canaviais e açúcar no espaço insular atlântico

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1 CANAVIAIS E AÇÚCAR NO ESPAÇO INSULAR ATLÂNTICO Questões de meio ambiente e Técnica ALBERTO VIEIRA FUNCHAL-MADEIRA EMAIL:[email protected] http://www.madeira-edu.pt/ceha/ "Dificilmente se encontrarão formas de utilização dos recursos dos solos que se possam rivalizar com a agro indústria canavieira quanto à capacidade de condicionar um tipo de sociedade e de economia, de modelar um tipo de paisagem e de estruturar um tipo de arranjo económico do espaço ". (Mário Lacerda de Melo, O Açúcar e o Homem, 1975) "Já afirmou alguém, com muita razão, que o cultivo da cana-de-açúcar se processa em regime de autofagia: a cana devorando tudo em torno de si, engolindo terras e mais terras, dissolvendo o húmus do solo, aniquilando as pequenas culturas indefesas e o próprio capital humano, do qual a sua cultura tira toda a vida. E é a pura verdade... Donde a caracterização inconfundível das diferentes áreas geográficas açucareiras, com seu ciclo económico, com as fases de rápida ascensão, de esplendor transitório e de irremediável decadência. Ciclo este que se processa tanto mais rapidamente quanto menores os recursos de terras disponíveis. Daí a semelhança de aspectos entre áreas diferentes como o Haiti, Cuba, Porto Rico, Java e o Nordeste brasileiro ". (Josué de Castro, Geografia da Fome, R. Janeiro, 1952, p.73) A cana-de-açúcar é considerada, com propriedade, a cultura mais importante da História da Humanidade. A ela se deve os maiores fenómenos de mobilidade humana, económica, comercial e ecológica. A afirmação como cultura agrícola é milenar e abrange vários quadrantes do planeta. É, ainda entre todas as plantas domesticadas pelo Homem, a que lhe trouxe maiores exigências. Ela quase que o escraviza, esgota o solo, devora a floresta e dessedenta os cursos de água. A exploração intensiva, que ocorre no espaço atlântico a partir do século XV, gerou grandes exigências de mão-

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CANAVIAIS E AÇÚCAR NO ESPAÇO INSULAR ATLÂNTICO Questões de meio ambiente e Técnica

ALBERTO VIEIRA

FUNCHAL-MADEIRA

EMAIL:[email protected] http://www.madeira-edu.pt/ceha/

"Dificilmente se encontrarão formas de utilização dos recursos dos solos que se possam rivalizar com a agro indústria canavieira quanto à capacidade de condicionar um tipo de sociedade e de economia, de modelar um tipo de paisagem e de estruturar um tipo de arranjo económico do espaço ". (Mário Lacerda de Melo, O Açúcar e o Homem, 1975)

"Já afirmou alguém, com muita razão, que o cultivo da cana-de-açúcar se processa em regime de autofagia: a cana devorando tudo em torno de si, engolindo terras e mais terras, dissolvendo o húmus do solo, aniquilando as pequenas culturas indefesas e o próprio capital humano, do qual a sua cultura tira toda a vida. E é a pura verdade... Donde a caracterização inconfundível das diferentes áreas geográficas açucareiras, com seu ciclo económico, com as fases de rápida ascensão, de esplendor transitório e de irremediável decadência. Ciclo este que se processa tanto mais rapidamente quanto menores os recursos de terras disponíveis. Daí a semelhança de aspectos entre áreas diferentes como o Haiti, Cuba, Porto Rico, Java e o Nordeste brasileiro ". (Josué de Castro, Geografia da Fome, R. Janeiro, 1952, p.73)

A cana-de-açúcar é considerada, com propriedade, a cultura mais importante da História da Humanidade. A ela se deve os maiores fenómenos de mobilidade humana, económica, comercial e ecológica. A afirmação como cultura agrícola é milenar e abrange vários quadrantes do planeta. É, ainda entre todas as plantas domesticadas pelo Homem, a que lhe trouxe maiores exigências. Ela quase que o escraviza, esgota o solo, devora a floresta e dessedenta os cursos de água. A exploração intensiva, que ocorre no espaço atlântico a partir do século XV, gerou grandes exigências de mão-

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de-obra, sendo, por isso mesmo, responsável pelo maior fenómeno migratório à escala mundial que teve por palco o Atlântico, isto é, a escravatura de milhões de africanos. Ligado a tudo isso está também um conjunto variado de inovações técnicas e manifestações culturais. Foi o Oriente que descobriu a doçura da cana-de-açúcar, tendo a Papua Nova Guiné como berço. Os árabes fizeram-na chegar ao ocidente, ficando para a História como os principais arautos da expansão, deixando aos genoveses e venezianos o comércio nos principais mercados europeus. No processo de transmigração da cultura para o Ocidente, desde o Mediterrâneo ao Atlântico, as ilhas foram o principal viveiro da afirmação e divulgação: Creta e Sicília no Mediterrâneo, Madeira, Açores, Canárias, Cabo Verde e S. Tomé no Atlântico Oriental, Santo Domingo, Cuba, Jamaica, Demerara (…) nas Antilhas. A realidade sócio-económica, que serve de suporte ao avanço do açúcar no espaço e no tempo, é diferenciada, sendo marcantes as singularidades e mudanças no percurso do Pacífico/Índico para o Mediterrâneo/Atlântico. Assim, no primeiro caso nunca assumiu uma posição dominante na economia agrícola e de mercado, enquanto no segundo é patente o efeito dominador na economia e sociedade em associação ao escravo, situação que começa no Mediterrâneo e se reforça e afirma em pleno no Atlântico. A Madeira surge, nos alvores do século XV, como a primeira experiência de ocupação em que se ensaiaram produtos, técnicas e estruturas institucionais. Tudo isto foi, depois, utilizado, em larga escala, noutras ilhas, litoral africano e americano. O arquipélago madeirense foi o centro de irradiação dos sustentáculos da nova sociedade e economia do mundo atlântico: primeiro os Açores, depois os demais arquipélagos e regiões costeiras onde os portugueses aportaram. Daqui resultou para a Madeira o papel fundamental de difusão das culturas existentes na Europa e que tinham valor mercantil ou pela necessidade para assegurar a subsistência. Depois com a revelação de novos espaços do Atlântico e Índico tivemos o retorno de outras culturas e produtos que vieram enriquecer o cardápio europeu. No traçado das rotas oceânicas situava-se o Mediterrâneo Atlântico com um papel primordial na manutenção e apoio à navegação atlântica. As ilhas da Madeira e Canárias surgiram nos séculos XV e XVI como entrepostos do comércio no litoral africano, americano e asiático. Os portos principais da Madeira, Gran Canaria, La Gomera, Hierro, Tenerife e Lanzarote animaram-se de forma diversa com o apoio à navegação e comércio nas rotas da ida, enquanto nos Açores, com as ilhas de Flores, Corvo, Terceira, e S. Miguel, foram a escala necessária e fundamental da rota de retorno. A posição demarcada do Mediterrâneo Atlântico no comércio e navegação atlântica fez com que as coroas peninsulares investissem aí todas as tarefas de apoio, defesa e controle do trato comercial. As ilhas foram os bastiões avançados, suportes e os símbolos da hegemonia peninsular no Atlântico. A disputa pela riqueza em movimento no oceano fazia-se na área definida por elas e atraiu piratas e corsários ingleses, franceses e holandeses, ávidos das riquezas em circulação. Uma das maiores preocupações das coroas peninsulares foi a defesa das embarcações das investidas dos corsários europeus. A área definida pela Península Ibérica, Canárias e Açores foi o principal foco de intervenção do corso europeu sobre os navios que transportavam açúcar ou pastel ao velho continente. Podemos definir para a História do Açúcar nas ilhas define-se por dois momentos distintos. Os

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séculos XV a XVII em que as mesmas assumem um papel na expansão da cultura e definição do mercado atlântico-europeu para o açúcar. Depois de um hiato de quase duas centúrias a cultura retorna aos campos insulares por condições diversas e em posição distinta. Assim, a segunda metade da centúria oitocentista foi marcada pela dominância dos canaviais em algumas das ilhas, assumindo na Madeira um protagonismo evidente. Apenas os Açores, havia abandonado definitivamente a cana sacarina, apostando na ilha de São Miguel noutro recurso, a beterraba, para produzir açúcar e álcool. ILHAS COM E SEM AÇÚCAR. A rota do açúcar, na transmigração do Mediterrâneo para o Atlântico, tem na Madeira a principal escala. Foi na ilha que a planta se adaptou ao novo ecossistema e deu mostras da elevada qualidade e rendibilidade. Deste modo a quem quer que seja que se abalance a uma descoberta dos canaviais e do açúcar, na mais vetusta origem no século XV, tem obrigatoriamente que passar pela ilha. Aqui que se definiram os primeiros contornos da realidade económico-social, que teve plena afirmação nas Antilhas e Brasil. Aqui surgiram os primeiros contornos sociais (a escravatura), técnicos (engenho de água) e político-económicos (trilogia rural) que materializaram a civilização do açúcar. Por tudo isto é imprescindível uma análise da situação insular, e de forma especial madeirense, caso estejamos interessados em definir, exaustivamente, a história do açúcar no mundo atlântico. Na Madeira a cultura confunde-se com a conjuntura de expansão europeia e dos momentos de fulgor do arquipélago. A presença é multissecular e deixou rastros ainda hoje evidentes na sociedade madeirense. É, entre todos os espaços insulares, aquele onde os testemunhos presenciais são mais evidentes. Perduram alguns canaviais e três engenhos que apenas laboram para o fabrico do mel e aguardente. A poncha e o bolo de mel são responsáveis por esta sobrevivência. Dos séculos XV e XVI ficaram os imponentes monumentos, pintura e a ourivesaria que os embelezou e que hoje jaz quase toda no Museu de Arte Sacra. Do século XIX e do primeiro quartel da nossa centúria perduram ainda a maioria dos engenhos da nova vaga de cultura dos canaviais. A cana diversificou-se no uso industrial, sendo geradora do álcool, aguardente e, raras vezes, o açúcar. Nos demais arquipélagos a cultura é ainda mais residual. Assim nas Canárias a presença é apenas notada em Gran Canária e La Palma. Nos Açores desapareceu para dar lugar à beterraba açucareira, enquanto em Cabo Verde subsiste em algumas ilhas [Santiago, Santo Antão e S. Nicolau), por força do uso da aguardente em algumas bebidas típicas, como o grog, bandoi e ponche1. O açúcar é de todos os produtos que acompanharam a expansão europeia aquele que moldou, com maior relevo, o quotidiano das novas sociedades e economias que, em muitos casos, se afirmaram como resultado dele. A cana sacarina, pelas especificidades de cultivo, especialização e morosidade do processo de transformação da garapa em açúcar, implicou uma vivência particular, assente num específico complexo sócio-cultural de vida e convivência humana. A cana-de-açúcar é, ainda, entre todas as plantas domesticadas pelo Homem a que mais implicações tiveram na História da Humanidade. Ainda hoje são evidentes as transformações operadas na agricultura, técnica, química e siderurgia, por força da cultura da cana sacarina, beterraba e da produção de açúcar, mel, aguardente, álcool e rhum2. Foi no Atlântico que a cultura atingiu a plena afirmação económica,

1 João Lopes Filho, O Corpo e o Pão, Oeiras, 1997, 212. 2 Existe um conjunto variado de textos que valoriza o papel da cana como motor do progresso em vários sectores: Luiz del Castilho, A Fabricação do Assucar de Canna. Notas e formulas…, Rio de Janeiro, 1893, p.5; P. Horsin-Déon, Le Sucre et L’Industrie sucrière, Paris, 1894, p.5 ; D. Sidersky, Manuel du Chimiste de Sucrerie, Paris, 1909 ; IDEM, Aide-Mémoire de Sucrerie, Paris, 1936, pp.3 ; F. A. Lopez Ferrer, Fabricación de Azúcar de Caña Mieles y Siropes

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assumindo posição dominante nas trocas. Fernand Braudel define de modo claro a forma de intervenção e as mudanças provocadas pelo açúcar: “Devastadora do antigo equilíbrio, a cana é tanto mais perigosa quanto é apoiada por um capitalismo poderoso, que, no século XVI, Provem tanto de Itália, como de Lisboa ou de Antuérpia, e ao qual ninguém consegue resistir. “3 Vitorino Magalhães Godinho acrescenta que, “a génese do mundo atlântico está pois, em grande parte, ligada àquilo a que Fernand Braudel chama muito apropriadamente dinâmica do açúcar.” 4 Na verdade, a cana sacarina começou por ser uma cultura do mundo insular, e em todo o processo de expansão nos diversos espaços as ilhas foram importantes áreas de aclimatação, mas foi nos continentes que adquiriu maior dimensão e pujança. As grandes inovações relacionadas com a cultura e tecnologia do açúcar aconteceram nas ilhas. A primeira muda de cana é originária das ilhas, pois foi na ilha Papua da Nova Guiné que o homem iniciou o processo de domesticação, mas hoje é conhecida mais pela expressão que tem nos espaços continentais do que no mundo insular. Cuba, por exemplo, que durante muito tempo ocupou uma posição cimeira na produção açucareira, perdeu protagonismo. No processo de transmigração para Ocidente as ilhas mediterrânicas, de Chipre e Sicília, foram destacados entrepostos de alargamento da cultura ao mundo ocidental e que, segundo a tradição as primeiras mudas de cana terão chegado à Madeira a partir da Sicília que. Depois, foi a expansão no Atlântico com as ilhas a serviram de novo como anteparo. Não fica por aqui o protagonismo das ilhas, pois aos insulares para além da dimensão divulgadora da cultura foi-lhes ainda atribuída a tarefa de inventar novas formas e técnicas de transformação do produto adequadas à dimensão da área cultivada. Acresce ainda o papel recente da Madeira na adaptação da tecnologia, usada na Europa para a transformação da beterraba em açúcar, ao fabrico do açúcar de cana sacarina. O açúcar é, entre todos os produtos com valor comercial, o que foi alvo de maiores inovações tecnológicas para o fabrico, por força da pressão do mercado e do ciclo vegetativo da cultura. No caso do vinho a tecnologia pouco ou nada mudou desde o tempo dos Romanos. Várias condicionantes favoreceram a necessidade de permanente actualização da tecnologia de fabrico do açúcar, situação que se tornou mais clara no século XVIII com a concorrência da beterraba. Mesmo assim ainda hoje persistem em alguns recantos do Mundo, na China, Índia ou Brasil, onde a tecnologia da revolução industrial ainda não entrou. O fabrico do açúcar está limitado pela situação e ciclo vegetativo da planta. A cana sacarina tem um período útil de vida em que a percentagem de sacarose era mais elevada5. A cana estava pronta para ser colhida e a partir daqui um dia que passasse era uma perda para o produto. Acresce que depois de cortada tem pouco mais de 48 horas para ser moída e cozida, pois caso contrário começa a perder sacarose e inicia o processo de fermentação. Daqui resulta a necessidade de acelerar o processo de fabrico do açúcar através de constantes inovações tecnológicas que cobrem o processo de corte esmagamento e cozedura6. A isto junta-se o aumento da mão-de-obra, que se faz à custa de

Invertidos com su Control Técnico-Quimico, Habana, 1948, p.V; IDEM, Maquinaria y aparatos en los Ingenios de Azucar de Caña, La Habana, 1949 ; A. C. Barnes, Agriculture of the Sugar-Cane, Londres, 1954, p. IX ; Andrew Van Hook, Sugar its Production, Technology and uses, N. York, 1969, p.III .

3 O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico, Lisboa, 1983 [1ª edição em 1966], p.178 4 Mito e Mercadoria Utopia e Prática de Navegar. Séculos XIII-XVIII, Lisboa, 1990, p.478 5 Cf. J. de Laguarrique de Survilliers, Manuel de Sucrerie de Cannes, Paris, 1932, pp. 29. 6 Cf. Nilo Cairo, O Livro da Canna de Assucar, Curitiba, 1924, pp. 85-86, 109; A. Bernard, A Evolução das Moendas de

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escravos africanos. A cana-de-açúcar não está na origem da escravidão africana mas no processo de afirmação a partir da Madeira. Enquanto a cultura se fazia em pequenas parcelas a maior parte das questões não se colocavam, mas quando se avançou para uma produção em larga escala houve necessidade de encontrar soluções capazes de resolver a situação, através da aceleração do processo de moenda e fabrico. A viragem aconteceu a partir de meados do século XV na Madeira e deverá ter implicado mudanças radicais na tecnologia usada e na afirmação da escravatura dos indígenas das Canárias e negros da Costa da Guiné. É por isso que se assinala a partir da Madeira importantes inovações tecnológicas no sistema de moenda da cana com a generalização do sistema de cilindros. A história tecnológica evidencia que a expansão europeia condicionou a divulgação de técnicas e permitiu a invenção de novas que contribuíram para revolucionar a economia mundial. Os homens que circularam no espaço atlântico foram portadores de uma cultura tecnológica que divulgaram nos quatro cantos e adaptaram às condições dos espaços de povoamento agrícola. Aos madeirenses foi atribuída uma missão especial nos primórdios do processo. Na Madeira, um dos aspectos mais evidente, da revolução tecnológica iniciada no século XV prende-se com a capacidade do europeu em adaptar as técnicas de transformação conhecidas a circunstâncias e às exigências de culturas e produtos tão exigentes como a cana e o açúcar. O tributo foi evidente. Ao vinho foi-se buscar a prensa, ao azeite e aos cereais a mó de pedra. Por outro lado estamos perante uma permuta constante de processos tecnológicos e formas de aproveitamento das diversas fontes de energia. A tracção animal, a força motriz do vento e da água foram usadas em simultâneo com os cereais e cana sacarina. As mudanças ocorridas a partir de finais do século XVIII, com a plena afirmação da máquina a vapor, conduziram a uma transformação radical do complexo açucareira que assume a dimensão espacial de uma fábrica, onde todas as operações se executam em série apenas numa planta. A revolução industrial legou-nos a fábrica, fez aparecer o laboratório, uma peça chave no fabrico do açúcar, e obrigou a uma especialização dos técnicos envolvidos. O mestre de engenho dá lugar ao engenheiro químico. Paulatinamente o processo de transformação da cana sacarina em açúcar retirou espaço à presença de mão-de-obra escravo, fazendo-a substituir por emigrantes europeus, indianos e chineses. Até ao advento do açúcar de beterraba em princípios do século XIX a tecnologia de moenda e fabrico do açúcar não sofreu muitas modificações. Ao nível da moagem da cana houve necessidade de compatibilizar as estruturas com a expansão da área e o volume de cana moída, avançando-se assim dos ancestrais sistemas para a adaptação dos cilindros. Entre os séculos XV e XVII as inovações mais significativas ocorrem aqui. Os cilindros passam a dominar todos os sistemas, de tracção animal, humana, vento e água, destronando o pilão, o almofariz e a mó. Do simples mecanismo de cilindros duplos horizontais, evolui-se para os verticais, que no século XVII passam a ser de três, o que permite uma maior capacidade de moenda e aproveitamento do suco da cana. Com os dois cilindros poder-se-á aproveitar apenas 20% do suco da cana, enquanto com três até 35%. As técnicas experimentadas na moagem vão no sentido e um maior aproveitamento do suco disponível no bagaço da cana. A situação de Cuba na década de setenta do século XIX pode ser elucidativa da realidade7.

Canas, Brasil Açucareiro, XXXVIII, 2, 1951, pp. 73, 76. 7 João José Carneiro da Silva, Estudos Agrícolas, Rio de Janeiro, 1872, p.94

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Uma maior capacidade na moenda implica maior disponibilidade de garapa a ser processada para se poder dispor do melado ou do açúcar. Uma situação empurra a outra conduzindo a soluções cada vez mais avançadas. As dificuldades com a obtenção de lenhas ou os elevados custos do transporte até ao local do engenho conduzem a soluções que paulatinamente vão sendo adoptadas por todos. Primeiro reaproveita-se o bagaço da cana e depois através de um mecanismo de fornalha única consegue-se alimentar as cinco caldeiras de cozimento. O sistema ficou conhecido por trem jamaicano, por, segundo alguns, ter tido aí origem, mas na verdade temos informação do seu uso, não tão apurado na Madeira e Canárias, no século XVI. Em 1530 Giulio Landi descreve o sistema de fabrico de açúcar com cinco caldeiras agrupadas: Os lugares onde com enorme actividade e habilidade se fabrica o açúcar estão em grandes herdades, e o processo é o seguinte: primeiramente, depois que as canas cortadas foram levadas para os lugares acima referidos, põem-nas debaixo de uma mó movida a água, a qual, triturando e esmagando as canas, extrai-lhe todo o suco. Aqui há cinco vasos postos por ordem, para cada um dos quais o suco saído das canas passa um certo tempo em ebulição, depois, passando para os outros casos, com fogo brando, dão-lhe com habilidade a cozedura, de modo que chegue a espessura tal que, posto depois em formas de barro, possa endurecer. A espuma que se forma ao cozer o açúcar, deita-se em barricas, excepto a que sai da primeira cozedura, porque esta se deita fora; mas a outra, que se conserva, é muito semelhante ao mel" 8. A situação surge também nas Canárias no século XVI. Aqui as caldeiras reuniam-se em grupos de três ou cinco, sendo servidas por distintas fornalhas ou apenas uma. No engenho de Cristóbal Garcia del Castilho em Telde refere-se que “as fornallas que son todas juntas en el…”9 Jamaica esteve na frente das inovações da tecnologia açucareira a partir da segunda metade do século XVIII. Os ingleses deram o passo definitivo para a mudança radical através da introdução da máquina a vapor. O primeiro engenho horizontal de tipo moderno foi desenhado em 1754 por John Smeaton na Jamaica, recebendo a partir de 1770 o impulso da máquina a vapor. A nova tecnologia, que se aperfeiçoou com o andar dos tempos, poderá acoplar até 18 cilindros em sistema de tambor, tornando mais rápida e útil a moenda. Com cinco cilindros o aproveitamento do suco pode ir até 90%, enquanto que com os tambores de 18 cilindros quase se atinge a exaustão com 98%. Por outro lado nos engenhos tradicionais a média de moenda por 24 horas não ultrapassava as 125 toneladas, enquanto que com o novo sistema a vapor começa por atingir mais de três mil toneladas de cana. Segue-se o processo de fabrico do açúcar que se distribui por quatro momentos: purificação da garapa, evaporação da água e, finalmente a clarificação e cristalização. Até aos inícios do século XIX o processo poderia durar de 50 a 60 dias, mas as aportações tecnológicas, conduziram a que o mesmo se passasse a fazer em apenas um mês em 1830 e apenas 16 horas em 1860, através do novo sistema de centrifugação. As primeiras mudanças ocorrem ao nível do processo de clarificação. Em 1805 Guillon, refinador do açúcar em New Orleans preconiza o uso do carvão para purga xarope, em 1812 Edward Charles Howard constrói a primeira caldeira de vacuum, conhecida como “howard saccharine evaporator”, que veio revolucionar o sistema de fabrico do açúcar. Três anos depois surge em Inglaterra o sistema de filtros de Taylor. O evaporador de múltiplo efeito foi inventado em 1830 por Norbert Rillius [1806-1894] de New Orleans, sendo usada nos primeiros engenhos desde 1834. Deste modo torna-se mais fácil a retirada de cerca de 85% de água que existe no suco da cana e um maior aproveitamento do açúcar. As novidades na clarificação e cristalização ocorrem num segundo

8 António Aragão. A Madeira Vista por Estrangeiros.1455-1700, Funchal, 1981, 85-86. 9 Manuel Lobo, El Ingenio en Canárias, in História e Tecnologia do Açúcar, Funchal, 2000, p.110-112

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momento. Assim, em 1844 o alemão Schottler aplicou pela primeira vez a força centrífuga na separação do melaço do açúcar branco, mas foi Soyrig quem construiu em 1849 a primeira máquina de centrifugação, que abriu o caminho para o fabrico do primeiro açúcar granulado, em 1859. Este sistema vinha sendo utilizado desde 1843 na indústria têxtil. Os equipamentos contribuíram para acelerar o processo de purga do açúcar permitindo que se passasse do moroso processo de quase dois meses para apenas 16 horas e hoje em apenas alguns segundos. A segunda metade do século XIX foi o momento da aposta definitiva na engenharia açucareira, contribuindo para importantes inovações. O mercado ocidental foi inundado de açúcar de cana e beterraba. O desenvolvimento da indústria de construção de equipamentos para o fabrico de açúcar, seja de cana ou de beterraba, aconteceu em países onde esta assumia uma posição significativa na economia. Deste modo a França e a Inglaterra assumiram a posição pioneira no desenvolvimento da tecnologia. Os Franceses detinham importantes colónias açucareiras nas Antilhas, enquanto os Alemãs apostavam forte em Java. Os ingleses surgem por força da colonial nas Antilhas e Índia e os Estados Unidos da América com New Orleans e, depois o Havai. Cuba foi um dos espaços açucareiros onde mais se inovou em termos tecnológicos. As primeiras décadas do século XIX foram de plena afirmação da ilha, que se transformou em modelo para a indústria açucareira. Em França tudo começou com o químico Charles Derosne (1779-1846) que montou em 1812 uma fábrica de construção de aparelhos de destilação continua. Nesta empresa passou a trabalhar em 1824 J. F. Cail na qualidade de operário de carvão, que em 4 de Março de 1836 passa à condição de associado. A sociedade Derosne et Cail manteve-se até 1850, altura em que passou a chamar-se J. F. Cail et Cie, que em 1861 passou a cooperar com a nova Cie Fives-Lille, especializada no fabrico de equipamentos para fábricas de açúcar e caminhos-de-ferro. Os equipamentos, saídos da empresa Cail, chegaram às colónias holandesas, espanholas, inglesas e francesas, México, Rússia, Áustria, Holanda, Bélgica e Egipto. À indústria francesa juntaram-se outros complexos industriais na Europa: Inglaterra (Glasgow, Birmingham, Nottingham, London, Manchester, Derby), Holanda (Breda, Roterdão, Schiedam, Ultrecht, Delft, Hengelo, Amsterdam), Estados Unidos da América (Oil City, Ohio, Denver, New Jersey), Alemanha (Magdeburgo, Zweibruecken, Halle, Dusseldorf, Sangerhausen, Ratingen, Halle), Bélgica (Bruxelas, Tirlemont). Na Inglaterra foi desde meados do século XVII um dos mais importantes centros de refinação de açúcar na Europa. As refinarias proliferam nas cidades de nas cidades de Bristol, Essex, Greenock, Lancaster, Liverpool e Southampton10. Isto justifica o desenvolvimento tecnológico. Aqui, merece destaque a iniciativa de Mirless Watson. A abertura às inovações tecnológicas, como forma de tornar concorrencial o produto, acarreta algumas consequências para a indústria ao nível nacional. Os investimentos são vultuosos e, por isso mesmo só se tornam possíveis mediante incentivos do Estado. A inovação e recuperação da capacidade concorrencial só se tornaram possível à custa da concentração. Tanto em Cuba como no Brasil a década de oitenta foi marcada pelos grandes engenhos centrais. AS ILHAS DO AÇÚCAR: ATLANTICO E CARIBE. A implantação de canaviais não deriva apenas da disponibilidade de uma reserva florestal e de água abundante para o regadio e laboração dos

10 . John M. Hutcheson, notes on the Sugar Industry of the United Kingdom, Greenock, 1901; Frank Lewis, Essex and sugar, 1976.

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engenhos, juntando-se outras condições oferecidas pelo clima e orografia. As ilhas da América Central e do Golfo da Guiné ofereciam melhores condições que a Madeira ou as Canárias. Deste modo em ambos os arquipélagos macaronésicos a orografia estabeleceu um travão à afirmação da cultura extensiva dos canaviais. De acordo com estas condições a produção madeirense dos séculos XV e XVI nunca ultrapassou as 1584,7 toneladas, atingidas em 1510. Apenas no século XX, com a expansão dos canaviais, de novo a toda a ilha, se conseguiu suplantar este valor, tendo-se alcançado em 1916 as 4943,6 toneladas. O incremento da produção açucareira foi travado nos anos imediatos por meio dos decretos de 1934-1935 e 1937 regulamentadores da área de produção. Em S. Tomé os canaviais tiveram melhores condições para se afirmarem e suplantarem a produção madeirense. Na primeira metade do século dezasseis a ilha, com uma extensão de 857 m2, (mais que a Madeira com 728) produzia o dobro, cifrando-se em 950 toneladas. O clima, o solo permitiram que a produção de açúcar em S. Tomé cedo suplantasse a madeirense. As canas cresciam três vezes mais que na Madeira e faziam-se duas colheitas. O conjunto das 21 ilhas produtoras de açúcar no espaço atlântico oferece um total de 271.993 m2, dos quais oferece apenas uma ínfima parcela dedicada à agricultura. Para além da disponibilidade do espaço agrícola adequado, tornava-se necessário a disponibilidade de uma reserva silvícola, sem a qual os engenhos não podiam laborar. Na Madeira a situação era paradigmática. A superfície cultivada pouco ultrapassa um terço da área da ilha, sendo o restante espaço constituído pela reserva silvícola. A situação das ilhas do outro lado do oceano é também diferente da madeirense. As condições semelhantes às encontradas em S. Tomé fizeram com que os canaviais se afirmassem aí, a partir do século dezassete. Deste conjunto de ilhas apenas um reduzido número (S. Cristóvão, Nevis, Antigua, Montserrat) se assemelha à Madeira, em termos orográficos. Aí deparámo-nos com ilhas de superfície menor que a Madeira (Antigua, Barbados, Nevis, St. Vicent, Trinidad) mas com uma produção açucareira superior. Facto evidente sucede com as ilhas de Trinidad, Antigua e Barbados, que dispondo de uma reduzida superfície conseguem produzir mais açúcar que a Madeira. A ilha de Trinidad com apenas 301 m2 produziu entre 1850 e 1940 uma média anual de 57862 toneladas de açúcar, enquanto a Madeira se ficou pelas 1659 toneladas. Em Montserrat e Nevis, com uma superfície total quase igual à da área ocupada pelos canaviais na Madeira, conseguem atingir valores de produção semelhantes. Diversa é também a estrutura fundiária que serviu de base à cultura nos distintos espaços insulares. Enquanto na Madeira a orografia e o sistema de posse da terra definiram a plena afirmação da pequena e média propriedade, em S. Tomé ou nas Antilhas estávamos perante a grande propriedade, activada pela grande força de trabalho escrava. Em Barbados, entre 1650 e 1834, 84% dos proprietários de canaviais era detentor de mais de cinquenta escravos, enquanto na Madeira apenas 2% era possuidor de mais de 10 escravos. Por outro lado a área dos canaviais assumida por cada proprietário era também elevada, pois 64% destes possuíam canaviais cuja extensão ia de 40 a 121 hectares, situação que estava muito aquém da assumida pelos produtores madeirenses. Na Madeira apenas um produtor se aproxima deste valor (Pedro Gonçalves com uma área de 36,9 hectares), sendo os demais com valores inferiores. Os lavradores com mais de 22 toneladas de produção e com uma área de terreno superior a 14 hectares representam em 1494 apenas 1,3% e 5% para o período de 1509 a 1537.

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AS ILHAS: ALGUNS DADOS PARA UMA VISÃO COMPARADA. A geografia é determinante na função económica a atribuir aos espaços humanizados. No mundo insular atlântico o arquipélago da Madeira assume uma posição particular, fruto da quase total ausência da dimensão arquipelágica. Na verdade, apenas, duas ilhas que mereceram ocupação humana mas, uma pelas dificuldades de abastecimento de água, o Porto Santo, não permitiu a definição de uma situação sócio-económica assente na complementaridade dos espaços. Enquanto nos Açores, Cabo Verde e Canárias, devido à existência de diversas ilhas, tivemos formas de exploração agrícola assente na complementaridade, no caso madeirense esta dever-se-á buscar dentro do espaço da ilha ou nos arquipélagos vizinhos. A par disso a Madeira apresenta-se em termos orográficos com múltiplas condições adversas ao avanço da exploração agrícola do solo. A configuração piramidal, dominada por uma costa alta, de quando em vez cortada pelas bacias das ribeiras, fruto da erosão provocada pela força das ribeiras, torna o acesso difícil e limita as possibilidades de agricultura limitadas. A costa elevada condiciona as possibilidades de navegação costeira, que, mesmo assim, à década de cinquenta do século XX, foi o meio privilegiado de contacto entre as diversas localidades. A orografia dificultava o transporte terrestre e apenas o automóvel do século XX conseguiu vencer os veleiros e vapores costeiros. Por tudo isto o processo de povoamento foi condicionado. A falta de água levou ao quase abandono do Porto Santo e na Madeira as dificuldades de penetração no interior conduziram a que tivéssemos um povoamento costeiro, assente nas clareiras abertas pelas ribeiras, áreas de fácil acesso, mas também férteis, por força das aluviões de terras trazidas pela água. O acesso a norte, muito limitado por terra e mar, conduziu a que a área tardasse na ocupação e valorização económica em relação ao que sucedeu na vertente sul. A configuração geográfica condiciona ainda a diversidade de microclimas, na Madeira, como nas Canárias, o que conduz à valorização, para o caso madeirense, das chamadas fajãs ou a possibilidade de escalonamento das culturas em altitude, procurando aproveitar as condições climáticas. Estas cambiantes permitem que dentro do espaço da ilha se possa estabelecer uma complementaridade assente nas culturas de subsistência e mercado externo. A maioria das ilhas com uma área agrícola bastante limitada obrigaram a uma exploração intensiva do solo, provocando problemas na exploração agrícola com o esgotamento do solo a obrigar ao sistema de pousio ou rotação de culturas, o que limitavam as possibilidades de afirmação de uma produção agrícola em larga escala e capaz de concorrer em pé de igualdade no mercado. As possibilidades de sucesso de uma cultura não dependiam tanto das condições da ilha mas do mercado. Enquanto a Madeira produzia açúcar de forma isolada os madeirenses conseguiram elevada riqueza, mas quando tivemos de competir com outros mercados perdemos capacidade de intervenção por força da limitação do espaço, das condicionantes atrás anunciadas e da menor carga fiscal sobre os lavradores nas ilhas Canárias11. A ocupação de um novo espaço obedece a determinados requisitos. Primeiro deve propiciar condições para que sejam garantidas as condições de sobrevivência das populações. Assim para

11 Na Madeira os encargos sobre o açúcar chegaram a 25% enquanto nas Canárias não ultrapassava os 4,5%. A. Bernal e a. M. Macias, Factor Institucional y Crecimiento Económico. El Ejemplo de Canárias, Congresso Internacional Las Economias Insulares en Perspectiva História, La Laguna, 2005.

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além da disponibilidade de água deve apresentar um solo adequado ao cultivo dos produtos básicos da subsistência, que no caso dos europeus do século XV assentava nos cereais e na vinha. Estas exigências são ainda mais importantes quando se fala de ilhas isoladas no solo, onde as condições de acesso a outros espaços estão muito condicionadas por força do nível de desenvolvimento da navegação à vela. Na Madeira o processo de povoamento foi muito rápido por força da inexistência de populações e a necessidade de ocupação deste espaço para assegurar o controlo do espaço atlântico. Ao longo dos últimos quinhentos anos a riqueza dos madeirenses foi gerada por força do seu esforço. Um solo de recursos limitados e de difícil domínio foi o pesado fardo no quotidiano que chegou até aos nossos dias. Sucede que os avanços do povoamento e da população conduziram a inúmeros problemas. Os recursos da terra, por serem mal distribuídos e limitados não se ajustavam Ao crescimento populacional, obrigando desde o início à abertura de válvulas de escape com a emigração, que funcionam ao longo do tempo nos diversos momentos de crise. Até meados do século XIX podemos a afirmar que a agricultura foi dominada por um permanente afrontamento entre os interesses da subsistência e aquilo que demandava o mercado. Esta realidade é testemunhada de forma clara em 1530 por Giulio Landi: A ilha produziria maior quantidade se semeasse. Mas a ambição das riquezas faz com que os habitantes descuidando-se...se dediquem apenas ao fabrico do açúcar, pois deste tiram maior proveito."12 A precariedade da economia madeirense não deriva apenas da posição de dependente em relação ao velho continente, que consumia os produtos e a abastecia do que necessitava, mas também das diminutas possibilidades de usufruto dos 741 Km2 de superfície da ilha. Õ processo económico, quando assume uma posição de sucesso, mercê da inserção no mercado mundial, provoca obrigatoriamente a uma forma de exploração intensiva que provoca inevitavelmente o desequilíbrio entre aquilo que o quadro natural possibilita e o Homem exige. Na Madeira a exploração económica fez-se de forma intensiva e de acordo com as solicitações do mercado exterior, o que contribuiu ainda mais para agravar o afrontamento entre o Homem e o quadro natural, arrastando os espaços para uma situação de total deterioração. O primeiro testemunho surge já em meados do século XV com Cadamosto: "As suas terras costumavam dar a princípio, sessenta por um, o que presentemente está reduzido a trinta e quarenta, porque se vão deteriorando dia a dia "13. A situação resulta da solicitação para a exploração intensiva por obrigação geral dos madeirenses em abastecer as cidades do reino e praças africanas de cereal. O cereal, que no início da ocupação do solo havia sido a cultura da prosperidade, rapidamente cedeu lugar aos canaviais, que em pouco tempo dominaram o espaço agrícola. A indústria para o fabrico do açúcar exigiu muito do quadro natural, lançando a ilha para um processo de desflorestação, de consequências imprevisíveis, e o solo agrícola para a quase total exaustão. A situação é testemunhada em 1689 John Ovington: "A fertilidade da ilha decaiu muito relativamente ao período das primeiras culturas. A cultura sem descanso dos terrenos tornou os fracos espaços em muitos lugares e de tal modo que os abandonam periodicamente, tendo de ficar de poisio três ou quatro anos. Depois desse tempo, se não crescer nenhuma giesta como sinal de fertilidade futura, abandonam-nos, com estéreis. A aridez de muitas das suas terras atribuem-na simploriamente ao aumento dos seus pecados". O quadro particular da Madeira encontra situações similares em outras ilhas e arquipélagos. Mas

12 António Aragão, A Madeira Vista por Estrangeiros, Funchal, 1981, p.84

13 Ibidem, pp.36-37

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para podermos entendermos melhor a situação do impacto provocado pelos canaviais e açúcar no ecossistema de cada ilha deveremos ter em conta a dimensão de cada uma e as áreas de floresta e arável disponíveis. O Quadro a seguir apresenta alguns elementos que permitem um melhor enquadramento da realidade açucareira e medir a dimensão e velocidade do impacto ecológico dos canaviais. A Madeira é entre todos os arquipélagos referenciados o que apresenta um espaço agrícola muito condicionado pelas condições orográficas. Tenha-se em conta que a superfície da ilha é de 300.000 Ha, em que a área cultivada terá chegado aos 30.000 Ha e hoje é penas 9.000 Ha14. Por outro lado um quarto da superfície situa-se acima dos 1.000 m de altitude e cerca de 11% em declives inferiores a 16%. Hoje, a área de floresta laurisilva, que o século XV ocupava a totalidade do espaço da ilha, limita-se a 15.000 Ha. A última situação veio a gerar um sistema de culturas por andares, situando-se a cana-de-açúcar no patamar até 200 metros de altitude15. Situação semelhante sucede nalgumas ilhas das Canárias16. Vista a superfície de cada um dos espaços insulares podemos de imediato concluir pela maior dificuldade de algumas das ilhas em conseguir assegurar um equilíbrio entre a área dedicada aos canaviais e a disponibilidades de recursos florestais.

AÇÚCAR E FLORESTA

Área florestal Arquipélago

(ilhas)

Produção de açúcar arrobas

Lenha toneladas Área

cortada em ha

% em relação ao total

AÇORES (Terceira, S. Miguel)

2.000 3 0,01

CABO VERDE (Boavista, São Nicolau, Santo Antão e Santiago)

4.000 6 0,03

CANÁRIAS (Gran Canaria, Tenerife, La Gomera, La Palma)

320.000 4.800 24,00

MADEIRA (Madeira)

144.000 2.160 10,80

S. TOMÉ e PRÍNCIPE (S. Tomé)

250.000 3.750 18,75

SICILIA 3.030 45 0,22 CRETA CHIPRE

A cultura dos canaviais divulgou-se no espaço Atlântico a partir dos arquipélagos do Atlântico Oriental. Começou na Madeira, donde passou aos Açores, Canárias, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Todavia não mereceu em todos a mesma importância, podendo-se definir apenas como

14 O eng. Amaro da Costa fixou em 22.500 Ha a área cultivável e em 50.300 Ha a de florestas e terrenos incultos, mas o Eng.o. Júlio Augusto de Leiria refere 30.750 Ha, e o Engº Mota Prego em 30.000 Ha. Cf. Ramon Honorato Correa Rodrigues, Questões Económicas, vol. I, Funchal, 1953, p.34. 15 Cf. Orlando Ribeiro, A Ilha da Madeira até Meados do Século XIX. Estudo Geográfico, Lisboa, 1985, cap.III; José Manuel Azevedo e Silva, A Madeira e a Construção do Mundo Atlântico (séculos XV-XVII), Funchal, 1995, vol. I, pp.56-65. 16Agustin Naranjo Cigala e outros, Características Bioclimáticas del Território Antiguamente Cultivado de Caña de Azúcar en las Islas Canarias, in Açúcar e Quotidiano, Funchal, 2004, pp.271-299; Octávio Rodríguez Delgado, Evolución y Aprovechamientos de la Vegetación Canaria, Derivados del Cultivo de la Caña de Azúcar, in Açúcar e Quotidiano, Funchal, 2004, pp.283-302.

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ilhas do açúcar as da Madeira, Gran Canária, Tenerife, La Palma, La Gomera e São Tomé. Nos Açores e em Cabo Verde a presença foi pouco significativa no século XVI. MADEIRA. A cana-de-açúcar na sua primeira experiência além Europa demonstrou as possibilidades de rápido desenvolvimento fora do habitat mediterrânico. Gaspar Frutuoso testenunha isso mesmo ao referir que "esta planta multiplicou de maneira na terra, que he o assucar della o melhor que agora se sabe no mundo, o qual com o beneficio que se lhe faz tem enriquecido muitos mercadores forasteiros e boa parte dos moradores da terra"17. Tal evidência catalizou as atenções do capital estrangeiro e nacional que apostou no crescimento e promoção, pois só assim se poderá compreender o rápido arranque da mesma. Esta que, nos primórdios da ocupação do solo insular, se apresentava como uma cultura subsidiária, passou de imediato a cultura e produto dominante, situação que manteve por pouco tempo. Na Madeira a cana sacarina, usufruindo do apoio e protecção do senhorio e coroa, conquista o espaço ocupado pelas searas, atingindo todo o solo arável da ilha em duas áreas: a vertente meridional (de Machico à Calheta), com um clima quente e abrigada dos alíseos, onde os canaviais atingem 400 m de altitude, dominado pelas plantações da capitania de Machico (Porto da Cruz e Faial até Santana), solo em que as condições mesológicas não permitem a sua cultura além dos 200 metros numa produção idêntica à primeira área. Deste modo a capitania do Funchal agregava no seu perímetro as melhores terras para a cultura da cana-de-açúcar, ocupando a quase totalidade do espaço da vertente meridional, restando para Machico apenas uma ínfima parcela área e todo um vasto espaço acidentado impróprio para a cultura. Criadas as condições a nível interno por meio do incentivo ao investimento de capitais na cultura da cana-de-açúcar e comércio de seus derivados, do apoio do senhorio, da coroa e da administração local e central, a cana estava em condições de prosperar e de se tornar, por algum tempo, no produto dominante da economia madeirense. O incentivo externo do mercado mediterrânico e nórdico aceleraram este processo expansionista. Em meados do século XV os canaviais foram motivo de deslubramento para Cadamosto e Zurara. O primeiro refere que os açúcares "deram muita prova", enquanto o segundo dava conta dos "vales todos cheios de açúcar de que aspergiam muito pelo mundo"18. A fase ascendente, que poderá situar-se entre 1450 e 1506, não obstante a situação deprecionária de 1497-1499, é marcada por um crescimento acelerado. Esta forte aceleração do ritmo de crescimento nos primeiros anos do século XVI irá marcar o máximo, atingindo em 1506, bem como o rápido declínio nos anos imediatos. Note-se que apenas em quatro anos se atingiu valor inferior ao do início do século. A situação agrava-se nas duas centúrias seguintes. Mas, a partir de 1521 a tendência descendente é global e marcante, de modo que a produção do fim do primeiro quartel do século situava-se a um nível pouco superior ao registado em 1470. Na década de trinta consumava-se em pleno a crise da economia açucareira e o ilhéu viu-se aos poucos na necessidade de abandonar os canaviais e de os substituir pelos vinhedos. Giulio Landi, que na década de trinta visitou a ilha, refere que os madeirenses, levados pela ambição da riqueza se dedicam "apenas ao fabrico do açúcar,

17 Ob.cit., p.113. 18 António ARAGÃO, A Madeira Vista por Estrangeiros, Funchal, 1981, p.37; Crónica de Guiné, Porto, 1973, cap.II, p.17.

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pois deste tiram maiores proventos"19. A historiografia tem apresentado múltiplas explicações da crise assentes fundamentalmente na actuação de factores externos. Fernando Jasmins Pereira com o seu estudo sobre Açúcar Madeirense contraria esta opinião definindo a crise açucareira madeirense como resultado das condições ecológicas e sócio-económicas da ilha: "...a decadência da produção madeirense é, primordialmente, motivada por um empobrecimento dos solos que, dada a limitação da superfície aproveitável na cultura, vai reduzindo inexoravelmente a capacidade produtiva". Deste modo a crise da economia açucareira madeirense não é apenas resultado da concorrência do açúcar das Canárias, Brasil, Antilhas e S. Tomé mas deriva, acima de tudo, da conjugação de vários factores de ordem interna: a carência de adubos, a desafeição do solo à cultura e as alterações climáticas. A concorrência do açúcar das restantes áreas produtoras do Atlântico, bem como a peste (em 1526) e a falta de mão-de-obra apenas vieram agravar a situação de queda. A tudo isto acresce em finais do século os efeitos do bicho sobre os canaviais, como é testemunhado para os anos de 1593 e 1602. O último quartel do século foi o momento de viragem para outras culturas de maior rendibilidade, como a vinha. A documentação testemunha a mudança. Em 1571 Jorge Vaz, de Câmara de Lobos, declara em testamento um chão que "sempre andou de canas e agora mando que se ponha de mallvazia para dar mais proveito...". Depois, em 1583 Álvaro Vieira vende a Diogo Pires no Caniço um serrado que fora de canas "e agora anda de pão"20. Não é fácil estabelecer o número exacto de engenhos que laboraram nas ilhas. As informações disponíveis são, em muitos dos casos, díspares. Assim, para a Madeira em 1494 são referenciados apenas 14 engenhos, quando noutro documento de 1493 se dava conta da existência de 80 mestres de açúcar. Note-se ainda que Edmund von Lippmann21 refere para o Funchal 150 engenhos no início do século XVI, número que não se coaduna com os valores razoáveis para a extensão arável da ilha e a produção dos canaviais. Depois, em finais do século XVI, Gaspar Frutuoso refere-nos 34 engenhos, sendo nove na capitania de Machico e os restantes na do Funchal22. No século dezassete o número de engenhos era reduzido. Assim, em 1602, Pyrard de Laval23 refere a existência de 7 a 8 engenhos em laboração. AÇORES. As primeiras socas de cana deverão ter chegado aos Açores a partir de 1474 por mão de Rui Gonçalves da Câmara, filho do capitão do Funchal, João Gonçalves Zarco, que na mesma data adquiriu a capitania da ilha de S. Miguel e se instalou em Vila Franca com a sua família. Os canaviais chegaram às ilhas de Santa Maria, S. Miguel, Terceira e Faial, mas só temos notícia da

19 António ARAGÃO, ob.cit.p.86. 20 Fernando Jasmins PEREIRA, Ibidem, p. 158; Em 26 de Março de 1527 (ARM. CMF, nº.1305, fl.23vº) os funchalenses fizeram ver ao Rei o prejuízo que lhes causava a concorrência do açúcar de S. Tomé, mas a resposta evasiva da coroa só surgiu a 8 de Fevereiro de 1528 (ARM. DA, nº.66); Isabel Drumond BRAGA, "A acção de D. Luís de Figueiredo de Lemos. Bispo do Funchal.1585-1608", III CIHM, 1993, p.572; ARM, JRC, fls. 499vº-500vº, 30 de Maio; fls. 52vº-88, 20 de Agosto. 21 História do açúcar desde a época mais Remota até ao começo da Fabricação do açúcar de Beterraba, 2 tomos, Rio de Janeiro, 1941-1942. 22 ARM, RGCMF, T. I, publ. in AHM, Vol. XVI, p. 87, doc. 21 Junho 1493; História do Açúcar desde a época mais remota até ao começo da publicação do açúcar de beterraba, Rio de Janeiro, 1941, p. 13; Livro Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1979, pp. 99-135 23 François Martin Pyrard de Laval, Voyage de François Pyrard, de Laval, Contenat sa

Navegation aux Indes Orientales, aus Maluques e tau Brésil, Paris, 2 vols, 1615.

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produção para os anos de 1502 e 1510 em que os valores não ultrapassaram um terço da produção madeirense24. CANÁRIAS. As Canárias são apontadas como uma das áreas concorrentes da Madeira, sendo o facto mais significativo de terem sido os próprios madeirenses a promovê-la, estando a afirmação inegavelmente ligada à sua presença. Os incentivos à produção de canaviais nas ilhas de Gran Canaria e Tenerife permitiram que muitos madeirenses abandonassem a Madeira e aqui se fixassem25. Foi no momento de crise do açúcar na Madeira que mais se notou aí a presença de madeirenses, o que prova a emigração orientada dos técnicos ligados à cultura. As socas de cana chegaram às ilhas de Gran Canaria, Tenerife, La Palma e La Gomera, não alcançando às ilhas de Lanzarote, Fuerteventura e Hierro, devido à esterilidade e fundamentalmente à falta de água. A mesma dificuldade surge quando pretendemos reconstituir os engenhos das Canárias, pois não existem dados precisos sobre o número exacto, sendo as informações avulsas. Talvez, a mais precisa seja a de Thomas Nichols em 1526 e Gaspar Frutuoso na última década do século XVI. Todavia, enquanto os dados fornecidos pelo primeiro podem ser considerados fiáveis, os de Gaspar Frutuoso não parecem corresponder à verdade26. O mesmo refere para Gran Canaria vinte e quatro engenhos, enquanto Tenerife surge apenas com três. ENGENHOS DE AÇÚCAR NAS CANÁRIAS.SÉCULOS XVI-XVII

1502 1515 152027 1526 1540 1556 1560 158028 159029 1632 1634-43

GRAN CANARIA - 25 38 12 - 12 12 8 24 5-930 2

TENERIFE - - 16 12 - 12 8 3 - 2

LA PALMA 2 - 4 4 - - - 5 - 3

LA GOMERA - - 6 1 5 - - 1 - -

TOTAL 2 25 64 29 5 24 16 33 5-9 7

A documentação pouco nos diz sobre a evolução da cultura e dos valores da produção, pois os dados disponíveis são esparsos. Para os séculos XV e XVI as informações são escassas, mas alguns dados disponibilizados na documentação permitem avaliar a importância da cultura na economia destas ilhas.

24 Alberto Vieira, O Comércio Inter-insular nos Séculos XV e XVI, Funchal, 1987, 114. 25 Tenha-se em conta que na Madeira os direitos senhoriais oneravam em cerca de 25% e nas Canárias não ultrapassavam os 5%. Cf A. Bernal e a. M. Macias, Factor Institucional y Crecimiento Económico. El Ejemplo de Canárias, Congresso Internacional Las Economias Insulares en Perspectiva História, La Laguna, 2005. 26 Vide A. CIORANESCU, Thomas Nichols, Mercador de Azúcar, Hispanista y Hereje, La Laguna, 1963; Livro Primeiro das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1984. 27 A. Bernal e a. M. Macias, Factor Institucional y Crecimiento Económico. El Ejemplo de Canárias, Congresso Internacional Las Economias Insulares en Perspectiva História, La Laguna, 2005. 28 E. Marco Dorta, Descipción de las Islas Canárias por Virtud del Mandato de Su Majestad por un tio del Licenciado Valcárcel, Revista de Historia, La Laguna, 63 (1943), 198 29 Gaspar Frutuoso, Livro Primeiro das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1966; Para Gran Canaria Manuel Lobo[El Comercio Canrio Europeo Bajo Felipe II, Funchal, 1981, p.115] refere apenas 12. 30 Segundo Elisa Torres Santana [El Comercio de las Canárias Orientales en Tiempos de Felipe III, Las Palmas, 1991, pp.295-296] são nove engenhos

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PRODUÇÃO DE AÇÚCAR EM CANÁRIAS em arrobas

Ilha 1502 1507-1508 1510 1520 1534 1600 1583 1590 Tenerife 66.600 80.000 La Palma 4.667 20.000 Gran Canaria 400.000 190.000 La Gomera 30.000 total 470.000 71.267 59.790 320.000 725.220 326.430 435.30

0 87.070

Fonte: António Macias, Canárias. 1480-1680. Economia Azucarera y Crecimiento Económico, in História do Açúcar- Rotas e Mercados, Funchal, 2002, pp.157-191; António Santana Santana, Evolución del Paisaje de Gran Canaria(Siglos XV-XIX), Las Palmas, 2001.

A Historiografia nota que, a partir de meados do século XVI, a concorrência de outros mercados e o avanço descontrolado dos vinhedos levaram à crise da cultura dos canaviais. Nisto não está de acordo Manuel Lobo Cabrera31 que dá conta de um certo fulgor do comércio durante o reinado de Filipe II. Tal como refere a crise surge como resultado da concorrência do antilhano e acima de tudo do encerramento do mercado nórdico, nomeadamente Amberes ao açúcar canario, provocado pela política belicista do monarca. CABO VERDE. A presença dos canaviais está documentada nas ilhas de Cabo Verde desde a segunda metade do século XV, mas não temos dados sobre a evolução. A primeira referência à produção de cana-de-açúcar surge apenas em 1490.A cultura terá começado na ilha de Santiago e só depois no século XVII se espalhou às demais como S. Nicolau, Brava, Maio, Boavista e Santo Antão para fabrico de aguardente usada no comércio de escravos na costa africana32. Foi em Santiago e Santo Antão que a cultura encontrou melhores terrenos e acabou por adquirir maior importância. Para a primeira Gaspar Frutuoso33 refere que “dá muito açúcar e fazem-se nela muito boas conservas, ainda que nada disto chega ao da ilha da Madeira”. A única referência que temos à produção reporta-se a 1510 em documento que dá conta do dizimo cobrado na Madeira, Açores e Cavo Verde. Para este arquipélago, fundamentalmente a ilha de Santiago, o dizimo incidiu sobre a produção de 4000 arrobas de açúcar34. Segundo Gabriel Soares de Sousa35 as primeiras mudas de cana foram levadas para o Brasil desde a Madeira e Cabo Verde. SÃO TOMÉ E PRINCIPE. Não sabemos a data exacta da plantação das primeiras socas de cana, mas temos referência em 1485 da existência de um imposto sobre a exportação de açúcar, o que indica que já existiam canaviais na ilha nos inícios da década de oitenta do século XV. Sem dúvida que o momento de plena afirmação do açúcar sãotomense foi no século XVI. Na primeira metade da centúria estão documentados 60 engenhos36 em funcionamento e uma produção superior a 150.000 arrobas. A produção manteve-se em crescendo nas décadas de 50 a 70. Em 1595 refere-se que os negros amotinados, sob o comando de Amador, destruíram 70 engenhos. Esta situação, em conjunção com a invasão e ocupação holandesa (1600, 1641), condicionou a evolução da

31 El Comercio Canario-europeo bajo Filipe II, Funchal, 1988, pp.7, 115-116. 32 Cf. António Carreira, Estudos de Economia Caboverdiana, Lisboa, 1982, pp.237-287; João Lopes Filho,”Fabrico do mel e do grogue”, Cabo Verde. Retalhos do Quotidiano, Lisboa, 1995, pp.155-169 33 Livro Primeiro das Saudades da Terra, Ponta Delgada, p.117 34 Arquivo dos Açores, III, pp.200-201. 35 Cf. Tratado Descritivo do Brasil em 1587, S. Paulo, 1938. 36 Um documento refere para a primeira metade da centúria mais de 300 engenhos, enquanto Labat fala em 400. Cf. Carlos Agostinho das Neves, ob. cit., p.22

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produção açucareira da ilha, recuperando mais tarde na centúria seguinte, pois em 1625 refere-se a produção de 100.000 arrobas em 45 engenhos. A segunda metade do século XVII foi o golpe definitivo de morte para o açúcar de S. Tomé. Em 1672 em 31 engenhos produziu-se apenas 27.000 arrobas.

SÃO TOME PRINCIPE anos engenhos Produção

arrobas engenhos Produção

arrobas 1517 14 100.000 1529 123.170 1535 135.860 1545 150.000 1550 60 1578 175.000 1580 24.000 1591 12.000 1592 64.000 1595 70 1600 9000 1602 40000 1605 60.000 5 1.000 1610 45 200.000 1614 62 1625 45 100.000 1634 20.000 1638 30.000 1645 54 100.000 1651 40.000

166037 110 2.000.000 1672 31 27.000 1688 5.109

Fonte: Carlos Agostinho das Neves, S. Tomé e Príncipe na Segunda Metade do Século XVIII, Funchal, 1989; Isabel Castro Henriques: São Tomé e Príncipe. A Invenção de uma Sociedade, Lisboa, 2000; Cristina Maria Seuanes Serafim, As Ilhas de São Tomé no Século XVII, Lisboa, 2000.

AS ILHAS. Não é fácil estabelecer uma comparação do conjunto das ilhas referido. Primeiro somos confrontados com a questão do número de ilhas e a superfície disponível para a cultura. A Madeira apresenta-se apenas com 738 Km2 de superfície, enquanto as quatro das Canárias surgem com 4672 Km2. Assim, nas Canárias a área disponível para a cultura subdivide-se em pelo menos quatro ilhas, podendo jogar aqui a seu favor a lógica da complementaridade económica, que permite um avanço confortável da cultura, sem qualquer dificuldade de orientação de política económica de subsistência. Perante isto a cultura terá maiores condições para se desenvolver. E se juntarmos as isenções fiscais estabelecidas, teremos uma situação marcadamente desigual que penalizará a Madeira a partir do momento que estas ilhas atingem a sua plenitude, isto é, no segundo decénio do século XVI. As possibilidades comparativas surge apenas com a ilha de São Tomé, com 859 Km2 de superfície, que, embora os dados não o espelhem correctamente terá atingindo os níveis de produção de açúcar mais elevados. Segundo alguns autores teríamos aí arrobas de açúcar, só que este era de inferior qualidade e de menor valia no mercado europeu. O grande momento foi a segunda metade do século XVI em que temos referências de 200 a 400 engenhos e uma produção de cerca de 450.000 arrobas38, valor que se aproxima das Canárias em 1502, com 4 ilhas ocupando uma superfície cinco

37 . A. T. Matos, Os Donos do Poder e a Economia de S. Tomé e Príncipe no Início de Seiscentos, Mare Liberum, 6, 1993, 182. 38 . Carlos Agostinho das Neves, S. Tomé e Príncipe na Segunda Metade do Século XVIII, Funchal, 1989, pp.22-23

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vezes superior.

0

100000

200000

300000

400000

500000

600000

700000

800000

1502 1510 1520 1534 1583

Madeira

Canarias

S. Tomé

PRODUÇÃO DE AÇÚCAR EM ARROBAS

ARQUIPÉLAGO 1502 1507 1510 1520 1534 1583 1590 1600 MADEIRA 114.77839 176.985 144.065 87.868 54.077 35.202 CANARIAS 470.000 71.267 59.790 320.000 725.220 435.380 910.270 326.430 SÃO TOMÉ 100.00040 123.17041 135.86042 24.00043 12.00044 9.000

ENGENHOS DE AÇÚCAR .SÉCULOS XVI-XVII

ARQUIPÉLAGO 1502 1515 152045 1526 1540 1556 1560 158046 159047 1632 1634-43

MADEIRA 1648 34 4

SÃO TOMÉ 1449 6050 7051 4552

CANÁRIAS 2 25 64 29 5 24 16 33 5-9 7

Maiores são ainda as dificuldades quando pretendemos estabelecer uma comparação entre as ilhas do açúcar no Atlântico e no Mediterrâneo. No conjunto das três ilhas açucareiras do Mediterrâneo (Sicília, Chipre e Creta) temos em qualquer dos casos uma superfície superior, por exemplo ao conjunto das quatro ilhas açucareiras das Canárias e mesmo assim os poucos dados disponíveis

39 . Em 1501 40 Em 1517 41 Em 1529 42 Em 1535 43 Em 1580 44 Em 1591 45 A. Bernal e a. M. Macias, Factor Institucional y Crecimiento Económico. El Ejemplo de Canárias, Congresso Internacional Las Economias Insulares en Perspectiva História, La Laguna, 2005. 46 E. Marco Dorta, Descipción de las Islas Canárias por Virtud del Mandato de Su Majestad por un tio del Licenciado Valcárcel, Revista de Historia, La Laguna, 63 (1943), 198 47 Gaspar Frutuoso, Livro Primeiro das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1966; Para Gran Canaria Manuel Lobo[El Comercio Canrio Europeo Bajo Felipe II, Funchal, 1981, p.115] refere apenas 12. 48 Em 1494 49 Em 1517 50 em 1550 51 em 1595 52 em 1625

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sobre a produção de açúcar são insignificantes quando comparados com as ilhas do mundo Atlântico. O caso mais significativo, e para o qual dispomos de mais documentação e estudos, é o da Sicília, que com 25.710 Km2 de superfície não ultrapassa as 30.000 arrobas de produção de açúcar. Entre 1472 e 1517 os valores oscilam entre o referido e as 10.000 arrobas. A disponibilidade de um espaço agrícola e os valores alcançados com a produção de açúcar, quando comparados com o mundo atlântico poderão indicar uma incapacidade de aumentar os níveis de produção por força da tecnologia disponível. Os aspectos particulares do ciclo vegetativo da cana indicam um processo muito rápido entre o período de maturação, o corte e o processamento da matéria-prima. A tecnologia mediterrânica não se ajustava a esta situação obrigando a que a área de cultivo fosse limitado e os valores de produção fosse também baixos. A partir da segunda metade do século XV ocorre a verdadeira revolução do mundo do açúcar. A cultura chega ao Atlântico, onde encontra condições ideais para produzir em grande quantidade e aí o insular foi forçado a transformar o processo de moenda e fabrico do açúcar de modo a ajusta-lo às novas necessidades. Na Madeira, quando na década de setenta do século XV se suplantam os valores da produção siciliana, começam a surgir as referências a uma nova tecnologia para a moenda com o uso dos cilindros53. Esta tecnologia propiciou um ritmo acelerado de progresso dos canaviais, de modo que na década de noventa da centúria se ultrapassou o patamar das 100.000 arrobas.

SUPERFÍCIE

PRODUÇÃO DE AÇÚCAR

ENGENHOS, Nº ARQUIPÉLAGO (ILHAS)

DATA NÚMERO

KM2 DATA ARROBAS

Terceira 396,75

S. Miguel 759,41

AÇORES

total 1.156 1510 2.000

Boavista 2.733

Brava 64 S. Nicolau 343 Santo Antão 779

Maio 269

Santiago 991

CABO VERDE

total 5.179 1510 4.000 Gran Canaria 1.560 Tenerife 2.034 La Gomera 370 La Palma 708

CANÁRIAS

total 64 4.672 320.000 MADEIRA (Madeira)

34 738 1510 144.000

ATLÂNTICO

S. TOMÉ e PRÍNCIPE (S. Tomé)

400 859 1580 240.000

SICILIA 1517 31 2.5710 3.030 CRETA 9.331

MEDITERRÂNEO

CHIPRE 9.250

53 Cf. Alberto Vieira, A Madeira, a Expansão e História da Tecnologia do Açúcar, in História e Tecnologia do Açúcar, Funchal, 2000, pp17-19

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Produção de açúcar área

Engenhos Arquipélago

(ilhas) data arrobas Ha Arrobas

/ha nº Produção/arro

bas

AÇORES (Terceira, S. Miguel)

1510 2.000 115.600 0,01

CABO VERDE (Boavista, S. Niculau, Sto Antão e Santiago)

1510 4.000 6,80

CANÁRIAS (Gran Canaria, Tenerife, La Gomera, La Palma)

320.000 545.519 1,58 64 5.000

MADEIRA (Madeira)

144.000 73.800 1,95 34 1.235

S. TOMÉ e PRÍNCIPE (S. Tomé)

250.000 85.900 2,91 400 625

SICILIA 1517 26.666 2.571.000 0,01 31 860 CRETA 933.100 CHIPRE 925.000

A CANA-DE-AÇÚCAR E A PAISAGEM DAS ILHAS ATLÂNTICAS. Alguém terá dito em 1789 que a "lavra, reparação e plantio das doces e domésticas canas de que o açúcar é feito, é a actividade mais laboriosa e cara jamais descoberta na terra, e a mais difícil e, ao mesmo tempo engenhosa (...) não há modo de começar sem uma grande e considerável despesa, em instalações e nas infalíveis reposições em todos os aspectos". Estava lançado anátema que marcou no Atlântico a aliança do Homem, ao açúcar. E não será sem razão que Mário Lacerda de Melo, no livro "O açúcar e o Homem” (1975) afirmou de forma peremptória que "dificilmente se encontrarão formas de utilização dos recursos dos solos que se possam rivalizar com a agro-indústria canavieira quanto à capacidade de condicionar um tipo de sociedade e de economia, de modelar um tipo de paisagem e de estruturar um tipo de arranjo económico do espaço". Já Paul Vidal de la Blanche54 havia afirmado em 1941 que a História do açúcar se confunde com a do Homem. A cana-de-açúcar, na verdade foi companheira do europeu no seu processo de transmigração no espaço atlântico, fazendo-o escravo, dando-lhe em contrapartida riqueza que pouco soube aproveitar. A cana dominou o homem e devorou a paisagem. A mata foi derrubada para dar lugar aos canaviais e depois para alimentar as fornalhas das caldeiras. A presença do homem no processo de cultivo e produção de açúcar materializa-se numa duradoira relação de amor e ódio. Para uns foi o apelo da riqueza e do luxo, ficando aos demais a parte amarga, como o suor, o sangue e as lágrimas. A cana exige muito do homem, mesmo a sua escravização. Foi isso que aconteceu no espaço atlântico. Os extensos campos de canaviais extasiam a vista, mas os engenhos fazem-nos lembrar algo diferente. Já em 1627 Andrés de Gouveia havia afirmado que "um engenho é inferno e todos os senhores deles estão condenados". O próprio Padre António Vieira descobriu nele a imagem do Inferno55. Em 1633 do alto do púlpito da capela do engenho do Recôncavo baiano traçava de forma peremptória o retrato daquilo que os seus olhos acabavam de presenciar: "...gente toda de cor da mesma noite, trabalhando vivamente e gemendo tudo ao mesmo tempo sem momento de tréguas, nem de descanso; quem vir enfim toda a máquina e aparato confuso e estrondoso daquela Babilónia, não poderá duvidar, ainda que tenha visto Etonas e Vesúvios, que é uma semelhança de inferno". Mais próximo de nós, Joaquim Nabuco (1849-1910) o pai de abolição da escravatura no Brasil, retoma esse discurso para a política, desvendando melhor essa faceta negra do branco açúcar: “a escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela

54 Principes de géographie humaine, Paris : A. Colin, 1941 55 Sermão Decimo Quarto Pregado na Baia à irmandade dos Pretos de um engenho em 1633, p.40

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espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contacto foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos, insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem amargos, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dias seguintes..." O escravo negro é o aliado da cana no périplo atlântico. J. de Maia Penna, num livro que leva um título significativo de "Em Berço Esplêndido” (1974) afirmou: ”sensualidade, glutonaria e ócio eis a tríplice alicerce paradisíaco de sociedade que se criará na época colonial..., ao longo de todo o litoral atlântico do Amazonas no Rio de Janeiro, passando pelo Nordeste. A sensualidade de um grupo humano ordenado exclusivamente na base do exotismo. A gula de uma economia organizada em torno do cultivo do açúcar. A pachorra de um estado escravocrata cujo senhor não precisará senão de levantar o chicote para obter o seu sustento.” Afinal a água comandou todo o processo de valorização sócio-económica do espaço insular. Assim, no entender dos cronistas, o insucesso da ocupação do Porto Santo não foi apenas fruto da praga dos coelhos, pois prende-se mais com a ausência de água para alimentar as culturas de regadio e fazer accionar os engenhos. Ao invés, na Madeira a água foi sempre abundante. A orografia do terreno actuava a favor e contra o curso de água. Por um lado obrigava o íncola a redobrado esforço na condução aos socalcos: levar a água aos canaviais e engenho foi um processo complicado. Por outro os declives permitiam um melhor aproveitamento da força motriz. Apenas um curso de água era capaz de mover as pedras de um moinho, os eixos do engenho e a engrenagem de uma serra de água. A harmonização de todas estas actividades estava o segredo do progresso económico da Madeira nos séculos XV e XVI. E cedo a coroa o entendeu a situação, mantendo a água como património comunal. Diferente foi o que sucedeu nas Canárias onde a pouca água disponível foi cobiçada e dominada por privados.

Desde tempos imemoriais que a água foi o motor da História. Saciou a sede os sedentos, serviu para aproximar os homens, ou para substitui-lo em algumas tarefas e dar vida e riqueza aos campos. Por tudo isto a água assume uma função vitalizadora da economia. Desta relação dominante da água chegou-se à teorização de que os grandes empreendimentos hidráulicos são resultado de teocracias despóticas. O despotismo egípcio e oriental foi uma necessidade premente resultante da subjugação à água. Para Wittgofel56 as necessidades resultantes do sistema de irrigação obrigaram a formas de governo despóticos. Segundo Fernand Braudel a cultura de sequeiro identifica-se com a liberdade e a de regadio com a escravatura. Foi isso, na verdade, que aconteceu nas ilhas, pois o Homem para dispor da água de regadio amordaçou-se a si próprio. Os escravos traçaram as levadas e os heréus envolveram-se numa subjugação total à água, alimentada, por vezes com querelas.

Em qualquer dos espaços onde os canaviais medraram era abundante a água e a floresta. São estes os condimentos do sucesso da cultura. Após alguns anos de afirmação, quando a cultura é abandonada deixa para trás um rastro desolador. Tal como afirmou Sergio Buarque57 os colonos “colheram o fruto sem plantar a árvore”. O descuido levou a que a mata desse lugar a um amplo espaço

56 A. Wittfogel, Despotismo Oriental. Estúdio comparativo del Poder Totalitário,

Madrid, 1966.

57 Raizes do Brasil, Rio de Janeiro : José Olympio, 1936

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escampado, palco das ervas daninhas. Para travar este processo o homem aguçou o engenho, pois tal como afirmara Sampaio e Mello em 1812 " se a abundância tem sido a causa da nossa preguiça, principia a necessidade de ser a causa da nossa indústria". Desde muito cedo que temos noticia de medidas das autoridades no sentido da preservação da floresta e de evitar o desbaste acelerado das terras, de forma a evitar a erosão dos solos. Mas de pouco serviram estas medidas para travar o desastre ecológico. Foi o engenho do homem que contribuiu para travar o processo, com o chamado sistema de fornalhas agrupadas, que ficou conhecido a partir do século XVII como trem jamaicano, uma inovação no sistema de fornalhas e de disposição das caldeiras que permitiu uma notável poupança de lenhas. Apenas com uma fornalha era possível levar calor às cinco caldeiras. A isto juntou-se em muitos sítios, excepto no Brasil, o uso do bagaço da cana como combustível. O homem serve-se da própria cana para atear o fogo que a consumirá, contribuindo assim para a preservação da floresta. A cana, tal como afirma Josué de Castro, é autofágica58. A realidade histórica dos últimos cinco séculos, em que ela assumiu um estatuto de produção em larga escala, assim o confirma. Aquilo que aconteceu na Madeira dos séculos XV e XVI repetiu-se nas Canárias, Caraíbas e só não atingiu idênticas proporções no Brasil, porque a mata atlântica era extensa. Gilberto Freire59 afirma que "o canavial desvirginou todo esse mato grosso de modo mais cru pela queimada. A cultura da cana… valorizou o canavial e tornou desprezível a mata". O processo é simples. Para plantar a cana derruba-se ou queima-se a floresta. Depois para fabricar o açúcar essa floresta faz falta para manter acesa a chama dos engenhos, ou construir estas infra-estruturas. A cana tem na floresta o seu maior amigo e inimigo. Um exemplo apenas evidência a dimensão que assumiu este processo. A cultura da cana sacarina só subsistiu em locais onde estavam garantidas as exigências adequadas ao cultivo e processo de fabrico. Obrigava a um clima singular, que no caso das ilhas da Madeira e Canárias dói uma cultura de regadio, o que limitou a expansão no espaço cultivado. O processo de laboração do açúcar implicava ainda o recurso a outras fontes de energia, como a lenha, pelo que uma área açucareira deveria estar servida de uma rectaguarda de mata. Finalmente, o processo de laboração do açúcar implica uma especialização técnica e a montagem de uma estrutura de custos elevados. Perante isto podemos afirmar que a cana só poderá existir em espaços servidos de água, próximos da floresta e a disponibilidade de capital para o necessário investimento tecnológico. A forma de afirmação da cultura nos espaços insulares tem a ver com a garantia ou não destas condições. De um modo geral podemos dizer que foi a água que comandou o processo de implantação dos canaviais nas ilhas e dentro destas escolheu as áreas agrícolas, maioritariamente vizinhas das ribeiras. Hoje é conhecida a relação entre a produção açucareira e o avanço do desbaste da floresta. A presença de uma área de floresta era indispensável para o fabrico do açúcar, pois era aí que se ia buscar as madeiras para construção dos engenhos e, acima de tudo, as lenhas que mantinham acesas, dia e noite, as caldeiras. Na costa granadina, a partir da primeira metade do século XVI, são evidentes as consequências do funcionamento dos engenhos na mata, surgindo reclamações dos

58 Geografia da Fome, Rio de Janeiro, 1952, p.73 59 Aspectos e Influência daCana sobre a Vida e a Paisagem do Nordeste do Brasil, Rio

de Janeiro, 1985.

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vizinhos e condicionamentos por parte das autoridades. É neste quadro que temos notícia sobre o dano diário causado pelas fornalhas do engenho. Assim cada engenho nos 8 meses de actividade gastava diariamente até 40 cargas de lenha, o que equivale a cerca de 9600 cargas por safra. Incluso refere-se o caso da ilha da Madeira onde o gasto diário poderia ir até 10 cargas de lenha60. Em Gran Canaria sabemos que em 1503 foram necessárias 4620 cargas de lenha para a produção de 1190,5 arrobas de açúcar, o que equivale à média de 3,88 arrobas por carga de lenha61. No caso do Brasil estabeleceu-se que para o fabrico de 1 kg de açúcar era necessário 15 Kg de lenha, correspondendo 200 toneladas de lenha a 1 hectare de floresta62. A partir daqui podemos definir uma medida padrão que permite avaliar a relação da produção açucareira com a reserva florestal. Em áreas de exploração intensiva, em que a reserva florestal era limitada, as dificuldades rapidamente se fizeram sentir e a sobrevivência da cultura só foi possível com o recurso a alguns processos engenhoso como o trem jamaicano, que permitiram a poupança de 10 kilogramas de lenha por cada kg de açúcar produzido63. O sistema consiste num conjunto de caldeiras servidas por uma única fornalha e recebeu esta designação por ter surgido na ilha de Jamaica no século XVII, mas em Cuba ficou conhecido por trem francês, por ter sido usada a versão aperfeiçoada pelos franceses, que foi divulgada por Jacques François Dutrône de la Couture(1749-1814)64. A devastação da floresta causou efeitos destrutivos considerados catastróficos. A situação foi mais evidente nas ilhas onde o hinterland era reduzido. A primeira imagem disto está na ilha de Chipre, onde a construção naval e a exportação de lenhas e madeiras levaram a que perdesse rapidamente o epíteto de ilha verde, dado pelos antigos. A situação repete-se na Madeira, Canárias e na maioria das Antilhas. As primeiras consequências da cultura açucareira para a floresta ocorreram já nas ilhas e costas do Mediterrâneo. Chipre ficou conhecida pelos antigos como a ilha verde, pela abundância de floresta, mas rapidamente perdeu o epíteto com a exploração açucareira65. Na Sicília, Carmelo Trasselli66 chama a atenção para o facto de a cultura açucareira ter acabado com o equilíbrio precário que existia entre o homem e a natureza, conduzindo ao paulatino desboscamento do entorno de Palermo e, por consequência às alterações climáticas do século XV. O mesmo sucedeu na

60Antonio Malpica Cuello, El Médio Físico y sus Transformaciones a Causa del Cultivo de la Caña de Azúcar en época Medieval. El Caso de la costa de Granada, in História e Tecnología do Açúcar, Funchal, 2000, 103. 61 Acarga de lenha era a quantidade de lenha que um animal podia transportar, sendo o seu peso variável. António Santana[Revolución del Paisaje de Gran Canaria(siglos XV- XIX), Las Palmas, 2001] que cada carga corresponderá a cerca de 11,5 kgs. ]Eduardo Aznar Vallejo, Ana Viña Brito, El Azúcar en Canárias, La Caña de Azúcar en Tiempos de los Grandes Descubrimientos. 1450-1550. Actas del Primer Seminário International, Motril, 1989, p.180. 62 Warren Dean, A Ferro e Fogo, São Paulo, 1996, p.97. 63 ibidem, p.191 64 Manuel Moreno Fraginals, O engenho, vol. I, S. Paulo, 1988, p.109. Cf. J. F. Dutrône de la Couture, Précis sur la Canne et sur les Moyens d’en extrair ele sel essentiel, suivi de plusieurs Mémoires sur le sucre, sur le vin de canne, sur indigo, sur les habitations & sur l’état actuel de Saint-Domingue, Paris, 1790. 65 J. V. Thirgood, Man and the Mediterranean Forest. A History of Resource Depletion, Londres, 1981, p.124. Sobre o açúcar veja-se: Sidney M. Greenfield, Cyprus ant he Beginnings of Modern Sugar Cane Plantations and Slavery, in La Caña de Azucar en el Mediterraneo. Actas del Segundo Seminario International, Motril, 1992, 23-42; Marie-Louise Von Wartburg, Desing and Technology of thr Medieval Refineries of the Sugar Cane in Cyprus. A Case of Study in Industrial Archaelogy, in Paisajes del Azucar. Actas del Quinto Seminario International, Motril, 1995, 81-116. 66 Gloria de lo Zucchero Siciliano, Roma, 1982, pp. 96-99; Antonino Morreale, Lo Zuccherificio e l’impatto sull’ambiente in Sicília tra XV e XVII secolo, in História e Meio-ambiente o Impacto da Expansão Europeia, Funchal, 1999, 159-180; Cf. Henri Bresc, La Canne a Sucre Dans la Sicile Medievale, in La Caña de Azucar en el Mediterraneo. Actas del Segundo Seminario International, Motril, 1992,43-57.

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costa espanhola, nomeadamente em Motril, Salobreña e Algeciras67. Foi nas ilhas, onde o espaço florestal é limitado, em que o equilíbrio entre este recurso e a agro-indústria de exportação é precário. A história do Açúcar revela-nos que o período médio de afirmação das culturas não chegava a um século. Sucedeu assim na Madeira, como em nalgumas ilhas das Canárias e nas Antilhas, como foi o caso de Jamaica. Os arquipélagos da Madeira e Canárias foram os primeiros no espaço atlântico a sentir os efeitos depredadores da cultura sobre a floresta. A Madeira foi buscar o nome ao denso arvoredo que a cobria à chegada dos primeiros europeus. Cem anos mais tarde a situação da vertente sul era distinta. O processo agrícola em torno da cana sacarina fez abater as árvores de grande porte para abrir caminho aos canaviais. A laboração dos engenhos obrigou ao desbaste de madeiras e lenhas para construir e alimentar os engenhos. Em pouco tempo as encostas sobranceiras ao Funchal ficaram escalvadas. Os reflexos da situação cedo se fizeram sentir obrigando as autoridades a intervir no sentido de limitar o avanço das áreas de cultivo e de controlar o abate de madeiras e lenhas. Em 1466 os moradores do Funchal contestavam o regime de concessão de terras de arvoredos e do modo de as esmoutar, pelos efeitos nefastos que causava à safra açucareira. Perante a reclamação, o senhorio ordenou aos capitães e almoxarifes que cumprissem os prazos estabelecidos e que fosse interdito o uso do fogo. No entanto, em 1483, o capitão de Machico continuava a distribuir de sesmarias os montes próximos do Funchal, com excessivo prejuízo para os lavradores do açúcar e, por isso, D. Manuel repreendeu-o, solicitando que tais concessões deveriam ser feitas na presença do Provedor. E, finalmente, em 1485, o mesmo proibiu a distribuição de terras de sesmaria nos montes e arvoredos do norte da ilha, para em princípios do século XVI (1501 e 1508) acabar definitivamente com a concessão de terras em regime de sesmaria, a única ressalva eram as terras que pudessem ser aproveitadas em canaviais e vinhedos. Deste modo, logo desde o século XV até ao presente, é interminável o conjunto de regulamentos, ordenações e posturas sobre o assunto. As medidas poderão resumir-se à preservação daquilo que existe através de limitações ao abate de árvores e recuperação do coberto florestal com uma política de reflorestação das zonas ermas ou em abate. A salvaguarda da floresta passava não só pelo estabelecimento de ordens rigorosas que controlassem o abate, que deveria estar sujeito a licenças camarárias, mas também ao ataque em todas as frentes aos agentes devastadores, onde se incluíam o fogo e o gado solto. As queimadas, tão comuns desde o povoamento, foram um dos principais agentes devastadores e por isso insistentemente proibidas. O gado é obrigatoriamente acantonado a espaços circundados por um bardo. A floresta não era para os nossos avoengos um espaço de diversão mas sim algo fundamental para a economia da ilha. Vedar-lhe o acesso era impossível. Daí as acções disciplinadoras do uso de acordo com um processo económico harmonioso. A legislação florestal madeirense é prolixa, sendo de destacar o regimento das Madeiras de 1562, o mais antigo que se conhece pois faltam notícias sobre o de 1515, o regimento das matas e arvoredos de 1839, o plano de organização dos Serviços Florestais de 1886 e o Regimento do Serviço de Polícia

67 Antonio Malpica Cuello, Médio Físico y Territorio: el Ejemplo de la Caña de Azúcar a finales de la Edad Media, Actas del Quinto Seminario de la Caña de Azúcar. Paisajes del Azúcar, Granada, 1995, 11-40; Idem, El Médio Físico y sus Transformaciones a Causa del Cultivo de la Caña de Azúcar en época Medieval. El Caso de la costa de Granada, in História e Tecnología do Açúcar, Funchal, 2000, 87-104.

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Rural e Florestal de 1913. Estas regulamentações genéricas tiveram réplica nas posturas Municipais e recomendações dos corregedores lavradas nas correições completam o quadro das medidas protectoras do manto florestal. Daqui se conclui que não houve esquecimento e falta de regulamentação. As contingências de cada época ditaram, sem dúvida, a sua ineficácia. Em 1817 Paulo Dias de Almeida acusa os carvoeiros da situação em que encontra a ilha: "...as montanhas que não há muitos anos vi cobertos de arvoredos, hoje os vejo reduzidas a um esqueleto. O centro da ilha se acha, todo descoberto de arvoredo, com apenas algumas árvores dispersas, e isto em lugares onde os carvoeiros não tem chegado". As reclamações dos moradores e as medidas consequentes do senhorio atestam a pressão do movimento demográfico sobre a concessão de terras. Na Madeira, das facilidades da década de 20 entra-se na década de 60 com medidas limitativas, como forma de preservar o pascilgo de usufruto comum e de apoiar os principais proprietários de canaviais, cuja exploração dependia da existência dos referidos montes e arvoredos. As exorbitâncias dos capitães, desrespeitando as ordenações régias e senhoriais, conduziram à sua diminuição. O próprio D. Manuel contrariou, em 1492, o regimento de dadas de terras ao permitir que o capitão do Funchal distribui-se terras, na serra para currais e cultivo de cereais e das bermas das ribeiras para a plantação de árvores de fruto. O litígio entre as capitanias do Funchal e Machico quanto ao usufruto da floresta foi uma constante no século XVI. Acontece que a capitania do Funchal dispunha da maior área de produção de açúcar da ilha, superior a dois terços, mas era na de Machico que se encontra o mais importante manto florestal necessário para alimentar os engenhos. O Vedor da Fazenda Real determinava em 1581 que a fruição das madeiras destinadas ao fabrico do açúcar fossem de fruição comum. A situação manteve-se nos anos imediatos sendo necessária a intervenção da coroa. No sentido de controlar o consumo de lenhas pelos engenhos a câmara nomeava um estimador de lenhas, que através de uma bitolha ”de sinco palmos e meio de largo e de altura dous e meio”68. Na Madeira, desde meados do século XV, a aposta na cultura dos canaviais e fabrico do açúcar conduziram inexoravelmente à destruição da parca floresta da ilha. Abatia-se árvores para plantar soca nova mas, acima de tudo, para poder dispor de madeiras para construir os engenhos e lenhas necessárias ao fabrico do açúcar. Se tivermos em conta que, para o fabrico de um quilograma de açúcar eram necessários 15 Kgs de lenha, teremos a indicação da área que anualmente era vítima de desbaste na floresta.

PRODUÇÃO DE AÇÚCAR LENHA KGS

Área floresta Área canaviais69 PERÍODO

EM KGS

em ha % do total

EM KGS em ha % do total

1455-1499 8.395.477 8394 2,80 125.750.180 628 0,20

1501-1537 43.537.476 40.329

13,44 641.224.746 3.206 1,06

68 ARM, CMF, nº.1328, fl.20: 16 de Maio de 1637. 69 De acordo com A. Macias [Canárias. 1480-1680. Economia Azucarera y Crecimiento Económico, in História do Açúcar- Rotas e Mercados, Funchal, 2002, pp.157-191] a cada 100 toneladas de cana corresponderia em média um hectare de área cultivada.

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1581-1586 15.858.425 3171 1,06 237.876.498 1189 0,40

1637-1698 1.048.800 609 0,20 17.117.414 85 0,02

total 68.840.178 52.503

17,50 1.021.968.838

5.108 1,70

Para os dados acima referidos temos que o fabrico de açúcar entre 1455

e 1698 conduziu ao corte de mais de 5.000 Ha de floresta da ilha, sendo

a média anual de cerca de 106Ha ano. O período de maior produção, de

1493 a 1537, foi também o de maior depredação das zonas altas da

vertente sul, com mais de 3.834Ha, atingindo de forma especial a

vertente sul. Deste modo redobraram-se as atenções das autoridades

municipais e as medidas determinadas em vereação no sentido de

controlar o abate desmedido de árvores.

As Canárias foram o segundo grupo de ilhas a receber o impacto negativo da cultura açucareira70. Desde finais do século XV que os canaviais, trazidos da Madeira, tiveram grande incremento nas ilhas de Gran Canaria, La Gomera, La Palma e Tenerife, as únicas do arquipélago onde a reserva de água e floresta foi suficiente para manter a cultura num curto lapso de tempo. Na ilha de Gran Canaria a cultura dos canaviais aconteceu numa faixa abaixo dos 600 metros de altitude, compreendendo Las Palmas, Telde, Guia La Aldea, Agaete, Tirajana e El Ingenio. A floresta vizinha, nomeadamente em Las Palmas, Tamaraceite, Telde, Arucas e Palmital de Guia, sofreu rapidamente o efeito devastador da produção açucareira. Assim, de acordo com o Libro Rojo71 “toda la madera que ay en las mantañas de la dicha ysla se reparten entre elllos(os engenhos) para fabricacion de azucares”. As ordenanzas de 153172 insistem no estado deplorável dos montes da ilha, em especial a montanha la Lentiscal, que se encontrava “ muy cortada y muy talada y en toda ella no hay leña gruesa a cuasa de que los señores de ingenio han cortado”. Passados trinta anos o inglês T. Nichols referia que a madeira era a coisa mais desejada na ilha73. Perante esta situação as autoridades insulares foram forçadas a estabelecer medidas de preservação da floresta, regulamentando o abate para lenhas e madeiras a serem usadas nos engenhos de açúcar74. Os Acuerdos do Cabildo de Tenerife75 e as ordenanzas76 de

70 Cf. Alfredo Herrera Pique, La Destrucción de los Bosques de Gran Canaria a Comienzos del Siglo XVI, in Aguairo, 92(1977), 7-10; James J. Persons, Human Influences on the Pine and Laurel Forests of the Canary Islands, in Helen Wheatley, Agriculture, Resource Exploitation and Environmental Change, Hampshire, 1997, 169-187; Richard Grove, Conserving Eden. The (European) East India Companies and their Environmental Policies on St. Helena, Mauritius and in Western India, 1600-1854, in, ibidem, pp. 319-320; Agustin Naranjo Cigala e outros, Características Bioclimáticas del Território Antiguamente Cultivado de Caña de Azúcar en las Islas Canarias, in Açúcar e Quotidiano, Funchal, 2004, pp.271-299; 71 P. Cullen del Castillo, Libro Rojo de Gran Canaria, Las Palmas, 1947. 72 F. Morales Padrón, Las Ordenanzas del Concejo de Gran Canaria(1531), Las Palmas de Gran Canaria, 1974. 73 Alejandro Cioranescu, Thomas Nichols, mercader de Azúcar, Hispánista y Hereje, La Laguna, 1963. 74. Cf. Ana Viña e Manuela Ronquillo, El Control Normativo del Azúcar en Canarias, in O Açúcar e o Quotidiano, Funchal, 2004, pp.303-341. 75 E. Serra Ráfols, Acuerdos del Cabildo de Tenerife(1497-1507), La Laguna, 1996; E. Serra Ráfols, e L. De La Rosa Olivera, Acuerdos del Cabildo de Tenerife (1514-1518), La Laguna, 1965; E. Serra Ráfols, e L. De La Rosa Olivera, Acuerdos del Cabildo de Tenerife(1518-1525), La Laguna, 1970; L. De La Rosa Olivera e M. Marrero, Acuerdos del Cabildo de Tenerife (1525-1533), La Laguna, 1986; L. De La Rosa Olivera e M. Marrero, Acuerdos del Cabildo de Tenerife(1525-1533), La Laguna, 1986; M.

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algumas das ilhas evidenciam-se bem desta luta das autoridades pela preservação da floresta, em que o principal carrasco é o açúcar.

LENHA EM KGS- para produção de Açúcar77 1502

1507-1508 1510 1520

Ilha

Kgs de lenha

Área desbastada em ha

Kgs de lenha

Área desbastada em ha

Kgs de lenha

Área desbastada em ha

Kgs de lenha

Área desbastada em ha

Tenerife 765.900 4 920.000 4 La Palma 53.670 0,3 23.000 0,1 Gran Canaria 4.600.000 23 2.185.000 11 La Gomera 345.000 2 total 5.505.000 27 819.570 4 687.585 3 3.680.000 18

Para o Brasil no século XVIII cada quilo de açúcar equivale a 15 kg de lenha queimada, dando média anual de 210.000 toneladas. A cada hectare correspondia 200 toneladas. A evolução recente da mata atlântica no Brasil, passados mais de cem anos sobre o incremento da máquina a vapor nos engenhos, continua a ser tragada por outros agentes. Assim entre 1985 a 1990 ela perdeu 5.330 km2, ficando em 83.500km2, isto cerca de 8% da floresta encontrada portugueses em 22 de Abril de 1500. A continuada acção devastadora é assim descrita: "Durante quinhentos anos, a Mata Atlântica propiciou lucros fáceis: papagaios, corantes, escravos, ouro, ipecacuanha, orquídeas e madeira para o proveito de seus senhores coloniais e, queimada e devastada, uma camada imensamente fértil de cinzas que possibilitavam uma agricultura passiva, imprudente e insustentável. A população crescia cada vez mais, o capital "se acumulava", enquanto as florestas desapareciam; mais capital então "se acumulava" - em barreiras à erosão de terras de lavoura, em aquedutos, controle de fluxos e enchentes de rios, equipamentos de dragagem, terras de mata plantada e a industrialização de sucedâneos para centenas de produtos outrora apanhados de graça na floresta. Nenhuma restrição se observou durante esse meio milénio de gula, muito embora, quase desde o início, fossem entoadas intermitentes interdições solenes que, nos dias atuais, são contínuas e frenéticas." A situação, não obstante a extensa mata disponível, provocou alguns problemas. Deste modo em 1660 o município de Salvador da Baía definiu um conjunto de medidas, que não foram suficientes uma vez que em 1804 no Recôncavo era evidente a falta de lenhas e madeiras. O desaparecimento da floresta próxima dos engenhos fazia aumentar os custos de fabrico do açúcar, agora onerados com os da lenha. A crise açucareira da segunda metade do século XVI não surge apenas como resultado da concorrência do açúcar de novas áreas, mas acima de tudo das dificuldades internas da própria cultura. O espaço da ilha é de recursos limitados que facilmente se esgotam. Sucedeu assim na Madeira como nas Canárias. As ilhas, pela limitação do espaço, foram os primeiros espaços a

Marrero, M. Padrón e B. Rivero, Acuerdos del Cabildo de Tenerife(1538-1544),La Laguna, 1996; M. Marrero, M. Padrón e B. Rivero, Acuerdos del Cabildo de Tenerife(1545-1549),La Laguna, 2000; 76 J. Peraza de Ayala, Las Antiguas Ordenanzas de la Isla de Tenerife, La Laguna, 1935; F. Morales Padrón, Las Ordenanzas del Concejo de Gran Canaria (1531), Las Palmas de Gran Canaria, 1974; A. Viña e E. Aznar Vallejo, Las Ordenanzas del Concejo de La Palma, Santa Cruz de Tenerife, 1993; M. A. Ladero Quesada, Ordenanzas Municipales y Regulación de la Actividad Económica en Andalucia y Canárias. Siglos XIV- XVII, II Colóquio de Historia Canário Americana, Las Palmas de Gran Canaria, 1979; Alberto Vieira, Introdução ao Estudo do Direito Local Insular. As Posturas da Madeira, Açores e Canárias nos séculos XV e XVII, VII Colóquio de Historia Canário Americana, vol. II, Las Palmas de Gran Canaria, 1990, 677-711. 77 Deverá ter-se em conta que a arroba nas Canárias equivalia a 11,5 Kgs, enquanto na Madeira até 1504 era de 12,852 kgs, passando para 14,688Kgs.

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ressentir-se da realidade. Sucede assim em ambos os lados do Atlântico, apontando-se como única excepção as ilhas de S. Tomé e Príncipe. Nas Caraíbas a situação é igual. Na então ilha de Santo Domingo, hoje Haiti e Rep. Dominicana, a cultura da cana teve um apogeu curto de pouco mais de cinquenta anos, pois que em 1550 a notória escassez de lenha conduziu ao abandono de muitos engenhos desde 1570. Já em Jamaica, a promoção pelos ingleses da cultura, levou à busca de soluções. Primeiro o trem jamaicano que terá sido a solução mais eficaz. Com este sistema de fornalha o aproveitamento de lenha era evidente, pois apenas com uma só fogueira se conseguia manter as três fornalhas. Concomitantemente tivemos o recurso ao bagaço como combustível. Note-se que ambas as situações difundem-se primeiro nas Antilhas inglesas a partir da década de oitenta do século XVII e só depois atingem as demais áreas açucareiras. A generalização do sistema aconteceu primeiro nas ilhas, carentes de lenha, e só depois chegou ao Brasil. A sua entrada definitiva na indústria açucareira do Brasil é de 1806, altura em que Manuel Ferreira da Câmara, na Baía, adaptou o seu engenho a esta nova situação. Todavia nesta época a grande inovação era já a maquina a vapor, que começou a ser usada no Brasil a partir de 1815. Entretanto a Caldeira de vacum, inventada em 1830 por Norbert Rillius de New Orleans, foi a técnica que revolucionou o fabrico do açúcar e que mais contribuiu para a economia de combustível. A EXPANSÃO DOS CANAVIAIS A PARTIR DAS ILHAS. O mais significativo da situação do novo mercado produtor de açúcar é que o madeirense está indissociavelmente ligado. Na verdade, a Madeira foi o ponto de partida do açúcar para o Novo Mundo. O solo madeirense confirmou as possibilidades de rentabilização da cultura através de uma exploração intensiva e de abertura de novo mercado para o açúcar. É a partir da Madeira que se produz açúcar em larga escala que veio a condicionar os preços de venda, de forma evidente nos finais do século XV. O madeirense foi também capaz de agarrar esta opção, tornando-se no obreiro da difusão no mundo Atlântico. A tradição anota que foi a partir da Madeira que o açúcar chegou aos mais diversos recantos do espaço atlântico e que os técnicos foram responsáveis pela implantação. O primeiro exemplo está documentado com Rui Gonçalves da Câmara, quando em 1472 comprou a capitania da ilha de S. Miguel. Na expedição de tomada posse da capitania fez-se acompanhar de socas de cana da Lombada, que entretanto vendera a João Esmeraldo, e dos operários para a tornar produtiva. Seguiram-se depois outros que corporizaram diversas tentativas frustradas para fazer vingar a cana-de-açúcar nas ilhas de S. Miguel, Santa Maria e Terceira78.

Em sentido contrário avançou o açúcar em 1483, quando o Governador D. Pedro de Vera quis tornar produtiva a terra conquistada nas Canárias. De novo a Madeira surge disponibilizar as socas de cana para que aí surgissem os canaviais e o primeiro engenho em 1484. Todavia, o mais significativo é a forte presença portuguesa no processo de conquista e adequação do novo espaço a economia de mercado. Os portugueses, em especial o madeirense, surgem com frequência nas ilhas ligando-se ao processo de arroteamento das terras, como colonos que recebem datas de terras na condição de trabalhadores especializados a soldada, ou de operários especializados que constroem os engenhos e os colocam em movimento. No caso de La Palma refere-se um Leonel Rodrigues, mestre de engenho que ganhou o estatuto em 12

78 Gaspar FRUTUOSO, Livro Quarto das Saudades da Terra, Vol. II, pp. 59, 209-212; V. M. GODINHO, ob. cit., Vol. IV, F. Carreiro da COSTA, "A cultura da cana-de-açúcar nos Açores. Algumas notas para a sua História" in Boletim da Comissão Reguladora do Comércio de cereais dos Açores, nº 10, 1949, 15-31.

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anos de trabalho na Madeira79. É de referir também idêntico papel para as ilhas Canárias na projecção da cultura às colónias castelhanas do novo mundo. Assim, em 1519 Carlos V recomendou ao Governador Lope de Sousa que facilitasse a ida de mestres e oficiais de engenho para as Índias80.

O avanço do açúcar para sul ao encontro do habitat que veio gerar o boom da produção, deu-se nos anos imediatos ao descobrimento das ilhas de Cabo Verde e S. Tomé. Todavia, só na última, pela disponibilidade de água e madeiras, os canaviais encontraram condições para a sua expansão. Deste modo em 1485 a coroa recomendava a João de Paiva que procedesse à plantação de cana do açúcar. Para o fabrico do açúcar refere-se a presença de “muitos mestres da ilha da Madeira”81. É, alias, aqui que se pode definir o prelúdio da estrutura açucareira que terá expressão do outro lado do Atlântico.

Colombo abriu as portas ao Novo Mundo e traçou o rumo da expansão da cana-de-açúcar. A cultura não lhe era alheia, pois o navegador tem no curriculum algumas actividades ligadas ao comércio do açúcar na Madeira. O navegador, antes da relação afectiva ao arquipélago, foi, a exemplo de muitos genoveses mercador do açúcar madeirense. Em 1478 ele encontrava-se no Funchal ao serviço de Paolo di Negro para conduzir a Génova 2400 arrobas a Ludovico Centurione. Com esta viagem e, depois da larga estância do navegador na ilha, Colombo ficou conhecedor da dinâmica e importância do açúcar da Madeira82. Em Janeiro de 149483, aquando da preparação da segunda viagem, o navegador sugere aos reis católicos o embarque de 50 pipas de mel e 10 caixas de açúcar da Madeira para uso das tripulações, apontando o período que decorre até a Abril como o melhor momento para o adquirir. A isto podemos somar a passagem do navegador pelo Funchal no decurso da terceira viagem em Junho de 1498 podemos apontar como muito provável a presença de socas de canas da Madeira na bagagem dos agricultores que o acompanhavam. Neste momento a cultura dos canaviais havia adquirido o apogeu na ilha, mantendo-se uma importante franja de canaviais ao longo da vertente sul84.

A tradição anota que as primeiras socas de cana saíram de La Gomera. Todavia, a cultura

79Conquista de la Isla de Gran Canaria, La Laguna, 1933, p. 40; José PÉREZ VIDAL, Los Portugueses en Canarias. Portuguesismos, Las Palmas, 1991; Felipe FERNANDEZ-ARMESTO, ob. cit., 14-19; Pedro MARTINEZ GALINDO, Protocolos de Rodrigo Fernandez (1520-1526). Pimera parte, La Laguna, 1982, pp. 67, 84-90; Guilhermo CAMACHO Y PÉREZ GALDOS, "El cultivo de la cana de azúcar y la industria azucarera en Gran Canaria (1510-1535) in AEA, nº 7, 1961, 35-38; Maria LUISA FABRELLAS, "La producción de azúcar en Tenerife" in Revista de História, nº 100, 1952, 454/475; Gloria DIAZ PADILLA, e José Miguel RODRIGUEZ YANES, El Señorio en Las Canarias Occidentales..., Santa Cruz de Tenerife, 1990, p. 316. 80 CF. José PEREZ VIDAL, "Canarias, el azúcar, los dulces y las conservas", in II Jornadas de Estudios Canarios-America, Santa Cruz de Tenerife, 1981, p. 176-179. 81 Isabel Castro Henriques, O Ciclo do açúcar em S. Tomé nos séculos XV e XVI, in Albuquerque, Luís de (dir.), Portugal no Mundo, Lisboa, sd, vol. I, pp.264-28O 82 VIEIRA, Alberto, "Colombo e a Madeira", Actas III Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, CEHA, 1993., IDEM, “Colombo e a Madeira: tradição e história”, Islenha, 1989, Nº 5, pp. 35-47.

83 Consuelo Varela, Cristóbal Colón. Textos y Documentos Completos, Madrid, 1984, p.160. 84 Cristóbal Colón, Textos y Documentos Completos, Madrid, Alianza Editorial, 1984, p. 160; Fray Bartolomé de las CASAS, Historia de las Indias, Vol. I, México, Fundo de Cultura Económica, 1986, p. 497.

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encontrava-se aí nesse momento em expansão, enquanto na Madeira estava já consolidada. Estão por descobrir as razões que conduziram Colombo, no decurso da Terceira viagem, a fazer um desvio para escalar o Funchal. Na verdade, a Madeira foi a primeira área do Atlântico onde se cultivou a cana-de-açúcar que, depois, partiu à conquista das ilhas (Açores, Canárias, Cabo Verde, S. Tomé e Antilhas) e continente americano. Por isso mesmo o conhecimento do caso madeirense assume primordial importância no contexto da História e Geografia açucareira dos séculos XV a XVII.

O açúcar da Madeira ganhou fama no mercado europeu. A qualidade diferenciava-o dos demais e fê-lo manter-se como o preferido de muitos consumidores europeus. O aparecimento de açúcar de outras ilhas ou do Novo Mundo veio a gerar uma concorrência desenfreada ganha por aquele que estivesse em condições de ser oferecido ao melhor preço. Francisco Pyrard de Laval testemunha a situação: “Não se fale em França senão no açúcar da Madeira e da ilha de S. Tomé, mas este é uma bagatela em comparação do Brasil, porque na ilha da Madeira não há mais de sete ou oito engenhos a fazer açúcar e quatro ou cinco na de S. Tomé”85. E refere que no Brasil laboravam 400 engenhos que rendiam mais de cem mil arrobas vendidas como da Madeira.

A partir do século XVI a concorrência do açúcar das Canárias e S. Tomé apertou o cerco ao açúcar madeirense o que provocou a natural reacção dos agricultores madeirenses. Sucederam-se queixas junto da coroa, que ficou testemunho em 152786. Em vereação reuniram-se os lavradores de cana para reclamar junto da coroa contra o prejuízo que lhes causava o progressivo desenvolvimento da cultura em S. Tomé. A resposta do rei, no ano imediato87, remete para uma análise dos interesses em jogo e só depois, no prazo de um ano, seria tomada uma decisão, que parece nunca ter vindo. A exploração fazia-se directamente pela coroa e só a partir de 1529 surgem os particulares interessados nisso.

Enquanto isto se passava nas ilhas, do outro lado do Atlântico davam-se os primeiros passos no arroteamento das terras brasileiras. E, mais uma vez, é notada a presença dos canaviais e dos madeirenses como os seus obreiros. A coroa insistiu junto dos madeirenses no sentido de criarem as infra estruturas necessárias ao incremento da cultura. Aliás, o primeiro engenho aí erguido por iniciativa da coroa, contou com a participação dos madeirenses. Em 1515 a coroa solicitava os bons ofícios de alguém que pudesse erguer no Brasil o primeiro engenho, enquanto em 1555 foi construído por João Velosa, apontado por muitos como madeirense, um engenho a expensas da fazenda real88. A aposta da coroa na rentabilização do solo brasileiro através dos canaviais levou-a a condicionar a força de mão-de-obra especializada, que então se fazia na Madeira. Assim, em 1537 os carpinteiros de engenho da ilha estão proibidos de ir à

85 Viagem de Francisco Pyrard de Laval, Vol. I, Porto, 1944, p. 228. 86 ARM, CMF, Vereações 1527, fl. 23vº, 26 de Março. 87 ARM, D. A., nº 66: 8 de Fevereiro 1528.

88 Cf. Basílio de Magalhães, O Açúcar nos Primórdios do Brasil Colonial, Rio de Janeiro, 1953; David Ferreira de Gouveia, A Manufactura Açucareira Madeirense (1420-1550). Influência Madeirense na Expansão e Transmissão da Tecnologia Açucareira, in Atlântico, Funchal, 1987, nº.10; Maria Licínia Fernandes dos Santos, Os Madeirenses na Colonização do Brasil, Funchal, 1999, pp.46-60.

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terra dos mouros89.

O movimento de migração de mão-de-obra especializada do engenho acentuou-se na segunda metade do século XVI, por força das dificuldades da cultura em solo madeirense. O Brasil, nomeadamente Pernambuco, continuará a ser a terra prometida para muitos. Em 157990 refere-se que Manuel Luís, mestre de açúcar, que exercera o ofício na ilha estava agora em Pernambuco. Muitos mantêm contactos com a ilha, nomeadamente quanto ao comércio de açúcar, é o caso de Francisco Álvares e João Roiz91. Acontece que este movimento de operários especializados era controlado pelas autoridades, no sentido de evitar a concorrência de outras áreas com o Brasil. Sucede que em 164792 Richarte Piqueforte vendera um escravo, “oficial de asucares”, a um mercador francês que o pretendia conduzir a S. Cristóvão. A coroa entendia que a saída não deveria ser autorizada e que o escravo deveria ser adquirido e embarcado para o Rio de Janeiro às ordens do Provedor da Fazenda, para aí ser vendido.

Com tais condicionantes e colocados perante o paulatino decréscimo da produção açucareira na ilha, muitos madeirenses foram forçados a seguir ao encontro dos canaviais brasileiros. Em Pernambuco e na Baia, entre os oficiais e proprietários de engenho, pressente-se a forte presença madeirense. Alguns destes madeirenses se tornaram em importantes proprietários de engenho como foi o caso de Mem de Sá, João Fernandes Vieira o libertador de Pernambuco. É a partir daqui que se estabelece um vínculo com a Madeira, continuado através do trato ilegal de açúcar para o Funchal ou então ao mercado europeu com a designação da Madeira. Este movimento seguia as ancestrais ligações entre os que do outro lado do Atlântico via florescer a cultura e aqueles que na ilha ficavam sem os seus benefícios. Veja-se, por exemplo, o caso de Cristóvão Roiz de Câmara de Lobos que em 1599 declara ter crédito em três mestres de açúcar de Pernambuco em cerca de cem mil réis de uma companhia que teve com Francisco Roiz e Francisco Gonçalves93.

Os dados, embora avulsos evidenciam a presença dos madeirenses em todas as capitanias aonde chegou o açúcar. São eles, purgadores, carpinteiros, mestres, mas também senhores de engenhos94. Muitos arrastaram consigo a família, de modo que algumas se notabilizaram. É o caso dos LEME, flamengos que fizeram da Madeira trampolim para a afirmação no Brasil95.

89 Alberto LAMEGO, "onde foi iniciado no Brasil a lavoura canavieira, onde foi levantado o primeiro engenho de açúcar" in B. Açúcar, nº 32, 1948, pp. 165-168; Arquivo Geral da Alfândega de Lisboa, livro 54, fl. 41; Documentos para a História do Açúcar, ed. I, A. A. Vol I, Rio de Janeiro, 1954, pp. 121-123, 5 de Outubro 1555; ARM, RGCMF, T. I, fl. 372vº.

90 ARM [Arquivo Regional da Madeira], Misericórdia do Funchal, nº.711, fls.114-115: 7 de Março. 91 ARM, JRC [Julgado de Resíduos e Capelas], fls. 391-396: 11 de Setembro de 1599. 92 NA [Arquivos Nacionais]. PJRFF [Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal], nº.980, fls. 182-183: 3 de Setembro. 93 Em 1579 (ARM, Misericórdia do Funchal, nº 711, fls. 114-115) Gonçalo Ribeiro refere ser devedor a Manuel Luís, mestre de açúcar, "que agora está em Pernambuco". José António Gonsalves de MELLO, João Fernandes Vieira. Mestre de Campo do terço da infantaria de Pernambuco, Vol. II, Recife, 1956, pp. 201-267. ARM, J.R.C., fls. 391-396: Testamento de 11 de Setembro de 1599.

94 Cf. David Ferreira de Gouveia, ibidem, p.127. 95 Cf. John G. Everaert, Les Lem, Alias Leme Une Dynastie Marchande d’ origine Flamande au Service de l´Éxpansion Portugaise, in Actas do III Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, 1992, pp.817-838.

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CONCLUSÃO. A Europa sempre se prontificou a apelidar as ilhas de acordo com a oferta de produtos ao mercado. Deste modo, sucedem-se as designações de ilhas do pastel, do açúcar e do vinho. O açúcar ficou como epíteto da Madeira e de algumas das Canárias, onde a cultura foi a varinha de condão para a riqueza que transformou a economia e vivência das populações. Também do outro lado do oceano elas se identificam com o açúcar, uma vez que serviram de ponte à passagem do Mediterrâneo para o Atlântico. Daqui resulta a relevância do estudo das ilhas, quando se pretende fazer a reconstituição da rota do açúcar. A Madeira é o ponto de partida, por dois tipos de razões. Primeiro, porque foi pioneira na exploração da cultura e, depois, porque jogou papel fundamental na sua expansão ao espaço exterior próximo ou longínquo, desde os Açores e Canárias, Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe, até ao Brasil e, de forma indirecta, às Antilhas. A partir da segunda metade do século XVI, perante a situação do mercado açucareiro atlântico e a melhor capacidade concorrencial doutras áreas, o açúcar insular estava irremediavelmente perdido. Os canaviais foram desaparecendo paulatinamente das terras, dando lugar a outras culturas ou actividades. Apenas a conjuntura da segunda metade do século dezanove permitiu o retorno. Mas foram efémeras as tentativas para a produção de açúcar e mesmo assim só possível mediante uma política proteccionista. Os canaviais perderam a função de produtores do açúcar, o ouro branco dos insulares, mas em contrapartida favoreceram uma produção alternativa de mel e aguardente. Hoje não mais se fala do ouro branco, mas sim do rum ou aguardente e mel, os herdeiros da cultura nas ilhas.

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