizaçõo. como tendência que se impõe no capital ismo maduro (tardio).
CAPUAI ISMO EM CRISE, POLÍTICA SOCIAL I IJIRHTOS 29
perar. Vale dizer que boa parte da população mundial encontra-se desem- pregada e desmonetarizada, o que leva também a uma situação de superprodução, atingindo duramente a chamada "economia real", em • |ue efetivamente ocorre a produção de valor, especialmente os setores de b e n s duráveis: imóveis, automóveis, bens de consumo durável, móveis. I rata-se de uma lição acelerada de capitalismo, conforme Katz (2008), no ápice de uma onda longa de tonalidade depressiva.
Quando estourou a crise muitos analistas fizeram comparações com llJ29-|932. Não obstante a tentação seja grande, é importante chamar a atenção para o fato de que o contexto em que essa crise se desenvolve é bastante diferente daquele. Hoje há interdependência e entrelaçamento entre capitais bem maiores, bem como ocorre uma coordenação entre os bancos centrais dos Estados Unidos, Europa e Ásia que não existia no início do século XX. Os países tinham mais autonomia para estabelecer políticas protecionistas, o que a lógica da mundialização pouco permite atualmente, como mostra a situação da Grécia, amarrada na camisa de lorça do euro, o que expõe o projeto da União Europeia a uma forte crise. Kalz (2008), um dos analistas mais consistentes dessa crise do ponto de vista crítico, chama a atenção para o fato de que uma confrontação bélica precedeu e sucedeu a crise de 1929-1932, o que também estabelece dife- renças. As guerras localizadas tiveram o seu papel ao longo de todo o período de expansão (nesse caso a Guerra Fria cumprindo um papel fundamental) e mantêm essa importância na estagnação (a "guerra contra
terror", hoje elogiada pela apologética de Hollywood). Contudo, não se vislumbrei nas melhores análises a queima de forças produtivas de forma tão contundente e abrangente em curtíssimo prazo, em que pese o quadro de médio e longo prazo não sugerir que essa hipótese deva ser
descartada, pelo contrário. A explicação marxista da crise, que nos orienta nesta análise, a loca-
liza menos na fantasmagoria financeira, com seu fetichismo exponencia- do ainda que exista a superacumulaçao e que ela seja seu elemento deto- nador. Para Husson (2008, p. 3), a eclosão da criseé uma chamada à ordem ila lei do valor. Segundo ele: "Os títulos financeiros são um direito em conta sobre a mais-valia produzida. Enquanto não se exerce esse direito,
TM
30 BOSCHETTI . BEHRING . SANTOS • MIOTO
tudo segue sendo virtual. Porém, quando ele se faz valer, se descobre que está submetido à lei do valor, o que consiste em dizer simplesmente que nào se pode distribuir mais riqueza real do que a que foi produzida". A base material mais profunda da crise, portanto, está localizada na defa- sagem crescente entre um restrito poder de consumo, centrado no con- sumo de luxo fortemente destrutivo, frente a uma expansão crescente da produção, o que foi alimentado em um ambiente competitivo acirrado para incrementar as taxas de exploração. Falamos aqui da ofensiva sobre a força de trabalho, baixando o salário — na maior parte dos países caiu a renda do trabalho como proporção do PIB no contexto da reação bur- guesa —, desempregando massivamente e reconstituindo a superpopu- lação relativa ou exército industrial de reserva. Trata-se da redução de custos, o que tem impactos sobre o emprego, o salário e o consumo. Acrescenta-se aí mais um pilar da crise que foi o encarecimento das ma- térias-primas, processo este incentivado pelos especuladores, encarecen- do o abastecimento básico, a exemplo dos alimentos, o que ameaça cerca de 1,3 bilhão de pessoas no mundo hoje, especialmente na periferia do capital (Katz, 2008).
Nesse momento histórico em que superprodução e superacumulação encontram-se de forma combinada e explosiva, constituindo-se como o ápice de uma onda longa com tonalidade de estagnação, qual é o impac- to sobre o fundo público? As instituições financeiras exigiram o socorro público para restaurar a confiança nos mercados, adquirindo títulos de- preciados, para revalorizá-los e revende-los; impr imindo dinheiro — in- clusive tornando a inflação um mal menor, diferentemente do discurso anterior à crise. Nos Estados Unidos, o governo Bush injetou, com ti pri- meiro pacote amplamente divulgado na imprensa, US$ 700 bilhões para conter o pânico bancário desencadeado pela crise do crédito imobiliário. Mas fala-se em suportes da ordem de US$ 1 trilhão nos Estados Unidos. O governo do Japão injetou USS 10 bilhões e os governos da União Eu- ropeia seguiram pelo mesmo caminho, inclusive com a ampliação arris- cada do endividamento público, que agora cobra seu preço em alguns países. No Brasil, além de um anunciado pacote inicial de 13 bilhões das reservas brasileiras, em 2009, o BNDES liberou RS 12 bilhões de reais para
< APITAUSMO EM CRISE, POLÍTICA SOCIAL E OIREIROS
as 20 maiores corporações agroindústria is — que demit iram cerca de 100 mil trabalhadores — para conter os efeitos da crise internacional, no mesmo passo em que assegurou apenas R$ 20 milhões em linhas de i rédito para os assentamentos de reforma agrária, como denunciava o VIS T no ano passado. Mas esses forani apenas os primeiros movimentos
entre nós.n
Façamos uma reflexão retomando alguns elementos da seção anterior. Vi mos que o fundo público se forma a partir de uma punção compulsória
na forma de impostos, contribuições e taxas — da mais-valia social- mente produzida, ou seja, é parte do trabalho excedente que se metamor- loseou em lucro, juro ou renda da terra e que é apropriado pelo Estado para o desempenho de múltiplas funções de reprodução do capital e da força de trabalho. O instrumento de punção essencialmente é o sistema 11 ibutário, e parte maior ou menor do fundo público, a depender da cor- r e l a ç ã o de forças entre as classes — que tem sido desfavorável ao campo do trabalho é sustentada pelos salários. Ou seja, vimos também que o I undo público não se forma apenas com o trabalho excedente metamor- foseado em mais-valia, mas também com o trabalho necessário. Nossos estudos e discussões no Grupo de Estudos e Pesquisas do Orçamento Público e da Seguridade Social (GOPSS/UERJ) vem indicando que a exploração ampliada do trabalho — com indicadores generalizados de queda da massa salarial como parte dos PIB dos países — na produção é complementada pela exploração tributária crescente. No Brasil, por exem- plo, a tributação pesa em mais de 60% sobre o trabalho, como nos mostra Salvador (2010, p. 205-229), sendo que desde o Plano Real a carga tribu- taria aumentou de 29% para 35% do PIB até 2007.
Neste passo, observa-se que os impactos da crise do capital sobre o fundo público se dão em duas dimensões. Primeiro, na sua formação, implicando "reformas" tributárias regressivas, à medida que o fundo público se toma vital numa perspectiva anticíclica, diga-se, de contenção tia crise, e implicando também o desencadeamento de mecanismos de
n Para uma análise sobre o Brasil, conferir os trabalhos de Boschetti o também de Salvador
nesta coletânea.
80SCHETTI • BEHRING • SANTOS • MIOTO
renuncia fiscal para o empresariado, para "proteger o emprego". Segun- do, na sua destinação. De que maneira? Adqu i r indo ativos das empresas "adoecidas" também sob o argumento de proteger o emprego, aproprian- do-se de recursos de reprodução do trabalho para sustentar essa movi- mentação; interferindo diretamente nos processos de rotação do capital, tendo em vista propiciar a sua valorização de forma mais acelerada, por meio de parcerias público-privadas (mecanismo fundamental que forma a base do Plano de Aceleração do Crescimento no Brasil), contratos e compras estatais; pelo fornecimento de crédito; dentre outros expedientes. Esses são movimentos que mostram que o fundo públ ico tem um papel estrutural no circuito do valor, criando contratendências à queda das taxas de lucro, atuando permanente e visceralmente na reprodução am- pliada do capital. Os números da mais recente crise são contundentes, tanto quanto os indicadores do empobrecimento generalizado das maio- rias, especialmente na periferia do mundo do capital, além do desempre- go em expansão em todas as quadras do mundo, inclusive na China que vinha mantendo sua economia "aquecida".
Pequena nota conclusiva
Após esse percurso, que mais enuncia caminhos de aprofundamen- to da pesquisa do que propriamente oferece respostas conclusivas, é possível fazer algumas anotações finais. Salta aos olhos a atualidade dos aportes marxianos, ponto de sustentação decisivo dos argumentos críticos enquanto perdurar o capitalismo como relação econômico-social. Contu- do, o tempo presente exige que se aprofunde a pesquisa factual e teórica, para que possamos apanhar as mediações que atravessam a totalidade concreta, buscando-as com a poderosa bússola de Marx, mas indo além dele. Este é o caso do tema do fundo públ ico que opera por uma gama ampla de ações de maior ou menor envergadura, incidindo sobre a rota- ção do capital, tanto no tempo de trabalho quanto no tempo de circulação, amortecendo as tendências de crise de superacumulàção e superprod uçâo, estimuladas pela queda tendencial da taxa de lucros, e contidas por suas causas contrariantes numa espécie de paradoxo permanente. Ao se cons-
( API1AUSM0 EM CRISE. POLÍTICA SOCIAL t DIRtlTOS 33
t i luir como um elemento cada vez mais estrutural ecentral na reprodução do processo global, o fundo públ ico mostra também que chegamos a uma . spécie de ponto sem volta, no qual a contradição entre o desenvolvimen- to das torças produt ivas e as relações sociais de produção apresenta-se ila forma mais dramática, const i tuindo a sua alocação perversa para o « apitai em vez de uma destinação para a proteção das maiorias trabalha- 11<>ras, a expressão mais contundente deste drama. A crise em curso apre- rnta saídas capitalistas regressivas ebárbaras, socializando seus custos,
.1 exemplo da forte ofensiva contra os salários e os direitos sociais, talvez ainda maior que a dos anos de emersão do neoliberalismo, especialmen- le nos países onde esses direitos t iveram mais consistência e força em função da configuração da luta de classes. Esta úl t ima afirmação nos leva a concluir nossa contribuição neste texto: a disputa de destino engendra- da pela crise do capital mais que nunca requisita a presença na cena pú- blica e política no sentido gramseiano da grande política — dos traba- lhadores. A saída da crise só poderá ser civil izatória se o chamado dos trabalhadores gregos para os demais ressuscitar a velha toupeira: "Tra- balhadores da Europa: levantem-se".
Referências bibliográficas
Hl IIKIXG, Elaine Rossetti. Politica sócia!uo capitalismo tardio. São Paulo: Cortez, 1998.
_. Acumulação capitalista, fundo público e política social. In: BOSCHETTI, Iv.inete; UEHRIXC, Elaine R.; SANTOS, Silvana Mara M.; MIOTO, Regina T. (< >!>;.). Política social iro capitalismo: tendências contemporâneas. São Paulo: Cor- te/, 2008.
Hl NSAID, Daniel. Míir.v, o intempestivo: grandezas e misérias de uma aventura i rítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
t I I I s\ AIS, François. A munrfializaçfio ilo capital. São Paulo: Xamà, 1996.
IIARVEY, David. Condição pós-modenta. São Paulo: I.oyola, 1993.
Los limites dei capitalismo y la teoria marxista. Ciudad de México: Pondo de C ultura Económica, 1990.
TM
HARVEY, David, O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2004.
HUSSON, Michel. El capitalismo tóxico. VientoSnr, n. 101, nov, 2008.
IAMAMOTO, Marilda. Relações sociais e Serviço Social no Brasil. 18. ed. São Paulo: Cortez, 2005.
KATZ, Cláudio. Lección acelerada de capitalismo. fichei ión, 4 out. 2008.
KOS1K, Karen. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
MANDEL, Ernest. O capitalismo tardio. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
. Tratado de economia marxista. Ciudad de México: Ediciones Era, 1969. s. I e II.
MARX, Karl, O capital: crítica da economia política. 3. ed. São Paulo: Abril Cul- tural, 1988.1.1 e II, v. I.
. Siio Paulo: Abril Cultural, 1982. v. II.
. . São Paulo: Abril Cultural, 1982.1.1 e II, v. III.
MÉSZÁROS, Itzván. Pi?r.-7 além do capital. São Paulo: Boi tempo; Unicamp, 2002.
MOTA, Ana Kl i/abe te. Of/ftm? da crise e seguridade social: uni estudo sobre as tendências da previdência e da assistência social brasileira nos anos 80 e 90. São Paulo: Corte/., 19lJ5.
NETTO, Jose Paulo; BRAZ, Marcelo. Economia política: uma introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2006.
. Capitalismo monopolista e Serviço Social. 4. ed. Sào Paulo: Cortez, 2005.
NOVAES, Adauto (Org.). Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
OLIVEIRA, Francisco de. Os direitos do antivalor. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.
SALVADOR, Evilásio, Fundo público r seguridade social. São Paulo: Cortez, 2010.
TOLSSAINT, Eric. Deuda externa en el Tercer Mundo: Ias finan/.as contra los pue- blos. Caracas: Nueva Sociedad, 1998,
35
2
Evilásio Salvador*
Introdução
O fundo públ ico ocupa um pape! relevante na articulação das pol i liças sociais e na sua relação com reprodução do capital. A presença dos lundus públicos na reprodução da força de trabalho e gastos sociais é uma questão estrutural do capitalismo (Oliveira, 1998). Existe urna miríade de formas de gastos sociais e de financiamento, incluindo a questão da ma- nutenção e da valorização dos capitais pela via da dív ida publica. A formação do capitalismo seria impensável sem a utilização de recursos públicos.
No capital ismo contemporâneo, os juros da dívida pública pagos pelo fundo públ ico ou a conhecida despesa "serviço da dív ida" do orça-
• Economista, Doutor em Politica Social. Professor do Departamento Serviço Social eda Pós-gr.i- du . i V Ki em 1'olítica Social da Universidade de Brasília (LnB). Integrante do Grupo de Estudo» e I\'M|UÍS.I sobre Seguridade Social e Trabalho (GESST).
TM
36 BOSCHETTI • BEHRING . SANTOS • MIOTO
mento estatal (juros e amortização) são alimentadores do capital portador de juros por meio dos chamados "investidores institucionais", que englo- bam os fundos de pensão, fundos coletivos de aplicação, sociedades de seguros, bancos que administram sociedades de investimentos. O capital portador de juros está localizado no centro das relações econômicas e sociais da atualidade e da atual crise financeira em curso no capitalismo contemporâneo. No Brasil, o serviço da dívida compromete uma parcela importante dos orçamentos da seguridade social e fiscal, seja na forma de juros e encargos da dívida, seja no pagamento de amortização da dí- vida para o setor financeiro da economia.
A crise econômica se instala novamente pelo mundo, ocorrendo uma redução na produção mundia l e agravando a crise do capital, trazendo o desemprego em massa e afetando a vida de milhares de trabalhadores. Novamente, o Estado, por meio do fundo público, comparece no socorro do grande capital, especialmente das instituições financeiras. O objetivo deste capítulo é analisar a crise do capital a partir do socorro realizado pelo fundo público no contexto de financeirizaçâo da riqueza e alteração nas políticas sociais. Destaca, especialmente, na úl t ima seção, as implica- ções da crise sobre o fundo público da seguridade social no Brasil.
A financeirizaçao da riqueza e as mudanças na proteção social
Entre o final dos anos 1960 e começo da década de 1970, o desenvol- vimento fordista, as políticas kevnesianas e o projeto de listado Social, que vigorou nos países centrais, são postos em xeque, e consigo os direi- tos derivados da relação salarial. A exploração sobre a força de trabalho, juntamente com as novas técnicas produt ivas, elevou a extração da mais-valia relativa sob a égide do Welfmv State, ainda que o Estado Social tenha assegurado avanços aos trabalhadores, com a redução do desem- prego e a garantia de direitos sociais. A ofensiva do capital vai trazer
I. As ideias íiprusentadas neste e na próxima se^ão foram desenvolvidas n.i minha tose de doutorado Fundo jiúHhv no Brassi-, f inanciamento e destino dos recursos da seguridade social {2000 .1 20i>7). V'er, nesse sentido. Salvador (2008)
C APIIALISMO EM CRISE. POLITICA SOCIAL E DIREITOS 37
sérios riscos à proteção social e às conquistas sociais do período pòs-Se- gunda Guerra. A nova fase de acumulação capitalista vai ser capitaneada pela esfera financeira, e no campo ideológico o velho l iberalismo se ves- le com a "nova" roupagem, rebatizado de neoliberalismo.
O quadro revela as limitações das políticas kevnesianas diante da internacionalização do capital, com sinais de esgotamento do padrão de hn.inciamento das políticas sociais e a reação do capital à queda das taxas ile lucro, na sua sanha pela acumulação e, portanto, por superlucros. Os capitalistas se armam para revogar as conquistas sociais do pacto so- »i.il-democrata investindo contra os trabalhadores, em busca de restabe- lecer um novo padrão de acumulação para saída da crise. O desenvolvi- mento de novas tecnologias aumenta a composição orgânica do capital, reforçando a tendência decrescente da taxa de lucros.
Para Mandel (1990), como a força de trabalho está reduzida em rela- i .io ci reprodução automatizada, ocorre uma queda no valor unitário das mercadorias, desvalorizando o capital. Há uma superprodução global, . i i imentando o excedente, o que corrobora para a crise clássica do capita- lismo, elevando a possibilidade de estagnação. Os novos investimentos para atender à demanda elevam a capacidade produtiva, chegando ao apogeu com a realização da produção. Mas o sistema capitalista não funciona em equilíbrio. Assim, quando a expansão se encerra e a capaci- dade ociosa surge, não há realização do consumo. A produção de merca- dorias para além do seu valor de uso entra em choque com sua realização enquanto valor de troca, gerando uma crise de superprodução.
A crise se manifesta juntamente com a reação do capital contra o I siado Social. A onda de expansão do capitalismo expõe também a con- tradição do própr io sistema, e o avanço tecnológico com uso intensivo de « apitai vem acompanhado de economias com a força de trabalho, sola- pando o pacto dos anos de crescimento com pleno emprego e o arranjo da soeial-democracia para as políticas sociais. A inflação a partir dos anos 1970 é um desestímulo ao aquecimento da demanda global e incentiva- dora da especulação financeira. A recessão após 1974 põe f im ao "sonho" tle que a crise do capitalismo seria contornável por políticas de cunho kes nesiano (Mandel, 1990).
TM
38 BOSCHETTI • BEHRING • SANTOS • MIOTO
A crise é resultado de um conjunto complexo de elementos, não podendo ser reduzida a uma única causa, como a superprodução ou subconsumo. Mandel (1990) destaca a queda tendencial na taxa de lucros e o aumento da composição orgânica do capital como intensificação de uma crise com múltiplas dimensões. A busca pela expansão global de mercados aumenta a concorrência capitalista acentuando a redução nos preços e, portanto, no valor das mercadorias, obrigando a intensificação da extração da mais-valia, que tem certos limites em função da redução do quantitativo de trabalhadores na produção. O baixo retorno dos in- vestimentos produtivos, ou seja, a queda na rentabilidade leva a uma fuga do capital do setor produtivo para a esfera financeira, agindo de forma especulativa.2
Nesse quadro, há um redirecionamento de capitais para setores im- produtivos: militar e financeiro especulativo. Mandel (1990) ressalta que, na crise de superprodução, a queda na taxa média de lucros cria um am- biente propício para expansão e aprofundamento da especulação. O crédito incessante leva ao agravamento do endividamento das empresas, gerando resistência para ajustes tempestivos de preços e de lucros, apesar de encargos financeiros crescentes combinados com queda na rentabili- dade, o que produz uma "bomba" de efeito retardado. A expansão do crédito é a forma encontrada pelos bancos para evitar as bancarrotas em cadeia. Com isso, de acordo com Mandel, durante o boom do superaque- cimento, lica mais encoberto, no curto prazo, o inexorável crftsli.
A especulação financeira vai ganhar novos contornos a partir de meados da década de 1970, com a criação dos novos "produtos" finan- ceiros. Convém relembrar que um aspecto relevante da instabilidade econômica mundial dos anos 1970, a questão financeira, tem a ver com os problemas financeiros experimentados na economia norte-americana:
2. De acordo com Aglietta (2004a), o conceito de especulação fui definido, em W39. pelo econo- mista Nicholas Kaldor: "a compra (ou ver.da) do mercadorias tendo em vista untn revenda (ou re- compra i em data posterior, onde o móbi l de tal ação ê antecipação de unia mudança dos preços em vigor, Ü não uma vantagem resultante de seu uso, ou uma transformação ou transferência de um mercado para outro" (Aglietta, 2004, apud Kaldor, lvS7, p. 44). Completa Aglieita (2004a, p. 44): "especular, portanto, é antecipar em condições nas quais iis variáveis que participam na formação do preço são incertas. í- uma atividade orientada para a percepção do futuro".
( APITALISMO EM CRISE. POLÍTICA SOCIAL E DIREITOS 39
" lo i nos Estados Unidos, na década de 60, que nasceram os determinan- tes da instabilidade estrutural que tem atingido as economias nacionais • • internacionais nas últimas décadas" (Braga, 1993, p. 27). A economia americana conviveu nesse período com um processo inflacionário cerca- »lo de incertezas financeiras, gerando uma instabilidade internacional das lavas de juros e de câmbio. Para Braga (2000), já estão presentes, nessa , use da economia americana, a ampliação da natureza financeira da ri- queza no capitalismo, a busca da rentabilidade acelerada, o que se aplica tauto às corporações quanto à construção de posições por parte do siste- iii.i financeiro, na trajetória em direção à preponderância dos ativos líqui- dos e rentáveis.
Nos anos 1960, quando os Estados Unidos passaram a conviver com inflação ascendente ecom incertezas financeiras, que levaram à extinção da conversibilidade ouro do dólar e, por consequência, à explosão da instabilidade mundial das taxas de juros e de câmbio, a moeda deixou de ser plenamente estável, mesmo nos países desenvolvidos. Com isso, os países do centro do capitalismo passaram a perseguir uma articulação e n l r e inovações financeiras e inovações técnico-produtivas que possibi- litasse o crescimento com inflação controlada e a realização dos investi- mentos industriais (Braga, 1993 e 2000).
Nío novo cenário econômico mundial, há uma busca irrestrita de mobilidade global por parte do capital para a qual a flexibilização e as políticas liberalizantes são imperativas. Uma das novidades no processo de globalização, no século XX, é a acentuação da esfera financeira no processo de acumulação capitalista, em que as alterações em curso trazem maior instabilidade econômica e taxas de crescimento medíocres ou ne- gativas. Por outro lado, são realizadas com o aprofundamento da globa- lização financeira (Fiori e Tavares, 1993), evidente com a crescente auto- nomia do capital financeiro relativamente ao setor produtivo industrial e «i maior dependência dos investimentos dos fluxos internacionais de i npitais, que se tornam mais voláteis e atomizados, trazendo sérias con- sequências ao "mundo do trabalho" (Mattoso, 1996). Para Santos Filho (1993, p. 9), "a fase atual não criou um novo tipo de capital financeiro (internacional), mas aprofundou até as últimas consequências as formas de reprodução desse capital".
TM
40 BOSCHETTI . BEHRING . SANTOS • MIOTO
A análise da macroeconomia financeira feita por Aglietta (2004a) revela que a partir dos anos 1980 ocorreu uma lorte expansão financeira, paralelamente a desaceleração do crescimento econômico nos países desenvolvidos. O novo ambiente financeiro foi propício para acumulação patrimonial das famílias mais ricas. Na análise do ciclo de vida e da tran- sição demográfica, o autor explica que os adultos em idade madura (entre 40 e 60 anos), nos países que lograram uma sociedade salarial, poupam bastante para pagar suas dívidas passadas e para acumular uma riqueza financeira e imobiliária visando à aposentadoria. Uma parcela crescente dessa poupança é aplicada em seguros de vida e nos fundos de pensão administrados pelos investidores institucionais.
Para Aglietta (2004a, p. 2^):
A desregulamentação das finanças abriu novas perspectivas para a pou- pança, que saiu dc seus refúgios tradicionais, nos bancos e nas cadernetas de poupança, rumo a mercados de títulos ea aquisições imobiliárias. Esse redireccionamento foi canalizado petos investidores institucionais (compa- nhias de seguros e fundos de pensão) que foram forçados pela concorrência
realizar administrações mais dinâmicas das carteiras que lhes eram con- fiadas. Ele também foi acelerado por novos intermediários do mercado, fundos de participação e negociadores de títulos de todos os tipos. A atração das famílias foi garantida pelas esperanças de ganhos de capital suscitados pelos mercados abertos, desregulamentados t» vitaminados por incentivo* fiscais (grifo nosso).
Com isso, a liberalização financeira pavimentou o caminho para acumulação da riqueza privada de forma mais rápida que em outras épocas do capitalismo. Contudo, n "riqueza" não veio por meio da eco- nomia real, ou seja, pela produção de novos bens e serviços,