capistrano de abreu-josÉ carlos reis

20

Click here to load reader

Upload: horacio-silva

Post on 05-Jul-2015

323 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: CAPISTRANO DE ABREU-JOSÉ CARLOS REIS

REVISTA DE

HISTÓRIA

FFLCH-USP

1998

CAPISTRANO DE ABREU (1907). O SURGIMENTO DE UMPOVO NOVO: O POVO BRASILEIRO

José Carlos ReisUniversidade Federal de Minas Gerais

RESUMO: O artigo discute inicialmente alguns dados biográficos de Capistrano de Abreu que contribuíram para a posi-

ção inovadora que conquistou na historiografia brasileira; examina as suas relações com Varnhagen e o IHGB, a sua

hesitação teórico-metodológica entre o positivismo e o historicismo, o seu novo ponto de vista sobre a história brasileira,

que se denominou de “redescoberta do Brasil”. Resume e analisa a sua obra “Capítulos de História Colonial” procurando

apreender todo o seu alcance metodológico e político e conclui com reflexões sobre a temporalidade histórica do Brasil,

segundo a sua perspectiva renovadora, que enfatiza a ruptura com a tradição lusitana e a opção pelo futuro brasileiro.

ABSTRACT: The article initially discusses some of Capistrano de Abreu’s biographical data that have contributed to the

innovative position he has achieved in the Brazilian historiography. It also examines his relationship with Varnhagen and

the IHGB, his theoretical-methodological hesitation between positivism and historicism, and his new point of view on the

Brazilian history wich was called “rediscovery of Brazil”. It summarizes and analyses his work “Capítulos de História

Colonial” (Chapters of Colonial History), trying to apprehend its methodological and political attainment and concludes

with reflections on the historical temporality of Brazil, according to his innovative perspective, that enphasizes the rupture

of the Lusitanian tradition and the option for a Brazilian future.

PALAVRAS-CHAVE: Historiografia Brasileira, Capistrano de Abreu, Capítulos de História Colonial, Temporalidade

Renovadora, “Redescobrimento” do Brasil.

KEYWORDS: Brazilian Historiography, Capistrano de Abreu, “Capítulos de História Colonial” (Chapters of Colonial

History), Innovative Temporality, “Rediscovery” of Brazil.

Page 2: CAPISTRANO DE ABREU-JOSÉ CARLOS REIS

64 José Carlos Reis / Revista de História 138 (1998), 63-82

Capistrano de Abreu, “Heródoto do PovoBrasileiro”

João CAPISTRANO DE ABREU nasceu emMaranguape, Ceará, em 1853. Nasceu no sítio deColuminjuba, que seu pai herdara de seu avô, que ohavia recebido de presente de um reinól perseguidopelos ódios exacerbados do nativismo local, do qualele então protegera. Foi assim que a sua família saiuda pobreza e se tornou proprietária de um pequenopedaço de terra. Ali, Capistrano foi criado com rigi-dez, severidade e austeridade, em um ambiente mar-cado pelo trabalho pesado e contínuo e pelo dogma-tismo católico. Seu pai, depois de herdar a terra, re-construiu a casa e se tornou um dos “homens bons”,“homens de consideração”, da região, pois tinha osuficiente para sustentar a família e gozar de algumprestígio social. Ele pertencia à Guarda Nacional e àburocracia provincial – tinha a patente de major. Nosítio, ele plantava cana, algodão, mandioca, feijão,milho. O trabalho era feito por escravos, por agrega-dos e pela própria família. Seu avô e pai eram homensdo tipo “amansa-negro”: homens de mão pesada e dealma dura. Capistrano nasceu, portanto, em uma “casagrande”, modesta, mas abastecida. A casa expressa-va o espírito místico-escravista dominante: era cheiade imagens de santos, rosários, relíquias, escapulá-rios, terços e orações e um dos seus cômodos era usa-do como “sala de disciplina”, a “sala do tronco”, comos instrumentos de suplício para os escravos rebeldes eque, provavelmente, o rebelde Capistrano também co-nheceu, pois os filhos na sua época eram também “aman-sados”! Ali reinava o espírito colonizador e inquisidordos descobridores. O sítio submergia no anonimato davida sertaneja, cercado por longas distâncias, emboraFortaleza não fosse tão longe. Vivia-se ali uma vida iso-lada, rotineira, silenciosa, ritmada pela natureza, pelo tra-balho e pelas rezas (CÂMARA, 1969).

Foi neste ambiente bem pouco aristocrático quenasceu e viveu até à juventude, Capistrano de Abreu.

Ele era psíquica e fisicamente um autêntico sertane-jo, um caboclo matuto, feio, agreste, desagradável:“um desconfiado tapuia transplantado para o meiocivilizado”, alguém disse. Seus biógrafos descrevema sua imagem de maneira bem desfavorável – “sebo-so”, mal vestido, sem higiene pessoal, uma figuratorta, um olho pendido para o lado, uma cor encardidaque o banho só piorava! Para logo desanuviarem a máimpressão referindo-se à sua personalidade brilhan-te e envolvente. Ao chegar, ao ser apresentado a al-guém ou ao se apresentar, sua imagem causava des-gosto; ao sair, seu espírito deixava encantamento. Foiassim, por exemplo, em seu primeiro encontro comJosé de Alencar, seu conterrâneo que tinha obtidogrande sucesso nacional e a quem ele recorreu paraintroduzí-lo na Corte. Capistrano não era vaidoso ese silenciava sobre si mesmo. Sabe-se que era próxi-mo e afeiçoado aos escravos e que conhecia muitascanções africanas (CÂMARA, 1969).

Sua formação intelectual, considerando a sua ori-gem modesta e rude, foi outro “milagre”. Ele foi so-bretudo um autodidata, um leitor apaixonado edesordenado. Foi alfabetizado no próprio sítio e de-pois estudou em um colégio pobre de Fortaleza – o“Ateneu Cearense”, e no Seminário. Como estudan-te, sempre fracassou em seus exames. Talvez ele ti-vesse dificuldades psicológicas com a “autoridade”,associada ao pai. Seu retorno de Recife, onde passoudois anos preparando-se para entrar na Faculdade deDireito, com o apoio financeiro de seu pai!, foi maisou menos trágico: ele fracassara em Recife! Entre os18 e 20 anos, as perspectivas de Capistrano não eramas melhores. Ele ficou no sítio, escrevendo em jor-nais de Fortaleza, dando aulas em colégios. Ele pre-cisava de um emprego e de um salário para viver. Nãoera rico e não poderia depender mais do seu pai, semtrabalhar no sítio (CÂMARA,1969).

Ele decidiu, então, ir para a Corte, migrar para oRio de Janeiro, armado com uma carta de José deAlencar, apresentando-o aos jornais do Rio, e com

Page 3: CAPISTRANO DE ABREU-JOSÉ CARLOS REIS

65 José Carlos Reis / Revista de História 138 (1998), 63-82

700 mil réis que apurou com a venda de um escravode sua propriedade, que herdara de seu avô. Em 1875,este “nordestino feioso” desceu para um mundo des-conhecido, incerto, “sozinho, sozinho”. Ele chegouao Rio com 21 anos. Apesar da sua resistência aobacharelismo, chegou com uma boa bagagem intelec-tual: lia francês e inglês, conhecia filosofia, literatu-ra, história e geografia. Assim dizem seus biógrafosmais exaltados. E exageram: ele lia até sueco(CÂMARA, 1969)! Na Corte, ele precisava de umemprego. Trabalhou na Livraria Garnier, foi profes-sor no Colégio Aquino, “onde tinha casa e comida”,escreveu vários artigos em jornais, passou em um con-curso para o preenchimento de uma vaga na Biblio-teca Nacional, um emprego público, estável e segu-ro, a âncora que ele precisava para fixar-se na Corte.Em 1883, ele fez o famoso concurso para ser profes-sor de “Corografia e História do Brasil” do ColégioPedro II. Passou, ocupou a vaga, mas não ficará mui-to tempo, pois sairá em 1899. Sua cátedra foi extinta– “História do Brasil”! – que foi incluída na “Histó-ria Universal”. Enquanto ensinou, sem carisma, tevealunos e nunca discípulos. Ao sair do Colégio, sen-tiu-se aliviado: livrara-se de “alunos ignorantes e de-satentos”. Contudo, a razão da sua saída do ColégioPedro II permanece ainda mal explicada. Alguma ra-zão política? Chacon afirma que Capistrano e O.Lima,acusados de germanofilia quando da Primeira GuerraMundial, teriam sofrido perseguições (CHACON,1993, p.92). Mas, a sua saída do Pedro II foi em 1899,bem antes. Qual foi a verdadeira razão? Foi somenteuma simples “reforma do ensino” que dissolvia umacadeira de “História do Brasil”!? Capistrano morreuem 1927, aos 64 anos (CÂMARA, 1969).

Sua biografia interessa muito, quando se conhe-ce o lugar inovador que ele teve na historiografia bra-sileira. A biografia escrita por J.S. Câmara, que utili-zamos até aqui, parece-nos recomendável, apesar deum excesso, talvez, de “empatia”, embora compreen-sível. Quem é, afinal, o autor de Capítulos de Histó-

ria Colonial? Num mundo social marcado profunda-mente pela bipolarização senhor-escravo, ele não eranem uma coisa e nem outra. Sua família era pequenaproprietária de terra e produzia para o seu própriosustento. A maneira como conseguiu essa terra tam-bém é curiosa, casualmente, um “presente de reinól”!A produção não era destinada ao mercado internacio-nal, mas era feita também com mão de obra escravae de agregados, que trabalhavam lado a lado com osmembros da família proprietária. Era um mundo so-cial “brasileiro”, isto é, voltado para dentro, sem vín-culos externos diretos. A subsistência era retirada daterra, parca e modesta, à custa de um trabalho contí-nuo e braçal, quase sem equipamentos. O horizontepessoal de Capistrano era prosseguir esta vida pater-na e familiar, horizonte que ele recusou, contra o qualse rebelou, mas ao qual tinha pouca coisa ou quasenada para substituir. Refugiou-se, então, talvez, naleitura, evadiu-se, o jovem Capistrano. Criou ummundo de palavras, frases, citações confusas e emoutras línguas (apelando até para o sueco!), buscan-do “diferenciar-se” do seu mundo, do seu passado,buscando o reconhecimento intelectual, o prestígio dehomem de letras, devorador de livros, mas pouco dis-ciplinado para enfrentar exames.

No Rio, quando não tinha mais terra e nem eramais proprietário de escravos, passado que rejeitara,ele só tinha a sua força física e seus olhos leitorescomo instrumento de trabalho. Ali, ele precisava so-breviver e mostrar o seu valor. Tendo rompido comaquele passado, ele rompeu também com o futuroprevisível que ele prometia; agora, ele enfrentava umfuturo desconhecido, que ele teria de produzir comos seus próprios recursos. Capistrano preferiu a mu-dança e a sua instabilidade à continuidade familiar enordestina. Sua história pessoal se parece com a in-terpretação que construiu do Brasil: rebeldia e recu-sa do passado, opção por um futuro novo; mas qual?!O “Necrológio de Varnhagen”, escrito em 1778, trêsanos depois da sua chegada ao Rio, talvez tenha sido

Page 4: CAPISTRANO DE ABREU-JOSÉ CARLOS REIS

66 José Carlos Reis / Revista de História 138 (1998), 63-82

o seu grande trampolim para o futuro que ele queriarealizar: repercutiu tão intensamente, dizem, que atéo insuperável Machado de Assis evitou publicar o seu!Capistrano começou então a sentir o gosto da vitóriae do sucesso, depois de experimentar fracassos suces-sivos no Nordeste. Seu horizonte novo se abria e seensolarava na Corte (CÂMARA, 1969).

Ele viverá até 1927 com os seus únicos recursos:postos públicos e a sua escrita concisa, precisa e ino-vadora. Entretanto, a sua obra é pequena e constituídade textos curtos. Ele viverá na verdade mais da suarenda de funcionário público, bibliotecário e profes-sor, do que dos seus escritos, que ele próprio parecianão apreciar muito. Quando terminados, ele diziasentir por eles “alívio e nojo” (CÂMARA, 1969).Talvez, este seja também o sentimento de um operá-rio diante da sua obra terminada: “alívio”, pois deuconta de fazê-la e já podia ir para casa com o saláriono bolso; “nojo”, pois a produzira sob pressão, domi-nado pela necessidade. Como um operário, ummigrante nordestino, Capistrano é um homem humil-de, discreto, tímido, avesso a títulos e glórias e indife-rente à audácia e perícia do trabalho que realiza.

Varnhagen e Capistrano

Quando ele nasceu, em 1853, Varnhagen come-çava a publicar a sua História Geral do Brasil.Capistrano será o seu leitor mais atento e crítico. Seráem relação a Varnhagen que ele fará a sua grandeinovação na interpretação do Brasil. Esta inovação seexplica não só em termos da sua origem social, que étotalmente diversa da de Varnhagen, mas também emrazão da nova época intelectual vivida pelo Brasil nosanos posteriores a 1870. O desfecho da Guerra franco-prussiana abalara o prestígio da cultura francesa e osintelectuais brasileiros se abriram às influências in-glesa e alemã: Spencer, Darwin, Buckle, Ranke,Ratzel. Os franceses ainda influenciavam: Comte,Taine, Tarde, Renan, G. Le Bon. Pós-1870, o ambi-

ente intelectual brasileiro era mais complexo, refletin-do também a maior complexidade da vida brasileira,que se inquietava após o fim da Guerra do Paraguai.Varnhagen escrevera quando a monarquia se consoli-dava nos anos 1850; Capistrano construirá a sua in-terpretação do Brasil quando a Monarquia estavaabalada, em xeque, assim como a escravidão, e se bus-cavam novas bases econômicas, sociais, políticas ementais para o Brasil (WEHLING, 1994).

Os intelectuais brasileiros do final do século XIXcomeçaram a perceber a distância entre a realidadebrasileira e o pensamento que eles próprios produzi-am. Silvio Romero criticava o ambiente intelectualbrasileiro, vazio e banal, e aspirava ter contato com overdadeiro Brasil. Há um esforço de todos para en-carar de forma nova o passado brasileiro. Eles têm,agora, uma preocupação “cientificista”. Comte,Buckle, Darwin, Spencer serão as referências intelec-tuais predominantes (ORTIZ, 1985). A preocupaçãocientificista de Capistrano era a de toda uma novageração. No pós-Guerra do Paraguai, esta geraçãoquer reinterpretar a história brasileira privilegiandonão mais o Estado Imperial, como Varnhagen, mas opovo e a sua formação étnica. A formação intelectualde Capistrano se deu neste ambiente determinista, ci-entificista, até racista. Discutia-se, então, o positivis-mo, o determinismo climático, o determinismo bio-lógico, o spencerismo, o comtismo, o darwinismo, asteorias raciais. Pensava-se que a sociedade poderia serestudada com a mesma objetividade com que se es-tudava a natureza, pois também submetida a leis ge-rais de desenvolvimento. A história seria como ouniverso: um mecanismo auto-regulado, submetidoa leis, passível de um conhecimento objetivo. A ciên-cia passava de método a visão de mundo, desvalori-zando as verdades trazidas pela tradição, pela religião,pela filosofia. Euclides da Cunha, O. Vianna, SilvioRomero, Tobias Barreto, enfim, a geração deCapistrano de Abreu, discutia darwinismo social,luta pela vida, seleção das espécies e defendia um co-

Page 5: CAPISTRANO DE ABREU-JOSÉ CARLOS REIS

67 José Carlos Reis / Revista de História 138 (1998), 63-82

nhecimento anti-metafísico, empírico, histórico(CHACON 1977; WEHLING, 1994).

No entanto, havia posições heterodoxas. TobiasBarreto, por exemplo, opunha-se ao cientificismo pre-dominante opondo-lhe o historicismo neokantistaalemão. Quando se trata do homem e da sociedade,ele sustentava, há sempre um “resto” que a mecânicanão explica; aliás, este “resto” mecanicamente inex-plicável é quase tudo quando se trata do homem. Oque há, então, é um “todo inexplicável”. Naqueleambiente spenceriano, Tobias Barreto já era um cul-turalista, um pioneiro historicista. Não há leis para ahistória humana.

O pensamento brasileiro do final do século XIX,portanto, estava dividido. A “Escola de Recife” manti-nha a distinção entre natureza e cultura, resistia ao ci-entificismo sociológico; este dominou a Escola Poli-técnica do Rio de Janeiro, a Escola de Minas de OuroPreto, o Colégio Pedro II, a Escola Normal, O Colé-gio e Escola Militares, a Escola Naval, as Faculdadesde Medicina e Direito, que formavam os profissionaisliberais, políticos, intelectuais, empresários, impreg-nados de Comte, Spencer e Darwin. (CHACON,1977; WEHLING, 1994).

Capistrano: positivista ou rankiano?

O pensamento de Capistrano revela esta divisãoe confusão da discussão intelectual no Brasil no finaldo século XIX. Qual era a sua tendência: mais posi-tivista ou mais historicista? P. M. Campos afirma queTaine, Buckle e Comte foram importantes na sua for-mação. Chacon o considera um dos numerosos adep-tos de Spencer da época. (CHACON, 1977) Entretan-to, se a “Escola de Recife” era mais historicista, ficaum pouco difícil perceber a sua formação positivistaem Recife. Talvez, quando foi para o Rio de Janeiroele tenha tido um maior contato com os autorespositivistas ingleses e franceses no Colégio Pedro IIe ali, também, tenha sofrido a doutrinação dos deba-

tes positivistas. Os analistas de Capistrano arrolados abai-xo dizem mais ou menos o mesmo (CAMPOS, 1983).

Para R. Benzaquen, ele sempre se interessou teo-ricamente pelos sociólogos franceses, ingleses e ale-mães. A perspectiva sociológica influenciou-o e elelamenta que Varnhagen não a tivesse empregado aonão procurar leis na história do Brasil. No “Necroló-gio...”, em 1878, e já no Rio de Janeiro, ele reafirmoua sua crença na possibilidade de se encontrar leis paraa história do Brasil. Ele esperava um Spencer ou umBuckle da história do Brasil. A sua obra é um pontode referência da recepção da concepção moderna dehistória, com o seu ideal objetivista de verdade, apoiadaem documentos inéditos, testemunhas oculares, auto-res identificados das fontes. Para ele, o distanciamentodo historiador deve se dar quando ele manipula as fon-tes; em um segundo momento, quando ele as interpre-ta, o quadro teórico das ciências sociais orientará apesquisa com suas leis e teorias (ARAÚJO, 1988).

P.M. Campos afirma que ele se interessou por tudoo que saiu da Europa, em particular pela bibliografiaalemã. Interessava-se por economia política, históriada América e de Portugal, psicologia, que ele conside-rava indispensável ao historiador, e geografia. A in-fluência alemã levou-o ao estudo rigoroso dos docu-mentos – Capistrano quer também narrar o que de fatoaconteceu. Ele defende o realismo histórico alemão.Entretanto, ele esteve embebido em influências diver-sas, não somente alemãs. Aquelas características dasua obra – estrita observação das fontes e pesquisadas relações do homem com o meio geográfico – separtiram da Alemanha, já pertenciam a todo o Oci-dente. Sua obra, afirma Campos, não permite umaavaliação do grau de influências recebidas. Forampublicadas como artigos, esparsamente, e seus livrosnão possuem prefácios. Só em sua correspondênciase pode conhecer as suas leituras. Sua correspondên-cia, aliás, é um valioso material para a história dasidéias no Brasil do final do século XIX e início doXX. Nelas, Campos não percebeu nem preconceito e

Page 6: CAPISTRANO DE ABREU-JOSÉ CARLOS REIS

68 José Carlos Reis / Revista de História 138 (1998), 63-82

nem exclusivismo cultural. Capistrano nunca teriaproposto uma explicação unilateral da história, massempre percebeu a interdependência das diversas ins-tâncias sociais (CAMPOS, 1983).

Para A. Canabrava, tal como em Varnhagen, aexegese documental, que ocupou muito do seu tem-po, parece inspirar-se em Ranke. Os dois se encon-tram na preocupação fundamental pelo documento,pela busca da autenticidade, pela verdade das fontes,pela esforço de análise objetiva. Entretanto, diferen-te de Varnhagen, que não se interessou por teoria,Capistrano, que nunca saiu do Brasil, tinha grandeinteresse pelas correntes do pensamento europeu nocampo das ciências sociais. Canabrava afirma terencontrado em sua correspondência muitas referên-cias a diversos teóricos europeus: Taine, Buckle,Comte, Ratzel, Spencer, Sombart, Ranke. Capistranolia estudos empíricos e ensaios teóricos em assuntosvariados. Interessou-se tanto pela história do clima eda Rússia como pela história do Brasil. Ele foi umdos pioneiros da geografia humana. Entretanto, con-clui Canabrava, ele era teoricamente confuso: não do-minava vários conceitos que ao seu tempo as ciênci-as sociais tinham formulado. Faltou-lhe uma proble-mática consistente, que desse ao seu pensamento umadiretriz fundamental de interpretação; faltou-lhe, en-fim, “unidade teórica”. Ele apenas aflorou os gran-des temas das ciências sociais, sem dominá-los(CANABRAVA, 1971).

Para Wehling, a influência cientificista é determi-nante na obra de Capistrano entre 1874 e 1880. A suabiografia intelectual começa no Ceará, no círculo po-sitivista formado por Rocha Lima, Araripe Jr., TomásPompeu Filho entre outros. O grupo atuava no senti-do da educação do “proletariado”, na linha comtista.Escreviam em francês, faziam conferências na EscolaPopular que fundaram. Capistrano escrevia artigos epronunciava conferências sobre as influências posi-tivistas de Spencer, Buckle, Comte e Taine. Entre1874 e 1883, enfim, Capistrano rezava a cartilha

cientificista: unidade do real, busca de leis determi-nistas, evolucionismo, cognoscibilidade e objetivida-de do conhecimento social, unidade epistemológicadas ciências sociais (WEHLING, 1994).

Entretanto, Wehling considera que este interessepelas idéias positivistas se restringiu a uma fase inicialde sua formação. Depois, com o aprendizado do ale-mão, ele teria passado do positivismo ao realismohistórico rankiano. Ele optou pela pesquisa documen-tal e pelo método crítico alemão que, aliás, ainda hojeé chamado impropriamente de “positivista”, por causada influência da Escola dos Annales (REIS, 1996).Houve uma reviravolta em seu pensamento, cuja datanão é fixável. A influência alemã o retirou dopositivismo e o levou à hermenêutica. Mas, não fo-ram leituras teóricas que o retiraram do cientificismo,como quer J.H.Rodrigues, afirma Wehling. Para este,foi o estudo de documentos, o primado do objeto, queconverteu Capistrano do cientificismo à ciência. Arebeldia das fontes ante os esquemas interpretativosfez com que ele os restringisse a hipóteses de traba-lho. O real era reconstruído a partir de sugestões cien-tíficas que conduziam ao levantamento dos fatos. Acomposição e interpretação desses fatos obedecem àlógica da situação histórica. Capistrano tinha poucointeresse por problemas teóricos e metodológicos dahistória. Na sua fase científica, ele utilizou leituraseuropéias como sugestões temáticas, como hipótesesde trabalho. O seu interesse teórico na fase cientifi-cista foi sem conseqüências para a pesquisa que rea-lizou e repercutiu na fase posterior. Portanto, paraWehling, a resposta à questão sobre a orientação teó-rica de Capistrano é clara: ele passou por duas fases:uma primeira cientificista, franco-inglesa, e outra ci-entífica, alemã, rankiana. As suas grandes obras sãoda segunda fase.

Rodrigues considera que Capistrano fez uma revi-ravolta na historiografia brasileira por sua posiçãoteórica atualizada, seu conhecimento incomum dosfatos, seu novo ideal de história do Brasil. Os seus

Page 7: CAPISTRANO DE ABREU-JOSÉ CARLOS REIS

69 José Carlos Reis / Revista de História 138 (1998), 63-82

artigos de 1879 revelaram a influência positivista, nãosó na investigação como na interpretação dos fatos dahistória do Brasil. Ele era amigo de Teixeira Mendese Miguel Lemos, apóstolos comtistas no Rio de Janeiro.Mas, o convívio com autores alemães fazem-no ir àprocura das realidades, segundo ideais não positivis-tas. Em suas obras mais importantes ele não deduz egeneraliza tão facilmente. Rodrigues precede Wehlingem sua leitura da “reviravolta” no pensamento deCapistrano. Sob as influências de Ranke, Niebhur eHumboldt, ele passará a dar ênfase aos documentos,à sua crítica e interpretação, sem buscar leis, mas a“compreensão”. Entretanto, apesar da influência ale-mã, sobrevive uma certa influência de Spencer. Mas,o positivismo, ele passará a considerá-lo como uma“camisa de força” e a influência alemã será cada vezmaior: Ranke e Ratzel. Ele recusa os determinismosgeográfico, climático e racial e o evolucionismo.Historicista, ele percebe que a vida em eu mistériopede um tratamento diferenciado da natureza. Seusestudos sobre a história íntima, festejos, família, pro-curando a diferença, a individualidade, as significa-ções, o afastam do que é típico, regular, constante. Aação humana não se submete a regras e leis gerais(RODRIGUES, 1963 e 1965).

Deixando o positivismo, ele passou a se interessarpelo método crítico, que mais uma vez, desde a Escolados Annales, é visto inadequadamente como a marcada “história positivista” (REIS, 1996). Mesmo seSpencer é forte, e ele o será até os anos 30, até G.Freyre, a influência alemã é que fundamentará asobras mais relevantes de Capistrano. Historicista enão positivista, o segundo Capistrano quer captar ainterioridade dos testemunhos. A história não é sófato, é emoção, sentimento e pensamento dos queviveram. Mas, se apreciava a metodologia de Ranke,ele não seria capaz de se apagar para narrar os fatostal como se passaram. Rodrigues o considera a maislúcida consciência da história do Brasil: ele recriouo passado brasileiro, enfrentando os seus males, su-

perando-os, reabrindo o futuro do Brasil (RODRI-GUES, 1963 e 1965).

Odália o vê como exemplar de uma interpretaçãodo Brasil que privilegia o indígena, por um lado, e,por outro, ele é mais um historiador brasileiro que im-porta teorias européias e se dilacera para atender aessas teorias que condenavam o Brasil a um tristedestino, para que este destino não se realizasse. Porum ato de vontade e de contorcionismo teórico nega-se o destino pré-fixado pelos cientificistas europeus,que afirmam a impossibilidade de uma nação civili-zada nos trópicos e ainda por cima miscigenada(ODÁLIA, 1976). Capistrano, no entanto, será dife-rente da sua geração. Ele reabrirá o futuro do Brasil,vencerá o pessimismo existente entre os intelectuaisbrasileiros que olhavam o Brasil com as teorias de-terministas européias e nele não viam o que elas valo-rizavam, mesmo se ele também, em uma primeirafase, impregnou-se com tais teorias e tenha feito tam-bém algum contorcionismo teórico. Finalmente, eleoptou pela teoria também européia que valoriza a sin-gularidade, a historicidade de cada povo e formulouuma nova interpretação do Brasil que enfatizará otempo histórico especificamente brasileiro.

A “Redescoberta do Brasil”

Capistrano será um dos iniciadores da corrente dopensamento histórico brasileiro que “redescobrirá oBrasil”, valorizando o seu povo, as suas lutas, os seuscostumes, a miscigenação, o clima tropical e a natu-reza brasileira. Ele atribuirá a este povo a condiçãode sujeito da sua própria história, que não deveria virmais nem de cima e nem de fora, mas dele próprio.O futuro do Brasil torna-se tarefa do povo brasileiroe, para melhor vislumbrá-lo, Capistrano recupera opassado deste povo em suas lutas e vitórias. Capis-trano foi pioneiro na procura das identidades do povobrasileiro, contra o português e o Estado Imperial eas elites luso-brasileiras.

Page 8: CAPISTRANO DE ABREU-JOSÉ CARLOS REIS

70 José Carlos Reis / Revista de História 138 (1998), 63-82

Seu papel na história do Brasil, a significação dasua obra, os caminhos novos que apontou, os seusideais e conceitos e contribuição à história colonialpodem ser avaliados nos Capítulos de História Colo-nial. Ele não fez uma história exclusivamente político-administrativa ou biográfica, mas procurou apreendera vida humana na multilateralidade de seus aspectosfundamentais. Sua visão da história não atribui predo-minância de um fator sobre outros; ele a vê como umconjunto complexo de fenômenos humanos. Para ele,como historicista, o historiador deve recriar a vida in-tegralmente, realizar uma compreensão total e cria-dora do curso histórico. O conceito de “cultura” subs-titui o de “raça” e neste aspecto ele é precursor de G.Freyre, assim como de S.B. de Holanda. Ele valorizaa presença indígena e pensou um Brasil mais mame-luco do que mulato, mais sertanejo do que litorâneo.Nos Capítulos de História Colonial, aparecem oscaminhos que levam ao sertão e o próprio sertão brasi-leiro. Adentrando pelo Brasil, o colonizador se alte-rou e se tornou uma personalidade distintamente bra-sileira. Vivendo no interior do Brasil, ilhado e semvínculos contínuos com o litoral, convivendo com osindígenas e a natureza brasileira, foi-se constituindoum “homem novo”, até então inexistente no mundo:a história universal ganhava um novo personagem, o“brasileiro”. Mas, enfatizando o sertanejo, ele nãoperde de vista o nacional, a unidade brasileira em suasdiferenças regionais. Ele não faz ainda uma históriaeconômico-social, mas já trata do homem comum, so-bretudo nos capítulos finais do seu Capítulos de Histó-ria Colonial. Seu grande tema foi o da ocupação do ter-ritório, a sua conquista pelo “novo povo brasileiro”.

O seu Capítulos de História Colonial, publicadoem 1907, é uma “nova história” do Brasil, emboramuito parecida com Capistrano fisicamente: modes-ta, magra, quase silenciosa. Mas, ao mesmo tempo,extremamante eloqüente. É uma síntese que reúnemuitos fatos esparsos, encadeados em uma perspecti-va inovadora. Varnhagen escreveu uma obra de sín-

tese também parecida com ele, isto é, em cinco volu-mes! Mas, como “síntese”, isto é, como apreensão datotalidade, como integração da multiplicidade, suaobra é menos reveladora do que a de Capistrano. Esteescreveu uma obra magra, “a grandes traços e largasmalhas”, contra os “quadros de ferro” de Varnhagen.Seu interlocutor era Varnhagen, a quem ele admiravae se opunha. Capistrano escreveu o seu livro em umano. Seus analistas o consideram uma pequena obra-prima da historiografia brasileira, por sua linguagemsimples, por sua compreensão intuitiva da história doBrasil em seus fatos e em seu conjunto, pela docu-mentação segura e numerosa, “por seu interesse pelopovo durante séculos capado e recapado, sangrado eressangrado”, como afirma Rodrigues. Ele pretendeuensinar ao povo brasileiro o seu segredo, ensinar-lhea sua “história pátria”, numa época em que a histórianacional era desprezada. A sua cadeira de “Históriado Brasil” foi até extinta e ele posto em disponibilida-de! Enquanto a história de Varnhagen era uma con-versa entre eruditos, Capistrano divulgará com simpli-cidade o conhecimento da história do Brasil, maiseconômico-social do que política, liberta de datas,nomes e eventos oficiais.

O “Capítulos...” é uma história da luta dos brasilei-ros pela independência, contra vice-reis e governado-res que os sufocavam. Capistrano foi um homem desíntese, uma síntese precedida de longas investiga-ções. Sua síntese toca em todos os pontos mais rele-vantes da vida brasileira, é a mais viva e condensadahistória colonial do Brasil. Tendo como personagemcentral o povo, o indígena ganha um papel importan-te na formação do Brasil. Para Capistrano, o que hou-ve de diverso entre o brasileiro e o europeu, deveu-seao clima e ao indígena. O brasileiro é o europeu quesofreu um processo de diferenciação: o clima e a mis-cigenação com o índio. Interessa-lhe conhecer o queeste povo sente e aspira. Ele faz uma história social eeconômica do povo, sua vida, alimentação, tipos étni-cos, condições geográficas, os caminhos, economi-

Page 9: CAPISTRANO DE ABREU-JOSÉ CARLOS REIS

71 José Carlos Reis / Revista de História 138 (1998), 63-82

as, povoamentos, modos de viver, as formas psicoló-gicas, profissões, divertimentos, costumes, crenças,diferenças sociais, o comércio, a vida urbana e rural...Sobretudo, ele identifica este povo, que no períodocolonial e mesmo imperial não sabe bem o que é e oque faz e deveria fazer. Ele revela o processo de cons-tituição da diferença entre o projeto colonizador e onovo interesse e sentimento que se formara gradual-mente, o interesse e sentimento “brasileiros”.Varnhagen fez o elogio da vitória dos portugueses,defendeu os interesses e os sentimentos lusitanos noBrasil e não via com bons olhos a diferença que voltae meia explodia entre estes valores e poder europeus eos autóctones. Capistrano escreverá uma “outra histó-ria do Brasil”: anti-portuguesa, anti-reinól, anti-euro-péia, anti-Estado Imperial, anti-político-administrativa.Ele ecoará as vozes de Antonil e dos rebeldes de todo operíodo colonial. “Redescobrindo o Brasil”, Capistranofará o elogio da “rebelião brasileira”.

A Obra: “Capítulos de História Colonial”

Capítulos de História Colonial começa com doiscapítulos “estáticos”, isto é, capítulos que apenas ofe-recem os dados da história que ele vai narrar e inter-pretar. No primeiro capítulo, intitulado “AntecedentesIndígenas”, Capistrano realiza uma descrição geográ-fica do Brasil, o palco sobre o qual se desenrolará ahistória que ele narrará a partir do terceiro capítulo. Elecomeça pelos dados iniciais, os mais elementares. Ini-cialmente, é preciso situar o Brasil: onde fica, limitesa leste, oeste, norte e sul, as suas dimensões. Ele fazconsiderações sobre o relevo, os acidentes e singula-ridades geográficas, realizando uma espécie demapeamento do território. Como alguém que olha emvolta identificando onde está e o que possui. Em sua“corografia do Brasil”, aparecem as serras, baías,baixadas, rios, climas, florestas, fauna, com uma ava-liação sobre cada serra, cada rio, cada floresta, cadaanimal...

Habitando este território, há o indígena, que é tam-bém descrito em seus hábitos, comportamentos, ati-vidades, técnicas, guerras, vida sexual, trabalho, edu-cação, religiosidade, artes, lendas, língua. E tambémcom avaliações: ele domestica somente animais de“estimação” e não para o uso na vida cotidiana; pos-sui uma agricultura incipiente; dependem do traba-lho das mulheres, que é considerada inferior ao ho-mem; são nômades; antropófagos; têm os sentidosapurados; cultuam os antepassados; têm uma línguacomum e vivem, infelizmente, dispersos porque omeio dispensa e impede a cooperação. Portanto, anatureza e os índios são os temas dos “AntecedentesIndígenas”, o primeiro capítulo da história colonialbrasileira. Capistrano faz uma descrição geográficado Brasil e uma apresentação dos seus primitivos mo-radores. Estes são os dados iniciais da história do Bra-sil, os que foram encontrados aqui. A estes dois dados,ele acrescentará outros dois que não eram daqui, masvieram parar aqui: o europeu e o africano. A estes doisele denominará de “Elementos Exóticos”, os “alieníge-nas”, que serão os temas do segundo capítulo.

Nestes dois primeiros capítulos, quando são apre-sentados os “dados iniciais da história do Brasil” – opalco natural e os personagens que atuarão sobre ele,indígenas e alienígenas – Capistrano se aproxima deVarnhagen na sua descrição do primeiro Brasil; eVarnhagen é até mais informativo, minucioso. Dife-rencia-se de Varnhagen na perspectiva que terá sobretais dados. Para Capistrano, “alienígenas”, “exóticos”são os europeus e africanos e não o indígena e a terrado Brasil. Para vê-los assim, ele se coloca do pontode vista do indígena e da terra do Brasil, que vêmchegar novos e desconhecidos elementos. Ele olha dapraia para o Oceano cheio de caravelas, enquantoVarnhagen olhava da caravela de Cabral para a praia,e via uma terra exótica povoada por alienígenas. Nosegundo capítulo, portanto, ele faz ainda uma “descri-ção estática”, isto é, neles próprios, dos “fatores exóti-cos” que desembarcaram no Brasil.

Page 10: CAPISTRANO DE ABREU-JOSÉ CARLOS REIS

72 José Carlos Reis / Revista de História 138 (1998), 63-82

Ele descreve então a situação de Portugal no sé-culo XVI, a sua transição conciliada da Idade Médiaà Moderna: o poder da Igreja mais limitado, mas aindainfluente; as relações entre o Estado português e Igre-ja, seus atritos e proteções recíprocas. A sociedadesecular emergente luta para limitar os poderes dasociedade religiosa ainda dominante. Ele descreve ahierarquia social portuguesa do XVI: o Rei, a quemtudo pertencia e que tudo podia; abaixo dele, a nobre-za, com seu poder agora limitado pela centralizaçãodo poder real, e o clero; abaixo, o povo, a grandemassa, sem direitos pessoais, sem grande importân-cia; abaixo ainda, os servos, escravos, que podiampassar à categoria superior, pois as classes não eramcastas. A nobreza, o clero e o povo constituíam as“Cortes”, que o Rei absoluto desdenhava e só convo-cava quando precisava aumentar os impostos. A po-pulação portuguesa em 1527 era de mais ou menos122.112 almas. E ele formula a questão que a todosespanta: como esse pessoal exíguo, que nem enchiaPortugal direito, pode povoar o mundo?! Capistranoantecipa-se a G. Freyre e a S.B. de Holanda na ca-racterização do “caráter português”: fragueiro, abstê-mio, imaginação ardente, místico, independente, anti-disciplinar, não convencional, de fala livre, sem eu-femismos, o coração duro. Matava por quase nada ecuidava pessoalmente da defesa da sua propriedade.Suportava melhor a dor física do que a dor moral; oser fisicamente forte era valorizado. E antecipa tam-bém aqueles dois autores dos anos 1930 na respostaàquela questão: por serem assim, só este povo podeser capaz de se misturar com outras etnias e culturas.O português é o primeiro elemento exótico, o primeiroimigrante, o invasor conquistador e colonizador.

O segundo elemento exótico é o negro. Ao portu-guês estranho ao continente juntou-se o negro, tam-bém alienígena. A importação deles começou cedo.Eram robustos e resistentes e substituíram o índio notrabalho rude. Tinham uma índole carinhosa, sobre-tudo os domésticos. O negro trouxe alegria ao lado

do português taciturno e sorumbático. Suas dançaslascivas, suas feitiçarias e crenças propagaram-seentre os brancos. As mulatas tornaram-se rainhas. Emrelação ao negro, Capistrano é menos “estático” – elenão se refere a eles somente no século XVI, ao esta-do em que se encontravam quando vieram. Ele nãose refere aos negros na África, como aos portugue-ses em Portugal. Capistrano fala deles, já no segundocapítulo, indo do século XVI até o século XIX – 1850e a abolição, muito brevemente. Mas o espírito é omesmo, isto é, o de uma “apresentação” do persona-gem negro e do papel que ele terá na história do Brasil.Talvez seja menos “estático” em sua apresentação donegro porque será ao longo da obra muito reticente,quase silencioso sobre ele. Já na apresentaçãoCapistrano esgotou tudo o que queria dizer sobre onegro. Este entrará em sua história em rápidos mo-mentos, sem qualquer peso histórico. Capistrano vaise interessar mais pelas relações entre brancos e ín-dios e pelo seu mestiço, o mameluco sertanejo.

Finalmente, no terceiro capítulo, intitulado “OsDescobridores”, estes elementos anteriormente estáti-cos se animam: o português chega àquela geografiae encontra aquele índio. Por que os portugueses vie-ram parar no Brasil? Esta é a primeira questão postapor aquele que quer compreender a história que sedesenrolou no Brasil. Os portugueses vieram porque:a posição geográfica de Portugal destinava-os à vidamarítima; desejavam encontrar o imperador-sacerdotePreste-João, para tê-lo como aliado na luta contra osinfiéis; as especiarias orientais davam altos lucros nomercado europeu. Com estas motivações – geográfi-ca, religiosa, militar e comercial – os portuguesesatiraram-se sobre a África procurando um caminhomarítimo para as Índias, que os levasse a obterem osprodutos diretamente, evitando as rotas comerciaiscontroladas pelos inimigos infiéis. As teorias cosmo-gráficas eram limitadas na época. O périplo africanoera tido como impossível e a via ocidental também.Contra as autoridades e evidências, portugueses e

Page 11: CAPISTRANO DE ABREU-JOSÉ CARLOS REIS

73 José Carlos Reis / Revista de História 138 (1998), 63-82

espanhóis tentaram a via meridional africana e a viaocidental. Os portugueses chegaram às Índias e aoBrasil e os espanhóis à América. Os espanhóis, aliás,estiveram no Brasil antes dos portugueses, mas suapresença aqui foi sem conseqüências.

Interessa-nos, portanto, afirma Capistrano, Cabral eos portugueses, já que o Brasil se tornou lusitano. Apresença espanhola inicial foi irrelevante para a histó-ria do Brasil. Ele então descreverá varnhagenianamentea aventura de Cabral: partiu em 1500, com trezecaravelas, chegou no dia 21 de abril. Foram dias eespetáculos extraordinários. Celebraram uma missa,hastearam uma cruz. Caminha escreveu a sua famosacarta. Vieram, depois, novas expedições para explorara Ilha de Vera Cruz. Os naturais aparecem sob novaluz: selvagens, rancorosos, antropófagos, materialmais de escravatura do que de conversão! Capistranopõe-se no lugar do português que chega, procura sen-tir suas expectativas e medos. Mas, ele não permane-cerá nesse lugar – ele o ocupará às vezes para melhorcompreender a sua ação. Com a exploração do pau-brasil, a terra passou a se chamar Brasil. Havia ou-tros nomes concorrentes: “Terra dos Papagaios”, “Ilhade Vera Cruz”, “Terra de Santa Cruz”. O comércio depau-brasil levou à fundação de feitorias. O Pacíficofoi “descoberto”, isto é, “visto pela primeira vez peloeuropeu”, em 1520. E Colombo chegava finalmenteàs Índias. Neste primeiro Brasil, o que havia era o pauhomônimo, papagaios, escravos e mestiçagem. Asíndias queriam a mestiçagem, pois desejavam filhosda “raça superior”. Só o pai conta, para a descendên-cia indígena. E os presentes dos brancos, e talvez estaseja a verdadeira razão do interesse das índias pelosbrancos, eram irresistíveis: anzóis, pentes, facas, te-souras, espelhos. Quanto aos portugueses, eles nãotinham outra escolha a não ser a índia, pois brancasnão havia. Os primeiros colonos do Brasil eram degre-dados, desertores, náufragos. Uns se tornaram índi-os, outros os combateram, outros se indianizaram semperderem a identidade européia.

Assim Capistrano descreve a chegada dos portu-gueses ao Brasil: à Varnhagen, “fotografou” os fatosmais miúdos, descrevendo-os detalhadamente. Juntocom eles, outros personagens exóticos e alienígenaschegaram: franceses, holandeses, ingleses, que amea-çarão a “descoberta portuguesa”. Portugal argumen-tava que a terra era sua por decisão papal. Entretan-to, a presença dos outros alienígenas representavauma concorrência séria: eles vendiam os mesmosprodutos e mais baratos na Europa e estimulavam osíndios contra os portugueses. Os tupinambás se alia-ram aos franceses. Durante décadas não se soube seo Brasil pertenceria aos portugueses ou aos franceses.As armadas guarda-costas eram caras e ineficientes.Conversar, dialogar, embaixadas e tratados não adi-antavam. Só restava uma solução para afastar os ou-tros invasores: ocupar a terra. Em 1531, Martim Afon-so de Sousa veio fazer duas coisas: povoar e guardaro litoral. Fundou a primeira cidade, São Vicente, euma segunda, Piratininga.

Pressionados, os portugueses tiveram de agir ra-pidamente: criaram um sistema monumental de capi-tanias hereditárias, estimularam a emigração para oBrasil. A alta nobreza não aceitou o empreendimen-to, que ficou com a pequena nobreza. O Rei cedeuparte do seu poder aos donatários. Estes ficaram forta-lecidos para enfrentarem o estrangeiro e o sesmeiro.A história do Brasil no século XVI se passou em tre-chos exíguos de Pernambuco, Bahia, São Paulo, bempróximos do litoral. A energia dos donatários continhaa turbulência dos colonos. Surgiram canaviais e enge-nhos, lavouras de mantimentos, pescava-se fartamentena costa. Entretanto, se o sistema de capitanias here-ditárias protegia a costa, ocupava e povoava com amiscigenação, ele levou alguns donatários à falência.Além disso, cada capitania era soberana, estrangeirauma em relação à outra. Não havia uma ação coleti-va, mas concorrência. Os crimes cometidos em umacapitania não eram punidos em outra. Havia umaanarquia intercapitanial, além da anarquia intracapi-

Page 12: CAPISTRANO DE ABREU-JOSÉ CARLOS REIS

74 José Carlos Reis / Revista de História 138 (1998), 63-82

tanial. O Rei decidiu criar uma Capitania Real e en-viou um representante seu. Estabeleceu-se um gover-no central para o Brasil, forte o bastante para garantira ordem interna, em 1549. Vieram os primeiros jesuí-tas, que depois dariam tanto trabalho. A preocupaçãojá no século XVI era com a unidade da colônia, queo sistema de capitanias ameaçava. O regime de Ca-pitanias e o Governo Geral significaram o início davitória portuguesa. O Brasil seria português, tudoindicava. Entre 1580 e 1640, o Trono português estevesob o domínio espanhol, por razões dinásticas. Mas,o domínio espanhol não comprometeu a vitória por-tuguesa no Brasil. Pelo contrário, favoreceu-a. Como apoio espanhol, os portugueses ocuparam a Ama-zônia e expulsaram franceses e holandeses do nortee nordeste do Brasil.

Capistrano, então, faz um primeiro balanço doresultado dessa história, chegando agora ao final doXVI. Nesta época, o povo era constituído por trêsraças vindas de continentes diferentes e seus respecti-vos mestiços. Eram desafetos. Tanto entre eles quan-to entre os mestiços internamente. O negro ladino ecrioulo desprezava o boçal, o índio catequizado, o nu,o reinól, o mazombo. Forças dissolventes, centrífugas,dominavam a sociedade colonial do século XVI. Sóhavia a percepção da diferença e não da unidade. Estaera garantida à força pelos portugueses que ocupa-vam, povoavam, miscigenavam e expulsavam. Os ín-dios temiam e ao mesmo tempo eram fascinados pe-los portugueses, pelos seus equipamentos de caça,pesca, guerra, vestuário e objetos coloridos e brilhan-tes. Mas, faziam-lhe a guerra. Os negros, dominados,oprimidos, escravizados e estrangeiros, viviam sob ahostilidade constante do português. Hostilidade, tal-vez, atenuada pela solidão do branco, que o forçavaa aproximar-se de índias e negras. Os índios fugiampara a floresta, os negros chegavam algemados e hu-milhados. Os brancos, armados de espadas e terços,humilhavam, ofendiam, estupravam, escravizavam eexterminavam índios, negros e mestiços de uns e

outros e expulsavam brancos de outras nacionalida-des e religiões. Poderia sair uma “nação” daí? Have-ria alguma possibilidade de “unificação de interessese sentimentos” tão diferentes, de mentalidades sepa-radas por um abismo, abismo aprofundado progressi-vamente pela escravidão e pela guerra? Capistranooferece uma resposta otimista: devagar, ele afirma, aolongo do século XVII, essa dispersão geral foi ceden-do lugar a uma possível “união brasileira”.

Para a constituição da unidade do “povo brasilei-ro”, as guerras holandesas, entre 1624 e 1654, foramdecisivas. Depois delas, a história universal possuíaum novo personagem, um “povo novo”. Os holande-ses foram obrigados a invadir o Brasil porque, antesda anexação do Trono português ao espanhol, em1580, eles eram os distribuidores dos produtos exóti-cos portugueses na Europa. Mas, inimigos da Espa-nha, após 1580, eles foram impedidos de realizar estecomércio. Decidiram, então, vir buscar os produtosdiretamente no Brasil e, quem sabe, poderiam encon-trar um jeito de chegar até o Peru por via terrestre,isto é, às riquezas espanholas. Os holandeses atuavamatravés de duas Companhias de Comércio: a das Ín-dias Orientais, que explorava o oriente em detrimen-to dos interesses luso-espanhóis, e a das Índias Oci-dentais, fundada, nesta circunstância da União Ibéri-ca, em 1621, para explorar a África, Estados Unidos,Antilhas e Brasil. Para obter diretamente os produ-tos brasileiros, esta Companhia “invadiu” o territó-rio colonial ibérico. Capistrano descreve os avançose recuos da guerra contra os holandeses à Varnhagen:detalhadamente, com o ritmo de um contemporâneo,de uma testemunha ocular. Entretanto, após 1640,com a separação dos tronos português e espanhol, osholandeses, já instalados em Pernambuco, permane-ceram. Começou, então, o irredentismo brasileiro, queexigiu a unificação das forças até então divergentes.Um forte elemento de união foi a fé católica contra oherege. O catolicismo nativo se exacerbou. O ataqueaos holandeses se fez em nome de Cristo. Índios,

Page 13: CAPISTRANO DE ABREU-JOSÉ CARLOS REIS

75 José Carlos Reis / Revista de História 138 (1998), 63-82

negros e mestiços diversos participaram vivamente daluta. As vitórias luso-brasileiras se sucederam. Osportugueses que há muito estavam tendo prejuízo nooriente, finalmente “optaram pelo Brasil” e enviaramreforços. Os “patriotas”, expressão de Capistrano,aceitaram os reforços portugueses. (p.118)

Para ele, a vitória contra os holandeses só foi por-tuguesa sob alguns aspectos. Na verdade, entre 1621e 1654, quando Portugal optava pelo Brasil! e o de-fendia mais vigorosamente dos ataques estrangeiros,começava a perder o controle sobre o Brasil. Um sé-culo e meio depois do seu descobrimento, o Brasil era“redescoberto” por sua nova população. Surgia o“brasileiro”, depois de 1654. Esta guerra e esta vitóriaserviram para revelá-lo a ele mesmo. Havia um sen-timento patriótico não português, original, novo, “bra-sileiro”. Vencia o espírito nacional. Reinóis, mazom-bos, índios, negros, mamelucos, mulatos, curibocas,mestiços de todos os matizes combateram pela liber-dade divina. Sob a pressão externa e apoiada na fécatólica, operou-se uma solda superficial, imperfeita,mas um princípio de solda entre os diversos elemen-tos étnicos vencedores dos flamengos. Os combaten-tes de Pernambuco sentiam-se um povo e um povovencedor, que já possuía os seus próprios heróis.(p.119) Passado o primeiro momento, os reinóis ten-tarão reassumir a sua atitude de superioridade e pro-teção. Entretanto, data de meados do século XVII airreparável e irreprimível separação entre pernam-bucanos (“brasileiros”) e portugueses.

Portanto, se o século XVI terminara com umatendência à dispersão e à fragmentação, o século XVIIterminou com uma tendência não só à integração dapopulação nativa como à formação de uma nação in-dependente. A vitória contra os holandeses foi paraos portugueses uma vitória de Pirro: ganharam, mascomeçaram a perder tudo. Se os portugueses tinhamconquistado o litoral, os novos brasileiros conquista-rão o sertão. Os portugueses continuaram a viver e acontrolar a vida do litoral; os brasileiros adentraram

pelo território conquistando-o, ocupando-o, povoan-do-o. O Capítulos de História Colonial pode ser divi-dido em duas partes: até às “Guerras Flamengas”,capítulo 8º, Capistrano faz uma história do descobri-mento do Brasil de tipo Varnhageniano; depois delas,ele passa a fazer um novo tipo de história do Brasil.Não só mudou o sujeito da história do Brasil. Com amudança do sujeito, mudaram-se os temas, alterou-se o objeto e até mesmo a forma da história. Até aliestávamos ainda na velha história político adminis-trativa metropolitana do descobrimento do Brasil.Aqueles dados apresentados e daquela forma já esta-vam em Varnhagen. A primeira parte dos Capítulosde História Colonial é quase uma síntese de Varnhagen,embora o olhar não fosse mais da caravela sobre olitoral, mas da praia em direção à frota. Esta diferençana direção e posição do olhar, presente na primeiraparte liga esta à segunda, impedindo que entre ambashaja uma ruptura. O que não estava em Varnhagen emarca a originalidade de Capistrano é a sua percepçãodo surgimento do novo povo e a sua adesão ao seusentimento e interesse, ao seu projeto político. Talpercepção foi possível porque desde as primeiraspáginas do livro, seu olhar já estava em outra posiçãoe direção. As elites saem da história e entra o povobrasileiro, conquistando o sertão, vivendo longe doRei. O sertanejo é aquele que vive distante do Rei:autônomo, soberano, orgulhoso.

No capítulo 9º, intitulado “O Sertão”, Capistranopassa a analisar mais do que a descrever, passa a fa-zer um esboço de história econômico-social-geográfi-ca-cultural da conquista do Brasil, do seu interior,pelos brasileiros. A ocupação do interior não se deusomente após a vitória contra os holandeses. Ela jávinha se dando desde 1530 com a fundação dePiratininga e com as entradas pelo Tietê em direçãoao Prata. A vitória contra os holandeses só revelou ni-tidamente esta nova identidade nacional. Capistranoirá procurar perceber a sua formação longínqua, muitoanterior a este episódio histórico litorâneo, mas de-

Page 14: CAPISTRANO DE ABREU-JOSÉ CARLOS REIS

76 José Carlos Reis / Revista de História 138 (1998), 63-82

cisivo. Esta vitória foi como uma ponta de iceberg, si-nalizou a existência de um mundo histórico invisível,mas que durava desde o século XVI. Capistrano mer-gulhou perto desta ponta de iceberg e desceu às basesdessa “massa de gelo”, para descobrir-lhe o início, aprofundidade, a espessura, a densidade. De 1654, a pon-ta, ele descerá até 1530, a base, quando os paulistascomeçaram a entrar pelo interior do Brasil (BOSI, 1992).

São Vicente e Piratininga foram um dos pólos deonde partiram os brasileiros para a conquista do ser-tão. Os bandeirantes iam caçar e escravizar índios. Ospaulistas são sobretudo mamelucos e Capistrano vêo povo brasileiro mais como um mestiço de índio ebranco. O mestiço de negro e branco é litorâneo epertence ao mundo português. Ele descreve os ataquesbandeirantes aos indígenas e jesuítas e a resistênciade uns e outros. Os bandeirantes foram terríveis emsuas caçadas. A ação bandeirante já é uma ação dagente brasileira, não é mais uma história portuguesa.As primeiras ações brasileiras se destacaram pelaviolência e brutalidade contra os indígenas. O brasi-leiro continuou a ação colonizadora e cristianizadorado português e usando os mesmos métodos.

D. Ribeiro escreveu recentemente que os bandei-rantes ou mamelucos paulistas foram vítimas de duasrejeições básicas. A dos pais, brancos, com quemqueriam se identificar, mas que os viam como impu-ros filhos da terra, dos quais somente aproveitavamo trabalho; e do gentio materno, que não valorizava adescendência materna. Não podendo identificar-senem com brancos e nem com índios, não tendo an-cestrais, portanto, o mameluco cairá na “terra de nin-guém”, a partir da qual constrói a sua identidade “bra-sileira”. Filho de índia, ele se torna um caçador eescravizador de índios, de sua gente. “Mameluco”,esclarece Ribeiro, era o nome dado ao escravo árabetreinado para exercer o mando islâmico sobre a gen-te de que foram tirados (RIBEIRO, 1995). Filhos deíndias, os paulistas agirão contra seus parentes comrara violência, serão “capitães-do-mato”, “feitores”

de índios. Eles invadirão as missões para prenderemos seus índios. Capistrano não aprecia a história queconta e analisa e se pergunta: compensará tais horro-res a consideração de que graças aos bandeirantespertencem agora ao Brasil as terras por eles devasta-das? Eles voltavam a Piratininga com índios prisio-neiros amarrados em coleiras uns aos outros. Eramvendidos como escravos. As mulheres índias eram es-tupradas, conforme o costume. Os jesuítas tentaram detudo para que eles poupassem os índios. Em vão. Osjesuítas é que foram expulsos. Os bandeirantes eramvistos como “amansadores”, “pacificadores” de índi-os. Circulavam por todo o Brasil levando a guerra aopovo de suas mães. Entretanto, alguns se fixaram epassaram de devastadores a colonizadores do interiordo Brasil, vivendo com o que o sertão lhes oferecia.

Outro pólo foi o Maranhão, de onde os brasileirosentraram pela Amazônia, fazendo a mesma devastaçãodo indígena. Fundaram-se engenhos, plantou-se algo-dão e fumo. Na Amazônia, os brasileiros combateramholandeses, ingleses e franceses. A penetração da Ama-zônia foi lenta. Era uma região com forte presença dejesuítas, carmelitas e franciscanos. Fundou-se Belém,do Pará. Coletavam os produtos florestais: cravo,canela, cacau, salsa. A Amazônia teve uma prosperi-dade relativa com a cultura do arroz e do algodão e aintrodução de escravos negros. A população crescialentamente. O Maranhão era, no entanto, muito lon-ge do sul do Brasil e foi preciso criar o Estado doMaranhão, em 1621. A comunicação com o Brasil sulera feita pelo Parnaíba, mas foi preciso também aconstrução de estradas. Portanto, a partir de Piratinin-ga, os brasileiros desceram até o Prata e subiram atéa Bahia, passando por Minas Gerais, foram ao MatoGrosso e Amazônia; a partir do Maranhão, os brasi-leiros entraram pela Amazônia e desceram pelo ser-tão nordestino. A conquista do território se fez à cus-ta da expulsão, exterminação e escravização do indí-gena. Os engenhos de açúcar, o fumo e as roças demantimentos só vingaram próximo de rios navegáveis.

Page 15: CAPISTRANO DE ABREU-JOSÉ CARLOS REIS

77 José Carlos Reis / Revista de História 138 (1998), 63-82

Capistrano não aprecia este início da história bra-sileira, que lhe parece tão violenta quanto a históriaque os portugueses faziam. Em 1680, ele afirma, a leiportuguesa proibia que os índios fossem escraviza-dos, única solução lógica e justa, se houvesse gentebastante honesta e enérgica para fazê-la respeitada(p.141). Diferentemente de Varnhagen e G. Freyre,que viam os jesuítas como pseudo-filantrópicos,Capistrano se posiciona francamente ao lado deles naproteção ao indígena contra a guerra, contra o seuextermínio e escravidão.

Um terceiro pólo de ocupação do território brasi-leiro foi a agropecuária. A criação de gado começouem torno de Salvador e ao longo do Rio São Francis-co. Aos poucos foi se afastando das margens do rio eadentrando pelos mais profundos sertões da Bahia,Pernambuco, Minas Gerais. Há os “sertões de den-tro”, baianos, e os “sertões de fora”, pernambucanos.Nas vastas regiões interiores dominadas pelo gado,foi também o mameluco que predominou. São regiõesimpróprias para o cultivo. O gado prosperou ali, exi-gindo pouco capital, pouco pessoal, fornecendo ali-mentos para as regiões exportadoras. O conflito comos índios foi menor, pois o fazendeiro não é nômadee caçador de índios. Desde que estes cedessem suasterras e não comessem do gado, as relações entre elese os brancos se estabilizavam. Com o gado, caminhosnovos foram abertos levando ao mais fundo Brasil.Os brasileiros da pecuária viviam com recursos escas-sos. Eles só comiam carne, leite, frutas e mel. Faziamtudo de couro: portas, camas, cordas, alforjes, mochi-las, roupas, malas... O vaqueiro recebia uma cria emcada quatro crias, depois de quatro a cinco anos deserviço. Podia com o tempo fundar a sua própria fa-zenda. “Vaqueiro”, “homem de fazenda”, “criador”são títulos honoríficos entre eles. A fazenda tornou-se aos poucos um centro familiar, com grandes e con-fortáveis casas. Nos caminhos do gado para a cidade,onde era vendido, populações se estabeleceram, po-voados surgiam. Esta população distante era também

muito católica e, de vez em quando, recebiam padres.Entretanto, viviam entregues a si. O Estado demoroua se instalar com juízes, milícia e administração. Omundo da pecuária era também um mundo de violên-cias, com bandos de bandoleiros, onde a vingança eracomum. Era um mundo de liberdade, sem escravos,semi-povoado, vasto, abundante, familiar e violento.

Além de partir de São Vicente e Piratininga, deSão Luís do Maranhão e ocupar o interior da Bahia,Minas, Goiás e o nordeste com o gado, outro pólo deocupação e povoamento do território brasileiro foramas minas. Foi graças ao gado, por um lado, e à caçado indígena, por outro, que as minas foram descober-tas. Não se pretendia achar ouro e pedras preciosas,mas prata, já que esta foi encontrada em Potosi. E oBrasil deveria até ser mais abundante em prata se o“oriente for mais nobre do que o ocidente”, comoacreditavam que fosse. O ouro foi encontrado sem sermuito procurado. Os paulistas o encontraram, final-mente, no final do XVIII, nas regiões de Minas Geraise Mato Grosso: Ouro Preto, Mariana, Rio das Mortes,Rio das Velhas, Paracatú e Cuiabá. Os bandeirantestornaram-se, então, mineiros. Pouco a pouco, tudo eraenviado para as Minas, vindo de todas as partes doBrasil e da Europa. Houve uma corrida às minas.

Com os crescimento das minas, uma parte do ser-tão do Brasil tornou-se português. O Rei voltou acontrolar o Brasil. Os tributos aumentaram, a circu-lação da população foi controlada, a exploração doouro disciplinada em favor da Coroa. Na Bahia, porestar mais próxima do litoral, a exploração do ouro foiproibida. As minas serão um sertão não brasileiro, nãomameluco, mas português, dominado pelo branco e pelonegro e o seu mestiço. Neste sertão mineiro, o domínioportuguês tornou-se tão severo que os sentimentos pa-trióticos brasileiros se tornaram mais agudos. Os brasi-leiros, em sua expansão pelo “seu território”, já estavamacostumados e tinham gostado de ficarem distantes doRei. A sua reaproximação foi tão opressiva que desen-cadeou os movimentos pela independência.

Page 16: CAPISTRANO DE ABREU-JOSÉ CARLOS REIS

78 José Carlos Reis / Revista de História 138 (1998), 63-82

No final do século XVIII, a solda que une os di-versos grupos que compõem a “nação brasileira” seconsolidou. A consciência patriótica brasileira seaprofundou. O Rei e sua lei opressora e repressivaserão contestados em diversos pontos do país, exata-mente aqueles pontos em que já existia uma popula-ção brasileira assentada, com interesses e sentimentospróprios, anti-lusitanos: Maranhão, Pernambuco,Bahia, Minas Gerais, São Paulo. Os triunfos contraos estrangeiros, as proezas dos bandeirantes, a abun-dância de gado animando os sertões, as minas de ouroe diamantes e outras pedras preciosas, as riquezasremetidas à metrópole, o crescimento da população,afirma Capistrano, influíram sobre a psicologia doscolonos. As descobertas auríferas foram a gotad’àgua, vieram completar a obra. Os brasileiros nãose sentiam mais inferiores aos nascidos na metrópole,não eram mais os humildes mazombos do século XVI.Tal mudança, os filhos da metrópole não reconheci-am. O reinól é visto, então, como um miserável quevem se enriquecer aqui. Começaram os conflitos en-tre brasileiros e portugueses. A consciência brasileiraformou-se lentamente durante 3 séculos. No final doterceiro século, já era sólida o bastante para ser formu-lada e expressa e dar legitimidade à ação emancipa-cionista. Os brasileiros se sentiam sustentadores daCoroa e expoliados por sua opressão.

Em Minas, houve o conflito dos Emboabas (1707/9);em Pernambuco, o conflito dos Mascates (1709/10).Capistrano descreve estes conflitos como se fosse umtestemunho ocular. O século XVIII é o século doconflito aberto entre brasileiros e portugueses. Entreas agitações sociais, apareceu um livro que agitará osbrasileiros ainda mais ao oferecer-lhes argumentos eforça para continuarem em sua luta independentista.Trata-se do livro Cultura e Opulência no Brasil porsuas Drogas e Minas, do jesuíta André João Antonil,que o próprio Capistrano descobriu tratar-se do ana-grama de João Antôni/o Andre/oni L (luquense), es-tabelecendo a sua autoria. O livro fala dos engenhos

de açúcar, da produção de fumo, das minas e do gado.Ele oferecia os primeiros números sobre o Brasil. Elefoi logo confiscado pela metrópole, pois estaria di-vulgando para os estrangeiros os segredos do Brasil.Mas, contesta Capistrano, a verdade é outra: o livroensinava o segredo do Brasil aos brasileiros, mostran-do toda a sua pujança, justificando as suas pretensões.Confiscado, proibido, o segredo do Brasil chegou aosbrasileiros por outras vias: apareceram exaltações àsriquezas do país, exaltações à nobreza brasileira, àssuas elites, exaltações do índio como superior aosportugueses e negros, exaltações da natureza, da faunae flora do Brasil. Por toda parte o segredo do Brasilera revelado. A diferenciação em relação ao reinól,antes gradual, inconsciente e tímida, acelera-se, torna-se mais consciente, resoluta e irresistível. A vitóriabrasileira seria uma questão de tempo.

No 10º capítulo, Capistrano trata dos limites doterritório brasileiro. Um “povo novo” precisa de umterritório bem delimitado. Serão ainda os portugue-ses que discutirão com os espanhóis e franceses e assi-narão tratados instáveis, que serão sempre rediscuti-dos. Na região do Prata, espanhóis e portugueses tro-caram e destrocaram territórios segundo vários tra-tados. A negociação do território, dos seus limites, foinegociada ainda pelos portugueses. Mas, para defen-derem tais territórios, os portugueses tinham um ar-gumento quase sempre irretorquível: já tem “gentebrasileira” instalada na Amazônia, no sul e centro-oeste, isto é, o território já foi de fato conquistado,ocupado e povoado por “gente brasileira”. Os limitesjá estavam definidos concretamente e os tratados sóreconhecerão o povoamento já realizado. Será den-tro destes limites, agora legitimados pelo direito, quese instalará o povo brasileiro.

No 11º capítulo, Capistrano faz um balanço finale tenta uma definição geral do povo brasileiro, do seuestado no final do século XVIII. Aqui, “Três SéculosDepois”, é o título do capítulo, Capistrano fará umlevantamento e radiografia da população brasileira:

Page 17: CAPISTRANO DE ABREU-JOSÉ CARLOS REIS

79 José Carlos Reis / Revista de História 138 (1998), 63-82

número, tipos, repartição, caminhos, atividades, alimen-tações, festas, feiras, roupas, personalidades, costumes,infra-estrutura urbana, relações sociedade/Estado, nívelda consciência política. Quanto ao número, a popula-ção brasileira já era contada em milhões. Ela se con-centrava no litoral e nas margens dos rios que entra-vam pelo interior. A maioria é mestiça. A mestiçagemvariando de região para região. No interior, predomi-nava o mameluco; no litoral e minas, o mulato. Osnegros eram maioria no litoral e, apesar das fugas equilombos, eram em menor número no sertão. No sul,os brancos eram mais numerosos. Capistrano refere-se às diferentes atividades regionais, às diferentesdietas. Na Amazônia, extraía-se produtos florestais,comia-se peixe e se super-explorava a tartaruga, a“vaca amazônica”, o “gado do rio”. Na zona pastoril,muita carne e escassez de água, que é salobra, ótimapara o gado. Bebia-se garapa, comia-se milho verde.Havia festas sertanejas. Capistrano descreve o vestuá-rio doméstico e domingueiro, a vida das mulheressolteiras e casadas. Nas Minas havia abundância depadres, irmandades; havia o gosto pela música, nascidades. As festas religiosas eram numerosas e tea-trais, luxuosas.

Capistrano compara o caráter dos brasileiros re-gionais. O mineiro, ele o descreve assim: esbelto,magro, peito estreito, pescoço comprido, rosto alon-gado, olhos negros e vivos; não se apegam ao seu país,inteligentes, sobrevivem em qualquer ambiente, orgu-lhoso e afável, brando e cavalheiro. O paulista, assim:pequena estatura, cabelo louro, face pálida, olhosindígenas; corajoso, ágil, incansável, vingativo,franco, colérico e gosta do perigo. Sua cor da pelevaria dependendo do grau de mestiçagem indígena/branco. Ele descreve ainda o baiano, o goiano, o mato-grossense, o gaúcho. Sobre as cidades coloniais, elese refere às portuárias, as mais importantes: São Luís,Recife, Salvador, Rio de Janeiro. Nestas cidades li-torâneas, o mulato predominou. Os negros eram nu-merosos, com sua alegria nativa, seu otimismo per-

sistente, sua sensualidade animal!, suportando bemo cativeiro!. Os negros, ele afirma, nunca ameaçarama ordem de modo sério – trabalhavam cantando, paraaliviar o peso do trabalho, e bandos de carregadoresnegros davam animação às ruas. Os mulatos são maisrebeldes – dentre eles saiam os capangas e assassinos.Crescendo em número, “descoloriram” e extinguiramas distinções de raça. Os brancos eram oprimidos peloconvencionalismo; as crianças, cedo, perdiam todavivacidade e espontaneidade. Os reinóis tratavam comdesdém a terra e os seus moradores; eram grosseiros,desonestos, prepostos dos ingleses.

O 11º capítulo, portanto, é um balanço quase com-pleto do Brasil no final do século XVIII. Ele fala aindada arquitetura urbana, dos modos à mesa, do com-portamento das mulheres, da vida social (o ritual da“visita”), das ruas e do inexistente saneamento bási-co (“cuidavam da limpeza urbana o sol, as chuvas eos urubus”!), da indústria cerceada pela metrópole etc.O Brasil não é ainda independente, mas se inquieta aaspira sê-lo. Ele está prestes a tornar-se independen-te. Entretanto, Capistrano surpreende o leitor no fi-nal da sua exaltação da vitória brasileira. Depois dese mostrar entusiasmado com as expressões do sen-timento patriótico entre os brasileiros, termina a suasíntese cético em relação ao futuro deste novo povo.Para ele, a vida social não existia, pois não havia so-ciedade. As questões públicas não interessavam. Nomáximo se sabia se havia guerra ou paz. É duvidosoque tivessem uma consciência nacional e até mesmocapitanial. Algum leitor de livros estrangeiros pode-ria falar de independência, porque soube do casoamericano e conhecia a pobreza e fraqueza lastimá-veis de Portugal. Não se procurava, porém, o meiode conseguir tal independência vagamente conheci-da, tão avessa era a índole do povo a questões práticase concretas. Divagavam sobre o que se faria depoisde conquistá-la por um modo qualquer, acontecimen-tos imprevistos, como afinal aconteceu. Como emtodas as revoltas anteriores, não se sabia o que se fa-

Page 18: CAPISTRANO DE ABREU-JOSÉ CARLOS REIS

80 José Carlos Reis / Revista de História 138 (1998), 63-82

ria com o poder na mão. Enfim, ele conclui, no iní-cio do século XIX, a população brasileira era consti-tuída por eram cinco grupos étnicos, ligados pelacomunidade ativa da língua e passiva da religião,moldados pelas condições geográficas de cinco regi-ões diferentes, e tendo pelas riquezas materiais grandeentusiasmo – eis a que se reduziu a obra de 3 séculos.

Final paradoxal! Ao longo do texto tem-se o elo-gio da expansão e conquista do território brasileiropelos brasileiros. Apesar de ser difícil distinguir osinteresses e sentimentos dos brasileiros e portuguesesno período colonial, Capistrano esforça-se por defi-nir uma “brasilidade”, apesar da dominação portugue-sa e contra ela. “Brasilidade” que começa com a fun-dação de São Vicente e Piratininga, que cresceu comas bandeiras, com a ocupação da Amazônia, com ogado e as minas. “Brasilidade” que se exaltou duran-te o século XVIII e se expressou através de rebeliõesdiversas, sangrentas. “Brasilidade” de uma popula-ção numerosa, mestiça, com os seus modos própriosde viver e pensar, com as suas atividades econômi-cas específicas, adaptadas a regiões diversas. Apare-ceu até um livro que formulava precocemente esta“brasilidade” e que foi apreendido por esta razão. E,no final, um ar de decepção, de malogro: patriotasincapazes de produzir a sua própria independência!É como se a conclusão que ele apresentara para oséculo XVI – um Brasil dominado por forças centrífu-gas, divergentes – valesse também para o final doXVIII. Capistrano talvez esperasse mais desse povoque soube acompanhar ao longo de 3 séculos; que elefosse sujeito de fato da sua autonomia, que ele fosseum sujeito historicamente eficaz. O final revela umaexpectativa não realizada, um esforço frustrado, a“revolução brasileira” não passou de um espírito e quenão se encarnou, não deu nascimento a um novomundo histórico. Capistrano passa do elogio à vitóriabrasileira a um tom crítico em relação ao novo povobrasileiro que se constituía – ele esperava mais ação,mais vontade e determinação, mais eficácia histórica.

Capistrano expressará melhor este seu ponto devista em um outro texto, Os Caminhos Antigos e oPovoamento do Brasil. Ali, ele constata e pergunta:no princípio do século XIX, o Brasil já estava ligadopor meio de vias terrestres e fluviais – chegou-se aformar um conjunto, uma nacionalidade? Para ele, osistema colonial produzia a divergência interna, oparticularismo. O centro ficava além-mar. Somentedepois da Independência é que começou o processode unificação, a convergência das partes. Apesar dasmudanças realizadas, este processo se deu natural-mente, em uma evolução gradual, lentamente. Apósa Independência, a nação ficou tão cimentada em suaunião que desafiou as crises da Regência e se conso-lidou ainda mais no Segundo Reinado. A idéia de umanação brasileira realizou-se, finalmente, mas ela este-ve perto de esvair-se como em um sonho!

Seu final paradoxal é, no entanto, lúcido: os brasi-leiros, e pelas razões por ele apontadas, não se sentiamem condições de assumir o país plenamente, isto é,revolucionariamente. Eles viveram os três séculoscoloniais na dispersão, em muitos engenhos, minas,fazendas, cada um destes núcleos econômico-sociais-culturais com sua própria lei e seu próprio senhor.Entretanto, esta idéia da “revolução brasileira”, queCapistrano concebeu e descreveu no período colonial,quando nascia, será tematizada por todos os historia-dores posteriores a Capistrano, que se inserem na li-nha aberta por ele da “redescoberta do Brasil”. Po-deria ter sido acelerado o tempo histórico do Brasil,pelos brasileiros, no final do século XVIII, produzin-do uma verdadeira independência econômico-social-mental, além de política? Seu ceticismo revela a com-preensão dessa impossibilidade histórica. É um senti-mento posterior à exaltação que se frustrou: uma re-cusa apaixonada, decepcionada, do sonho. E depois,uma constatação do que de fato ocorreu, a vinda daCorte para dentro e a consolidação da unidade brasi-leira em termos “luso-brasileiros”, aceitando-a e legi-timando-a. Era esta a única revolução independentista

Page 19: CAPISTRANO DE ABREU-JOSÉ CARLOS REIS

81 José Carlos Reis / Revista de História 138 (1998), 63-82

possível? Pelo menos esta, felizmente, se realizou ea nação brasileira se concretizou antes de esvair-seem um sonho. Seu sentimento parece ter passado portrês fases: 1º) o elogio da rebelião, da luta e da vitó-ria brasileira durante três séculos; 2º) decepção e frus-tração com a não concretização do que parecia ma-duro, a Independência feita pelos patriotas brasilei-ros; 3º) a aceitação e legitimação da “Independênciapossível”, liderada pelo Estado português, pela Fa-mília Real Portuguesa, pois, assim, pelo menos, aunidade territorial e nacional foi preservada.

Capistrano é, enfim, um anti-varnhageniano. Nosanos 1900, a história que se faz no Brasil começa adiferenciar-se dos “quadros de ferro” do IHGB e deVarnhagen. Capistrano ainda não faz uma históriaplenamente econômico-social-mental, mas não faztambém mais somente uma história político-adminis-trativa e biográfica. Para A. Canabrava, ele se colocaentre duas concepções de história: a história comonarrativa do empírico, que tem em Varnhagen seurepresentante maior, e a história no quadro das ciên-cias sociais, que se fará no Brasil pós-1930. Capis-trano representaria um elo entre a geração do séculoXIX/IHGB e a geração do século XX/Universidades(CANABRAVA, 1971).

Capistrano se aproxima ainda de Varnhagen nosseguintes pontos: faz ainda uma história factual, re-latando os feitos dos portugueses em sua conquista,uma história cheia de nomes e datas, de eventos con-tados em um ritmo quase diário. Isto vale sobretudopara os primeiros capítulos de Capítulos de HistóriaColonial. Ele dá ênfase à documentação escrita e bemcriticada e seu estilo é ainda descritivo e narrativo.

Mas, diferencia-se enormemente de Varnhagen:não faz mais uma história oficial, ligada ao Estado;sua história não é só político-administrativa, mas tam-bém social e cultural. E a diferença maior: não fazum elogio da conquista e da colonização portuguesa,mas da conquista e colonização do Brasil pelo brasi-leiro mestiço; não relata a conquista do litoral, mas a

ocupação do interior; o sujeito da história do Brasilnão é mais o europeu branco, cristão e súdito do Rei,mas o brasileiro mestiço, ainda cristão, mas sem umaexpressão política clara; não faz uma história da cons-tituição da identidade brasileira em moldes europeus,mas busca as identidades brasileiras no interior, nosertão e nas rebeliões. Finalmente, o abismo que ossepara está na concepção do tempo histórico do Bra-sil. Varnhagen não distinguiu bem os períodos da his-tória brasileira e se perdeu em inúmeros fatos domi-nados pelo sentido maior do elogio da colonizaçãoportuguesa. Este sentido maior nunca foi seriamentecontestado e Varnhagen não percebeu as “mudanças”na história do Brasil. Capistrano elaborou a seguinteperiodização da história do Brasil:

1500-1614 – ocupação do litoral, guerra contra os franceses,

escravização do indígena;

1614-1700 – o litoral povoado, começa a internalização pe-

los rios;

1700-1750 – dominam as minas;

1750-1808 – consolidação do sistema colonial: municipali-

dades anuladas, indústria proibida, jesuítas expulsos, tensão en-

tre colonos e reinóis;

1808-1850 – decomposição do sistema colonial;

1850 – período centralizador, imperialista ou industrial: época do

vapor, a escravidão agoniza, jornalismo vivo. (CAPISTRANO, 1975)

Diferente de Varnhagen, Capistrano duvida datradição, faz uma crítica radical da memória. A ver-dade que procura não consiste na repetição do pas-sado: a verdade não é o que o passado ensina e obri-ga. (ARAÚJO, 1988) Seu ponto de vista inovador,ao mesmo tempo constrói um novo passado e des-confia do passado estabelecido, oficial. O métodocrítico quer corrigir o passado, rever verdades con-solidadas. E abrir um novo futuro, sustentado por umnovo passado: o Brasil nação não será oficial, o su-jeito da história do Brasil não é o Estado Imperial,mas o “povo brasileiro”, em sua diversidade e uni-dade. No passado, Capistrano põe ênfase na vida

Page 20: CAPISTRANO DE ABREU-JOSÉ CARLOS REIS

82 José Carlos Reis / Revista de História 138 (1998), 63-82

desse povo, por um lado, ativo na ocupação do ter-ritório, por outro, passivo e ineficaz na produção daverdadeira independência; no futuro, ele espera averdadeira Independência... Capistrano é um his-toriador da mudança, da descontinuidade entre opassado e o futuro do Brasil: o futuro será a realiza-

ção da independência que no passado o Brasil aspi-rou mas não realizou. O futuro do Brasil será brasi-leiro, descontinuando o passado português. A ver-dade histórica se oporá a este passado tradicionalportuguês e servirá à construção do futuro novo,“brasileiro”, à idéia da “revolução brasileira”.

Bibliografia

ARAÚJO, R.B. “Ronda Noturna: Narrativa, Crítica e Verdade em

Capistrano de Abreu”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro,

Vértice, n. 1, p.28-54, 1988.

BOSI, A. “O Tempo e os Tempos”, in NOVAES, A. (Org.) Tempo

e História. São Paulo, Cia das Letras/Secretaria Municipal

de Cultura, 1992, p.19-32.

CÂMARA, J.S. Capistrano de Abreu. Rio de Janeiro, José

Olympio, 1969 (Col. Documentos Brasileiros), 234p.

CAMPOS, P.M. “Esboço da Historiografia Brasileira nos Sécu-

los XIX e XX”, in GLENISSON, J. Iniciação aos Estudos

Históricos. São Paulo, Difel, 1983, p.250-293.

CANABRAVA, A. “Apontamentos sobre Varnhagen e Capistra-

no”. Revista de História. São Paulo, USP, v. XVIII, n. 88,

out/dez.1971. p.417-424.

CAPISTRANO DE ABREU, João. Capítulos de História Colo-

nial (1500-1800) & Os Caminhos Antigos e o Povoamento

do Brasil. 5ª. ed. Brasília, UnB, 1963, 337p. (1ª ed. 1907).

CHACON, V. História das Idéias Sociológicas no Brasil. São

Paulo, Ed.USP/Grijalbo, 1977, 139p.

_________. Gilberto Freyre, uma biografia intelectual. Recife/São

Paulo: FUNDAJ/Ed.Massangana/Ed.Nacional, 1993, 312p.

ODÁLIA, N. “Formas do pensamento historiográfico brasileiro”.

Anais de História, Assis (SP): UNESP, 1976, n. 8, p. 31-40.

REIS, J.C. A História Metódica, dita “Positivista”. A História, en-

tre a Filosofia e a Ciência. São Paulo, Ática, 1996, p.11-25.

RODRIGUES, J.H. “Introdução”. Capítulos de História Coloni-

al (1500/1800) & Os Caminhos Antigos e o Povoamento do

Brasil. 5ª. ed. Brasília, UnB, 1963, p.IX-XIX e 3-28.

_________. “Capistrano de Abreu e a Historiografia Brasileira”. Histó-

ria e Historiadores do Brasil. São Paulo, Fulgor, 1965, p.34-53.

WEHLING, A. A Invenção da História . Rio de Janeiro/

Niterói:Gama Filho/UFF, 1994, 260p.