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Canto para a morte de Mandela

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Page 1: Canto para a morte de Mandela

Canto

para a morte

de Mandela

Page 2: Canto para a morte de Mandela

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Page 3: Canto para a morte de Mandela

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Dazzling and tremendous how quick the sunrise would kill me,

If I could not now and always send sunrise out of me.

Walt Whitman

Page 4: Canto para a morte de Mandela

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QUANDO UMA BALA NÃO

SE ALOJAR MAIS

EM NENHUM CORPO

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A última bala não se alojará em um peito

Nem abaterá a lua vermelha sob o céu clareando

Hasteio a bandeira – esperarei aqui seu retorno

Bala eterna, onde se alojaste? Virás trinir em nosso encontro?

Florescerás em nosso peito tuas pétalas de chamas?

Não encontraste nosso amado, alvo entre estrelas

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Mas encontraste cem peitos certamente!

Corpos negros, estendidos são tristes e vermelhos

Mas vivos são estrelas que dançam! Ó a morte matada

A mando! Mão nebulosa, múltipla e concreta,

Se renda à alma com o corpo liberta!

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Longe da minha casa, subindo o morro, ao lado das paredes de argamassa

Jaz um arbusto de corpos, mal crescidos, regados do líquido rubro do coração

São pedras de barro, é uma vala de esgoto aberto perfumando os corpos

Cada corpo um milagre... agora são folhas caídas

Destrinchadas no chão

Os corações tolhidos destas flores negras

Quem os colherá?

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Cante, pássaro do dia!

Curió festivo

Atravessa essa neblina da morte

Faz-nos ouvir tua canção

Canção da garganta sangrenta!

Canção da morte da vida

Dos que morrem e anseiam renascer

Page 9: Canto para a morte de Mandela

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Vivemos na cidade entre cidades

Descendo as ladeiras, subindo as encostas (onde estavam ali há pouco

a bisbilhotar os sangrentos dejetos)

Entre os concretos que cortam o alto e baixo de nosso caminho

Intocados pelo azul puro do mar eles carregam

Os sudários despidos, são pontos computáveis

A serem realocados e descartados na rua doutro cemitério

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Teu caixão deveria ser cravejado de balas!

Noite e dia, sob a chuva das pistolas

Com o desespero das mães órfãs, com os corpos da calçada

Com a marcha em preto e as palavras de ordem:

Uma bala de ouro para cada buraco em cada corpo!

Com mil vozes a se erguerem distantes pelo globo

Com cem mil gritando (um dois três quatro cinco)

Como os dobrares de um sino (cinco seis sete oito)

(Atingidos, eles cantam teu réquiem sombrio

Em tantas portas à meia noite da madrugada!)

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Teu caixão rodará o mundo até nós

Onde você morre dez mil vezes pela bala

Cravada em cada flor deste ramo

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(Não, você não era apenas um

É flor deste ramo inda que dentro do teu caixão

Pois sendo flor é a flor mais bela, Ó beleza da flor do morto!

Isto é um buquê de corpos!

Ó morte, toma teus corpos, toma teus filhos

Agora que tomaste teu filho primeiro

O faz renascer! O descolhe, o planta novamente

O oferece a nossa gente, Ó morte!)

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Ó pimpinela negra e agreste

Me explique a sua força, correria sozinho meio azul do céu

Para dar a mão a você. Não suporto o silêncio, ele me enlouquece

Diga algo a mim, me tome por sua companhia

Nesta noite solitária, busquemos abrigo, nos juntemos

Não parta antes que eu possa falar, fale por mim

Não deixa a noite chegar cedo, não deixa te apagarem

Em domésticas insatisfações, luz passada

Deixada para trás, tomada pela noite e esquecida

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Canta no sertão e na favela!

Ó canto seguro e firme! Me chama pro teu coro

Vou depressa – me junto a você – me apresse

Que eu não me demore, que eu não me detenha

Cante para mim!

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Ó, como louvarei com minha voz aquele a quem amo?

Como me farei o bastante para aquele que partiu?

Como perfumarei com meu corpo o túmulo do meu amado?

Melancolia que se espraie desdo leste-sul

Ouve a voz daquele que não morreu

Esta é minha garganta, e ele canta

Porque nunca em vida ele morreu.

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Não há imagem alguma, ídolo algum

Não há retratos tirados que não venham a ser

Uma granada, um poema ou um canto!

Imagens em teus murais, e álbuns, e planos

Nenhuma é um santinho ornado em tuas mãos!

Desconhece-as a todas, o ouro deste olhos

Precisa ganhar para ver, a vista da cidade

Correndo pelas avenidas, estreitando nas vielas,

Como os vasos de um corpo ou um sistema de nuvens

Que nunca nos ensinam o que nos ensinam na terra

Que há vidas que prosseguem e que há vidas que não

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Olha! Corpo e sangue! Este sangue!

Poderosos membros, pele esmaltada, olhos oceânicos

O peito aberto e limpo de mulher e homem, de sul e norte

Olha! Um novo dia retorna, é altivo e sereno

Não há sopros ressentidos em sua aurora escarlate

Mas é firme e duro e imensurável

Aproxima-te, aurora esperada! A hora realizada,

Não traz nada de milagres, mas pura ação que são luzes de estrelas

Ilumina minha cidade, a mim e a meus companheiros

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Continua a florir flores sobre o túmulo

Flori e se espraie para além da sua terra

Ilimitados pelos continentes versejam teus ramos

Cobre teus irmãos, Ó pimpinela!

Desarranja este buquê de corpos tingidos

De desesperança e de breu e de mortes injustas

Espalha tua alma de um canto florido

Orna de negras esperanças luminosas

Flores negras, ônix, ébano, manto das estrelas

Maravilhosa flor que viceja sobre um túmulo!

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Agora eu desafio o dia a observá-lo

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São planícies cinzas, são montanhas temerosas sobre o menino pedinte contando suas

moedas

No grande corpo bipartido da minha terra, entre o alphaville e a favela

São infinitas casas separadas por muros de guerras, cercas desumanas, a beleza da miséria

São as ondas dos morros se quebrando sobre as altíssimas janelas

São homens e mulheres revoltos a navegá-las

De dia à noite o trabalho se estende, domésticos estrangeiros voltando para casa

Esbranquiçam os bairros onde seu suor se despende e acendem constelações de

tijolos e pedras

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Fulgura a cidade como uma chama acessa! Faísca da terra, ilumina a noite

Que não haja para a morte o abrigo de uma sombra,

Faz o dia manter teu gosto de fumaça, faz o dia encarar teus olhos acesos

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Pois o canto da morte é a morte contra si

E o pensamento do morto é luz no mistério

Iluminado estou pela morte e pelo canto! Essa luz não vem de mim

Olho para a luz onde a morte se revela, me toma na mão e me leva consigo

Adentramos o país e vamos além,

Onde a miséria rouba à morte o beijo de deus

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Vejo um ramo de uma flor ou fantasma de um ramo

Ouço o canto do pássaro que é vento soprando

Cantar a quem amo é igual ao desespero!

Das terras arrasadas, dos desertos

A vista engana o coração sincero

Até ser liberta pelo canto do pássaro negro

Pássaro diurno, curió ou fênix

Liberta meu coração com teu canto de brasa

Faz minha voz irmã da tua canção

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Canção da fênix

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Força, pássaro futuro e passado

Continua teu percurso de ida e retorno

Canta enquanto cinza, enquanto pó ou lembrança

Agora e para sempre, pássaro do canto

Juntemos agora para escutar o escuro

Da morte do amado – e do que tinha a dizer

E pelo morto perscrutemos os sons do futuro

Pretérito de cinzas do vim a ser

(Estas chamas luminosas que encantam a visão

São coros de nações que a cantarão)

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Então, junto a mim, eu e você

Ó, cantemos a morte que é luz se espalhando

Pois cantá-la é questão de justiça e não

De caridade mesquinha de chorar o morto

Renascido, é calor no meu corpo e no seu

Por isso cantemos e dancemos assim

A morte que é vida na vida e na morte

E deixemos nossas mãos abrigarem o fogo

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Deitando juntos, o mundo é um ninho

De cinzas e de fogo, basta encostar

Meu corpo no seu e a alma se acende,

E no corpo e na alma a morte acenderá

Deixemos nossos corpos iluminarem cidades, deixemos nossas vozes cantarem canções

Sobre os campos da cidade onde corpos são atingidos por fogo sem luz.

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Ó pássaro do fogo, se sua lágrima é impossível sobre a flor já ceifada

Acende o dia com tua chama, ascende os corpos como tochas acesas.

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Aos companheiros da minha alma

Cantou o pássaro negro sereno e altivo

E seu canto atravessa as montanhas e mares sombrios

Enquanto passa, ilumina e desvenda à visão

O mundo e com ele outros mundo possíveis

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À minha frente está um menino caído

Como se não estivesse ou fosse uma árvore tombada

Sua cara para o chão não sei se sorri, e se morto não sei, sob a camisa furada

Os rasgos podem ser furos de balas ou alvos e miras que nos guardam ainda

Do próprio corpo ensanguentando, três homens armados

Protegem a mim e à multidão que se forma

E bate palmas e grita

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Tragam pelo menos nossa bandeira rasgada

Para lembrar que é uma batalha, é uma guerra, sim,

Para lembrar que há uma mãe ou houve uma mãe para chorá-lo

Um irmão ou um amigo, ou o mero corpo em si

Que o esqueleto inda guarda a cor do crime cometido

E nem mortos ou vivos ficarão em paz

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Abrindo nossos olhos, olhando para a cidade

Olhando para a nova flor desatada e colhida

Cantando a canção do pássaro de fogo (vem da noite densa de onde está

Mas é forte e contínua, e é bela para os ouvidos, se reproduz em cada corpo

De boca retorcida, um coro noturno da canção do novo dia

Cobre a cidade, suas ruas e avenidas, como dobrares de sinos que são gritos de guerra)

Colhemos este buquê de corpos floridos,

Todos são você do outro lado do oceano

Então não os deixemos nas sombras noturnas

O arranjemos em nossas mãos, em nossos corações e canto

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Que jamais cesse teu canto fúnebre

Enquanto jazerem flores sobre teu túmulo

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No entanto há mais flores na relva do que mãos nebulosas

E mais canções do pássaro do que da noite esquecida

E os cantos irmãos e camaradas do meu canto

São constelações a iluminarem as sombras da morte

Onde nasce a pimpinela e o pássaro renasce

E as estrelas desvendam os mistérios da noite

São cantos de amor e de almas que se amam

Se derramando pela cidade e trazendo a aurora

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Danilo Augusto

este texto foi originalmente publicado sob o pseudônimo João Pärt