candido antonio o observador literario

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O OBSERVADOR LITERÁRIO l

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Page 1: CANDIDO Antonio O Observador Literario

O OBSERVADOR LITERÁRIO

l

Page 2: CANDIDO Antonio O Observador Literario

ANTÔNIO CÂNDIDO

O OBSERVADOR LITERÁRIO

3a edição, revista e ampliada pelo autor

* <

Ouro sobre Azul I Rio de Janeiro 2004

Page 3: CANDIDO Antonio O Observador Literario

A Carla de Queiroz, Marlyse Meyer, Sylvia Barbosa Ferraz

- o vínculo das Letras

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ÍNDICE

NOTA PRÉVIA 9

PRIMEIRA PARTE

Entre pastores 13

A vida em resumo 21

Música e música 27

A compreensão da realidade 33

SEGUNDA PARTE

As rosas e o tempo 41

La Figlia che Piange 51

Notas sobre Ezra Pound 63

Uma dimensão entre outras 69

O portador 79

TERCEIRA PARTE

Lembrança de Mário de Andrade 91

Oswald viajante 97

Vinícius 103

Ungaretti em São Paulo 107

As cartas do voluntário 111

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N O T A P R É V I A

A 2 a edição de O observador literário diferia da Ia por ter três tex­

tos a mais e dois a menos. Estes eram: TERESINA, desenvolvido mais

tarde num ensaio longo, e OSWALD VIAJANTE, que foi para o livro

Vários escritos e volta agora ao seu lugar nesta 3a edição, na qual con­

servei os três acrescentados à 2a: NOTAS SOBRE EZRA POUND, VINÍCIUS

E UNGARETTI EM SÃO PAULO. Depois de cada escrito estão os dados

sobre a sua publicação original.

Este livro foi organizado na Faculdade de Filosofia, Ciências e

Letras de Assis, atualmente parte da Universidade Estadual Paulista

Júlio de Mesquita Filho, onde ensinei Literatura Brasileira de mea­

dos de 1958 ao fim de 1960. Quem leu então os originais e fez

comentários animadores foi o caro colega e amigo Cassiano Nunes,

a quem renovo os agradecimentos. Agradeço também aos colegas

Carlos Erivany Fantinati, José Aluysio Reis de Andrade e José Castilho

Marques Neto, todos da referida universidade, que mais tarde tive­

ram a idéia de compor um volume com o meu primeiro livro, este,

uma entrevista e um discurso ligados à Faculdade de Assis, com o

título: Brigada ligeira e outros escritos, Editora UNESP, 1992. Os dois

livros aparecem agora separados, como representantes de momentos

bem diferentes do meu trabalho crítico.

ANTÔNIO CÂNDIDO DE MELLO E SOUZA I São Paulo I maio de 2004

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PRIMEIRA PARTE

.

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ENTRE PASTORES

U m fato curioso é a relativa inexistência de Tomás Antônio Gonzaga como poeta antes de vir para Vila Rica. Não há por enquanto vestígio ponderável da sua vida literária ini­

cial, - seja traço de ligação com os autores do tempo, seja certeza de produção regular. Nem mesmo segurança em delimitar o que na sua obra, salvo algumas peças, corresponde àquela fase. Teria começado a escrever com abundância apenas aos quarenta, ou quase, e já com mão de mestre? Pouco provável; mas doutro lado é indiscutível que a maioria absoluta dos seus versos conhecidos pertence à estadia nas Minas e à prisão no Rio de Janeiro.

Enquanto algum investigador feliz ou arguto não destrinçar o caso - como as pesquisas admiráveis de Rodrigues Lapa destrin-çaram a fase moçambicana da sua vida, - resta arquitetar hipóteses. Por exemplo: que havia produzido antes de 1782 uma obra exce­lente, ou quando menos promissora, perdida com outros papéis. Mas então, como ter permanecido obscuro? Sabemos que não era necessário publicar para ter fama na estreita Lisboa de então; as cópias circulavam, recitava-se à grande, os autores logo se agrega­vam a grupos ou sociedades literárias, garantindo a publicidade. Corrêa Garçao foi célebre antes da primeira edição, póstuma, de sua obra; a de Antônio Diniz da Cruz e Silva também só veio a lume depois da morte. Isso não seria, pois, impedimento maior. Mais difí­cil é imaginar que um homem seguro de si, dotado como ele de per­sonalidade forte e afirmativa, ocultasse os versos e fugisse aos con­frades por timidez.

Interessante é a suposição já levantada por estudiosos: em Vila Rica, Tomás Antônio aproveitou grande número de poemas anterio­res, arranjando-os em torno do nome de Marília, que, substituindo outras pastoras, é por isso ora loura, ora morena. Neste caso o poeta

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não seria novato, mas artífice experimentado, e o ciclo de Marília apenas em parte foi criado na terra mineira.

A idéia é engenhosa e talvez justa em parte. Não resolve a dificul­dade acima proposta, da obscuridade completa na Mãe-Pátria; mas ajuda a explicar o brilho fecundo e aparentemente subitâneo. Não esqueçamos, porém, que a inconfundível fase da prisão é o melhor conjunto da sua lira; e os poemas que a compõem se aproximam pelo tom e a fatura dos de metro longo da primeira parte. Postos lado a lado, distinguem-se das peças atribuídas à fase portuguesa, bem como, em geral, das peças de metro curto e corte anacreôntico, que aliás ocorrem pouco na fase da prisão. Pode-se então imaginar que o suposto trabalho de ajuste tenha visado principalmente a tais poe­mas, saltitantes e amaneirados; e que a parte mais nobre e sólida, téc­nica e humanamente falando, é mesmo constituída de versos conce­bidos e executados no Brasil, sob a inspiração do amor de Dorotéia de Seixas e o estímulo intelectual de Cláudio Manuel da Costa.

Assim, o poeta anterior era de fato aprendiz, apesar de entrado nos trinta anos; e não teria tido repercussão porque escrevia, sem grande flama, peças de circunstância, odezinhas convencionais e frí-volas, a algumas das quais imprimiu na revisão sentimento real e molde apurado. A hipótese talvez ganhe reforço no estudo de três versões da mesma lira: a n° 5 da terceira parte; a n° 1 da primeira parte; a n° 15 da segunda (numeração conforme a edição Rodrigues Lapa nos Clássicos Sá da Costa, a melhor até o momento quanto à distribuição e numeração das liras).

A primeira é sem dúvida mais antiga, e bem inferior às outras, precedendo com certeza os amores de Marília:

Eu não sou, minha Nise, pegureiro, que viva de guardar alheio gado; nem sou pastor grosseiro, dos frios gelos e do sol queimado, que veste as pardas lãs do seu cordeiro.

Graças, ó Nise bela, graças à minha estrela!

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15 ENTRE PASTORES

Esta estrofe inicial, aliás a melhor, propõe o assunto do poema: em imagens vazadas na vida pastoral o poeta afirma que, embora não seja rico, é alguém; possui com que viver, ocupa cargo elevado e tem virtudes mais valiosas que o dinheiro. Quem conhece a Marília de Dirceu sabe que aí estão alguns dos seus motivos condutores; alguns dos modos por que esse homem altivo aproveitava os lugares-co-muns da poesia clássica para lembrar a cada passo a própria emi­nência de caráter e espírito.

A segunda versão retoma e desenvolve a primeira, da qual conser­va a técnica do estribilho; mas é endereçada a Marília e vibra um extraordinário encantamento amoroso, a que devemos alguns ver­sos belíssimos, superando de longe a versão que arranjou. Passadas as duas estrofes iniciais - onde o quadro da sua pessoa é delineado com o brio costumeiro - a tônica se transfere para o louvor da na­morada. E só mesmo um neoclássico poderia atingir a beleza através da estrita simplicidade, com o vocabulário da vida corrente:

Eu, Marília, não sou algum vaqueiro, que viva de guardar alheio gado; de tosco trato, de expressões grosseiro, dos frios gelos e dos sóis queimado. Tenho próprio casal e nele assisto; dá-me vinho, legume, fruta, azeite; das brancas ovelhinhas tiro o leite, e mais as finas lãs de que me visto.

Graças,:Marília bela, graças à minha estrela!

Eu vi o meu semblante numa fonte: dos anos inda não está cortado; os pastores que habitam este monte respeitam o poder do meu cajado. Com tal destreza toco a sanfoninha, que inveja até me tem o próprio Alceste: ao som dela concerto a voz celeste

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nem canto letra que não seja minha. Graças, Marília bela, graças à minha estrela!

Este começo de louvação pessoal, ressaltando a boa forma física, a posição social, a capacidade poética, desenvolve a formulação da lira anterior. Diz Tomás Brandão no seu valioso livro (Marília de Dirceu) que, segundo uma tradição familiar, esta foi composta para replicar aos parentes de Dorotéia, cuja prosápia o ferira. É possível que en­globasse a situação presente na retomada do poema inicial.

A estrofe seguinte é por assim dizer rotativa, operando a passagem do poeta à namorada, a quem oferece os "tantos dotes da ventura" e celebra em mais quatro estrofes, onde surgem versos de alto teor, como este:

Papoula ou rosa delicada e fina.

A terceira versão foi escrita no calabouço da ilha das Cobras; é a mais perfeita, sendo a mais comovedora. O verso, igualmente puro, é austero; desaparece o estribilho votivo, que dava um ar de frivoli-dade, e a situação de esperança amorosa é retomada como amargu­ra serena, que deixa entrever no segundo plano a resignação ante a perda das ilusões.

Eu, Marília, não fui nenhum vaqueiro, fui honrado pastor da tua aldeia; vestia finas lãs e tinha sempre a minha choça do preciso cheia. Tiraram-me o casal e o manso gado, nem tenho, a que me encoste, um só cajado.

Esta passagem dramática do presente ao pretérito transfigura toda a parte de alusão amorosa, deslocada agora da corte e da esperança para a consciência angustiada da privação. Talvez por isso mesmo seja ela do mais elevado nível, ganhando a força quase augusta que

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reveste, na miséria, a evocação do tempo feliz - como no QUINTO

CANTO do Inferno. Na evocação do idílio campestre Gonzaga obtém alguns dos versos mais bonitos e despojados da poesia luso-brasi-leira, mostrando a sua capacidade de criar o belo sem sair de uma naturalidade que se diria familiar:

Propunha-me dormir no teu regaço as quentes horas da comprida sesta, escrever teus louvores nos olmeiros, toucar-te de papoulas na floresta.

E adiante:

Se não tivermos lãs e peles finas, podem mui bem cobrir as carnes nossas as peles dos cordeiros mal curtidas, e os panos feitos com as lãs mais grossas.

Considerando as três versões, tão separadas pelo tempo e as con­dições da vida, somos levados a pensar que, se recorreu três vezes a este tipo de imagens e argumentos poéticos, foi porque eles corres­pondiam, como sugeri, a algo profundo na sua personalidade. Mas não se deve pensar que os inventou, porque na verdade eles cons­tituem temas habituais na tradição bucólica, voltada justamente para as virtudes da áurea mediania e o disfarce do sentimento pessoal pelo molde genérico da condição rústica.

É mesmo possível apontar, bem perto de Gonzaga, uma fonte eventual de inspiração para a sua primeira lira, que seria, no caso, não fruto de experiência vivida, mas uma espécie de exercício, talvez estimulado por situação real e mais tarde aproveitado para descre­ver o seu sentimento de valia no caso amoroso com a filha dos orgu­lhosos Ferrões de Vila Rica. Refiro-me a um soneto de Pedro Antônio Corrêa Garção, de número 61 na edição Azevedo Costa:

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Não cobre vastos campos o meu gado, O maioral não sou da nossa aldeia, Do meu trabalho como, mas, Dircéia, Ainda que sou pobre vivo honrado.

No jogo da carreira e do cajado Até o destro Algano me receia, Qual loura espiga de grãozinhos cheia, Me alegra ver teu rosto delicado.

Se queres minha ser, fala a verdade, Não vestirás as peles mais vistosas, As finas lãs tecidas na cidade.

Trajarás da que eu trajo as mais mimosas, Fa-las-á de mais preço a sã vontade Com que quisera dar-te as mais custosas.

É mais ou menos o avesso da lira de Gonzaga, e há um elemento de humildade que contrasta com a sua altiva jactância. Mas há muito de comum com as suas duas primeiras versões, notadamente o torneio estilístico inicial e os próprios conceitos, ou ainda a invocação comparativa da destreza (aqui física, lá poética). Isto, e mais o faro, que vale ou não mas não se pode justificar, me levam a pensar que Tomás Antônio teria partido do soneto de Garção, - para fazer, seja dito, obra infinitamente melhor - embora a recorrência dos tópicos na literatura pastoral permita supor e quem sabe localizar alguma fonte anterior em que ambos beberam.

Resta uma questão: este soneto não veio nas obras de Garção em 1778; foi publicado pela primeira vez por Azevedo Castro na sua bela edição romana de 1888, em cuja introdução lemos que era iné­dito, tendo sido tomado a uma coletânea manuscrita do cônego Figueiredo, que o recebera, com outros, da própria viúva do poeta.

Sendo assim, Gonzaga só o teria conhecido por contacto direto (que não sabemos se ocorreu), e mais provavelmente por cópia ou

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19 ENTRE PASTORES

recitação de terceiro, embora Garção - informa Azevedo Castro -fosse "avaro na divulgação das composições entre amigos e admi­radores do seu gênio". Caso esta suposição seja inaceitável, fica de pé a da fonte comum, para mostrar mais uma vez que em literatura o bem de um é bem de todos, e que o gênio brilha tanto na estrada nova quanto nos caminhos mais pisados'.

Suplemento Literário d'O Estado de S. Paulo I 1958

1 I Nota da 2a edição: "Imitação direta da écloga II de Virgílio e indireta dos idílios VI

e XI de Teócrito", diz Alberto Faria em Marília de Dirceu (Seleção das liras autênticas),

Rio: Anuário do Brasil, 1922, p.l 19, referindo-se à lira 1 da parte I.

A pressuposta fonte comum seria pois a famosa écloga em que Coridon procura cap­

tar o belo Alexis com ofertas e alegações do próprio valor; e que funcionaria como

modelo inicial. Mas não há certamente imitação direta, e sim homologia da idéia geral

como ponto de partida e raros traços comuns, ao modo dos que aparecem na segun­

da estrofe da lira. Gonzaga fez obra muito pessoal, bem diferente como imagens,

encaminhamento e conclusão.

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A VIDA EM RESUMO

P or definição, o soneto deveria sempre sugerir um mundo fechado, cerceado pelos quatorze versos sem saída e o blo­queio da chave de ouro. Mas o fato é que alguns parecem

menos auto-suficientes, prolongando-se pelo eco dos seus proble­mas ou da sua sonoridade.

O soneto camoniano, por exemplo, apesar do escorço inevitável, é mais aberto que o parnasiano: talvez porque nele predomine o caráter dialético, e a forma expositiva dê lugar a certos desenvolvimentos lógicos sob os quais sentimos um pensamento que se desdobra, uma sensibilidade que não se aplaca na chave de ouro, multiplicando-se em ondas sucessivas no universo da natureza e do espírito.

Seria pitoresco estabelecer alguns esquemas relativamente arbi­trários, embora úteis, dizendo que na língua portuguesa o soneto passou por três momentos ideais e típicos: o da dialética mais ou menos pura; o da dialética mais pesadamente lastreada de realidade; o da realidade representada com predomínio sobre a dialética. Ou seja, respectivamente: o soneto aberto, o soneto entreaberto (ou entrefechado), o soneto fechado, - cujos representantes mais típicos poderiam ser (excluído qualquer intuito de comparação valorativa) Camões, Bocáge e Francisca Júlia.

No caso, o Parnasianismo representou uma função importante, e já se pôde dizer, em relação à literatura francesa, que o seu feito mais original, único realmente típico, é o soneto de Heredia, - de quem foi seguidora estrita a nossa poetisa.

No Parnasianismo brasileiro o soneto adquiriu um caráter pro­priamente plástico, que ressaltou a sua capacidade de incluir, ou abranger. Daí uma estrutura que se poderia chamar de quadro, -estrutura de obra plástica fechando em si mesma um universo com­pleto. O soneto pictórico dos parnasianos (como os de Heredia)

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chega de fato às conseqüências últimas e de certo modo naturais, ao encerrar hermeticamente um pedaço do mundo ou da vida na mi­niatura dos quatorze versos, como certos pintores encerravam no reflexo polido dum pequeno espelho, ou num caixilho de janela, tre­chos autônomos do exterior. Em conseqüência impôs-se uma pre­cisão estrita, um rigor em cada palavra, já que todas desempenham função indispensável de sonoridade ou sentido. Vejam-se, a propósi­to, os escrúpulos de Alberto Faria, em Acendalhas, sobre a tradução dessa jóia de poesia plástica e descritiva dos Troféus, SUR LE PONT-

VlEUX.

Olavo Bilac talvez seja o mais variado dos parnasianos no campo do soneto, recapitulando as suas possibilidades desde a marcha dia­lética até o cromo, desde a estrutura aberta até os pequenos esque­mas cerrados. Mas de modo geral há nele inclinação pelo cromo e o esquema, e embora segundo Péricles Eugênio da Silva Ramos a sua poética seja fortemente bocagiana, há nela as características básicas do Parnasianismo. Posto - em termos da classificação sugerida acima - entre o soneto entreaberto de Bocage e o soneto fechado de Francisca Júlia, na maioria das vezes o seu tem uma ressonância e um alcance humano reduzidos pela exigüidade do gênero. Em alguns casos a beleza algo estrita, embora rutilante, é devida à brevi­dade lapidar com que sabe reunir uma grande soma de elementos.

Veja-se SAHARA VITAE, nas Sarças de Fogo, diretamente inspirado, aliás, em La Caravane, do seu mestre Théophile Gautier:

Lá vão eles, lá vão! O céu se arqueia Como um teto de bronze infindo e quente, E o sol fuzila e, fuzilando, ardente Criva de flechas de aço o mar de areia.

Lá vão, com os olhos onde a sede ateia Um fogo estranho, procurando em frente Esse oásis de amor que, claramente, Além, belo e falaz, se delineia.

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23 A VtDA EM RESUMO

Mas o simum da morte sopra: a tromba Convulsa envolve-os, prostra-os; e aplacada Sobre si mesma roda e exausta tomba...

E o sol de novo no ígneo céu fuzila... E sobre a geração exterminada A areia dorme, plácida e tranqüila.

A alegoria é clara, e o seu interesse do ponto de vista estético reside no fato de o tema central (a vida como luta do homem contra a adversidade de um mundo insensível) se desenvolver em três etapas descritivas, cheias de elementos alusivos. Os motivos, com efeito, são uma caminhada, nos dois quartetos; uma hecatombe, no primeiro terceto; um panorama final, no segundo. Isto vivifica a alegoria, apresentando-a como ação, drama coletivo que se desdobra, rápida mas fortemente, nos versos breves. O efeito é reforçado pelo caráter antitético, pois o motivo da caminhada propõe uma realidade hu­mana logo contrariada pela morte, resultando na desolação de um mundo vazio, à espera de novas jornadas.

Esta expectativa funciona como ressonância, que prolonga a força de convicção do tema e, deste modo, apesar da estrutura completa em si mesma, deixa entrever, sob o epílogo destruidor, um retorno infindável de esforços estraçalhados pelas mesmas catástrofes. Mas não são estes elementos de ordem geral os responsáveis diretos pelo impacto em nossa sensibilidade; eles são apenas enquadramentos dos recursos particulares de que o poeta se vale para tal fim: vocabu­lário, imagens, versificação, que criam o universo poético dentro do qual a idéia parece essencial, ganhando realidade e eficácia.

As imagens, pelas quais ela se exprime de modo imediato, são aqui muito coerentes, formando um sistema de agressiva dureza. O céu, por exemplo, comparado a um teto de bronze, cuja ferocidade metá­lica se completa em nossa mente pelo sentimento de implacabili-dade moral. Ou os raios de sol, equiparados a flechas de aço, mate­rializando no seu caráter dilacerante a fereza das coisas e, por exten­são, de todo o mundo. Note-se que estas e outras imagens são simples

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O O B S E R V A D O R L I T E R Á R I O 24

e mesmo banais, como o deserto-mar de areia, a ilusão-miragem, a morte-borrasca. No entanto, em conjunto, exercem efeito, devido à simplicidade forte do vocabulário que as apoia e se articula num sis­tema contundente e desolador.

De fato, há neste soneto três tipos de substantivos virtuais, latentes por assim dizer nas locuções, dotados de uma força adjetiva de caracterização que os torna verdadeiros vocábulos-chave: metal, fogo e vento. Dada a sua consistência decrescente, dado o impacto maior ou menor com que se integram na nossa representação, eles propiciam uma espécie de mobilidade no jogo dos tormentos, sendo os núcleos expressivos das três estrofes que os descrevem e se orde­nam em torno dos sintagmas aludidos: "teto de bronze" e "flechas de aço"; "fogo estranho"; "simum da morte" e "tromba convulsa". Deste modo, forma-se no nosso espírito uma série de representações em cadeia, originando a sensação de um mundo fechado, inelutável. Tanto mais quanto os verbos são todos, ou quase, de tensão e vio­lência: arquear, fuzilar, crivar, atear, soprar, envolver, prostrar, tombar, exterminar.

Além disso, há contrastes entremeados com sutileza para reforçar o tom geral, como a ilusão da miragem, ou a doçura enganadora do deserto, mediante discretos efeitos aliterativos de consoantes líquidas:

(...) claramente Além, belo e falaz, se delineia; (...)

A areia dorme, plácida e tranqüila, - (...)

que aliás colidem com outros recursos do mesmo tipo, em sentido inverso de dureza arrasadora, zunindo nas sibilantes, batendo nas oclusivas:

Mas o simum da morte sopra: a tromba Convulsa envolve-os, prostra-os; e aplacada Sobre si mesma roda e exausta tomba.

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25 A VIDA EM RESUMO

Vistos deste modo, os recursos do poeta (e outros que não foram discriminados) parecem bastante simples e quase elementares. No entanto, - é preciso insistir - a sua força vem justamente da banali­dade dessa atmosfera opressiva e dolorosa, que não obstante é a da vida. Atmosfera que define um mundo fechado, caro aos naturalis­tas, onde a existência é um ciclo sem perspectivas, que a estrutura do soneto permite configurar. O terceto final que, retomando o panora­ma do início ("o ígneo céu fuzila") e apresilhando com ele o ambi­ente, acentua a insensibilidade da natureza em face da dor humana, poderia fazer lembrar o famoso verso das Destinées, de Vigny:

Plus que tout votre règne et que ses splendeurs vaines, J'aime Ia majesté des souffrances humaines.

No entanto, nesta alegoria de Bilac não vislumbramos qualquer afirmativa da grandeza do homem pelo sofrimento. Graças à técni­ca parnasiana do soneto fechado, temos uma atmosfera naturalista de passividade ante o esmagamento do ser pelas coisas, descartada a miragem fugidia da ilusão e reintegrada a natureza devoradora na sua insensibilidade. Filosofia aparentada à de Quincas Borba, mas sem o alívio aparente do humor. Filosofia de naturalista amargo, embora sereno sob a perfeição formal, que não consegue, porém, granjear a nossa adesão profunda; e isto ocorre na maioria dos ver­sos desse admirável poeta superficial. O motivo se encontra em parte no fato de não ser ele muitas vezes capaz de ver mais que um espetáculo, um pretexto para "dobrar a estrofe cristalina". Nestes casos o seu timbre pessoal consiste em transferir o interesse da pes­soa à coisa, já que para ele a pessoa é em grande parte uma coisa a ser manipulada pela arte, - não obstante o esforço passional de alguns dos seus poemas. As virgens mortas são estrelas e vão com­por um Armamento de devaneio; o quarto, as jóias, as roupas da moça que volta do baile são apresentados de modo a se tornarem tão importantes, tão vivos, que de repente as graças nuas parecem obje­tos, como eles; Frinéia, esta chega a ser tratada como peça de anato­mia ou carne em retalho. No entanto, este empobrecimento relativo

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O OBSERVADOR LITERÁRIO 26

é condição do poeta construir o seu universo, limitado, mas perfeito, pois a sujeição à coisa leva muitas vezes a confiar na força própria da imagem que a exprime. A superioridade deste soneto sobre o de Gautier, que lhe serviu com certeza de modelo, provém da ressonân­cia, indicada acima, e da confiança na atuação das palavras que descrevem o ambiente de modo concreto, sem necessidade de recor­rer ao elemento discursivo para mostrar o seu caráter alegórico. Já o francês utiliza o elemento descritivo como ponte para a reflexão sen-tenciosa, misturando-se ambas inextricavelmente nos tercetos finais:

Von avance toujours, et voici que Von voit Quelque chose de vert que Von se montre au doigt: Cest un bois de cyprès, semé de Manches pierres.

Dieu, pour vous réposer, dans le désert du temps, Comme des oásis, a mis les cimetières: Couchez-vous et dormez, voyageurs haletants.

No soneto XII da Via Láctea, -

Sonhei que me esperavas, e sonhando Saí, ansioso por te ver - (...)

em que a natureza noturna conversa com o amoroso sem que vejamos a amada, ocorre no plano da euforia e do idílio o mesmo processo de SAHARA VITAE. Em ambos, o que importa é a elaboração dum ambiente, onde as coisas de certo modo substituem o homem e adquirem, pela sua articulação, um valor de expressão reflexa. Este gosto pelo exterior permite miniaturas admiráveis de lugares-co-muns, graças ao encanto específico do soneto, o "pequeno alaúde" do poeta inglês. É quanto basta para estimular o nosso desejo de sentir a vida em resumo, - isto é, a arte.

Suplemento Literário d' O Estado de S. Paulo I 1958

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n

M Ú S I C A E M Ú S I C A

M achado de Assis foi bastante musical. Na sua obra per­

passa um gosto discreto mas constante, mostrando que

o partidário juvenil das brigas por causa de cantoras se

refinou até ultrapassar a média dos amadores do tempo, estimando

Schumann e Wagner enquanto o visconde de Taunay e Tobias Bar­

reto discutiam Meyerbeer. Mas o fato é que a impregnação musical

da sua obra é leve, parecendo mais recurso de composição e análise

do que propriamente emoção profunda. Usou-a como terminologia

irônica para o TRIO EM LÁ MENOR; motivo melancólico na CANTIGA DE

ESPONSAIS; revestimento admirável do tema da perfeição no mais

pungente dos seus contos, UM HOMEM CÉLEBRE.

No Memorial de Aires ela entra para manifestar o amor nascente

entre Fidélia (nome beethoveniano) e Tristão (nome wagneriano).

Por entre as linhas sóbrias, flui como símbolo da paixão primaveril

e crescente, marcando o retorno da bela viúva às emoções da vida e

o enlevo do moço, que por causa de Fidélia deixa as ambições políti­

cas. Graças à técnica progressiva do diário, disfarçando a onisciência

do romancista,: o narrador ignora em teoria o que se passará na en­

trada seguinte. E esta candura de presente do indicativo o deixa tecer

com verossimilhança a força premonitória da música. Quando o con­

selheiro abre os olhos, o casal de jovens já está em pleno diálogo de

reticências, que para Brás Cubas era o de Adão e Eva.

Antes disso, na entrada de trinta e um de agosto, Aires conta uma

serata de piano, levando a narrativa com uma simplicidade tão des­

preocupada, espalhando tão bem de permeio as banalidades, que a

música pode vibrar quase apagadamente em segundo plano, como sím­

bolo, para se destacar no primeiro como rito banal de boa sociedade.

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O OBSERVADOR LITERÁRIO 28

Como eu ainda gosto de música! A noite passada, em casa do Aguiar, éramos treze pessoas... Treze! Só agora, ao contar de me­mória, vejo que éramos treze; ninguém deu então por este número, nem na sala, nem à mesa do chá de família.

Aqui a música é mera introdução ao assunto; tudo leva a supor que o essencial esteja nas considerações banais que seguem, afastan­do qualquer premonição do espírito do leitor. Habilmente dosados, os ingredientes do quotidiano dissolvem o rompante do início ("Como eu ainda gosto de música!"). Quando a frase seguinte reintroduz o motivo, estamos desarmados e não chegamos a perceber que se trata de um retorno:

Conversamos de cousas várias, até que Tristão tocou um pouco de Mozart ao piano, a pedido da madrinha.

Ainda nessa altura parece que a única função da música é alinha­var as partes de uma cena mundana, mas o prosseguimento já deixa o leitor desconfiado:

A execução veio porque falamos também de música, assunto em que a viúva acompanhou o recém-chegado com tal gosto e discrição, que ele acabou pedindo-lhe que tocasse também. Fidélia recusou modestamente, ele insistiu, d. Carmo reforçou o pedido do afilhado, e assim o marido; Fidélia acabou cedendo e tocou um pequeno tre­cho, uma reminiscência de Schumann. Todos gostamos muito.

Por que tanta música? - pensamos à primeira leitura. Mas se estivermos relendo, a percepção se torna facilmente aguda; mais que a do conselheiro Aires, que renunciou machadianamente ao deleite de parecer esperto e continua, até a consumação dos sécu­los, ignorando em trinta e um de agosto o que acontecerá em Io de setembro, sobretudo em quinze de maio do ano seguinte, quando o par já aparece casado. Nós, sabendo na releitura que isto se dará, aguçamos o ouvido para esta melodia aparentemente neutra e vamos

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29 MÚSICA E MUSICA

sentindo que ela é avatar da paixão nascente, enredando os jovens no seu fluido simbólico.

Tristão voltou ainda uma vez ao piano, e pareceram apreciar os talentos um do outro. Eu saí encantado de ambos.

Remoçado pelo espetáculo e, mais ainda, revolvido nas profundas pela vitalidade dos jovens, o conselheiro volta para casa com a cabeça cheia desta música alusiva, que agora adquire um matiz de nostalgia que o faz voltar ao passado, ao tempo dos instintos prontos:

A música veio comigo, não querendo que eu dormisse. Cheguei cedo a casa, onze horas, e só perto da uma comecei a conciliar o sono; todo o tempo da rua, da casa e da cama foi consumido em repetir trechos e trechos que ouvira na minha vida.

Esse encontro com as raízes amortecidas da existência traz o velho Aires ao plano consciente duma meditação sobre a sua própria (como foi, como teria sido...), num desses encontros finais em que se pesa o bagaço de todos os Eus frustrados, imolados pelo caminho ao que afinal veio a ser único e por isso mesmo insatisfatório.

A música foi sempre uma das minhas inclinações, e, se não fosse temer o poético e acaso o patético, diria que é hoje uma das sau­dades. Se a tivesse aprendido, tocaria agora, ou comporia, quem sabe? Não.me quis dar a ela, por causa do ofício diplomático, e foi um erro. A diplomacia que exerci em minha vida era antes função decorativa que outra coisa; não fiz tratados de comércio nem de limites, não celebrei alianças de guerra; podia acomodar-me às melodias de sala ou de gabinete. Agora vivo do que ouço aos outros.

Agora já é tarde... Sob a carreira convencional do personagem sen­timos a tentação de vislumbrar um desabafo do escritor; mas qual a utilidade duma conjectura que arrasta para o terreno liso das filia­ções biográficas? É melhor pensar em qualquer homem, qualquer

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um de nós, - os seis pronomes pessoais feitos da mesma massa de recalques, adoçada por compensações duvidosas ou amargurada pela franca mutilação. Portanto, pensemos só no homem voltando para casa depois de ter ouvido a frauta pastoril que lhe deixou entrever Dafnis e Cloe na inocência certeira dos seus jogos; frauta cuja sono­ridade límpida e frágil vai trazendo de volta à bela Fidélia o desejo de tocar novamente as canções da vida.

Há dois ou três meses ouvi dizer a Fidélia que nunca mais tocaria, tendo desde muito suspendido o exercício da música. Repliquei-lhe então que um dia, a sós consigo, tocaria para recordar, e a recor­dação traria o exercício outra vez.

Já que falamos no romance de Longus, não custa dizer que a músi­ca foi o medianeiro, o Filetas deste caso, como o romance arturiano no de Paolo Malatesta e Francesca da Rimini.

Ontem bastaram as instâncias da gente Aguiar para mover uma vontade já disposta, ao que parece. O exemplo de Tristão ajudou-a a sair do silêncio. Repito que saí de lá encantado de ambos.

Só na filigrana esta música sutil se manifesta como elemento cen­tral de composição, estruturando o texto e constituindo o seu movi­mento psicológico profundo. A cena mundana, a caminhada notur­na, a reflexão final se coordenam graças a ela, que apenas aparente­mente é pretexto, sendo na verdade o núcleo a que tudo mais se subordina. A força germinal da paixão se refina através dela num arabesco simbólico, que é também elemento de conhecimento e confronto, na linha da contida riqueza machadiana.

Se quisermos avaliar este fato, façamos a comparação com um escritor menos reticente, menos indireto psicologicamente, em tre­cho onde a música apareça para traduzir emoções fundamentais. Seja Raul Pompéia, no capítulo final d'O Ateneu, quando o nar­rador, sozinho na enfermaria do colégio, vive o episódio equívoco das relações com a mulher do diretor:

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31 MUSICA

Música estranha, na hora cálida. Devia ser Gottschalk. Aquele esforço agonizante dos sons, lentos, pungidos, angústia deliciosa de extremo gozo em que pode ficar a vida porque fora uma con­clusão triunfal. Notas graves, uma, uma; pausas de silêncio e treva em que o instrumento sucumbe e logo um dia claro de renascença, que ilumina o mundo como o momento fantástico do relâmpago, que a escuridão novamente abate.

Os sons são aqui descritos, pelo modo como repercutem na sensi­bilidade; e o fazem com tal vigor material, que se tornam por ins­tantes o sujeito literário, qualificados quase psicologicamente, indi­vidualizados pelo silêncio das pausas, que alternam com eles, for­mando um contraponto de momentos visuais de claridade e escu­ridão. O movimento do período se deve à caracterização impres­sionista do ritmo, feito de impactos e suspensões em relação ao nar­rador. Daí uma densidade sensorial que o leva a passar da descrição ao efeito dos sons, pela transição de duas linhas:

Há reminiscências sonoras que ficam perpétuas como um eco do passado. Recorda-me, às vezes, o piano, ressurge-me aquela data.

Preservado na memória, às vezes o impacto original das notas volta, trazendo inteiro aquele momento sob as sensações experi­mentadas de novo:

Do fundo repouso caído de convalescente, serenidade extenua­da em que nos deixa a febre, infantilizados no enfraquecimento como a recomeçar a vida, inermes contra a sensação por um requinte mórbido da sensibilidade - eu aspirava a música como a embriaguez dulcíssima de um perfume funesto; a música envol­via-me num contágio de vibração, como se houvesse nervos no ar. As notas distantes cresciam-me n'alma em ressonância enorme de cisterna; eu sofria, como das palpitações fortes do coração quando o sentimento exacerba-se - a sensualidade dissolvente dos sons.

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Agora, é patente a rotação de atitude: em vez de evocar a realidade material da música, Sérgio volta sobre si e descreve o estado da sen­sibilidade sob o seu efeito. Vista de dentro, ela é receptividade, e o Eu do narrador se equipara a uma cisterna, vibrando em escala ampli­ficada as notas percebidas. A volúpia se distende, morosa e pesada, graças à rejeição de complementos da cláusula ou à sobrecarga muito bem calculada de longas intercalações grávidas de adjetivos. O esta­do de fraqueza da convalescença se junta ao choque sonoro, tornan­do a música um dissolvente sutil; o Eu se projeta fora do narrador, vivifica o ambiente, deixando-o como percorrido por fibrilas ner­vosas; o corpo todo reage ao influxo, traduzindo a emoção em pal-pitação cardíaca, segundo o gosto naturalista.

Afinal, dada esta atuação profunda sobre a sensibilidade, a músi­ca suprime a vontade, quebra a iniciativa, abre as comportas ao devaneio:

Lasso, sob os lençóis, em conforto ideal de túmulo, que a von­tade morrera, eu deixava martirizar-me o encanto. A imaginação, de asas crescidas, fugia solta.

Disso tudo resulta uma combinação de violência naturalista e enervamento decadentista, deixando longe o mistério insinuante do velho Aires. É que o narrador é adolescente; a música não pode ainda ter para ele a imaterialidade tênue que sugere sem mostrar. São coisas que o tempo há de trazer quando ele ficar conselheiro, como toda gente.

Suplemento Literário d'O Estado de S. Paulo I 1958

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33

A COMPREENSÃO DA REALIDADE

H á no romance (mas de modo algum na poesia) dois ângu­los principais que regem a visão do escritor, condicionan­do a sua arte de escrever: ou investiga a realidade como

algo subordinado à consciência, - que envolve tudo e fica em primeiro plano, - ou põe a consciência a serviço de uma realidade considerada algo existente fora dela. Um ângulo de subjetivismo, outro de obje­tividade, que se combinam segundo os mais vários matizes mas não passam essencialmente de dois. Tertius infictione non datur...

As obras mais completas são em geral as que manifestam simul­taneamente os dois aspectos da realidade - o interior e o exterior -tratados, porém, como se o romancista houvesse estabelecido com o seu material uma relação de sujeito a objeto. Mais raramente (sobre­tudo mais dificilmente) a grandeza literária é alcançada no romance pela redução a um dos ângulos, como ocorre em Kafka. Quase sem­pre os escritores alcançam a plenitude quando são capazes de passar do subjetivismo adolescente - que faz da realidade um conjunto de impressões e emoções - para uma posição de análise objetiva, que reconhece a existência própria do mundo onde o sujeito se insere. Muitos críticos já enxergaram em certas formas superiores de realis­mo o ponto culminante do romance moderno, que, segundo Lukács, não se encontra no naturalismo de Zola nem na introjeção de Joyce ou Proust, mas em Stendhal, Balzac, Tolstoi.

A afirmação é discutível; mas de qualquer modo devemos reco­nhecer que no romance a passagem da impressão à observação é construtiva, na medida em que pressupõe a intervenção da inteli­gência para organizar a indisciplina das emoções espontâneas. Mesmo quando o escritor prefere introjetar o mundo, violando as fronteiras do real, esta operação geralmente só é válida se suceder a uma fase prévia de conhecimento objetivo do mundo, como a deformação dos

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pintores modernos, que transcende mas não ignora as formas natu­rais. Assim, Joyce apresentara Dublin realisticamente nos contos, antes de engolfá-la na corrente da consciência; como Proust efetuara, antes da fluidez mágica de À La Recherche du Temps Perdu, o exercí­cio preparatório de Jean Santeuil. Compreende-se que assim seja, pois a atitude básica na vida é perceber o Eu em relação com o mundo, e organizar tanto a conduta quanto o conhecimento de acordo com esta percepção básica.

A obra de José Lins do Rego é valiosa para estudar esses proble­mas, porque é um amadurecimento, com desvios e recuos, no senti­do do realismo mais pleno, a partir de uma verde e espontânea ado­lescência literária. Para simplificar a discussão, fiquemos nos seis livros onde pintou o seu mundo originário; e veremos que a maturidade grandiosa de Fogo morto foi devida a uma libertação progressiva da fixação autobiográfica, em benefício da observação, que pressupõe, por parte do sujeito, uma atitude conscientemente destacada do objeto.

(...) comecei querendo apenas escrever umas memórias que fos­sem as de todos os meninos criados nas casas-grandes dos enge­nhos nordestinos. Seria apenas um pedaço de vida o que eu que­ria contar. Sucede, porém, que um romancista é o instrumento apenas de forças que se acham escondidas no seu interior.

Estas palavras do curto prefácio de Usina indicam o processo e desvendam os seus motivos profundos, entre os quais a aquisição de um claro discernimento da realidade como objeto autônomo, devi­do à alteração progressiva das relações entre a personalidade que se forma e o mundo onde se forma.

No José Lins do Rego inicial há, como tem sido dito pela crítica, um homem preocupado em sondar a própria infância, compondo os farrapos da memória num quadro coerente. Se escolheu a ficção em lugar da autobiografia direta, foi talvez pela maior liberdade que ela dava para retocar, preencher, generalizar, de modo a conferir maior amplitude ao dado pessoal, aproximando-o do caráter de para-

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digma, que diz expressamente ter visado ("... as de todos os meni­nos..."). Mas à medida que avançou de um livro para outro, o me-morialista algo perdido na poesia evocativa deu lugar ao romancista, adstrito às leis da ficção, compreendendo e analisando cada vez mais a realidade que antes englobava numa apreensão indiscriminada, exuberante mas primária.

Este artigo pretende sugerir que a sua obra se desenvolveu, por altos e baixos, como passagem da apreensão à compreensão, visível tanto na marcha da visão do mundo quanto na do estilo. Aquela, implicando distinção progressiva da atitude do sujeito em face do objeto; este, progressiva conquista do escrito sobre o oral. Ambos os movimentos exprimem a passagem do espontâneo ao elaborado, ou, segundo os conceitos utilizados aqui, do modo apreensivo ao modo compreensivo.

Quem abre Menino de engenho (como o abriu aos quinze anos a minha geração, que o viu surgir, entre deslumbrada e surpresa) nota desde logo uma linguagem tateante, que procura localizar e cercar as imagens imprecisas da infância. Nota que, à maneira do que sucede nas primeiras etapas da vida, não há separação nítida entre sujeito e objeto, e que a realidade literária não é o menino nem o engenho, mas menino e engenho, unidos, indiscerníveis. O fascínio pelo uni­verso colorido e pastoso da terra de cana suscitou, no romance de José Lins do Rego, como na sociologia de Gilberto Freyre, uma des­truição de barreiras entre o quadro geográfico e o grupo humano. Deu lugar a uma compenetração de ambos, como se a consistência pegajosa do barro, tantas vezes evocado, servisse para receber a marca do homem, deixando neste, reciprocamente, a sua cor e a pesada volúpia que associamos à idéia de viscosidade.

Por isso, a expansão do menino no engenho sugere uma expansão tátil do Eu sobre o mundo; uma personalidade que se constrói na medida em que, encontrando a resistência das coisas, apreende-as, engloba-as, e ao mesmo tempo nelas se engasta. Este movimento de preensão explica o tateio do estilo, que também procede por toques, registros curtos, dando ao romance um caráter envolvente, primiti­vo e saboroso, na sua seiva irregular.

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"Só quando houver alcançado o conhecimento de todas as coisas é que o homem poderá conhecer-se a si mesmo, pois as coisas não passam de fronteiras do homem." Este aforismo de Nietzsche lem­bra que o conhecimento da coisa é essencial ao conhecimento do Eu, pois este existe em grande parte na medida em que se situa com relação a ela. Neste sentido, e talvez forçando a finalidade com que foi redigido, o aforismo pode servir para indicar o movimento esboçado a partir de Menino de engenho e definido nos livros seguin­tes, - onde a apreensão das coisas, que amplia cegamente o Eu e o projeta sobre o mundo, vai se tornando inteligência da coisa e faz do mundo realidade compreendida, depois de apreendida.

É pois uma espécie de aprendizagem, nítida a partir de Doidinho, no qual é afastado o cenário do engenho e o narrador se encontra em face dele mesmo, ao chocar-se com um mundo que desafia a preen-sibilidade da sua expansão. Um mundo duro, compacto, de profes­sores tirânicos, colegas maus, - todo arestas e superfícies lisas que o Eu não penetra. Em conseqüência, dobra-se sobre si, é forçado a compor-se como unidade, desligado da placenta acolhedora pela qual se ajustava ao universo lábil do engenho. A essa altura a persona­lidade literária já ia amadurecendo, concatenando melhor os elemen­tos que integram um universo fictício, compondo o dado existencial e passando, em matéria de estilo, do registro à organização.

Poderíamos dizer que Doidinho esboça o segundo elemento da arte de José Lins do Rego, pois significa, completando a apalpação do mundo, uma apalpação do Eu, que em Bangüê se tornará quase sondagem, fazendo deste livro síntese e fecho da fase inicial da sua obra de aprendiz. Nele a apreensão exterior vai se tornando com­preensão à medida que o narrador esboça uma atitude analítica em relação ao seu ambiente e a si mesmo. Esta atitude é facilitada pelo mundo de Bangüê, onde se reúnem a plasticidade do de Menino de engenho e a rigidez do de Doidinho. Ante o narrador adulto, estende-se o mesmo universo viscoso de terra mole e águas invasoras, - tépi-do bagaço de cana e submisso bagaço humano. Os trabalhadores se dobram, as mulheres se entregam, o grito de mando rasga facilmente uma dimensão arbitrária para a vontade. Mas o poder apreensivo do

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37 A COMPREENSÃO DA REALIDADE

narrador diminuiu, com a passagem à idade adulta. O mundo não é matéria de percepção; requer cada vez mais atos incisivos e coorde­nados, que a sua alma titubeante, precariamente instalada na herança do avô, não lhe pode dar. Sucede então uma espécie de endu­recimento do mundo; uma transformação crescente do limite em obstáculo, acuando o narrador à prisão da sua inépcia. Sob a pas­sividade dos cabras de engenho desponta a resistência do "moleque" José Marreira; e enquanto a generosidade da terra é como ressequida pelo gravame das hipotecas, o ritmo tradicional se rompe pela pressão do capitalismo e da técnica, encarnados na usina que espreita o velho bangüê do Santa Rosa.

O elemento de ligação entre o fluido mundo perdido e a rigidez do mundo novo é a mulher pela qual se apaixona o narrador, Maria Luísa, ao mesmo tempo acessível como as servas do engenho (sob este aspecto, permitindo a expansão conquistadora do Eu), e inabor-dável, por ser casada e pertencer a outro mundo de valores (sob este aspecto, opondo-se à plenitude do Eu e confinando-o nos próprios limites). O desequilíbrio que assalta o narrador após a partida de Maria Luísa eqüivale, no plano da experiência pessoal, ao pavor do fazendeiro derrotado, que o obriga finalmente, no plano da ação, a retirar-se, vendendo o Santa Rosa.

A leitura de Bangüê mostra que, embora falando na primeira pes­soa, o romancista aprendeu a descrever o mundo exterior como realidade que se compreende, - inclusive pela presença dos proble­mas sociais, - e que deixou de ser prolongamento do Eu. Este, por sua vez, cornpôs-se afinal como consciência de si e das coisas, su­perando a indiscriminação inicial.

Restava ao escritor explorar esta conquista, abandonando o tom autobiográfico e instalando-se na posição normal de observador duma realidade claramente percebida, isto é, literariamente falando, a ter­ceira pessoa, - utilizada nos dois últimos livros do "Ciclo da Cana-de-Açúcar": Moleque Ricardo e Usina. Neste, o universo do engenho, antes contínuo à sensibilidade do narrador, existe afinal como obje­to nitidamente separado do sujeito, que o englobava na sua apreen­são absorvente.

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Mais tarde, após longas voltas, nem sempre felizes, o romancista sentiu necessidade de aplicar a força do seu realismo lentamente conquistado ao material das evocações infantis. Produziu então a sua obra-prima, Fogo morto, onde a identidade do narrador se oblitera pela pujança do romancista e as conquistas técnicas e psicológicas da compreensão se ligam intimamente à espontaneidade subjetiva da apreensão. O mundo e os seres, que antes esculpira no movi­mento caprichoso da autobiografia, voltam marcados pela objetivi­dade serena e patética do realismo superior, situados por meio duma descrição calorosa, demarcados pela caracterização psicológica, movidos graças à técnica finalmente dominada do diálogo.

Enquanto certos escritores se tornam grandes engolfando na sub­jetividade, José Lins do Rego só se realizou integralmente à medida que dela se libertou, destacando uma visão objetiva do mundo den­tre as penumbras do tateio autobiográfico. Por isso, seria o caso de arriscar um paradoxo e dizer que apenas aparentemente a memória constitui o elemento fundamental na sua arte, - pois ele cresceu à medida que foi se libertando dela. Tanto assim que no fim da vida, ao recorrer à autobiografia pura, em Meus verdes anos, fez algo primário e pouco expressivo, que vale apenas como subsídio dos romances, nos quais incluiu toda a seiva da sua história pessoal, mas progredindo obscuramente, até encontrar a objetividade do mais lídimo realismo, em contraste com o tosco naturalismo confidencial de que partiu.

Suplemento Literário d'O Estado de S. Paulo I 1957

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SEGUNDA PARTE

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AS ROSAS E O TEMPO

O tema do convite amoroso, com o argumento de que o tempo foge, a carne se desfaz e a recusa terminará por encher de re­morso a dama esquiva, encontra as expressões mais claras

nos momentos de impregnação da cultura clássica, isto é, do século XV ao século XVIII. Ocorre antes e depois, não há dúvida; mas sem a naturalidade no encantamento carnal que os gregos e latinos mani­festaram livremente e o cristianismo abafou. Por isso mesmo é um tema anticristão à sua maneira, apresentando a castidade como algo desumano, a virtude como privação de vida. É como se o rumor apaixonado e (para nós) desabrido dos versos de Catulo envolvesse e ameaçasse o ardor diáfano e mental da Vita Nuova.

Os estudiosos contam que o imaterial amor cortês, transposto em parte do culto à Virgem Maria, foi uma força civilizadora, uma ne­cessidade social imperiosa, ante a desenfreada bestialidade da Alta Idade Média. Poder-se-ia então dizer que o rompante carnal da arte e da literatura, no Renascimento, foi por sua vez corretivo às bar­reiras impostas (embora mal observadas) pela moral religiosa e a etiqueta. O que seria verdadeiro em parte. A outra parte é formada pela própria natureza do jogo amoroso, o seu caráter de labirinto estabelecido pela sociedade e pelos parceiros segundo um mapa in-sidioso e variado, onde nem todos encontram o fio salvador.

A mulher é um precioso bem de troca, diriam os etnólogos; a sua circulação deve estar sujeita a normas precisas, que evitem subverter as relações no grupo. Ora, as condições propostas pelo grupo são dados inevitáveis com que devemos contar; portanto não tardamos em incorporá-las ao nosso modo de ser, como se partissem da nossa natureza, imaginando, por exemplo, a existência de uma natureza feminina, que se nega a uma natureza masculina avançando à sua busca no Labirinto. Perfídia das mulheres, dizem os homens.

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O OBSERVADOR LITERÁRIO 42

Mas o tempo corre, e pela própria essência o Labirinto é difícil. Entram então em cena os poetas, estimulados pelo jogo de barreiras e encruzilhadas, bradando aos quatro cantos o convite que teria a força mágica de suscitar a presa nalguma esquina perdida do monumento. No fundo, sonham com a Ariadne providencial, - que não aparece, é óbvio, pois sabe que o destino das Ariadnes é perecerem abando­nadas no rochedo de Naxos. E enquanto bradam no escuro, os poetas supõem uma presença capciosa e esquiva que foge; cultivam a idéia de que ela é ágil e calculada, quer experimentar o aventureiro e, com soberana inconsciência, malbaratar o Tempo, de que é a deusa im­placável e oculta.

Neste ponto exato cristaliza a dialética do apelo sob forma de con­vite, que compete à mulher ignorar ou repelir, porque faz parte da sua natureza temer o escolho de Naxos. Mas os poetas insistem -desde antes do Renascimento. "Bebe bastante, enquanto o regato corre -,(...)."

Or buvezfort, tant que ru peut courir (...)

- propõe Villon, mestre na pintura da carne decadente:

Ung tems viendra quifera dessechier, Jaunir, flestrir vostre espanye fleur -(...)

acrescentando filosoficamente que não adiantará então o sarcasmo vingativo, pois também a sua pobre carcaça nada mais será:

Je trien risse, se tantpeusse maschier Lors; mais nennil, ce seroit doncfoleur: Vielje seray; vous, laide, sans couleur.

- Olha o exemplo da rosa, logo desfolhada, lembra Ronsard, cem anos depois:

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43 AS ROSAS E O TEMPO

Cueillez, cueillez, votre jeunesse: Comme à cettefleur Ia vieillesse Fera ternir votre beauté.

Mais caviloso, Thomas Carew no século seguinte avisa que é peca­do não conceder o que a Natureza deu para ser fruído, mormente quando o proveito (diz ele) é maior para quem dispensa:

But 'twere a madness not to grant That which affords (ifyou consent) To you, the giver, more content Than me, the beggar.

E termina por lembrar com sensatez que o broto fenece e a flor murcha:

Spend not in vain your life's short hour, But crop in time your beauty's flower, Which will away, and both together Both bud and fade, both blow and wither.

Numa ode curta e bonita de Lovelace, o apoio metafórico se deslo­ca do vegetal para o mineral, para a dureza fria e resplandecente da amada inabordável, desmaterializada pela ausência em aparição im-palpável e muda, - tudo no breve arabesco da mesma estrofe:

Harder than the orient stone, Like an apparition, Or as a pale shadow gone, Dumb and deafshe hence isflown.

Por isso ela não deve ser amada: o coração de mármore é o seu túmulo e a sua maldição.

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( I I H I M K V A D O R L I T E R Á R I O (4

Um quase contemporâneo francês, o arrebatado Théophile de Viau, homem de carne imperiosa e paixões desregradas, prefere atacar pelo lado do cinismo e da ironia:

Pour être divine et humaine, Ilfaut en jeunesse sentir Les plaisirs de Ia Madeleine, Etpuis, vieille, sen repentir.

Bem mais tarde, o leviano Parny consegue um momento de beleza, num poema aliás medíocre, ao encerrar na leve imagem de um toque alado a força arrasadora do Tempo fugitivo:

le Temps du bout de son aile Touchera vos traits en passant (...)

e ameaça:

Dès demain vous serez moins belle, Et moi peut-être moins pressant.

Mas é preciso voltar ao século XVII para encontrar quem, acima de todos os outros, chegou a uma verdadeira metafísica da carne efêmera, breve equilíbrio de graça e força logo dissolvido na cor­rente das horas: Andrew Marvell. - Não que a espera me canse, nem a conquista (o nosso Labirinto) me desanime, diz ele; toda a Eternidade seria pouca para te esperar, e o meu amor cresceria sur­damente, mais vasto que os impérios, mais lento que eles:

My vegetable love should grow Vaster than empires, and more slow;

For, lady, you deserve this state, Nor would I love at lower rate.

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45 AS ROSAS E O TEMPO

Mas o carro do Tempo se precipita com as rodas aladas e a Eter­nidade é um deserto onde mal tremeluzimos. Por isso (neste ponto a demonstração já quase abalou a moradora do Labirinto, anestesiada com o canto admirável, perigosamente esquecida do rochedo de Naxos), por isso, é vencer o Tempo da única maneira possível: livrar-se do sentimento do seu curso pela imersão no instante, esgotando todas as possibilidades deste. O convite é tremendo:

(...) let us sport us while we may; And now, like amorous birds ofprey, Rather at once our time devour Than languish in his slow-chapped power.

Se resistir a Marvell, ela resistirá a tudo, na maior insensatez, des­denhando colher as rosas da vida, apresentadas em ramo no soneto de Ronsard:

Cueillez dès aujourd'hui les roses de Ia vie.

Não serão por certo os brasileiros que conseguirão demovê-la, em­bora, pensando bem, já tenhamos formulado pelo menos dois ape­los que nos permitem ficar em boa posição no tema do convite: um poema de Basílio da Gama e outro de Gonzaga. Este, mais velado e carinhoso; aquele, direto e premente: ambos, admiráveis.

A situação do poeta Dirceu era delicada. Ia pela casa dos quarenta, entrando na etapa final em que ainda pode caber a aspiração às Marílias primaveris. Daí o sentimento agudo de que as horas são preciosas, insubstituíveis, rondadas pela "devorante mão da negra morte"; e que as oportunidades são únicas: uma vez desprezadas, não se refazem.

Ah! enquanto os destinos impiedosos não voltam contra nós a face irada, façamos, sim, façamos, doce amada, os nossos breves dias mais ditosos.

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O OBSERVADOR LITERÁRIO 46

Um coração que, frouxo, a grata posse do seu bem difere, a si, Marília, a si próprio rouba,

e a si próprio fere.

Depois da sábia argumentação vem o convite, pastoral e lírico, na singeleza que só esse grande artífice soube obter em nossa literatura onde "farfalham os adjetivos":

Ornemos nossas testas com as flores, e façamos de feno um brando leito; prendamo-nos, Marília, em laço estreito, gozemos do prazer de sãos amores.

Sobre as nossas cabeças, sem que o possam deter, o tempo corre; e para nós o tempo, que se passa,

também, Marília, morre.

Resta-lhe agora terminar, mostrando a perspectiva aberta pela inde­cisão ou a recusa:

Que havemos de esperar, Marília bela? Que vão passando os florescentes dias? As glórias que vêm tarde, já vêm frias; e pode enfim mudar-se a nossa estrela.

Ah! não minha Marília, aproveite-se o tempo antes que faça o estrago de roubar ao corpo as forças,

e ao semblante a graça.

No soneto de Basílio, notamos ausência completa do tom de súplica, tradicional na estratégia dos namorados, avultando o caráter mas­culino, afirmativo, próprio ao tema. A ternura cede lugar ao sarcas­mo e uns laivos de humor, que aparecem também em Marvell, Carew, Parny. Marfisa se recusa ao poeta; não faz mal, diz ele; a velhice roerá

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47 AS ROSAS E O TEMPO

a tua beleza, e então verás se valeu a pena. Aqui o nosso Termindo Sipílio retoma a linha de um dos sonetos a Helena, onde Ronsard a mostra, velha,

Regrettant mon amour et votrefier dédain: (...)

Já, Marfisa cruel, me não maltrata Saber que usas comigo de cautelas, Qu'inda te espero ver, por causa delas, Arrependida de ter sido ingrata.

Com o tempo, que tudo desbarata, Teus olhos deixarão de ser estrelas; Verás murchar no rosto as faces belas, E as trancas d'oiro converter-se em prata.

Daí (desta base tradicional, e tão pouco rendosa que os poetas não fazem mais que retomá-la) parte o convite, direto e sem peias:

Pois se sabes que a tua formosura Por força há de sofrer da idade os danos, Por 5que me negas hoje esta ventura?

Mas a linha ínflete, e depois duma última exortação o soneto se enche de melancolia, terminando por um verso de nostalgia sonhadora (com uma frase posta psicologicamente entre parênteses) que anula o sarcasmo, graças ao sentimento, já encontrado em Villon, de que a punição de Marfisa pelo remorso acaba também sendo a dele, pri­vado da sua graça e da sua posse:

Guarda para seu tempo os desenganos, Gozemo-nos agora, enquanto dura, Já que dura tão pouco, a flor dos anos.

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O OBSERVADOR LITERÁRIO 48

Insisto na frase interposta, no parêntese virtual -

Já que dura tão pouco (...)

reticenciosa suspensão que abre um mundo de devaneio cativo. Mas terão os nossos poetas logrado convencer a moradora do La­

birinto? Caso contrário, o derradeiro assalto só poderá ser feito nou­tra linha - romântica e mórbida. Se a vitalidade carnal dos convites não funcionou, recorra-se às imagens sepulcrais, ao reino da Morte, onde a argumentação não se processa mais no sentido da esperança, mas da privação irremediável.

Vamos pois a Baudelaire e sua amada inacessível, que apenas che­gada à campa sente em quanto importou não haver conhecido "aquilo que os mortos choram". O estojo de pedra que a comprime repete, como um eco, a objurgatória do poeta; a memória fantástica das coisas da vida cria um tormento contínuo para a sua frustração; os próprios vermes, ao trabalharem por transformá-la na "soberba carcaça", celebrada noutro poema, lembram incessantemente a tolice do passado desdém:

Et le ver rongera ta peau, comme un remords.

Remorso póstumo (logo irresgatável), diz o título do soneto. Com Baudelaire entramos no macabro, que Marvell, fiel ao espíri­

to vivo e saudável do tema, havia contornado com ironia:

The grave's a fine and private place, But none, I think, do there embrace.

É possível que a idéia do túmulo, negro e úmido, lembre à mora­dora do Labirinto que este é também ao seu modo um receptáculo de morte, se o fio não chega às mãos do solicitador. Mas - pobre Ariadne - a antevisão do abandono em Naxos é igualmente dura. Além do mais há a Vita Nuova e a virtude, aliás, Virtude, que é tam­bém um "célebre sentimento", como o amor. De maneira que fica o

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49 AS ROSAS E O TEMPO

dito por não dito e louvada a cautelosa negaça das bem-amadas ingratas, que, do áspero Villon ao frívolo Parny, despistaram os poetas malandros. Tranqüilizem-se as eventuais leitoras, deles e desta nota: não se colherão as rosas da vida, na única oportunidade em que seria possível, como queria Andrew Marvell, criar a Eternidade devoran­do o instante fugidio.

Suplemento Literário d'O Estado de S. Paulo I 1956

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LA FIGLIA CHE PIANGE Weave, weave the sunlight in your hair.

O sentimento genérico despertado em nós por uma cidade repousa, a bem dizer, na limitada experiência de certo bair­ro, certa casa ou um renque de árvores particularmente

acolhedor. Como nas cidades que habitamos a experiência se reno­va, a imaginação é presa, ora por um bairro, ora por outro, cujo en­canto não percebêramos até à véspera, e que amanhã talvez não nos toque mais, seja porque uma administração insensível mandou cor­tar duas árvores ou calçar de novo uma rua; seja porque algum pro­prietário deformou a fisionomia habitual das suas casas.

A leitura da obra de Proust mostra que quando enunciamos um nome de lugar brota ao lado a visão de conjunto, graças à qual julga­mos apreender a sua substância - como se as diferentes emoções se ordenassem regularmente num cartão-postal abstrato. Na verdade, a mente não faz mais do que emprestar aos detalhes percebidos uma generalidade logicamente cavilosa, mas legítima em face da experi­ência afetiva que orientou a compreensão.

Por isso, o conhecimento pormenorizado nem sempre acrescenta qualitativamente grande coisa ao sentimento de um lugar que nos impressionou de relance, através da fixação de alguns pormenores. Nessas experiências, o detalhe sensível penetra o entendimento e dis­pensa a articulação sistemática do conjunto.

Da mesma natureza é a visão do amador de poemas, para o qual o nome da obra - Remate de males - ou do poeta - Mário de Andrade -evoca uma qualidade geral de tom, intensidade, consistência, cor, própria só deles e inconfundível com os demais. No entanto, esta emoção geral e indiscriminada resulta dum feixe relativamente pequeno de emoções parciais. Deve haver um leitor constante de Manuel Bandeira para quem o fulcro insuspeitado de todo o amor pelo poeta, e do prazer que lhe causam os seus versos, é uma presença peculiar da estrela Vésper, que

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(...) caiu cheia de pudor na minha cama Vésper em cuja ardência não havia a menor parcela de sensuali-

dade; (...)

ou a cor azul de tantos poemas, - ora ostensiva, como no organdi do

vestido de Maria Elvira, ora virtual, como na CANÇÃO DAS DUAS IN-

DIAS, ou em BRISA:

Vamos viver de brisa, Anarina.

As imagens do poeta se repartem desigualmente entre os leitores, cada um dos quais se apropria como coisa sua daquelas que mais di­reta, ou mais misteriosamente, preenchem a sua disponibilidade afetiva. Como não podemos realmente sentir senão o que vai acor­dar uma perdida componente da infância, ou preencher a longa es­pera de alguma virtualidade, a leitura do verso eqüivale à procura mágica dos traços que o nosso espírito pode assimilar, a fim de com­por uma nova emoção com as velhas ressonâncias que eles desper­tam. E a visão das coisas se torna tanto mais rica, quanto ma!S nca se tornar esta espécie de memória afetiva.

Assim, a aventura pessoal no domínio da poesia consiste em bus­car contactos através dos poemas. Todo leitor consciente e um vaso novo, onde os cantos do poeta irão combinar-se de modo especia e quase único, pois o matiz pessoal da emoção poética é irredutível e intransmissível. Por isso mesmo, não somos capazes de compreen­der devidamente a totalidade das imagens de um autor, muito menos as de todos os autores. O excesso daquilo que os críticos de língua inglesa costumam louvar, chamando catholkity af toste, - o univer­salismo compreensivo do gosto - parece não raro com a indiscrimi­nado, porque normalmente dispomos duma intuição mais ou menos limitada, cuja incidência abrange determinada zona de poe­sia Freqüentemente esta zona varia com a idade, os dias, e mesmo as horas do dia; de tal maneira que se por vezes somos capazes de ampliar o âmbito da nossa compreensão, não é raro perdermos a sensibilidade para certa ordem de emoções, na passagem de um

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período a outro. A proporção permanece, deste modo, e nós temos os nossos poetas, dentro de cuja obra elegemos os nossos poemas, nos quais, ainda, selecionamos as nossas imagens. O que chamamos compreensão de um poeta consiste em generalizar o significado des­ses aspectos nos quais se fixou a nossa contemplação.

No poema A terra estéril, de T.S. Eliot, há uma personagem miste­riosa que prende a minha atenção e procuro esclarecer a cada leitu­ra, porque ela contribui, como poucas entre as demais, para fixar a minha versão pessoal: a "donzela dos jacintos", da parte I, O ENTERRO

DOS MORTOS.

Sabemos que Eliot procurou, entre outras coisas, simbolizar a crise moderna de valores como perda de fervor nos atos praticados. Como não tem fé nem convicções profundas, o homem repete ma-quinalmente o que dantes praticava numa tensão elevada de emoção e sentimento. É o "mundo caduco", familiar aos leitores de Carlos Drummond de Andrade.

Para definir este estado de coisas, Eliot organizou, em torno de uma peregrinação livre pelo mundo, um jogo de imagens compara­tivas entre a secura do comportamento moderno e o esplendor das grandes criações do passado. Estas imagens ressaltam o contraste entre esterilidade e fecundidade, impotência e vigor, fervor e automatismo. São muitas; são quase todo o poema. Quem esquecerá a mundana neurastênica, em cujo boudoir um quadro,

Como janela aberta sobre a cena agreste, (...)

irrompe com a tempestuosa aventura de Filomela; ou o contrapon­to obsedante da parte V, onde o par antitético "água e rochedo" retoma e desenvolve o tema da terra sem viço? Nesta nota procurarei sugerir uma interpretação para a "donzela dos jacintos", principi­ando por uma versão literal do início do poema, a fim de facilitar o comentário:

Abril é o mais cruel dos meses, gerando lilases na terra morta, misturando lembrança e desejo, excitando raízes tórpidas com

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chuva primaveril. O inverno nos aquece, cobrindo a terra de neve esquecedora, nutrindo com tubérculos ressecados uma vidazinha latente. O verão nos surpreendeu, ao cair sobre o Starnbergersee com uma chuvarada; detivemo-nos na colunata e prosseguimos pelo sol, no Hofgarten; tomamos café e conversamos uma hora. Bin gar keine Russin, stamrnaus Litauen, echt deutsch. Quando meninos, em casa do arquiduque, meu primo, ele me levou num trenó e eu tive medo. Disse ele: Marie, Marie, segura firme. E lá escorregamos. Como a gente se sente livre nas montanhas. Li boa parte da noite, e prossegui no inverno, rumo ao sul.

Que raízes se agarram, que ramos nascem desse rebotalho pe­dregoso? Filho do homem, não podes falar nem supor, porque só conheces um feixe de imagens rotas, em que bate o sol, e a árvore morta não dá abrigo, o grilo não dá trégua, nem murmúrio d'água a pedra seca. Mas há sombra, debaixo desta pedra rubra, vem, na sombra desta pedra rubra, e eu te mostrarei algo diverso, quer da tua sombra, pela manhã, estendida atrás de ti, quer da tua sombra, à tarde, erguendo-se para te encontrar; mostrar-te-ei o medo num punhado de pó.

Frisch weht der Wind Der Heimat zu, Mein Irisch Kind, Wo weilest du?

Primeiro deste-me jacintos, há um ano atrás; chamavam-me a donzela dos jacintos. - No entanto, ao voltarmos, tarde, do jardim dos jacintos, teus braços cheios, e teu cabelo molhado, não pude falar, meus olhos desfaleceram, eu não estava vivo nem morto e de nada sabia, olhando no cerne da luz, o silêncio.

Oed' und ler das Meer (...)

Os versos iniciais descobrem todo o jogo posterior dos temas: a primavera, estação da fertilidade, da força criadora, é incômoda a

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uma era desvitalizada, pela exuberância germinal com que remexe os sentimentos e traz à tona desejos perigosos; o inverno, ao con­trário, protege com a anestesia da sua esterilidade, que nada exige, contentando-se com uma vitalidade mortiça.

A seguir, o poeta narra um encontro em Munique, e talvez nas regiões adjacentes, (o lago, Starnbergersee, é distante da cidade, em cujo perímetro se localiza o parque, Hofgarten), com uma mulher cuja nacionalidade parece duvidosa, ("Não sou russa; sou pura alemã da Lituânia"), que se diz prima dum arquiduque e conta episódios que podem ser interpretados num sentido de experiência erótica ("ele me levou no trenó e eu tive medo... E lá fomos escorre­gando..."), mas que podem ser também um mero registro, sem valor alegórico. O verso - "Li boa parte da noite, e prossegui no inverno, rumo ao sul" - poderia sugerir, no caso da primeira interpretação, uma indiferença essencial pelo ato praticado, e mal destacado dos outros atos banais da vida. Isto simbolizaria a secura passional do mundo contemporâneo e estaria de acordo com outros colóquios de amor desapaixonado, como o da elegante neurastênica na parte II e o da datilografa com o moço cheio de espinhas, na parte III. De qual­quer forma, essa conversa casual de viagem ao estrangeiro, em meio às insignificâncias do quotidiano, provoca no poeta o sentimento da esterilidade, a cuja sombra infrutífera se acolhe o homem moderno ("Que raízes se agarram" etc). Relações frias e mundo estéril con­vergem para despertar nele, por contraste, a ânsia de plenitude e energia passional, que se concretiza numa lembrança de Tristão e Isolda, protagonistas duma história por excelência do impulso autêntico e indomável do amor. A lembrança vem sob a forma da canção do grumete, no Io ato da ópera de Wagner:

Fresco é o vento que sopra rumo à terra natal; minha pequena irlandesa, por onde te atardas?

A invocação da donzela irlandesa impele a emoção para a fase cul­minante do processo mental e afetivo desta seqüência inicial, em que a experiência do poeta se interioriza. Ele identifica o apelo do grande

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mito amoroso a uma experiência distante e profunda, vivida ou inventada, não importa: a lembrança da donzela dos jacintos, cuja visão, num jardim molhado de chuva (como o Hofgarten, onde toma chá com a mulher enigmática) o encheu de um transporte ine­fável, que se renova agora:

(...) não estava vivo nem morto (...) o cerne da luz, o silêncio (...)

- palavras que simbolizam o aniquilamento do Eu na morte pro­visória do êxtase amoroso, contrapondo-se à fria lucidez do amor sem paixão, como o que lhe narra, ou lhe sugere a companheira da cidade bávara.

A lembrança desta grande experiência afetiva aumenta o senti­mento de vazio e privação, expressos por um verso do 3o ato da ópera de Wagner, na cena em que o pastor informa Kuvernal que nada se vê no mar, isto é, que Isolda não vem aplacar o anseio de Tristão moribundo:

Oed' unã leer das Meer - (...)

"Vazio e imenso é o mar". Esta solidão desoladora o impele a buscar a emoção, a vitalidade autêntica, perdida para ele e os seus contem­porâneos. É quando (no irônico trecho seguinte) vai consultar a car­tomante, Madame Sosostris, caricatura dos velhos ritos, que perde­ram conteúdo e persistem como artimanha de saltimbanco.

Essa misteriosa donzela dos jacintos, - 'The Hyacinth Girl' - que os exegetas apontam como recordação de mocidade do autor, é, exa­tamente, uma reaparição de La Figlia che Piange, personagem do poema deste nome, último do livro Prufrock and Other Observations:

LA FIGLIA CHE PIANGE

O quam te memorem virgo.

Fica no degrau mais alto da escada - debruça sobre a urna do jardim - tece, tece a luz do sol no teu cabelo - aperta as flores contra

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o peito em dolorosa surpresa - espalha-as pelo chão e volta-te com um ressentimento fugidio nos olhos: mas tece, tece a luz do sol no teu cabelo.

Assim quisera eu que ele partisse, assim quisera eu ficasse ela e penasse, assim haveria ele partido como a alma deixa o corpo dila­cerado e contundido, como o espírito deixa o corpo que gastou. Eu encontraria algum jeito incomparavelmente leve e abafado, algum jeito que ambos compreenderíamos, simples e sem fé como um sorriso ou um aperto de mãos.

Ela afastou-se, mas junto com o vento do outono me ocupou muitos dias a imaginação, muitos dias e muitas horas: seu cabelo sobre os braços e os braços cheios de flores. E cismo como puderam estar juntos! Eu deveria ter perdido o gesto e o porte. Algumas vezes tais cogitações ainda espantam o meio da noite perturbada e o repouso da sesta.

Este emocionado poema é o último de uma coletânea em que pre­dominam a ironia e o humor. A epígrafe latina acentua a densidade da experiência, real ou imaginária, que marcou o poeta de maneira profunda. Num sistema visual plasticamente admirável, embora sugerido com a maior parcimônia (o jardim, a presença do cabelo que absorve a luz solar, a harmonia dos gestos e dos movimentos, traindo a paixão) ele cravou o drama de um abandono que deixa a alma vazia e a vontade perturbada. LA FIGLIA CHE PIANGE pode ser o padrão ideal do amor, entrevisto pela inteligência e o coração, ou a nostalgia de uma;experiência decisiva, elevada pela recordação à cate­goria de absoluto. De qualquer modo, exprime na poesia de Eliot a presença do ideal amoroso, cuja perda, ou cuja não-obtenção, indi­cam a mutilação afetiva e espiritual, que para ele é o maior proble­ma do mundo moderno. A separação da donzela inatingida se deu,

(...) como a alma deixa o corpo dilacerado (...) como o espírito deixa o corpo que gastou.

E para selar esta viuvez do corpo desertado, ele aspirou a

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(...) um jeito (...) simples e sem fé, (...)

como os que se repetem na etiqueta das relações humanas desprovi­das de sentimento profundo.

Desse drama - um furo além do

(...) trágico fulgor das incompatibilidades humanas (...)

de que fala Mário de Andrade - o poeta conservou, de muito seu, a imagem de uma triste Flora em cujo aspecto se compõe a trama dos cabelos esparsos sobre braços que enlaçam flores. Composição pro­fundamente gravada na sua visão do mundo como símbolo, pois é ela que lhe trará, anos depois, em A terra estéril, o sentimento do amor puro, total e inatingido, contrastando com a secura exaustiva do erotismo contemporâneo, cujo caráter de gozo superficial condi­cionou a enorme e torturada revolta de D. H. Lawrence, - exilado no rebotalho pedregoso dos nossos dias.

Passados oito anos, no poema alegórico Quarta-feira de cinzas, em que celebra a sua conversão, a imagem inefável reaparece, também no início de uma procura:

Na primeira volta da terceira escada estava a janela sacudida, inchada como um figo, e além do espinheiro branco e da cena campestre, a encorpada figura vestida de azul e verde encantava a primavera com uma frauta antiga. É doce o cabelo em desalinho, cabelo castanho jogado sobre a boca, cabelo lilás e castanho.

Em meio à terrível subida purificadora com que simboliza a con­versão (de olhos postos no exemplo de Dante) o único momento de doçura vem dessa figura feminina, avistada de longe, caracterizada pela magia dos cabelos e situada numa cena vegetal, no jardim de LA FIGLIA CHE PIANGE e A terra estéril; no jardim que desde os mitos babilônicos alegoriza o paraíso dos sentidos, a presença da paixão e da fertilidade. De fato, a misteriosa donzela, que acabará em Quarta-feira de cinzas por se confundir com a Virgem Maria, possui

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(se atentarmos para o seu papel nos contextos em que aparece) a vir­tude de criar a nostalgia de uma plenitude perdida (primeiro con­texto); isso, e mais o impulso para readquiri-la (segundo contexto). O que a caracteriza, portanto, é uma virtude vivificadora e fecun-dante, reforçada pela coexistência do jardim alegórico e dos símbo­los originais de fertilidade e força reprodutiva (cabelos, água, sol, vento, flores). Esta virtude é tal, que sem ela o corpo se encontra como vazio da alma (primeiro contexto) e abandonado no deserto (segundo contexto). Não se confunde com a capacidade física de amar, cuja ausência é a maldição do Rei Pescador, no antigo mito de que Eliot extraiu o fio condutor de A terra estéril; e que cantara de modo irônico e algo cruel em "Burbank with a Baedecker: Bleistein with a Cigar". Mais do que ela, (apenas uma das suas manifestações), é a própria força natural da vida, que anima e movimenta os seres, e da qual brota a própria fé. Em A terra estéril, a fé e o amor aparecem igualmente mutilados pela decadência desta força nos homens. Em Quarta-feira de cinzas, é da força de vida que emerge a força mais pura de crer, quando a imagem avistada ao longe, na ascensão, se refina, como Beatriz, em emissária quase celeste, marcada pelas cores da Virgem:

Quem andava por entre as várias filas do variado verde, de bran­co e azul, das cores de Maria, falando de coisas triviais, na igno­rância e no conhecimento da eterna dor; que se movia entre os outros quando andavam, e que então fortaleceu as fontes e refres­cou as nascentes.

Esfriou a rocha seca e formou a areia, de azul cor de pervinca, azul cor de Maria, Sovegna vos.

Por intermédio da misteriosa donzela - cuja categoria no presente contexto é definida pela invocação de prece - realiza-se o prodígio que ficara suspenso no fim de A terra estéril, onde repontava uma esperança na fórmula do Upanishad - 'Shantih shantih shantih' -mas onde tudo estava novamente por começar:

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Jerônimo enlouqueceu de novo. Agora, a água brota e fertiliza a terra ermada; a fé está finalmente

atingida, e a intercessora é invocada como

Irmã bendita, mãe santificada, espírito da fonte, espírito do jardim.

"La Figlia che Piange", a "donzela dos jacintos", a "encorpada figu­ra", a que "andava (...) de azul e branco" - se hipostasiaram na própria mãe de Deus. Da terra estéril brotou a fé para o poeta, graças àquela virtude germinal.

Assim, a donzela (perdido ou alcançado amor, que realizado teria feito florir a vida, e que traz finalmente a plenitude) se confunde com um princípio mágico de fertilização, complementar do Rei Pes­cador, dos espíritos da vegetação. A sua busca (busca da primitiva virilidade do rei; busca do princípio fertilizante) motiva e norteia o poeta, exilado na secura da "rocha morta". Identifica-se, desta forma, às rainhas e reis dos ritos primitivos de vegetação, cuja celebração está na base das teogonias do Oriente Próximo, com suas etapas (lembrando as do culto de Adônis) de suplício, morte e ressurreição do deus-mártir, símbolo do processo vegetal. O ramo dourado, de Frazer, traz sobre o assunto uma documentação abundante, colhida não apenas nos povos primitivos e nas civilizações da Antigüidade, mas nas sobrevivências que prolongam em nossos dias as velhas práticas rituais. À luz desta documentação A terra estéril fica singu­larmente esclarecida '. Compare-se o trecho seguinte:

Freqüentemente o espírito da vegetação na primavera é repre­sentado por uma rainha em vez de um rei. Na vizinhança de Libchovic (Boêmia), no quarto domingo da quaresma, moças

1 I Veja-se a nota de Eliot ao poema: "Sou devedor, de modo geral, a outra obra de

antropologia, que influenciou profundamente a nossa geração; quero referir-me a O

ramo dourado, de que utilizei especialmente os dois volumes sobre 'Adônis, Attis,

Osiris'. Qualquer pessoa familiarizada com essas obras reconhecerá imediatamente,

no poema, certas referências a cerimônias de vegetação."

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vestidas de branco, adornados os cabelos com as primeiras flores da primavera, como violetas e margaridas, conduzem através da aldeia uma moça que é chamada a Rainha e coroada de flores (...) Em cada casa, a Rainha anuncia a chegada da Primavera. (The Golden Bough, p. 131 da edição abreviada).

Aí está a genealogia provável do significado atribuído pelo poeta à donzela dos jacintos, esclarecendo o profundo sentido da sua ocor­rência na obra de Eliot e, principalmente, em A terra estéril. Não pre­tendo afirmar que tivesse, de início, o intuito de identificar a figlia che piange com os símbolos germinais dos ritos agrários, mas apenas sugerir que o sentimento especial despertado por ela veio mais tarde enriquecer o seu intento simbólico, mostrando talvez que a experi­ência pessoal lhe fazia compreender melhor o sentimento de pleni­tude germinal que sublinha a paixão e a fé. Quando teve de acentuar a esterilidade do nosso comportamento moderno, reportou-se a temas da sua poesia anterior, já marcada pela obsessão de confundir a decadência dos valores com a decadência vital, como se vê nos poemas que falam da timidez de Prufrock, da decrepitude de "Ge-rontium", da impotência sexual de Burbank. Da mesma maneira, querendo dar corpo ao mistério da germinação, corporificado nos ritos agrários, evocou da memória a forma inefável da figlia che piange, - quem sabe uma dompna soiseubuda, mulher idealmente composta, como a que Bertrand de Born inventou para enfeixar as graças indescritíveis da Dama de Montaignac, e Ezra Pound incor­porou a um dos poemas de Personae.

Se analisarmos mais a fundo, talvez cheguemos a concluir que essa misteriosa jovem, cujo amor é tão essencial que se confunde com a nossa alma; que amá-la é como morrer; que ser por ela amado é nascer para uma vida nova, - que essa misteriosa jovem corres­ponde, no nível em que germinam as imagens, à força básica na natureza, que faz viver as plantas e os animais. Para Otto Rank o mito eqüivale, nos povos, ao sonho nos indivíduos. Imaginemos que T.S. Eliot pretendeu, em A terra estéril, fundir o sonho no mito, dando universalidade às imagens do seu espírito e, ao mesmo tempo, reco-

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lhendo nele a mitologia sempre viva, como se ela fosse a própria substância da imaginação criadora.

RS. Quando este artigo foi publicado a primeira vez (Revista Brasileira de Poesia, II, Abril, 1948), o poeta Péricles Eugênio da Silva Ramos me chamou a atenção para o fato de F. O. Mathiessen, em seu livro The Achievement of T. S. Eliot, numa nota, aproximar LA FIGLIA

CHE PIANGE da donzela dos jacintos e ambas da figura misteriosa de Ash Wednesday, - fato que eu então ignorava. Aliás, cifra-se nisto o encontro do meu ponto de vista com a indicação do malogrado e eminente crítico. (1959)

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NOTAS SOBRE EZRA POUND

Eliot e Pound Um dos traços mais vivos de Ezra Pound é a capacidade de

expressão direta, sem desenvolvimentos nem meios-tons não só nas imagens, como no próprio pensamento. Daí nos dar idéia de maior energia vital do que Eliot. A técnica deste trabalha as mais das vezes como bicho-da-seda, encasulando os dados imediatos da experiên­cia numa rede sutil, mas nem sempre compensadora, que amortece o impacto inicial da realidade sensível ou intelectual. Os seus poe­mas menores - ainda sob a influência do Imagismo - são bastante diretos. No entanto, comparando-os com os de Pound podemos avaliar não só a maior força com que este sente e transmite a reali­dade, como a sua menor capacidade especulativa. Por isso mesmo afina melhor com o Modernismo dos países latinos, baseado em boa parte na redescrição do mundo.

Descrevendo uma figura feminina em seu quarto, em The Waste Land, Eliot imagina a cena fulgurante que todos conhecemos:

The chair she sat in, like a burnished throne (...)

Ou, em tradução duvidosa:

Sentada na cadeira, como num trono resplendente que luzia no mármore, onde o espelho, sustentado por colunas esculpidas de vinhas carregadas, das quais espreitava um Amor dourado (outro, escondia os olhos sob as asas), redobrava a chama de sete grandes candelabros refletindo, sobre a mesa, uma luz que se encontrava com o brilho de suas jóias, vertidas em profusão dos estojos de cetim etc.

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Um violento processo de encasular a imagem fundamental - mu­lher sentada - em imagens secundárias, dispostas segundo um con­traponto erudito de alusões.

Pound, no poema ALBATRE (Lustra), descreve do modo seguinte uma mulher, igualmente sentada em seu quarto:

Esta senhora de roupão branco, por ela chamado peignoir, é por enquanto a amante do meu amigo, e os brancos, delicados pés do seu cãozinho branco não são mais delicados do que ela, nem o próprio Gautier desprezaria os seus contrastes em brancura - ela, sentada na poltrona, entre duas velas indolentes.

Poesia imagista por excelência, com a imagem desataviada, direta­mente proposta em termos visuais, sem transições, quase sem de­senvolvimento. Mas quando se trata de idéias, a expressão direta de Pound se torna ainda mais contundente, em contraste com a ciência harmônica de Eliot - que prefere forjar um sistema complexo de imagens, quando não elaborar um símbolo, a fim de exprimir (por exemplo) a decadência burguesa. Terra estéril, sem irrigação da fé; o hipopótamo chafurdado na lama do pecado; a orgia de Sweeney, trespassada pelo canto noturno do rouxinol. Jamais ousaria, no en­tanto, escrever como Pound, sem medo de roçar pela prosa. (Com-mission, Lustra):

Vai, meu canto, ao solitário e ao mal satisfeito; vai também ao neurastênico, vai ao escravo da convenção (...) Vai à burguesia, que está morrendo de tédio.

Poesia e fascismo É interessante que o grupo imagista não produziu um só poeta de

esquerda. Foi um grupo conservador e mesmo reacionário em política ("odeio a democracia", teria dito certa vez John Gould Fletcher), embora tenha sido radical e mesmo revolucionário em matéria poé­tica. Quando os poetas se limitam à literatura, é impertinente inda­gar da sua atitude política; mas o fato é que desse grupo pelo menos

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65 NOTAS SOBRE EZRA POUND

três (é verdade que o terceiro foi apenas simpatizante do movimen­to, não pertenceu a ele) desenvolveram teorias político-sociais: Pound, Lawrence e Eliot.

Pound se tornou fascista por volta de 1930. Admirador pessoal de Mussolini, elaborou (aliás, adaptou) uma teoria econômica para servir de panacéia compulsória aos males do Ocidente. Um dos seus livros a respeito se intitula claramente Jefferson and/or Mussolini. Acu­sado de alta traição por ter irradiado contra a pátria, de estações ita­lianas, durante a guerra, está agora recolhido a uma casa de saúde sob alegação de desequilíbrio - bem provável num homem cujo exibi­cionismo irrequieto tinha laivos de paranóia.

Lawrence teve as maiores simpatias por Mussolini e esboçou uma utopia de tipo fascista no seu romance sobre o México, - A serpente de plumas. A ideologia do nazismo coincide em mais de um ponto com várias das suas idéias sobre o culto dos instintos obscuros, a lide­rança anti-racional etc. Um grupo de nazistas ingleses, reivindican-do-o como mestre, chegou a fundar uma revista com o nome do seu símbolo, Fênix.

Eliot é um doutrinador da monarquia, concebida sob característi­cas quase teocráticas. Enquanto o fascismo de Pound e o parafascismo de Lawrence (sobretudo este) podem ser considerados como desvios de um sentimento revolucionário e antiburguês, a sua Ordem repre­senta um pensamento lucidamente reacionário, baseado em senti­mento profundamente conservador.

Teórico e inspirador do Imagismo foi o misterioso T. E. Hulme, pensador soreliaaio que deixou oito poemas de circunstância e um enunciado breve do seu sistema, e cujas tendências de certo modo pré-fascistas devem ter influído nos admiradores.

Seria instrutivo analisar o processo de formação dessa consciên­cia, num grupo de intelectuais e artistas que, nauseados com o artificialismo pantanoso da vida burguesa, reagiram pelo culto do heroísmo, do fervor, da exaltação purificadora. A tendência egocên­trica levou certamente a maioria deles a propor a questão em termos individualistas de destino pessoal e, mais ainda, próprio. Daí a pre­ferência pelas doutrinas que procuram reajustar a coletividade em

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função do tipo considerado superior de indivíduo (tipo historica­

mente relativo, mas transformado em absoluto pelo sentimento de

classe, que se caracteriza por ele), e não o indivíduo em função do

tipo considerado superior de coletividade (processo normal da

história, graças ao qual se criam condições culturais para definir um

novo tipo de indivíduo).

O orgulho da criação - exaltando o criador - atua tão fortemente,

que mesmo um Lawrence, proletário, apaixonado pelo povo e com­

preendendo admiravelmente muitos dos seus problemas, é levado,

por um desvio deste amor, a rever a História em função das exigên­

cias drásticas do Eu. Na Irlanda, Yeats chegou a uma visão aristocrática

segundo a qual a beleza, para se manifestar, exigiria uma organiza­

ção social implacavelmente hierárquica. Mais típico de todos, Stefan

George, na Alemanha, criou uma filosofia e uma estética da liderança

e da submissão, regidas pelo culto totalitário da beleza. Mas rejeitou

o totalitarismo político, recusando os favores do nazismo, que o

aclamava como mestre, e se retirando voluntariamente para a Suíça,

tal é o afastamento entre a realidade e os sonhos não raro perigosos

dos poetas...

Pound e fascismo

Nos poemas de Pound encontramos a cada passo indícios reve­

ladores do processo indicado acima. Um nojo crônico dos valores

burgueses, uma nostalgia da violência profilática de heróis e legis­

ladores. Eis duas estrofes de um poema de 1919 ou 1920 (E. P. - ODE

POR L'ELECTION DE SON SEPULCHRE, de Poemsfrom Lustra):

Os homens são iguais, segundo a lei. Livres de Pisístrato, esco­

lhemos um velhaco ou um eunuco para nos governar.

Ó lúcido Apoio, tín ándra, tín herôa, tina theón. Qual deus,

homem ou herói cingiremos do diadema de latão?

Ou o poema transposto de um velho canto anglo-saxão (THE SEA-

FARER, de Ripostes):

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67 NOTAS SOBRE EZRA POUND

Dias pouco duráveis, com toda a arrogância dos ricos da terra; e não há mais reis, nem Césares, nem senhores como os de outro-ra, dispensadores de ouro.

Ao lado dessas nostalgias cesaristas, uma veia brilhante e quase histriônica de sarcasmo - que as explica de certo modo (SALVA-

TIONISTS, de Lustra):

Vinde, meus cantos, vamos nos armar contra esse mar de estu­pidez - a começar com Mumpodorus;

E contra esse mar de vulgaridade - a começar com Nimmin; E contra esse mar de imbecis - todos os beletristas Bulmenianos '.

Contra o terno, polido Housman e sua melancolia bem-pensante, sua placidez elegíaca, um curto poema satírico verdadeiramente admirável:

A mensagem de Mr. Housman

Ai de mim, ai. As gentes nascem e morrem; também nós morreremos daqui a

pouco; portanto, é agir como se já estivéssemos mortos. O pássaro canta no galho, mas também ele acaba morrendo. Alguns moços morrem na forca, outros a bala. Como é triste a

sorte humana. Ai de mim, ai etc.

Londres é um lugar terrível, Shropshire é muito mais ameno. Logo, vamos sorrir um bocado a propósito do encanto mórbido da natureza.

I I Não identifico as alusões pessoais (Mumpodorus e Nimmin). 'Bulmenians' deve

indicar o famoso "grupo de Bloomsbury", predominante a certo momento na litera­

tura inglesa com o seu ar de requinte meio esteticista. Pertenciam a ele Virgínia

Woolf, Clive Bell, E. M. Forster, Lytton Strachey, J. M. Keynes.

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O OBSERVADOR LITERÁRIO 68

Ai de mim, ai etc2.

Nesta veia do poema-piada é inesgotável e brilhante. Sobretudo porque não se limita à piada. Lendo-o nós sentimos a presença de uma vitalidade transbordante, estourando os quadros apertados da vidinha literária burguesa; e ao mesmo tempo o anseio pelo apareci­mento dos que virão redimi-la, infundindo sangue nos homens. Mussolini, por exemplo... Ou ele próprio, se tomamos ao pé da letra o que diz a um terceiro no poema AMITIÉES, de Lustra:

Para as nossas festas, não trazes espírito, nem flama, nem as ati­tudes deleitáveis do discípulo.

No poeta que faz política, há muitas vezes o desejo frustrado de obter a reverência destas "atitudes deleitáveis". E seguem-se as perver­sões do sentimento da liberdade.

Revista Brasileira de Poesia I 1948

2 I O livro mais famoso de Housman é The Shropshire Lad.

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d)

UMA DIMENSÃO ENTRE OUTRAS

C erta vez um amigo me disse que não tinha achado interesse na Chartreuse de Parme. Justificando a heresia ante os meus protestos e argumentos, deu como razão o fato de só lhe

interessarem, em literatura, as obras cujo núcleo fossem problemas de natureza nitidamente psicológica.

Tal reflexão feita a propósito de Stendhal, - catalogado como ana­lista por excelência, enfileirado entre os mais sutis entre eles - me le­vou a pensar na classificação dos seus livros, questão nada fútil se acharmos, como Thibaudet, num artigo da Revue de Genève, que "quem não enfrenta o problema dos gêneros é tão pouco crítico, quan­to é pouco filósofo quem não enfrenta o problema das Idéias".

Todavia a compartimentação dentro dos próprios gêneros é freqüen­temente ociosa, revelando-se estreita ante a exuberância das obras de grande qualidade. Dizem os manuais que o de Stendhal é um romance de análise, mas assim não pensa o meu amigo, que deve ter algum motivo, porque é um homem sagaz; pelo menos em relação à Chartreuse. E de certo modo tem. Resta descobrir por quê.

Coloquemos Henri Beyle entre um magro e um gordo, literaria-mente falando: Benjamim Constant, autor de cento e poucas pági­nas que o puseram no estado-maior da ficção psicológica, e Balzac, talvez o maior temperamento de romancista que já houve. Esta posição intermédia, que ocupa também pelo volume da obra e a idade, ajuda a esclarecer o seu caso.

Benjamim Constant, puro analista, é o homem que esquadrinha um caso, sobre o qual parecem não pesar o tempo e o espaço. Justa­mente por isso, pôde apenas fazer um romance, desde que só lhe inte­ressa a depuração que tudo reduz a um modelo -, único, completo em si. Beyle não é, decididamente, um psicólogo dessa espécie.

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O OBSERVADOR L I T E R Á R I O 70

Balzac, como diria o personagem de Ciro dos Anjos, é um Abun­dando; um folhetinista genial que desconhece essas manipulações de pinça e agulha. Envolvendo o seu gênio, adjetivando-o, por assim dizer, possui duas características capitais: um temperamento oní-voro e a obsessão com as condições materiais da vida. Por isso, empunha violentamente os personagens e os atira na sarabanda que o seu patrício Gounod faz os homens dançarem em torno do bezerro de ouro. Ora, nessa sarabanda muita coisa acontece. Acontece, so­bretudo, que as pessoas não dançam sozinhas, mas se misturam umas às outras, se ajudam, se empurram, se repelem, entram em contactos de toda espécie, formando sarabandas menores que se tor­nam maiores, - sarabandas suplementares em torno do bezerro do amor, da vaidade. E Balzac sabe, como ninguém, fazer dançar essa gente toda. Toca em seu violino as árias mais variadas, por vezes de um mau gosto maior que as do seu contemporâneo Gounod. E vai empilhando volume sobre volume, "do grotesco ao sublime", num transbordamento de forças de atleta de circo. No fim, criou um mundo onde avulta o sistema de relações que unem os habitantes. A intensidade psicológica dos seus personagens, sobrepairam a inten­sidade e a verdade com que vivem os problemas determinados pelo seu modo de ser, a sua classe, o seu tempo. Beyle não é, decidida­mente, um sociólogo dessa espécie.

Mas se imaginarmos um romancista dotado de um poder de pene­tração tão agudo quanto Benjamim Constant, e um senso do social tão elevado quanto Balzac, teremos compreendido mais ou menos quem seja. Isso não quer dizer que valha mais que os outros; apenas que coexistem harmoniosamente na sua obra as qualidades que adquirem, isoladas, maior intensidade nas dos outros dois.

Por este motivo, talvez se possa dizer que é um psicólogo mais completo que ambos, estando a chave dos seus livros no fato de serem Tratados de paixões, estudadas com referência a uma época. Melhor: do rumo que as estruturas sociais imprimem às paixões.

O homem stendhaliano (como o de toda grande literatura) é eterno. O diálogo que travamos com ele se passa nas esferas essenciais dos problemas humanos. No entanto, - quem sabe por isso mesmo, - é

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71 UMA DIMENSÃO ENTRE OUTRAS

o homem de uma dada época, haurindo ^ sua verdade das condições temporais que lhe dão relevo. Na História da literatura francesa, diz Thibaudet com penetração que "Stenclhal faz do romance uma crônica, no sentido elevado da palavra, quer dizer, o quadro de uma época", - frase que esclarece o autor e a sua psicologia literária. Ela é, mais que uma análise fina, levada a cabo em si e por si, um estudo da coloração especial que as épocas históricas imprimem aos modos de ser. Por isso os seus romances são manuais do homem, desdobrados numa perspectiva de crônica, de quadros, em função dos quais se explica a conduta individual.

Parece claro que os sentimentos e conseqüentes atitudes de Fabrice dei Dongo não têm um sentido absoluto, como desejaria o racio-nalismo clássico. É preciso considerá-los em relação ao seu nasci­mento, ao sopro napoleônico que varreu a Itália da sua infância, à corte reacionária de um pequeno Estado refeito pelo Congresso de Viena. Ninguém saberia fazê-lo melhor que Stendhal, e porque o faz, a Chartreuse tem aquele inesquecível aspecto de tratado da con­duta em função da circunstância, que deve ter desagradado ao espírito adolfiano do meu amigo. Stendhal é um romântico ao seu modo, - homem de um período que descobriu o significado da his­tória e que, portanto, embora sabendo permanentes os impulsos fundamentais, pressentia que eles se revestem das características peculiares ao tempo em que se manifestam. Além do mais, viajara muito; vira o homem em várias latitudes e os mesmos países sob três ou quatro regimes profundamente diversos. Andava bem avisado, portanto, ao «estudar a psicologia do seu semelhante à luz do meio em que se agita.

Na sua obra passa a formidável tensão do arrivismo. Esta presença não existe por acaso, nem por mera questão de gosto pessoal, - mas porque era o grande problema do tempo, antes de ser o dele próprio.

Na Europa Ocidental, o começo do século XIX é o momento em que as hierarquias sociais passam a se organizar mais segundo o cri­tério do adquirido que do herdado, embora de um adquirido que ainda procurava se disfarçar sob a aparência deste. Na Chartreuse, o juiz Rassi não sossega enquanto não oculta o doído plebeísmo num

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O OBSERVADOR LITERÁRIO 72

condado de última hora; o duque Sanseverina-Taxis, marido com­placente da bela Gina, tem vergonha do avô ter sido coletor de im­postos e procura atenuar esta lacuna genealógica por meio duma brilhante grã-cruz e uma embaixada, que realcem a novidade do título. Já no tempo de Luís Filipe, - que não era a corte ultramon-tana de Parma, nem a Restauração em que se debateu Julien Sorel -Popinot, o ruivo e simpático caixeiro, depois genro de César Biro-teau no romance deste nome, será conde sem vertigem, enquanto a burguesia espera o momento de Rockefeller dizer com orgulho que o pai fora um pobre diabo, entre curandeiro e saltimbanco.

De qualquer maneira, depois que Napoleão declarou a ascensão social franqueada ao mérito, - Ia carrière ouverte au talent - come­çou-se a dar maior importância ao que foi feito pelas próprias mãos. Stendhal tem consciência disso; na sua obra, a luta pela posição e pela aparência social se eleva a motivo condutor. Tão bom sociólo­go quanto psicólogo, não perde de vista a origem do personagem ao jogar com as paixões.

Tomemos os principais: Julien Sorel (Le Rouge et le Noir), Lucien Leuwen (Lucien Leuwen), Fabrice dei Dongo {La Chartreuse de Parme). O primeiro é filho dum serrador de aldeia, sendo enorme a distância social que o separa dos pináculos visados pela sua ambição. Em conseqüência, será também enorme a quantidade de energia que deve pôr em jogo para chegar até eles. A batina preta é o instru­mento a que se submeteu para vencer, e sob a qual aparece como a própria encarnação da vontade. Por isso, a sua complexidade é má­xima; e o seu interesse, maior que o de qualquer outro personagem stendhaliano. Nele se agitam correntes numerosas dos mais vários impulsos, que procura compor no sentido da carreira - e acabam por levá-lo ao cadafalso.

Com Lucien, subimos consideravelmente na escala social. É bem-nascido, filho de um banqueiro que fez fortuna mas não respeita o di­nheiro; o problema do arrivismo se apresenta para ele sob aspectos mais róseos, apesar das limitações impostas pelo reacionarismo da Restauração, ainda predominante na imaginária Nancy, para cuja guarnição de lanceiros é destacado. Ele quer mais prestígio, é claro; mas

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dada a excelente posição que é o seu ponto de partida, quer sobretudo amar Madame de Chasteller, e a sua vontade não precisa da intensi­dade quase trágica revestida pela alma napoleônica de Julien Sorel.

Se, finalmente, tomarmos Fabrice, veremos que a sua vontade, muito mais relativa, só chega a se desenvolver firmemente num alvo amoroso, - a conquista de Clélia Conti. O problema do arrivismo não tem grande sentido para ele, que encara o lugar de coadjutor, depois o de arcebispo, recebido sem levantar um dedo, com a dis­plicência do marquês Valserra dei Dongo, da primeira nobreza lom-barda, a quem o nascimento dá direito de ter impulsos e segui-los. A sua precoce ascensão nas dignidades se faz automaticamente, e ele emprega o tempo em coisas mais interessantes.

Em Stendhal, portanto, a psicologia anda tão entranhada com a sociologia, - se assim pudermos falar - que talvez não faça mesmo as delícias dos cultores de Amiel. É uma questão de visão das coisas. O pobre dragão do Exército da Itália, politécnico fracassado e conver-sador consular, bem sentia de que modo as reviravoltas políticas e sociais aguçam ou embotam as nossas diferentes virtualidades, ape­lando de preferência para esta ou aquela. Por isso concebia um homem fundamentalmente ligado ao tempo e ao grupo, cujas paixões se ordenassem conforme um e outro; por isso é de fato um cronista, como queria Thibaudet, sem deixar de ser um psicólogo, cheio de realismo e medida, não sabendo como separar a análise individual do necessário complemento social, que esclarece e lhe dá sentido.

"O grande conflito que ensombrece o século XIX é a raiva da hie­rarquia contra o mérito", disse Stendhal. Para ele, o problema do ho­mem no seu tempo era a conquista da posição social, fazendo valer o mérito contra a liga formada pelas potências estabelecidas, nada interessadas em admitir esse critério de seleção. A certa altura de um dos livros fala explicitamente no problema, que enche toda a sua obra, chamando hipocrisia ao conjunto de opiniões e atitudes po­líticas e sociais que obstam a vitória do merecimento, endeusado na frase já citada de Napoleão. Qual a sua maneira de situar este pro­blema, que é o do próprio indivíduo na sociedade? Indicando-a, tocamos no fundamento da sua arte.

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Num pequeno livro sobre o nosso autor, onde há idéias profundas nem sempre discerníveis à primeira vista sob o estilo denso e simples até a elipse, Alain faz uma admirável reflexão, própria para alegrar os beylistas:

O gênio de romancista que encontramos em Stendhal, e não se assemelha ao de outros, consiste em grande parte no fato dos per­sonagens serem, antes de tudo, iguais perante ele.

Com efeito, na base da sua psicologia há um ponto de vista difícil de assumir ante a vida, porque é um severo compromisso, e que se poderia chamar imparcialidade. Se adotarmos a resolução de pensar apenas o que vemos, a coerência nos obriga a um despojamento de preconceitos que conduz à censura de dureza e por vezes imorali­dade, freqüentemente lançadas a Stendhal. Pois os seus heróis, mesmo prediletos, são traçados com uma isenção de ânimo rara­mente encontrada em literatura, e, em todo o caso, ausente da que predominava no seu tempo. Julien Sorel, Gina dei Dongo, o conde Mosca, o velho Leuwen - são criaturas que passam a dois dedos das atitudes mais reprováveis segundo a moral dominante, e freqüente­mente caem nelas. São humanos, cheios de paixões exigentes, e o contrapeso formado pelas suas quedas permite aceitar integral­mente a pureza de outros, como Madame de Renal, ou a escrupu-losa dignidade de Madame de Chasteller. Educado no respeito pela observação, Stendhal não evitava as conseqüências dos dados ini­ciais segundo os quais delineara um personagem. "A verdade. A dura verdade." Esta frase de Danton serve de epígrafe a Vermelho e preto.

Nas notas com que encheu as margens do manuscrito de Lucien Leuwen, e Henri Martineau publica na bela edição da Pléiade, faz uma observação que esclarece a fatalidade da posição imparcial, referindo-se ao dever do romancista acatar a verdade segundo a qual vão se desenvolvendo os personagens. Madame de Chasteller quis tomar uma atitude e não ousou. Stendhal comenta:

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A este propósito, diz o historiador: não podemos esperar que uma mulher honesta se entregue sem reservas; é preciso antes conquistá-la. For me. O melhor cão de caça não pode fazer mais que levar a peça ao alcance da espingarda do caçador. Se este não atira, a culpa não é do cachorro. O romancista é uma espécie de cachorro do herói.

A afirmação grifada por mim dá o sentido da imparcialidade. A sua atitude é, pois, radicalmente contrária à de Lucien Leuwen,

que, reputando a alma um lodaçal, não queria se deter junto dela, com medo de atolar. Ele, ao contrário, pára, sonda, e, sentindo-se feito da mesma lama, com ela esculpe os personagens. Resultado é que estes não são seres isolados da realidade, nem ilustrações deste ou aquele ponto de vista; mas homens e mulheres de extraordinária diversidade, submetidos à análise objetiva de um psicólogo profun­damente humano, por se sentir vinculado ao semelhante.

Os seus romances, todavia, ao contrário de muitos do Naturalismo, (que o aclamou um dos seus mestres), não focalizam tipos banais. ()s seus heróis têm sempre algo excepcional, - seja devido à apli-i ação intensa da vontade, seja pelo vigor da paixão. No meio dos homens, encarados sem benevolência, isola certos seres de exceção, que, por isso mesmo, devem formar uma supersociedade de espíritos superiores, na sociedade banal de que se destacam. Não é carinho pelo personagem, mas reconhecimento da força seletiva da vida, ri ido a maneira que achou de propor o problema do mérito. Um

I recho de Lucien Leuwen traça o rumo segundo o qual se organizam essas "super-relações":

Na simplicidade nobre da maneira que ousou espontaneamente .issumir para com Madame de Chasteller, Lucien soube deixar I ransparecer, sem aventurar nada que pudesse ferir a mais escru-pulosa reserva, esse matiz de familiaridade delicada que convém a duas almas da mesma escala, quando se encontram e reconhecem no meio dos disfarces deste ignóbil baile de máscaras que se i hama boa sociedade.

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Segundo estas afinidades eletivas se organiza o mundo stendha-liano, com a oposição nítida entre almas de elite e almas vulgares. E esta oposição também aparece como dado natural, registrado pelo romancista com a imparcialidade costumeira. Reflexo, aliás, da con­cepção que tinha da vida e da sociedade, do profundo desamor aos privilégios estabelecidos, mas doutro lado, à vulgaridade favorecida, segundo ele, pela democracia (a birra pelo americanismo reponta a cada passo em sua obra). Reflexo da crença firme na elevação dos indivíduos pelo próprio esforço, e da revolta ante a patifaria gene­ralizada e os restos de privilégio que a isto se opunham. "O grande conflito que ensombrece o século XIX é a raiva da hierarquia contra o mérito." Para ele o mérito era o elemento principal, estivesse onde estivesse, - nos marqueses, nos ricaços, nos filhos de serrador. E as almas que o manifestassem deveriam fatalmente se unir nos seus romances, como de fato se unem, compondo a sua mensagem de superioridade moral e espiritual.

Um romancista que parte da igualdade no tratamento dos per­sonagens, não hesitando em pintar os seus lados menos lisonjeiros, mas selecionando num grupo de happy few (para usar uma expressão muito dele) os que apesar disso se destacavam pelas quali­dades humanas, - deve ser um romancista cuja psicologia assenta em atitude nitidamente individualista. E assim é a de Stendhal, republicano e cultor da energia, admirador dos condottieri e de Na-poleão - sobretudo de Bonaparte.

Tão individualista era ele, que talvez tenha sido o primeiro a reduzir um grande acontecimento histórico ao ângulo da experiência individual, como é o caso da batalha de Waterloo na Chartreuse de Parme. Um individualismo conseqüente até o relativismo, romântico, sem dúvida, mas que nada tem a ver com a hipertrofia do Eu, ao modo de Chateaubriand, ou de outro famoso descritor da mesma batalha, Victor Hugo. A descrição de Stendhal importa em introduzir na arte um ponto de vista rigorosamente humano, sem recorrer à abstração racionalista nem à amplificação retórica. Comparando-a com a d'Os miseráveis, compreende-se bem este seu valor.

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77 UMA DIMENSÃO ENTRE OUTRAS

Para Fabrice a batalha era um fato capital; pôr-se ao lado de Napoleão tinha sido o móvel da sua fuga da Itália. Uma vez metido nela, porém, o que vê são fragmentos sem significado geral, que não servem para dar uma noção do que realmente ocorre. O ângulo do romancista é a câmara subjetiva dum recruta inexperiente, desgarrado na luta, que não vê, como o observador ideal de Victor Hugo, colo­cado num ponto ideal totalmente fictício das linhas da batalha, as famosas cargas de Ney, os quadrados do Batalhão Sagrado, a carnificina de La Haye-Sainte. Em compensação, se deslumbra com a montaria comprada, faz amizade com a vivandeira, participa dum tiroteio e nota certo pormenor desagradável, que lhe faz quase perder o embalo: os pés imundos de um soldado morto e despojado. Caso perguntem como foi a batalha, Stendhal responderá por ele que se lembra apenas de ter andado na escolta do marechal Ney; que depois lhe roubaram o cavalo; que dormiu em seguida e, finalmente, se juntou a uma unidade, fugindo com o seu cabo rumo ao Charleroi. Do cabo não se esqueceria mais. Era um homem valente, rude e cheio de humanidade, contrastando de modo gritante com o general Fábio Conti e os oficiais da corte de Parma, - preocupados eterna­mente com a oscilação das cabalas e o número de botões que os uni­formes deveriam ter. O que talvez levasse Fabrice a dizer, como Lucien Leuwen, que não há de fato uma qualidade essencial deter­minando superioridade do coronel sobre o sargento, ou da marquesa sobre a merceeira. Isso, porque o criador de ambos era republicano e ideólogo, e se os homens são iguais perante a lei (como vinha na Declaração famosa) devem sê-lo também ante o escritor. Por isso, o romancista digno do nome se preocupa com os direitos psíquicos e políticos dos indivíduos, traçando a crônica do mal que advém, para a sociedade, das relações não se organizarem segundo o mérito. Esta frase é um dos esquemas que esclarecem a obra de Stendhal, -esclarecendo uma das suas muitas dimensões.

Folha da Manhã I 1943

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O PORTADOR

E preciso afastar, em relação a pensadores como Nietzsche, o conceito de guerra, propagandístico ou ingênuo, que o encara como uma espécie de Rosenberg mais fino e procura ver no

seu pensamento o precursor do nazismo. Esse antipangermanista con­victo deve ser considerado o que realmente é: um dos maiores inspi­radores do mundo moderno, cuja lição, longe de estar exaurida, pode servir de guia a muitos problemas do humanismo contemporâneo.

Mesmo rejeitando o conteúdo das suas idéias, devemos reter e ponderar a sua técnica de pensamento, como propedêutica à supe­ração das condições individuais. "O homem é um ente que deve ser ultrapassado", disse ele; e o que propõe é ultrapassar incessantemente o ser de conjuntura, que somos num dado momento, a fim de buscar estados mais completos de humanizaçao. Talvez pudéssemos indicar os rumos da sua propedêutica dizendo que visa a uma expansão mais completa das energias de que somos portadores, e nesse sentido é elucidativa a preocupação de ascese, de exercício preparatório, que atravessa toda a sua obra. Por isso invoca ou sugere uma certa dureza e a abolição da autocomplacência: ver duro e cru, em si e nos outros, para ser capaz de ver justo e bom, posto que justiça e bon­dade repousam sobre a energia com que superamos as injunções, as normas cristalizadas, tudo enfim que tende a imobilizar o ser em posições já atingidas e esvaziadas de conteúdo vivo. O que é tacita-mente aceito por nós; o que recebemos e praticamos sem atritos in­ternos e externos, sem ter sido por nós conquistado, mas recebido de fora para dentro, é como algo que nos foi dado; são dados que incor­poramos à rotina, reverenciamos passivamente e se tornam peias ao desenvolvimento pessoal e coletivo. Ora, para que certos princípios, como a justiça e a bondade, possam atuar e enriquecer, é preciso que surjam como algo que obtivemos ativamente a partir da superação

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O OBSERVADOR LITERÁRIO

dos dados. "Obtém a ti mesmo" - é o conselho nietzschiano que o velho Egeu dá ao filho, no Teseu, de Gide. Para essa conquista das mais lídimas virtualidades do ser é que Nietzsche ensina a combater a complacência, a mornidão das posições adquiridas, que o como­dismo intitula moral, ou outra coisa bem soante. Na sua concepção há uma luta permanente entre a vida que se afirma e a que vegeta; parecia-lhe que esta era acoroçoada pelos valores rotinizados da civi­lização cristã e burguesa.

Realmente, se submetermos à análise rigorosa a maneira por que damos abrigo aos valores espirituais, veremos que em nossa atitude há mais de comodismo e flacidez moral do que propriamente crença ativa e fecundante. Aceitamos por via de integração, participação submissa no grupo, tendendo a transformar os gestos em simples repetição automática. E fazemos isso para evitar as aventuras da per­sonalidade, as grandes cartadas da vida, julgando pôr em prática va­lores conquistados por nós mesmos. Ora, a obra de Nietzsche nos pretende sacudir, arrancar deste torpor, mostrando as maneiras pelas quais negamos cada vez mais a nossa humanidade, submetendo-nos em vez de nos afirmarmos. Encarada assim, a exaltação do homem vital e sem preconceitos vale, de um lado, como retificação do huma-nitarismo freqüentemente ingênuo do século XIX; de outro, como reivindicação da complexidade do homem, contra certas versões racionalistas e simplificadoras.

Com efeito, ele afirma longamente em sua obra (de modo quase sistemático na primeira parte de Além do bem e do mal, por exemplo) que o homem é mais complexo do que supõem as normas e con­venções. Bem antes das modernas correntes da psicologia, analisou a força e importância dos impulsos de domínio e submissão, con­cluindo que há em nós um animal solto que também compõe a per­sonalidade e influi na conduta. Naquela obra, insiste sobre a pre­sença, no tecido da vida humana, dessas componentes que a moral e a convenção procuram eliminar, depois de as haverem condenado.

A sua teoria da consciência como superfície, afloramento de obs-curidades que não se pressentem, anuncia a psicanálise, como podemos ver nas longas exposições da Vontade de poderio. Sob este

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ângulo, e apesar do desvirtuamento da expressão, o super-homem aparece como tipo superiormente humano, - um ente que consegue manifestar certas forças de vida, mutiladas em outros por causa da noção parcial que a psicologia e a moral convencionais oferecem de nós. Em meio à hipocrisia, à debilidade da consciência na burguesia européia do fim do século, ao humanitarismo manhoso com que procurava adormecer o sentimento de culpa, Nietzsche assume por vezes uma estatura de justiceiro. E um exemplo da ironia que espreita na posteridade as idéias dos filósofos é o fato de muitas dessas vir­tudes de dureza propedêutica terem sido encarnadas, no século XX, por uma raça de homens que ele sempre considerou progênie de escravos. Na elite revolucionária que implantou o socialismo na Rússia, encontravam-se, como a realização impressionante duma profecia, as qualidades de implacável retidão que atribui, em Vontade de poderio, ao "Legislador do Futuro", - que poda sem dó a fim de favorecer a expansão plena, e cuja dureza aparente é, no fundo, amor construtivo pelos homens.

Nele, porém, esta atitude só adquire significado reposta no con­junto da obra, - naquela mistura, tão sua, de fervor e irreverência, destruição raivosa e júbilo construtivo, que é a única possibilidade do nosso tempo e ele anteviu como profeta. Para a opinião domi­nante, a sua crítica violenta fez dele um personagem incômodo, ante o qual se fecham as portas da cidade, como as que, na parábola final de Humano, demasiado humano, rejeitam o peregrino para a noite do deserto. Ele vinha romper uma série de hábitos tacitamente acei­tos, e mostrar que a própria filosofia não dava mais conta das obri­gações para com a vida.

Talvez se possa dizer, com efeito, que a partir do século XVIII e até o nosso, ela cuidou mais da natureza do espírito e das condições do seu funcionamento, que do seu caráter de aspecto da atividade hu­mana total. Doutro lado, analisou de preferência tudo que condi­ciona e resulta do comportamento; raras vezes desceu às suas raízes vivas. Semelhante tarefa coube não raro à arte, cuja importância como forma de conhecimento não decresceu no mundo moderno, como se poderia pensar à primeira vista. A acuidade psicológica, por

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O OBSERVADOR LITERÁRIO 82

exemplo, não se confunde com a competência dos especialistas, e deve ser buscada menos neles do que em obras como as de Dostoievski, Proust, Pirandello ou Kafka; e não é de estranhar que o maior psicólogo do nosso tempo, Freud, seja uma espécie de ponte entre o mundo da arte e o da ciência; entre os processos positivos de análise e a intuição estética.

Nietzsche se situa no universo dos psicólogos artistas, e daí de­corre o significado central da sua obra. Enquanto algumas e por muitos lados melhores tendências do pensamento oitocentista pro­curavam resolver o problema da vida em sociedade criticando as condições de existência, ele tentou atingir diretamente o núcleo da personalidade. Se Marx ensaiava transmudar os valores sociais no que têm de coletivo, ele ensaiou uma transmutação do ângulo psi­cológico, - do homem tomado como unidade duma espécie, pela qual é decisivamente marcado, sem desconhecer, é claro, todo o equipamento de civilização que intervém no processo. São atitudes que se completam, pois não basta rejeitar a herança burguesa no nível da produção e das ideologias; é preciso pesquisar o subsolo pessoal do homem moderno tomado como indivíduo, revolvendo as convenções que a ele se incorporam e sobre as quais assenta a sua mentalidade.

Daí a conseqüente transmutação dos valores morais. Discípulo dos grandes analistas franceses, apaixonado de Stendhal e Dostoievski, dando uma sentença de Pascal por toda a metafísica alemã, continua os grandes investigadores da conduta, concebida como arte. O seu objetivo é lançar as bases de uma nova ética, acessível aos homens que se obtêm, - homens superiores que alargarão até os outros aquilo que conquistaram penosamente, cauterizando em si a herança de uma ci­vilização desvirtuada. "É certo que todos nós temos laços e afinidades que nos ligam ao santo, assim como um parentesco espiritual nos vincula ao filósofo e ao artista", - diz numa das Considerações intem­pestivas. Em conseqüência, todo progresso no sentido da realização do super-homem significa riqueza coletiva, na medida em que atuam essas afinidades secretas que, ligando-o a todos, a todos enriquecem pela comunicação da seiva.

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83 O PORTADOR

Para favorecer o aparecimento dos homens superiores, é preciso alterar o modo de encarar a vida e o conhecimento. O ideal nie-tzschiano seria o pensador que passeia livremente pela vida e recusa considerar a atividade criadora uma obrigação intelectual; o homem que, para fecundar a si e aos outros, suprime o hiato existente as mais das vezes entre conhecer e viver.

No belo trecho final d'A irreligião do futuro, Guyau chama ao filó­sofo - amigo do desconhecido: cet ami de Vinconnu. Ele é, com efeito, irmão do aventureiro, e não deve renegar o parentesco vivificante. Enquanto um se desapega da estabilidade e da rotina para obter em torno de si a mudança permanente das pessoas, lugares ou situações, outro opera de maneira semelhante no terreno do espírito, jogando fora convicções, crenças, noções, para obter alguma coisa nova ao cabo dessas rejeições múltiplas e por vezes fatais. Ambos atiram lenha à fogueira, aquecendo-se ao calor de coisas arrancadas à sua norma de vida: fogueira da existência ou fogueira do pensamento. Em muitos casos, ambas.

Vindo após séculos de filosofia catedrática, Nietzsche se revoltou violentamente contra a mutilação do espírito de aventura pela ofi­cialização das doutrinas. E a seu modo foi um aventureiro, não só na existência agitada e ambulante, à busca de lugares novos, emoções renovadas, (como alguém que necessita atritar-se com o mundo para despedir faíscas de vida), mas também no pensamento, à busca de ângulos novos, posições inexploradas, renovando sem parar as técnicas do conhecimento. A intervenção feliz de um gênio familiar impediu sempre as suas tentativas de amarrar as idéias em sistemas amplos e fechados '. Exprimiu-se de preferência em trechos breves,

1 I Hoje, após os trabalhos e a edição de Karl Schlechta, sabemos com certeza que a

Vontade de poderio, como foi publicada, sobretudo nas últimas edições, chamadas

completas, não passa duma ordenação arbitrária de fragmentos que não haviam sido

destinados a qualquer obra sistemática. O sistema e suas implicações capciosas nasce­

ram do interesse fraudulento de sua irmã e respectivos colaboradores, ingênuos ou

cúmplices conscientes. (Nota de 1959)

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aforismos e cânticos, a fim de que tudo o que borbulha não fosse canalizado pelo desenho geométrico dos tratados; e para que a filosofia não renunciasse ao privilégio da permanente aventura, a troco da estabilidade que se obtém fechando os olhos ante a fuga vertiginosa das coisas. O tipo de pensador nietzschiano é o Peregrino, o Wanderer, cuja sombra se projeta pelos quatro cantos e nunca vende a alma ao estável, ao tranqüilo, porque deseja manter-se fiel ao desconhecido, enfrentando-o com a coragem da aventura. A men­cionada página final de Humano, demasiado humano (Ia parte) define este repto permanente da filosofia, e é das mais belas que se escreveram sobre o destino do pensador, rejeitando a segurança ilu­sória de que se nutrem os homens médios, para não permanecer de olhos baixos, cegos em meio à vida que estua no desconhecido, ofe­recendo aventuras que glorificam e consomem:

Quem atingiu dalgum modo a liberdade da razão, não se pode considerar na terra outra coisa que um Peregrino, embora não viajante rumando para uma meta final, - pois esta não existe. Contemplará e terá os olhos abertos para tudo o que acontece no mundo; não ligará o coração em definitivo a nada de único; deve haver nele algo erradio, pois a sua alegria está no mutável e no inconstante. Por certo cairão noites penosas sobre um homem desses, - quando estiver cansado e encontrar fechadas as portas da cidade, que lhe deveria dar repouso. Pode ser, ainda mais, que o deserto chegue até elas, como no Oriente, e as feras ululem, ora perto, ora longe, e um vento forte se eleve, e os salteadores lhe roubem os animais de carga. Desce então uma noite terrível, como um segundo deserto no deserto, e o Peregrino se sentirá exausto no coração. Quando o sol levantar, abrasando como a divindade da ira, abre-se a cidade, e nas faces dos habitantes ele verá talvez mais deserto, mais sujeira, mais embuste e mais insegurança do que fora de portas, - e o dia será quase pior do que a noite. Isto pode, na verdade, ocorrer a um Peregrino; mas depois virão, como recompensa, manhãs deleitosas, noutra paragem e noutro dia, onde, através do dilúculo, verá bandos de musas bailarem perto,

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na névoa das montanhas; onde, em seguida, quando passear à sombra das árvores, na serenidade da manhã, cair-lhe-ão, dentre os ramos e a folhagem, coisas boas e claras, dádivas dos espíritos livres, que se acomodam bem, como ele, nos montes, florestas e solidões, e são, como ele, de maneira ora alegre, ora pensativa, pe­regrinos e filósofos. Oriundos do mistério da madrugada, pensam no que pode fazer tão pura, luminosa, jovialmente transfigurada a fisionomia do dia entre a décima e a décima segunda pancada do sino: andam a buscar a Filosofia da Manhã.

Sob esta roupagem alegórica, sob a graça deste estilo a que a tradução retira o aspecto por assim dizer miraculoso, Nietzsche é eminentemente um educador. Propõe sem cessar, como aqui, uma série de técnicas libertadoras, levando-nos ao paradoxo de pensar, como Gide, nos Pretextos, que a sua "influência (...) importa mais do que a sua obra". Talvez seja verdade, grata a quem exclamou na Gaia Ciênciq: "Para que serve um livro que não for capaz de nos trans­portar além dos livros?" Os seus conduzem para o terreno da aven­tura espiritual; livros de movimento, que têm um pacto misterioso com a dança, elemento-chave do seu pensamento:

Há escritores que, pelo fato de representarem o impossível como possível, e falarem do que é moral e genial como se ambos não passassem de fantasia, capricho, provocam um sentimento de alegre liberdade, como se o homem se pusesse sobre a ponta dos pés e, graççs a um júbilo interior, fosse obrigado literalmente a dançar. (Humano, demasiado humano)

É claro que os seus livros, que ensinam a dançar, não emanam de um filósofo profissional, mas de alguém bastante acima do que nos habituamos a conceber deste modo. Como poucos, em nosso tempo, é um portador de valores, graças ao qual o conhecimento se encarna e flui no gesto de vida. "Aqui, a certeza é um jogo; dir-se-ia que o conhecimento encontrou o seu ato, e que de repente a inteligência aceita as graças espontâneas." (Valéry)

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Há, com efeito, seres portadores, que podemos ou não encontrar, na existência quotidiana e nas leituras que subjugam o espírito. Quando isto se dá, sentimos que eles iluminam bruscamente os cantos escuros do entendimento e, unificando os sentimentos desparelhados, revelam possibilidades de uma existência mais real. Os valores que trazem, eminentemente radioativos, nos trespassam, deixam translúcidos e não raro prontos para os raros heroísmos do ato e do pensamento. Geralmente, ficamos ofuscados um instante quando os vemos e, sem força para os receber, tergiversamos e nos desviamos deles. A opaci­dade se refaz, então, a mediania recobra o domínio e só resta a lem­brança, de efeitos variáveis. Os coevos lobrigavam chamas do inferno na barra da túnica de Dante; nos nossos olhos resta igualmente a nostalgia do reino perdido, como no soneto de Antero de Quental:

E assentado entre as formas imperfeitas, Para sempre fiquei pálido e triste.

Os portadores, que eletrizaram um instante, por via da partici­pação misteriosa de que fala Nietzsche, esses, continuam, como ele próprio continuava, irrequietos e irremediáveis.

Entretanto, embora nos iluminemos apenas um instante e os por­tadores sigam, o que seria da vida e do pensamento se não houvesse oportunidades semelhantes? As idéias e valores existem ante nós como alvos inatingíveis, e o nosso destino é tender a eles. Por isso a vida é uma tendência sem fim, excetuados os momentos de plenitude que suspendem a corrente do tempo. Não obstante, enquanto per­manecermos de um lado, e os valores de outro, o esforço e a lucidez da nossa visão serão mais ou menos frouxos. Na vida, só sentimos a realidade dos valores a que tendemos, ou que pressentimos, quando nos pomos em contacto com certos intermediários, cuja função é encarná-los, como portadores que são. A abstração e o sentimento adquirem vida (Ia connaissance a trouvé son acte, diria Valéry) e somos capazes de sentir plenamente, viver os valores. Ao contrário da vida, que dispersa, os portadores condensam e unificam extraor­dinariamente; daí se imporem como um bloco e fazerem ver a vida

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como um bloco, que nos afasta por um momento da mediania e impõem uma necessidade quase desesperada de vida autêntica.

"Os homens necessitam constantemente de parteiras". A teoria do super-homem é o conjunto de técnicas necessárias, segundo Nietzsche, para formar estas parteiras de que fala. A profundidade do seu des­conhecido humanismo provém da decisão fundamental de nada conceber na vida se não for como encarnação de valor, corporizado na presença humana. E para encerrar estas notas sobre um dos maiores portadores do nosso tempo, nada mais oportuno que a citação de um dos seus escritos de mocidade:

Os gregos eram o oposto de todos os realistas, porque, a falar verdade, só acreditavam na realidade dos homens e dos deuses, e consideravam a natureza inteira como uma espécie de disfarce, de mascarada e metamorfose desses homens-deuses. Para eles, o homem era a verdade e essência das coisas; o resto não passava de fenômeno e miragem.

Na nossa época, ao se abrir a primeira fase da história em que será preciso reorganizar o mundo sem apelo ao divino, o que se poderia dizer de melhor para instalar o homem na sua pura humanidade?

Recuperemos Nietzsche.

Diário de São Paulo I 1946

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TERCEIRA PARTE

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LEMBRANÇA DE MÁRIO DE ANDRADE

T enho a impressão de que Mário de Andrade será um dos es­critores mais estudados, comentados e debatidos em nossa futura história literária. E é possível (assim aconteceu a Ma­

chado de Assis) que apenas trinta ou quarenta anos depois da sua morte a posteridade consiga traçar, de maneira mais ou menos satis­fatória, o perfil literário e humano deste homem cheio de refolhos e máscaras, deste escritor multiplicado.

Há com efeito muitos Mários de Andrade, além dos já conhecidos, que irão se revelando aos poucos; entre estes, o homem que escrevia cartas. A sua correspondência encherá volumes e será porventura o maior monumento do gênero na língua portuguesa; terá devotos fer­vorosos, e só ela permitirá uma vista completa da sua obra e do seu espírito.

Para ele, escrever cartas era tarefa de tanta responsabilidade moral e literária quanto escrever poemas ou estudos. Esse madrugador que dormia pouquíssimo tinha a religião da correspondência, aplicando nela a correção escrupulosa dum guarda-livros. É provável que nunca tenha deixado sem resposta um simples bilhete, e Deus sabe quantos receberia. Possuindo da inteligência uma concepção ao mesmo tempo alta e simples} via nela um instrumento de revelar beleza e servir ao próximo, condicionado, entretanto, por técnicas pacientes e habili­dosas, hábitos meticulosos e regulares. E praticava com escrúpulo desde o respeito ao surto de inspiração até o uso constante das fichas; desde a fidelidade à voz interior até a pontualidade. Sendo um grande artista era simultaneamente um artífice cuidadoso e esmerado.

Se um jovem dos confins do Piauí lhe escrevesse contando espe­ranças literárias, chorando mágoas, pedindo conselhos ou simples­mente livros, Mário se absorvia totalmente no problema do moço desconhecido, pensava nele, imaginava soluções e lhe mandava uma

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O OBSERVADOR LITERÁRIO 92

resposta de dez páginas, a cuja leitura o rapazinho se sentia de repente dignificado, compreendido, consolado, estimulado ou socorrido. Tinha o culto da solidariedade humana e só se entenderá a sua obra levando isto em conta. Pode-se dizer que o esforço dominante da sua última fase consistiu em descobrir a maneira por que os seus escritos poderiam mais fácil e eficientemente servir. A publicação das cartas desse período mostrará o papel que teve na formação duma certa consciência "funcional" da inteligência brasileira. Em Minas, no Nordeste, no Rio, grupos de jovens intelectuais se orientavam em boa parte pelas suas cartas, tendentes a despertar, além do desejo de se realizar com autenticidade, o de servir, usar a inteligência, num espírito por assim dizer público. É o que vem obsessivamente repisado nos seus rodapés de música da Folha da Manhã, às vezes com um imediatismo que deixa perplexo nesse grande e profundo esteta.

O Primeiro Congresso Brasileiro de Escritores mostrou a importân­cia desta orientação na tomada de atitude por parte dos intelectuais, no processo de liquidação do Estado Novo. Mário de Andrade, que tinha horror à política e dela vivia afastado, teve papel discreto e quase nulo nessa reunião político-literária, em que os escritores propriamente ditos mais seguiram do que guiaram. Ela representava, porém, a cul-minação de um trabalho em que se empenhara mais do que ninguém, com as armas penetrantes da conversa, da carta, do ensaio. E o Con­gresso foi, simbolicamente, o último ato da sua vida pública.

Ao lado da solidariedade, da simpatia humana, distinguia-se nele a humildade. Longe estava de ser um espírito angélico. Era homem de gênio forte e freqüentemente tempestuoso, abandonando-se com intensidade às birras e paixões. Por outro lado, tinha bastante cons­ciência da sua importância e valor, apesar dum persistente senti­mento de inferioridade que o perseguiu a vida toda e, levando-o a fazer melhor, a se superar, a se escorar intelectualmente, chega a ser um dos traços fundamentais da sua personalidade e uma das molas da sua obra. Não obstante, sentia pânicos de autodidata, e, como homem de estudo, era assaltado pelo sentimento de que pouco sabia, que os outros lhe poderiam ensinar muito. Por isso lia desbragadamente, fichava, anotava, assinava revistas, estudava matérias dificilmente

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93 LEMBRANÇA DE MARIO DE ANDRADE

acessíveis sem iniciação sistemática e acatava a opinião alheia com uma cordura de assustar, neste país de sabichões.

Quantas vezes os seus amigos pasmavam ante a paciência e atenção com que ouvia discorrerem certas pessoas, e mais ainda ante a serie­dade com que discutia os seus pontos de vista. Enganava-se quem o julgasse, então, escravo das boas maneiras. Estava obedecendo a sen­timento mais profundo, - ao mesmo tempo noção de fraternidade e respeito pelos outros, a que talvez se possa chamar apreço, no senti­do mais lato e forte da palavra. Apreço cultivado e sincero, que não excluía a ironia e andava de braço dado com a santa fúria contra os malandros, a franqueza por vezes contundente para com os amigos, a hilaridade homérica ante os ridículos.

Além disso, esse homem agudo, refinado na sua poderosa inteli­gência, guardava certos traços da infância, certas fraquezas e pueri-lidades, entre as quais a capacidade de rir das coisas simples e se entregar a verdadeiros acessos de alegria, nos quais gargalhava com todo o corpo, notadamente os ombros. Outras vezes se aplicava em amolar os parentes na hora das refeições, em espicaçar os velhos da família, em rodopiar pela casa dançando com os sobrinhos, abalro-ando móveis e mesmo, uma vez, rolando ao trambolhões pela escada. O riso como arma profilática parecia lavar a sua alma do fel e do ressentimento, deixando nua a camada de ternura que era um dos alicerces ocultos do seu caráter.

Essa força de participação e essa afetividade envolvente se associa­vam à inteligência mais plástica e penetrante que se pode imaginar. Apesar dissoj o seu processo intelectual dava uma idéia de ruminação vagarosa. A rapidez da percepção e as intuições cintilantes nunca o levaram a se abandonar a elas; desconfiava sempre e testava sem descanso.

Uma edificante lição de trabalho e probidade intelectual é o estudo dos seus originais, - ou antes, dos originais de obras incompletas, porque uma vez obtida a versão definitiva costumava destruir todo o material anterior. Um conto incompleto de Mário de Andrade, por exemplo, é um complicado sistema de pedaços de papel grampeados, folhas soltas, envelopes cheios de notas, - tudo numa ordem exemplar.

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Geralmente ia anotando em pequenos retalhos, quer as idéias que vinham, quer lembretes bibliográficos, retificações, adendos, desen­volvimentos. Depois compunha certos trechos, nos quais grampeava novos lembretes que ocorriam. Daí passava à primeira versão, em geral bem diferente da que viria a ser a última. Não raro levava anos neste trabalho, com uma insatisfação desesperada e uma implacável minúcia. Como se vê, combinação da humildade (mostrando que era preciso emendar sempre) e da confiança (mostrando que era capaz de emendar e visar ao melhor).

Esta mistura de simpatia, participação, humildade, penetração, in­tuição, ternura e paciência está indicando o perfil de um poeta. Com efeito, ele foi, antes de tudo poeta, na mais completa acepção, e como poeta desenvolveu uma faculdade verdadeiramente baudelairiana de lucidez na paixão, domando e medindo o caos interior com a disci­plina da inteligência. Graças ao rigor e ao senso de proporções, con­seguiu domesticar o pendor para o virtuosismo, o volteio embriagador entre idéias e técnicas; e sendo múltiplo sem ser dispersivo, deu um dos maiores exemplos que o Brasil conheceu de universalidade de aptidões.

Homens dessa fibra progridem sempre, e cada vez mais. A sua obra inédita mostrará que morreu no mais alto ponto das capaci­dades, num momento de maturidade e quase esplendor '.

A vida e a obra - ambas construídas como um repto do espírito ordenador à indisciplina das tendências - haviam atingido aos cin­qüenta anos uma grandeza de boa colheita. Grandeza de quem não se entregava ao acaso e, louvando a Tarde, (isto é, o sonho) lhe dirigiu certa vez estes versos de comovente estoicismo:

Não és tu quem me dás felicidade, Que esta eu faço por mim, por mim somente, Dirigindo sarado a concordância Da vida que me dou com o meu destino.

1 I Este artigo apareceu em fevereiro de 1946. Algumas obras nele referidas como

inéditas foram depois publicadas.

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95 LEMBRANÇA DE MARIO DE ANDRADEO

A obra inédita mostrará até que ponto estava em plena ascensão.

Ainda este ano serão publicados os Contos novos, a Lira paulistana,

o Café, o Padre Jesuíno do Monte Carmelo. No livro de contos, ao

menos dois - PRIMEIRO DE MAIO e ATRÁS DA CATEDRAL DE RUÃO -

disputarão doravante o primeiro lugar às obras-primas de Belazarte.

Café representa as preocupações da sua última fase, realizando o

consórcio da forma artística bela e expressiva com uma eloqüente e

profunda mensagem social. Na Lira paulistana se encontra a impres­

sionante MEDITAÇÃO SOBRE o TIETÊ, senão o maior, certamente o mais

significativo dos poemas que compôs, e que, datado de fevereiro

de 1945, o mês da sua morte, tem um sentido quase misterioso de

testamento.

Levados pela água barrenta do rio tutelar, vão passando os temas e

as constantes da sua poesia: os "sinais"; as velhas angústias, misturadas

às angústias novas; uma nova serenidade, recapitulando a sereni­

dade de antanho, os símbolos do catimbó, as imagens amazônicas,

os amores estilizados, as meditações prediletas, - Mestre Carlos, o

Boi Paciência, o Irmão Pequeno, Maria, o esforço de compor a vida, a

equação do Eu com o mundo, - tudo desliza na MEDITAÇÃO, tornan­

do-a um dos pilares da sua obra poética, uma espécie de retomada

mais completa da LOUVAÇÀO DA TARDE.

Ele estava, portanto, no mais alto ponto da carreira. Os homens

que se constróem amadurecem lenta, mas seguramente. O que foi

obtido no plano da arte e no plano da existência com rigor persis­

tente brilha depois com fulgor também intenso e duradouro. Mário

de Andrade taorreu ao entrar nessa etapa de serena grandeza, que

construiu com as próprias mãos e não pôde fruir.

Revista do Arquivo I 1946

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•»/

OSWALD VIAJANTE

N um poema famoso, diz Baudelaire que, para o menino, o mundo é tão vasto quanto a sua imensa curiosidade, quan­do o contempla à luz da lâmpada sob a forma de mapas

e estampas; mas fica pequeno à luz das recordações, quando já vivemos 0 bastante para medir a sua exigüidade em contraste com as aspi­rações do início.

Pour Yenfant, amoureux de cartes et d'estampes, Uunivers est égal de son vaste appétit. Ah! que le monde est grand à Ia clarté des lampes! Auxyeux du souvenir, que le monde estpetit!

Pensando que Oswald de Andrade morreu -, isto é, que partiu -, lembro-me com insistência da função desempenhada em sua vida e obra pelo tema da viagem; função de sonho e ideal que o irmanam ao menino de Baudelaire.

Para a sua personalidade, sabemos que foi decisiva a experiência da Europa, antes e depois da guerra de 1914. Na sua obra, talvez as partes mais vivas e resistentes sejam as que se ordenam conforme a fascinação do movimento e a experiência dos lugares. Memórias sen­timentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande se desenrolam em torno do deslocamento de personagens entre o Novo e o Velho Mundo, exprimindo a posição do homem americano, que ele viveu com intensidade, ao adquirir consciência da revisão de valores tradi­cionais em face das novas experiências de arte e de vida.

No João Miramar, em cujo nome estão a vocação e a contemplação do oceano, o narrador se refere a este de modo simbólico:

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O OBSERVADOR LITERÁRIO 98

E minha mãe coberta de beijos deixou que eu fosse ver em Santos o mar dos embarques.

Não o mar das ondas ou das nereidas: o dos embarques. Junto à moça conquistada em Paris, os amores dão lugar a imagem não menos significativa:

Era filha puberdada do dono do restaurante de olhos azuis. As pátrias longínquas cresciam no inverno da sala como legumes

tardios. E o escuro da escada subia quedas ao sétimo andar. Sonhamos um livro de viagens.

Viajar para ele é não apenas buscar coisas novas, mas purgar as lacunas da sua terra:

Iríamos em tournée à Europa. E pela tarde lilás do Bois, ela guiaria a nossa Packard 120 H.P. Sairíamos nas férias pelos caminhos sem mata-burros nem mamangavas nem taturanas e faríamos caridade e ouviríamos a missa dos bons curas nas catedrais da Média Idade.

No entanto, estando longe sente que:

Nostalgias brasileiras São moscas na sopa de meus itinerários.

Isto, é claro, porque a viagem era também um meio de conhecer e sentir o Brasil, sempre presente, transfigurado pela distância. Por isso, há nele pouco dos famosos exiles norte-americanos, seus con­temporâneos na França; e muito dos estudantes fluminenses que no decênio de 1830 fundaram em Paris a revista Niterói e de lá enten­deram melhor o que a nossa literatura precisava.

Daí, na sua obra, certa reversibilidade Brasil-Europa, que esclarece o sentido da viagem como experiência do espírito e do sentimento nacional. Desta reversibilidade poderíamos indicar uma imagem be­líssima do João Miramar, no parágrafo denominado PAS-DE-CALAIS:

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99 OSWALD VIAJANTE

Pequeno vapor que nos empurrou de Dover sobre rodas con­tínuas no meio da noite.

O tombadilho encapotava-se de sombras mas como perdêsse­mos as luzes inglesas achamos as luzes de França no mar.

A viagem para ele foi isto: translação mágica de um ponto a outro, cada partida suscitando a revelação de chegadas que são descobertas. E o seu estilo, no que tem de genuíno, é movimento constante: rotação das palavras sobre elas mesmas; translação à volta da poesia, pela solda entre fantasia e realidade, graças a uma sintaxe admiravel-mente livre e construtiva. Estilo de viajante, impaciente em face das empresas demoradas; grande criador quando conforma o tema às ilu­minações breves do que ele próprio chamou o seu estilo telegráfico.

Fora sempre um fragmentário - diz do protagonista d'A estrela de absinto. Em torsos quebrados, metades, estudos largados, con­centrava, numa predileção alegre e constante, e força reveladora da sua arte.

Nestas linhas (que exprimem muito do que sentia a seu próprio respeito) percebemos todo o drama da sua criação posta entre an-cestralidades poderosas e impulsos de liberdade, que nunca se har­monizaram de modo a permitir uma inspiração unânime. Dissocia­ram-no, pelo contrário, em experiências sucessivas, semeando a sua obra de contrastes e mesmo contradições.

Este anseio de realizar contra as peias da tradição e da educação encontrou na viagem um dos correlativos. N'A escada vermelha, es­creve, revelando impulsos de peregrino:

O mar, ao contrário, libertava de uma certa maneira. Obrigava a gestos, vozes altas, arrojadas empresas.

Através do personagem, acha com efeito a libertação, no admirável entremeio marítimo que é a estadia na ilha Verde, engastado no livro como presença da melhor literatura. Libertação é o tema do seu livro

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O OBSERVADOR LITERÁRIO 100

de viagem por excelência, Serafim Ponte Grande, onde a crosta da for­mação burguesa e conformista é varrida pela utopia da viagem per­manente e redentora, pela busca da plenitude através da mobilidade.

A prosa fluida e cintilante deste livro, a sua estrutura instável, o movimento incessante dos personagens que entram e saem, das terras que surgem e passam, mostram bem claramente a estética transitiva do viajante, que elabora a visão das coisas pela composição divina­tória dos fragmentos rapidamente apreendidos.

Aí, realiza o desejo de agitação para libertar ao explodir a rotina da vida do protagonista por meio da existência sem compromissos a bordo dos navios que, pouco a pouco, vão saindo da realidade para entrar nos mares do sonho. Todos lembram como o livro acaba: uma espécie de superação total das normas e convenções, numa sociedade lábil e errante, formada a bordo de El Durasno, que navega como um fantasma solto, evitando desembarques na terra firme da tradição. Sob a forma bocagiana de uma rebelião burlesca dos instintos, Oswald consegue na verdade encarnar o mito da liberdade integral pelo movimento incessante, a rejeição de qualquer permanência.

Passaram a fugir o contágio policiado dos portos, pois que eram a humanidade liberada. Mas como radiogramas reclamassem, El Durasno proclamou pelas antenas, peste a bordo. E vestiu avessas ceroulas e esquecidos pijamas para figurar numa simulada quaren­tena em Soufhampton. Todos os passageiros se recusaram a desem­barcar. Sem dinheiro, tomaram carregamentos a crédito. E largaram de repente ante os semáforos atônitos. Encostaram nos mangueirais da Bahia. Sempre com peste. Depois em Sidnei, Malaca, nas ilhas Fidji, em Bacanor, Juan Fernandez e Malabar. Diante de Malta, Pinto Calçudo arvorou a Cruz de Malthus.

É a arrebentação redentora, para libertar. Tão profunda, que em Oswald nunca deu lugar à retração nem desvio. Um dos seus últimos trabalhos foi a série de artigos sobre as utopias, em que procura con­forto para o nosso tempo, refundindo os ideais da sociedade perfei­ta, ligados às grandes viagens que inauguram a Idade Moderna. No

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101 OSWAI.D VIAJANTE

primeiro volume das suas memórias entrega-nos as fontes pessoais dos anseios e problemas que dramatizou na ficção, numa viagem interior à busca das raízes do seu ser inquieto e agitado. É que nele permaneceu vivo o amor juvenil pelo sonho, à luz da lâmpada de Baudelaire, que faz parecer tão grande o mundo, sob as cores de uma fantasia que depois cede no adulto, quando se ampliam em seu detrimento as divisas do real -, mas que são preservadas na mocidade constante dos poetas. Em Oswald, elas continuaram, mágicas, elásticas, fascinantes. E quando lembramos que está morto, pensamos invo­luntariamente que partiu para mais uma viagem, buscando novos mundos para a sua fome antropofágica de sonho e liberdade. Oswald, viajante.

Suplemento Literário d'O Estado de S. Paulo I 1956

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V I N Í C I U S

O s poetas que valem realmente fazem a poesia dizer mais coisas do que dizia antes deles. Por isso precisamos deles para ver e sentir melhor, e eles não dependem das modas

nem das escolas, porque as modas passam e os poetas ficam. Se hoje dermos um balanço no que Vinícius de Moraes ensinou à poesia brasileira, é capaz de nem percebermos quanto contribuiu, porque, justamente por ter contribuído muito, o que fez de novo entrou para a circulação, tornou-se moeda corrente e linguagem de todos.

Do que trouxe, lembro apenas: a peculiaríssima ligação que esta­beleceu entre o mar, a praia e a vida amorosa; a mistura do vocabu­lário familiar com uma espécie de casto impudor; a invenção de um léxico do amor físico que abole qualquer diferença entre ele e o que é considerado não-físico. E mais um uso próprio do ritmo de ro­mance popular, quem sabe inspirado inicialmente em Garcia Lorca. E uma reconstrução do soneto. E a transformação do versículo solene dos seus primeiros livros em ritmo suspenso entre verso e prosa, de modo a não haver mais nem verso nem prosa, mas verso e/ou prosa, em franca ida e volta. E a capacidade de dessolenizar as coisas solenes para guardar o que têm de sério no meio da pilhéria aparente. E a capacidade de se apegar às coisas pequenas e humildes para lhes dar uma gravidade que não vem do tom, mas da estrutura latente de paradoxo que enforma a sua poesia.

Vinícius começou mais ou menos como outros. Os seus primeiros livros - Caminho para a distância (1933), Forma e exegese (1935) -são afogados no longo verso retórico usado pelos poetas cristãos daquele tempo, com uma vontade quase cansativa de espichar o assunto e um certo complexo de antena, ou seja, o esforço de captar algo misterioso, fora da órbita normal. Mas Vinícius capitalizou essa falação para transformá-la num sentimento muito pessoal das coisas

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O OBSERVADOR LITERÁRIO 104

inexplicáveis, que acabou por dessacralizar, tirando-as da metafísica para criar uma física extremamente humana e comunicativa.

Os anos de 1937 e 1945 são fundamentais neste sentido. Neles se afirma a fisionomia do poeta que conhecemos e que, sem perder a experiência anterior, renovou essencialmente a sua linguagem e a sua orientação. Novos poemas (1938) ainda é meio solene, mas já mostra a capacidade de variar os ritmos, fazer verso curto e jogar com as formas fixas, inclusive o soneto, instrumento rígido e fechado que ele haveria de abrir em estruturas livres. Nalgumas das suas páginas, como O FALSO MENDIGO, está pronto o Vinícius renovado.

Em 1943 surgem as Cinco elegias, poemas densos escritos entre 1937 e 1939, nos quais a pesquisa metafísica dos primeiros tempos foi canalizada para representar a naturalidade do amor, a inquie­tação relacionada à experiência corrente, o mistério traduzido em familiaridade e temperado com uma espécie de humor sem agressão - traços que nunca mais sairiam de suas receitas. É notável o sentido experimental da linguagem, que o levou inclusive a jogar com os aspectos visuais, tão em moda atualmente.

Poemas, sonetos e baladas (1946) talvez seja o momento de síntese das suas capacidades e ritmos. Nele encontramos Vinícius inteiro, o de antes e o de depois; o que apela para a transcendência e o que rea­liza o verso correndo os dedos pelo violão. Numa tarde de domingo ele nos leu inteiro o livro ainda inédito; e aliás teria sido preciso vê-lo naquele tempo, na flor dos vinte e tantos ou dos primeiros trinta anos, corretamente vestido de escuro, mas sem sombra de convencio-nalismo; extremamente polido e sereno, com uma boa vontade fra­terna e universal, não se espantando de nada e fazendo da sua poesia um espanto permanente com tudo. Era capaz de passar a noite de­vagar, com o copo de uísque perto da cadeira, o violão no colo, olhos postos nalguma coisa distante, cantando com voz curta e abafada, escorregando para o bate-papo, inserindo comentários, voltando ao canto. Vinham canções inglesas, modinhas antigas, valsas cariocas, um poema de Bilac cuja melodia só ele conhecia, porque seu pai lhe ensinara, poemas seus que já então punha em música, porque a sua poesia sempre resvalou para ela. É o caso da Balada a Pedro Nava,

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105 VINÍCIUS

típica do seu processo de tomar um pensamento de amizade ou ter­nura, uma anedota, uma alusão ao dia-a-dia, uma complacência consigo mesmo - e de repente abrir as asas.

Por isso o Vinicius de agora aparece conseqüente e necessário, como se toda a sua vida e a sua poesia tivessem confluído no bom caminho. Para os moços ele é de certo modo incompreensível sem a Bossa-nova, Tom Jobim, Chico Buarque de Holanda; incompreen­sível sem os festivais da canção e essa vasta musicalização da poesia que é uma das faces que ela mostra ao nosso tempo, transformando os poetas em letristas e cantores. Mas para os mais velhos ele é o Vinicius de sempre, apascentando a sua constelação fraternal de gêneros e recursos e gêneros - crônica de jornal, conversa, notícia, confissão, indignação política, discurso de amizade, declaração sempre pronta de amor.

Um dos seus feitos foi trazer para a casa da poesia e dar-lhe um arranjo próprio essa matéria que anda dispersa noutras formas, na prosa de Rubem Braga, nalgum lamento de Orlando Silva, no gesto simples de cada um. Com ar de quem conversa ocasionalmente (como já dedilhava o violão em nosso tempo de rapazes), Vinicius vai trans­formando tudo em estilo, num espaço poético vasto e arejado. E criando alguns dos poemas mais belos e necessários do nosso tempo.

Infância na praia, familiaridade com as coisas do mar, geografia fantástica do corpo feminino dissolvida na sua história pessoal, pro­cura do sentido da vida, infinita paciência e compreensão do outro, experiência com a palavra no limite constante em que ela parece se dissolver noutra coisa, milagrosa capacidade de achados, malabarismo que na verdade é encarnação do necessário, superação de qualquer preconceito que separe verso e prosa. Vinicius diverso e sempre o mesmo.

História da música popular brasileira I Abril Cultural I 1971

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UNGARETTI EM SÃO PAULO

G iuseppe Ungaretti regeu a cadeira de Língua e Literatura Italiana da Universidade de São Paulo de 1937 a 1942, mas a sua ação foi grande também fora de aula, - em conversas,

reuniões, passeios. Quando voltou à Itália, foi como se tivessem arran­cado alguma coisa da cidade, que ele marcou profundamente em muitos setores, embora sem rumor. Salvo um ou dois casos, os seus maiores amigos e os que mais sofreram a sua influência não foram seus alunos regulares, no sentido escolar; mas todos foram seus dis­cípulos e continuam fiéis à sua lembrança. Há mesmo uma espécie de maçonaria entre eles, alimentada por alusões a experiências comuns, evocações de fatos pitorescos ou comoventes, que nós presenciamos e cujo relato nos chega às vezes de torna-viagem, depois de um per­curso mais ou menos longo que os lançou, como um ciclo de Unga­retti, na mitologia artística e intelectual da cidade.

Pertencem a esse ciclo o conselho drástico a um jovem pintor, que insistia pela sua opinião, e a quem o poeta sugeriu, vendo os seus quadros leves e azuis, que matasse o pai e fosse fare Vamore antes de pintar. Ou as expressões abafadas diante de um gouache de Picasso na casa de Oswald de Andrade: Io non so come si fa per arrivare a questa purezza!

Ou um alegre qüiproquó, lá mesmo, por causa de uma gafe do anfitrião, que dizia ao poeta admirar muito um dos seus poemas, quando na verdade tratava-se de paródia. É ainda o caso do juízo arrasante sobre Bernanos, que vivia aqui e era endeusado pelos ad­miradores, a um dos quais ele bradou como resumo de apreciação: Cest un farceur! Ou a conclusão inesperada sobre o cardeal Mercier, depois de explicar longamente a sua tremenda erudição: En somme, un sombre crétin! Ou, durante a visita a um leprosário, o entusias­mo por uma mulher de Sorocaba que, sem se contaminar, já tinha

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O OBSERVADOR LITERÁRIO

vivido sucessivamente com sete doentes, que preferia porque tiravam mais esmola. Ne fare una novella cruda, boccaccesca -exclamava entusiasmado Ungaretti com a sua gargalhada aguda e convulsiva. Famosa ficou a sua definição dos requisitos hormonais generosos do literato, em comparação com a insignificância dos que atribuía ao sociólogo.

Tudo isso mantém aqui a sua presença viva e afetuosa, um culto familiar que bem revela a ação desse grande poeta que nos ensinou tanta coisa e é dos poucos estrangeiros de alto porte que amam e sentem o Brasil em profundidade. Quem não lembra a sua mágoa em sair daqui sem ter visto as obras do Aleijadinho, - ele que revelou a muitos a importância e o significado do Barroco literário, evocado desde o papagaio auriverde do rei dom Dinis como constante portu­guesa '. As traduções de Mário de Andrade, que publicou na revista VApprodo e leu em São Paulo por ocasião de uma estadia rápida em 1954, revelam penetração poucas vezes alcançada na intimidade da nossa poesia. No seu poema SEMÂNTICA (de Un Grido e Paesaggi) ser-peia um filão amazônico e, como diria Oswald de Andrade, antro-pofágico, revelando a identificação compreensiva. Todos nós somos gratos a Ungaretti por essa atenção seletiva e concentrada a respeito do Brasil, que permite manter o melhor diálogo por sobre o mar.

De outro lado, é notória a ligação quase mística com a nossa terra, onde está sepultado o seu filho Antônio, - Antonietto - cuja morte dá vida a tantos versos de Dolore.

Ele nos trouxe muito da cultura européia, ele que é italiano do Egito, de formação francesa, através da maneira densa e dramática com que não apenas cria e interpreta, mas transmite. E a experiência da sua poesia calorosa e descarnada foi um impacto tornado mais forte pela sua presença. Daí termos procurado vivê-la com intensi­dade. Daí mais de um entre nós ter copiado integralmente os textos de Allegria e Sentimento dei Tempo, para sentir nessa espécie de rito simpático os pontos de ossificação da sua poesia misteriosa e humana.

1 I Ungaretti só pôde visitar as cidades históricas de Minas em 1966, na companhia

de Sérgio Frederico. (Nota de 1992)

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109 UNGARETTI EM SAO PAULO

E quando a máquina de escrever lançava no espaço branco os versos parcimoniosos e sibilinos, era como se o trabalho do nosso grande amigo ficasse mais inteligível, com as palavras renascendo sob os dedos atentos que, na sua inexperiência, procuravam decifrá-las.

Não foi menos decisivo o que ensinou como atitude de leitura, mostrando que o essencial é a concentração no texto, e não no que está antes ou depois. E era assim que construía as suas aulas cheias de idas, vindas e descobertas. Elas faziam entender melhor que o seu próprio produto poético, depurado até dificultar o fôlego da com­preensão, tinha como substrato uma erudição caudalosa e decorria do ataque dos problemas por todos os lados, para poder sondar ver­ticalmente as profundidades. Sentíamos então que o poema despo­jado e essencial tinha as experiências mais fortes como lastro e era realmente o afloramento mais puro da poesia.

Nas aulas Ungaretti revelou o que significa o diálogo do pensa­mento e da sensibilidade com o texto. Mostrou como, ao toque do leitor capaz, surgem mundos que parecem brotar das entrelinhas, minar do vão das letras, deslizar das maiúsculas para as minúsculas, como se uma fermentação incessante e contida esperasse o leitor escolhido. Quantas vezes, em aulas sucessivas, voltava atrás para cor­rigir a leitura precedente de algum trecho ou poema. E assim duas, três vezes, cada uma das quais apagava a anterior e se oferecia como a mais límpida, a mais insuperável, para no entanto, na aula seguinte, ceder por sua vez o lugar a outra ainda mais lídima e completa.

Nas suas aulas havia uma fase tranqüila de aproximação metódica; havia depois uma fase de arroubo, onde a imaginação o atirava sobre o quadro-negro de giz em riste, com as costas voltadas para os ouvin­tes, perseguindo em altos brados o curso fugidio da intuição; e havia as fases de volta ao momento, com a voz de novo calma, quando as conclusões emergiam do tumulto e se ordenavam na mais nítida coerência; havia ainda os momentos de luta com a pasta de livros de couro preto, duas alças compridas e uma curiosa vareta de metal que servia para prendê-las e que o poeta manipulava em todos os senti­dos, fazendo e refazendo o arranjo, para logo abandoná-lo e, em novo rompante, voltar ao combate contra a noite impassível da lousa.

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Teria ele consciência dessas manobras (pensávamos), ou estaria com a mente fora de tudo, de nós, da sala, da pasta, - deslizando para o mundo da poesia através da espiral inquieta que o giz traçava no ar? Leopardi e o senso do fragmentário; a atuação do cristianismo na literatura; as glórias do Renascimento; o sonho austero e humano de Manzoni - tomavam corpo nessas sessões de invocação crítica, mostrando mais uma vez os fortes alicerces do mundo de emoção e idéia pressuposto na página branca, riscada brevemente pelas pala­vras, que a nossa máquina copiava. E do professor, do poeta, do amigo, compunha-se a cada instante o traçado completo e perfeito do homem exemplar:

Quando trovo in questo mio silenzio una parola scavata è nella mia vita come un abisso (...)

(TESTIMONIANZE DI AMICI STRANIERI, in Giuseppe Ungaretti, II Tac-cuino dei Vecchio, Mondadori, 1960)

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AS CARTAS DO VOLUNTÁRIO

L idar com papéis velhos parece coisa vã", - diria alguém pla­giando o poeta; ao que muitos poderiam responder: "entanto lidamos, mal rompe a manhã". Na de hoje remexi alguns

que destoam da maioria, porque são vivos, emocionantes, trazendo as palavras que ficaram de um tenentinho de Voluntários da Pátria, nascido no sertão de Araraquara para ir morrer nos do Paraguai. A sua cidade conserva dele uma lembrança vaga, transmitida pelos mais velhos; e quando fazem algum almanaque ou álbum local, lá surge ele, com as feições delicadas, a barba juvenil indecisa ainda, a barretina, e, cruzadas sobre o punho alto da espada, as mãos que antes laçavam bois, plantavam café na terra roxa e disciplinavam os escravos. Mas estas poucas cartas, que restaram duma correspondência farta-, (pois o mocinho gostava de escrever), desfazem a postura já quase secular com que passou à glória municipal; e nos fazem pensar no destino dos que são chamados a pagar o tributo da vida. Nelas, não é mais o combatente do Passo da Pátria e de Tuiuti, com as duas medalhas e as promoções por mérito, que se alistou a vinte e quatro de julho dum ano para morrer a vinte e quatro de julho do ano seguinte. É o filho-família escrevendo às irmãs, com boa caligrafia e vários erros, acomodado na irregularidade do estilo familiar. As cartas ao pai se perderam e seriam talvez convencionais; mas nas das irmãs predominam a espontaneidade serena e a nostalgia da pátria, contra­balançando o assomo guerreiro, que o distinguiu desde logo e nelas passa de raspão, ou se esconde nas entrelinhas como confidencia abafada.

O caso foi mais ou menos o seguinte. Quando veio a guerra contra Lopez, o pai do nosso tenente, chefe liberal na sua zona, achou que devia dar exemplo. E em lugar de agir como a maioria dos homens de prol, que isentavam os familiares, seja obtendo dispensa, seja

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substituindo-os por escravos, animou os seus, resultando o volunta­riado de dois filhos e dois sobrinhos. Eles se alistaram no 7o Corpo, formado de paulistas, com outros araraquarenses, inclusive um que fez a guerra de ponta a ponta, com fibra impressionante, e voltou carregado de feitos e medalhas, o tenente Carlos José Dias do Nasci­mento. O irmão do nosso escapou ileso, bem como um dos primos. O outro sofreu um ferimento singular: perdeu a pálpebra superior de um dos olhos, que ficou cego e se manteve desde então estranha­mente arregalado; passou a usar óculos pretos e casou assim mesmo com a prima que o esperava.

O nosso voluntário esteve para seguir com a Expedição de Mato Grosso, que se dizimou na retirada famosa; mas acabou indo rumo ao Sul. Promovido a alferes não sei quando, chegou a tenente depois de Tuiuti. Era de uma valentia total que se manifestou desde a infância, espantou os superiores e deixou lembrança respeitosa numa família de homens duros. Não se poupava; por isso morreu e foi também recoberto pelo heroísmo convencional com que a posteridade sim­plifica os guerreiros. Mas estas cartas trazem de volta o mocinho de todo o dia, retocando para melhor o perfil da sua virtude. Eis a primeira, dirigida a duas irmãs:

Nha Branca e nha Carlota S. P. 8 de Junho de 65 Muito estimarei que ao receber d'esta ache mecês e todos os da

nossa caza gozando perfeita saúde que é o q muito dezejo. Eu graças a Deus tenho passado bem ate o prezente, bem con­

tente com esta vida mas sim com muitas saudades de todos de caza - No dia dezoito d'aqui partimos para Matto-Grosso. Remeto estes dous retratos para mecês duas com os nomes certos.

Lembranças nossas para todos de caza como quem é de mecês Irmão amante I Pio.

Já é meia noute e tenho que escrever muito ainda, porisso não arrepare nos erros e fartas.

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O ânimo era belicoso, pois dava para gostar da vida de quartel; ia sereno a Mato Grosso e mandava a fotografia marcial. Nós queria dizer também o irmão e os primos, um dos quais apalavrado para casar com outra irmã. E como escrevesse à vontade, conversando familiarmente, policiava menos a grafia e se abandonava às irregu­laridades saborosas da prosódia tradicional. Mas quando se dirige, dias depois e ainda de São Paulo, a um dos tios, pai do referido primo, o estilo é mais apurado. Saiu do tom familiar para se emper­tigar um pouco na convenção:

Tio Chico S. P. 13 de Junho de 65 Muito estimarei que esta va achar a Vmce. e toda a sua família

no gozo de perfeita saúde, que é o que dezejo. Eu graças a Deus tenho passado bem de saúde e vou indo bem

com a minha militança. Remeto-lhe um retrato para Vmce. me ver de perto, e por signal da amizade que tenho a Vmce. - Foi marcada a nossa viagem p.a o dia dezoito d'este, mas suponho que não é possível sahirmos; mas por todo este mez temos de sahir. -Muito me recommendo a Tia Maria, e Primos e Primas, e Vmce. acceite o coração saudozo d'este seu sobrinho que muito lhe estima.

Sobrinho e amigo I Pio Corrêa da Rocha

Daí a meses jã o pegamos na Argentina, a caminho da luta:

Buenos Ayres 26 de 9br.o de 65 Minha Mana Branca Faço-lhe esta somente para dar-lhe noticias minhas, e saber de

Mecê. Eu tenho gozado perfeita saúde, mas as saudades sua é que são muitas, mas espero que em breve tempo Ia hirei.

Não sabemos quando temos de sahir d'aqui. Peço a mecê que me escreva sempre, que eu de todos os pontos

lhe escrevo. - Nada mais.

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Recommendo-me saudozo a todos de caza, e mecê acceite um abraço d'este

Seu mano am°. I Pio Corrêa Rocha.

Esta irmã era a predileta, entre as cinco que tinha, e fora destinada pelo pai a cuidar dele, segundo um sistema bem pensado por esse homem prático: tendo cinco filhos e cinco filhas, determinou que cada uma tratasse da roupa e outras necessidades domésticas de um irmão; e deste modo se formaram na família cinco pares fraternos, ligados por solidariedade mais íntima. À mesma irmã, e mais duas, escreve, já em plena campanha:

19a Brigada, 30 de jan. de 1866. -Queridas Manas Izabel, Branca e Carlota. -Anciozo estava eu esperando o correio, finalmente chegou e só

encontrei uma carta do Domingos, nenhuma de caza. - Eu e primos gozamos de perfeita sde. - Hontem houvimos das dez as três, tiros de peça continuadamente, e nos parecia que era no Passo da Pátria, hoje a tardezinha que havemos de saber quem ganhou ou perdeu; este ataque foi dado infalivelmente com a gente do Mitre, que são quatorze mil homens: é o que ha de mais notável hoje. -

Nós estamos fortes, gordos, corados etc, comendo as seguintes iguarias; carne assada, passoca com o mate chimarrão, mas isto com muita faltura etc. -

Recomendo-me saudozo a todos da nossa fa. e do Morais, e mecês aceitem o coração saudozo d'este

seu mano amante I Pio C. Rocha

N. B. Lembranças aos de Brotas, de mim e dos primos. - Lem­branças dos Primos a todos de caza. - Diga aos cunhados, manos, - as, ao Morais, que não escrevo a todos porque estou em ordem de marcha, e muito aflito a me afrontar.

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115 AS CARTAS DO VOLUNTÁRIO

O Passo da Pátria deu o que fazer, meses a fio: foi lá, creio, que o nosso alferes ganhou o Hábito de Cristo e não sei se a promoção. Quando escreveu, parece que ainda não lutara de fato, pois, segundo a fórmula terrível na sua dura eloqüência, estava "aflito a me afrontar". Os seus votos seriam satisfeitos além da medida. Afrontaria o inimigo, lutaria com todo o fogo do temperamento, sobretudo a 24 de maio, em Tuiuti, de cujo acampamento vitorioso escreve, um mês depois da batalha, às três irmãs mais moças:

Tuyuty 22 de Junho de 1866. Não posso deixar de escrever-vos uma linha, dar-vos noticias

minhas e saber vossas; eu até o prezente gozo de robusta saúde. -Quanto aos Primos na carta de meu Pai fallei n'elles. - Fazem quinze dias que não recebo cartas de caza e os mesmos que não escrevo, por não ter tempo: suponho que fazem parar as cartas em Corrientes. Espero que sempre me escreverão, que eu quando tiver tempo escreverei tbem. - Lembranças a todos os conhecidos, compadres etc. e mecês aceitem um apertado abraço e o coração saudozo d'este que é

De vocês mano e am°. obr° I P. C. Rocha

Lembranças a mamãe Maria.

É visível o amadurecimento psicológico, a perda rápida da infância, bem como a aprendizagem de torneios mais requintados, expressões novas, e o prazer em distribuir etc, com certeza aprendidos de fresca data. É provável que os relatos de guerra ficassem para as cartas ao pai; mas é notável a discrição com que deixa de lado os feitos e galardões. Já agora era tenente e recebera o Oficialato da Rosa, cons­truindo uma impressionante fé de ofício em poucos meses de luta. Para as manas, tinha porém o carinho de sempre e terminava sau­dando a mãe-preta.

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O tempo que faltava para mandar notícias ia por certo escassear ainda mais: andava em desenvolvimento o ataque sangrento a Curuzu, onde o velho conde de Porto Alegre comandava, teatral, em uniforme de gala, chamejando condecorações e fúria guerreira. Pouco depois, num dos combates em torno de Curupaiti, o nosso tenente encontrou afinal a Nêmesis que vinha provocando desde a sua vila de São Bento de Araraquara. Os paraguaios atacaram o campo, ele saiu a enfrentá-los com a patrulha. Colhido por uma bala, morreu seis dias depois, a 24 de julho de 1866, precisamente um ano depois de sentar praça, fal­tando quatro meses para completar vinte e um anos.

Não haveria mais correspondência com as irmãs. A mão que laçara bois, e suspendia o manejo da espada para lhes mandar saudades, cruzava-se agora com a outra, numa espera sem fim. Mas as cartinhas ingênuas, que pouco ou nada significariam, mesmo para o lidador de papéis velhos, se tivesse ficado como os irmãos plantando café na terra roxa, ou desbravando a terra branca, têm hoje um sentido co-movedor e quase trágico. A menor palavra, o gesto mais frágil com que sulcamos a vida podem adquirir significado conforme a pará­bola que ela descreve: escritas por quem ia morrer, estas cartas são estacas que levam cada vez mais perto da noite. O mocinho valente quer se afrontar e se sente imortal no seu arrojo; mas nós, com a ciên­cia fácil que o tempo confere, vamos lendo em cada letra o caminhar seguro para a morte, entre dedicatórias, erros de linguagem, fala caipira, lembranças aos compadres, nostalgia do pátrio sertão. Vemos que saiu de lá emprazado sem apelo para encontrá-la nos campos de Curupaiti, marchando inelutável entre promoções e medalhas, que só serviam para apressá-la. Houvesse podido mandar uma última carta, do outro lado da barreira, teria por certo - rompendo pela primeira vez a reservada modéstia - confessado à irmã querida: Mana Branca - saiba mecê que morri bem. E porque assim foi, está vivo ainda hoje, ao contrário dos que se extinguiram nos duros catres de peroba.

Vive, pois, meu tenentinho, já que tão bem morreste.

Suplemento Literário d'O Estado de S. Paulo I 1958

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Digitação

Katia Regina de Almeida Silva

Revisão da Digitação

Rita Godoy I Tais Monteiro

Revisão e Padronização de Texto

Cláudia Ajuz I Elisabeth Lissovsky I Sandra Mager

Projeto Gráfico

Ouro sobre Azul I Ana Luisa Escorei

Preparação dos Originais para Fabricação

Laura Escorei

Impressão e Premedía

RR Donnelley

O miolo deste livro foi impresso em papel Pólen BoW 90 f.

fabricação Suzano, pelo sistema off-set.

O texto foi composto em Minion c 9.5 / 15.3

e os títulos e subtítulos em Minion Semibold.

A capa foi impressa em papel Supremo Quartz 250 C1/ M'

de fabricação Suzano.

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