cândida portolan

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12 passos para uma nova vida A porta de saída das drogas Nos dez hectares arborizados e cobertos por um manto de grama bem verde e aparada, o canto dos pássaros é constante e a tranquilidade impera. Ao longe, se escuta o cacarejar das galinhas, que são tratadas no aviário localizado entre o chiqueiro e as gaiolas dos coelhos. As vacas, já ordenhadas, descansam com as ovelhas sob as araucárias, no ponto mais alto da fazenda. Mais abaixo, os açudes acomodam os cisnes negros, que passeiam pelas águas debaixo do céu azul e do sol brilhando. Para dentro da porteira se perderia a noção das horas, não fosse o sino da capela São Pio de Pietrelcina, que toca para lembrar que o tempo não para. Para quem está lá, cada badalo representa a oportunidade de um dia cruzar pela mesma porteira, que fica sempre aberta, com uma vida nova. Para chegar até a Comunidade Terapêutica Vale a Pena Viver, localizada na zona rural de Gramado, os caminhos dos 18 residentes foram mais difíceis do que a estrada de chão batido e pedras soltas do interior. Na bagagem, trazem memórias de famílias desestruturadas, de vida vazia e frustrações. Ingressos na Comunidade, têm a consciência de que a caminhada da recuperação também não é fácil, mas que dar o primeiro passo é fundamental: admitir a derrota para a droga. Na Vale a Pena Viver, a vida dos dependentes químicos residentes não é, nem de longe, pacata. Diariamente, cumprem um cronograma intenso de atividades, que inclui o trato dos animais da fazenda, e o cultivo de frutas, verduras e legumes. Eles aprendem técnicas de marcenaria, além de colaborarem na construção e reparos dos prédios, cujo material é oriundo de doações. A responsabilidade pela realização das tarefas é revezada entre eles, oportunizando que todos atuem nos 11 diferentes setores. O trabalho dedicado ao lugar caracteriza a laborterapia, que junto da disciplina e espiritualidade compõem o tripé que fundamenta a atuação da comunidade. Entre as responsabilidades diárias, estão os momentos reservados para refletirem sobre suas vidas, os caminhos por onde andaram até chegarem ali e os seus objetivos. Um dos sistemas pelos quais são conduzidos no decorrer dos nove meses de tratamento e da vivência na comunidade é o dos 12 passos do Alcoólicos Anônimos (A.A.). Os passos caracterizam o progresso dos residentes em três etapas: adaptação ao novo e desintoxicação, conscientização e resgate, e, por fim, a ressocialização. É na primeira

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Reportagem de Cândida Portolan para a revista Primeira Impressão.

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Page 1: Cândida Portolan

12 passos para uma nova vida A porta de saída das drogas

Nos dez hectares arborizados e cobertos por um manto de grama bem verde e

aparada, o canto dos pássaros é constante e a tranquilidade impera. Ao longe, se escuta

o cacarejar das galinhas, que são tratadas no aviário localizado entre o chiqueiro e as

gaiolas dos coelhos. As vacas, já ordenhadas, descansam com as ovelhas sob as

araucárias, no ponto mais alto da fazenda. Mais abaixo, os açudes acomodam os cisnes

negros, que passeiam pelas águas debaixo do céu azul e do sol brilhando. Para dentro da

porteira se perderia a noção das horas, não fosse o sino da capela São Pio de Pietrelcina,

que toca para lembrar que o tempo não para. Para quem está lá, cada badalo representa a

oportunidade de um dia cruzar pela mesma porteira, que fica sempre aberta, com uma

vida nova.

Para chegar até a Comunidade Terapêutica Vale a Pena Viver, localizada na

zona rural de Gramado, os caminhos dos 18 residentes foram mais difíceis do que a

estrada de chão batido e pedras soltas do interior. Na bagagem, trazem memórias de

famílias desestruturadas, de vida vazia e frustrações. Ingressos na Comunidade, têm a

consciência de que a caminhada da recuperação também não é fácil, mas que dar o

primeiro passo é fundamental: admitir a derrota para a droga.

Na Vale a Pena Viver, a vida dos dependentes químicos residentes não é, nem de

longe, pacata. Diariamente, cumprem um cronograma intenso de atividades, que inclui o

trato dos animais da fazenda, e o cultivo de frutas, verduras e legumes. Eles aprendem

técnicas de marcenaria, além de colaborarem na construção e reparos dos prédios, cujo

material é oriundo de doações. A responsabilidade pela realização das tarefas é revezada

entre eles, oportunizando que todos atuem nos 11 diferentes setores. O trabalho

dedicado ao lugar caracteriza a laborterapia, que junto da disciplina e espiritualidade

compõem o tripé que fundamenta a atuação da comunidade.

Entre as responsabilidades diárias, estão os momentos reservados para refletirem

sobre suas vidas, os caminhos por onde andaram até chegarem ali e os seus objetivos.

Um dos sistemas pelos quais são conduzidos no decorrer dos nove meses de tratamento

e da vivência na comunidade é o dos 12 passos do Alcoólicos Anônimos (A.A.). Os

passos caracterizam o progresso dos residentes em três etapas: adaptação ao novo e

desintoxicação, conscientização e resgate, e, por fim, a ressocialização. É na primeira

Page 2: Cândida Portolan

etapa, que compreende os primeiros passos, que se registra o maior número de

desistência. Admitir a impotência diante das drogas só não é um desafio, como também

uma porta de entrada para a recuperação.

O primeiro passo

Moisés sai tranquilamente do carro e se despede dos familiares para dar início ao

seu primeiro dia como residente. Aos 30 anos de idade, busca o tratamento pela

primeira vez desde os 17 anos, quando teve o primeiro contato com as drogas,

oferecidas por primos. A lembrança do motivo que o levou à dependência ainda é

bastante lúcida: a ambição. Na juventude, a popularidade lhe parecia muito interessante,

e o caminho mais rápido para alcançá-la foi a droga. O preço que pagou, porém, foi alto.

“Meus primos estavam no auge. Sempre nas melhores festas, e eu achava aquilo legal.

Comecei a sair com eles e experimentei. No início, usei cocaína, agora já estava no

crack”, recorda Moisés.

A lucidez foi se perdendo aos poucos, e o poder sobre a sua própria vida

também. Moisés tentou parar sozinho diversas vezes, mas não conseguiu ficar muito

tempo distante das drogas. “Não quero mais isso. A cabeça sempre girando, o cara não

consegue dizer o que sente. Eu quero poder sair e encarar todo mundo, sem ninguém

dizer ‘olha, lá vai um drogado!’”, desabafa. As expectativas no primeiro dia?

“Nenhuma”, responde Moisés. O que ele quer se resume em poucas palavras: uma vida

diferente, construída dia após dia.

Moisés provavelmente não saiba, mas chegou à fazenda minutos depois de

outros dois se despedirem do lugar antes de concluírem o tratamento. Um deles, com

apenas dois dias de residência. O outro, com três meses de tratamento. Ambos não

conseguiram dar o primeiro passo, mas dada a liberdade de decisão em ficar ou não,

optaram pelo desligamento da comunidade. É possível que, adiante, busquem outras

comunidades terapêuticas e clínicas, ou até mesmo que retornem para a Vale a Pena

Viver. Dos 18 residentes, quatro já tiveram passagem por essa ou outra comunidade

terapêutica.

André, 33 anos, já conhece o funcionamento da casa. Logo chega com o

chimarrão e trova na ponta da língua. O sorriso no rosto, porém, se desfaz ao revelar

que foi a terceira recaída que o levou de volta para a comunidade. André já passou pela

casa em 2007, quando teve a segunda recaída.

Page 3: Cândida Portolan

A história de André com as drogas tem muitas idas e vindas. Começou quase

que ao acaso, quando tinha 12 anos, brincando de esconder. No esconderijo, um amigo

lhe apresentou algo que tinha aprendido com o tio, traficante de drogas. “Ele me

mostrou cocaína e me disse ‘vi meu tio fazer, ele faz assim. Faz também’. Foi assim, na

brincadeira, na inocência. Cheguei em casa assustado, aquilo trancou a minha garganta,

tive uma reação completamente esquisita”, lembra. Se foi quase sem querer que André

teve o primeiro contato com as drogas, não foi ao acaso que essa relação de dependência

escreveu novos capítulos.

Embora não tenha dado continuidade ao uso a partir daquele momento, o círculo

de amizade permaneceu o mesmo. Alguns amigos já eram usuários, o que ajudou a

trazer à memória a primeira experiência. Aos 14 anos, André participava de encontros

para beber e fumar maconha. A drogadição continuou até os 21 anos, em 2000, quando

procurou tratamento. Ele era casado, e a esposa esperava um filho. Para André, era o

momento certo para procurar ajuda e mudar de vida. Foram meses de tratamento e

quatro anos limpo, ou seja, sem usar drogas. Até que, nas festas de final de ano, de 2004

para 2005, teve a primeira recaída.

Em 2007, buscou novo tratamento. Dessa vez, na Comunidade Vale a Pena

Viver. Na comunidade, André passou pelos 12 passos e partiu da internação para ajudar

dependentes químicos residentes em outro centro de recuperação. Em março deste ano,

ele soube que teria que recomeçar a caminhada novamente, desde o primeiro passo. Foi

quando teve a última recaída. Segundo ele, isso aconteceu em função de vários

acontecimentos que não soube administrar, como cobranças e frustrações no

relacionamento. “São coisas que, às vezes, achamos que com as drogas conseguiremos

amenizar. Na verdade, a gente cria outros problemas, e hoje eu estou aqui, resolvendo

eles”.

“Tu já sabias que virias para cá, quando recaiu?”, pergunta Roberto Faleiro,

coordenador interno do Processo Terapêutico da Comunidade para André. “Sim, mas no

primeiro momento me convenci de que usaria ‘só hoje’. Precisamos nos enganar para

usar tranquilo”, responde. Faleiro enfatiza que isso ocorre devido ao descontrole do

dependente sobre a sua própria vida. A compulsividade, pontua, faz o primeiro passo

ser o mais difícil, porque é o que mais dói.

Roberto e André já se conhecem de longa data. Roberto trabalhava na primeira

comunidade onde André se tratou e, anos mais tarde, chegaram a trabalhar juntos. Hoje,

mais uma vez sendo assistido por Roberto, André recorda o caminho seguido até então e

Page 4: Cândida Portolan

projeta o futuro. Antes, porém, Roberto questiona se André já passou pelo primeiro

passo. O residente, cabisbaixo, assume que não, por ainda não ter assimilado que recaiu.

É difícil para André, que já havia dado todos os passos, admitir que precisa

começar de novo. Na sua ideia, e de muitos que passam pela comunidade, a recaída não

representaria mais do uma única vez, que logo se dissolveria no esquecimento, assim

como a substância no seu corpo. Hoje, o filho de André tem 12 anos e mora com os

avós paternos. Não é a primeira vez que vive a ausência do pai, que se retira para

recomeçar. André tem sonhos para depois do tratamento. Agora, busca se reerguer para

que o filho viva os seus 12 anos diferentes daqueles que ele mesmo viveu: que as

brincadeiras sejam outras e a vida próspera.

Pela caminhada do próximo

Roberto Faleiro é o coordenador interno do Processo Terapêutico da

comunidade há quase um ano. Antes disso passou por outras casas de recuperação,

inclusive como dependente. Roberto viu sua família se desestruturar e seus valores

serem trocados pelas drogas. Há 18 anos, no dia 29 de junho de 1995, ingressou na

Fazenda Pacto, em Viamão, de onde saiu decidido a não cair mais. E assim fez. De lá

pra cá, se dedica a iniciativas que visam o resgate e recuperação de dependentes

químicos.

A experiência lhe trouxe conhecimento, que partilha com o grupo de residentes,

monitores e funcionários da instituição. Conversa sem tabus sobre os malefícios do uso

de drogas para os dependentes e suas famílias. Trata os residentes com a seriedade que o

tratamento exige, sem deixar de acolher. Para coordenar as tarefas, Roberto conta com o

apoio de monitores, ex-residentes que já concluíram o tratamento. Um deles é Luciano,

38 anos, que esbanja energia.

Luciano ingressou na comunidade quando tinha 34 anos. Ao falar da sua

experiência como residente e do que a comunidade representa na sua vida, as palavras

de Luciano, tal como suas memórias, são precisas: “Todos entram pela pressão da

situação. Ninguém vende a vida pelas drogas. O dependente químico troca a sua vida

pelo vício”. Diante da convidativa paisagem rural, ele é enfático: “É lindo, mas é uma

casa de problemas. Quem está aqui chega sem valores e sem perspectiva. Esse é um

lugar de resgate”.

Page 5: Cândida Portolan

Luciano resgatou seus valores e se coloca ao serviço dos demais, que ainda

trilham o caminho da recuperação. Os passos dele são rápidos. Agitado, passa o dia

auxiliando os residentes nas atividades diárias. Visita todos os setores, sabe quem são os

responsáveis pelas tarefas e chama a atenção dos residentes quando necessário.

Colaborar com o trabalho da Comunidade, para ele, é uma forma de fortalecer

diariamente a decisão de vida nova e de transmitir esta mensagem para quem chega e

para quem retorna. Segundo o monitor, o primeiro passo deve ser reafirmado todos os

dias, numa caminhada que nunca termina.

Debaixo da sombra da árvore, Luciano, Moisés, André e Roberto parecem ter

muito em comum. Todos acreditam que assumir a derrota para as drogas é o primeiro

passo da caminhada rumo à vitória. Independente do momento em que se encontram,

seja residente, monitor ou coordenador, têm a consciência de que cada dia traz consigo

uma luta, composta de desafios, submissões e conquistas, que os levam para além da

porteira. A mensagem de todos é a mesma: tudo é válido para quem acredita que vale a

pena viver. Afinal, os 12 passos são trilhados no tratamento com duração de nove

meses, mas a observância dos objetivos de cada uma das etapas deve se estender para a

vida toda.

BOX

Os 12 passos

Três primeiros meses:

Adaptação ao novo e desintoxicação

Passo 1: admitimos que éramos impotentes perante o álcool – que tínhamos

perdido o domínio sobre as nossas vidas.

Passo 2: viemos a acreditar que um Poder superior a nós mesmos poderá

devolver-nos à sanidade.

Passo 3: decidimos entregar nova vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, na

forma em que O concebíamos.

Page 6: Cândida Portolan

Do 4º ao 6º mês:

Conscientização e resgate. Passos modificadores

Passo 4: fizemos minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos.

Passo 5: admitimos perante Deus, perante nós mesmos e perante outro ser

humano, a natureza exata de nossas falhas.

Passo 6: prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses

defeitos de caráter.

Do 7º ao 9º mês:

Ressocialização. Passos reparadores

Passo 7: humildemente rogamos a Ele que nos livrasse de nossas imperfeições.

Passo 8: fizemos uma relação de todas as pessoas que tínhamos prejudicado e

nos dispusemos a reparar os danos a elas causados.

Passo 9: fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre

que possível, salvo quando fazê-lo significasse prejudica-las ou a outrem.

Passo 10: continuamos fazendo o inventário pessoal e, quando estávamos

errados, nós o admitíamos prontamente.

Passo 11: procuramos, através da prece e da meditação, melhorar nosso contato

consciente com Deus, na forma em que O concebíamos, rogando apenas o

conhecimento de Sua vontade em relação a nós e forças para realizar essa vontade.

Passo 12: tendo experimentado um despertar espiritual, graças a estes passos,

procuramos transmitir esta mensagem aos alcoólatras e praticar estes princípios em

todas as nossas atividades.