campos, haroldo de - o sequestro do barroco

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PJLM4S harold decampo tr\mdaQáo Casa de clorge Ánado l9g9

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Page 1: CAMPOS, Haroldo de - O Sequestro Do Barroco

PJLM4S

haroldodecampos

tr\mdaQáo Casa de clorge Ánado l9g9

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Alle Achnng vor euren Meinungen! Abcr kleineabweizhende Handlungen sind mehr wert!

("Todo o respeito por vossas opiniões ! Mas pe-quenas ações divergenles valent mais!")

Nietzschz

e há um Droblema instante e insis-tente na historiografia literária brasileira,este problema é a "questão da origem". Nessesentido é que se pode dizer - como eu o fizem"Da razão antropofágica" - que estamosdiante de um "episódio da metafísica ociden-tal da presença, transferido para as nossaslatitudes tropicais, (...) um capítulo a apendi-citar ao logocentrismo platonizante que Der-rida, na Gramatologia, submeteu a uma lúci-da e reveladora análise, não por acaso sob ainstigação de dois ex-cêntricos, Fenollosa, o

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anti-sinólogo, e Nietzsche, o pulverizador dess119265."(t)

No caso brasileiro, esse enÌedo metafísicovê acrescida à sua intriga uma componentesingular de "suspense": o nome do pai ("lenom du père") apresenta-se (ou ausenta-se),desde logo, submetido à rasura e em razão,exatamente, de uma "perspectiva histórica".Escreveu em l97O Wilson Martins ("Gregó-rio, o Pitoresco"): "Teria realmente existidono século XVII um grande poeta brasileirochamado Gregório de Mattos? Não, com cer-tez.a, pelo menos em termos de história lite-rária; como escreve, na Formaçáo da Litera-tura Brasileira, o sr. Antonio Candido, 'em-bora tenha permanecido na tradição local daBahia, ele não existiu literariamente (emperspectiva histórica) até o Romantismo,quando foi redescoberto, sobretudo graças aVarnhagen; e só depois de 1882 e da ediçãoVale Cabral pôde ser devidamente avaliado.Antes disso, não influiu, não contribuiu paraformar o nosso sistema literário e tão obscuropermaneceu sob os seus manuscritos, queBarbosa Machado, o minucioso erudito daBiblioteca Lusitana (174L-17 58), ignora-ocompletamente, embora registre quanto João

de Brito e Lima pôde alcançar' (I,18). Muitomais tarde, já em pleno século XIX e depoisda independência, Ferdinand Denis tampou-co o menciona no Resumo da llistória Lite-úria de Portugal e do Brasil; a sua inclusãona cronologia literária do século XVII é, pois,um dos mais espantosos exemplos de involun-tária mistificação histórica que se podemaPresentar'"(2)

Oswald de Andrade ("4 Sátira na Literatu-ra Brasileira", 1945) opinava em sentido dia-metralmente oposto: "Gregório de Mattos foisem dúüda uma das maiores figuras de nossaliteratura. Técnica, riqueza verbal, imagina-ção e independência, curiosidade e força emtodos os gêneros, eis o que maÍca a sua obrae indica desde então os rumos da literaturanacional."(3)

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O PÂRADOXO BORGIANOF/OU PESSOANO

Estamos, pois, diante de umverdadeiro pa-radoxo borgiano, já que à "questão da ori-gem" se soma a da identidade oupseudoiden-tidade de um autor "patronímico". Um dosmaiores poetas brasileiros anteriores à Mo-dernidade, aquele cuja existência é justa-mente mais fundamental para que possamoscoexistir com ela e nos sentirmos legatáriosde uma tradição viva, parece não ter existidoliterariamente "em perspectiva histórica".Como Ulisses, o mítico fundador de Lisboa,que - no poema de Fernando Pessoa - FOIPOR NAO SER EXISTINDO, também Gre-gório de Mattos, esse "ulterior demônio ime-morial" (Mallarmé), parece ter-nos fundadoexatamente por não ter existido, ou por tersobre-existido esteticamente à força de nãoser historicamente. O MITO E O NADAQUE É TUDO, completa Fernando Pessoano mesmo poema.

Nessa aparente contradição entre presença(pregnância) poética e ausência histórica, quefaz de Gregório de Mattos uma espécie dedemiurgo retrospectivo, abolido no passado

para melhor ativar o futuro, está em jogo nãoapenas a questão da "existência" (em termosde influência no deúr factual de nossa litera-tura), mas, sobretudo, a da própria noção de"história" que alimenta a perspectiva segun-do a qual essa existência é negada, é dadacomo uma não-existênciâ (enquanto valor"formativo" em termos literários).(a)

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PERSPECTIVA TISTÓRICAE IDEOI,OGIA SUBSTANCIALISTA

De fato, essa "perspectiva histórica" foienunciada a partir de umavisão substancialis-ta da evolução literária, que responde a umideal metafísico de entificação do nacional.Se procedermos, em modo"derridiano", auma leitura desconstrutora de alguns dospressupostos básicos desse que é o mais lúci-do e elegante (enquanto articulação do mo-delo explicativo) ensaio de reconstrução his-toriográfica de nossa evolução literária, a For-mação da Literaturs Brasileira (MomentosDecisivos), 1959, de Antonio Candido, obracapital (e,por isso mesmo, merecedora nâo deculto reverencial, obnubilante, mas de discus-são crítica que lhe responda às instigaçõesmais provocativas), veremos que o tema subs-tancialista circula por seu texto. Seu propósito(anunciado no Préfacio à primeira edição) é,através da leitura "com discernimento", pormeio da qual as obras "reüvem na nossa ex-periência", acompanhar "as aventuras do es-pírito": "Neste caso, o espírito do Ocidente,procurando uma nova morada nesta parte domundo" (I,10). Nesse rastreio aventuroso dasandanças do espírito (o Ilgos, o Ser) do

Ocidente à busca de sua nova morada (a casa,o habitáculo do Í,ogos) em terras americanas,duas séries metafóricas vão-se perfilando.Uma "animista", outÍa "organicista". A pri-meira, decididamente ontológica (ausculta-

ção da "voz do Ser", tema caro à "metafísicada presença"). A outra, ligada ao pressupostoevolutivo-biológico daquela historiografiatradicional que vê reproduzir-se na literaturaum processo de floração gradativa, de cresci-mento orgânico, seja regido por uma "teleo-logia naturalista", seja pela "idéia condutora"de "individualidade" ou "espírito nacional", aoperar, sempre com dinamisrno teleológico,no encadeamento de uma sequência acabadade eventos (e a culminar necessariamentenum "classicismo nacional", correspondente,no plano político, a outro "instante de pleni-tudè", a conquista da "unidade da nação").{s)

Ambas as séries metafóricas, assim indivi-duadas. se comunicam no substancialismoque lhes dá coloratura. Por isso pode-se ler naFormaçáo: "A nossa literatura é galho secun-dário da portuguesa, por sua vez arbusto desegunda ordem no jardim das Musas..." Aleitura dessa "literatura pobre e fraca" de-manda "carinho e apreço" (sem prejuízo do"discernimento", atÍibuto do "espírito críti-

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co"), pois: "Se não for amada, não revelará asua mensagem." A leitura "com discerni-mento", desde que amorosa, "anima" asobras. Vale dizer: dálhes anima, alma, fá-lasexprimir a voz do I-OGOS que emigrou doOcidente e se transplantou para o não tãoedênico Jardim americano, onde sua "aclima-ção" será "penosa" e requererá, para serbemcompreendida, o cuidado de nossa escuta(leitura amorosa): "Ninguém, além de nós,poderá dar vida a essas tentativas muitasvezes débeis, outras vezes fortes, sempre to-cantes, em que os homens do passado, nofundo de uma terra inculta, em meio a umaaclimação penosa da cultura européia, procu-ravam estilizar para nós, seus descendentes,os sentimentos que experimentavam, as ob-servações que faziam, - dos quais se formaramos nossos. " A dupla série metafórica mostra-se precatadamente antiufanista,disfórica: ogalho transplantado é "secundário" e o arbus-to de que foi extraído é "de segunda ordem";por sua vez, a recolha do LOGOS transmigra-do e seu cultivo na nova morada não terá nadade paradisíaco (palavra que significa etimolo-gicamente "jardim"): a terra ê "inculta" e a"aclimação" (a aculturação) há de ser ..peno-sa".

A ENCARNAçÁO LITERÁRIADO ESPÍRITO NACIONAL

O impasse se resolve pela adoção da "pers-pectiva histórica". Se ao "espiríto do Oci-dente" coube encarnar-se nas novas terras daentão América Portuguesa, incumbe ao críti-co-historiador Íetraçar o itinerário de parou-sía desse Iogos que, como uma árvore, ou,mais modestamente, um arbusto, teve de serreplantado, germinar, florescer, para um dia,quiçá, copar-se como árvorevigorosa e plena-mente formada: a literatuÍa nacional. Oconceito metafísico de história, segundo Der-rida, envolve a idéia de linearidade e a decontinuidade: é um esquema linear de desen-rolamento da presenç4 obediente ao modelo"épico". Compreende-se, assim, por que setorna necessário, para essa "perspectiva his-tórica", determinar "quando e como se defi-niu uma continuidade ininterrupta de obras eautores, cientes quase sempÍe de integraremum pÍocesso de formação literária" (I,25).Por que se busca individuar "uma tradiçãocontínua" de "estilos, temas, formas ou preo-cupações". Por que é necessário um "come-

ço":" Já que é preciso um começo, tomeicomo ponto de partida as Academias dos Se-

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lctos e dos Renascidos e os primeiros traba-lhos de Cláudio Manuel da Costa. arredon-dando, para facilitar, a data de 1750, na ver-dade puramente convencional" (I,25).

A "perspectiva histórica" é, pois , uma pers-pectiva ideológica. E como tal se manifesta,quando o critério de pertinência que a rege éexplicitado: "O leitor perceberá que me colo-quei deliberadamente no ângulo dos nossosprimeiros românticos e dos críticos estrangei-ros que, antes deles, localizaram na fase arcá-dica o início de nossa verdadeira literatura,graças à manifestação de temas, notadamenteo Indianismo, que dominarão a produção oi-tocentista." Rever "na perspectiva atual" aconcepção desses críticos, que entenderam "aliteratura do Brasil como expressão da reali-dade local e, ao mesmo tempo, elemento po-sitivo na construção nacional", - eis a tarefaque se propõe a Formaçáo. Esse duplo "es-forço" (ou articulação) de "construção" e de"expressão" é visto (e a redundância enfáticaestá no texto original, I,26) como uma "dispo-sição do espírito, historicamente do maiorproveito", que "exprime certa encarnação li-tcrária do espírito nacional".(6) Por outro la-do, num movimento de contrapartida, que

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r csponde à já sublinhada postura "disfórica"rlr t'rÍlico, é ressalvado que a mesma disposi-çÍìo proveitosa pode muitas vezes redundarrros t:scritores "em prejuízo e desnorteio, sob() rspccto estético", o que, no limite, excluiccrlls de suas manifestaçÕes do "terreno es-rrccíl ico das belasletras".

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O PRTVILÉGIO DAFUNçÃO REFERENCIALE DA FUNÇÁO EMOTTVA

Fica, assim, definido o caráter "convencio-nal", convencionado (e, pois, já nesse primei-ro nível, ideológico) da alegada "perspectivahistórica". Essa perspectiva, além de não ex-cluir outras orientações, supostamente não-históricas, - é o que está postulado em I,25- não poderá, ademais, como adiante vere-mos, deixar de admitir a existência de umaoutÍa noção não-homogênea de história lite-rária, igualmente "sensível à dinâmica dasobras no tempo", mas disposta a encará-la porum enfoque nãolinear de evolução. Istoposto, cabe passar a uma nova etapa do tra-balho "desconstrutor". Impõe-se agora exa-minar o "modelo de leitura" que correspondea essa "perspectiva histórica", que the é soli-dário como o seu correspondente especular(de "espelho") no plano que chamarei "semi-ológico".

Em "Literatura como sistema" (1,23-25),Antonio Candido expõe uma concepção es-trutural da literatura, articulada num esque-ma triádico: 1) produçáo ("conjunto de pro-

rlrrtrlrcs literários, mais ou menos conscientesrkr scu papel"); 2) recepçáo ("conjunto deÍcccptores, formando os diferentes tipos degtriltlico, sem os quais a obra não vive"); 3)lrnnsmissáo: "um mecanismo transmissor.(rlc modo geral, uma linguagem, traduzida emoitilos), que liga uns aos outros". Esse esque-nur triádico de "elementos" responde a umaklóia de literatura como "tipo de comunica-çÍlo inter-humana" e "sistema simbólico".Nndu mais opoÍtuno e justificado, portanto,rkr que colacioná-lo com outro modelo estru-IurirÌ, aquele desenhado por Roman Jakob-ron cm "Linguistics and Poetics'í7) para o fimdc cstudar as "funções da linguagem" e, entreclus, definir o lugar da "função poética". Es-crcve Jakobson: "Para se ter uma idéia geraldcssas funções, é mister uma perspectiva su-nrdria dos fatores constitutivos de todo pro-ccsso lingüístico, de todo ato de comunicaçãovcrbal. O REMETENTE envia uma MEN-SAGEM ao DESTINATÁRIO. Para ser efi-cnz, a mensagem requer um CONTEXTO aque se refere (ou referente, em outra nomen-clutura, algo ambígua), apreensível pelo des-linatário, e que seja verbal ou suscetível devcrbalização; um CÓDIGO, total ou parcial-nlcnte comum ao remetente e ao destinatário

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(ou, em outras palavras, ao codificador e aodecodificador da mensagem); e , finalmente,um CONTACTO, um canal físico e umaconexão psicológica entÍe o remetente e odestinatário, que os capacite a ambos a entra-rem ou permaneceÍem em comunicação," Oesquema jakobsoniano é o seguinte:

REMETBNTE

CONTEXTO(REFERENTE)

MENS^GEM DFSflNATÁFJo

CONTACTO

cóDrco

Subsumindo nele o de Antonio Candido.teremos:

RF-ÀLTDADE("dif.cntd dt É. d.ftalidâ&", 1,2,{)

PRODUIOR COMUNICADO(OBRAI5,2ó) RECEPTOE(COMUNI.(coMuNI-............................... ......CANDO, PUAUCO,CANTqARTTS CONTACTO 15,2ó)TÀ l-'s'26) ('d@nto & @rtlclo

6186 h6d'L2,|)

cóDco("@.i.mlt.t$ls'.'t!tút ú. rd@iaLdqli!o.-,I,z])

Para executar a operação que nos propuse-mos, foi necessário complementar a termino-logia do vol. I da Formaçáo da LiteraturaBrasileira ("Introdução: l.Literatura como

niritcnra") com a de Literatura e Sociedade,I t)(rS ("A literatura e a vida social" , 1957-58);oxtc último ensaio, com seu título original"^rtc e Sociedade", Boletim de Psicologia, n035-36, Ano X, S.Paulo, 1958, vern, aliás, ex-t)rcssamente referido em nota de rodapé ao"f'refácio" de 1962 à2a. ed. da Formação, ànltura em que a "existência do triângulo'urtor-obra-público' em interação dinâmica"ô thda como conditio sine qua non para umalltcratura "se configurar plenamente comorlfitcma articulado". Note-se que, na Forma-11ío (I,23), entre os três elementos que seconjugam no modelo, a MENSAGEM (o tex-to, a informação estética, a obra) não é postacm relevo; antes, a ela se alude metonimica-tncnte, pois a ênfase é dada ao MECANIS-MO TRANSMISSOR, ao veículo da trans-mlssão, e não propriamente à TRANSMIS-SÀO em si mesma. à MENSAGEM TRANS-MITIDA, à sua material idade enquanto,TEXTO.

Prosseguindo na comparação, temos que,pura Jakobson, a cada um dos seis "fatores"tlc seu modelo, corresponde uma dada "fun-çÍlo da linguagem". Assim, à orientação cen-tÍudâ no REMETENTE. corresoonde a

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FUNÇÃO EMOTIVA OU EXPRESSIVAtambém chamada por Karl Bühler KUND-GABEFUNKTION, função de "exterioriza-ção" ou de "expressão"; função de "exteriori-zaçáo psíquica", como diria J. Mattoso Câma-ra Jr.(8). No modelo de Candido, ao pólo doPRODUTOR ou COMUNICANTE corres-ponderia a função de exprimir "as veleidadesmais profundas do indivíduo" (1,23-24); ou,como está explicitado em II,364, numa passa-gem em que se fala da "crítica dos criadores"e de seu aspecto programático: "definir assuas próprias intenções, até então meras ve-leidades ou impulsos subconscientes", o "so-nho interior"; em LS, à p.26, a arte é definidacomo "comunicação expressiva, expressão derealidades profundamente radicadas no artis-ta, mais que transmissão de noções e concei-tos"; nesse mesmo passo, o papel essencial da"intuição" é frisado; aplaude-se então na "es-tética idealista" de Croce, perante a qual aarte "exprime apenas traços irredutíveis dapersonalidade", aquilo que constituiria o seu"mérito" (sem embargo das objeções do so-ciólogo às "consequências teóricas" dessa es-tética): "assinalar este aspecto intuitivo e ex-pressivo da arte"; ainda em IJ,30, a obra évista como "veículo das suas (NB: do artista)

tuspíraçoes individuais mais profundas,'. Até acscolha, reiterada, da palavra "veleidades" éturpri um bom índice da tintura emotivo-ex-prcssiva que colore a postura do COMUM-C^NTE (PRODUTOR, ARTISTA) no mo-dclo de Candido: "veleidade", no PequenoÂurélio, tem as acepções de ,,vontade ìmper-fcita; intenção fugaz; capricho; leviandãde;utopia; volubilidade"; no Dicionário Etimo-lóglco Nova Fronteira, registra-se ..vontadelmperfeita, hesitante", como acepção origi-nal, e "pretensão" como acepção extensiva,csclarecendo-se que se trata de adaptação dofr, velleité,. do lat. velteitas,-atis, de velle,"querer", Aquilo que Jakobson denominaFUNçAO EMOTIVA, poderíamos, pois,com apoio em Candido, chamar FUNÇÃOCOMUNICATIVO-EXPRESSIVA. Isto im-plica uma translação para outro.,fator',, oCONTEXTO ou REFERENTE. noqual estáccntrada a FUNÇÃo REFERENCTÁL DE-NOTATIVA COGÌ{TIIVA Trata-se, de fa-to, segundo Candido, de interpretar as ,.dife-rcntes esferas da realidade" (á que, no ,.sis-tcma simbólico" que é a literatura, aquelas"veleidades mais profundas do indivíduo setransformam em elementos de contacto entreos homens, e de INTERPRETAÇÃO DAS

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DIFERENTES ESFERAS DA REALI-DADE"). Ou seja, o que está emjogo aqui sãoos "fatores externos" ou de "contexto" (I,1.6;I,S, 3-9), "fatores externos" que, como subli-nha com toda a nzão o crítico, tornam-se"internos" no momento em que dialetica-mente, desempenham "um certo gapel naconstituição da estrutura" da obra. E a "ma-téria do livro" enquanto "fator da própriaconstrução artística" (I5,7). A função centra-da no fator CONTACTO (a função FATICA,designação que Jakobson foi buscar na phaticcommunion de Mallinowski) também é re-conhecida no modelo de Candido: como de-corre da citação acima, na literatura, enquan-to "sistema simbólico", a função COMUNI-CATIVO-EXPRESSIVÁ" exercida pelo CO-MUNICANTE através do MECANISMOTRANSMISSOR de que dispõe, engendra"elementos de CONTACTO entre os ho-mens", vale dizer., entre PRODUTOR (CO-MUNICANTE) e RECEPTOR (COMUNI-CANDO, DESTINATÁRIO, PUBLICO).Trata-se, no modelo de Candido, mais acen-tuadamente, de uma função TRANSIVO-INTEGRADORA ou melhor dizendo, BI-TRÀNSITIVA urna vez que essa função de"vinculação" rru "elo" não ii-a apenas no es-

tabelecimento do contacto linguístico entreos membros de uma comunidade, mas, no"sistema simbólico" chamado "literatura".afeta o RECEPTOR ou PÚBLICO "comoalguém para quem se exprime algo" (LS,26).A essa orientação voltada para o DESïNA-TARIO, Jakobson denomina FUNÇAOCONATIVA (do latim, conatum: impulso,esforço, ação que procura impor-se a umaresistência ou suscitar uma reação). É o cam-po da APPELFUNKTION de Bühler, tunçãode "apelo", "exortativa", "persuasiva". AquiCandido parece situar o elemento "efeito" do"processo de comunicação" (LS,26), já que setrataria, no caso da litetatura, de um processode tomada de "consciência" da "existênciaespiritual e social" de um povo (PUBLICO),II,369, e da conseqüente formação de "pa-drÕes" de "pensamento" ou "comportamen-to" (r,24). A FUNÇÃO CONATIVA de Ja-kobson poderia, em Candido, com ênfase noque lhe é distintivo, chamar-se FUNÇÃOCONSCIENTIZADORA.

ÌVas o modelo de Jakobson reconhece ain-da duas outras funQões: a METALIN-GUÍSTICA, centrada no fator CÓDIGO, e aPOETICA, fulcrada na própria MENSA-

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GEM, auto-referencial portanto, já que enfo-ca o aspecto sensível, a configuração materialdo texto. No modelo de Candido, a função"metalinguística" é vista apenas enquanto ex-plicitação do que seja o MECANISMOTRANSMISSOR ("uma linguagem, traduzi-da em estilos"), cuja função TRANSITIVO-INTEGRADORA é enfatizada (l;?3: meca-nismo "que liga uns a outros", ou seja, PRO-DUTORES a RECEPTORES). A tunção"poêtica" também não é posta em relevo, jáque o próprio "texto" é introduzido metoni-micamente no modelo triádico, pondo-se aênfase, mais uma vez, no seu veículo, aquelemesmo MECANISMO provido de funçãoTRANSITIVO-INTEGRADORA. Que aFUNÇÁO POÉïCA e a FUNÇÃO META-LINGUÍSTICA possam aliar-se numa práti-ca literária com dominante lúdica ou crítico-escritural, é algo que parece não caber nessamodelização triádica da literatura como "sis-tema simbólico" de "comunicação inter-hu-mana".(e)

Isto posto, já é possivel chegar a uma pri-meira conclusão. O modelo semiológico, ar-ticulado por Antonio Candido para descrevera formação da literatura brasileira, privilegia

as funções EMOTIVA e REFERENCIAI.acopla-das na função COMUNICATIVO-EXi'RESSIVA de exteriorização das "velei-

dades mais profundas do indiúduo" e de "in-

terpretação das diferentes esferas da reali-

dade".

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A GENERALTzAçÁo oo MoDELonoruÁNnco E suA ABsot.unzlçÁo

EM MODELO DA LITERATURA

. O corolário dessa primeira conclusão éimediato: a literatura que priviìegia a funçãoEMOTIVA é, na lição de Jakobson, a litera-tura romântica, expressão do euJírico. Quan-do ao privilégio dessa função EMOïVA sealia uma vocação igualmente enfática para afunção REFERENCIAL (para a literarura da34. pessoa pronominal, objetiva, descritiva, talcomo caracterizada pela épica), é possíveldizer que estamos diante de um modelo lite-rário de tipo romântico imbuído de aspi-raçóes classicizantes (aspiraçÕes a converter-se, num momento de apogeu, em "classicismonacional"). A constituição desse modelo, re-pita-se, coincide, não por mero acaso, com oesquema proposto pela historiografia literá-ria do século passado, voltada para o desvela-mento evolutivo-gradualista da "individuali-dade nacional". E o que refere Jauss: "A novaHistória das Literaturas Nacionais entravaem concorrência no plano das idéias com ahistória política, pretendendo mostrar, me-diante o encadeamento coerente de todos osfenômenos literários. como a individualidade

ideal de uma nação se desenvolvia desde osseus começos quase-míticos até sua plenarealização nurn classicismo nacional."(r0) As-sim também poderia seÍ descrito o projeto"dos nossos primeiÍos românticos e dos críti-cos estrangeiÍos que, antes deles, localizaramna fase arcádica o início de nossa verdadeiraliteratura (I,25); projeto que Antonio Candi-do se propõe ultimar na Formaçáo, "revendo-o na perspectiva atual". Trata-se de um pro-jeto que o próprio crítico define como "pro-cesso ret i l íneo de abrasi le i ramento"

. (LS,107), "processo de construçao genealógi-ca" (LS,206), com o qual "o ponto de vistamoderno" tenderia a concordar. feitas, evi-dentemente, as ressalvas que deslocam umestágio de reÍlexão da fase ingênua e triunfa-lista para a fase propriamente crítica: "o querealmente interessa é investigar como se for-mou aqui uma literatura, concebida menoscomo apoteose de cambucás e morubixabas,de sertanejos e cachoeiras, do que como ma-nifestação dos grandes problemas do homemdo Ocidente nas novas condiQões de existên-cia" (LS; 108).

É óbvio que, nem por se definir expressa-mente como orientado por uma aparente-

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mente isenta "perspectiva histórica", esseprojeto deixa de se manifestar, ainda nessenível, como ideológico. De fato, o projetoconverte o interesse particular do Romantis-mo nacionalista (a perspectiva romântico-missionária) em "verdade" (interesse) histo-riográfica geral ("nossa VERDADEIRA lite-raïura",I,25). Por essa óptica dirigida é enfo-cado na Formação o que seja "literatura" en-quanto "sistema simbólico"; todavia, aoconceito assim resultante. se confere caráterdefinitório geral. Ou seja, no conceito defini-dor, as características distintivas do que seja"literatura" são tomadas de empréstimo à vi-são específica e particularizante que, do fenô-meno literário, se faz o próprio Romantis-mo... Estamos, pois, em pleno "círculo her-menêutico": o modelo de explicação, que co-meça por definir, num plano de generalidade,o que seja literatura como "sistema simbóli-co", extrai as notas distintivas dessa definição,que se propõe como universal, do própriofenômeno literário singularizado que pre-tende explicar (a evolução da literatura brasi-leira do arcadismo pré-romântico, até o ad-vento, com Machado de Assis, do momentocrítico do nacionalismo pós-romântico, já,por assim dizer, decantado em "classicismo").

Âqui se coloca a questão da "objetividade" edo que nesta possa haver de relativo (de ilu-sório, portanto).(tt)"Perspectiva histórica","ponto de vista histórico" (I,24), "orientaçãohistórica" (I,25) são expressões que não po-dem ser aceitas como verdades objetivas, do-tadas de unicidade de sentido, apodíticas.Antes, devem ser reexaminadas em seus ele-mentos lexicais constitutivos. Como "pers-pectiva", "ponto de vista" ou "orientação",outra coisa não definem senão um enfoqueparticularizante: aquele peculiar ao projetohistoriográfico de nosso Romantismo nacio-nalista; enquanto "histórico" (o "ponto devista") ou "históricas" (a "perspectiva" ou a"orientação"), só o são na medida em querespondem a um conceito também particulare também ideológico de história: a históriaretilínea, comprometida com uma concepçãometafísica da própria história, a culminar naentificação da idéia de nacionalidade, segun-do o "esquema linear do desenrolamento dapresença" deslindado por Derrida na Grama-tologia, o mesmo esquema substancialista damarcha linear e contínua da evolução literá-ria, questionado por Jauss em nosso campo deestudos.(12)

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O EFEITO SEMIOLÓGICO

A exclusão - o "seqüestro" - do Barroco naFormaçâo da Literatura Brasileira não é,portanto, meramente o resultado objetivo daadoção de uma "orientaçâo histórica", quetimbra em separar literatura, como "sistema",de "manifestaçôes literárias" incipientes e as-sistemáticas. Tampouco é "histórica", numsentido uúvoco e objetivo, a "perspectiva"que dá pela inexistência de Gregório de Mat-tos para efeito da formação de nosso "sistemaliterârio" (1,24). Essa exclusão - esse "seqües-tro" - e também essa inexistência literária,dados como "históricos" no nível manifesto,são, perante uma visão "desconstrutora",efeitos, no nível profundo, latente, do próprio"modelo semiológico" engenhosamente arti-culado pelo autor da Formaçáo. Modelo queconfere à literatura como tal, tout court, ascaracterísticas peculiares ao projeto literáriodo Romantismo ontológico-nacionalista.Modelo que enfatiza o aspecto "comunicacio-nal" e "integrativo" da atividade literária, talcomo este se teria manifestado na peculiarsíntese brasileira de classicismo e romantis-mo ("mistura do artesão neoclássico ao bardoromântico", I,28), da qual emerge "uma lite-

r0tu ra empenhada", com "sentimento de mis-t0o" em grau tão elevado que chegava, porvozcs, a tolher o "exercício da fantasia", masquc, por outro lado, era capaz de conquistar"rcntido histórico e excepcional poder comu-nlcativo" e, assim, de tornar-se a "língua geralduma sociedade à busca do autoconhecimen-lo". Nesse modelo, à evidência, não cabe oBurroco, em cuja estética são enfatizadas aÍ[nçóo poética e a funçáo metalingüística, a0uto-reflexividade do texto e a autotematiza-ç0o inter-e-intratextual do código (meta-so-nctos que desarmam e desnudam a estruturado sonèto, por exemplo; citação, paráïrase etrudução como dispositivos plagiotrópicos dedlulogismo literário e desfrute retórico de es-lllcmas codificados).(t3) Não cabe o Barroco,olttética da "superabundância e do desperdí-clo", como o definiu Severo Sarduy: "Contra-rlsmente à linguagem comunicativa, econô-mica, austera, reduzida à sua funcionalidade- servir de veículo a uma informação - allnguagem barroca se compraz no suplemen-to, na demasia e na perda parcial de seu obje-to."(r{) O Barroco, poética da "vertigem dolúdico", da "ludicização absoluta de suas for-mas", como o tem conceituado entre nós Af-fonso Ávila.(ls) O Barroco oue - na conceD-

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ção de Octaüo Paz, referindo-se a Sor JuanaInés de la Cruz, contemporânea de nossoGregório, - produziu, no espaço americano,umpoema crítico, reflexivo e metalingüístico,um "poema da aventura do conhecimento",Primero Sueío (ca.1685), que se anteciparia,como tal, a esse poema-limite da Moderni-dade que é o Coup de Dés de Mallarmé...(t6)

A seguir, o que é efeito semiológico implicito na estrutura do modelo, converte-se ex-plicitamente em juízo de valor (dubitativo,restritivo) na Presença da Literatura Brasi-leira (vol.I, "Das origens ao Romantismo'r),1964. Nessa obra, quando já ia em mais dametade o século mesmo da revalorização doBarroco (Dâmaso Alonso, Gerardo Diego,Garcia Lorca na Espanha; Eliot e os "meta-physical poets" em língua inglesa; WalterBenjamin e a reavaliação da "alegoria" comodispositivo estético no "auto fúnebre" da lite-ratura alemã do período; Luciano Anceschi ea polêmica anti-Croce no quadro do "Erme-tismo" italiano), coloca-se em dúvida, à vistados "extremos do barroco literário'j tanto a"autenticidade" quanto a "permanência dasua comunicação". Aqui, "autenticidade" e"permanência" pôem-se como valores "aurá-

llgor!!, não-críticos, a-históricos, na medidalm que são aferidos por um cânon axiológicolbtoluto, alçado à condição de verdade atem-

Poral: o do Romantismo de aspirações classi-Olantes, onde já começaÍia a latejar uma vo-Ole[o "realista" - outro nome, mais palatá-vcl, para "classicismo nacional"; um Roman-tllmo purgado de sua indisciplina e de suasflxaçÕes localistas (no "pitoresco" e no "ma-tarlal bruto da experiência") graças ao "rigor"| à "contensão emocional" do arcadismottÊoclássico que lhe serviu de vestíbulo nati-Vl8ta. Na mesma obra, na parte da antologiaf0Ecrvada a Gregório de Mattos, a contribui-glo de nosso maior poeta barroco (e um dosmaioÍes de toda nossa literatura) é julgadaloveramente: "Como hoje a conhecemos, alua obra é irregular, valendo poruma minoriadc versos." (Esse julgamento ecoa outro, de1955, do ensaio "O Escritor e o Público": "...ogrande irregular sem ressonância nem in-fluência que foi Gregório de Mattos na suafase brasileira", LS,92).('n

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O MODELO LINEAR EATRADIçÁO CONTÍNUA

A Formaçáo privilegia - e o deixa visívelcomo uma glosa que lhe percorre as entreli-nhas - um certo tipo de história: a evolutivo-linear-integrativa, empenhada em demarcar,de modo encadeado e coerente, o roteiro de"encarnação literária do espírito nacio-nal"(l;26); um certo tipo de tradiçáo, ou me-lhor, "uma certa continuidade da tradição"(I,16): aquela que, "nascida no domínio dasevoluções naturais", foi "transposta para o doespírito", ordenando as produções deste nu-ma "continuidade substancial", harmoniosa.excÌudente de toda perturbação que não caibanessa progressão finalista(r8) (veja-se, no casodo próprio Romantismo que lhe serve de pa-radigma, a minimização de Sousândrade, porsinal "barroquizante" em largos aspectos desua dicção, notadamente no Guesa); uma cer-ta concepção veicular de Iiteratura: a "emoti-vo-comunicacional", que preside à vertente"canonizada" de nosso Romantismo.(re) Combase nesses pressupostos, constitui o seu mo-delo de descrição e de explicação. O modeloé necessariamente redutor: o que nele nãocabe é posto à parte, rotulado àe "manifes-

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leçôcs literárias" por oposição à "literatura"PÍopriamente dita, à literatura enquanto "sis-loma". Aqui, para garantir a eficácia do mo-dolo, reforça-se a sua lógica interna com umlflumento "quantitativo". Já que não se podeno80r àquelas "manifestações" um mínimo de0tÍáter sistemático e de interação triádica -pols houve "produtores", e notáveis, do portedc Gregório na poesia e do Pe. Vieira na

Prosa; houve "textos" - e dos maiores de nossalltcratura - ainda que "veiculados" por "me-0!nismos transmissores" peculiares à época:I publicidade da comunicação oral; a "maladlrcta" dos "códices de mão"; e houve "públi-oo": Gregório, escreve Segismundo Spina,rtíol, sem dúvida, o primeiro prelo e o primei-to jornal que circulou na Colônia"; e mais:"Gozou de extraordinária reputação a suamordacidade literária: o Pe. Manuel Ber-nurdes a ela se refere (Nova Floresta) e VieiraCcrta vez se queixou de que maior fruto pro-duziam as sátiras de Gregório do que seuslormões"; já que tudo isso é inegável ("... opocta andarilho não é propriamente um mar-jlnal: ao contráÍio, parece inserir-se commuito maior pertinência na sociedade, naquBlidade de cantador transmissor de poesiao notícia, comunicador...", J.M.Wisnik), en-

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tão releva mostrar, do ângulo quantitativo,como é relativo esse público ("ralas e esparsasmanifestações sem ressonância", I,16; "os cír-culos popülares de cantigas e anedotas", LS,92).(20) Só assim a metáfora ontológica da sim-plicidade da "origern", convencionalmentedatável (1750), e a metáfora genealógica daseqüência coeÍente de eventos, regidos pelotropismo de um telos ou zênite comum, pode-rão sustentaÍ-se e afirmar-se, tout court, co-mo "perspectiva histórica".

UMA LITERATURA INTEGRADA

O problema do público (da "recepção" e do"cfcito") na Formaçáo da Literatura Brasi-lclrn - obra que poderia também chamar-selllrtória Evolutiva do Romantismo no Bra-rll, já que nela o Barroco não tem porta deeccsso - acaba sendo tratado por um critérioh0rmonizador, de concordância, que dá ên-Íülc ao aspecto integratiyo doprocesso recep-clonal.

Polemizando com a sociologia literária deRobert Escarpit, Jauss pondera: "Não se es-Sota a relação entre literatura e público di-tcndo que toda obra tem seu público especí-flco que pode ser definido pela história e pelatociologia; que todo escritor depende domeio, das concepções e da ideologia de seupúblico, e que a condição do êxito literário38tá num livro que 'exprima o que o grupooEperava, que revele o grupo a si mesmo'." AlNso, a essa "concordância entre o projeto daobra e a expectativa do grupo social", Jausschama concepção resultante de um "objeti-vlsmo redutor", vendo nela um embaraço àoxplicação da "ação retardada" ou "durável"dus obras. A essa perspectiva sociológica de-

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terminista, prefere outra, que considera"muito mais ambiciosa": a de Auerbach, quese lhe afigura capaz de dar conta das "múlti-plas rupturas epocais na relação entre escritore Públics".(2r)

Público, na Formaçáo, é um "conjunto dereceptores" organicamente vinculado a um"conjunto de produtores" por um "mecanis-mo" que assegura a "transmissão" de um "sis-tema de obras" ligadas por (destaque-se)"DENOMTNADORES COMUNS" (r,23). Épúblico visto como componente de um siste-ma homogêneo, reconciliado e, assim, defini-do em funçâo de uma literatura descrita naperspectiva da série acabada (na linha das"Histórias da Literatura Nacionais" do séculopassado) e que aspira ao classicismo verocên-trico do sentido pleno (aquela "língua geralduma sociedade à busca de autoconhecimen-to", I,28). A esse público de "agregação', cor-responde a constituição progressiva de umcânon preferencial de obras e autores, cujareconstituição incumbe a uma historiografiaque se dá por tarefa "representar, através dahistória dos produtos de sua literatura, a es-sência duma entidade nacional em busca delamesma".(22)

Com uma perspectiva mais flexível, nãoencerrada nessa "clausura metafísica" (quesupóe também um fechamento epocal, umciclo evolutivo concluso), poderia ganhar ou-tra luz o enfoque do caso Gregório de Mattos.Um poeta que teve um primeiro público efe-tivo e documentadamente o afetou (não im-porta se esse público era reduzido, nascondições do tempo, que não eram apenasbrasileiras).{21) Um poeta cuja produção émarcantemente representativa de um estilo(o Barroco) que por sua vez a transcende eque se prolonga em seus efeitos (estilemas)para além dela no espaço literário, mesmodepois que essa obra e seu autor, como tais,tenham experimentado um processo de ocul-tação e passado de ostensivos a recessivos nohorizonte recepcional.

Por outro lado, uma concepção "objetivis-ta-reducionista ", guiada pelo critério deconcordância integrativa e pela verificação deuma "densidade apreciável" (I,16) na relaçãopúblico-autor ("vida literária"), teria dificul-dade em lidar com o problema da recepçãodas literaturas antigas, quando se têm deconsiderar "obras de autoria desconhecida,propósitos autorais não claros, relações com

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fontes e modelos apenas indiretamente dis-cerníveis"; quando, enfim, os leitores virtuaisestão inscritos no próprio texto, sob a formado "contexto das obras que o autor supunha,explícita ou implicitamente, conhecidas dopúblico que lhe era contemporâneo".(24) Nocaso de Gregório e de nosso Barroco do pe-ríodo colonial essas questÕes são muito me-nos complexas, pois, embora não haja umaverdadeira ediçáo crítica de nosso grandeavoengo do Recôncavo, há a tradição oral, háos apógrafos, há a atestação de um público edas reações que junto a este suscitou a línguaferina do "Boca do Inferno"; há, sobretudo, opróprio Barroco, que, como grande códigouniversal da literatura do tempo, dominounossa cena literária desde Camões@) e se pro-longou em nítidos traços barroquizantes napoesia dos próprios árcades, nas "monstruo-sidades escritas em português macarrônico"do "pai rococó" Odorico Mendes e na implo-são subversiva de Sousândrade, que arruína,excêntrico, a construção harmoniosa de nossoRomantismo oficial. Resolver tais questõesno plano recepcional não pode consistir emsimplesmente postular que, onde não haja umpúblico "sistêmico" (denso, concorde, inte-grado), não haverá literatura propriamente

dita e digna de registro - não haverá históriaavaliável em termos formativos - mas tão-so-mente "manifestações literárias", cénario"ralo" e "esparso", limbo afônico ("sem res-sonância") onde a voz do Ser ainda não se"encorpou", pré-história in-forme i nexistenteem "perspectiva histórica"... Que aconteceriase tìvéssemos de avalizar por um semelhantecritério "sistêmico" a existência literária deproduções tão remotas no tempo (e só recu-peradas pelos eruditos depois de séculos deolvido) como as da poesia provençal, porexemplo?

Mas, no caso de Gregório de Mattos, háainda uma circunstância relevante a conside-rar e que aguça o paradoxo: comopode inexis-tir em "perspectiva histórica" um autor que éfonte dessa mesma história?" E por intermé-dio deles e dos cronistas da época que pode-remos reconstruir com grande fidelidade oretrato da sociedade brasileira do séculoXVII", assegura S.Spina, falando de Gregórioe Vieira. "Talvez a fonte que melhor revela aopinião da época sobre os desembargadorese a Relação não seja a informação históricatradicional, mas a poesia do baiano satíricoGresório de Mattos e Guerra", salienta

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Stuart B. Schwartz.(26) Como se pode procla-mar esse vazio historiográfico, contestado poruma inscrição historial que o texto gregorianoexibe gozosamente em sua trama, seÍrr, nomesmopasso, pôr em questão apróprianoçãode história que condiciona essa perspectivaexcludente?

Isso tudo se explica, entretanto, como en-saio (admiravelmente bem conduzido no ní-vel estrito de sua proposta) de escrever ahistória literária promovendo a primeiro pla-no a "função ideológica" - no caso brasileiro,o objetivo missionário de conscientização do"nacional", peculiar ao projeto romântico.Essa função, dentre as três do conjunto deli-neado em LS,53-56, é dada como "impor-tante para o destino da obra e para a suaapreciação crítica". Mas dela também se diz,em relação à produção literária , que "demodo algum é o âmago do seu significado,como costuma parecer à observação despre-venida".

O autor da Formaçáo teve necessariamentede propender para a integração, descurandoda diferenciaçáo (LS, 27), a fim de poderconfigurá-la no desenho que lhe deu e, pois,

executar com traço harmonioso o seu progÍa-ma: "descrever o processo" (EVOLUçAOLITERARIA dotada de uma certa "CONTI-NUIDADE DA TRADIçÃO" e de "INTE-GRAçÃO ORGÂNrCA" _ou "COERÊN-CIA" quanto às'PRODUÇOES") "por meiodo qual os brasileiros" (PUBLICO) "toma-ram consciência" (FUNÇAO CONATIVO-PERSUASIVA) "da sua existência espirituale social ATRAVÉS da l i teràtura"(coNcEPÇÃo vErcuLAR DAS OBRASCOMO "MECANISMO TRANSMISSOR"de um "COMUNICADO"), "combinando demodo vário os valores universais" ( osGRANDES TEMAS.'PADRÓES UNI-VERSAIS", CODIFICADOS NUMA "TÓ-PICA" unificadoÍa das "LETRAS DO OCI-DENTE) "com a realidade local" (FUN-

ÇÃo coGNTTIVO-REFERENCTAL)"e,desta maneira, ganhando o direito de ex-primir" (FUNÇÃOEMOTTVO-COMUNI-CACIONAL, colorida indiretamente poruma alusão à FUNÇÃO POÉTICA, emboraapenas em termos de "ESTILIZAÇÃO"; "es-tilizar para nós (...) os sentimentosobservaçôes", I,10): "o seu sonho, a sua dor,o seu júbilo, a sua modesta visão das coisas edo semelhante" (II,369).

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O BAÌROCO DTIVIDOSO

Essa tarefa, ao que se pode imaginar, terásido facilitada pela reserva que o autor daFormaçáo, simpático a uma "literatura emi-nentemente interessada" (I,18), ainda quemenor ("pobre" e "fraca", I,1Q)('z?), manifestaquanto ao aspecto auto-reflexivo e lúdico daobra literária, pondo-nos de sobreaviso, sem-pre que vem a calhar, quanto à incomunica-bilidade perante os leitores, que resultaria daconversão da arte em "mera experimentaçãode recursos técnicos" (I,28); ou, ainda, aler-tando-nos contra as "pretensões excessivas doformalismo", que importariam, "nos casos ex-tÍemos, em reduzir a obra a problemas delinguagem, seja no sentido amplo da comuni-cação simbólica, seja no estrito da língua"(I,33).€3)

Essa atitude de suspeição irá depois inspi-rar, na Presença (I,15-16), a relutância, ashesitações judicativas, na abordagem do Bar-roco brasileiro. Numa primeira apreciaçãogeneralizadora, as realizações do período se-rão implicitamente desvalorizadas como pou-co originais no plano da "criação literária"("Mas o que ocorre, como expressão de cria-

ção literária, é imitação ou transposição"). Aseguir, o crítico - os críticos, pois a obra é deco-autoria, - se mostram dispostos a ressalvar,"parcialmente", o "sentimento natiüsta" ou a"lenta definição de uma consciência crítica"(vale dizer, aquilo que, em nosso Barroco, adespeito de sua alegada fragilidade no planoestético, poderia já anunciar característicasque mereceriam destaque no projeto român-tico-nacionalista...). Esse juízo avaliativo,marcado pela cautela e pela difidência, noqual parece mesmo insinuar-se (no matiz de-preciativo de termos como "imitação" e"transposição") algo do argumento silvioju-lista do "plâgio", a esta altura dos estudosintertextuais dificilmente sustentável(3), de-safoga-se mais completamente quando temem mira um poeta consideravelmente menosimportante do que Gregório, mas de inegá-veis méritos artesanais, Botelho de Oliveira.Deüa-se então exprimir claramente como re-jeição: "Estamos, antes, no âmbito do Barro-co vazio e malabarístico, contra o quai seerguerão os árcades, e que passou à posteri-dade como índice pejorativo da época" (LS,L1.l-1,12). Uma rejeição que não vacila emacomodar-se, sem crítica, aos termos de umclichê questionável: gongorismo igual a mau

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gosto, estilo rebuscado e oco. (kia-se o ver-bete "culteranismo" no Diccionario Manualda "Real Academia Espaúola", edição de1950 da Espasa Calpe: "Sistema dos cultera-nos ou cultos, que consiste em não expressarcom naturalidade e simplicidade os conceitos,mas sim falsa e amaneiradamente, por meiode vozes peregrinas, construções rebuscadase violentas, e estilo obscuro e afetado").(30)

Onde reconhecer, nas passagens citadas, ocrítico que faz o elogio da "gratuidade"(1,27)? A "gratuidade que dá asas à obra dearte", da qual seriam carentes os autores bra-sileiros, sobrecarregados, ao invés, de "fideli-dade documentária ou sentimental, que vin-cula à experiência bruta". E que a essa re-flexão ainda acrescenta: "Aliás, a coragem ouespontaneidade do gratuito é prova de ama-durecimento, no indivíduo e na civilização;aos povos jovens e aos moços, parece traiçãoe fraqueza."

É, porém, o mesmo crítico quem, num mo-vimento antiteticamente pendular em rela-ção a esse louvor do "gratuito" enquanto fatorcriativo, nega a existência em nossa literatura,"até o Modernismo". de "escritor realmente

tllfÍcil, a não ser a dificuldade fácil do rebus-câmcnto verbal" (LS, 101). Que quer dizeral0tamente esta fórmula? O Pe. Vieira, com|!u "discurso engenhoso"(31), é escritor fácil?trtusândrade o é? Euclides é fácil? Ou todos3lc$ são "falsos requintados", como o foram,[mutatis mutandis", para a crítica adversa dollmpo, Gôngora, o "anjo das trevas", oímonstruoso" Hoelderlin das traduções sofo-ollunas, Mallarmé, o "obscuro"... O êxito co-municativo do Euclides diflrcil (ou, em outroslormos, o de Augusto dos Anjos), torna-os, aUm como outro, pseudo-requintados no sen-lldo pejorativo do verbalismo vaníloquo? To-dtt csse argumento, por outro lado, nâo eluci-dtria a desconfiança do autor da Formaçãoquünto às rebuscas do estilo barroco, na épo-0t mesma da revalorização hispânica e ibero-lmcricana desse estilo?

Para a visão armada de um crítico ouedlrtingue com Ìucidez entre uma "arte delSregação" e uma "arte de segregação" (LS,27); que sustenta: "a própria literatura her-fiética apresenta fenômenos que a tornaml[o social, para o sociólogo, quanto a poesiapol í t ica ou o romance de costumes"(LS,ZS;r:a' que afirma: "Os arristas incom-

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preendidos, ou desconhecidos em seu tempo'passam realmente a viver quando a posteri-ãade define afinal o seu valor. Deste modo opúblico é fator de ligação entre o autor e a suaprópria obra" (LS, 45); que, finalmente, sus-tenta a "precedência do estético, mesmo emestudos literários de orientação ou naturezahistórica" (1,L6-17); para a visão armadadesse crítico, náo deve ter sido uma decisãosimoles rasurar a diferença do Barroco (e,

com esse gesto, "economizar" todo o Seiscen-tos) no seu modelo de explicação da formaçãode nossa literatura. Tanto mais que o Barroco- e não apenas entre nós - foi, a seu modo,uma arte da comunicação lúdica, do compro-metimento persuasivo, como também da afe-tividade erótica e da desafeição satírica, am-bas formas de afetar um público de destinatá-rios bastante corpóreos; não por nada Gregó-rio despertou ódios e foi "despachado" paraAngolí33). A noção quantitativa de públicorarefeito, à época da produção da obra, nãoparece ter aqui, no seu determinismo "objeti-vista", suficiente peso de convencimento. So-bretudo quando, para além do período coÌo-nial, as relações entre escritor e "grande pú-

blico" em nosso meio acabam sendo defini-das, emblemática e paradoxalmente, em ter-

mos também de "ausência" (LS, 101): "É queno Brasil, embora exista tÍadicionalmenteumu literatura muito acessível, na grandem0ioria, verifica-se a ausência de comunica-elo entre o escritor e a massa" (...) "Comlfcito, o escritor se habituou a produzir parapÍlblicos simpáticos, mas restritos, e a contar0om a aprovação dos grupos dirigentes, iguaÌ-mcnte reduzidos. Ora, esta circunstância. li-flda à esmagadora maioria dos iletrados queffnda hoje caÍacteÍiza o país, nunca lhe per-mltiu diálogo efetivo com a massa, ou com ump0blico de leitores suficientemente vasto pa-n iubstituir o apoio e o estímulo das peque-nlr élites." Pergunta-se então: guardadas asproporgoes, o que terá mudado essencial-m0nte em nosso "sistema literário". desde asltrülas e esparsas manifestações sem resso-lìlncia" de nossa pré-literatura assistêmi-0t?(3) O fato de Gregório, sem prejuízo de terípcrmanecido na tradição local da Bahia",nlo ter sido redescoberto senão no Roman-tltmo (I,24), não é também argumento irres-pondÍvel para quem não entretenha umaConcepção linear e finalista da história literá-lla; para quem não a veja da perspectiva do0lclo acabado, mas antes como o movimento[mpre cambiante da diferença; para quem

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esteja mais interessado nos momentos de rup-tura e transformação (índices sismográficosde uma temporalidade aberta, onde o futurojá se anuncia) do que nos "momentos decisi-vos" (formativos numa acepção retilínea deescalonamento ontogenealógico) encadea-dos com vistas a um instante de apogeu outermo conclusivo. Da perspectiva dessa tem-poralidade não restrita(35), o caso Gregório,enquanto hiato no horizonte recepcional, nãodifere fundamentalmente do caso Gôngora,na Espanha; do caso (ainda irresolvido e semresgate) do Barroco português6); dos casosCaviedes e Hernando Domínguez Camargona América Hispânica, para ficar nessesexemplos de todo em todo expressivos. Faça-mos a propósito um excurso.

A"gongorofobia", o horror a Gôngora, tra-duzido em "ausência" ("menosprezo e igno-rância") do poeta das Soledades, durou, nomínimo, dois séculos na literatura espanhola;o século XMII, que "reage em direção aoracionalismo, à sobriedade", e no qual "a poe-sia se converte em prosa"; e o século XIX,"total, absolutamente refratário a Gôngora".É o que afirma Gerardo Diego, em sua intro-dução à Antología Poética en Honor de Gón-

;orr, publicada em\927,na ocasião do tercei-fo ccntenário da morte do poeta.(37) O augedo processo de rejeiçáo ocorreu, segundol)lcgo, entre "1850-1900, época da mais tristeIndigência, triunfo da gongorofobia oficial",Ité que o resgate (o novo desdobramento,ljora favorável, da história receptiva da poe-lll gongorina) começa a apontar com oyunde renovador das letras hispano-ameri-clnas, Rubén Darío, precedido pelos simbo-lhtos franceses (que encontravam analogiasantre Gôngora e Mallarmé...). Ainda na His-lurln de la Literatura Espaftola de Juan Hur-hdo de la Serna e Angel Gonzáles Palencia,professores da Universidade de Madri, publi-ooda em 1921, pode-se ler: "Gôngora acaboulondo, por suas poesias de mau gosto, o cori-íCu do culteranismo. defeituoso amaneira-mcnto literário, chamado assim por se dirigi-lGm essas poesias a leitores cultos e não aovulgo (...) O culteranismo foi um vício literá-flo relativo à expressão ou à forma que seC0racterizou pelo amaneirado, rebuscado epodantesco da linguagem; pelo empolado etfctado da frase; pela introdução de muitaspolavras novas (tomadas preferentemente dohtlm e do italiano); pela violência do hipér-huto; pelas alusões mitológicas, históricas e

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geográficas, não ao mais conhecido, porérn aomais recôndito, e pelas metáforas extrava-gantes. Há, portanto, falta de simplicidade,propriedade e clarcza na expressão; reunia,assim. o culteranismo os inconvenientes deduas decadências literárias: a decadênciaalexandrina e a decadência trovadoresca."(s)Eis, em sua forma exemplar (inclusive porquebusca antecedentes históricos em outrasfases de "degeneração" ou "decadência"), oclichê da rejeição, com todas as notas distin-tivas que o lexicalizaram em verbete, parausode manuais, antologias e dicionários. Nessesentido é que se deve entender a súmula deOtto Maria Carpeaux: "Após três séculos decalúnia e desprezo da parte dos acadêmicos eprofessores, desprezo que se refletiu até noadjetivo popular 'gongórico', Gôngora cele-brou uma ressurreição vitoriosa, o que tornouantiquados todos os velhos manuais de litera-tura espanìola e universal." (No mesmo estu-do, Carpeaux se refere à analogia entre Gôn-gora e John Donne: "O destino dos dois poe-tas é exatamente o mesmo. Durante três sé-culos, Donne foi caluniado e desprezado pe-los acadêmicos e professores, ao ponto dedesaparecer o seu nome dos manuais de his-tória literária. Parece que George Saintsbury

foi o primeiro a reconhecer, senão a significa-çllo, pelo menos a importância do mais com-plicado poeta da língua inglesa.")t3e).

O caso de Gregório de Mattos, o "Boca dolnferno", é, por sua vez, muito semelhante aodo poeta peruano Juan del Valle Caviedes, o"Diente del Parnaso". Segundo nos informao seu mais dedicado estudioso contemporâ-neo, Daniel R. Reedy, Caviedes "escreveu amaior parte de suas poesias durante o últimoquartel do século XVII, porém grande núme-ro delas não se publicaram senão quase doisséculos depois, quando Manuel de Odriozola,ajudado por Ricardo Palma, as incluiu notomo V dos Documentos Literarios del Peru(1873;."trol 6onforme Enrique Anderson Im-bert, os versos do "Diente del Parnaso" (alu-são a seu est ilo mordaz: "mordiscos de midiente", dizia) "não se publicaram nem emvida nem nos anos imediatos a sua morte, masse conheciam bem. (...) Sua poeisa - satírica,mas também religiosa e lírica - é das que têmmaior frescor no Peru colonial. Sem dúvidaocupará um lugar mais destacado do queuquele que lhe dão as histórias literárias -inclusive esta - quando se editem melhor assuas obras.'{4r) Problemas de atribuicão dis-

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cutível, de inexistência de manuscritos autó-grafos, também ocorrem corn Caviedes. Opi-na Raimundo I-azo: "Tudo em sua vida tendea fazê-lo poeta popular, antiacadêmico, decuja obra inédita, divulgada oralmente, citamos críticos, como conservadas, sete cópias ma-nuscritas, algumas das quais serviram para asedições de Manuel Odriozola (Documentos,V. Lima, 1873), Ricardo Palma (Flor de Aca-demias y Diente del Parnaso, 1899) e RubénVargas Ugarte (Obras, Lima, 1947).'(42) Fo-calizando o nosso Gregório de Mattos nocontexto do Barroco ibero-aúericano, o jámencionado Daniel R. Reedy conclui: "A im-portância das obras de Mattos transcende asua óbvia significaçáo como reflexóes acura-das sobre a üda brasileira do século XVII.Seu mérito como poeta pode seÍ encontradono talento artístico que the permitiu expres-sar-se em sua poesia religiosa e amorosa, bemcomo em seus poemas de sátira social. Em seupaís, ele é inquestionavelmente o primeiropoeta de importância maior e, com Sor JuanaInés de la Cruz e Juan del Valle Caviedes,Mattos deve ser considerado como um dostrês preeminentes poetas do Novo Mundonesse período,"(43)

Não muito diferente do destino de Ca-viedes e Gregório, é o do poeta colombianoHernando Domínguez Camargo, assim resu-mido por Guillermo Hernández del Alba nu-ma "Liminar" à edição do volume dedicado asua vida e obra: "Em resumo: sua obra literá-ria, quase desconhecida em vida do artista,deuJhe fama pósturna, logo enfraquecida; re-vive-a em Santa Fé de Bogotá ao finalizar oséculo XVIII o bibliotecário Manuel del So-corro Rodríguez; em tom menor passa às pá-ginas eruditas de José María Vergara y Ver-gara, historiador da literatura em Nova Gra-nada, de quem se fazerr' eco vários comenta-ristas pouco favoráveis a Domínguez Camar-go, até chegar agora, depois do novíssimoensaio reavaliador de Fernando Arbeláez(1956), à exata apreciação de sua obra e areceber a homenagem de quantos saberãoregozijar-se diante de tão dilatado horizontelírico iluminado pelo gênio e o engenho domelhor poeta gongorino florescido na Amé-rica."(aa) Nesse poeta, disse l*zama Lima, "ogongorismo, signo muito americano, aparececom uma apetência de frenesi inovador, derebelião desafiante, de orgulho desatado, queo leva a excessos luciferinos para obter dentro

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l .a

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do cânon gongorinq um excesso ainda maisexcessivo que os de Don tlis...{'s)

Todos esses po€tas - Gregório, Caviedes,Camargo - teriam inexistido em "perspectivahistórica"?

Gôngora ficou obliterado ou excluÍdo daconvivência literária por mais de dois séculos.Entre a morte de Gregório (1695) e o Parna-so Brasileire, de Januário da C\nha Barbosa,em cnjo ? vol. (1831) já aparecem versosseus, medeiam 13ó anos; 155 entre aqueladata e o Florilégio de Varnhagen (f850); 187se a referência for à edição Vale Cabral dasObras Poéticas (1882). Nesse interregno,além da fama na tradição oral da Búia, a"coleta manuscrita" de seus poemas (que, se-gundo Antônio Houaiss, "deve ter começadocedo sob todos os aspectos, mas por terceiros,já que parece improvável que do próprio Gre-gório"), constituiu-se através dos apógrafos,"A tradição manuscrita pôde ser sustentada,assirq ao longo do séolo XVIU, quando Gre-góriojá não existia" (...) -Trata-se de apógra-fos que 'queriam' guardar Gregório de Mat-tos, apógrafos que, lidos episodicamente, sus-tentaram a pervivência de sua obra".(6)

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De pervivência se trata: FoÍleben, comodiz ÌValter Benjamin quando fala da sobrevi-vência das obras literárias para além da épocague as üu nascer,('4

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PoR rJMÀ Hlsrónn coxsrtr,an

A história literária, renovada pela estéticada recepção, deve, segundo Jauss, conteruma"função produtiva do compreender progres-sivo". Cabe-lhe fazer a crítica tanto dos pro-cessos de inclusão (â constituição da "tradi-ção"), como dos processos de exclusão (a crí-tica do "olvido").{48)

Assim, pode-se concluir, não lhe será dadoaceitar simplesmente o sentimento do passa-do enquanto "lugar comum", como, ao invés,parece sustentaÌ a Formação (I,11), onde selê: "Quando nos colocamos ante um texto,sentimos, emboapa e, como os antecessoresimediatos, que nos formaram, e os contempo-râneos, a que nos liga a comunidade de cultu-ra; acabamos chegando a conclusões pareci-das, ressalvada a personalidade por um pe-queno timbre na maneira de apresentá-1as."Nietzsche já nos alertava com relação a essaaceitação resignada da tradição como se forauma segunda nâtureza (atitude que vê, nabusca da originalidade, uma "ilusão"; loc.cit.). Ié-se em Aumra: "Por trás dos senti-mentos há ju2os e estimativas de valor quenos foram legados na forma de sentimentos

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(propensões, aversôes). A inspiração queprovém do sentimento é neta de urnjuízó _muitas vezes de um juízo falso _ e, em todocaso, não de teu própriojuÍzo. Confiar em seusentlmento, - isto signifìca obedecer mais aoseu avô e à sua avó, e aos avós deles, do queaos deuses que estão em nós: nossa'rarãà-enossa experiência."(ae) Nessa ordem de idéías.argumentando agora com Jauss e Starobinski,ép_r^eciso que a interpretação crítica não anulea "tunção diferencial,' da obra, sua .,funçãotransgressora". A crítica não deve, portunto,excluir a exceção e assimilar o dessemelhantéem favor da constituição de um cânon imutá_ver de obras, tornado aceitável e convertidoem.patrimônio comum: deve, antes,., manter1

OfterglS-a das obras enquanto diferença;; e,assim, "pôr em relevo a descontinuidaãe dáliteÌatura em relação à históría da socie_dade.'(so)

"É sabido que a tradição - entendida comopassado vivo - nunca se nos dá feita: é umacriação'', escreve Octaüo paz em..Homenajea Sor Juana Inés de la Cruz en su TercórCentenario", ensaio de 1951, que preludia orcy gande livro_ de 1992 sobre a autora dePrimero Sueío.(sr)

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De fato, se pensarmos, com Walter Benja-min, que "a história é objeto de uma corÌstru-ção, cujo lugar não é o tempo homogêneo evazio, mas antes um tempo carregado de ago-ridade"; se entendeÍmos que "é irrecuperá-vel, arrisca desaparecer, toda imagem do pas-sado que não se deixe reconhecer como signi-ficativa pelo presente a que visa"; se ponde-rarmos que "articular historicamente o passa-do não significa reconhecêlo como ele de fatofoi", teremos conjurado, por um lado, a "ilu-são objetivista" e, por outro, a "ilusão positi-vista" do encadeamento causal dos fatos co-mo aval de sua historicidade.(52)

Compreenderemos, então, que uma coisa éa determinação, objetivamente quantificável,do primeiro público da obra, outra a históriade sua recepção. Que envolve fases de opaci-dade ou de prestígio, de ocultação ou de re-üvescência. Que não se alimenta do substan-cialismo de um "significado pleno" (hiposta-siado em "espÍrito" ou "caráter nacional"),rastreado como culminação de uma origem"simples", dada de uma vez por todas, "datá-vel", Poderemos imaginar assim, alternativa-mente, uma história literária menos como for-mação do que como transformagáo. Menos

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como processo conclusivo, do que como pro-cesso abeÍo-. Uma história onãe ,eleu"ri-osmomentos de.ruptura e transgressão e que:."ï:ldl a.tradição não de um modo ,.esËn_qatis ta " (..a. formação da conr inuiAaae ú-t-ü_ria, - espécie de transmissão ou to.f,a.niie1oIï911..: que Ts:gura no tempo o moü_mentoconjunto, definindo os lin.ârn"nto, OLt1I pq* como ela é concebida n. forrnãlção,.1, 24), mas como uma ..Aiafetica ãa fei_gunta e da resposta", um coÌlstante e renova-do questionar da diacronia pela sincro*ã.'

-

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A ORIGEM VERTIGINOSA

Nossa literatur4 articulando-se com o Bar-

roco. não teve inflincia (in'fans, o que não

iãr"f Ì.Iao teve origem "simples"' Nunca foiin-fárme, Já "nascèu" adulta, formada, nopiano dos ualores estéticos, falando o código'mais elaborado da época. Nele, no movimen-to de seus "signos em rotação", inscreveu-sedesde logo, siigularizando-se como "diferen-

õ;. o ""Àá"it"''"nto da diferença" (Derrida)

iroduz-se desde sempre: não depende daiencarnuçao" datada dê um LOGOS auroral'que decida da questão da origem como um sol,irrm sistema hèliocêntrico. Assim também a

maturidade formal (e crítica) da contribrriçãonrinoriunu putu a nossa literatura não fica na

ãep-endência do ciclo sazonal cronologica-mËnte ptoposto pela Formaçõo' Anterior .e

"*i"rioi u .ìr" .icio, põe em questão a própria

idéia gradualista que o rege' Nossa "origem"

iitt.afiu, pottunto, não foi pontual, nem "sim-ples" (núma acepção organicista, genético-

!muriònaria). Fói-"vertiginosa", para falar

àgoru .o*o Walter Benjamin, quando reto-

nïa a palavra Ursprung em seu sentido etimo-

iãnúá. ou" "nuolue

a noção de "salto"' de

"tiansioimação".t53)

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Gôngora e Quevedo, e antes de ambosCamões, que aos dois influenciou e já anun-ciava no maneirismo o código barroco, nãoabolem a contribuição diferencial - as di-fe-r€ncias chamadas Gregório de Mattos, Ca-viedes, Domíngu ez Camargo, Sor Juana Inésde la Cruz, Nesse sentido, não há propria-mente "literaturas menores", apassivadasdiante do cânon radioso, do ..significado

transcendental" das l i teraturas di tas"maiores". Assim como os cânones não são"etemos" e o belo é historicamente relativo,também não há falar em influência de mãoúnica, que não seja reprocessada e rediferen-ciada no novo ambiente que a recebeu (comoaponta Mukarovsky a propósito da questão daliteratura dos "povos pequenos")(5r). Nessaacepçâo diferencial, o Barroco americano,como o definiu kzama Lima, é uma ..arte dacontraconquista". A esse processo chama-mos, desde Oswald de Andrade, ..devoração

antropofágica".(5s)

Da perspectiva de uma historiografia não-linear, não-conclusa, relevante para o pre-sente de criação, que tenha em conta os ,.câm-bios de horizonte" de recepção e a maquina-ção "plagiotrópica" dos percursos oblíquos e

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das derivaçÕes descontínuas(56); a pluralidadee a diversidade dos "tempi"; as constelaçõestranstemporais (porém não desprovidas de"historicidade", como as üslumbrava Benja-min)(s4' dessa outra "perspectiva histórica",Gregório de Mattos existiu e existe - viveu epervive - mais do que, por exemplo, um Casi-miro de Abreu ("o maior poeta dos modosmenores que o nosso Romantismo teve", se-gundo a Formação, II, 194), e que hoje quasesó pode ser relido como Kitsch (veja-se aparódia oswaldiana dos "Meus oito anos"); ofrouxo e quérulo Casimiro que, tendo publi-cado As primaveras em 1859, foi contempo-râneo exato de Baudelaire e de Sousân-drade... É com Gregório, com sua poesia da"função metalingüística" e da "função lúdico-poética", com sua poética da "salvação atra-vés da linguagem" (ÌWisnik), que "sincroni-zam" e "dialogam" o João Cabral, engenheirode poemas combinatórios, ou a vanguardaque, já em 1955, propugnava por uma "obrade arte aberta" e por um "neobarroco"($). Éo legado de Gregório que reclamam, quasenos mesmos termos, Oswald de Andrade, fa-zendo nos anos 40 um balanço de nossa lite-ratura, e Mário Faustino, inesquecível com-panheiro de geração, ao escrever na década

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seguinte: "Gregório é o nosso primeiro poeta'popular', com audiência certa não só èntreintelectuais como em todas as camadas so-ciais, e consciente aproveitador de temas e deritmos da poesia e da música populares; onosso primeiro poeta 'participantet, no senti_Oo contemporâneo; poeta de admiráveis re_cuÍsos técnicos; e um barroco típico: assimi_lador e continuador da experiência neoclássi-ca da Renascença, sensualista visual. 'fusio-nista' (harmonizador de contrários),'feísta'(ut i l izando temas co nve n ci o n ál m e nt e'feios'), amante dos p-ormenores, culteranista,conceitualista etc."(se) É ele quem agora res-suscita, como muito bem soube ver JamesAmado, falando em especial de Caetano Ve-Ioso, na nova oralidade, lúdica e sofisticada.dos "tropicalistas" baianos, neotrovadores dacra eletrônica.(o)

Ainda que Gregório de Mattos tenha fica-do provisoriamente confinado na memórialocal e na "tradição manuscrita', (que, toda-vra, teve torças para prolongar-se através dosréculos XVII e XVII!; ainda que só tenhalido resgatado em letra impressa cerca de150 anos depois de sua morie; ainda que te-nha pesado renitentemente sobre sua repu-

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tação a "morte civil" da acusação d e "plâgio" ,a ausência do poeta, num sentido mais funda-mental , foi meramente ürtual ou larvada(mascarada). Presente, como inscrição emlinha d'água, Gregório sempre esteve, nomiolo do próprio código barroquista de queele foi operador excepcional entre nós. Um"estilo coletivo" ou "arquitetônico" (GerardoDiego), que persistiu em traços óbvios mes-mo na obra dos opositores nominais dessecódigo (os árcades mineiros da tardo-barrocaVilaRica).

Esse estilo insidioso, pervasivo, migrandopara o interior do Romantismo, já convertidonum repertório transepocal de recursos ex-pressivos, é que explica, em proporção pon-derável, a insurreição aparentemente deslo-cada no tempo, regressiva e progressiva, doGuesa sousandradino. Uma insurreiçãocontra a dominante comunicativa do códigodo período. Apesar dos pesares, Silvio Rome-ro soube avaliá-la corretamente como infra-çáo da norma: "o poeta sai quase inteira-mente fora da toada comum da poetização doseu meio; suas idéias e linguagem têm outraestrutura". Não encontrando explicação parao fenômeno. o autor da História da Literatu-

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ra Brasileira, perplexo, atribuiu-o à imperÍciaformal: ao poeta "quase inteiramente desco-nhecido" faltaria "a destreza e a habilidade daforma". Da obra de Sousândrade, desse tenc-moto clandestino, que subverte o pacto har-monioso - a "toada comum" - de nosso Ro-mantismo canônico, a Formaçáo (que endos-sa quase sem discrepância esse pacto e a par-tilha hierárquica de autores dele decorrente)praticamente trâo dá conta. Registra cautelo-samente a originalidade do poeta ("Um ori-ginal", ll,207 -208), relegado ao discretoconjunto dos "menores". Relatiüza, a seguiçesse aspecto de noüdade, obtemperando queo "ar de procura", legítimo como "inquieta-ção", nem por isso "favorece a plenitude artís-tica". Em outras palavras, a Formação re-Pete, subscrevendo-o, o juizo romeriano: ainovação - o excesso formal, já que entram noargumento alusões a "preciosismo" e ,.mau

8osto" - são interpretados como carência deperfeição no plano estético. Mas, releva no-trarr com uma agravante: de Sousândrade éconsiderado agora apenas o liwo de estréi4Harpas Selvagens, 1857 (II,416). O Guesa,um poema longo, em XIII Cantos, que, naopinião refratária do próprio Sflvio Romero,conviria ler "por inteiro", não é sequer objeto

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de avaliação, embora referido na notícia bio-bliográÍica relativa ao poeta ([I,381). Sousân-drade, ao contrário de Gregório, editou-seinsistentemente, o que, nem por isso, lhe pro-porcionou maior escuta junto ao público seucontemporâneo, que constituiria aÍinal o au-ditório "integrado" do Romantismo normati-vo. Vale dizer, na"perspectiva histórica" daForma$q também Sousândrade, o barro-quista ilegível - segundo os padrões comunsdo tempo - não existiu, não repercutiu, nãoinfluiu, pelo merìos no que toca à sua obramais fundamental (ainda que hoje não se pos-saescrever sem o autor do Guesauma histórianão convencional desse perÍodo de nossa lite-ratura, como não se pode escÍever, sem adisrupção de Hoelderlin, a do Romantismoalemão).(ó1) De uma perspectiva recepcionalmais ampla, todavia, que dê conta do heteÍo-gêneo e do descontÍnuo na história, a obra docoetâneo "preciosista" e arrevesado do "mei-go Casimiro" está precisamente entre aquelasque rompem tão totalmente com o horizontefamiliar de expectativas literárias, que seupúblico só se pode constituiÍ progressiva-mente,(62) A grande concórdia da "literaturaintegrada" só se deixa estabelecer - e recapi-tular como tal - pondo à margem, "des-agre-

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gando" o Guesa sousandradino (como antes,para simplificar a "questão da origem", Gre-gório e o Barroco haviam sido segregados nolimbo...).

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O PARADIGMAABERTO

"... I'impossible'tâche da taàrcteur' ( Benj amin ),voilà ce que vau ürc aussi 'déconstruction':

Será necessário ressalvar, num outro plano,que é o próprio autor da Formaçáo quemacaba, implicitamente, por abrir a possibili-dade de se repensar aquela sua primeira"perspectiva histórica". Na "Dialética da Ma-landragem", notável ensaio de 1970, comoque refaz, em outro desenho, o tÍaçado evo-lutivolinear desse seu livro de 59, descons-truindo-o e reconstruindo-o num novo per-curso, agora fraturado e transtemporal ("ex-pressões rutilantes, que reaparecem de modoperiódico", Dial.,88), recuperado antes pelasvias marginais do que pela estrada real. Nessenovo desenho, não linearizado, mas conste-lar, mosaical, o antes inexistente "Boca doInferno" passa a ter voz e vez.Ê ele agora umdos precursores da comicidade "malandra"em nossa literatura, valorizado, nessa ópticarenovada, não pelo veio sério-estético da poe-sia lÍrica, amorosa e religiosa, mas pela sátiradesabusada.(63) (Na Presença, I,70, embora sereconheça a preeminência do poeta na sátirabrasileir4 o quinhão satírico da poesia grego-

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riana é dado por "monótono na maior parte",coma ressalva do "pitoresco" e do "saboroso"de seus "melhores momentos". A preferênciavai para a obra lírica, que é considerada "tal-vez superior" e à qual se concedem mesmo"alguns momentos da mais alta poesia", notodo de uma obra "irregular", da qual se sal-varia apenas "urna minoria de versos").

Nessa autodesconstrução do modelo semi-ológico de leitura da Formação, por força daqual a "musa praguejadora" de Gregório deMattos é resgatada de seu anterior seqüestrosociológico, não rrais õper4 parece lícito afir-mar, o esquema "épico" da busca do momen-to logofânico de "encarnação literária do es-pírito nacional" (1,26) e do roteiro de seuretorno, hegeliano-ascensional, a si mesmo,convertido em í'consciência real" de seu "sig-nificado histórico" 0I,369). Nunca Mário deAndrade esteve tão certo, nunca foi (talvezinvoluntariamente) melhor teórico do nacio-nal, quando, no rastreio ontológico do "cará-ter" do homem brasileiro, chegou não à iden-tidade conclusa, plen4 mas à diferença: ao"descaráter" irresolvido e questionante deseu anti-herói macunaímico. (Essa perquiri-ção da "identidade" ou 'caráter nacional", no

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Machado de Assis de "Instinto de Nacionali-dade", 1873, já haüa perdido, refira-se, todasas suas pretensões de ubicação localista e deentificação substancialista; deriva talvez daí,dessa desmistiÍicação do Romantismo, a su-perioridade crítica da última fase da obra ma-chadiana, onde o ceticismo agônico ensaia,em passo figurado de reflexão, a "carnavali-zaçã:o" do esprit de finesse,,.)(ú).

Na "Dialéctica" o que importa não é maisdepreender a função integrativa, que respon-deria pelo "encorpar-se" de uma tradiçãocontínua, até o momento em que o LOGOS(o "espírito") nacional terminasse por se fa-zeÍ caÍne, amadurecido e transubstanciadonuma identidade social conclusa. Releva,agora, no plano do que se poderia chamar(com Jauss) a funçáo antecipadora da litera-tura, discernir uma antitradição, eversiva,fragmentária (aquelas periódicas "expressõesrutilantes", não explicáveis por um causalis-mo oÍganicista), capaz de nos propor modelosde conduta não-monológicos,não sujeitos aoconstrangimento da lei (autoritária), da iden'tidade (coesa) e da homogeneidade (exclu-dente do estranho). E é no não-fechamento,na exorbitância desse caráter inconcluso (não

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suscetível de "racionalizações ideológicas",entre as quais se inclui o próprio "nacionalis-mo" romântico), que se deixam vislumbrar ascontradições antinormativas que - pÍÌra usaruma outÍa formulação da "Dialética" - "faci-litarão a nossa inserção num mundo eventual-mente aberto"(65), "O caráter do personagemcômico não é o fantoche dos deterministas,mas a clarabóia a cujo raio aparece visivel-mente a liberdade de seus atos". observa W.Benjarnin num ensaio onde também sublinhaa impossibilidade de "elaborar um conceitonão-contÍaditório", a partir do "mundo exte-rior do homemagente", para o fim de "lhe darpor núcleo o caráter"(6). De sua parte, Mi-khail Bakhtin, ao considerar a crise da "inte-gridade épica", monológic4 fala no "gaio ex-cesso", no resíduo "não-encamável", no "ex-cedente irrealizado de humanidade" corres-pondente a uma "dinâmica do desacorde",que teria vazão no mundo "carnavalizado" doriso.(64

Gregório de Mattos, "o primeiro antropó-fago experimental da nossa poesia", como oviuAugusto de Campos(6), contribuiu pione!ramente para que possamos peÍÌsar esse para-digma aberto, não-dogmático, não-verocên-

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trico. E é por isso também que o reivindica-mos, no tricentésimo qüinquagésimo aniver-úrio de seu nascimento na "cidade daBahia".

São P6ulo, novcmbro da 198ó; r,.Írâo rcvista: junho/julho dc

19&7; .8sto dc 1988.

7677

POST SCRTPTUM, 1987

A "Dialética da Malandragem" foi, em cer-ta medid4 antecipada por urà ensaio de 1966(publicado em revista em 1968), que encon-trou a necessária edição cursiva em liwo re-cente, A educaçáo pela noite (São Paulo, Edi-tora Atica, 1987). Trata-se de "Literatura dedois gumes". Esse texto, ocupado sempÍe coma questão da identidade nacional, se apresen-ta, discretamente, como uma "sondagem pre-liminar". Embora se declare mais voltado pa-ra o "fato histórico" do que para o "fato esté-tico", não por acaso proclama a intenção dedesenvolver seu enfoque através de subidas edescidas entÍe os séculos XVI e XIX, semsubordinação à "seqüência cronológica estri-ta", ou seja, desprendendo-se da sucessiü-dade linear. Seu critério passa a ser o oximo-resco "sentimento dos contrários", atitudeque "procura ver em cada tendência a com-ponente opost4 de modo a apreender a rea-lidade de maneira mais dinâmica, que é sem-pre dialética". O Romantismo continua a serenfatizado por seu "maior poder de comuni-cação imediata". Mas o Barroco e o "esúlobarroco" (ainda que subsumidos porvezes noconceito mais neutro e desdiferenciador de

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Classicismo e "estilo clássico") sáovistos ago-ra poÍuma nova óptica. Deles decorreria uma"linguagem proüdencial" que, pelo ,.sensodos extremos e das oposições" (por sua capa-cidade de adequar-se à "realidade insólita oudesconhecida"), teria gerado "modalidadestão tenazes de expressão que, apesar da pas-sagem das modas literárias, muito delas per-maneceu como algo congenial ao País". Ficaassim reconhecida a congenialidadg vale dizer, a ação duradoura do Barroco. Dessemesmo "estilo barroco" de "extremos" e"contradiçôes" que, na Pnesença (I,22), inspi-rava reservas quanto "à sua autenticidade" eà "permanência da sua comunicação,'. Aqui,nesse modo oximoresco de ler a tradição, jáse prepara a grande "virada" metodológicaautodesconstrutora da "Dialética".

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NOTAS

(') O presente estudo foi elaborado a partir das notasde preleção do curso "Semiologia da evolução literária:o modelo barroco e sua produtiüdade na poesia brasi-leira", que ministrei no Semestre de Primavera de 1978na Universidade dc Yale, como Fulbright-Hays VisitingProfessoÍ. Voltei a oferecer o mesmo cuÍso em outrasoportunidades, no Programa de Estudos Pós-Gradua-dos em Comunicação e Semiótica da PUC-SP e, noSemestre de Primavera de l!)81, na Universidade doTexas em Austin, como Tinker Visiting Professor. Dei-lhe uma primeira rcdação organizada em novembro de1986, para apresentá-lo, sob forma de conferênci4 em11 de dezembro do mesmo ano, no Simpósio comemorativo dos 3í) anos de nascimento do poeta: 'GÍegóriode Mattos : O Poeta da Controvérsia", Salvador, Bahia;patrocínio: Universidade Federal da Bahia, Centro deEstudos Baianos da UFBA, Academia de l-etras daBahia, Fundação Gregório de MattoVPMS. Em 2 deagosto de 1988, expus noramente o tema, sob o título'O Barroco e a Historiografia Literária Brasileira", noCurso de Especialização em Cultura e Arte Barrocapromoüdo pela Universidade Federal de Ouro Preto,MG.

(1)

"Da razío antropofágica: a Europa sob o signo dadevoração" (1980), Colóqulo/Letras, Lisboa, Gulben-kian, n062, julho de 1981; republicado com o subtítulo"Diálogo e diferença na culiura brasileira" em DoletimBlbliogrdlicq São Paulo, BibliotecaMário de Andrade,

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v. 44,ncs,1-4, janeiro a dezembro de 1983, OutÍos estu-dos meus pcrtinentes ao Barroco e ao câso Gregório deMattos: "Poéticâ sitrcrônica", Correio da ManhÍ, Riode Janebo, 2,10.ü , hoje em A Arte no IlorizonÍe doProúvel, São Paulo, Perspectivq 196$ 'Teúo e Histó-ria'' (dezembro de 1967) e "Uma Arquitextura do Bar-roco" (28,3.71), ambos em A Op€ração do Texto, SãoPaulo, Perspectiva, 1976. Refiram-se também as passa-gerui sobre Barroco e "barroquisno" em Augusto eHaroldo de Campoq Re/Vlsáo de Sousôndrode, SãoPaulo, Edi@s Invençãq 1964; 2a" ed., Rio de Janeiro,Nova I'rontclra, 1982,

a')Wilson Marliry 'Gregório, o Pitoresco", SuplemetrtoLiteÍario de O Estado de S, Paulq 213.70.Note-secomo, ao u.sar a er.pressão "mistiÍicaçáo histórica', W.Martins canega as cores do exc€ío de A. Candido porele (Martins) preüamente citado, dandolhe uma cono-tação "apocalÍptica".

(3)

Conferência pronunbiada na Biblioteca Púbüca Muni-cipal de São Paulo, em 1945. Cf. Boletim Bibllogúnco,ano II, v. VII, abril-maio-junho de 1945.

(4)

Note-se que o me.smo processo de 'mitiÍicação" daorigem se repcte, com sinal trocado, na culminação dacadeia evolutiva proposta pela historiogrúa linear,

80

desta vez com Machado de Assis. Gregório, o "inexis-tente", é uma'ausência" que se carrega pervasivamentede 'pre.sença', que deixa rastÍoq por mais que se in-tente rasurá-la; Machado, nacional por não ser nacional("um brasileiro em regra", só que "à cata do eÍrava-gante", abusivamente assaltado pelo "demônio da imi-tação de inlgeses e alemães", no retrato pretensamenteobjetivo que lhe fez em 1897 o truculento Sflvio Rome-Ío), é uma 'pÍesetrçã" que se ausent4 evasivamcnte,ocmpre que se pretenda "entificá1a"...

(t

Hans Robert Jauss, "Literaturgeschichte als Provoka-tion der LiteraturwissenschaÍt" e 'Geschichte derKunst und Historie", em'Uteroturgeschichtc als Prc-Ìokstion, Frankfurt a.M., Suhrkamp, 1970; Pour unecsthéaique de la réception, Paris, Gallimard, 1978. Se-gundo Jauss, o "escopo supremo" dos "patriarcas" oi-toc€ntistas das Histórias da Literatura Nacionais, taiscomo Gervinus (Alemanha), De Sanctis (Itália), Ian-ron (França), fora exatamente "ÍepÍes€ntar, atÍavés dabistória dos produtos literários (Dlchtwerke), a essên-cia de uma entidade nacional em busca de si mesma".

(6)

Os grifos não estão no original. Acrescentei-os paramelhor úualizar o problema. Como elucida GayatriChakÍavoíy Spivak, em seu excelente prefácio à tradu-çáo para o inglês da GÍamotologia (Of crsmmatology,Baltimore/Londres, The John Hopkins UniversityPresg 196), o deslinde de determinadas séric,s metafó-

8r

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ricas e de certos esquemas retóÍicos pode "desbalan-cear" a equação de "unidade e ordem" que constitui osistema enunciativo do tcxto e pôr a nu "estrutuÍas decancclamcnto" que lhe serviram de lastro; oferece-se,assim, uma instância propícia à "leitura desconstruti-

(7)

Ensaio apresentado numSimpósio de 1958, incluídoemTh.A.Sebeok(org.) Style in Language, Cambridge,Mass., The M.I.T Prcss, 1960; cm port. cm RomanJakobson, Lingüística e Comunicaçáo, São Paulo, Cul-trix/EDUSP, 1969 (trad. de I.Blikstcin e J. Paulo Paes).Ver tambóm as minhas consideraçóes sobre o modelojakobsoniano em "Comunicação na poesia de vanguar-da", A Arte no Ilorizonte do Provável, cit. na nota 1.

(8)

O notável lingüísta brasileiro J.Mattoso CâmaraJr., quefoi discípulo de Jakobson nos E.LT.A., rcvcla, não obs-tante, em suas "Consitlcrações sobrc o estilo" (1955)1republicadas em Dispersos, Rio de Janeiro, FundaçãoGetúlioVargas, 1972,umatcndôncia atÍatarenglobadaou indistintamente o "poótico" e o "emotivo". Nessescntido, mostra, antcs, uma influôncia da estilística"afetiva" de Charles Bally, aluno de Saussure. Escreve:"A solução para introduzir os elementos emocionais nosistema intelectivo dalíngua éque está na base do estilo,em última análise. Assim compÌeendido, podemos de-finir o estilo como - um conjunto de processos quefazem da língua representativa um meio de oxterioriza-

ção psíquicâ e de apelo (no sentido de Bühler)." Noentanlo, Jakobson, desde 1923, em seu livro sobro overso tcheco, havia considerâdo "errônea" a identifica-ção pura e simples entre a "linguagem poética" e a"linguagem emocional", por não levar em conta â radi-cal difercnça funcional entre ambas"; assim, desde1958, havia complctado o modelo triádico dc K.Bühlcr:Dsrstellungsfunktion, Kundgabefunktion, Appel-funktion, i. é, "função de "representação" ou "expositi-va"; "função de exteriorizaçâo" ou "expressiva"; "fun-ção de apelo" ou "conativa", com outras três: "fática","metalingüísticâ" e "poética". Na concepção dc cstilode A. Candido, influenciada pelo idealismo croceano,se manifesta uma tendôncia similar: como no caso deMattoso Câmara (que citaW.Urban) o clcmento intui-tivo é realçado; ou, nas palawas dc Mattoso: é "pelocontraste emocional em face do que é intclectivo" que"se deve caracterizar o estilo".

(9)

George Steiner, em After BâbeV spects of fanguageond Translation (l,ondres, N.Iorque, Toronto, OxfordUniversity PÍess, 1975), expressa um ponto de vista qucmerece reflexão; glosando um vsrso dc Shelley ("Lan-guage is a perpetual Orphic song"), escrevc: "Se postu-larmos, como me parece necessário, que a linguagemhumana amadureceu principalmente atravós de suasfunções hermética e criativa, que a evolução do gônioda linguagem em sua plcnitude é inseparávcl do impul-so para o ocultamento e a ficção, então teremos conse-guido finalmente nos acercar do poblema de Babcl(...)Ambigüidadc, polissemia, opacidade, a violação de se-

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qúências gramaticais e lógicas, incompreensões recí-procas, a capacidade para mentiÍ - isso tudo não sãopatologias da linguagem, mas sim as raízes do seu gê-nio."

(10)

"Geschichtc der Kunst und Historic", cit. na nota 5, p.215 (ed.alemã); p.88 (ed. francesa).

(11)

A "objetiüdade" faz parle do "idcal do crítico", umideal "nunca atingido em virtude das limitaçócs indivi-duais e mctodológicas", segundo se Iô na Formação(I,31). A rcdução do "arbítÍio" em "bcnefício da obje-tividade"; a "humildadc de uma vcrificação objctiva, aque outros poderiam tcr chcgado", que abate o "orgu-lho inicial do crítico, como lcitor insubstituível", e "oirmana aos lugares-comuns de scu tempo" (1,32); anoçáo de um "esqucloto do conhecimento objetiva-mente estabclecido", que o crítico rccobriria com "a sualinguagem própria, as idóias e imagcns que exprimema sua üsão" (I,39), são outros tópicos que ajudam acompreendcr a posiçáo do autor da Formaçáo pcranteo problema.

(72)

Argumentando contra a concepçáo da história comouma "sóric Ícchada", quc envolvcria a "ilusão de umcomeço original e de um fim definido"; criticando adefinição de história de A.C.Danto ("A stoÍy is an

account, I shall say an explanation, of how the changeÍrom the beginning to the end took place"), que lheparece corresponder àqucla que, na poética de Aristó-tcles, se dá à "fábula" (mythos), Jauss, em contraposi-çâo a essa idéia de uma "narrativa histórica" homogê-nea, presidida pela "unidade da fábula épica" àmaneiraaristotélica, escrcve: "Se a lógica narrativa, que ficaassim inteiÍamcnte fechada no campo da poética clás-sica, tiveÍ em mira, tarnbém, dar conta do que há decontingente na história, ela poderia então seguir o pa-radigma do romance moderno. Este, dcsde Flaubert,aboliu programaticamente a teleologia da fábula épicae desenvolvsu técnicas narrativas destinadas a ÍeintÍo-duzir na história passada o horizonte abcrto do futuro;a substituir o narrador onisciente por uma pluralizaçãode pcrspectivas diversamente situáveis; a destruir ailusão da totalidade fechada por meio de cventos sur-preendcntes, que 'incidem dc través', os quais deixammanifesta a impossibilidade de totalizar a história, exa:.tamente por tcrcm permanecido ainda inexplicáveis."('Geschichte dcr Kunst ...",cit. na r,ota 5, pp.229-2j0,cd. al.;101-102, ed. fr.). J.Dcrrida, porseu lado, quandofaz a crítica ao "modelo linear" e ao "conceito tradicio-nal do tempo", que lhe é solidário, mostrando comoesse "pensamcnto linear" podc implicar uma "reduçãoda história", esclarece quc está entendcndo, por essemodclo ("associado a um esquema lincar dc dcsenrola-mcnto da prcsença"), o "modelo épico". Esse "modclocnigmático da linha", quc dcterminaria, por dentro,"toda ontologiâ, de Aristóteles a Hegcl", envolvcria,segundo a desconstrução dcrridiana da história dafilosofia, "o recalcamento do pensamcnto simbólicopluridimensional" (cf, Jacques Derrida, De la crâm-

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matologie, PaÍis, Minuit, 1967, pp. 127_130; cremato-t383r.Sjo P1u_lo, PeÍspecrivq 192J, pp. 106108; trad.<le Miriam Schnaiderman e RenatJ janine Ribeiro).Em Posltions, Paris ,lllinuft,ln\ p.n,Oeriaa acreíjcenta: "O caÍáteÍ metafÍsico do concrito de história nãoestá apenas ligado à linearidade, mas a todo um slstemade lmpticasões-(teleologia, escatologia, acunulação re_levante e inleÍiorizanl.e do sentido, um c€Íto tipo detradicionalidade, um certo conceiio ds continuïaade,de verdade, etc.).'

(13)

Em meu ensaio de 67, ..poáica Sincrônica,, (cf. nota t,acìma), escrevi: ,,Cregório dc Mattos soube levar ámistura de elemcntos do BarÍoco à própria textura desua.linguagem, através da miscigenação idiomática decatdcamento tropical (em sonetos como',Há coisa co_mo--veÍ_um paiaiá" e ..Um paía de Monai, bonzo bra-má"). O mesmo hibridismo que se encontra em nosso?aÌ,roco

plástico. Acredito que o enfoque de Gregóriode Mattos ganharia nova luz se se levasse

"Ín "o-nt" u

questão da dignidade estética da tÍaduçãq como cate_goria da criação." Refutei, então, os termos estÍeitos emque eÍa posta a acrxiação de .,plágio,, lançada contra opoeta.Rttomando essa rcfutação, observei (em,.TeÍoe HÈtória", rambém de 67;cf. nora t): ....plàgiário, umpoeta do qual não se conhecem nanuscritou aitográfos,por ter troduzldo para o português o intÍincado übiÍin_to gongoÍino, quando um dos brasões de gtória deUngaretti é teÍ fcito coisa semelhante para o italiano?!m n_oe1a W.e colpreendeu tãobem, ccrm aquela,ima_ginação funcional' ou 'sintagmática, de quc fila Roland

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Bartheq a matriz aberta do Barroco, que soubc recom-binar ludicamentè, em nossa língua, num sonelo autô-nomo - verdadeiro véíice de um sutil diálogo aeÍurl -nersos- membros de diferentes sonetos do poeta cor-dovês?..." Posteriormente, em.A escritura mefistoféli-ca: paródia e carnavalizaçáo no Fousto de Goethe"(Tempo Brasilelno, Rio de Janeiro, na 62,julho-setem-bro de 1980; Deus e o Diabo no FÂUSTó de coethe.São Paulo, Perspectiva, 1981), desenvolvi o conccito dó'plagiotropia", que *tem a ver, obviamente, com a idéiade paródla como 'canto paralelo', generalizando-o paradesignar o moümento não-linear de transformação dosteúos ao longo da históri4 por derivação nem sempreimediata", Falei, então, em Gregório de Mattos como"tradutor" (transformador) ostensivo de Gôngora eQuevedo", num plano de ',diálogo com as inÍlexões(tropismos) da tradição" não diraerso substancialmentedaquele em que se punha Camões quando ..traduzia",em diferentes momentos de sua poesia, seja a dicção'pedregosa', seja o estilo ..paradisíaco,, de Dante.

(14)

Severo Sardun 'El Barroco y el Neobarroco',, em Amé-

lj{ Iállno en su literrtura, México, UNESCO/SigloXXl,1972; em portugês, numa versão algo ampïaúa,sob o título "Por uma ética do desperdício;, em Éscrltosolr€ um corpo, São Paulo, perspectiva, 1g79. Aquivale também referir a crítica benjaminiana à estéticâdogmática neokantiana, incapaz de compreender a ale-goria barroca, cuja "qualidade dialérica,, é, por cssaestética, "menosprezada e posta sob suspeila comoambigüidade" (por "ambigüidade,' entendiam, os neo-

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kantianos, infensos às singularidades da síntese barro-ca, não tanto a riqueza do signiÍicado, mas o',desperdí-cio", a extravagância, aquilo que se oporia "à claridadee à unidade do sentido",enfim, a "transgressão doslimites das modalidades artísticas", o "grande abusocontra a paz e a oÍdem da regularidade no domínio dasartes"); cf. W.Benjamin, Ursprung d€s deutschenTrauerspiels, Frankfurt a.M., Suhrkamp, 7972, pp.196-197; em português, na tradução de Sérgio PauloRouanet, Origem do Drama BarrocoAlemáo, São Pau-lo, Brasiliense, L984, pp.198-199; na citação, a traduçãoé minha; ver meus comentários a respeito em Deus e oDiabo...", ob. cit. na nota acima, pp.. 130-133.

(15)

Affonso Áüla, O Lúdico e as Projeções do MundoBarroco, São Paulo, Perspectiva, 1971. Nesse seu liwofundamental para a comprcensão do fenômcno barrocoentre nós, o poeta do Código de Minas afirma: ,,Odilatado pacto lúdico queé o barroco, vigentc por quaseduas ccntúrias, codifica e determina assim as formasgerais da üda e da artc, convertido o jogo na grandemetáfora de uma traumatizada etapa histórica" (,'Oartista barroco e a rebclião pelojogo").

(16)

Oclavio Paz,SorJuana Inés de la Cruz o Lâs trâmpâsde la fe, Barcelona , Seix Barral, 1982, pp 410 - 471,505.

(17)

Refira-se que Presençâ da Literatura Brasileira, His-tória e Antologia, Sáo Paulo, Difusão Européia doLiwo, 3 vols., 1964, é obra de dupla autoria, sendo seuco-autor o Prof. J.Aderaldo Castello. Não deixa de sersignificativo que essa suspcita contÍa o barroco pareçafazer eco a reservas expressas poÍ Mário de Andradejána década de 20. Assim, em carta dc 1924 a Bandeira:"Toda e qualquer rebusca literária que prejudicar aclareza daexpressáo literária rclacionada é de[eito. Daío pouco interesse quc tenho por Mallarmé, Gôngora,Rcverdy e porção. O próprio Rimbaud em muitas dassuas páginas me desagrada agora. Só foi supremo noSlison en Enfer. Daí também a minha evolução prauma aÍte cada vcz mais simples e natural, arte deconversa que toda a gente entenda" (cf. Cartas deM:lrio deAndrâde a Manuel Bandeira, Rio de Janeiro,Organização Simócs, 1958, p.67). Em "A escÍava quenão ó Jsaura", ensaio-manifcsto de l'922-19?4, essa rc-jciçáojá se proclama cm forma de "slogan" de combatc:;'Ê ptãciso nao voltar a Rambouillct! É preciso nãorepËtir Gôngora! É pnectso EVITAR MALLAR-MÉ! (cf. Obra Imatura, São Paulo, Martins, 1960,p.240). Em Morfologia do Macunaíma, São Paulo,Perspectiva, 1973, examinci com mais detença as ambi-guidades da posiéo de MáÍio de Andrade em relaçãoà "linhagem" Mallarmé; uma posição trabalhada pelasvacilações entre o pólo "sentimental" e o pólo "intelec-tual" na criação artística (ob.cit.,em especial pp. 279-281).

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(18)

Jauss, com apoio em Th.W.Adorno, "Thescn über Tra-dition ("Teses sobre a tradição"), 19ó6, cf. "Geschichteder Kunst..." (in ob.cit. na nota 5, p.:233, ed. al.; p.105,ed. fr.).

(le)

Com respeito a essa concepção "veicular", tenho porválida, no quc lhe é apticável, a objcção de Derridacontra o "conceito instrumentalista" dc escritura, talcomo enunciado por M.Cohen, p.ex., para quem, "sen-do a linguagem um 'instrumento', a escritura é 'o pro-longamento de um instrumento". Vendo nessa posiçãoa subserviência a uma "teleologia logocôntrica", Dcrri-da pondera: "Há muito a pensar sobre o prcço queassim paga à tradição metafísica uma lingüística - ouuma gramatologia (NB: o título do livro de Cohen é Lagrânde invention de l'écriture) - que se diz, no casoconsiderado, marxista" (cf. De la Grammatologie, ob.cit. na nota 12, pp.122-123, ed.k.;102, ed. bras.).

(m)

Segismundo Spina, "Gregório de Mattos", em A Lite-ratura no Brasil, obra de vários autores sob a direçãode Afrânio Coutinho, Rio de Janeiro, Editorial SulAmericana,1968 (2a. ed.),vol.1, pp. 244 e 2z16;J.M.Wis-nik (org.) Gregório de Mattos / Poemas Bscolhidos,São Paulo, Cultrix, 1976, p.16; confira-sc tambóm o quediz Domingos Carvalho da Silva, "As Origens da Poe-sia", em A Literaturâ no llrasil, cit., p.181, sobre o

ambicnte da época: "O surto de um ambiente literáriono Brasil - no que se Íefere à poesia - data de meadosdo século XVIL Quando, em 1654, aportou à Bahia ocapitão Antônio da Fonseca Soares, poeta portuguêsdos mais notáveis do seu tempo, e que mais tarde seriao famoso Frei Antônio das Chagas, já encontrou nâcapital do Estado do Brasil um pequeno grupo depoetas, entre os quais Bernardo Vieira Ravasco, irmãodo padre Antônio Vicira; Eusébio de Mattos, pregâdoÍde talento e músico eúmio; e Domingos Barbosa, autoÍde um poema religioso em latim. Antônio da FonsecaSoares participou da vida literária da Bahia. Dessepoeta existcm, num códice que se encontra na Bibliote-ca da Évora, e de qu€ dá notícia Pedro Calmon, traba-lhos em verso escritos no Brasil." O mencionado PedroCalmon, em A vida espantosa de Gregório de Mâttos,Rio de Janciro, José Olympio, 1983, pp.209-2L2, opon-do-se à tese de A.Candido e W.Martins, aduz subsídiossetecentistas que, segundo sustenta, provam que o poe-ta, "não subindo à dignidade dos prelos, caíra no luxodas livrarias, dclas saltando para a tradição popular."

(2r)

Jauss, "Literaturgeschichte als Provokation...", cit. nanota 5, pp. 179-180, ed. al.; pp.5,t-55, ed. fr. Jaussconsideramuito maisambiciosaasociologialiteráriadeAucrbach, esta sim capaz de dar conta das "múltiplasrupturas epocais na Íslação entre escritor e público".

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I

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(n)

Ver nota 5. Este o magno projeto romântico, ultimadoentre nós pela Formação (1959), ao traçaÍ o percursoda "encarnaçâo litcrária do espírito nacional".

(B)

Como rcfere Vítor Manuel Pires de Aguiar e Silva,Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica PoÍuguesa,Coimbra, Centro de Estudos Românicos, 1971: "A in-cúriados homcns, certocondicionalismosócio-culturalqueentão envolveu a atividadedo cscritore a fatalidadedos cataclismos naturais exercelam. como é sabido.terríveis deprcdaçóes na poesia portugucsa da segundamotadc do século XVI e dos primeiros anos do séculoXVII. Enquanto deccrto prolilcravam os cancioneirosde mão - moda cortesanesca documentada no teatrovicentino e processo de fazer circular a pocsia numasociedade onde ainda não se enraizara o hábito, ouonde escasseavam os meios matcriais, de editar obraspoéticas -. poucos poctas cuidavam de rcunir e accpi-lhar as suas obras no sentido de as darem à estampa, demodo a salvar assim as suas criações da precariedadedos manuscritos e da contingência das cdiçócs póstu-mas organizadas por outrcm." (pp.47-48). A p.74, pros-scgue o autor: "Relalivamente à poesia lírica do séculoX\III, o panorama não é muito mais animador do queaquele que deixamos esboçado relativamcnte à poesiada segunda metade do sóculo XVI e dos primeiros anosdo sóculo XVII. Persistiu, por partc dc numcÍosos poe-tas, a mcsma incúriaem aprontaÍ para a imprensa e empublicar as suasobras; continuaram a difundir-se abun-

dantemcnte os cancioneiros manuscritos - cópias deoriginais ou cópias de cópias -, algumas vezcs organiza-dos com escasso cuidado e muitas yezcs omissos ouerrôneos no que tange à alribuição dc aulorias." Àp.103, AguiaÍ e Silva fala em "perspectivas deverasdesoladoras" no que tange ao conhccimento ("críticatextual e publicação de textos") da pocsia barroca emPortugal e, à p. 104, assinala "o imcnso acervo de poesiaquejaz manuscrita", ainda a ser considcrado.

(24)

Sobre o tópico da recepção das "litcraturas antigas",ver Jauss, "Literaturgeschichte als Provokation...", cit.na nota 5, pp. 183-184, ed. al.; pp. 58-59, ed. fr.

(2s)

Menos do que um renascentista, Camões scria já ummancirista, ou, conforme o ângulo de visada, um ante-cipador do Barroco. Consulte-se, sobre a questão,Jorge dc Scna, "O Maneirismo dc Camócs", "Camócse os Manciristas", "Ainda o problcma de Camões e osManeiristas", Diário de Notícias, Rio de Janciro, 17 desetembro,3 e 10 de dezembro de 1961. Os estudos deSena, acima refcridos, foram republicados no vol. I deTrinta anos de Câmóes,Lisboa, Edições70,1980. VítorManuel Pircs de Aguiar e Silva (ob.cit. na nota 23)menciona o livro Camoens, do proÍessor c investigadorespanhol Josó Filgueira Valverde, onde, já em 1958,estaria insinuado o caráler barroco da estóticâ deCamões (ob. cit., pp.198-19); Aguiar e Silva reco-nhece, ainda, o pioneirismo de Jorgc de Sena, que, em

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19,|8, aproximava Camões do Barroco, "ou melhor ain-da, do Maneirismo" (ob. cit., pp.20l-202)- EntÍe nós,Mário Faustino, em scus artigos de 1957, "RevendoJorge de Lima" (recolhidos em Poesia-Experiência,São Paulo, Perspectiva, 1977), proclama a tese doCamócs barÌoco, o que lhc dá merecido relevo nesseconjunto de estudiosos. Assinale-se, finalmentc, que oensaio camoniano de Ezra Pound, incluido cm TheSpirit ofRomance (1a ed.: 1910; traduzido, com nota deaprcscntação, por Mário Faustino no "Livro dc Ensaio"do Suplcmcnto Dominical do Jornal do Brasil, 2 dcsetcmbro dc L956; hoje na colctânea  Ârte da Poesia,São Paulo, Cultrix/EDUSP, 7976, rrad. dc Hcloysa dcLima Dantas e J.Paulo Pacs), não pode passar semÍcgistro ncste contexto. Inspirando-se no barroco "ar-quitctônico", Pound o tomâ cxpressamenlc como tcrmodecomparação ("A corresponding study in architecturewcrc a study of barocco") para dâr conta estilistica-mcntc do que lhe parecc a qualidade mais rclcvantc dopocta luso: o esplendoÍ "bombástico" da dicçáo dcCamócs, "mestre da sonoridadc e da linguagem".

(26)

Segismundo Spina, Cregório de IlÍattos, São Paulo,Editora Assunção Ltda., 1946, pp.25-26; idem, ensaiocit. na nota20, p.246. Stuart B. Schwartz, Rurocraciâ eSociedade no lìrasil Colonial, São Paulo, Perspcctiva,1979, p.259.

(27)

Aidcía de literatura "pobre" apaÍece também cm Afrâ-nio Coutinho: "Como cxigir que uma literatura emformação, pobre, sem amplitude de atuação, isolada,influenciada pela poÍtuguesa, não rcpetissc os cânoncseuropeus?" (A Tradição

^foúunada, Rio dc Janciro,

José Olympio, 19ó8, p.1ó5). Embora objcte à cxclusãodo Barroco no esqucma dc cvolução litcrária propostopor A.Candido (ob. cit., pp.157-158; 172-174; Conceitode literatura trrasileira, Rio de Janciro, Editora PallasS.A., 197ó, pp.38-55, cnsaio datado de 1959); emboratoça críticas à noção de literatura como "ins(rumentode comunicação", conceito que lhe parccc "histórico-sociológico" e não "estético", já que não deixaria explícito o papcl da litcratura como "gozo estético", "comodivertimento espiritual" (estas exprcssões - observe-se- contaminam-sc dc rcsíduos hedonistas, não tendo aprecisão semiológica da "funçáo poética" dc Jakobsone da "função estética" dc Mukarovsky), A. Coutinho,por seu lado, pcrfilha um esqucma gradüalistâ nãodivcrso de evoluçáo linear-ascensional de nossa Iitera-tura. Confira-se: "Pcla pcriodização estilística, acom-panha-se o dcsenvolvcr progressivo do instinto dc na-cionalidade na literatura brasilcira desdc a Colônia" (ÀTradiçâo, p.U4). Fica, assim, preservada a mctáforasubstancialista, animista, gcnótico-orgânica da "ori-gcm" e a conccpção "vcicular" do tcxto: "A litcraturabrasilcira comcçou, portanto, do sóculo XVI para oXVII, c foi a arte barroca o vcículo idoal para cssesprirneirosvagidos dc uma nova alma popular c nacional.Foi o estilo quc tcve adequação com aquclcs scnlimen-tos da alma brasilcira cm sua infância" (Conceito, P.53).

94 95

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Trata-se de uma concepção periodológico-estilísticâque se empeúa em debuxar uma tradi$o pressupos-tamente "afortunada", a saber: "Origem e formação soba égide do banoco, nos três primeiros séculos; autono-mia no período arcádico-romântico; maturidade naépoca modernista, sáo as etapas de desenvolvimento daliteratura brasileira "(A Tradigáo, p. 159); "...o caráterbrasileiro em liteÍatuÍa, busca a que se entregou opensamento crítico do século XIX de maneira coerenteeconttuua" (idem, p.189). Tal concepção excluio"cortesincrônico" e a possibilidado mesma de "fusão de ho-rizontes", a depreensão da historicidade da tradiçãoliterária na "dialética da pergunta e da resposta", comoquer Jauss elaborando no plano teóricoJiterário a her-menêutica de Gadamer. À p.165, lê-se em À TrfldiçãoAÍoúunada: "Nãoé lealjulgar uoa época passada à luzdos padrões estéticos pÍesentes, tÍansferindo para elao nosso critério de gosto e de realização artística." Estaatitude explica a não acolhida em A Literatura noIlrosil, obra dirigida por A. Coutinho, da sugestão pro-vocativa de Fausto Cunha: inovar radicalmente quantoà peÍspectiva classiíicatória, e colocar Sousândrade co-mo o grande poeta de nosso Romantismo (cf. "Assassi-nemos o poeta", em A Luta Liteúria, Rio de Janeiro,Lidador, 1964, pp. 155-156). A sugestão, "ao mesmotempo revolucionária e perfeitamente lógica" de FaustoCunha, todavia, depois do polêmico trabalho levado acabo em Re/Visáo de Sousândrade (ob. cit. na nota 1),encontrou guarida pacÍfica na recente Ilistóri! da Li-temtura Brasileirâ de Massaud Moisés (São PaulqCultri:q vol.Il,19&1,p.258). Escreve Massaud a propósi-to do autoÍ do Gueso: "...nenhum exagero haveria emaÍirmar que estamos peÍante a voz mais poderosa da

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poesia romântica e uma das mais altas e vibrantes daLiteratuÍa Brasilcira: uma história literária marcadapelo lirismo, não raro derramado em pieguic-e, enc-ontraa mundividência épica que lhe faltava e que lhe oferecea espeÍada dimensão universalista."

(28)

A esse propósito, acompanhemos a arguta reÍlexão deOctavio Paz: "La coincidcncia entrc la poética barrocay la vanguardista no procede de una influencia de laprimera sobre la segunda sino de una únidad queopeÍatanto en la esfera intelectual como en el orden dela sensibilidad. El poeta barroco quiere asombrar ymaravillar; exactamente lo mismo se propuso Apolli-naire al exaltar a la sorpres:l como uno de los elementoscentrales de la poesía. El poeta barroco quiere descu-brir las rclaciones secretas entre las cosâs y otro tantoafirmaron y practicaron Eliot e Wallace Stevens. Estosparecidos resultan aún mas extraios si se piensa que elbaroco y la vanguardia tienen oÍígenes muy distintos:unoüenedel manierismo y la otra desciende del roman-ticismo. La respuesta a este pequeúo misterio se en-cuentra, quiá, en el lugar pÍeeminente que ocupa lanoción de Íorma tanto en la estética barroca como en lavanguardista. Barroco y vanguardia son dos formalis-mos." (ob. cit. na nota 16, p.79),

(2e)

Remeto-me à nota 13, acima. Veja-se, para uma consi-deÍação ampla e atualizada da qucstâo, o liwo de JoáoCarlos Teixeira Gomes, Gregório de Mattos, o Bocâ de

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Brasr (Um estudo dc plágio e cÍiação intertextual),Petró5rolis, Vozes, 1985; confira-se, também a Íesenhade Segismundo Spina, "Gregório de Mattos, o Bocs deBraso", publicada no Suplemento "Cultura" de O Ds-todo de S.Paulo, no 33t 15 de novembro de 1986.

(30)

O "ludismo" e seu repertório de inven@es formais éconstitutivo do Barroco, inarredável dele. Octavio PazaleÍta com disccrnimento: "Por doble contagio de laestetica neoclásica yla romántica, una enamorada de lacorrección y la otra de la espontaneidad, es costumbredssdeíar a estos juegos. Crítica injusta: son recuÍsoslegítimos de la poesía." (ob. cit. na nota 16, p.83). Acontribuição de Manuel Botelho de Oliveira, contem-porâneo de Gregório, tem sido conslantemente depre-ciada pela renitência do pÍeconceito contra essa pro-pcnsão lúdica da estética barroca. Só rec€ntementetem-se procurado tratar com mais compreensão o tra-balho de Botelho de Oliveira. A tese de CarmelinaMagnavita Rodrigues de Almeida, O Mrrinlsmo deBotelho, Instituto de Letras da Univcrsidade FederaldaBahia, Salvador,1975 (xerocópia) é um passo impor-tante nesse sentido. Com basc ncla, pôdc J.C.TeixeiraGomes falar em "autônticas recria@es" em relação acomposi@es do autor de Música do Parnaso, obrapublicadaem Lisboa, em 1705; Teixeira Gomes assinalatambóm 'a requintada dimensão da lírica engenhosaque Botelho exibe em certos momentos" (ob. cit. nanotà29, pp,22l e320). A Lim Sacrâ, que peÍmanec€uem manuscrito até a sua publicação em 1971 (leiturapaleográfica de Heitor Martins, São Paulo, Conselho

98 99

Estadual de Cultura), foi ainda há pouco lembrada porPéricles Eugênio da Silva Ramos ("Origem e evoluçãodo soneto brasileiro", Suplemento "Cultura" de O Es-tado de S.Paulo, n0 428, 10 de outubro de 1988) porencerrar sonetos "formalmente curiosos - como aqueleem que se Íepete o nome de Jesus em lodos os versos,ou aquele outro cujas rimas são todas nomes bíblicos",dignos, portanto, de "figurar airosamente" numa re-cente antologia dessa formapoética (na parte dcdicadaa "sonetos singulares por um ou outro aspecto"). E poÍ"excesso", por "extremismo" que se costuma cntÍc nósincriminar Botclho (ou scja, pelo mcsmo traço de "exa-gero" quc provavelmente o qualihcaria aos olhosde uml-szama Lima, defensor do hipergongórico pocta co-lombiano Hcrnando Domínguez Camargo). Bomexcmplo disso é a "silva' dcdicada 'À Ilha da MaÍé",ondsBotelho introduzo elemento "nativista" (em nadaincampatível com a estética do BarÍoco, que prestigia'o estranho, o singular e o exótico", cf. O.Paz, ob. cit.,p.85; Teixeira Gomes, com propriedade, identiÍìca na"silva" a técnicâ das 'descrições suntuosas" estudadapor Dâmaso Alonso, de larga tradição epocal). Poisbem, Silvio Romero, verberando os "trocadilhos, gon-gorismos e ênfases" com que o poeta desíìgurs suas"cenas brasileiras", tacha essa composição de "scnsa-boria priülegiada". Foi preciso uma estudiosa estÍan-geira, atualizada e despreconceituosa, Luciana Stcga-gno Picchio (I-a letteraturâ brosiliana, Florenç:y'Mi-láo, Sansoni/Accad cmia, 1972, pp.87-88), para captar,com imaginação lezamesc4 o exccsso tÍopicalista comque o baiano e poliglota Botelho manipula, a partir damndição ex-cêntrica ("mal se podia esperar que asMusas se fizessem brasileiras"), o código "culto"; Lu-

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ciana fala de uma "exasperação sensorial banoca",fixada, "com delibcrada ingenuidade sobre o paladar",num poema enumeÍativo, que faz o elogio de iguarias,peixes, plantas e frutas da terra, e onde (observa aindaa crítica) tôm ingrcsso nomes indígenas cujo acesso àpoesia fora até então interdito pela "musa aristocráti-ca". Com sua esplêndida leitura, a historiadora italianasupera (e recoloca em termos que o barroquismo culi-nário de lrzama subscreveria gostosamente), o julga-mcnto antcrior de Eugenio Gomcs (1968,

^ Lit€ratura

no Brasil, ob, cit. na nota 20, vol. 1, pp,272e2il6), q]uesoubcra enfatiz:r com argúcia, na "silva" de Botelho, ocapitoso priülégio do "paladar", mas quc reputara o"maneirismo" um "disfarce" (um scmioticista diria sim-plcsmente, como o vcnho fazcndo, um "código"), e orepclira como um "disfarce inadequado" para "aapreensão daquelc mundo vário e agreste da Bahiacolonial..." Não que Botelho seja poeta ds porte; nadadisso; está muito aquóm da altitude criativa gregoriana.Mas é scm dúvida significativo, naquilo de melhor quctem a oÍcrccer, ou seja, naquilo cxatamcnte que o pre-conccito anti-Gôngora e anti-Marino menosproza: suavocação para o engcnhoso e para o lúdico, e o malaba-rismo artesanal com que, mais de uma vez, logrou cxer-citá-la. Está a meÍecer a triagem dcdicada de algumantologista não alérgico aos jogos de linguagem dobarroco... (Para a resenha da principal literatura sobreBotelho, cabe consultar a tcse de Carmclina M.R. deAlmeida, acima cit., pp.20-25 e 2a-29).

(31)

Antonio José Saraiva, num livro admirável, O DiscursoEngenhoso, Sáo Paulo, Perspectiva, 1980, pp. PA-D\âpontou, com precisão relevantc para o nosso argumen-to, a diferençn entre o "discurso clássico", r€sultado deum 'lulgamento", ondc as palawas sc dispõem "segun-do a ordem do raciocínio", não tcndo "autonomia",umavezque sáo apenas "represcntantcs", e o "discursoengenhoso". Ncste , ao contrário, "as palawas não sãoÍeprescntantes,mas seÍes autônomos quc como matériapodem ser recortados para formar outros e lôm cm sirelaçõesque lembram muito maisos elcmentos da com-posição musical ou geométÍica que os do "bom senso"cartesiano." Ocorre que, no caso exemplar de Vieira -"Imperador da língua poÍtuguesa", como o chamouFernando Pessoa - o "discurso engenhoso" não era"esvaziado do conteúdo sagrado originário"; assim, oélebre "Sermão da Sexagésima" , em que , segundo afina análise de Saraiva, "Vicira descreve, sem se darconta ; o seu próprio estilo, está "quase inteiramenteconstruído de acordo com as leis da repctição, da sime-tria e da oposição". A "multiplicação das palawas dis-poníveis", que resulta dos desmembramentos do signi-ficante separado do signiÍicado, dando lugar a "re-laçõcs inconcebíveis num discurso comum", é ainda"elevada a um grau mais alto pela interpretação alegó-rica da Escritura, conforme os métodos da exegesetradicional, que permite atribuirquatro sentidos a cadatexto". "E impossívcl amar Vieira", desabafa Mário deAndrade, num impulso de sentimentalismo, no curiosotexto dcdicado a Machado de Assis (1939), no qualdistingue entre "admirar" e "amar" grandes homens;

100 101

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tambóm em relação à figura dc Machado, cuja obraprofcssa admirar enormementc, Mário sc diz ,.mclan-colizado" pcla mesma "inquictação', de consciência...(^spectos da Literalura Brasileira, São paulo. LivrariaMartins Erlitora, s/d, p.89).

(32)

Esta posição parece semelhante à do jovem Lukács,qüando estc, em 1909, ainda na fasc húngara, escrevc:"Poróm, na literatura, o cfotivam€nte social é a forma.,,(Georg Lukács, Schriften zur Literatursoziologie, an-tologia org. por Pctcr Ludz, Ncuücd, Luchterhand.1961, p.71). Sua formulação mais radical corrcspondc-rá, talvcz-, àqucla sustcntada por Th. W.Adorno, Aes-thetische Theorie, Frankfurt a.M., Suhrkamp, 1973,p.371: "Em toda aÍte aindapossível, a crí(ica social dcveser erigida cm forma, para alcançar assim a dissimula-ção (Âbblendung) dc todo contcúdo social manifesto.,,No en[anto, ao exprcssar suas reservas em relação àMallarmé (na esteira do Mário de ,,A Escrava...", cit.na nota 17) e à inÍluôncia do hcrmótico francês porexcelôncia sobre a pocsia de João Cabral ("poesia aoNortc", artigo cstampado na Folha da Manhá, SáoPaulo, 13 dejunho dc 1943; rcpublicado na reústaJosé,Rio dc Janciro, ne 5-6, novembro-dczembro de 1976),A.Candido parece prcludiar as dúüdas quc, com A<tc-raldo Castcllo, iria lcvantar quanto à,.autcnticidade', eà "permanôncia da comunicação', do Barroco literário(ltresença I,22). Escrcvia o entãojovem crítico (à rodados seus 25 anos): "Como Mallarmé, o pocta pernam-bucano se atirou em busca da pocsia pura. Não discutoa sua réussiÍe pessoal, que é das boas. euanto à pocsia

Dura é que não sei se o scu barco alcangrá as estrelas

.,u sc ficará pclos escolhos. Toda pureza implica um

asDecto de d;sumaniza$o. É o problcma permanente

da ourcra ,c"scc"ndo a vida (..') o crro da sua pocsia é

quË, construindo o mundo fechado de quc falci, cla

ttnáe a se bastar a si mesma. Ganha uma belcza mcio

gcomótrica c se isola,por isso mesmo, do scntido de

ãomunicação que justifica nestc momento a obra dc

arte. Poesia assim tão autonomamcnte construída se

isola no seu hcrmetismo. Aparecc como um cúmulo dc

individualismo, de pcrsonalismo narcisista quc, no SÍ'

Cabral de Mclo, tem um inegávcl encanto' uma vez que

ele está na idade dessa espontancidadc na autocontcm-

nlação. O Sr. Cabral clc Mcto' porém, há rlc aprendcr

ãs caminhos da üda c pcrccbcr que lhe scrá prcciso o

trabalho de olhar um pouco à roda de si, para elevar a

oureza da sua cmo$o a valor corrcnte entrc os ho-

mens e, dcstc modo,justificar a sua qualidadc deartis-

ta." Recorde-se agoÍa' num outro plano, o argumento

da "incomunicabilidadc", com que Sflvio Romero tcn-

tara explicar a "negatividade" da.obra de Machado de

nssis ("Nao tem, Por certo' tido inÍluência quasc

ncnhuma no espírito nacional") e a sua "ilcgibilidatìc'.,

fruto do scu alheamcnto ao "sentir de nosso povo" ("8

por isso quc cste pouco o conhcce, não o lê, e há dc

àuasc csqìccê-1o..' Machado de Assis, em quase todâ a

suu oUtu, pata com o povo brasileiro tem sido um

dcsdcnhosà..."). ParaSflüo, essas alegadas carências do

autor de Drós Cubas e Quincâs [orba vinculavam-se à

"índole mcsma de scu gônio litcrário: a falta de calor'

de comunicabilidade, dc entusiasmo, de vida, essa

centeÌha dc proselitismo própria das almas comba-

tentes." (Machado de Assis/Estudo comparativo de

702 103

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literatura brasileira, Rio de Janeiro, Laemmert & C._Editores,.1897, pp. XVI, 79_80, 149 eA2).Três anosanrcs, assrnate-sc, G. l_anson (Ilistoire de la litaérature

ïlXltï*";,t-11!r,"achc'c; cito a 5a' ed', de I8e8, pp.i,y!-.tyl

rclcflra-sc dcpreciativamente a MallarmZ,-m€stÍe" (com Verlaine) de ..todos esses gÍupos que seintitulam dccadentes, simbolistas, etc.,,, "o.ó

u_ po"tu"de bicn mince valeur", e se empenhara em denunciar-o pcngo" da..Hora presente,, (1g94): ,,a bizarria, aoDscundade das obras, a execuÉo não comcnsurada àsrnlcnçoes, e o imenso esforço perdido no vazio.,.

(33)

Fcrnando da RochapcÍcs, Gregório deMattos e Cuer_l:. "-o.

*"i:lg-biogrÍfica, Satvador, Bahia, EdiçóesMacunaíma, 1983, p.94.

(34)

O quc, sem dúüda, imprcssiona A.Candido, na ênfaseqüe dâ -â.lunção ideológica,, (missionária, inclusivcnum s-cntldo .,cívico e conslrulivo,,) na formação dcnossa.literatüra, é o fato dc, sem emúargo da constata_çao olslonca de ser a nossa ,,uma literatura sem lci_torcs", o Romantismo, com o seu ,,temário nacionalistae sentimental,',-ter conseguido satisfaze..,a.

"*p""iutl-vasgcrais do público disponível', e, assim, ter_se consti_turdo no 'maioÍ.complexo de influôncia litcrária junroao pubtrco, qucjá houve enrre nós,,(tS,97). Do iontode vista da infra-estrutura econômica, poÍ outro lado, aanálisc. q1e se pretende marxista do discípulo ;; ÀCandido, Robcrto Schwarz, corrobora a postura disfó_

Íica quanto ao histo comunicacional ("ausência decomunicação entre o escritor e a massa", LS,10l). Sóque a sua constataçáo é ainda mais drástica, já queveriÍìca a existência e a manutenção , nesse nível infra-estruturâI, de uma irresolvida contÍadição fundamen-tal, que atravessa inólumc toda a evolução de nossaliteÍatura: "Tanto a eternidade das rclações sociais debase quanto a lepidcz ideológica das 'clites' eram paÍte- a paÍte que nos toca - da gravitação deste sistcma poÍassim dizr:r solâr, € certamcnte intcrnacional, que é ocapitâlismo. Em conscqúôncia, um latifúndio poucomodificado viu passarem as maneiras barroca, neoclás-sica, romântica, naturalista, modernistae outras, quenaEuropa acompanharam e reflctiram transformaçõesimcnsas na ordcm social" (Áo vencedor as bâhtas, SãoPaulo, Duas Cidadcs, 1977, pp.2l-22). Diante dessaproclamada "etcrnização" das relaçõcs de base, dessapermanôncia irnpreenchida do hiato comunicacional -verdadeira hiância metafísica - é o caso dc indagar: se,ncsse panorama, "nada tcrá tido lugar, senão o lugar,'(ou "o fora de lugar"), ao longo das várias "maneiras"(sic) que perpassaram por nossa história literária, quesentido Íaz, ao fim e ao cabo, distinguir com cautclasmaiôuticas uma origem (não importa se definida como"nascimcnto" ou "encorpaÍ formativo"), um p€rcursoevolulivo c um momento de culminâção (,,o momentoem quc a nossa litcratura apar€c€ intcgrada, articuladacom a sociedade, pesando e fazcndo sentir a sua pr€-sença, isto é, no último quartel do século XIX"), paraefeito de excluir dcsse (à vista da sombria..dcsconstru-çáo" de Schwarz) poÍ assim dizcr fantasmático ciclo dematuÍação as "manifestações literárias assistômicas",vale dizcr, o Barroco?

r04 105

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(35)

"Náo existe nada morto de um modo absoluto: e câdasentido terá sua festa de ressurreição. Problema da'grande temporalidade' (bolchól wiêmleni)." MikhailBakhtin, "K metodologuii literaturoviediênia" (19,10-1974), Moscou, Konteksíl94 Akadiêmia Naúk SSSR,L975, p,212. Versão abreviada, traduzida para o espa-nhol, a paÍtir do texto russo integrat sob o título "Haciauna mctodolología de las ciencias humanas", cf, M. M.Bajtín, Estétic8 de la crescion verbâl, trad. de TatianaBubnova, Mexico, Siglo Veintiuno Editores, 1982, pp.392-393.

(3ó)

Consultar o documentado liwo de Vítor Manuel PiresAguiar e Silva, cit. na nota 23. Escrevs o autor: "Nestascondit'oeq quem pretender analisar as característicâsda poesia barroca portuguesa, vê-se obrigado a procc-deÍ previamente - e durante longo peÍíodo de tempo -a um autêntico labor de arqueologia literária, desenter-rando das páginas manuscritas de numcrosos cancio-neiros e miscelâneas as composições poóticas que vêmpreencher lacunas, esclarecer tendências e gostos, re-velar autores quase totalmente desconhecidos." Eexemplifica a tarefa a ser cumprida, reÍerindo-se aocaso Gregório de Mattos: 'O que nos parece necessá-rio, é publicar, em edições cuidadas, a obra de cada umdos ,nais representativos poetas do feríodo barroco:Barbosa Bacelar, D. Tomás de Noronha, FonsecaSoares, Jerônimo Baía, tal como os estudiosos brasilei-ros, impelidos por compreensÍvel sentimento naciona-

106 107

list4 publicaram, por exemplq as obÍas poéticas deGÍegóÍio de Mattos GueÍÍa." Nessc sentido, já é dignodo melhor registro o esforço antológico de NatáliaCorreia, Antologla da po€sia do p€rÍodo bârroco, Lis-boa, Moraes Editores, 1982. Com muita justeza subli-nha ela a contribuição, nesse quadro, dc Tomás deNoronha, de quem diz: "Muito embora a sátira deTomás de Noronha, se a confrontarmos com asaraivadapÍaguenta langda pela boca infernal de Gregório deMattos, , não tÍansponha os limites de um purgatório,justiç: é sublinhar a sua brilhante aparição na pocsiaseisc€ntista que muito lucraria com a exumação dosseus inéditos escamoteados por um conceito de sani-dade moral, a nosso ver, não coincidente com sanidademental."

Q7)

Republicada em Madri pela Alianza Editorial, 1979.

(38)

Madri, 1921, Tipografía de la Revista de Archivos,Bibliotecas y Muscos. InteÍessante notar que Gervinus(1805-1871), um dos'patriarcas" da historiografia lite-rária "oitocentista" (ver nota 5), mostrava-se igual-mente infenso a asrbas as supostas "decadências": àMinnelyrik (lírica trovadoresca alemã) e ao Barroco;na Poesia de Angelus Silesius, p.ex., censurava as "ima-gens absurdas", as "abstraçõcs imagéticas", os "para-doxos nebulosos", as "contÍadiçõcs tautológicas"; lam-bém o Segundo Frusto de Goethe, barroquizante sobmuitos aspectos (conforme procurei mostrar na ob. cit.

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na nota 13), inspiÍava-lhe "repugnância". Ver, a propó-sito, o elucidativo estudo de Rolf-Peter Carl, Prinzipender Litersturbetrachtung bei Georg GoÍtfried Gervi-nus, Bonn, H.Bouvier u.Co. Verlag 1%9, pp. 131, 1.m

.e 17l.

(3e)

Otto MaÍia Cârpeaux, "Góngora e o neogongorismo",Origens € Fins, Rio de Janeiro, Casa do Estudante doBrasil, 1943, pp. 80 e 85. Vale ainda ressaltar a compa-ração lcita no mesmo cnsaio entre "a pocsia barroca ea poesia modcrna": assim como Gôngora reaparece no"hermetismo" de Garcia l-orca, Donne, rcdcscoberto,"revela-se uma personalidade poóticâ moderníssima,capaz de ajudar a comprecnsáo do mais complicadoentre os modcrnos poctas ingleses, o enigmáticojesuítaGerard Manley Hopkins" (ob. cit., pp. 89 € 85).

(40)

Cf. DanielR. Recdy, "Poesías inéditas dcJuan del ValleCaüedes", separata da Revista Iberoamericana, Pitts-burgh,vol. XXIX, n.55, p.157. Acrcscenta o autor; "Nãoé de estranhar que tardassem tanto t€mpo a ser publi-cadas, tendo em conta a natureza veemente de suasátira social e uma que outra passagem cscabrosa. "EmThe Poetic^rt ofJuan delYalle Caviedes, The Univer-sity of North Carolina Prcss, 1964, D.R.Reedy espccifi-ca: "...apenas trôs poemas de Caviedes foram publica-dos durante sua vida", depois dc submetidos à censuraeclcsiástica e governamental. Embora houvesse im-prensa em Lima colonial, dada a naturcza "lasciva e

quase pornogÍáficâ" de alguns dos poomas caüedesiâ-nos e o carátcr de "sátira acrimoniosa" de outros, diri-gidos contra pessoasbem postas social c politicamente,é fácil "imaginar que Caviedes se sentisse mais scguro,fazendo circular clandestinamente ópias de seus ma-nuscritos, ao invés de tentaÌ publicar poemas em quan-tidade". Ainda em 1947, na edição promovida por Ru-bén Vargas Ugarte, um jesuíta professor da Universidade Católica de Lima, Caviedes foi deliberadamentecensurado ("É quase um dever peneirar sua obra poé-tica e pôr fora como detÍito inútil tudo quanto derepulsivo, mal-chciroso ou de cor muito carregadaachemos ncla"; ver Obrâs de Don Juan del Valle yCaviedes, Clássicos Peruanos, Lima, vol.1, 1947, p.XIl).O critório do Pe. Ugarte, diferentemente do de Palmae Odriozola, Íoi oda edição "expurgada", dando ênfaseaos poemas religiosos e a outros "limpos de manchas".Coisa em ccrta medida semelhante aconteceu com onosso Gregório, na edição da Academia Brasileira deIrtras (6 vols., de 1923 a 1933), dirigida por AfrânioPeixoto. A dcsabusada erótica do "Boca do Inferno" sófoiresgatada da intcrdição pudicaquc sobre cla pesava,graças ao desassombro deJamcsAmado, com a edição,em 1968, cm 7 vols., das Obras Completas (Crônica doViver Baiano Sciscentista).do poeta, Salvador, Bahia,Editora Janaína.

(41)

Enrique Anderson Imbert, Ilistoria de la literaturahispanoamericâna / La Colonia / Cicn ãnos de Repú-blica, Méúco, Fondo de Cultura Económica, vol. 1,L970,p.711.

108 109

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(42)

Cf. Raimundo Lazo, Ilistoria de la literatura hispa-noamericana / El período colonial / 1492-17W, Argen-tina,México, Editorial Porrua, S.A, 1965, pp.213-214.Dos oito (não sete) manuscritos ató hoje descobcrtosda obra de Caüedes, nenhum deles é autográfico (cf.Danicl R.Reedy, "A new manuscrit ofthe works ofJuandel Vallc Caüedes, scparata de Romance Notes, vol. V,n. 1, 1963 pp.3-4). Mais um traço em comum comGregório de Mattos.

(43)

"Gregório de Mattos: The Quevedo o[Brazil", scparatade Comparative Literâture Series, vol. ÌÌ, n.3, 1965,p.247. Ver também "Gregório dc Mattos and Juan delValle Caviedcs: two baroque poets in colonial Portu-guese and Spanish Amcrica", INTI, Rcvista de Litera-tura Hispánica, nos. 5-6, prirnavera,/outono, 1977, porEarl E. Fitz, que acrescenta a seguinte nota a seu estu-do: "Não há prova sabida, todavia, dc quc Mattos eCaviedes se conhcccssem pessoalmentc, embora scjacertamente possível que cada um dcles cstivcsse a parda considerável rcputaçáo do outro." (A conjctura,embora temcrária e suscitada sem qualquer tcntativa dcfundamentação, parece aludir ao carátcr univcrsal,tÍansnacional e transcultural do cstilo barroco,já que omcsmo âutor Íaz remissão à "Carta a la monja dclMéxico", do poeta pcruano , sugcrindo, com base ncla,que Caviedes "não era dcsconhecido dagrande intslsc-tual mexicana, Sor Juana Inós dc la Cruz"). D.R.Reedy(The Poetic

^rt.,., cit. na nota zl0, p.19) fala da "aura

ficcional" que ccrcou a biografia de Caúedes, o "Dontedo Parnaso", atribuível, sobretudo, a Ricardo Palma,que se teria baseado numa "hoja suelta", apócrifa, rou-bada e depois jamais recuperada. Mas uma carta dcs-coberta por G. Lohmann Villena, e por ele dirulgadaem 1948, reporta, por exemplo, que o poeta em seusúltimos dias teria ficado mcntalmente perturbado "ecorria nu pelas ruas de Lima e pclos descampados forada cidade" (ob. cit., p.23).

(44)

Hcrnando Domíngucz Carnargo, Obras, edição aoscuidados de RafaelTorres Ouintero, Bogotá, Publica-ciones dcl Instituto Caro y Cucrvo, 1960, p. XXIX.

(4s)

José Lezama Lima, La expresión americana, Madri,Alianza Editorial, 1969, pp. 53-54. (Hoje temos dessaobra fundamental uma excelentc cdição estabelecida,introduzida e anotada por Irlemar Chiampi, A expres-são americana, São Paulo, Brasiliense, 1988. Vcr, apropósito, meu artigo-resenha "Lezarna e a plenitudepclo cxcesso", Caderno 2, O Estado de S.Paulo, 10 dcjulho de 1988). Apenas por uma questão de comodi-dade, mantive ninha tradução do toxto dc l.ezama (quena edição Chiampi ocorre à p. 87). Sobre o hipcrgongó-rico poeta colombiano,ver aindaE. Gimbcrnat de Con-áles, "La subversión barroca de Hcrnando DomínguezCamargo", texto mimeografado de confcrôncia pro-nunciada na Univcrsidade do Teias em Austin, FacultyIrcture Series,23 de março dc 1.981. Conforme registra

110 11.1

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I. Chiampi na ed. cit., p.86, not. ll a obra de DominguezCamargo foi considerada por Menéndez y Pelayo "umdos mais tenebrosos abortos do gongorismo"

(46)

Prefácio à ob. cit. na nota 31 pp. 1G17. Considere-se,aind4 o pronunciamento de Pedro Calmon (ob. cit. nanota A)). No caso da produção de Gregório, ainda quese fale cm "oralidade' como fonte de transmissão erecolha (em ódices) de sua poesia; ainda que a fixaçãoem liwo, em letra impressa, tenha taÍdado mais de umúculo c meio, o fato é que isto não lhe ÍetiÍa o caráteÍdc "texto", dc "escrituÍa", pob mesmo nos mais desta-bocados pocmas satíricos e eróticos, essa poesia cxibeas maÍcas da agtdeza e do engenho barrocos, traçoscaracterísticos de um elaborado estilo cultural.

(47)

Cf. "Die Aufgabe des Übersetzers" ("4 Tarefa do Tra-dutor"), em Baudelaire, Gedichte (Deutsche Überra-gung mit einem Vorwort von WalteÍ Benjamin),Frank-fuÍt a.M., Suhrkamp, 1979 (o toco benjaminiano é de1923). No conceito de Fortleben, ou "pcrvivência" daobra para além da época de sua produçãq relevam asnotas de "transformação" (Wondlung) e de "renova-ção" (Erneucrung); a isso Benjamin chama o "pós-amadurar" (NachreiÍe) da ünguagem da obr4 "um dosproc€ssos históricos mais poderosos e fecundos" (ob.cit., pp.12-13).

L72113

(48)

Jauss,'LiteÍaturgeschichtealsProvokation...", nanota 5, p.189 da ed, al; p,63 da ed. fr..

(4e)

F. Nietzsche, Werkc (ed. Karl Schlechta), Munique,Carl Hanser Verlag vol.I, 1966, p.1037 (Morgenrattg S35); em portuguôs, na tradução de Rubens RodriguesTorres Filho, Obros lncompletâs (Os Pensadores,XXXII), São Paulo, Abril, 1974 (NB:Ao mesmo tÍadu-toÍ peÍtence a veÍsão da epígrafe que adotei para esteensaio). No volume da Abril encontra-se, republicado,o admirável ensaio de A.Candido, "O Portador" (19216;O Observador Literúrlo, Comissão Estadual de Cultu-ra, 1959), do qual vem a propósito dcstacar os seguintesexcertos: ",..Nictzsche ensina a combater a complacên-ci4 a mornidão das posiçõcs adquiridas, quc o como-dismo intitula moral ou outra coisa bem soante"(p.419); 'Aceitamos por via de integraçáo, participaçãosubmissa no grupo, tcndendo a tÍansformaÍ os gestosem simples rcpetição automática. Fazcmo-lo para evi-tar as aventuras da personalidade, as grandss cartadasda vida, julgando pôr em prática valores conquistadospor nós mesmos. Ora, a obra de Nictzsche nos pretcndesacudir , arrancar deste toÍpoÍ, mostrando as maneiraspelas quais negamos cada vez mais a nossa humanidade,submetendo-nos em vez de nos afirmarmos" (p.420);"Vindo após séculos de filosofia catedrática, Nictzschese revoltou üolentamente contra a mutilação do cspíri-to de aventura pela oíicialização das doutrinas (p.422);

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"Nietzschc é emincntcmente um educador. Propõe semcessar (...) uma série ds técnicas libertadoras...' (p.423).

(50)

Jean Starobinski, citado e comentado por Jauss em"Gesclrichte der Kunst...", cit. na nota 5,pp.245-246 daed. al.; pp 116117 da ed. fr..

(s1)

Publicado na rcvista SUR, Buenos AiÍes, no 206, 1951,p.31; incluído em Los peras del olmo, México, UNAM,L957.

(52)

W.Benjamin. "Übcr dcn Begriff der Geschichte" (So-bre o conceito dc história), teses XIV, V, VI e ApêndiceA, Gesommelte SchrlÍten, I,2, Frankfurt a.M., 1978 (atradução é minha, nas citações, mas o texto encontra-seem versão brasilcira integral, por Sérgio Paulo Roua-net, cm lrry'.Benjamin, Obras cscolhidos, vol.l, São Pau-lo, Brasiliense, 1985).

(53)

W. Benjamin, ob. cit. na nota 14, ed. al,, p.29; ed. bras.,pp. 67-68. Ieiam-se, a propósitq as observaçóes deSérgioPaulo Rouanet, no tópico"A origem e a gônese"de sua "Apresentação" à tradução brasileira destaobra: 'Na perspectiva da história descontínua, a únicavcrdadeiramente dialética, não se pode porlanto falar

rl4 115

em gêncse, quc sut'oe o vir-a-ser e o encadeamentocausal, c sim em origem, que su@ um salto no Ser,além de qualquer processo." E ainda: 'Mas origem,nada tem a ver com a gênese. A origem (Ursprung) éum salto (Sprung) em direção ao novo. Ncsse salto, oobjeto originado se libcrta do ür-a-ser" (pp. 18-19).Num sentido conveÍgente, Jeanne-Marie Gagnebinsustenta que, no pensamentobenjaminiano, "o conceitode origem", ligado a idéia das "múltiplas transfor-rnaçõcs", jamais foi "substancialista"; cf. Zur Geschi-chtsphllosophie \ül|lter Benjomins (Para a filosofta dahistória de W.Bcnjamin), Cap.III, "Ursprunçneta-physik und Texthcoric in Benjamins Dcnken" (Mcta[í-sica da origem e tsoria do texto no pensamento dcBcnjamin), Erlangcn, Verlag Palm & Enke, 1978, p.148.

(54)

O poblema da "literatura menor", semiologicamentemnsiderado, pode revelar-se um "pseudoproblema",Será menor, porque olvidad4 e em parte iÍrecupcrada,a litcÍatura - tal como chegou até nós - que produziu ostrovadores provcnçais (aliás , inÍluenciada pcla poesiaárabe, cujo fundo tcxtual se perde "em abismo")? Secada litcratura é uma articulação de diferençás no tcxtoinÍinito - "signos em rotação" (O.Paz); 'semiose ilimi-tada" (Peirce via Eco) - da "liteÍatura universal", cadacontributo inovador se mede como tal, é um momentoem certo sentido "monadológico", poÍ sua singulaÍi-dade; porém, logo mais, suscetível dc novas correlaçõcsno jogo dessa combinatória. J.Mukarovsky, num cnsaiode l9,ló "Sullo struttuÍalismo" (cito a veÍsáo italiana em

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I-a funzione, la norma e il valore estetico come fattisociâli, TuÍim, Einaudi, 1974), pÍopóc-se vcr "as re-Iaçõcs entre as artcs de divcrsos paíscs" de mansira nãounilatcral, como costumava fazcr a "ciôncia comparati-va litcriária tradicional", que estabclccia a primazia"quasc apriorística" de dcterminadas literaturas, "ca-pazcs de exercer inÍluôncia", frcnte a outras, "condena-das à acolhida passiva das inÍluôncias cxternas". Essaconccpção tradicional, na litcratura tchcca, foi rcspon-sável pelo "complcxo dc povo pequeno". Mukarovsky,rcfutando-a, sustcnta a ncccssidadc dc a qucstão dasinfluências ser analisada do ponto dc vista das "relaçõcsdialéticas", ao invós dc sc projctar a "imagem dc umalitcÍatura absolutamcntc passiva, cuja evolução sejaguiada pela intcrvcnção casual dc iníluências ündasdesta ou dâqucla partc". Ncga quc a liteÍatura quereccbc influências seja um "parcciro passivo". E argu-mcnta: "Pode, cfctivamcntc, por cxcmplo, recebcr maisdc uma inÍluôncia contcmporancamcnte e dcpois sele-cionar alguma dcntrc clas, graduá-las hicrarquica-mentc e fazcr prcvaleccr uma sobrc a outra, confcrindoassim um sentido a scu conjunto. As inÍluôncias, navcrdade, não agcm poÍ si sós no ambicnte em queintcrvôm, sem prcssupostos: encontram-se com a tradi-ção local à cuja necessidadc sc subordinam. A tradiçãoartística e ideológica local pode , ademais fazer nascerentrc diversas influências tcnsõcs dialóticas" (NIÌ; casodos sonetos híbridos dc Grcgório, mcsclados de tupi-nismos e africanismos). "Por isso é aconselhávcl partirdo prcssuposto de que as artes nacionais particularesencontram-se numa base dc rccíproca paridadc..." (pp.171-173). "Os intluxos, repita-sc, não são expressõcs dasupcrioridadc fundamcntal e da subordinação dc uma

cultura em relação a outÍa; scu aspecto fundamental éa reciprocidade..." (pp. l8at85). É intercssante vcrifi-car como o estrutuÍalista pragucnse, em 1963, numcontcxto dominado polo dogma do "realismo socialis-ta", se empenha em sustcntar, agora com timbÍe mar-xista, a dialeticidadc dc suas idóias sobrc a questão das"pcquenas" literaturas, esforçando-sc poÍ pensar umaciência litcraria não "mccanicista" (Cf. "Obrigaçócs daciência litcrária em relação à litcratura mundialcontcmporânca", tcxto publicado originalmentc cmfrancôs na revista La littérsture compârée en EuropeOrientale, Budapcst, Akadémiai Kiadó, 1963; republi-cado em CÍrculo Lingiiísticode Praga: eslruturalismoe semiologia, antologia organizada por Dionísio Tole-do, Porto Alegrc, Editora Globo, 1978).

(55)

Em "Minha relação com a tradição é musical", entre-vista a Rodrigo Navcs estampada no Folhetim da Folhade S, Paulo, n0 344,21 dc agosto de 1983; republicadano Boletim IlibliográÍico, Sâo Paulo, Biblioteca Máriode Andrade, v. 47, nos 1-4, janciro a dezcmbro dc 1986,p.72, sugeri: "...comparem o elogio do barroco, comoestilo utópico, estiÌo dâs descobertas que resgataram aEuropa do scu egocentrismo ptolomaico (elogio feitopelo 'antropófago' Oswald dc Andrade), com o docubano l-ezama Lima. O autor de Paradiso propunha-se ler a história como uma sucessão de eras imaginá-rias, rcpensáveis por uma memória espermáticâ, aptaa estabclecer conexões surpreendentes, regidas poruma causâlidade retrospectiva ou analógica. Para Lc-zama, oBarroco ibero-americano ó uma orte da contra-

1,16117

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conquista, um estilo plendrio, que ele define corrosiva-mente como uma gronde lepra criadora (por oposiçãoa um barroco europeu já degenerescente, no qual cle vêacumuloç6o sem tens6o). Ver, acima (nota 45), as re-ferências à edição lrlemar Chiampi de  exprnessáoamerlclna , de [-ezam4 e ao meu aÌtigo-reseúa que acomenta (com d€staque à excelentc introdução deI.Chiampi, "A história tecida pcla imagem). De Os-wald de Andrade, consultar A Msrchâ das Utopias(1953), conjunto de artigos coligidos em volume na sériedos Csdernos de Cultura, Rio de Janciro, MEC/Scrvi-ço dc Documcntação, n4139, 1966.

(56)

Jauss exempliÍìca a questão do ..câmbio de horizonte"exatamcnte com o exemplo da rccepção de Gôngora:"Foi , assim, nccessário que a lírica hcrmótica de Mal-larmé c de sua escola preparassem o tcrreno para quese toÍnasse possÍvcl um rctorno à poesia barroca, porlongo tempo dcsdenhada e consequentemente esquèci-da; em especial , paÍa a Íeinterprctação filológica e a'renascença' dc Gôngora." ("Litcraturargeschichte alsProvokation...n,ob. cit. na nota 5, ed. al., p.193; ed. fr., p.67.

(s7)

Benjamin fala numa relação ..intensiva" e não mcra-melte "extensiva" entre as obras de arte. em conoxões"wclchc zcitlos und dcnnoch nicht ohne historischenBelang sind"('quc sáo atemporais e, no entanto, nãodcsproüdasdc importânciâ histórica"); cf. carta de9 de

118 tt9

dezembro de 1923 a Florens Christian Rang, Briefe I,Frankfurt a.M., Suhrkamp, L98, p.322.

(58)

O termo "neobarroco", paÍa caracterizar as "necessi-dades culturmorfológicas da expressão artísticacontemporânea", foi por mim utilizado no artigo "Aobra de arte aberta" , Diório de S,Paulo, 3 dejulho de1955; in A. de Campos, D.Pignatari, H. de Campos,Teoria d8 po€sia concreta / Textos cÍíticos e manifestosI 1950-19(fr, São Paulo, Edições Invenção, 19ó5, p. 31(hoje em 3a. ed., São Paulo, Brasiliense, 1987, p39).Severo Sarduy, de maneira independente e através deuma elaboração própria, usou esse conceito em "ElBarroco y el NeobarÍoco", Amérlcs Lotin! en su lite-ratura, ob. coletiva cit. na nota 14 (desta obra há tradu-ção para o portuguôs, São Paulo, Perspectiva, 1979);segundo Gustavo Gucrrero, Lo estrrtegia neoborroca,Barc-clona, Edicions del Mall, 1987, p.23, Sarduyviúa-se ocupando do tema "desde mcados dos anos sessenta,na esteiÍa de l*zama"i o "ponto culminantc" de suareílexão consistiria no ensaio acima referido. Importasalientar quc Mário de Andrade, o "gongorófobo" de"A Escrava..." (cf. nota l7,acima), reconhece, nâo obs-tante, a pervivência do traço barroquista em nossa lite-ratura. IdcntiÍica-o na "escÍitura artista, artificial, ori-ginal, pessoal, tão sincera e legÍtima como qualqucrsimplicidade", de O Ateneu (1888), de Raul Pompéia,de quem diz: "inconscientemente foi a última e derra-deiramente lcgítima expressão do barroco entre nós; epor muitas vezes, no seu grande liwo, atingiu com aoalavra a bcleza estridente dos ouros da SantoAntônio

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caÌioca ou da São Francisco baiana" (.,O Atcncu',,1941, em^spectos..., ob. cit. na nota 31, p. tS:;. últi*uiQue dizer, ncsse scntido, dc Euclidci da Cínha e Ja"magnificôncia do cstilo" de Os Seíõ€s (1902), reco-nhccida por O.M.Carpcarx na pequena BibtíógraÍiaCrÍtica da LiÍerstura Brasileira, Rio dc Jaíeiro,Ediçõcs Ouro , l9(8, p.21,02 Um estilo que na preseniça,.II (ob. cir. na nora 17, p.319), A.Candido cJ.A.Cas_lcllo, stn(omaticamcnle. tacham dc ,'pomposo e tcnso,,com propcnsão,,para o mau gosto c o dcscquilíbrio,senoo as vez€s obscuro por exccsso vocabular,,; umcstilo cuja influôncia tcria sirJo.,cm geral má,,, cmLoraambos considcrcm quc,,graças ao talcnto expressivolora.do comum, Euclidcs supcra estcs dcfcitos, <.lissol_vcndo-os na rntcgridarJc nobre c hcróica de sua üsãomoral e social". eue dizer - se dcrmos agora um saltopara a contemporaneidade - de Guimarâes Rosa (comClaúcr. Rocha no cincma, um cxcmplo manifcs(o daInllucncra mscminadora da ,,magnificôncia.,

da lingua_gem euclidiana), cujo barroquismo comparci ao dof'aradiso de ltzama Lima, em,,Ruptura clos gôncrosna li(eralura la(ino-amcricana', (1970), cnsaio ilncluíclona,ob. crt. na nota l4(men€o acima) c cstampado emvol. autônomo pcla Editora pcrspcctiva, Sãã paulo,1977, pp. 33-34?

(5e)

O_swald de Andrade , conferôncia cit. na nota 3, supra.Mário Faustino, ,,Evolução da poesia brasilcira il l _urcgoflo de Mattos - 1", "pocsia_cxpcriôncia", Suplc-mento Dominical do Jornal do llrasil, nio .1" iun"iro,14 de setembro de 1958. De ,,engajamento idcológico,,,

modulando o uso do termo a paÍtir da conhccida dcfi-nição de Althusser, falaJ.C. Tcixcira Gomgs (ob. cit. nânoaaZg, pp. 344-y()), rcferindo-se à "sátira grcgoriana"como um "discurso de denúncia". Para ampliar o âm-bito da questão, c não focalizar apenas o preccdcntc dcQuevedo (sempre lcmbrado com propricdadc a rcspci-to, seja do nosso Gregório, scja do ândaluz-pcruanoCaüccles), scria o caso de sublinhar os poemas satíricose burlescos do próprio Gôngora. Os "romanccs" sobrcHcro e Leandro e Príamo e Tisbc, p.cx.,são considcra-dos por R.OJones (Poems oÍ Góngora, CambrirlgcUnivcrsity Press, 196ó, p. 21) "comic mastcrpicccs";nelcs, além de convocar paÍa a taÍcfa jocosa todos osrecursos de seu cngcnho e dc sua "imagética absurrla",Gôngora teria revclado "um desprczo picarcsco pclograndioso e pelo auto-importante". Cabcria tambémmcncionar uma rccente lcitura das Soledades, por JohnBcverley (Madri, Edicioncs Cátcdra, 1979). Na üsáo deBevcrlcy, "Gôngora é um fidalgo dccaído dc suaclasse", um "exilado intcrior", um "Pocta hcterodoxoque escrevc em meio a umsentimento crescentc dc crisce dccadôncia na Espanha c a partir dc uma atitudcpcssoal antagônica à idcologia expansionista-nacionalque sustcnta as cpopóias impcrialistas do século XVI";assim: "As Soledades sintctizám cm forma de antologiatoda a gama da poesia clássica c rcnascentista, mas,necessariamentc , ao prcço de produzircm uma síntcscconflitiva, cheia dc antagonismo c tÍansformaçõcs incs-pcradas: uma soledad confusa"; o "final suspcnso"confere ao poema "a aparôncia dc uma rclíquia ouÍuína" e representaria "uma inconclusão cstratógica",vale dizcr: "a criação dc um scntido fragmcntário dohispânico, não ligado a uma idcologia dc rcprcssão e

120 121

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exploÍaÉo, antes aliado à uma funçâo utópica, infru-tuosa à época, dc "buscar uma cultura e uma sociedadcpossíveis", uma reconciliada "idade dc ouro" (Soledady/o edad de Sol"); ob. cit., pp. 2l-61

(60)

James Amado, 'A foto proibida há 300 anos", in Gre-gório de Mattos, Obras Completos (cits. na nota .10),vol.1, p.XXVII.

(61)

Para uma aprcciaçâo mais complcta do assunto, con-sultaÍ Re/Visão de Sousândrsde. ob. dt. na nota 2,Octaúo Paz, com a sua habitual lucidcz, fornece subsídios que ajudam a compreender a irrupção do "fenô-meno" Sousândrade em pleno romantismo brasileiro:"el romanticismo está condenado a redescubrir el bar-roquismo. Eso fue lo que hizo en la época moderna,antes que nadie, Baudelaire. El manierismo pasionalromántico descmboó en un formalismo: simbolismoprimcro y luego vanguardismo." Uma rcssalva dcve serfeita: csta aÍinidade transepocal (quc Waltcr Benjamintambém rcconheceria em Novalis e na "Íase tar-dia"/Spützrit de Hoelderlin) maniÍcsta-se, a meu veÍ,só no caso dos românticos "intrÍnsccos" (Nerval é outroexcmplo, no espaço francôs), que se voltam rcvolucio-nariamente para a linguagem, não se limitando às "ex-tcriorizações" da emotiüdade não configurada pcla"função poética" (como é o caso do romantismo daimagem tradicional, "canônico" - do qual obrasileiro é,via de rcgra , um exemplo típico; romantismo que eu

r22 t23

orefiro dcnominar "exrrÍnseco"...). CÍ. O.Paz, ob' cit' na

oot" tq p. A0; W.nenjamin, ob. cit. na nota 14, ed' al ,pp.2ff,-211i ed. bras.' idem; H'de Campos, RuPtuÍ8

ããs Gcnems..., ob. cit. na nota 58, ed. Perspcctiva,pp.12-14.

(62)

Cf. Jauss, "LitcÍaturgeschichte als Provokation".'', cit'

na nota 5, ed. al., p p' 192-194i ed. Ír., pp. &(8'

(63)

Antonio Candido, "Dialótica da Malandragcm", sepa-

Íata da Revisto do Instituto de Bstudos Brusileims,

Sáo Paulo, USP, ne 8, 1970, P. 88.

(64)

Nesse sentido , Machado não era "previsívcl". Sua sin-

gularidade - sua dlfcrença - náo pode ser deduzida de

áodo gradualista, em linha evolutiva (Formoção'

II,U7- 8), como se fosse o produto necsssário ds uma

síntese das qualidades de Macedo, Manucl Antônio de

Almeida e Alencar. Essa originalidade rcsulta' antes,

da adoção consciente de uma forma de romanc-e quc se

opõe tanto ao desgastado padrão romântico, quanto ao

realista-naturalista, paÍa remontar, com sua "üsão iÍô-

nica e cética", à "linhagem luciânicâ da liteÍatura oci-

dental", ou seja, à tradição da "sátira menipéia", estu-

dada independentemente tanto por Bakhtin como por

Northrop iìrye; pelo primeiro, como um dos embriões

da "linha cainavatcsca" de evoluÉo do Íomancc; pclo

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scgundq como sinônimo da forma de ficção que sedenomina também "anatomia". Um enfoque minu-dente e convicente da relação de Machado de Assiscom essa "ünhagem luciânica" foi realizado por Enyl-ton José de Sá Rego, em Machodo de Assis, a SátiraMenipéia e a Tradição Luciânica, The University ofTexâs at Austin (tese doutoral), 1984; nesse trabalho,foram exarninadas, com detença, as leituras e inlluên-cias machadianas e as suas posiçóes críticas com respei-to ao romantismo e ao realismo-naturalismo, que lhepermitiram uma nova opção, aparentemenle náo com-preeodida na estrada rcal da "séric romanesca" norma-tiva. Voltando à Diâlétics. nela Manuel Antônio deAlmeida já não aparece "colocado, pelas própriascondições de evolução literária da sua tcrra, numa po-sição intcrmediária" (Formaçáo, II,216). Antes, ir-rompe em contrsste "com a ficção brasileira do tern-po", sobretudo em oposiçáo a Alencar; surge comopioneiro de uma nova forma, o "romance malandro"(aqui, poderíamos também dizer "carnavalizado'), queguarda "algumas analogias e muitas diferenças em re-lação aos Íomances picarescos", mas que remonta auma"lradição quase folclórica" e corresponde "a certaatmosfera ómica e popularesca de seu tempo" (Dial,pp.85, 70-71). Nesse sentido, se é por um lado arcsicqporoutro é lnoyadoq antecipando-se ao romance "mo-dernista" de Oswald e Mário de Andrade (Dial.,88). Eassim também, num sentido muito essencial, já que asMemórias de um Saryento deMilícias são "a anatomiaespectral" do "Brasil joanino" (Dial.,88), pode mostÍar-se precursor - poÍ que não? - da própria forma "eÍra-vagante" que o 'anatomista" Machado fora colher nofiláo marginal da "tradi$o luciânica", trocando a bo-

124125

nomia irreverente de Manuel Antônio pela mirada irô-nica e pelo distanciamento ético ("nosso Borges noOitocentoJ', como costumo dizer.,,).

(6t

"Dialética...", cit. na nota 63, pp. 86-88.

(66)

W.Benjamin, "Schicksal und CharackteÍ", Gesamm€lteSchriften (cit. na nota 52), II,l, pp. 172-173 e L78.

(67)

"Epos e Íomanzo", em G.Lukács, M, Bachtin e altri,Problemi di Teoria del Românzo, Turim, Einaudi,1976,pp.2l6-218; cf ,também a excelente ed. americanadesse texto , aos cuidados de Michael Holquist, M.M'Bakhtin, The Diatogic Imaginrtion, Austin e Londres,University of Texas Press, 1981 ("Epic and Novel"), pp.35-38.

(68)

Augusto de Campos, "Artefinal paraGregório", BahiaInvençáo /anti-antologia de poesia baiana, Salvador,Propeg 1974; republicado em 0 Anticútico, São Paulo,Companhia das l-etras, 1986, p. 90.