canibalismo joao cezar

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http://canibalismoeantropofagia.blogspot.com/p/os-canibais-de-montaigne-eram- franceses.html América Latina, Canibalismo e Descolonização Cultural Curso de Mestrado em Teoria da Literatura e Literatura Comparada - IL/UERJ - A invenção do canibal. O canibalismo como tropo fundamental na construção da identidade latino-americana. O canibalismo como resistência cultural: antropofagia, carnavalização, sincretismo, transculturação, tradução cultural... O Tropicalismo e a releitura antropofágica da cultura brasileira. Os canibais de Montaigne eram franceses, João Cezar de Castro Rocha. A cena cultural brasileira contemporânea certamente encantaria a Michel de Montaigne, não fosse uma circunstância impertinente. Por motivos alheios a sua vontade, o nobre francês deixou de comparecer a eventos artísticos ou de abrir livros em 1592. Caso contrário, leria com prazer o fascinante Portinari devora Hans Staden, organizado por Mary Lou Paris e Ricardo Ohtake, e o romance Meu querido canibal, de Antonio Torres. De igual modo, iria deliciar-se com o filme de Luiz Alberto Pereira, Hans Staden. Encontraria tempo para assistir à encenação de Bugiaria, de Moacir Chaves, e à apresentação de Anchietas e Guaixarás, na concepção de José Da Costa e Nanci de Freitas, do Núcleo de Investigação Teatral da UERJ. Montaigne também teria visitado a XXIX Bienal de São Paulo, realizada em 1998 e organizada em torno do conceito de antropofagia. A antropofagia é o prato do dia, e justamente esse conceito une o ensaísta francês à cultura brasileira. Com a publicação dos Ensaios, em 1580, Montaigne terminou inscrevendo seu nome na história intelectual de um país que, a bem da verdade, na época sequer existia. No Livro I, o capítulo XXXI registra as reflexões do francês inspiradas pelo encontro com indígenas capturados no litoral brasileiro. Indígenas que provocavam horror aos “civilizados” europeus pela ocorrência de práticas canibais. Em 1557, o tema incendiara a imaginação européia com a publicação da obra de Hans Staden, História verídica e descrição de uma terra de selvagens, nus e cruéis comedores de seres humanos, situada no Novo Mundo, desconhecida antes e depois de Jesus Cristo... O título é tão longo quanto significativo: a prática do canibalismo revelaria a barbárie dos costumes dos habitantes do Novo Mundo. Para erradicá-la, a

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Page 1: Canibalismo Joao Cezar

http://canibalismoeantropofagia.blogspot.com/p/os-canibais-de-montaigne-eram-franceses.html

América Latina, Canibalismo e Descolonização Cultural Curso de Mestrado em Teoria da Literatura e Literatura Comparada - IL/UERJ - A invenção do canibal. O canibalismo como tropo fundamental na construção da identidade latino-americana. O canibalismo como resistência cultural: antropofagia, carnavalização, sincretismo, transculturação, tradução cultural... O Tropicalismo e a releitura antropofágica da cultura brasileira.

Os canibais de Montaigne eram franceses, João Cezar de Castro Rocha. A cena cultural brasileira contemporânea certamente encantaria a Michel de Montaigne, não fosse uma circunstância impertinente. Por motivos alheios a sua vontade, o nobre francês deixou de comparecer a eventos artísticos ou de abrir livros em 1592. Caso contrário, leria com prazer o fascinante Portinari devora Hans Staden, organizado por Mary Lou Paris e Ricardo Ohtake, e o romance Meu querido canibal, de Antonio Torres. De igual modo, iria deliciar-se com o filme de Luiz Alberto Pereira, Hans Staden. Encontraria tempo para assistir à encenação de Bugiaria, de Moacir Chaves, e à apresentação de Anchietas e Guaixarás, na concepção de José Da Costa e Nanci de Freitas, do Núcleo de Investigação Teatral da UERJ. Montaigne também teria visitado a XXIX Bienal de São Paulo, realizada em 1998 e organizada em torno do conceito de antropofagia. A antropofagia é o prato do dia, e justamente esse conceito une o ensaísta francês à cultura brasileira.

Com a publicação dos Ensaios, em 1580, Montaigne terminou inscrevendo seu nome na história intelectual de um país que, a bem da verdade, na época sequer existia. No Livro I, o capítulo XXXI registra as reflexões do francês inspiradas pelo encontro com indígenas capturados no litoral brasileiro. Indígenas que provocavam horror aos “civilizados” europeus pela ocorrência de práticas canibais. Em 1557, o tema incendiara a imaginação européia com a publicação da obra de Hans Staden, História verídica e descrição de uma terra de selvagens, nus e cruéis comedores de seres humanos, situada no Novo Mundo, desconhecida antes e depois de Jesus Cristo... O título é tão longo quanto significativo: a prática do canibalismo revelaria a barbárie dos costumes dos habitantes do Novo Mundo. Para erradicá-la, a catequese se fazia necessária, pois a condenação do canibalismo justificava a colonização. Nenhuma dúvida deveria pairar sobre o raciocínio, tão evidente quanto o interesse nada humanitário sobre as terras e riquezas das Américas.No ensaio “Des Cannibales”, Montaigne propôs uma perspectiva muito diferente e que não envergonharia nenhuma receita pós-modernista: “cada um chama barbárie aquilo que não é de seu costume; de fato, parece que não temos outra visão da verdade e da razão a não ser o exemplo e a idéia das opiniões e hábitos do país ao qual pertencemos”. Com base nesse princípio, Montaigne descobriu saborosos paralelos entre a “barbárie” tupinambá e a “civilização” européia, intuindo que os bárbaros talvez sejam os próprios europeus... O entusiasmo de muitos ao vislumbrar aí o berço da antropologia moderna é contagiante; pois o contato com o outro leva ao questionamento da civilização européia. Oswald de Andrade, por exemplo, rendeu-se à retórica do francês, esclarecendo a genealogia de seu célebre Manifesto antropófago da seguinte maneira: “Filiação. O contato com o Brasil

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caraíba. Où Villegaignon print terre. Montaigne (...)”. Estudos recentes, porém, começam a relativizar a imagem do Montaigne campeão avant la lettre do relativismo cultural. “Des Cannibales” pode ser mais bem apreciado no contexto das guerras religiosas que agitaram o século XVI. Na segunda metade desse século, o calvinismo principiou a ser adotado na França. As tensões entre católicos e protestantes logo seriam traduzidas em disputas políticas. No reinado de Carlos IX (1560-1574), mais precisamente na noite de 24 de agosto de 1572, nada menos que 30 mil protestantes foram executados, num terrível massacre que ficou conhecido como a Noite de São Bartolomeu. As perseguições continuaram, e o reinado de Henrique III (1584-1589) transcorreu dominado por guerras religiosas. O rei foi assassinado em 1589 e, somente em 1598, durante o governo de Henrique IV, promulgou-se o Edito de Nantes, que, de um lado, estabelecia a liberdade de culto e, de outro, assegurava aos protestantes o acesso a cargos públicos. A segunda metade do século XVI, portanto, foi marcada pela disputa entre católicos e protestantes – é como se os franceses se devorassem numa guerra civil sem precedentes em sua história.Na verdade, ao escrever sobre o canibalismo tupinambá, Montaigne estava bem mais preocupado com a construção da unidade entre católicos e protestantes do que com a valorização da alteridade. Além disso, pelo menos dois autores franceses já haviam tratado do tema: um era católico e o outro protestante. Nessa disputa, o canibal surge como símbolo do limite entre o humano e o não-humano. (Daí o retorno triunfal da imagem do canibalismo nos anos seguintes à Primeira Guerra Mundial, já que o caráter fratricida do conflito pôs em xeque a própria noção de humanidade). Em geral, quando recorrem à imagem do canibal, os autores pouco se importam com qualquer tipo de sensibilidade em relação ao “outro”; mas pretendem empregar a imagem como arma retórica. Transformado em tropo, o canibal é devidamente condimentado segundo os interesses ideológicos do momento. Montaigne não fugiu à regra, buscando criar uma terceira via na batalha verbal de André Thevet e Jean de Léry. Batalha que principiou no litoral brasileiro.Em 1555, no âmbito das tensões religiosas, Nicolas Durand de Villegagnon concebeu uma ousada utopia e embarcou em direção ao Rio de Janeiro, no intuito de fundar a França Antártica. Um refúgio para franceses perseguidos por motivos religiosos, a colônia francesa no Novo Mundo abrigaria os descontentes com a situação no reino, desenvolvendo um espaço ecumênico, onde idealmente ninguém seria punido por suas convicções. O projeto foi um completo malogro, a começar por Villegagnon, que se revelou um perseguidor cruel de quem discordasse de suas arbitrariedades. Tanto o católico Thevet quanto o protestante Léry estiveram no Rio de Janeiro e escreveram versões opostas sobre os costumes tupinambás, sobretudo no tocante ao canibalismo. “Des Cannibales” também representa uma resposta à polêmica dos dois escritores. Por um breve período, André Thevet reuniu-se a Villegagnon no Rio de Janeiro. De volta à França, pintou um quadro sombrio dos indígenas que encontrara. Em Singularidades da França Antártica, obra publicada em 1557, não hesitou em comparar os tupinambás a leões ferozes que se alimentavam ordinariamente de carne humana. Em sua Cosmografia universal, de 1575, no segundo capítulo do Livro XXII, chegou ao requinte de determinar o território que delimitaria o “país dos Canibais”: última fronteira entre o homem e as bestas. Em 1557, Jean de Léry chegou ao Rio de Janeiro, onde permaneceu mais tempo do que seu rival católico e publicou em 1578 o relato de suas aventuras, História duma viagem feita à terra do Brasil – “Des Cannibales” foi publicado somente dois anos depois e sua composição evidencia a leitura da obra de Léry. O autor protestante apresentou um retrato diferente dos tupinambás, muito mais simpático e compreensivo do que o pintado pelo católico Thevet. Porém, ao fazê-lo, Léry pretendia lançar um devastador ataque ao Catolicismo em geral e aos católicos franceses em particular.

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Em relação às guerras religiosas, Léry é implacável. Ora, os tupinambás comiam exclusivamente a carne de seus inimigos, portanto, seu canibalismo era exógeno. Mas o que dizer dos católicos franceses que massacravam os próprios franceses, embora protestantes? Esse seria um tipo de canibalismo muito mais desprezível, pois endógeno. Segundo Léry, na malfadada Noite de São Bartolomeu, pedaços dos corpos de protestantes foram vendidos como se fossem peças de carne num açougue. E pelo menos em Auxerre, um coração humano foi arrancado do corpo de um protestante, exposto em praça pública, adequadamente assado e avidamente devorado por uma multidão de católicos enfurecidos. Nesse cenário assustador, benditos sejam os tupinambás, que devoravam a carne dos inimigos para adquirir sua virtude e valentia, valorizando-os, portanto. Os franceses, por sua vez, alimentam-se da carne de seus irmãos, movidos por invencível ódio e desprezo.Em relação ao Catolicismo, bastava para os protestantes associar o sacramento da Eucaristia ao canibalismo. Não é verdade que, ao ingerirem a hóstia, os católicos acreditam comungar da carne e do sangue de Jesus Cristo? Costume ainda mais bárbaro do que o canibalismo endógeno dos católicos franceses, a doutrina cristã pareceria inexoravelmente atravessada por distintos graus de canibalismo. Em seu grau mais elevado, ou seja, na Eucaristia, o católico excede o ritual tupinambá, pois, ao mastigar a hóstia, o fiel devora a Deus. Mais do uma religião antropófaga, o Catolicismo seria uma heresia teófaga. Eis o estado da discussão quando Montaigne publicou seus Ensaios e neles reservou um lugar especial para “Des Cannibales”. Aparentemente, os protestantes haviam se apossado do tropo do canibal, privando os católicos dessa iguaria retórica. Com notável sutileza, Montaigne desmontou a argumentação de Léry, sem no entanto identificar-se integralmente com a posição de Thevet. A fórmula “bom francês/bom católico” pertencia ao passado, e o autor dos Ensaios pensava no futuro da nação, que não poderia mais ignorar os protestantes, devendo, pelo contrário, assimilá-los.

Montaigne partiu da descrição do ritual tupinambá e, com base em canção anotada por Thevet, concentrou-se no momento em que o inimigo deve afirmar com arrogância e bravura aos que o devorarão: “Esses músculos, essa carne e essas veias são as vossas, pobres loucos que sois; não reconheceis que a substância desses membros de vossos ancestrais ainda permanece neles; saboreai-os, pois sentireis o gosto de vossa própria carne”. Uma vez que o inimigo se banqueteara com a carne dos tupinambás, esses, ao ingerirem sua carne, terminavam por comer as entranhas de seus antepassados. Com esse gesto, Montaigne invalidou a distinção proposta por Léry entre canibalismo endógeno e exógeno: no rodízio entre vencedores e vencidos, todos acabam provando da própria carne. Ora, se a rigidez da divisão entre práticas endógenas e exógenas de canibalismo era falsa, por que não denunciar a falsidade da rígida cisão entre católicos e protestantes? A guerra civil é condenável menos pela diferença religiosa do que pela ameaça à unidade nacional. Católicos e protestantes franceses são, em última instância, franceses. A argúcia de Montaigne consiste em trazer a condição nacional para o centro do debate. Na verdade, “Des Cannibales” não anunciou a antropologia moderna, mas, ao propor a centralidade da nação, antecipou o do Edito de Nantes e o fortalecimento do futuro Estado francês. Os canibais podem ser exógenos, endógenos, católicos ou protestantes; pois, desde que sejam franceses, saberão reconhecer sua fraternidade. Devidamente devorados, os canibais dos Ensaios são personagens bem comportados que legitimam a retórica nacionalista de Montaigne.Por fim, nos espetáculos, filmes e livros que mencionei ocorre uma concentração em torno do período histórico marcado pelo debate que relaciona o canibalismo tupinambá às guerras religiosas. Ainda que não discutam explicitamente esse comércio, os escritores, encenadores e cineastas elaboraram provocadoras associações entre canibalismo e catequese (Anchietas e Guaixarás), canibalismo e

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Santa Inquisição (Bugiaria), canibalismo e devoração da memória indígena (Meu querido canibal), canibalismo e choque com a visão cristã (Hans Staden), canibalismo e reapropriação modernista (Portinari devora Hans Staden), canibalismo e história da arte (XXIX Bienal de São Paulo). Montaigne provavelmente escreveria novo ensaio se estivesse exposto à cena contemporânea, indagando a razão da longevidade do tropo do canibal. E talvez concluísse que sua recorrência é inevitável, pois enquanto a sociedade globalizada produzir inúmeros “outros”, a questão dos limites entre o humano e o não-humano continuará sendo atual.