cap 17 - farmacologia da dependência

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  • Farmacologia da Dependncia e Abuso de Drogas

    17

    Robert M. Swift e David C. Lewis

    IntroduoCasoDefiniesMecanismos de Tolerncia, Dependncia e Adico

    Mecanismos de TolernciaMecanismos de Dependncia FsicaMecanismos de Dependncia PsicolgicaMecanismos de Adico

    Variveis que Afetam o Desenvolvimento da AdicoSubtipos de Usurios de lcool e Drogas

    Drogas de AbusoMedicamentos Prescritos com Freqncia

    Opiides Benzodiazepnicos e Barbitricos

    Drogas Relacionadas a TratamentosHeronalcoolNicotinaCocana e Anfetamina

    Drogas de Abuso que Afetam Receptores No-TeraputicosComplicaes Clnicas do Abuso e Dependncia de Drogas

    Tratamentos da AdicoDesintoxicaoTcnicas de Auto-Ajuda e Ajuda Mtua em Doze PassosTratamento Farmacolgico da Dependncia

    Concluso e Perspectivas FuturasLeituras Sugeridas

    INTRODUO

    Este captulo analisa os agentes farmacolgicos associados ao uso indevido, abuso e dependncia de drogas. Embora seja importante conhecer a neurofarmacologia desses agentes para compreender os efeitos sobre o comportamento e os riscos da adico, a farmacologia no absolutamente o nico determi-nante da experincia ou do comportamento relativo s drogas. Caractersticas da personalidade, como o comportamento de risco, podem contribuir para o abuso de drogas. A idade em que a droga usada pela primeira vez, a experincia anterior com drogas, os efeitos previstos da experincia, o estado nutricional e fatores sociais tambm podem influenciar o risco de abuso e dependncia.

    Tambm h alguma superposio entre problemas com lco-ol e drogas e doena psiquitrica. O lcool muito usado como automedicao para alvio da ansiedade (i. , como ansioltico), e as anfetaminas podem ser usadas como automedicao no transtorno de dficit de ateno e hiperatividade. No entanto, muitas vezes difcil determinar se essas doenas so causas ou efeitos do uso de drogas, porque as aes das prprias drogas, bem como a abstinncia e a dependncia, podem revelar uma doena psiquitrica em um indivduo antes compensado.

    As variveis ambientais tm forte influncia no desenvolvi-mento da adico. Por exemplo, as atitudes da sociedade relati-vas ao uso de drogas costumam influenciar a probabilidade de

    seu uso pela primeira vez. A disponibilidade e o custo da droga tambm podem ser afetados pela situao legal e por impostos. A existncia de alternativas, que no incluam drogas, pode ter grande influncia na probabilidade de uso e adico.

    Embora este captulo no contenha uma descrio exausti-va dos mecanismos de ao de todas as drogas de abuso, as drogas representativas selecionadas so apresentadas mecanis-ticamente, e no Quadro 17.1 so resumidos os mecanismos das outras drogas importantes. Por fim, so analisadas as estratgias teraputicas farmacolgicas e psicossociais usadas no tra-tamento da dependncia de drogas.

    nn Caso

    J.B., um homem de 25 anos com histria de uso pesado de herona, levado ao pronto-socorro de um hospital na periferia de Phoenix com quadro progressivo de nusea, vmito, diarria, dor muscular e ansiedade h 8 horas. O Sr. B explica que est tentando deixar o vcio e que usou a droga pela ltima vez h cerca de 24 horas. Ele mostra necessidade irresistvel de consumir herona, est mui-to agitado e desconfortvel. O exame fsico mostra temperatura de 39,5C, pupilas aumentadas, presso arterial de 170/95 mmHg e freqncia cardaca de 108 batimentos por minuto. Apresenta irrita-bilidade e grande sensibilidade ao toque; as respostas a estmulos dolorosos, como a espetada de um alfinete, so desproporcionais intensidade do estmulo. O Sr. B medicado com 20 mg de metado-

  • Farmacologia da Dependncia e Abuso de Drogas | 261

    na, um opiide de ao prolongada. Ento, sente-se um pouco mais confortvel e recebe uma segunda dose de 20 mg, que o deixa bem mais tranqilo e alivia os sintomas. Em seguida, o Sr. B internado em um centro de desintoxicao, onde passa por um programa de tratamento durante 28 dias. Durante a semana subseqente, a dose de metadona reduzida em cerca de 20% ao dia. O Sr. B inscrito no programa dos Narcticos Annimos (NA), onde conta sua histria de dependncia. O incio foi lento, com uso apenas algumas vezes ao ms, em ocasies especiais, como ele contou. Com o tempo, porm, ele constatou que o efeito no era to intenso quanto no incio, e passou a usar (por injeo intravenosa) quantidades maiores e com maior freqncia. Por fim, ele estava usando a droga duas vezes ao dia e sentia-se aprisionado.

    Embora o Sr. B considere teis as sesses dos NA, comparece esporadicamente. Durante as semanas subseqentes ele apresen-ta alteraes cclicas do peso, perodos alternados de insnia e ansiedade, e fissura por herona, apesar dos exames de urina

    negativos para opiides. Dois meses depois, tem uma recada e volta a usar herona.

    QUESTESn 1. Qual a causa dos sinais e sintomas fsicos do Sr. B (isto ,

    nusea, vmito, febre, aumento das pupilas e hipertenso) quando procurou o pronto-socorro?

    n 2. Por que a abstinncia de herona foi tratada com outro opi-ide (metadona)?

    n 3. Por que o Sr. B notou que, com o tempo, o efeito da herona tornou-se menos intenso do que no incio?

    n 4. Por que o Sr. B apresentou fissura pela herona aps ces-sarem os sintomas fisiolgicos?

    n 5. Como os programas do tipo Narcticos Annimos podem ajudar no tratamento da dependncia? E por que esses pro-gramas nem sempre tm xito?

    QUADRO 17.1 Principais Drogas de Abuso

    CLASSE DA DROGA EXEMPLOS RECEPTOR (AO) SINAIS CLNICOS OBSERVAES

    Opiides MorfinaHeronaCodenaOxicodona

    -opiide (agonista) Euforia, seguida por sedao, depresso respiratria

    Usados terapeuticamente como analgsicos (com exceo da herona)

    Benzodiazepnicos TriazolamLorazepamDiazepam

    GABAA (modulador) Sedao, depresso respiratria

    Usados terapeuticamente como ansiolticos, sedativos

    Barbitricos FenobarbitalPentobarbital

    GABAA (modulador) Sedao, depresso respiratria

    Usados terapeuticamente como ansiolticos e sedativos; h maior risco de superdosagem do que com os benzodiazepnicos

    lcool Etanol GABAA (modulador), antagonista NMDA

    Intoxicao, sedao, perda de memria

    Legal em muitos pases

    Nicotina Tabaco Nicotnico da ACh (agonista)

    Alerta, relaxamento muscular

    Legal em muitos pases

    Psicoestimulantes CocanaAnfetamina

    Dopamina, adrenrgico, serotonina (inibidor da recaptao)

    Euforia, alerta, hipertenso, parania

    As anfetaminas tambm invertem o transportador da recaptao e liberam o neurotransmissor das vesculas sinpticas para o citossol

    Cafena Caf Adenosina (antagonista)

    Alerta, tremor Geralmente legal, a adico rara

    Canabinides Maconha CB1, CB2 (agonista) Alteraes do humor, fome, instabilidade

    Fenciclidina (PCP) No aplicvel NMDA (antagonista) Alucinaes, comportamento hostil

    Feniletilaminas MDMA (Ecstasy), MDA

    Serotonina, dopamina, adrenrgico (inibidores da recaptao, mltiplas aes)

    Euforia, alerta, hipertenso, alucinaes

    Estruturalmente relacionadas s anfetaminas, efeitos semelhantes aos dos agentes psicodlicos

    Agentes psicodlicos

    LSDDMTPsilocibina

    5-HT2 (agonista parcial)

    Alucinaes

    Inalantes ToluenoNitrato de amilaxido nitroso

    Desconhecido Tontura, intoxicao

    MDMA, metilenodioximetanfetamina; MDA, metilenodioxianfetamina; LSD, dietilamida do cido lisrgico; DMT, dimetiltriptamina; NMDA, N-metil-D-aspartato.

  • 262 | Captulo Dezessete

    DEFINIES

    Antes de descrever as vrias drogas de abuso e os possveis mecanismos de ao, importante definir termos. Muitos peridicos mdicos usam a nomenclatura emprica criada pela American Psychiatric Association (APA) em um manual inti-tulado DSM-IV (Boxe 17.1). Nele a dependncia de substn-cias (adico) definida como um padro mal-adaptativo de uso de substncias que leva a prejuzo ou sofrimento clnico significativo, evidenciado por trs (ou mais) caractersticas, que incluem tolerncia, abstinncia e abandono ou reduo de importantes atividades sociais, ocupacionais ou recreativas ... em razo do uso da substncia, durante um perodo de 12 meses. O termo abuso aplica-se especificamente a substn-cias no-prescritas. Assim, o etanol e a cocana, que no cos-tumam ser prescritos, so considerados drogas de abuso.

    O uso indevido de drogas costuma referir-se ao uso impr-prio de substncias prescritas, ou ao uso dessas substncias para fins no-teraputicos. O uso de morfina ou de um benzo-

    diazepnico para outros fins que no sua indicao teraputica, ou em dose maior ou mais freqente do que a indicada, constitui uso indevido da substncia.

    Por vezes, a linha que separa o abuso do uso indevido indistinta. Por exemplo, a maconha, que durante muito tempo foi considerada droga de abuso, vem tendo seu uso teraputico legitimado como antiemtico em pacientes submetidos qui-mioterapia contra cncer; alguns estados permitem a prescrio da maconha para esse fim. Alm disso, a nicotina (tecnicamen-te uma droga de abuso) na forma de adesivo ou goma de mascar pode combater os efeitos da abstinncia de nicotina em tabagistas que tentam vencer a dependncia. At mesmo a distino entre o uso teraputico e no-teraputico de uma droga pode ser imprecisa, pois muitos casos de abuso tm ori-gem em tentativas de automedicao. Assim, o etanol pode ser auto-administrado como ansioltico, embora esse uso no seja monitorado nem endossado por um mdico, enquanto a cafe-na, talvez a mais usada das substncias com ao no sistema nervoso central (SNC), auto-administrada como estimulante para combater a sonolncia.

    Os termos tolerncia, dependncia e abstinncia podem ser definidos com base em suas aes fisiolgicas. Esses vocbulos so igualmente aplicados a drogas prescritas por mdicos e no-prescritas. A tolerncia refere-se diminuio do efeito de uma droga com o uso contnuo. A primeira admi-nistrao de uma droga produz uma curva de doseresposta caracterstica; aps administrao repetida da mesma droga, porm, a curva de doseresposta desvia-se para a direita, pois so necessrias doses maiores para produzir a mesma res-posta (Fig. 17.1), como aconteceu no caso do Sr. B. O perfil de toxicidade e o perfil de letalidade da droga nem sempre se deslocam da mesma forma ou no mesmo grau que o perfil teraputico, de modo que administraes repetidas podem reduzir o ndice teraputico. Assim, provvel que o Sr. B

    BOXE 17.1 Critrios do Manual Diagnstico e Estatstico de Transtornos Mentais (DSM-IV) para Dependncia de Substncias (Adico)

    Um padro mal-adaptativo de uso de substncia, levando a prejuzo ou sofrimento clinicamente significativo, evidenciado por trs (ou mais) dos seguintes critrios, ocorrendo a qualquer momento no mesmo perodo de 12 meses:

    1. Tolerncia, definida por qualquer um dos seguintes aspectos:a. Necessidade de quantidades muito maiores da substncia

    para que haja intoxicao ou o efeito desejado.b. Acentuada reduo do efeito com o uso contnuo da mesma

    quantidade de substncia.2. Abstinncia, manifestada por qualquer um dos seguintes

    aspectos:a. A sndrome de abstinncia caracterstica para a substncia

    (definida pelos critrios da APA para abstinncia de uma substncia especfica).

    b. A mesma substncia (ou uma substncia estreitamente relacionada) consumida para aliviar ou evitar os sintomas de abstinncia.

    3. A substncia freqentemente consumida em maior quantidade ou durante um perodo mais longo do que o pretendido.

    4. Um desejo persistente ou esforos malsucedidos para reduzir ou controlar o uso da substncia.

    5. Muito tempo gasto em atividades necessrias para a obteno da substncia (p. ex., consulta a vrios mdicos ou longas viagens de automvel), no uso da substncia (p. ex., fumar um cigarro atrs do outro) ou na recuperao de seus efeitos.

    6. Importantes atividades sociais, ocupacionais ou recreativas so abandonadas ou reduzidas em virtude do uso da substncia.

    O uso da substncia levado adiante, apesar da conscincia de um problema fsico ou psicolgico persistente ou recorrente que tende a ser causado ou exacerbado pela substncia (p. ex., uso atual de cocana, apesar de reconhecer que a depresso induzida por ela, ou consumo continuado de bebidas alcolicas, apesar de reconhecer o agravamento de uma lcera pelo consumo de lcool).

    Dose da droga

    20

    40

    60

    80

    100

    Sens

    ibiliz

    ao

    Cont

    role

    Tole

    rnc

    ia

    0

    Perc

    enta

    gem

    de

    resp

    osta

    mx

    ima

    Fig. 17.1 Efeitos da tolerncia e sensibilizao sobre a curva de doseresposta. A primeira administrao de uma droga provoca uma determinada curva de doseresposta (preto). Administraes repetidas da droga podem levar ao desenvolvimento de tolerncia, na qual ocorre deslocamento da curva de dose-resposta para a direita (azulclaro). necessria uma dose maior para produzir o mesmo efeito, e nem sempre possvel atingir o mesmo efeito mximo (parte tracejada da curva). A sensibilizao aos efeitos de uma droga significa que h deslocamento da curva de doseresposta para a esquerda (azul escuro), sendo necessria uma dose menor para produzir a mesma resposta. Alm das alteraes ilustradas na aparente potncia da droga, a tolerncia e a sensibilizao tambm podem estar associadas a modificaes na resposta mxima produzida pela droga.

  • Farmacologia da Dependncia e Abuso de Drogas | 263

    tenha desenvolvido menor tolerncia aos efeitos colaterais de constipao e constrico pupilar do que onda provoca-da pela herona. Pelo mesmo motivo, o aumento da necessi-dade de herona ampliava o risco de superdosagem letal. O efeito oposto, denominado sensibilizao (tambm chamado de tolerncia inversa), refere-se a um desvio da curva de dose-resposta para a esquerda, de modo que a administrao repetida de uma droga provoca um maior efeito de determi-nada dose ou h necessidade de uma dose menor para obter o mesmo efeito. interessante notar que pode haver tolerncia e sensibilidade simultneas a uma droga. Os mecanismos subja-centes tolerncia e sensibilizao foram temas de pesquisas importantes, como descrito adiante.

    A dependncia fsica (ou dependncia fisiolgica) refere-se aos sinais e sintomas fsicos adversos provocados pela abs-tinncia de uma droga. No caso do Sr. B, os sintomas iniciais no pronto-socorro eram causados pela abstinncia de herona, e a necessidade de continuar usando herona para evitar esses sintomas indicava dependncia fsica. A dependncia fsica provocada por muitos mecanismos iguais aos que causam tole-rncia. Como na tolerncia, os pontos de referncia homeost-ticos so alterados para compensar a presena da droga. Se o uso da droga for interrompido, os pontos de referncia alterados provocam efeitos inversos queles que ocorrem na presena da droga. Por exemplo, a interrupo abrupta do uso de um anal-gsico opiide causa hipersensibilidade a estmulos dolorosos (alm de outros sintomas), ao passo que a interrupo abrupta do uso de um sedativo/hipntico barbitrico provoca insnia, ansiedade e agitao (entre outros sintomas).

    A dependncia psicolgica um fenmeno mais complexo que pode ocorrer mesmo com drogas que no causam tole-rncia e dependncia fsica. A dependncia psicolgica ocorre sempre que uma droga afeta o sistema de recompensa ence-flico. As sensaes agradveis produzidas causam o desejo de continuar usando a droga. Quando o uso da droga inter-rompido, as adaptaes ocorridas no sistema de recompensa enceflico manifestam-se como disforia e fissura pela droga, como aconteceu com o Sr. B. Assim, tanto a dependncia fsica quanto a dependncia psicolgica so causadas por alteraes nos processos de homeostase, mas esses processos ocorrem em regies diferentes do encfalo.

    Este captulo usa o termo adico como sinnimo de depen-dncia. Como observado nos critrios do DSM (Boxe 17.1), a adico costuma referir-se ao comportamento compulsivo de uso (e procura) da droga que interfere com as atividades nor-mais e leva o dependente a continuar usando a droga apesar das conseqncias cada vez piores. Como o Sr. B sentiu que estava aprisionado pela droga e era compelido a continuar usando-a, provvel que houvesse adico herona.

    A adico pode coexistir com a tolerncia e a dependncia, mas a presena desta ltima no significa necessariamente adic-o. Por exemplo, um paciente tratado com opiide para alvio de dor crnica provavelmente desenvolver tolerncia droga e necessitar de doses maiores com o tempo. No entanto, isso no significa necessariamente adico ao opiide e provavelmente ser possvel reduzir a dose aos poucos e, por fim, eliminar o analgsico quando cessar a dor. Nesse caso, o paciente con-siderado tolerante e dependente do opiide, mas no adicto. A tolerncia e a dependncia so adaptaes fisiolgicas normais ao uso contnuo de uma droga, ao passo que a adico repre-senta um estado de m adaptao. Adiante apresentado um exame mais detalhado dos mecanismos e fatores que afetam a probabilidade de adico.

    MECANISMOS DE TOLERNCIA, DEPENDNCIA E ADICO

    MECANISMOS DE TOLERNCIAA tolerncia ocorre quando a administrao repetida de uma droga provoca um desvio da curva de dose-resposta para a direita, de modo que seja necessria uma maior dose (concen-trao) da droga para produzir o mesmo efeito. Uma droga pode causar tolerncia por diversos mecanismos. A tolerncia inata refere-se a variaes individuais na sensibilidade droga que esto presentes desde sua primeira administrao. Essas variaes de sensibilidade podem ser decorrentes de polimor-fismos nos genes que determinam o receptor da droga ou nos genes que afetam a absoro, o metabolismo ou a excreo da droga. Como qualquer trao multifatorial, provavelmente a variao gentica modificada pelo ambiente. Um exemplo de tolerncia inata observado com o lcool. A sensibilidade individual aos efeitos comportamentais do lcool varivel; pessoas com alta sensibilidade apresentam efeitos agradveis ou sedao aps um ou dois drinques, enquanto outras com baixa sensibilidade necessitam de vrios drinques para sentir o efeito do lcool. Os adultos jovens com baixa sensibilidade correm maior risco de se tornarem alcolatras mais tarde.

    A tolerncia que se desenvolve com o passar do tempo denominada tolerncia adquirida. Trs classes de mecanis-mos determinam o desenvolvimento da tolerncia adquirida: farmacocintica, farmacodinmica e aprendida. A tolerncia farmacocintica surge quando h aumento da capacidade de metabolizar ou excretar a droga ao longo do tempo. Na maioria das vezes, o aumento do metabolismo atribuvel sntese induzida de enzimas metablicas como o citocromo P450 (ver Cap. 4). Nesses casos, a tolerncia farmacocintica resulta em menor concentrao plasmtica da droga em qualquer dose (Fig. 17.2).

    Tempo

    Metabolismo normal

    Metabolismoacelerado

    Conc

    entra

    o

    plas

    mt

    ica d

    a dr

    oga

    Fig. 17.2 Induo de tolerncia por aumento do metabolismo da droga. Aps a administrao inicial, uma droga metabolizada por enzimas microssomais hepticas exibe cintica de eliminao de primeira ordem (curva preta). Aps administraes repetidas da droga, a induo dessas enzimas causa metabolismo acelerado e diminuio da meia-vida plasmtica (curva azul). Como a droga eliminada com mais rapidez, necessria uma maior dose da droga para produzir a mesma resposta.

  • 264 | Captulo Dezessete

    A tolerncia farmacodinmica, o mecanismo mais impor-tante de tolerncia, causada por alteraes na interao drogareceptor. Essas alteraes podem incluir a diminuio do nmero de receptores ou uma modificao na via de transduo do sinal (Fig. 17.3). A curto prazo, alteraes no nmero de receptores ou na afinidade de ligao podem ser causadas por inativao de receptores (p. ex., atravs da fosforilao), interiorizao e degra-dao de receptores da superfcie celular ou outros mecanismos. Por exemplo, uma quinase presente no citoplasma pode fosforilar (e, portanto, inativar) apenas a forma ligada ao agonista de um receptor da membrana. No caso de alguns receptores acoplados protena G metabotrpicos, as adaptaes a curto prazo podem incluir mecanismos que interferem com o acoplamento entre a protena G e o receptor, por exemplo, por fosforilao do receptor ou das subunidades de protena G. A alterao na condutncia de um canal inico por fosforilao mediada pelo receptor outro mecanismo de tolerncia.

    A longo prazo, as alteraes no nmero de receptores ou em outras molculas sinalizadoras costumam ser causadas por regulao dos genes que codificam essas protenas. Por exem-plo, os efeitos celulares dos opiides so mediados por um receptor metabotrpico acoplado protena G. Entre outros

    efeitos, a ligao do opiide ao receptor inibe a atividade da adenil ciclase (ver Cap. 16). Portanto, a administrao a curto prazo de um opiide como a morfina causa diminuio do monofosfato cclico de adenosina (AMPc) celular. Com a administrao contnua da droga, porm, a ativao posterior de um ou mais fatores de transcrio aumenta a transcrio do gene da adenil ciclase e, portanto, reduz a resposta celular a uma determinada dose de morfina (Fig. 17.4). Considera-se que mesmo os efeitos mais duradouros so causados por alguns mecanismos subjacentes memria de longo prazo. Por exem-plo, as alteraes a longo prazo no padro de expresso gnica podem alterar a expresso de receptores de glutamato AMPA (ver Cap. 11). Alm disso, adaptaes celulares duradouras pro-vocadas pela liberao de fatores neurotrficos podem causar adaptaes permanentes ao uso de drogas modificando sinapses existentes e criando novas, assim efetivamente reprograman-do o encfalo. Essas adaptaes moleculares e celulares de longa durao provavelmente explicam as fissuras e recadas que ocorrem muito tempo aps a interrupo do uso da droga, como no caso do Sr. B.

    Outra forma de tolerncia a denominada tolerncia aprendida. Na tolerncia aprendida, uma droga produz alte-

    GDP

    GTP

    s PPP

    PP

    PPP

    Adenil ciclase

    Droga

    Droga

    Receptor -adrenrgico

    ARK -arrestinaProtena G heterotrimrica

    Retculo endoplasmtico

    Degradao do receptor

    ReciclagemLisossomo

    Endossomo

    Endocitose

    Golgi

    -arrestina

    ARK

    Receptor -adrenrgico inativado

    Fig. 17.3 Mecanismos farmacodinmicos de tolerncia. Em condies normais, a ligao de uma droga ao seu receptor produz efeito atravs de um sistema de mensageiro secundrio. No exemplo mostrado, a ligao de um agonista ao receptor -adrenrgico estimula a adenil ciclase (figura superior, seta esquerda). A administrao repetida ou prolongada da droga pode causar inativao do receptor. Aqui, a ativao da quinase do receptor -adrenrgico (ARK) causa fosforilao do receptor, ligao de -arrestina e inativao do receptor (figura superior, setas direita). A tolerncia tambm pode ser causada por endocitose e/ou degradao dos receptores da superfcie celular (figura inferior).

  • Farmacologia da Dependncia e Abuso de Drogas | 265

    raes compensatrias que no tm relao com sua ao. O mecanismo mais comum de tolerncia aprendida a tolerncia comportamental, na qual a pessoa aprende a modificar seu com-portamento para ocultar os efeitos da droga. Por exemplo, uma pessoa que j esteve alcoolizada vrias vezes pode aprender a ocultar os sintomas da intoxicao, como a fala arrastada e a falta de coordenao, e assim parecer menos embriagada. A tolerncia condicionada (um tipo de tolerncia aprendida)

    ocorre quando indcios ambientais associados exposio a uma droga induzem alteraes compensatrias preventivas, chamadas de resposta de oposio condicionada. Esse meca-nismo de condicionamento um fenmeno inconsciente. Por exemplo, a viso dos acessrios associados ao uso de uma dro-ga como a cocana (que causa taquicardia) pode provocar uma bradicardia preventiva.

    MECANISMOS DE DEPENDNCIA FSICAA dependncia fsica um fenmeno que geralmente est associado tolerncia e que costuma resultar de mecanismos semelhantes aos que provocam tolerncia farmacodinmica. Dependncia fsica a necessidade da droga para manter o funcionamento normal. Na ausncia da droga, revelam-se as adaptaes que produziram a tolerncia. A caracterstica da dependncia fsica a manifestao de sintomas de abstinncia na ausncia da droga.

    Como na tolerncia, a dependncia pode resultar de altera-es nas vias de sinalizao celular. Por exemplo, uma droga que cause tolerncia farmacodinmica por meio de supra-regu-lao da via do AMPc tambm provoca dependncia porque a interrupo sbita do uso permite que a adenil ciclase supra-regulada afete uma resposta supranormal. Inversamente, uma droga que reduza o nmero de receptores ou diminua a sensibilidade do receptor provoca dependncia porque a inter-rupo causa a subestimulao dos receptores infra-regulados. Esses efeitos freqentemente so visveis porque o receptor tem um agonista endgeno, de modo que a ativao do receptor parte dos processos fisiolgicos normais. Quando um sistema de mensageiro secundrio supra-regulado ou um receptor da superfcie celular infra-regulado, uma quantidade normal do agonista endgeno pode provocar uma resposta supranormal ou subnormal, respectivamente. Por exemplo, a ingesto aguda de lcool facilita a atividade inibitria do GABA em seus recep-tores, causando sedao. Ao longo do tempo, os receptores de GABA so infra-regulados, reduzindo o nvel de inibio para neutralizar os efeitos sedativos do lcool. Caso haja interrupo sbita do uso de lcool, a diminuio da inibio GABArgi-ca provoca um estado de hiperatividade do sistema nervoso central, que caracteriza a abstinncia de lcool. Assim, a tole-rncia e a dependncia fsica so provocadas por mecanismos semelhantes; no entanto, como possvel haver dependncia sem tolerncia e vice-versa, fica claro que nossa compreenso desses fenmenos incompleta.

    MECANISMOS DE DEPENDNCIA PSICOLGICAEmbora os mecanismos de dependncia fsica sejam relati-vamente bem caracterizados, as causas de dependncia psi-colgica ainda so controversas, apesar dos muitos trabalhos nessa rea.

    Na dcada de 1950, Olds e Milner implantaram eletrodos em vrias regies enceflicas de ratos para descobrir que reas neuroanatmicas mediavam o comportamento de recompensa. Os ratos aprenderam uma tarefa (como pressionar uma alavan-ca) que provocava um pulso breve de estimulao enceflica no-destrutiva no local do eletrodo. Os feixes prosenceflicos mediais e a rea tegmental ventral (ATV) no mesencfalo foram considerados locais de recompensa enceflica bastante eficazes. Um subgrupo de neurnios dopaminrgicos projeta-se diretamente da rea tegmental ventral para o nucleus accum-bens (NAc) atravs do feixe prosenceflico medial. Acredi-ta-se que esses neurnios sejam fundamentais para a via de

    AMPc

    PKA

    AMPc

    PKA

    P

    GTPGTP

    GTPGTP

    GDP

    GDP

    P

    K+Na+

    Na+K+

    K+

    K+

    A Administrao aguda de morfina reduz a atividade celular

    Administrao crnica de morfina induz tolerncia

    Morfina Canal de Na(fechado)

    +

    AC

    B

    ATP

    AC

    CREB

    CREB

    ATP

    transcrio de AC

    Fig. 17.4 Induo de tolerncia morfina. A. O receptor -opiide acoplado a uma protena G que ativa os canais de potssio e inibe a adenil ciclase (AC), resultando em hiperpolarizao da membrana e diminuio da produo de AMPc. Como o AMPc ativa a protena quinase A (PKA), que, por sua vez, controla o limiar do canal de sdio voltagem-dependente, os nveis diminudos de AMPc causam a reduo indireta da condutncia dos canais de sdio. O AMPc diminudo tambm reduz a ativao do fator de transcrio protena de ligao ao elemento de resposta ao AMPc (CREB), que controla o nvel de expresso da AC. B. A administrao crnica de morfina supra-regula a CREB, o que estimula a transcrio de adenil ciclase, que, por sua vez, restaura a produo de AMPc a nveis normais. O aumento do AMPc estimula a PKA, que fosforila (e, portanto, ativa) a CREB e o canal de sdio voltagem-dependente. Sendo assim, a supra-regulao da via do AMPc neutraliza os efeitos agudos da droga, resultando em tolerncia.

  • 266 | Captulo Dezessete

    recompensa enceflica, porque a seco dessa via, ou o blo-queio dos receptores de dopamina no nucleus accumbens por um antagonista do receptor da dopamina (como haloperidol; ver Cap. 12), reduz os efeitos de recompensa decorrentes do estmulo da rea tegmental ventral. Alm disso, a liberao de dopamina no nucleus accumbens pode ser detectada usando a tcnica de microdilise. Essas medidas mostram que as sinapses dopaminrgicas do nucleus accumbens esto ativas durante a estimulao da via de recompensa do encfalo e que a dopa-mina no nucleus accumbens necessria para a recompensa. As drogas que podem causar dependncia psicolgica induzem a maior dependncia quando administradas diretamente rea tegmental ventral, ao nucleus accumbens ou s reas corticais ou subcorticais que inervam essas duas regies.

    Embora a via dopaminrgica esteja associada recompensa, a dopamina tambm pode tornar os estmulos mais notados e alertar o animal ou a pessoa para sua importncia. Como j foi discutido, a via da dopamina ativada durante o uso da droga. Sabe-se que a dopamina liberada no nucleus accumbens de ratos quando os animais esto comendo aps um perodo de jejum ou quando esto comendo um alimento muito saboroso. (Assim, a afirmativa de que o chocolate vicia tem uma expli-cao mecanstica, embora a maioria dos choclatras no atenda aos critrios do DSM-IV mostrados no Boxe 17.1.) A via de recompensa tambm ativada em ratos durante o acasa-lamento e em determinadas situaes sociais. Com a repetio das experincias, porm, essa via da dopamina tambm ativa-da durante a antecipao da recompensa. O nucleus accumbens recebe impulsos de vrias regies do encfalo e tambm da rea tegmental ventral dopaminrgica. Foram encontradas vias pro-venientes de vrias reas do crtex, hipocampo, tlamo e amg-dala, e dos ncleos serotonrgicos; essas vias podem mediar o aprendizado e a associao relacionados recompensa.

    Embora a descoberta de que as drogas de abuso ativam a via de recompensa enceflica seja uma explicao fcil para a dependncia psicolgica (i. , que a administrao de uma dro-ga est associada recompensa), a literatura recente sugeriu que a dependncia psicolgica mais complicada. provvel que muitos mecanismos moleculares que medeiam a dependncia fsica, como a supra-regulao das vias de sinalizao do men-sageiro secundrio e alteraes na sensibilidade do receptor, tambm sejam importantes na dependncia psicolgica. Nessa formulao, a distino entre dependncia fsica e psicolgica ocorre no porque h diferentes mecanismos moleculares, mas porque as alteraes induzidas pela droga afetam neurnios que tm diferentes funes. Por exemplo, uma droga pode cau-sar euforia aguda porque ativa a via de recompensa enceflica dopaminrgica, mas a euforia pode ser seguida por um perodo de disforia. Se a via de recompensa enceflica sofrer adaptaes aps a administrao repetida da droga, essas adaptaes sero reveladas durante a abstinncia, resultando em um estado de dependncia psicolgica.

    MECANISMOS DE ADICOOriginalmente acreditava-se que a adico dependia basica-mente dos efeitos fsicos ou psicolgicos da abstinncia. Como a abstinncia um evento aversivo, acreditava-se que a neces-sidade de manter os nveis sangneos da droga fosse o moti-vo que levasse ao seu uso contnuo. Embora esse mecanismo possa ocorrer a curto prazo, no explica a observao de que os efeitos da adico ocorrem muito tempo depois de cessa-rem os sintomas fsicos da abstinncia. Anos aps deixar de usar uma substncia, o adicto pode apresentar grande fissura

    pela droga (i. , uma preocupao intensa com a obteno da droga), sugerindo que pode haver uma forma de dependncia psicolgica de longa durao. Assim, os adictos so propensos recada, mesmo aps anos de afastamento. A probabilidade de recada particularmente alta em situaes nas quais os indivduos encontram ao mesmo tempo estresse e o contexto em que a droga foi usada antes. Em parte, essa maior probabili-dade de recada pode resultar de uma interao entre o circuito de recompensa e o circuito de memria enceflico, que, em circunstncias normais, atribui valor emocional a determinadas memrias.

    improvvel que a dependncia fsica seja o mecanismo primrio de adico a drogas como cocana e anfetaminas, que causam poucos sintomas de dependncia fsica, mas mes-mo assim so grandes causadoras de adico. A maioria das entrevistas com adictos em recuperao sugere que eles cos-tumam organizar suas prioridades para obter mais droga no por medo dos sintomas fsicos associados abstinncia, mas porque estavam sempre buscando sentirem-se mais normais. Essas observaes sugerem que o uso crnico de drogas causa uma alterao prolongada no sistema de recompensa encefli-co e/ou nos sistemas de memria relacionados ao sistema de recompensa.

    O conceito de alostase ofereceu uma explicao til para a persistncia da adico. A alostase uma adaptao ence-flica prolongada presena crnica de uma droga, que cria uma homeostase alterada dependente da presena contnua da droga. Na abstinncia, quando a droga removida, o adicto no se sente normal, sai em busca da droga e volta a us-la para restabelecer a homeostase drogadependente. Estudos em seres humanos e animais constataram indcios dessas neuro-adaptaes prolongadas nos nveis alterados dos neurotrans-missores (p. ex., depleo de dopamina aps o uso crnico de lcool ou estimulante), no aumento da reatividade ao estresse, na alterao dos mecanismos de transduo de sinal, nas alte-raes da expresso gnica e na alterao das configuraes e da funo sinptica. Clinicamente, os pacientes em abstinncia relatam disforia, distrbios do sono e aumento das respostas de estresse que podem persistir por semanas a meses aps a desintoxicao.

    A idia atual sobre adico reconhece a heterogeneidade do processo adictivo. Em alguns indivduos, pode haver predom-nio dos fatores de recompensa, e a onda ou euforia motiva o uso. Em outros, h predomnio dos fatores de alvio, como o consumo de lcool para reduzir o estresse, para reduzir a disfo-ria da abstinncia prolongada e sentir-se normal ou para tratar a abstinncia. Ainda outros podem automedicar-se para reduzir os sintomas psiquitricos de um distrbio concomitante.

    Variveis que Afetam o Desenvolvimento da AdicoO desenvolvimento da adico depende de diversas variveis, que incluem a natureza da droga, caractersticas genticas e outros traos do usurio, alm de fatores ambientais.

    Como observado acima, a capacidade de uma droga causar dependncia psicolgica est fortemente associada sua capa-cidade de causar adico. As propriedades farmacocinticas da droga tambm afetam a tendncia a causar adico. Em geral, as drogas de ao curta so mais adictivas do que as drogas de ao prolongada, porque a depurao de uma droga de ao pro-longada resulta em lenta diminuio da concentrao da droga ao longo do tempo, evitando a abstinncia aguda. Alm disso, quanto mais rpido for o aumento da concentrao da droga nos neurnios-alvo, maior a possibilidade de adico. A injeo

  • Farmacologia da Dependncia e Abuso de Drogas | 267

    direta ou a absoro rpida da droga por uma grande superfcie (p. ex., os pulmes no tabagismo) tem maior tendncia a causar adico do que a absoro mais lenta atravs da mucosa intes-tinal ou nasal. A importncia desse efeito demonstrada pelo potencial de abuso de vrias formas de cocana (Fig. 17.5). Os habitantes dos Andes costumam mastigar ou preparar ch com folhas de coca: o potencial de adico dessa forma de uso relativamente baixo, em razo da lenta velocidade de aumento e do baixo pico de concentrao da droga alcanado com absor-o pela mucosa bucal ou intestinal. A rpida absoro atravs da mucosa nasal do cloridrato de cocana extrado muito mais propensa a causar adico. As formas mais adictivas de cocana so as injees intravenosas e a inalao da base livre fumada (crack), que causam aumento muito rpido da concentrao plasmtica e um alto pico de concentrao da droga.

    Pessoas diferentes reagem s drogas de formas diversas. Alguns indivduos usam uma droga apenas uma vez; outros usam uma droga vrias vezes em quantidades moderadas sem desenvolver adico; em outros, o primeiro uso de uma droga provoca uma euforia to intensa que a probabilidade de adico alta. Todos os fatores discutidos anteriormente (i. , a qumi-

    ca da molcula e seu local de ao; o pico e a velocidade de aumento da concentrao da droga; o contexto de uso da droga; experincias anteriores e a facilidade de repetio da experin-cia) interagem com a gentica, a personalidade e o ambiente do indivduo, afetando a probabilidade de adico.

    As influncias genticas foram mais bem estudadas no abuso de lcool. O abuso e a dependncia de lcool so fentipos com-plexos determinados por mltiplos genes, exposies ambien-tais durante toda a vida, interaes geneambiente, interaes genecomportamento e interaes genegene. As estimativas de hereditariedade sugerem que os fatores genticos represen-tam 50 a 60% da variao associada ao abuso de lcool.

    Os exemplos mais conhecidos de genes candidatos que alte-ram o risco de dependncia de lcool so os genes do meta-bolismo do lcool, incluindo aqueles que codificam as lcool desidrogenases ADH1B*2, ADH2 e ADH3, que metabolizam o lcool mais rapidamente, e aqueles que codificam determinadas aldedo desidrogenases (sobretudo a ALDH2*2). Os polimor-fismos nesses genes alteram a atividade enzimtica e provocam aumento dos nveis de acetaldedo, causando sintomas de aver-so que impedem a ingesto de lcool e a dependncia.

    600 120 180 240 300 360

    Tempo (minutos aps a dose)

    Tempo (minutos aps a dose)600 120 180 240 300

    Via e Dose

    360

    500

    400

    300

    200

    100

    0Con

    cent

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    IV 0,6 mg/kg

    Nasal 2 mg/kgOral 2 mg/kg

    Fumada 100 mg de base

    Placebo

    A

    B

    Fig. 17.5 Concentraes plasmticas de cocana e nveis de intoxicao em funo da via de administrao da droga. A farmacocintica (A) e a farmacodinmica (B) da cocana dependem muito da via de administrao. A cocana intravenosa (IV) e na forma de base livre para ser fumada esto associadas ao alcance muito rpido de concentraes plasmticas mximas (A) e a altos nveis de intoxicao (B). Por outro lado, as vias de administrao oral e nasal esto associadas a elevao mais lenta da concentrao plasmtica da droga (A) e a menores nveis de intoxicao (B). Em vista do aumento muito rpido da concentrao plasmtica da droga e dos nveis de intoxicao muito altos, o risco de adico maior com o uso intravenoso e fumado do que nasal ou oral.

  • 268 | Captulo Dezessete

    A sensibilidade ao lcool tambm um trao de base fisiol-gica influenciado por herana gentica. A baixa sensibilidade ao lcool (alta tolerncia inata) est associada a aumento do risco de alcoolismo. Schuckit e colegas constataram evidncias de associao gentica do fentipo de baixo nvel de resposta com a mesma regio no cromossomo 1 que foi associada ao fentipo de dependncia de lcool. No entanto, a resposta subjetiva ao lcool um trao complexo afetado por vrios neu-rotransmissores. Por exemplo, indivduos com o alelo GABRA2 associado dependncia de lcool tm menor resposta subjetiva ao lcool, e indivduos que tm a variante ASP40 do receptor -opiide ou aqueles que tm um determinado polimorfismo de nucleotdeo nico do receptor de canabinide parecem apre-sentar potencializao da resposta eufrica ao lcool.

    Subtipos de Usurios de lcool e DrogasOs alcolatras diferem em relao aos padres de ingesto e aos resultados. A primeira classificao de subtipos de alcolatras relacionada s diferenas genticas e neurobi-olgicas foi a distino entre alcoolismo Tipo 1 e Tipo 2. O Tipo 1 caracterizado pelo incio tardio de problemas relacionados ao lcool aps 25 anos de idade, comportamento anti-social menos acentuado, busca espontnea de lcool e perda de controle pouco freqentes, alm de culpa e medo relativo ao uso de lcool. Os alcolatras Tipo 1 tm baixo ndice na busca de novidades e alto ndice na tendncia de evitar danos e na dependncia de recompensa. Por outro lado, o Tipo 2 caracterizado pelo incio precoce de problemas relacionados ao lcool (antes de 25 anos), comportamento anti-social ao beber, busca espontnea de lcool e perda de controle freqentes, alm da ocorrncia rara de culpa e medo relativo ao uso de lcool.

    A Tipologia de Lesch, usada na Europa, prev quatro sub-tipos de alcoolismo: O Tipo 1 apresenta abstinncia precoce e psicoses e convulses freqentes relacionadas ao lcool; o Tipo 2 apresenta conflitos pr-mrbidos e ansiedade; o Tipo 3 emerge de um meio permissivo ao lcool e apresenta altera-es do humor; o Tipo 4 tem leses cerebrais pr-mrbidas e problemas sociais.

    Um terceiro sistema de classificao consiste em alcola-tras de Tipo A e Tipo B. O Tipo A caracterizado por incio tardio, menos fatores de risco na infncia como transtorno de dficit de ateno e hiperatividade (TDAH) ou transtorno de conduta, dependncia menos intensa, menos problemas com lcool, menos tratamentos de alcoolismo e menor psicopatolo-gia. O Tipo B caracterizado por incio precoce, transtorno de conduta na infncia, dependncia mais grave, mais tratamentos e maior psicopatologia. Recentemente, foi demonstrado que o subtipo de alcoolismo prev a resposta ao tratamento com medicamentos serotonrgicos. Por exemplo, os alcolatras do Tipo B podem aumentar o consumo de lcool em resposta a um inibidor seletivo da recaptao da serotonina (ISRS), ao passo que os alcolatras do Tipo A podem apresentar melhora ou a situao pode ficar inalterada.

    DROGAS DE ABUSO

    Aps a anlise dos mecanismos pelos quais as drogas causam dependncia e adico, a discusso agora se volta para algumas classes de drogas que costumam estar associadas ao abuso. Diversas drogas que podem causar dependncia e adico so

    medicamentos prescritos com freqncia (p. ex., opiides, barbitricos, benzodiazepnicos), e seus mecanismos de ao foram analisados detalhadamente em captulos anteriores. Ou tras drogas de abuso comuns (p. ex., herona) no costumam ser prescritas, mas tm o mesmo mecanismo de ao que suas correspondentes prescritas. Ainda h outras drogas de abuso (p. ex., fenciclidina) que atuam em alvos que no costumam ser usados para fins teraputicos. Por fim, algumas drogas (p. ex., maconha) afetam receptores que ainda no so alvos de interveno teraputica. Todavia, os mecanismos de ao des-sas drogas so muito semelhantes aos receptores e sistemas descritos em captulos anteriores.

    MEDICAMENTOS PRESCRITOS COM FREQNCIAMuitos medicamentos prescritos com freqncia podem causar dependncia e, por vezes, adico. Essa categoria inclui trs importantes classes de drogas: opiides, benzodiazepnicos e barbitricos. Os mecanismos de ao e a farmacologia geral dos opiides so descritos no Cap. 16, e dos barbitricos e benzodiazepnicos so descritos no Cap. 11.

    OpiidesComo mostra o caso do Sr. B, o uso crnico de opiides pode causar uma probabilidade significativa de recada que persiste muito tempo depois do desaparecimento dos sintomas fsi-cos de dependncia. Parece haver duas vias de interao dos opiides com o sistema de recompensa enceflico. Um local de ao situa-se na rea tegmental ventral, onde interneurnios GABArgicos causam a inibio tnica dos neurnios dopa-minrgicos responsveis pela ativao da via de recompensa enceflica no nucleus accumbens. Esses interneurnios GAB-Argicos podem ser inibidos por encefalinas endgenas, que se ligam a receptores -opiides nas terminaes GABArgi-cas. Como os opiides exgenos, como a morfina, tambm se ligam aos receptores -opiides e os ativam (ver Cap. 16), um opiide exgeno administrado poderia ativar a via de recom-pensa enceflica mediante desinibio dos neurnios dopa-minrgicos na rea tegmental ventral (Fig. 17.6). A segunda via, que no foi to bem estudada, est localizada no nucleus accumbens. Os opiides que agem nessa regio podem inibir neurnios GABArgicos que se projetam de volta para a rea tegmental ventral, talvez como parte de uma ala de feedback inibitria. A importncia relativa dessas duas vias ainda est sendo discutida.

    Embora todos os opiides possam causar tolerncia e depen-dncia fsica, alguns tm maior tendncia a causar adico do que outros. Os opiides associados ao aumento mais rpido da concentrao enceflica da droga, inclusive aqueles admi-nistrados por injeo intravenosa, mostram a maior probabi-lidade de abuso. Da mesma forma, houve grande publicidade recente acerca do abuso da droga oxicodona (vendida como o medicamento de liberao lenta OxyContin), freqentemente prescrita para alvio da dor moderada ou intensa, em decorrn-cia do uso indevido e de casos de adico. Um motivo para o elevado risco de adico da oxicodona que os comprimidos orais podem ser quebrados, dissolvidos e injetados. Essa forma de administrao provoca aumento muito mais rpido das con-centraes plasmticas (e, portanto, enceflicas) da droga, um sentimento mais intenso de euforia e maior risco de adico em comparao com a forma oral de liberao lenta, normalmente prescrita.

  • Farmacologia da Dependncia e Abuso de Drogas | 269

    Benzodiazepnicos e BarbitricosOs benzodiazepnicos e barbitricos podem causar dependncia fsica e adico, embora esta ltima seja rara. Como os benzo-diazepnicos e os barbitricos aumentam a eficincia de vias GABArgicas, o uso crnico dessas drogas pode induzir infra-regulao dessas vias por um mecanismo compensatrio. Um possvel mecanismo de infra-regulao o desacoplamento do stio do benzodiazepnico do stio do GABA nos receptores de GABAA (ver Cap. 11). Assim, a ligao dos benzodiazepnicos ao GABAA seria preservada, mas a droga teria pequeno ou nenhum efeito potencializador da ligao de GABA ao recep-tor. Esperar-se-ia que a infra-regulao das vias GABArgicas inibitrias causasse subinibio do encfalo, aumentando a possibilidade de convulses (ver Cap. 14), delirium e, por vezes, morte aps a retirada sbita do benzodiazepnico ou barbitrico. A subinibio das vias que envolvem a atividade simptica central pode causar sintomas fsicos como ansiedade, distrbio do sono e tonteira. Da mesma forma, a subinibio das

    vias que controlam a ansiedade, o medo, a confuso e o pnico pode causar dependncia psicolgica e adico. Sem dvida, as possveis conseqncias da abstinncia de benzodiazepnicos e barbitricos no devem ser ignoradas.

    importante notar que a maioria dos medicamentos prescri-tos raramente causa adico e que a possibilidade de adico no deve impedir mdicos ou outros profissionais de sade de prescrever uma substncia com fins mdicos legtimos. Infe-lizmente, muitas vezes os opiides so pouco prescritos para o tratamento da dor porque a tolerncia (evidenciada por soli-citao de doses cada vez maiores) confundida com adico. Essa situao costuma ser chamada de pseudo-adico. Como a tolerncia um efeito esperado da droga, os mdicos devem estar preparados para aumentar a dose, se necessrio, para con-trolar a dor do paciente. Em vista do alto potencial de sintomas de abstinncia por ocasio da interrupo do tratamento, os mdicos tambm devem ter o cuidado de reduzir aos poucos a dose desse tipo de medicamento prescrito por um longo perodo e de explicar ao paciente o motivo dessa reduo.

    Isso no significa que opiides, benzodiazepnicos e barbit-ricos no possam ser usados indevidamente. Por exemplo, um paciente que tenha sobra de um medicamento prescrito pode us-lo de modo imprprio para outras finalidades. Da mesma forma, um paciente pode compartilhar o medicamento com outra pessoa sem superviso mdica. Por vrios motivos, sobre-tudo a incapacidade de obter mais droga, esse tipo de uso inde-vido raramente leva adico. Por outro lado, alguns pacientes podem buscar a droga e recorrer falsificao de prescries ou procurar vrios mdicos para obter diversas prescries, princi-palmente aps o tratamento insatisfatrio do distrbio (p. ex., no reduo gradual da dose, que resultou em dependncia). Em alguns casos, pode haver um mercado negro da droga (observe o exemplo da oxicodona citado acima). Vale a pena repetir, porm, que embora haja grande publicidade dos casos de adico, a medicao insuficiente em caso de dor muito mais comum do que a adico a analgsicos.

    Outra preocupao sria o uso indevido de opiides pres-critos (ou, com menor freqncia, benzodiazepnicos ou barbi-tricos) por profissionais de sade. H pelo menos dois motivos para o maior risco de adico em profissionais de sade que usam medicamentos indevidamente. Em primeiro lugar, eles tm acesso mais fcil ao medicamento. Depois, eles podem acreditar erroneamente que, como conhecem os efeitos da dro-ga, podem controlar seu uso com mais facilidade.

    DROGAS RELACIONADAS A TRATAMENTOSA segunda categoria das drogas de abuso comuns consiste em agentes que se ligam aos mesmos receptores que as substncias teraputicas comumente prescritas, mas que no so usados como agentes teraputicos. Por exemplo, a herona liga-se ao mesmo receptor da morfina. O lcool, que se liga ao receptor de GABAA, e a nicotina, que se liga ao receptor nicotnico da acetilcolina, imitam outros agonistas GABArgicos e colinr-gicos, respectivamente. A cocana e a anfetamina tm aes semelhantes s de outras drogas que inibem os transportadores de recaptao da monoamina. No caso dessas drogas, possvel compreender seus efeitos quando se conhecem os efeitos dos correspondentes prescritos.

    HeronaComo a morfina, a herona exerce seus efeitos ligando-se ao receptor -opiide. A diferena entre as aes das duas causa-

    A

    B

    rea tegmental ventral

    GABA

    Neurnio inibitrio

    Neurnio dopaminrgicoLiberao tnica de dopamina

    Encefalinasendgenas

    Nucleus accumbens

    RECOMPENSA

    rea tegmental ventral

    Opiidesexgenos

    Encefalinasendgenas

    ou

    Nucleus accumbens

    RECOMPENSA

    Neurnio dopaminrgico

    Neurnio inibitrio

    Aumento da liberao de dopamina

    GABA

    Fig. 17.6 Papel dos opiides na via de recompensa enceflica. A. Os neurnios GABArgicos provocam a inibio tnica dos neurnios dopaminrgicos que tm origem na rea tegmental ventral e so responsveis pela recompensa. Esses neurnios GABArgicos podem ser inibidos por encefalinas endgenas, que provocam a modulao local da liberao de neurotransmissor na terminao nervosa GABArgica. B. A administrao de opiides exgenos diminui a liberao de GABA e desinibe os neurnios de recompensa dopaminrgicos. O aumento da liberao de dopamina no nucleus accumbens indica uma forte recompensa.

  • 270 | Captulo Dezessete

    da basicamente por diferenas farmacocinticas. As duas dro-gas so anlogas estruturais prximas (a herona desacetilada em 6-monoacetilmorfina, e a morfina, ao ser acetilada, forma a mesma substncia), mas a herona mais hidrofbica do que a morfina. Em funo dessa propriedade, a herona atravessa mais rapidamente a barreira hematoenceflica. O aumento mais rpido das concentraes enceflicas de herona provoca uma onda mais forte, o que explica por que a herona costuma ser mais usada como droga de abuso do que a morfina. O mecanis-mo pelo qual a herona causa dependncia e adico idntico ao da morfina e de outros opiides.

    lcoolO lcool (especificamente, etanol) afeta vrios receptores dife-rentes, inclusive receptores de GABAA, receptores de glutamato NMDA e receptores de canabinides. Embora sejam desconhe-cidos os locais de ao especficos, acredita-se que os canais de GABAA medeiem os efeitos ansiolticos e sedativos do lcool, bem como os efeitos do lcool sobre a coordenao motora, a tolerncia, a dependncia e a auto-administrao. O lcool aumenta a condutncia ao cloro mediada por GABA e promove a hiperpolarizao do neurnio. Seus mecanismos de dependn-cia e adico tendem a ser semelhantes queles de outras drogas que afetam o sistema de neurotransmisso do GABA.

    As evidncias tambm indicam um papel dos receptores NMDA no desenvolvimento de tolerncia e dependncia de lcool, e os receptores NMDA podem participar da sndrome de abstinncia do lcool. Especificamente, o lcool inibe subtipos de receptores NMDA que parecem ser capazes de potenciali-zao a longo prazo. Assim, embora os receptores de GABA tenham papel fundamental na mediao dos efeitos do lcool, a capacidade de o lcool interagir com diversos tipos diferentes de receptor sugere que ainda no se conhecem por completo seus mecanismos de ao.

    NicotinaA nicotina ativa diretamente os receptores nicotnicos da ace-tilcolina centrais, perifricos e na juno neuromuscular. Em nvel central, a nicotina provoca forte dependncia, e a fissura por cigarros est diretamente associada diminuio dos nveis plasmticos de nicotina. Os neurnios colinrgicos originados na rea tegmental laterodorsal (perto da borda do mesenc-falo e da ponte) ativam receptores nicotnicos e muscarnicos da acetilcolina em neurnios dopaminrgicos na rea tegmental ventral; a estimulao desses receptores nicotnicos pela nico-tina ativa a via de recompensa enceflica dopaminrgica (Fig. 17.7). Esse efeito forte e direto sobre a via de recompensa explica o elevado potencial de adico da nicotina e, portanto, de cigarros e outras formas de tabaco.

    Cocana e AnfetaminaA cocana e a anfetamina, mediante bloqueio ou inverso da direo dos transportadores de neurotransmissores que mede-iam a recaptao das monoaminas dopamina, norepinefrina e serotonina para as terminaes pr-sinpticas, potencializam a neurotransmisso dopaminrgica, adrenrgica e serotonr-gica. A cocana mais potente no bloqueio do transportador dopamina (DAT), embora concentraes maiores bloqueiem os transportadores da serotonina e da norepinefrina (5HTT e NET, respectivamente). preciso lembrar que os antidepres-sivos tricclicos (ATC) e os inibidores seletivos da recaptao de serotonina (ISRS) agem de modo semelhante, bloqueando

    a recaptao de norepinefrina e serotonina (ATC) ou apenas de serotonina (ISRS) pelos neurnios pr-sinpticos. A anfetami-na inverte a direo dos trs transportadores de monoaminas, embora seja mais eficaz no transportador de norepinefrina. A anfetamina tambm libera depsitos vesiculares de transmissor para o citoplasma; a combinao dessas aes causa o trans-porte do neurotransmissor catecolamina para dentro, em vez de para fora, da fenda sinptica. Por meio dessas aes, a cocana e a anfetamina aumentam a concentrao de neurotransmissores monoaminas na fenda sinptica, potencializando a neurotrans-misso (Fig. 17.8).

    Embora a cocana e a anfetamina atuem em neurnios mono-aminrgicos em todo o corpo, provavelmente o potencial de abuso determinado pela ao dessas drogas em neurnios de dois centros enceflicos principais (Fig. 17.9). O primeiro gru-po de neurnios, no locus ceruleus na ponte, envia projees adrenrgicas ascendentes por todo o hipotlamo, tlamo, crtex cerebral e cerebelo, e projees descendentes para o bulbo e a medula. Essas projees mantm o estado de alerta e a respos-ta a estmulos inesperados (ver Cap. 9). Sendo assim, drogas como a cocana e a anfetamina, que potencializam as aes da norepinefrina inibindo a recaptao do neurotransmissor, pro-vocam aumento da excitao e vigilncia. Por isso, a cocana e a anfetamina so consideradas psicoestimulantes.

    O segundo principal local de ao da cocana e da anfetami-na nos neurnios dopaminrgicos do mesencfalo, cujos ax-nios terminam no nucleus accumbens, estriado e crtex. Essas terminaes dopaminrgicas no nucleus accumbens so um componente fundamental da via de recompensa enceflica.

    Em face da ampla distribuio de neurnios monoaminr-gicos no SNC, no causa surpresa o fato de que a cocana e a anfetamina provocam diversos efeitos alm da psicoestimu-lao. Essas drogas podem causar parania e delrios, efeitos que podem estar associados potencializao da neurotrans-misso nas projees dopaminrgicas para o crtex, o tlamo e a amgdala que podem estar relacionadas esquizofrenia. A cocana e a anfetamina tambm podem causar movimentos involuntrios mediante ao nos gnglios da base, da mesma forma que as drogas dopaminrgicas antiparkinsonianas podem causar discinesias associadas aos perodos de boa funo moto-ra (perodos on).

    rea tegmental laterodorsal

    Nucleus accumbens

    rea tegmental ventral

    Fig. 17.7 Papel da neurotransmisso colinrgica na via de recompensa enceflica. Os neurnios nicotnicos (preto) originados na rea tegmental laterodorsal (ATD) ativam neurnios dopaminrgicos (azul) na rea tegmental ventral (ATV). Esses neurnios, que formam a via de recompensa enceflica, liberam dopamina no nucleus accumbens (NAc).

  • Farmacologia da Dependncia e Abuso de Drogas | 271

    Como h extensa distribuio de neurnios adrenrgicos no sistema nervoso perifrico, a cocana e a anfetamina tm aes difusas nos tecidos perifricos. Esses potencializadores

    da neurotransmisso pela norepinefrina aumentam a freqncia cardaca e a presso arterial mediante aumento da ao da nore-pinefrina em receptores adrenrgicos. A cocana em especial pode causar vasoespasmo, levando a acidente vascular cerebral, infarto do miocrdio ou disseco artica.

    Durante muito tempo se acreditou que os psicoestimulan-tes no causassem dependncia fsica. No entanto, o uso de cocana pode ser associado a sintomas de abstinncia como bradicardia, sonolncia e fadiga. A abstinncia de cocana ou anfetamina tambm causa sintomas psicolgicos, como disforia e anedonia (incapacidade de sentir prazer), que so o oposto da euforia que ocorre logo aps a administrao da droga. Muitos desses sintomas no so rigorosamente atribuveis abstinncia porque no podem ser aliviados pela administrao de mais cocana ou anfetamina. Na verdade, os sintomas de abstinncia podem ocorrer mesmo quando os nveis plasmticos de psicoes-timulante ainda so altos. Isso ocorre porque as drogas causam taquifilaxia, um processo agudo em que o tecido-alvo torna-se cada vez menos sensvel s concentraes constantes de uma droga. No caso da cocana e da anfetamina, a taquifilaxia pode ser causada por depleo do neurotransmissor. Como as drogas bloqueiam a recaptao pr-sinptica do neurotransmissor, com o tempo o transmissor difunde-se para fora da fenda sinptica e h depleo das reservas na terminao pr-sinptica. Isso pode explicar por que a administrao de um agonista do receptor da dopamina como a bromocriptina (um alcalide semi-sinttico do ergot) pode aliviar os sintomas de abstinncia.

    DROGAS DE ABUSO QUE AFETAM RECEPTORES NO-TERAPUTICOSVrias drogas de abuso comuns ligam-se a receptores ainda no explorados terapeuticamente. Uma delas, a fenciclidina (PCP),

    An

    C

    Baixo nvel desinalizao

    Transportador de dopamina

    A

    Dopamina

    Sinalizao

    Transportadorde dopamina

    B

    Dopamina

    Sinalizao

    Transportador de dopamina

    C

    Dopamina

    Amfetamina

    Cocana

    Fig. 17.8 Mecanismo de ao da anfetamina e cocana. A. Na neurotransmisso dopaminrgica normal, a dopamina liberada pelas vesculas sinpticas retirada da sinapse por transportadores de recaptao de dopamina na membrana pr-sinptica. B. A anfetamina (An) libera dopamina das vesculas sinpticas para o citossol (no mostrado) e inverte a direo do transporte de dopamina pelo transportador de dopamina. Juntas, essas aes aumentam a concentrao de dopamina na fenda sinptica e potencializam a neurotransmisso. C. A cocana (C) potencializa a neurotransmisso dopaminrgica bloqueando o transportador de recaptao da dopamina e assim aumentando a concentrao sinptica de dopamina. A anfetamina e a cocana tm efeitos semelhantes nas terminaes nervosas noradrenrgicas e serotonrgicas.

    Neurnios dopaminrgicos

    rea tegmental ventral

    Locus ceruleusSubstncia negra

    Neurnios noradrenrgicos

    Fig. 17.9 Local de ao da anfetamina e da cocana. A anfetamina e a cocana atuam em neurnios noradrenrgicos que tm origem no locus ceruleus e projetam-se em todo o crtex cerebral, hipotlamo, cerebelo e medula espinal (azul). Os neurnios noradrenrgicos que terminam no crtex cerebral mantm o estado de alerta. A anfetamina e a cocana tambm atuam em neurnios dopaminrgicos que tm origem na rea tegmental ventral e projetam-se no crtex cerebral, hipotlamo e nucleus accumbens (linhas pretas slidas). Os neurnios dopaminrgicos que terminam no nucleus accumbens so um componente importante da via de recompensa enceflica (ver Figs. 17.6 e 17.7). Outros neurnios dopaminrgicos originados na substncia negra e que se projetam para o estriado (linhas pretas tracejadas) ajudam a iniciar o movimento pretendido.

  • 272 | Captulo Dezessete

    bloqueia receptores de glutamato tipo NMDA. Os receptores NMDA medeiam a transmisso sinptica excitatria e esto associados plasticidade sinptica e memria. A PCP inter-fere com esses processos, provocando efeitos complexos como anestesia, delirium, alucinaes e amnsia.

    A droga metilenodioximetanfetamina (MDMA), conheci-da popularmente como ecstasy, foi motivo de ateno recente em razo do aumento do uso e da impresso errnea de que uma droga segura. Embora esteja quimicamente relacionada metanfetamina e tenha efeitos dopaminrgicos semelhantes, o principal efeito da MDMA na neurotransmisso serotonrgi-ca. A MDMA causa liberao de serotonina na fenda sinptica, inibio da sntese de serotonina e bloqueio da recaptao de serotonina. Juntas, essas aes complexas da MDMA aumen-tam a quantidade de serotonina na fenda sinptica ao mesmo tempo em que causam depleo das reservas pr-sinpticas do neurotransmissor. A droga causa um efeito estimulante cen-tral, como a cocana e a anfetamina, mas, ao contrrio dessas, tambm tem propriedades alucingenas. Como a cocana e a anfetamina, a MDMA afeta a via de recompensa do encfalo atravs de estimulao dopaminrgica. Por fim, a MDMA pode ser neurotxica para uma subpopulao de neurnios seroto-nrgicos quando administrada vrias vezes ou em grande quantidade.

    Os canabinides so substncias encontradas na cannabis (maconha). Esses produtos naturais ligam-se aos receptores de canabinides, que so receptores acoplados protena G cujo ligante endgeno a anandamida, um derivado do cido ara-quidnico. Os dois receptores de canabinide conhecidos, CB1 e CB2, tm ampla distribuio nos gnglios da base (incluindo a parte reticular da substncia negra e o globo plido), no hipo-campo e no tronco enceflico, e conseqentemente os efeitos da maconha so difusos. Os canabinides endgenos parecem participar da mediao de vrios comportamentos apetitivos (de reforo e consumo), incluindo alimentos, cigarros e lcool. O uso de canabinides causa uma onda imediata e generalizada caracterizada por euforia, riso, instabilidade e despersonaliza-o. Aps 1-2 horas, funes cognitivas como memria, tempo de reao, coordenao e alerta so comprometidas, e o usurio tem dificuldade de concentrao. Esse efeito corresponde a uma fase de declnio, que provoca relaxamento e at mesmo sono. Em ratos, a administrao de canabinides naturais e sintticos causa liberao de dopamina no nucleus accumbens da via de recompensa enceflica, embora ainda no seja conhecida a via especfica relacionada.

    O uso de maconha induz tolerncia; o mecanismo desse efei-to ainda desconhecido. A interrupo do uso seguida por sndrome de abstinncia que inclui inquietao, irritabilidade, agitao, insnia e nusea. H indcios de que as encefalinas estejam associadas a essa sndrome de abstinncia.

    A cafena e as metilxantinas relacionadas, teofilina e teo-bromina, so drogas onipresentes, encontradas no caf, ch, refrigerantes tipo cola e de outros tipos, chocolate e em muitos medicamentos prescritos e de venda livre. As metilxantinas blo-queiam os receptores de adenosina de expresso pr-sinptica em muitos neurnios, inclusive neurnios adrenrgicos. Como a ativao dos receptores de adenosina inibe a liberao de norepinefrina, o antagonismo competitivo dos receptores pela cafena desinibe a liberao de norepinefrina e, assim, atua como estimulante. A cafena tambm pode bloquear receptores de adenosina em neurnios corticais, e assim desinibir esses neurnios. Alm disso, a adenosina no SNC um promotor natural do sono e sonolncia; a cafena, mediante bloqueio dos receptores de adenosina, promove o estado de alerta e provoca

    insnia. A cafena pode causar sintomas de abstinncia como letargia, irritabilidade e uma cefalia caracterstica, mas a adic-o, embora documentada, rara. Sintomas de abstinncia da cafena clinicamente importantes so comuns mesmo em usu-rios de quantidades pequenas a moderadas.

    Os inalantes so compostos orgnicos volteis inalados (s vezes se diz cheirados) por seus efeitos psicotrpicos. O usu-rio tpico de inalantes um rapaz adolescente. Os inalantes incluem solventes orgnicos, como gasolina, tolueno, ter et-lico, fluorocarbonos e nitratos volteis, incluindo xido nitroso e nitrato de butila. Os inalantes so encontrados facilmente em muitas residncias e locais de trabalho. Em baixas doses, os inalantes causam alteraes do humor e ataxia; em altas doses, podem provocar estados dissociativos e alucinose. Os riscos do uso de solventes orgnicos incluem sufocao e leso dos rgos, sobretudo hepatotoxicidade e neurotoxicidade nos sistemas nervosos central e perifrico. Pode haver arritmias cardacas e morte sbita. Os nitratos inalados podem causar hipotenso e metemoglobinemia. Os inalantes hidrocarbonetos no parecem agir em um receptor especfico, mas sim per-turbando as funes celulares mediante ligao inespecfica a stios hidrofbicos nos receptores, protenas de transduo de sinal e outras macromolculas. Os nitratos, porm, atuam como receptores do xido ntrico, uma pequena molcula neuromo-duladora (ver Cap. 21).

    COMPLICAES CLNICAS DO ABUSO E DEPENDNCIA DE DROGASEm face da multiplicidade de drogas, os meios de obteno e as diversas vias de administrao, as complicaes podem ser secundrias toxicidade tecidual, alteraes metablicas induzidas, adulterantes misturados s drogas ou infeco por administrao com agulha.

    Muitos pacientes que abusam de drogas usam mais de uma substncia. Sabe-se pouco sobre os complexos efeitos farma-codinmicos e farmacocinticos do abuso de mltiplas subs-tncias. Por exemplo, as pesquisas revelaram uma interao potencialmente perigosa entre a cocana e o lcool. Quando associadas, as duas drogas so convertidas em cocaetileno. O cocaetileno tem uma maior durao de ao no encfalo e mais txico do que cada substncia isoladamente. Cabe res-saltar que a mistura de cocana e lcool a associao mais comum de drogas associada morte.

    Outras drogas podem causar disfuno significativa dos rgos. Na ingesto repetida de altas doses de etanol (lcool), como observada no alcoolismo, a diminuio da funo ven-tricular esquerda com cardiomegalia pode ser fatal. O etanol causa efeitos txicos diretos nas clulas do msculo cardaco, afetando a contratilidade dos micitos e inibindo o reparo de leses dessas clulas. H algumas sugestes de que o mecanis-mo de leso dos micitos pode ser a superproduo de mol-culas contendo oxignio, secundria ao metabolismo do lcool, com leso da membrana plasmtica do micito.

    Em geral, o consumo moderado de lcool causa um aumento da presso arterial sistlica. A abstinncia de lcool tambm tem um papel na hipertenso, porque provoca aumento da ati-vidade simptica. O estresse parece provocar maior elevao da presso arterial em indivduos que consomem lcool.

    O lcool parece ter um efeito protetor na doena coronaria-na, ao menos em idosos e nos indivduos sob risco de doena coronariana. A denominada curva de mortalidade em forma de J mostra que essas populaes tm a mortalidade diminuda com

  • Farmacologia da Dependncia e Abuso de Drogas | 273

    o consumo baixo a moderado (geralmente 0,5 a 2 drinques/dia) e aumentada se o consumo for elevado. O mecanismo dessa proteo inclui efeitos benficos do etanol sobre o metabolismo das lipoprotenas e a trombose: o etanol aumenta os nveis de lipoprotena de alta densidade (HDL) de modo dose-dependen-te, inibe a agregao plaquetria e reduz os nveis plasmticos de fibrinognio.

    TRATAMENTOS DA ADICO

    Apesar da alta prevalncia de problemas com lcool e droga na prtica mdica (10 a 15% no atendimento ambulatorial, 30 a 50% no atendimento de emergncia e 30 a 60% em hospi-tais gerais), muitas vezes o diagnstico negligenciado. Como ocorre em outras doenas estigmatizadas, os servios especiali-zados freqentemente so inacessveis. Um relato recente do Institute of Medicine indica uma renovao da resposta mdica a esses problemas de sade.

    O tratamento da adico pode ser dividido em duas catego-rias amplas, farmacolgico e psicossocial. O tratamento far-macolgico clssico da adico concentra-se na desintoxicao aguda para aliviar os sintomas de abstinncia que acompanham a interrupo do uso da droga. No entanto, cada vez mais se reconhece que a desintoxicao no afeta a evoluo da adic-o a longo prazo. Com base nesse conhecimento, esto sendo desenvolvidos novos agentes farmacolgicos, no apenas para desintoxicao, mas tambm para tratar o distrbio crnico da adico. Esses agentes so resumidos no Resumo Farmacol-gico, ao fim deste captulo.

    Os frmacos usados no tratamento da adico ajudam a redu-zir o uso prejudicial de lcool e drogas. Esses agentes ajudam o paciente a obter abstinncia prolongada. Assim, a adico a drogas considerada um problema mdico crnico, e o tra-tamento deve incluir controle de longo e de curto prazo. As condutas de tratamento psicossocial por exemplo, tcnicas de aconselhamento como a terapia cognitivo-comportamental foram efetivas quando empregadas isoladamente ou associa-das farmacoterapia. Amide, o uso das duas condutas aumenta os resultados positivos do tratamento. Alm disso, o programa de 12 passos costuma melhorar os resultados, seja usado sozi-nho ou quando as mensagens dos 12 passos so incorporadas aos programas de tratamento (ver adiante).

    Embora o aconselhamento geralmente se concentre nas necessidades psicolgicas individuais do paciente, o tratamento efetivo tambm deve abordar os fatores subjacentes que impe-dem a recuperao a longo prazo, como desemprego, transtor-nos familiares e falta de acesso ateno em sade.

    Os resultados do tratamento da dependncia e adico a dro-gas so comparveis queles em outras doenas crnicas, como diabetes, hipertenso e asma. Embora determinados tratamen-tos sejam mais eficazes em alguns pacientes do que em outros, o melhor previsor de resultados positivos a participao no tratamento.

    DESINTOXICAOA primeira etapa no tratamento da dependncia a desintoxica-o. Os objetivos da desintoxicao so permitir que os nveis sanguneos da droga caiam a quase zero e permitir que o corpo adapte-se sua ausncia. Embora tecnicamente a desintoxica-o possa ser obtida em poucos dias, na maioria dos casos de dependncia, sintomas de abstinncia como ansiedade e insnia

    podem persistir, exigindo assistncia prolongada com medica-o. O aconselhamento psicossocial deve comear no incio do programa de desintoxicao e prosseguir com mais intensidade depois da desintoxicao. Por exemplo, o Sr. B concluiu um protocolo de reabilitao de 28 dias no hospital aps a desin-toxicao aguda.

    As manifestaes da abstinncia de drogas dependem do tipo de droga, podendo variar da disforia leve at convulses que podem ser fatais. As estratgias empregadas com maior freqncia para alvio da abstinncia so reduzir a dose aos poucos e/ou usar uma droga de ao prolongada da mesma classe. Por exemplo, um tratamento comum na abstinncia de nicotina a administrao de nicotina por adesivo transdr-mico de liberao prolongada ou goma de mascar. A dose reduzida aos poucos para evitar muitos efeitos desagradveis da abstinncia. Outro exemplo o uso de metadona no trata-mento da adico a um opiide, como a herona. A metadona um opiide de ao prolongada, administrado na forma de comprimido oral e que, portanto, tem absoro muito mais lenta que a herona. A associao do incio lento longa meia-vida plasmtica faz com que os nveis plasmticos de metadona per-maneam bastante constantes, e a droga pode ser reduzida aos poucos, evitando os efeitos agudos da abstinncia de opiides (Fig. 17.10). Os sintomas de abstinncia de lcool e benzodia-zepnicos podem ser graves, por vezes at mesmo fatais. Nesses casos, indicada a administrao de um benzodiazepnico de ao prolongada (como o diazepam) para evitar convulses por abstinncia. Medicamentos antiepilpticos tambm suprimem a hiperatividade do SNC causada pela abstinncia de sedativos e so eficazes no tratamento primrio da abstinncia de lcool e benzodiazepnicos.

    Outro mtodo de desintoxicao usar medicamentos de uma classe diferente para bloquear os sinais e sintomas de abs-tinncia. Por exemplo, agonistas 2-adrenrgicos como a cloni-dina e a lofexidina podem bloquear a hiperatividade simptica e, at certo ponto, a hiperatividade gastrintestinal na abstinncia de opiides. Os receptores 2 inibem a estimulao de neur-nios noradrenrgicos no encfalo e de neurnios colinrgicos no intestino associados abstinncia de opiides, e os 2-ago-nistas bloqueiam parcialmente os sintomas de abstinncia.

    Uma variao um pouco radical da tcnica de bloqueio dos sintomas usa anestesia geral para suprimir a abstinncia de opiides. Essa tcnica foi adaptada a um protocolo de desin-toxicao rpida para o tratamento da adico a opiides. Esse protocolo emprega a administrao de anestesia geral por at 24 horas, durante as quais administrado um antagonista do opiide como a naltrexona. O antagonista desloca efetivamen-te o opiide ligado de seu receptor, acelerando a eliminao do opiide do corpo. Normalmente esse tratamento induziria forte abstinncia, mas esses sintomas so suprimidos pela aneste-sia. Essa conduta no muito usada e no foi aprovada pelas sociedades profissionais de adico. No garante a recuperao a longo prazo, e os riscos da anestesia geral nessa populao so significativos.

    TCNICAS DE AUTO-AJUDA E AJUDA MTUA EM DOZE PASSOSComo ilustra o caso do Sr. B, a desintoxicao do paciente no suficiente para garantir a abstinncia a longo prazo. O risco de recada alto, sendo necessrio tratamento prolonga-do da adico para preservar a sobriedade. Embora no sejam aceitveis nem teis para todos os pacientes, os programas em

  • 274 | Captulo Dezessete

    12 passos tiveram papel proeminente na recuperao bem-sucedida de milhes de indivduos. Essas condutas copiam o modelo dos Alcolicos Annimos (AA), que enfatiza 12 passos positivos especficos que propiciam a continuao da sobriedade (Boxe 17.2). O primeiro desses passos o paciente admitir que a bebida o problema e que a nica forma de evitar uma recada manter a abstinncia. O programa dos AA e relacionados, como os Narcticos Annimos (NA) e os Cocainmanos Annimos (CA), oferece grupos de apoio comunitrios e mentores. Essa ajuda alivia o sentimento de alienao e solido freqentes em dependentes de drogas e lcool. A participao livre e fcil. Grupos de auto-ajuda para a famlia, como Al-Anon para cnjug-es e Al-teen para adolescentes, oferecem apoio importante para a recuperao. Todos os profissionais de sade esto convidados e so bem-vindos reunio aberta do AA de sua comunidade.

    Outra orientao teraputica relativa ao abuso de lcool, usada com freqncia muito menor do que o programa do AA, enfatiza a moderao em vez da abstinncia. A modera-o concentra-se no estabelecimento de limites para ingesto de lcool e em medidas para garantir que o paciente respeite esses limites. Isso feito ajudando o paciente a compreender o contexto de uso do lcool e a evitar situaes, como beber sob estresse excessivo, que causam problemas. Embora haja grande controvrsia acerca de eficcia da conduta de mode-rao em indivduos claramente dependentes de lcool, essa estratgia provou ser eficaz para controlar o uso de lcool em alguns bebedores com problemas pacientes que costumam exagerar, mas ainda no so dependentes.

    TRATAMENTO FARMACOLGICO DA DEPENDNCIAO reconhecimento de que a adico causada por alteraes fun-damentais nas vias de recompensa enceflicas indica que a farma-coterapia pode ter um papel importante no tratamento da adico. At hoje, foram empregadas vrias estratgias farmacolgicas.

    A primeira dessas estratgias a administrao crnica de um agente que causa efeitos adversos desagradveis quando a droga de abuso usada. Por exemplo, o dissulfiram inibe a aldedo desidrogenase, uma enzima fundamental na via de meta-bolismo do lcool. Em um indivduo que ingere etanol durante o uso de dissulfiram, a lcool desidrogenase oxida o etanol em acetaldedo, mas o dissulfiram impede o metabolismo do acetal-dedo pela aldedo desidrogenase. Assim, esse metablito txico acumula-se no sangue. O acetaldedo causa diversos sintomas desagradveis, inclusive rubor facial, cefalia, nusea, vmito, fraqueza, hipotenso ortosttica e dificuldade respiratria. Esses sintomas podem durar de 30 minutos a algumas horas e so seguidos por exausto e fadiga. O objetivo dos efeitos desa-gradveis do consumo de lcool na presena de dissulfiram impedir o consumo adicional de lcool. Infelizmente, a eficcia do dissulfiram limitada pelo insucesso da adeso.

    Uma segunda estratgia usada para tratar a adico bloque-ar os efeitos da droga. A naltrexona um antagonista opiide que bloqueia competitivamente a ligao dos opiides aos seus receptores. Assim, um paciente que injeta um opiide, como a herona, durante o uso de naltrexona no sentir a onda que normalmente acompanha o uso da droga. Estudos mostraram que a naltrexona tambm atua como inibidor de opiide na via de recompensa enceflica. Assim, os efeitos de uma droga como o etanol, que libera opiides endgenos, resultando em desinibio (ou estimulao) da dopamina mesolmbica, com-partilham uma via de recompensa comum final que inclui o receptor de opiide e a dopamina e, portanto, tambm so inibi-dos pela naltrexona. Por isso, a naltrexona foi usada para tratar a adico ao lcool. Embora no sejam todos randomizados, os ensaios clnicos controlados por placebo mostraram eficcia da naltrexona em comparao com placebo; metanlises de vrios estudos mostram um efeito geral positivo, sobretudo na dimi-nuio da recada no consumo pesado. A naltrexona geralmente no administrada quando h traos de opiides exgenos no

    Conc

    entra

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    60 1812 3024 4236 48 60

    OndaHerona

    MethadoneMethadoneMetadona AsymptomaticAsymptomaticAssintomtico

    Withdrawal SymptomsWithdrawal SymptomsSintomas de abstinncia

    54

    Tempo (horas)

    Fig. 17.10 Farmacocintica e farmacodinmica de um opiide de ao rpida (herona) em comparao com um opiide de ao lenta (metadona). A concentrao plasmtica de um opiide de ao rpida como a herona aumenta rapidamente aps administrao intravenosa, provocando uma onda, mas tambm cai com rapidez, causando sintomas de abstinncia. Por outro lado, a concentrao plasmtica de uma droga de ao lenta, com meia-vida longa, como a metadona, permanece na faixa assintomtica por um perodo maior que 24 horas, de modo que o paciente no sente a onda nem os sintomas de abstinncia. Alm disso, devido sua longa meia-vida plasmtica, s preciso administrar a metadona uma vez ao dia.

  • Farmacologia da Dependncia e Abuso de Drogas | 275

    necessidade irresistvel de consumo nem os efeitos da abstinn-cia, e h uma probabilidade relativamente alta de no-adeso. Portanto, a naltrexona s foi eficaz em indivduos dependentes de opiides ou lcool com grande motivao para abandonar o uso. Uma preparao injetvel de naltrexona de uso prolongado foi aprovada pela U.S. Food and Drug Administration (FDA) para tratamento da dependncia de lcool. Essa naltrexona de liberao prolongada injetada por via intramuscular uma vez por ms, tendo sido demonstrada a reduo do consumo pesado de lcool e o aumento da abstinncia.

    A tcnica de bloqueio tambm pode ser eficaz no tratamento de outras adices a drogas. O antagonista do receptor de cana-binide CB1, rimonabanto, foi desenvolvido para bloquear os efeitos dos canabinides exgenos e impedir a intoxicao dos usurios de maconha. Como os canabinides endgenos parecem estar associados dependncia de nicotina e de lco-ol, o rimonabanto tambm est sendo estudado como possvel tratamento nessas adices.

    Uma terceira conduta farmacolgica foi o uso de um agonis-ta de ao lenta para manuteno da medicao. A metadona, como j foi exposto, um agonista opiide de ao lenta. Como usada por via oral, no provoca os aumentos acentuados dos nveis plasmticos necessrios para produzir uma onda como a que acompanha a injeo de herona ou outros opiides. A metadona tambm tem uma longa meia-vida em comparao com a herona ou a morfina. Assim, a administrao de meta-dona uma vez ao dia produz nveis plasmticos de opiides relativamente constantes e, portanto, alivia a fissura e impede a ocorrncia de sinais e sintomas de abstinncia (Fig. 17.10). Alm disso, a metadona provoca tolerncia cruzada com outros opiides, de modo que a herona ou outro opiide produz menor efeito durante o uso de metadona.

    Os mtodos farmacolgicos para o tratamento da adico a opiides foram ainda mais aperfeioados usando-se um agonis-ta parcial dos opiides como a buprenorfina. A buprenorfina, em funo do seu efeito agonista, pode aliviar a fissura e os sintomas de abstinncia. Por outro lado, como no um agonis-ta completo, a buprenorfina tem baixo risco de superdosagem e pode antagonizar os efeitos euforignicos de um agonista completo (como a herona) caso o paciente escorregue. Alm disso, os efeitos da abstinncia de buprenorfina so leves em comparao com os agonistas de opiides completos. Assim, a buprenorfina tem ao farmacolgica semelhante de uma combinao de naltrexona e metadona. O acesso buprenorfina foi limitado por legislao que exige que os profissionais que a prescrevem sejam treinados e certificados em seu uso e s permite aos mdicos prescrever buprenorfina a trinta pacien-tes por vez. Para reduzir ainda mais o abuso, a buprenorfina costuma ser administrada na forma sublingual (Suboxone), que tambm contm naloxona, um antagonista dos opiceos. Em caso de abuso e administrao parenteral de Suboxone, a naloxona age como antagonista dos efeitos agonistas da bupre-norfina; quando administrada por via sublingual, a naloxona inativada e a buprenorfina age plenamente.

    Uma quarta proposta usar medicamentos para evitar a dis-foria e a disfuno enceflica (alostase) prolongadas, que so comuns em adictos abstinentes h pouco tempo. Por exemplo, uma das conseqncias do consumo prolongado de lcool a hiperatividade do sistema glutamato, que persiste mesmo aps cessar o consumo de lcool. Um medicamento como o acamprosato, que modula a hiperatividade do glutamato para restabelecer um estado mais prximo do normal, mostrou ser eficaz na preveno da recada no alcoolismo e foi aprovado para o tratamento da dependncia de lcool.

    BOXE 17.2 O Programa de 12 Passos

    O sucesso relativo do programa dos Alcolicos Annimos (AA) parece atribuvel ao fato de que um alcolatra em recuperao (isto , que no bebe mais) tem uma aptido excepcional para estender a mo e ajudar um alcolatra descontrolado.

    Em sua forma mais simples, o programa AA age quando um alcolatra recuperado conta sua prpria histria de alcoolismo, descreve a sobriedade que encontrou nos AA e convida o recm-chegado a se unir irmandade informal.

    A essncia do programa de recuperao pessoal sugerido est contida em doze passos que descrevem a experincia dos primeiros membros da sociedade.

    1. Admitimos que ramos impotentes perante o lcool que tnhamos perdido o domnio sobre nossas vidas.

    2. Viemos a acreditar que um poder superior a ns mesmos poderia devolver-nos sanidade.

    3. Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, na forma em que O concebamos.

    4. Fizemos minucioso e destemido inventrio moral de ns mesmos.

    5. Admitimos perante Deus, perante ns mesmos e perante outro ser humano, a natureza exata de nossas falhas.

    6. Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses defeitos de carter.

    7. Humildemente rogamos a Ele que nos livrasse de nossas imperfeies.

    8. Fizemos uma relao de todas as pessoas que tnhamos prejudicado e nos dispusemos a reparar os danos a elas causados.

    9. Fizemos reparaes diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre que possvel, salvo quando faz-las significasse prejudic-las ou a outrem.

    10. Continuamos fazendo o inventrio pessoal e, quando estvamos errados, ns o admitamos prontamente.

    11. Procuramos, atravs da prece e da meditao, melhorar nosso contato consciente com Deus, na forma em que O concebamos, rogando apenas o conhecimento de Sua vontade em relao a ns e foras para realizar essa vontade.

    12. Tendo experimentado um despertar espiritual, graas a esses passos, procuramos transmitir essa mensagem aos alcolicos e praticar esses princpios em todas as nossas atividades.

    Os recm-chegados no so instados a aceitar ou seguir completamente esses doze passos caso no desejem ou sejam incapazes de faz-lo. Em vez disso, so instrudos a ter a mente aberta, a freqentar as reunies em que alcolatras recuperados descrevem suas experincias pessoais para alcanar a sobriedade e a ler a literatura do AA que descreve e explica o programa.

    Os membros do AA geralmente enfatizam aos recm-chegados que apenas o prprio indivduo pode determinar se , de fato, alcolatra.

    Ao mesmo tempo, so apresentadas todas as provas mdicas disponveis que indicam que o alcoolismo uma doena progressiva, que no pode ser curado no sentido comum do termo, mas que pode ser interrompido atravs da abstinncia total de qualquer forma de lcool. (Adaptado de Os Doze Passos dos Alcolicos Annimos.)

    sistema, porque o antagonismo entre a droga remanescente e a naltrexona pode levar ao surgimento ou exacerbao dos sintomas de abstinncia. Embora a naltrexona possa evitar efe-tivamente a onda associada ao abuso de opiides, no alivia a

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    O medicamento antiepilptico topiramato, que inibe a classe AMPA/cainato de receptores do glutamato, reduziu significativa-mente a ingesto de lcool em um estudo duplo-cego controlado por placebo. Est sendo estudado em ensaios clnicos maiores, mas ainda no foi aprovado para o tratamento do alcoolismo.

    A depresso do humor e a ansiedade so freqentes em pacientes abstinentes, e alguns clnicos tratam esses sintomas com ansiolticos e antidepressivos. No entanto, uma metan-lise recente do uso de antidepressivos em pacientes adictos constatou que esses medicamentos no so eficazes, exceto em caso de depresso maior concomitante. Na verdade, h alguns indcios de que o uso de inibidores seletivos da recaptao de serotonina (ISRS) em alcolatras do Tipo B (incio precoce, anti-sociais) pode agravar a situao e levar ao aumento do consumo de lcool em comparao com o uso de placebo.

    Ao contrrio dos vrios tratamentos farmacolgicos existentes para a adico ao lcool e opiides, existem poucos tratamentos atuais para o abuso de cocana e anfetamina, e nenhum deles foi aprovado formalmente pelo FDA. Vrios ensaios tentaram usar antidepressivos, como o antidepressivo tricclico desipramina ou o inibidor seletivo da recaptao de serotonina fluoxetina. A desipramina bloqueia a recaptao da monoamina (sobretudo de norepinefrina), enquanto a fluoxetina inibe a recaptao de sero-tonina. Ambas reduziram o desejo de consumir a droga, mas, infelizmente, nenhuma evitou o uso de cocana. H evidncias recentes de que o dissulfiram, usado no tratamento da dependncia de lcool, pode ter alguma eficcia no tratamento da dependn-cia de cocana. Alm de sua inibio da aldedo desidrogenase, o dissulfiram tambm bloqueia a dopamina beta-hidroxilase e pode aumentar os nveis enceflicos de dopamina, talvez neutralizando os efeitos de depleo da dopamina no uso crnico de cocana. Como a sensibilizao cocana envolve o glutamato, tambm est sendo estudada a eficcia de antiepilpticos como o topira-mato no tratamento da dependncia de cocana.

    n Concluso e Perspectivas FuturasEste captulo discutiu as principais causas de dependncia e adico a drogas. A dependncia de drogas causada por uma adaptao homeosttica presena da droga. A dependncia pode levar adico, que definida como um padro mal-adaptativo de uso da droga associado fissura induzida pelo contexto, sobretudo em situaes de estresse, que causa com-prometimento ou sofrimento clinicamente significativo. Embo-ra cada droga tenha seu prprio mecanismo de ao molecular e celular, muitas drogas de abuso afetam a via de recompensa enceflica. Este captulo tambm analisou os principais trata-mentos da dependncia e adico, inclusive a preveno e o tratamento farmacolgico dos sintomas de abstinncia, os trata-mentos sociais a longo prazo da adico e novos tratamentos farmacolgicos que promovem a sobriedade a longo prazo.

    Como as pesquisas sobre seus mecanismos continuam a defender a idia de que a adico uma doena crnica, prolongada, semelhante aterosclerose ou diabetes, novos tratamentos para a adico ajudaro no controle da doena a longo prazo. As novas diretrizes da pesquisa sobre adico so exemplificadas por duas tentativas muito diferentes de tratar o abuso de cocana. Na primeira foram exploradas drogas que interagem com subtipos especficos de receptor da dopamina, investigando as hipteses de que um agonista D1-especfico ou um antagonista D4-especfico poderia suprimir a fissura, e um antagonista D2-especfico poderia evitar os efeitos eufo-rignicos da cocana. Essas hipteses surgiram com base em experincias em camundongos, em que o