canto para a morte de mandela
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Canto
para a morte
de Mandela
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Dazzling and tremendous how quick the sunrise would kill me,
If I could not now and always send sunrise out of me.
Walt Whitman
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QUANDO UMA BALA NÃO
SE ALOJAR MAIS
EM NENHUM CORPO
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A última bala não se alojará em um peito
Nem abaterá a lua vermelha sob o céu clareando
Hasteio a bandeira – esperarei aqui seu retorno
Bala eterna, onde se alojaste? Virás trinir em nosso encontro?
Florescerás em nosso peito tuas pétalas de chamas?
Não encontraste nosso amado, alvo entre estrelas
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Mas encontraste cem peitos certamente!
Corpos negros, estendidos são tristes e vermelhos
Mas vivos são estrelas que dançam! Ó a morte matada
A mando! Mão nebulosa, múltipla e concreta,
Se renda à alma com o corpo liberta!
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Longe da minha casa, subindo o morro, ao lado das paredes de argamassa
Jaz um arbusto de corpos, mal crescidos, regados do líquido rubro do coração
São pedras de barro, é uma vala de esgoto aberto perfumando os corpos
Cada corpo um milagre... agora são folhas caídas
Destrinchadas no chão
Os corações tolhidos destas flores negras
Quem os colherá?
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Cante, pássaro do dia!
Curió festivo
Atravessa essa neblina da morte
Faz-nos ouvir tua canção
Canção da garganta sangrenta!
Canção da morte da vida
Dos que morrem e anseiam renascer
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Vivemos na cidade entre cidades
Descendo as ladeiras, subindo as encostas (onde estavam ali há pouco
a bisbilhotar os sangrentos dejetos)
Entre os concretos que cortam o alto e baixo de nosso caminho
Intocados pelo azul puro do mar eles carregam
Os sudários despidos, são pontos computáveis
A serem realocados e descartados na rua doutro cemitério
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Teu caixão deveria ser cravejado de balas!
Noite e dia, sob a chuva das pistolas
Com o desespero das mães órfãs, com os corpos da calçada
Com a marcha em preto e as palavras de ordem:
Uma bala de ouro para cada buraco em cada corpo!
Com mil vozes a se erguerem distantes pelo globo
Com cem mil gritando (um dois três quatro cinco)
Como os dobrares de um sino (cinco seis sete oito)
(Atingidos, eles cantam teu réquiem sombrio
Em tantas portas à meia noite da madrugada!)
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Teu caixão rodará o mundo até nós
Onde você morre dez mil vezes pela bala
Cravada em cada flor deste ramo
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(Não, você não era apenas um
É flor deste ramo inda que dentro do teu caixão
Pois sendo flor é a flor mais bela, Ó beleza da flor do morto!
Isto é um buquê de corpos!
Ó morte, toma teus corpos, toma teus filhos
Agora que tomaste teu filho primeiro
O faz renascer! O descolhe, o planta novamente
O oferece a nossa gente, Ó morte!)
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Ó pimpinela negra e agreste
Me explique a sua força, correria sozinho meio azul do céu
Para dar a mão a você. Não suporto o silêncio, ele me enlouquece
Diga algo a mim, me tome por sua companhia
Nesta noite solitária, busquemos abrigo, nos juntemos
Não parta antes que eu possa falar, fale por mim
Não deixa a noite chegar cedo, não deixa te apagarem
Em domésticas insatisfações, luz passada
Deixada para trás, tomada pela noite e esquecida
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Canta no sertão e na favela!
Ó canto seguro e firme! Me chama pro teu coro
Vou depressa – me junto a você – me apresse
Que eu não me demore, que eu não me detenha
Cante para mim!
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Ó, como louvarei com minha voz aquele a quem amo?
Como me farei o bastante para aquele que partiu?
Como perfumarei com meu corpo o túmulo do meu amado?
Melancolia que se espraie desdo leste-sul
Ouve a voz daquele que não morreu
Esta é minha garganta, e ele canta
Porque nunca em vida ele morreu.
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Não há imagem alguma, ídolo algum
Não há retratos tirados que não venham a ser
Uma granada, um poema ou um canto!
Imagens em teus murais, e álbuns, e planos
Nenhuma é um santinho ornado em tuas mãos!
Desconhece-as a todas, o ouro deste olhos
Precisa ganhar para ver, a vista da cidade
Correndo pelas avenidas, estreitando nas vielas,
Como os vasos de um corpo ou um sistema de nuvens
Que nunca nos ensinam o que nos ensinam na terra
Que há vidas que prosseguem e que há vidas que não
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Olha! Corpo e sangue! Este sangue!
Poderosos membros, pele esmaltada, olhos oceânicos
O peito aberto e limpo de mulher e homem, de sul e norte
Olha! Um novo dia retorna, é altivo e sereno
Não há sopros ressentidos em sua aurora escarlate
Mas é firme e duro e imensurável
Aproxima-te, aurora esperada! A hora realizada,
Não traz nada de milagres, mas pura ação que são luzes de estrelas
Ilumina minha cidade, a mim e a meus companheiros
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Continua a florir flores sobre o túmulo
Flori e se espraie para além da sua terra
Ilimitados pelos continentes versejam teus ramos
Cobre teus irmãos, Ó pimpinela!
Desarranja este buquê de corpos tingidos
De desesperança e de breu e de mortes injustas
Espalha tua alma de um canto florido
Orna de negras esperanças luminosas
Flores negras, ônix, ébano, manto das estrelas
Maravilhosa flor que viceja sobre um túmulo!
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Agora eu desafio o dia a observá-lo
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São planícies cinzas, são montanhas temerosas sobre o menino pedinte contando suas
moedas
No grande corpo bipartido da minha terra, entre o alphaville e a favela
São infinitas casas separadas por muros de guerras, cercas desumanas, a beleza da miséria
São as ondas dos morros se quebrando sobre as altíssimas janelas
São homens e mulheres revoltos a navegá-las
De dia à noite o trabalho se estende, domésticos estrangeiros voltando para casa
Esbranquiçam os bairros onde seu suor se despende e acendem constelações de
tijolos e pedras
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Fulgura a cidade como uma chama acessa! Faísca da terra, ilumina a noite
Que não haja para a morte o abrigo de uma sombra,
Faz o dia manter teu gosto de fumaça, faz o dia encarar teus olhos acesos
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Pois o canto da morte é a morte contra si
E o pensamento do morto é luz no mistério
Iluminado estou pela morte e pelo canto! Essa luz não vem de mim
Olho para a luz onde a morte se revela, me toma na mão e me leva consigo
Adentramos o país e vamos além,
Onde a miséria rouba à morte o beijo de deus
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Vejo um ramo de uma flor ou fantasma de um ramo
Ouço o canto do pássaro que é vento soprando
Cantar a quem amo é igual ao desespero!
Das terras arrasadas, dos desertos
A vista engana o coração sincero
Até ser liberta pelo canto do pássaro negro
Pássaro diurno, curió ou fênix
Liberta meu coração com teu canto de brasa
Faz minha voz irmã da tua canção
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Canção da fênix
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Força, pássaro futuro e passado
Continua teu percurso de ida e retorno
Canta enquanto cinza, enquanto pó ou lembrança
Agora e para sempre, pássaro do canto
Juntemos agora para escutar o escuro
Da morte do amado – e do que tinha a dizer
E pelo morto perscrutemos os sons do futuro
Pretérito de cinzas do vim a ser
(Estas chamas luminosas que encantam a visão
São coros de nações que a cantarão)
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Então, junto a mim, eu e você
Ó, cantemos a morte que é luz se espalhando
Pois cantá-la é questão de justiça e não
De caridade mesquinha de chorar o morto
Renascido, é calor no meu corpo e no seu
Por isso cantemos e dancemos assim
A morte que é vida na vida e na morte
E deixemos nossas mãos abrigarem o fogo
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Deitando juntos, o mundo é um ninho
De cinzas e de fogo, basta encostar
Meu corpo no seu e a alma se acende,
E no corpo e na alma a morte acenderá
Deixemos nossos corpos iluminarem cidades, deixemos nossas vozes cantarem canções
Sobre os campos da cidade onde corpos são atingidos por fogo sem luz.
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Ó pássaro do fogo, se sua lágrima é impossível sobre a flor já ceifada
Acende o dia com tua chama, ascende os corpos como tochas acesas.
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Aos companheiros da minha alma
Cantou o pássaro negro sereno e altivo
E seu canto atravessa as montanhas e mares sombrios
Enquanto passa, ilumina e desvenda à visão
O mundo e com ele outros mundo possíveis
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À minha frente está um menino caído
Como se não estivesse ou fosse uma árvore tombada
Sua cara para o chão não sei se sorri, e se morto não sei, sob a camisa furada
Os rasgos podem ser furos de balas ou alvos e miras que nos guardam ainda
Do próprio corpo ensanguentando, três homens armados
Protegem a mim e à multidão que se forma
E bate palmas e grita
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Tragam pelo menos nossa bandeira rasgada
Para lembrar que é uma batalha, é uma guerra, sim,
Para lembrar que há uma mãe ou houve uma mãe para chorá-lo
Um irmão ou um amigo, ou o mero corpo em si
Que o esqueleto inda guarda a cor do crime cometido
E nem mortos ou vivos ficarão em paz
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Abrindo nossos olhos, olhando para a cidade
Olhando para a nova flor desatada e colhida
Cantando a canção do pássaro de fogo (vem da noite densa de onde está
Mas é forte e contínua, e é bela para os ouvidos, se reproduz em cada corpo
De boca retorcida, um coro noturno da canção do novo dia
Cobre a cidade, suas ruas e avenidas, como dobrares de sinos que são gritos de guerra)
Colhemos este buquê de corpos floridos,
Todos são você do outro lado do oceano
Então não os deixemos nas sombras noturnas
O arranjemos em nossas mãos, em nossos corações e canto
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Que jamais cesse teu canto fúnebre
Enquanto jazerem flores sobre teu túmulo
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No entanto há mais flores na relva do que mãos nebulosas
E mais canções do pássaro do que da noite esquecida
E os cantos irmãos e camaradas do meu canto
São constelações a iluminarem as sombras da morte
Onde nasce a pimpinela e o pássaro renasce
E as estrelas desvendam os mistérios da noite
São cantos de amor e de almas que se amam
Se derramando pela cidade e trazendo a aurora
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Danilo Augusto
este texto foi originalmente publicado sob o pseudônimo João Pärt