camões e o neoplatonismo

Upload: bruno-conceicao-oliveira

Post on 28-Oct-2015

34 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • O MARRARE 7 Peridico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJ 67

    O MARRARE - Peridico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJwww.omarrare.uerj.br/numero7/marina.htm

    Nmero 7 (2006) - ISSN 1981-870X

    A direo do olhar: pode um desejo intenso, ode vi de Lus de Cames

    Marina Machado Rodrigues (UERJ)

    ResumoO objeto deste trabalho a leitura da ode VI, de Lus de Cames, Pode um desejo intenso. As

    discusses autoral e textual relativas lrica so imprescindveis, ainda hoje, uma vez que a tradio impressa tem veiculado textos corrompidos desde o sculo XVI, em face da inexistncia de autgrafos do Poeta. Utilizamos aqui o texto estabelecido por Leodegrio A. de Azevedo, apurado luz dos manuscritos quinhentistas, em confronto com a tradio impressa. Na leitura proposta, questionamos o rtulo imputado pela crtica especializada em geral, que tem considerado o texto modelo acabado do neoplatonismo quinhentista.

    Palavras-chave: Literatura Portuguesa, Lrica de Cames, Neoplatonismo

    AbstractThis work is a reading of Luis de Cames ode VI, Pode um desejo intenso. Discussions related to

    authorship and lyric themselves are, still now-a-days, crucial, since printing tradition has issued adulterated 16th century texts due to the inexistence of authoral autograph. Weve decided for the version settled by Leodegrio A. de Azevedo that takes into consideration 16th century manuscripts in opposition to current printed tradition. We call in question the attitude of criticism that has considered this text as a pattern of 16 th neoplatonism.

    Key words: Portuguesa Literature, Lyric by Cames, Neoplatonism.

    A ode moderna se inaugura com os textos latinos de Francisco Filelfo e pode ser considerada uma

    recriao do Renascimento italiano, embora suas razes remontem ao perodo clssico, sofrendo in uncias da poesia de Pndaro, das canes anacrenticas e das odes de Horcio.

    Segundo Nadi Paulo Ferreira (FERREIRA, 2000, p.36-37), a ode uma composio potica destinada ao canto, podendo ser acompanhada da lira ou outro instrumento de corda e enaltecia o amor e os prazeres do vinho e da mesa. Mais tarde, alm de privilegiar os temas hericos - em que sero exaltados os vencedores da guerra e dos jogos olmpicos - a lira substituda pela auta. Divide-se em trs partes: os encmios inicial e nal (que visavam louvao de algum digno de feitos nos jogos ou na guerra) e a narrao de episdios mticos.

    A partir do sculo XIV, a ode passa a ser classi cada segundo o tema e a forma:

    Quanto ao tema: herica ou pindrica; los ca e moral ou s ca; amorosa, pastoril, bquica ou anacrentica. Quanto forma: ode tripartite ou pindrica, em que a estrofe e a antstrofe (a segunda parte) apresentam versos organizados em um padro nico e a pode ou epodo em um padro diferente; ode homostr ca ou horaciana em que as estrofes se organizam em um mesmo modelo; e a ode irregular ou livre. (FERREIRA, 2000, p.37)

  • O MARRARE 7 Peridico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJ 68

    O MARRARE - Peridico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJwww.omarrare.uerj.br/numero7/marina.htm

    Nmero 7 (2006) - ISSN 1981-870X

    Por ser uma espcie que requeria um formalismo acentuado, a ode no chegou a ter em Portugal a mesma aceitao que outras formas obtiveram. Foi amplamente cultivada por Antnio Ferreira, mas, em contrapartida, no se tem notcia da publicao de uma nica ode de S de Miranda. Bernardes publicou apenas uma e a Cames foram atribudas 14 no perodo de trs sculos contra 400 sonetos.

    A ode VI, objeto de nosso estudo, integra os seguintes manuscritos, com atribuio expressa de autoria a Cames: Ms. Jur 28; MA 33v. Alis, na tradio manuscrita, o texto no foi encontrado sem indicao de autoria. Como se constata a seguir, no se inclui na editio princeps, mas recolhida por MA, foi publicada na segunda edio.

    As 14 odes atribudas a Cames pela tradio impressa vm discriminadas a seguir:

    RH 1595

    1 - Detm um pouco, Musa, o largo pranto

    2 - Fermosa fera humana

    3 - Nunca manh suave

    4 - Se de meu pensamento

    5 - To suave, to fresca e to fermosa

    Esta ltima, alis, EPF mostrou no se tratar de uma ode, mas de uma cano, cujo commiato resgatou a partir dos comentrios eruditos feitos ao texto na edio de Faria e Sousa (1685-89).

    RI 1598

    1 - Aquele moo fero

    2 - Aquele nico exemplo

    3 - A quem daro de Pindo as moradoras

    4 - Fogem as neves frias

    5 - Pode um desejo intenso

    DF 1616

    1 - J a calma nos deixou

    2 - Naquele tempo

  • O MARRARE 7 Peridico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJ 69

    O MARRARE - Peridico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJwww.omarrare.uerj.br/numero7/marina.htm

    Nmero 7 (2006) - ISSN 1981-870X

    JUR 1860/69

    1- Fora conveniente

    2 - To crua Ninfa, nem to fugitiva

    De acordo com a metodologia utilizada por Leodegrio A. de Azevedo Filho para o estabelecimento do corpus autntico da lrica de Cames, das 14 composies, apenas 6 atendem aos critrios propostos:

    1 Aquele nico exemplo (1598)

    (MA 30v; Ms. Jur 30; GO IV; RI 63)

    2 - Aquele moo fero (1598)

    (MA 33v; Ms. Jur 30v; RI 66)

    3 - A quem daro de Pindo as moradoras (1598)

    (MA 29v; Ms. Jur 28v; RI 61v)

    4 Fermosa fera humana (1595)

    (Ms. Jur 16; RH 48; RI56v)

    5 - Fogem as neves frias (1598)

    (MA 32v; PR 71; Ms. Jur 29; RI 64v)

    6 - Pode um desejo imenso (1598)

    (MA - 27; Ms. Jur - 28; RI - 59v)

    Dentre as odes publicadas em RH, somente uma integra o corpus minimum; as demais so todas provenientes de RI, recolhidas por MA. Os textos excludos, com exceo de J a calma nos deixou e Naquele tempo brando - ambos introduzidos por DF sem respaldo manuscrito - aguardam con rmao de alguma outra fonte para que passem a integrar o corpus autntico, ou no, j que a seu favor conta um nico testemunho manuscrito.

    O texto a seguir foi xado por Leodegrio A. de Azevedo Filho e publicado no volume 3 - Odes, Tomo II - de sua edio crtica da lrica de Cames. (AZEVEDO FILHO, 1997, p.225). O texto de base utilizado para o estabelecimento crtico foi o do Ms. Jur.

    Indicamos as variantes veiculadas por MA, em transcrio diplomtica, nas notas de rodap. No consideramos divergncias: pontuao - de responsabilidade de cada editor -; acentuao; indicao de apstrofos; maisculas, cujo uso no estava regularizado no sc. XVI; e particularidades meramente gr cas, j que a gra a das palavras oscilava bastante na poca. Esclarecemos ainda que o incipit consagrado pela tradio impressa, j a partir de RI, foi o veiculado pela lio de MA (Pode um desejo imenso).

  • O MARRARE 7 Peridico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJ 70

    O MARRARE - Peridico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJwww.omarrare.uerj.br/numero7/marina.htm

    Nmero 7 (2006) - ISSN 1981-870X

    Pode um desejo intensoarder no peito tantoque branda e viva alma; o fogo imensolhe gaste as ndoas do terreno manto;e puri que em tanta alteza o esprito,que com os olhos mortais,erguendo-os, lea mais do que v escrito

    Que a ama que se ascendealto tanto alumiaque, se o nobre desejo ao bem se estende,que nunca viu, j sente claro diae l v do que busca o natural:a graa, a viva cor,noutra espcie milhor que a corporal.

    Pois vs, claro exemplo,de viva fermosura,que eu de to longe j noto e contemplonalma, que este desejo sobe a apura:no creais que no vejo aquela imagemque as gentes nunca vem,se de humanos no tem muita avantagem.

    Que se os olhos ausentesno vem a compassadaproporo, que das cores excelentesde pureza e vergonha variada;a qual a poesia que cantou,at aqui s pinturas,com mortais fermosuras igualou;

    Se no vem os cabelos,que o vulgo chama de ouro;e se no vem os claros olhos belosde que cantam, que so do sol tesouro;e se no vem do rosto as excelncias,a quem diro que deve rosa, cristal e neve as aparncias?

    Vem logo a graa pura,a luz alta e severa,que raio da divina fermosura,que nalma imprime e nalma reverbera,assi como cristal do sol ferido,que por fora derramaa recebida ama, esclarecido.

  • O MARRARE 7 Peridico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJ 71

    O MARRARE - Peridico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJwww.omarrare.uerj.br/numero7/marina.htm

    Nmero 7 (2006) - ISSN 1981-870X

    E vem a gravidadecom a viva alegria,que mesturadas so, de qualidade;que a de outra nunca se desvia,nem deixa a de ser arreceada,por leda e por suave,nem outra, por ser grave, muito amada.

    E vem do honesto sisoos altos resplandores,temperados com doce e alegre riso,a cujo abrir abrem no campo as ores:as palavras discretas e suaves,das quais o movimentofar deter o vento e as altas aves;

    Dos olhos o virar,que torna tudo raso,do qual no sabe o engenho divisar,se foi per artifcio ou feito acaso;da presena os meneos e a postura,o andar e o mover-se,donde pode aprender-se fermosura.

    Aquele no sei qu, que aspira no sei como,que invisbil saindo, a vista o v,mas pera o compreender no lhe acha tomo,o qual toda a toscana poesiaque mais Febo restaura,em Beatriz nem Laura nunca via;

    Em vs a nossa idade,Senhora, o pode ver,se engenho, cincia e habilidadeigual fermosura vossa houver.Eu a vi no meu longo apartamento,qual com presena a vejo:tais asas d o desejo ao pensamento!

    Pois se o desejo a naa acesa alma tanto,que por vs use as partes da divina;por vs levantarei no visto canto,que o Btis me oua, e o Tibre me levante;que o dourado Tejoenvolto o vejo um pouco e dissonante.

  • O MARRARE 7 Peridico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJ 72

    O MARRARE - Peridico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJwww.omarrare.uerj.br/numero7/marina.htm

    Nmero 7 (2006) - ISSN 1981-870X

    O campo no no esmaltam ores, mas os abrolhoso fazem feio; e cuido que lhe faltamouvidos pera mi, pera vs olhos;mas faa o que quiser o vil costume,que o sol que em vs estna escurido dar mais claro lume.

    A estrutura formal da ode, denunciando a in uncia de Horcio, se compe de 13 estncias regulares de 7 versos, totalizando 91 versos, que se alternam entre hexasslabos (com acentuao na 2 e 6 slabas) e decasslabos hericos, seguindo o esquema ababcdc.

    Do ponto de vista do contedo, a ode VI apresenta caractersticas muito peculiares. Ao contrrio da maioria dos textos camonianos, nela esto ausentes as queixas motivadas por tormentos amorosos e o dissdio, elementos de ascendncia petrarquista que encontraram larga aceitao na potica do sculo XVI. A dama aqui no repercute as caractersticas da Laura ptrea, a doce inimiga, esquiva, imagem recorrente na lrica camoniana; tambm a ausncia no espao ou no tempo no con gura o amor no correspondido, ao contrrio, entre o amador e a dama parece haver uma certa relao de identidade, ambos vtimas da indiferena ou incompreenso da sociedade portuguesa, tal como se depreende da leitura do verso 88.

    Como no h con ito, as antteses so complementares, atestando a harmonia e a proporo prprias da esttica renascentista, que se mantm por 12 estrofes.

    A ode VI transborda os signi cantes que vm induzindo, com alguma freqncia, os estudiosos da lrica ao questionamento da natureza do discurso los co na poesia camoniana. As discusses em torno do assunto resultaram num sem nmero de publicaes, nas quais se vislumbra, na produo potica de Cames, a presena desta ou daquela orientao, provindas das principais teorias los cas que (res)surgiram durante o sc.XVI.

    A crtica especializada de modo geral tem concordado em dois pontos: o primeiro recai sobre a a rmao de que o texto um exemplo acabado da loso a neoplatnica; o segundo, referente ltima estrofe, considerada no mnimo enigmtica, quando no uma excrescncia, por destoar inteiramente do tom veiculado nas 12 estrofes anteriores. Nossa chave de leitura, na contramo da crtica, considera principalmente aquela, por oferecer novas possibilidades de leitura, j que o tom de melancolia ali expresso compromete, como se supe, a unidade semntica da composio. No acreditamos na existncia de estrofes supr uas na poesia camoniana. Ainda mais quando se trata da ltima, encerrando uma concluso. Segundo acreditamos, o tom disfrico tem uma funo precisa na composio.

    A primeira estrofe explicita o libi que redime a culpa: a arquitetura textual, erigindo o sujeito em direo ao objeto divinizado, induz a rmao de que o desejo, puri cador como o fogo, opera tal prodgio. A alma, livre do pecado e das exigncias corporais (ndoas do terreno manto), ento transposta de um plano a outro. O amor conotado como mal - em composies onde sobejam o desejo (considerado herege sentimento), a melancolia e a conscincia da impossibilidade de concretizao - aqui transmutado em bem, por signi car a possibilidade de transformar o proibido em nobre sentimento, j que, como ensinaram os neoplatnicos, a alma ter sempre preeminncia sobre o corpo.

    A dicotomia querer/no possuir, duas faces de uma mesma moeda que racionalmente no se coadunam, arrasta o sujeito fantasia inconsistente de ascenso do amor humano ao amor divino por intermdio da razo, como quer a loso a amorosa vazada nos moldes neoplatnicos.

    De acordo com Ficino:

    El amor considera como su n el disfrute de la belleza. sta slo pertenece a la mente, al ver y al or. Ergo, el amor se termina [se limita] a estos tres. De ah que, ciertamente, el

  • O MARRARE 7 Peridico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJ 73

    O MARRARE - Peridico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJwww.omarrare.uerj.br/numero7/marina.htm

    Nmero 7 (2006) - ISSN 1981-870X

    deseo que sigue a los restantes sentidos, no se llama amor, sino libido y rabia... Nosotros disfrutamos con aquella parte con que conocemos, y conocemos con la mente, la vista y el odo. As que con estos disfrutamos, y con el resto de los sentidos usufructuamos no de la belleza, que desea el amor sino antes bien de cualquiera otra cosa a la que nos lleva y puede necesitar el cuerpo. (Apud. CIORDIA, p. 54)

    Petrarca, mais que humanamente, sublima o desejo pela amada, jogando-o para outra cena. Em Cames, o desejo se escancara porque humanamente impossvel neg-lo, tanto assim que modi cado pelo adjetivo intenso ou metaforicamente dito fogo imenso. A tentativa do sujeito de harmonizar o con ito entre o desejo e uma moral religiosa que interdita o gozo e a felicidade terrenos leva o sujeito potico a construir uma estrutura lgica em que, por intermdio da razo, o amor espiritualizado concebido enquanto possibilidade conceitual (pode). Desse modo, teoriza ele:

    Pode um desejo intensoarder no peito tantoque branda e viva alma o fogo imenso lhe gaste as ndoas do terreno manto

    A dicotomia amor/desejo se dissolve, por artes do prprio amor, cuja potncia permitiria a purgao do

    desejo, gastando/transformando as ndoas do terreno manto, e dissolvendo a contradio corpo/alma. A contemplao da amada constitui a via pela qual se d essa ascenso, real objetivo do amor espiritualizado, cujo m ltimo a fruio da beleza, do bem e da verdade. Apesar dos olhos mortais, o sujeito puri cado ser capaz de ler mais do que v escrito.

    Colocando a razo a servio do desejo, o sujeito, aparentemente, concilia o inconcilivel. Tal atitude, segundo nos parece, expressa menos um sentimento genuno do que o esforo de reproduzir modelos a que o texto se reporta: Dante e Petrarca; ou a tentativa de superao da culpa, que desmascarada pelos versos nais da ode, corroendo, desde logo, a herana do amor espiritualizado, que se costuma atribuir a Cames.

    Segundo Haddad (s/d, p.15):

    A amada para Petrarca foi o que fora Beatriz para Dante, um meio de comunicao com a Divindade, um instrumento de aperfeioamento moral, a grande intermediria entre o Poeta e o cu. Com esta divinizao da amada, procuravam os poetas resolver o con ito existente entre o profano e o sagrado, entre Deus e o Amor, entre o tico e o ertico. Petrarca retomava e dava maior amplitude teoria de Santo Agostinho de que a criatura um meio para se elevar ao Criador. Esse esprito possui razes mais remotas e essenciais na loso a platnica que principalmente em Fedro e no Banquete expe a sua transcendente teoria do amor.

    Jamil Almansur Haddad (s/d, p.17) a rma na introduo ao Cancioneiro que, na potica de Petrarca, Laura era o caminho do cu, um instrumento de adeso mstica, uma revelao de beatitude. Realiza o ideal dos trovadores, a concepo de amor dos stilnovistas; encarna os sonhos de Plato e Plotino e de certa maneira a ascese medieval.

    Para Plato, o amor existe como verdade, alcanvel numa escala de grandezas. Assim de ne Diotima a via amorosa:

  • O MARRARE 7 Peridico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJ 74

    O MARRARE - Peridico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJwww.omarrare.uerj.br/numero7/marina.htm

    Nmero 7 (2006) - ISSN 1981-870X

    A partir da beleza mortal, elevar-se incessantemente para o imortal, como por degraus, de um corpo belo para dois e de dois para todos; os corpos belos para a beleza dos costumes; da para os conhecimentos belos e dos conhecimentos, nalmente, para esse conhecimento que no tem outro objeto seno a beleza em si mesma: ento revela-se, no m, o prprio ser do belo. (PLATO, 1977, p.87)

    Mas se Dante, imerso no imaginrio medieval, foi fortemente in uenciado pela tradio religiosa e, sob o in uxo do stilnovismo, concebia a gura de Beatriz como a dama angelicada atravs da qual obteria a salvao da alma, Petrarca, j antecipando a racionalidade e o ideal de harmonia, caractersticos do Renascimento, tentava equilibrar o con ito entre o corpo e a alma, fazendo da interdio um exerccio de apuramento moral. Em Cames, no ocorre nenhuma das duas coisas; a beleza da amada absoluta e somente a fruio dela interessa ao sujeito. A leitura do texto no autoriza que se a rme um carter angelical na con gurao do per l da dama, como na potica do stilnovismo. Da mesma forma, no se trata, como em Petrarca, de mascarar a indiferena, louvando-se as virtudes morais de Laura. O amor humano no quer ascender ao amor divino. A no ser que seja ela mesma a divindade.

    No sculo XVI, o cnone referenciado, mas transformado, j que outra sensibilidade e outra mundividncia se interpem entre os poetas e seus modelos. As in uncias da escola petrarquista chegam a Portugal em incios do sculo XVI, trazidas por S de Miranda, com mais de um sculo de atraso. Do ponto de vista formal, os metros e formas herdadas da poesia italiana basicamente se limitam aos modelos. Entretanto, no que concerne ao contedo, o que chega a Portugal j um pr-maneirismo, que se caracteriza pela tenso e pelo con ito. Ao longo do sculo, as contradies se agudizam e a melancolia ser o sentimento dominante da lrica quinhentista. Os ideais de clareza, de harmonia, de equilbrio, a crena na elevao do homem pelo esprito, atravs da razo, que vigeram durante o sculo XV e re etiam um cosmos ordenado, j no tm razo de ser, em face das crises sucessivas que eclodem ao longo do sc. XVI, implicando um sentimento de desvalia e a conscincia do desconcerto do mundo.

    Na ode VI, percebe-se a tentativa de reproduo no s de um cdigo potico, mas de uma loso a amorosa. Entretanto, a leitura da obra de Cames nos autoriza a a rmar que tal atitude se constitui uma situao de exceo. A esse propsito, Rita Marnoto (1997, pp.663-664) observa que:

    (...) o neoplatonismo desempenha um papel muito importante, porque s luz do seu iderio dado ao poeta superar o dissdio petrarquista. So dois os planos sobre os quais se projeta, o do humano, que tem Cames por representante de primeira grandeza, e o divino, para o qual o poeta tende j em Sbolos rios que vo, mas ao qual sero autores de inspirao religiosa a conferir a sua verdadeira dimenso lrica.

    No caso de Cames, so dois os momentos em que se acha particularmente prximo da felicidade a ode sexta, Pode um desejo imenso (...) e as redondilhas Sbolos rios que vo(...), ambas devedoras ao iderio neoplatnico. Na primeira esboado um itinerrio susceptvel de conduzir plenitude atravs do amor. Na segunda, so desenhados os caminhos que levam s vias da salvao em Deus. (...) Todavia, em ambos os casos, os elementos em oposio que sustentavam o dissdio petrarquista, ao serem equacionados luz do ideal neoplatnico, so de nitivamente afastados da funo desagregadora que assumiram nos Rerum uulgarium fragmenta.

    Concordamos com Rita Marnoto, quando a rma que, na ode VI, o Poeta esboa um itinerrio susceptvel de conduzir plenitude atravs do amor. O termo suscetvel sugere, em nossa opinio, precisamente apenas uma possibilidade. Uma outra a rmao da mesma autora parece corroborar nosso ponto de vista quando aduz que:

  • O MARRARE 7 Peridico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJ 75

    O MARRARE - Peridico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJwww.omarrare.uerj.br/numero7/marina.htm

    Nmero 7 (2006) - ISSN 1981-870X

    A viso paradisaca muito freqente na poesia quinhentista de inspirao neoplatnica. Todavia, em Cames, a barreira entre terreno e ultraterreno muito raramente consegue ser completamente anulada. O poeta sente no s que os seus louvores tm limites, como tambm que lhe impossvel ascender at tamanha perfeio. (MARNOTO, 1997, p.573)

    Na segunda estrofe, o desejo, agora tido como nobre, permite ao amador ver o que antes no podia ser visto (j sente claro dia) caso a alma no estivesse desembaraada das ndoas terrenas. O advrbio l denota o movimento de ascenso e ao mesmo tempo a possibilidade de vislumbrar, no carter (a viva cor) e na graa, outra espcie milhor que a corporal. Tal concepo repercute os versos de um soneto de Petrarca, traduzido do Canzoniere por Jamil Almansur Haddad (s/d, p.34) em que o sujeito lrico conclui, a propsito de seu amor por Laura, pouco prezando o que cada um anseia (desejos sensuais)/ dela que provm graa animosa (aludindo mais formosura da alma que exterior)/ Que ao cu te eleva pela destra via./ E esta esperana (a de ir ao cu) faz a alma orgulhosa. Os esclarecimentos entre parnteses esto nas notas edio de Haddad.

    Se a burla consiste em apresentar o desejo como elemento puri cador e puri que em tanta alteza o esprito o sujeito, na tentativa de reverter o impasse criado entre o ver e o desejar, acaba por se emaranhar cada vez mais na teia que tece, porque se os olhos preferem a alma ao corpo, os sentidos o traem e a presena persiste ainda.

    Nesse texto, o lugar da sublimao, alternativa para a impossibilidade, que advm da internalizao da proibio, por exigncia da moral religiosa, engendrando as noes de Amor como Bem e como Mal, no se efetiva, porque o sujeito no almeja alcanar o bem, ou a beleza ou a verdade, atravs da puri cao. Com olhos mortais, ele enxerga superlativamente as qualidades de sua dama, quer as fsicas, quer as morais - nos moldes do cdigo petrarquista - mas a dama emana uma essncia que em nenhuma outra foi encontrada antes (o qual toda a toscana poesia/ que mais Febo restaura/ em Beatriz nem em Laura nunca via).

    Mas se o sujeito potico no sublima, tambm no realiza, e a sntese desejar/no ter consiste na construo de um espao narcsico onde, atravs da alma, ele possa transformar uma relao de ausncia numa relao de presena. O que ainda no resolve, porque o amor quanto mais espiritualizado, menos sacia. A sensibilidade propiciada pela puri cao do desejo faz com que este sujeito perceba superlativamente a viva fermosura aguando ainda mais o mesmo desejo.

    Na terceira estrofe tem lugar a oposio entre o sujeito e as gentes que no so capazes de ver os dotes extraordinrios de sua dama:

    No creais que no vejo aquela imagemque as gentes nunca vem,se de humanos no tem muita avantagem.

    Nas estrofes seguintes (IV e V), o amador descreve o que no visto/reconhecido pelos outros (olhos ausentes): no vem a compassada proporo, que s foi igualada por pinturas, tal a perfeio dos traos. Seguindo o padro esttico de beleza consagrado por Petrarca e pelos petrarquistas, enaltece os louros cabelos, os claros olhos, a pele branca, e uma beleza no encontrada em seres humanos mortais fermosuras, a quem devem as aparncias: rosa, cristal e neve. Os elementos da natureza rendem tributo dama que lhes serve de modelo. A leitura da estrofe V, vs. 6 sugere que, embora o vulgo tenha consagrado tais qualidades como positivas, no percebe que tais dotes emanam da dama, at porque s o desejo permite tal conhecimento.

    Nas estrofes que se seguem, VI, VII, VIII e IX, as descries compreendem o que os olhos vem a

  • O MARRARE 7 Peridico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJ 76

    O MARRARE - Peridico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJwww.omarrare.uerj.br/numero7/marina.htm

    Nmero 7 (2006) - ISSN 1981-870X

    graa/pureza, o equilbrio, o temperamento, a elegncia; atributos valorizados tanto pela tradio medieval dos cantares de amor, quanto pela esttica renascentista.

    A partir da estrofe IX, retorna aos atributos fsicos que funcionam como estratgias de seduo. Nesse ponto, o sujeito se questionar, j sabendo de antemo a resposta, se h na dama uma inteno clara de seduzir ou no (o virar dos olhos, os meneios, o andar, o mover-se etc.), do qual no sabe o engenho divisar,/ se per artifcio ou feito acaso. A resposta remete aos versos da IV estrofe: de pureza e vergonha variada, o que talvez a faa diferente das demais. At que o leitor esbarra na estrofe X com algo inde nvel e paradoxal:

    Aquele no sei qu, que aspira no sei como,que invisbil saindo a vista o v,mas pera o compreender no lhe acha tomo,

    Os efeitos sobre o sujeito se faro sentir desde j, quando confessa a impossibilidade de explicar, pela via intelectual (mas pera o compreender no lhe acha tomo), o que saindo a vista o v. No pode nomear o que sente e simplesmente conceitua a sensao como algo vago, aquele no sei qu. Se racionalmente impossvel compreender, ao nvel dos sentidos impossvel no perceber. Dela emana tal fora de atrao (que aspira no sei como) como nunca se viu em outra, nem mesmo em Beatriz ou Laura. Esse elemento inde nvel podia ser decodi cado por quem, como ele, soubesse. Aqui o verbo aspirar pode ser lido tambm com o sentido de atrair.

    A esse propsito, a rma Marnoto (1997, p. 670):

    A sua presena no , de forma alguma, directamente assimilvel mulher enaltecida por Dante, ou donna angelicata cantada por qualquer poeta do stilnovo, porque o fundo neoplatnico da concepo do amor que subjaz a esta ode confere um sentido muito diverso s vias perfectivas atravs das quais se processa a elevao do amante (...). Mas ela tambm no uma Laura, e isto, alm do mais e de sobremaneira, visto que a de nio do seu estatuto supera qualquer tipo de hesitao entre corpo e esprito, entre passio e caritas que jamais se tivesse colocado a Petrarca. Anseios terrenos e anseios espirituais encontram-se ambos presentes, para serem integrados numa viso harmnica que no nega nenhum desses aspectos, e que, por outro lado, tambm no os coloca em confronto hierarquiza-os, dando primazia segunda ordem de aspiraes, e fazendo da primeira um meio para ascender at segunda.

    Maria Helena Ribeiro da Cunha observa que a ode nos remete a trs conceitos bsicos extrados do

    neoplatonismo amoroso:

    - O amor idealizado ala a tal altura o esprito, que faz contemplar uma realidade extraterrena;

    - Esse amor, chama orientadora do esprito, se dirigido para o Bem, ilumina a realidade inteligvel;

    - Sublimado na ausncia, o amor, ou a contemplao da mulher amada, re exo da Beleza Divina, enobrece a alma e nela executa a imagem corporal. (CUNHA, 1980, p.22)

  • O MARRARE 7 Peridico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJ 77

    O MARRARE - Peridico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJwww.omarrare.uerj.br/numero7/marina.htm

    Nmero 7 (2006) - ISSN 1981-870X

    Ao nvel manifesto, o desejo apresentado como Bem, num mecanismo de burla, que, ao invs de rebaixar aquele que o sente, eleva-o. Ao nvel latente, um expediente usado para neutralizar a culpa.

    Ainda no mesmo ensaio, uma outra observao de Maria Helena R. da Cunha nos chamou ateno:

    Todo o andamento dialtico, alis, mostra-nos a interpretao neoplatnica da metafsica amorosa na Ode VI: desde a imagem do crculo at a realizao do processo amoroso na alma do amante, que percebe a graa de um corpo, - sua ordem, medida e aspecto atravs dos olhos, mas principalmente atenta para a virtude moral, traduzida na elegncia re nada, nas palavras, nos gestos e nos atos. (CUNHA, 1980, p.26, nota 34)

    A imagem do crculo usada como de nio da loso a neoplatnica, onde existe uma atrao contnua que parte de Deus e, como crculo, retorna ao ponto de partida, onde o amor necessariamente bom, porque nasce do Bem, no encontra ressonncia num texto onde o Bem o prprio objeto amado, e o desejo ocupa o lugar privilegiado de veculo.

    A lgica do texto se funda no desejo como estruturador de sentido. A partir da construo de uma dicotomia que se apia nos paradigmas ver/no ver, o sujeito potico estabelece as relaes entre ele e o objeto.

    A primeira distino a ser feita, em relao s duas ltimas a rmaes, reside na natureza do discurso amoroso. Cames opta por desejar, ainda que para tanto se arme de um mecanismo iludente que transforma o desejo, valorado negativamente pelo imaginrio de poca, em Bem, a partir das metforas do fogo (lume, ama, arder) que puri cam o esprito (lhe gasta as ndoas do terreno manto), esvaziando o signi cante sofrimento. Com esse argumento, sujeito puri cado e objeto divinizado ocupam lugares equivalentes semanticamente (os olhos mortais contemplam a fermosura que nem Laura nem Beatriz possuram) e a relao desejante x desejado permanece como possvel.

    A questo do neoplatonismo igualmente transparente neste texto. Maria Helena R. da Cunha faz a seguinte observao a esse propsito:

    Na ode camoniana[VI], portanto, fcil reunir pontos de contato com a obra platnica, embora, como natural, se enriquea de novos elementos, inspirados nos neoplatnicos quinhentistas, ou nos textos poticos que constituem herana de longa tradio corts e gentil. Mas a idia fundamental da loso a platnica no poderia estar melhor colocada do que na Ode de Cames, e que j se encontra nas redondilhas Sobolos rios que vo: a chama orientadora do amor tem por m elevar o amante ao conhecimento da Beleza Absoluta. (CUNHA, 1980, p.22)

    A Beleza Absoluta, como verdade a ser alcanada, um signi cante vazio na potica camoniana. A amada ela prpria a Beleza Absoluta e no veculo para se chegar a. Os elementos escpicos, que compem a aura de luminosidade, aliados aos olhos - espao de contemplao; a repetio exaustiva do verbo ver; a racional tentativa de de nio de um objeto que ocupa a ordem da subjetividade, porque se inscreve a partir da tica do sujeito lrico; a presena, que resgatada de uma relao de ausncia e por isso habita narcisicamente a alma do sujeito, invariavelmente conduziriam ao caminho escolhido pela crtica, de modo geral.

    A fermosura desencadeia o desejo. Mas os olhos mortais, ao lerem mais do que vem escrito, acabam por ler o interdito e calam. Na mesma estrofe, retoma-se a questo do espao narcsico como construo simblica, a partir da a rmao:

  • O MARRARE 7 Peridico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJ 78

    O MARRARE - Peridico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJwww.omarrare.uerj.br/numero7/marina.htm

    Nmero 7 (2006) - ISSN 1981-870X

    Eu a vi no meu longo apartamentoqual com presena a vejo:tais asas d o desejo ao pensamento

    Colando sua, a alma/presena do objeto, rompe-se a barreira representada pelo espao fsico, atravs da dupla dimenso ver/saber, que o desejo inaugura. Esses trs versos remetem estrofe III, transmutando as categorias tempo/espao que conhecem novo regime na ordem do pensamento.

    Que de to longe j noto e contemplonalma, que este desejo sobe e apura

    Nessa nova ordem se inscrevem as categorias corpo/esprito; e ainda que o sujeito se esforce por dissimular, ele no recupera a totalidade do ser denegada pela Lei. Se, narcisicamente, constri um espao que lhe garanta a manuteno do desejo, o prprio texto desrealiza esse lugar, na medida em que o sujeito se d conta de que apenas duas possibilidades do trinmio conhecer/desejar/ter so alcanveis, propiciando a emergncia do discurso melanclico.

    A tentativa de espiritualizao do amor, transformando amor humano em amor divino, porque est na ordem do pensamento, se faz como possibilidade apenas: Pois se o desejo a na/a acesa alma tanto, /que por vs use [possa usar] as partes da divina; por vs levantarei no visto canto. S que tal projeto perde a razo de ser, diante da impossibilidade: no h olhos para ela, o que signi ca dizer/ reconhecimento, nem ouvidos para ele, o que far do no visto canto incuo.

    A estrutura textual aponta para um movimento ascendente que se cria a partir das colocaes antitticas do sujeito, na primeira estrofe, com a instaurao do entimema e toma sempre uma direo racional para explicar uma ordem subjetiva, at a penltima estrofe, quando tem lugar um movimento de queda, e o equilbrio do texto despenca na queixa expressa pelo sujeito.

    O desejo como instaurador de sentido e veculo de acesso ao espao privilegiado racionalmente lido como elemento puri cador, conduzindo o sujeito rumo ao objeto divinizado. O lugar privilegiado onde se colam sujeito e objeto a alma deste, j despojada das ndoas do terreno manto, e da emerge, paradoxalmente, o discurso que vai pintando um retrato de perfeio fsica e moral, percebidos a partir da subjetividade do amador ao longo de onze estrofes, em moldes clssicos de equilbrio e harmonia.

    A estrofe XII mantm o mesmo tom in amado at o verso 82, quando, repentinamente, h uma ruptura e a ora a denncia de uma interdio espacial, con gurada no Tejo, metonmia de Portugal, em oposio ao Btis e ao Tibre, respectivamente Espanha e Itlia:

    Que o Btis me oua e o Tibre me levante,que o dourado Tejoenvolto o vejo um pouco e dissonante (...),

    Esse espao de interdio valorado negativamente (abrolhos, feio) e apresentado como uma regio hostil amante e amada, o que remete oposio que se estabelece entre sujeito/objeto e o mundo. Duas verdades a oram da: 1) o amor como totalidade, com a presena fsica do desejo s possvel na ordem subjetiva (Tais asas d o desejo ao pensamento); 2) a ordem externa denega ao sujeito o que sua dimenso humana o exige.

    Diante de tais constataes, o sujeito se d conta do descompasso entre o possvel e o necessrio e, atravs da burla, via pela qual atualiza o desejo como Bem, constri o espao da possibilidade, no sentido de

  • O MARRARE 7 Peridico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJ 79

    O MARRARE - Peridico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJwww.omarrare.uerj.br/numero7/marina.htm

    Nmero 7 (2006) - ISSN 1981-870X

    viabilizar o que a ordem torna impossvel.O nosso caminho percorrido em sentido inverso ao do texto: partimos da ruptura, que tem incio na

    penltima estrofe. O tom melanclico veiculado pelas duas ltimas estrofes re ete a perplexidade do sujeito diante da contradio, corroendo o espao utpico e denunciando a impossibilidade. Utopia e melancolia so incompatveis.

    O campo no no esmaltam ores, mas s abrolhoso fazem feio; e cuido que lhe faltamouvidos pera mi, pera vs olhos;

    A leitura de in uncias los cas de cunho platonizante na ode camoniana atribuda opinio crtica, de modo geral, tenta aprisionar o texto em formas que re etem paradigmas lidos/reproduzidos pelo ideal de poca.

    Assim, o que foi considerado como excrescncia, por Maria Helena Ribeiro da Cunha (nas publicaes de 1980/1983): Eliminadas as duas ltimas estrofes, que pouco ou nada tm a ver com o resto do poema, constituindo, assim, uma excrescncia na ode VI, a chave para o enigma que o texto encerra.

    A viso do discurso amoroso, em Cames, aqui se efetiva no na excrescncia, como entende aquela autora, mas na (ex) crescncia como movimento de queda e ruptura que o texto instaura numa relao antittica com as demais estrofes.

    Nesse texto, Cames, numa ttica ilusionista, esconde um signi cado sob a aparncia de um discurso pseudo-espiritualizado, possivelmente para tentar reproduzir uma concepo amorosa que s se efetiva enquanto possibilidade (pois se o desejo a na/ a acesa alma tanto, que por vs use as partes da [alma] divina;/), ou seja, no ultrapassa a teoria.

    A estrofe dissonante interrompe o movimento de ascenso e conseqentemente a possibilidade de sublimao que transformaria algo que da ordem do sensvel, do corpo, em satisfao da alma. A busca do Amor como verdade, na poesia camoniana, s tem sentido enquanto espao de realizao, da as constantes queixas do amador em face da dama esquiva, como se v no soneto Transforma-se o amador na cousa amada, em que sujeito confessa a impossibilidade de sublimar porque (...) esta linda e pura semidea/ que, como um acidente em seu sojeito,/ assi com a alma minha se conforma,/ est no pensamento como Idea: o vivo e puro amor de que sou feito,/ como matria simpres, busca a forma.

    Nesse texto, l-se o amor enquanto desejo no realizado, mas igualmente o descompasso entre o conceitual e o meramente humano.

  • O MARRARE 7 Peridico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJ 80

    O MARRARE - Peridico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJwww.omarrare.uerj.br/numero7/marina.htm

    Nmero 7 (2006) - ISSN 1981-870X

    LISTA DE ABREVIATURAS UTILIZADAS:

    DF Domingos Fernandes: edio de 1616 ed. EdioEPF Emmanuel Pereira Filho GO Garcia dOrta: Colquios dos simples e drogas e coisas medicinais da ndiaJUR Visconde de Juromenha: Obras de Lus de CamesLAAF Leodegrio A. de Azevedo FilhoMA Manuscrito apenso a um exemplar das Rhythmas da Biblioteca Nacional de LisboaMs. manuscritoMs.Jur. Manuscrito Juromenha p. pginaPR ndice do Cancioneiro do Padre Pedro RibeiroRH Rhythmas, edio de 1595RI Rimas, edio de 1598vs. verso

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS:

    AZEVEDO FILHO. Lrica de Cames. Histria, metodologia e corpus. Lisboa: Imprensa Nacional /Casa da Moeda, 1985.

    ______. Lrica de Cames. Odes. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, v.3, tomo II, 1997.

    BATTISTI, Eugenio. Renascimento e Maneirismo. Trad. Maria Ins Guerra. Lisboa: Editorial Verbo, 1984.

    BOESCU, Maria Leonor Carvalho. Aspectos da herana clssica na cultura portuguesa. Lisboa: I.C.P. Biblioteca Breve, 1979.

    CAMES, Lus de. Rhythmas. Lisboa: Manoel de Lyra, 1595. Ed.fac-simile do exemplar pertencente Biblioteca da Academia Brasileira de Letras. Ed. comemorativa do IV centenrio da morte de Lus de Cames a 10 de junho de 1980.

    ______. Rimas. Reproduo fac-similada da ed. de 1598. Estudo introdutrio de Vitor Manuel de Aguiar e Silva. Minho: Universidade do Minho, 1980.

    ______. Rimas. Segunda parte [] Lisboa, Pedro Crasbeeck, 1616. custa de Domingos Fernandez mercador de libros.

    ______. Rimas vrias. Commentadas por Manoel de Faria y Souza. Nota introdutria do Prof. F. Rebelo Gonalves. Prefcio do Prof. Jorge de Sena. Lisboa. Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1972, 5 t. em 2 v. Reproduo fac-similada da ed. de 1685. Edio comemorativa do IV centenrio da publicao de Os Lusadas.

  • O MARRARE 7 Peridico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJ 81

    O MARRARE - Peridico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJwww.omarrare.uerj.br/numero7/marina.htm

    Nmero 7 (2006) - ISSN 1981-870X

    ______. Obras de Lus de Cames. Augmentadas com algumas composies ineditas do Poeta pelo Visconde de Juromenha. Lisboa: Imprensa Nacional, 1861, 6v.

    ______. Obras completas. Edio crtica com as mais notveis variantes. Porto: Imprensa Portuguesa. 1873-74. 3 t. em 7 v. Biblioteca da Actualidade. Edio organizada por Theophilo Braga.

    ______. Os Lusadas de Lus de Cames. Edio crtica organizada por Augusto Epifnio da Silva Dias. 3 ed., reproduo fac-similada da 2 ed., (em 2 tomos 1916/1918), por iniciativa da Comisso Brasileira designada pelo Ministrio da Educao e Cultura para o m de preparar e organizar as comemoraes do IV centenrio da publicao de Os Lusadas. Rio de Janeiro: Ministrio da Educao e Cultura, 1972.

    CIORDIA, Martn Jos. Amar em el Renascimiento. Um estdio sobre Ficino y Abravanel. Buenos Aires: Mio y Dvila, 2004. Coleccin Ideas en debate. Serie Historia Antigua y Moderna.

    CUNHA, Maria Helena Ribeiro da e PIVA, Lus. Lirismo e epopia em Lus de Cames. So Paulo: Cultrix/ EDUSP, 1980.

    ______ . A dialctica do desejo em Cames. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1989.

    FERREIRA, Nadi Paulo. Poesia Barroca. Antologia do sc.XVII em Lngua Portuguesa. Rio de Janeiro: gora da Ilha, 2000.

    HEBREU, Leo. Dilogos de amor. Trad. Jacinto Manupella. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2001.

    HOUAISS, Antnio. Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

    MARNOTO, R. O petrarquismo portugus do Renascimento e do Maneirismo. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1997.

    ______ et alii. A gura feminina petrarquista em Cames, entre imitao e transformao: Lrica camoniana. Estudos diversos. Lisboa: Cosmos, 1996.

    PANOFSKY, Erwin. Estudos de iconologia. Temas humansticos na arte do Renascimento. Trad. Olinda Braga de Sousa. 2 ed., Lisboa: Editorial Estampa, 1995.

    PEREIRA FILHO, Emmanuel. As rimas de Cames. Cancioneiro de ISM e comentrios. Edio pstuma organizada por Edwaldo Cafezeiro e Ronaldo Menegaz. Rio de Janeiro: Aguillar; Braslia: INL, 1974. Com fac-smile do manuscrito.

    PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Temas clssicos na poesia Portuguesa. Lisboa: Verbo, 1972.

    PETRARCA, Francesco. O Cancioneiro. Trad., introduo e notas de Jamil Almansur Haddad. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.

  • O MARRARE 7 Peridico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJ 82

    O MARRARE - Peridico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJwww.omarrare.uerj.br/numero7/marina.htm

    Nmero 7 (2006) - ISSN 1981-870X

    PLATO. O banquete. Mira-Sintra: Europa-Amrica, 1977. Col. Livros de bolso Europa-Amrica, n 168.

    RODRIGUES, Marina Machado. A recorrncia da tradio medieval na poesia quinhentista. In: Atas. III Encontro Internacional de Estudos Medievais da ABREM. MALEVAL, Maria do Amparo Tavares (Org), Rio de Janeiro: Agora da Ilha, 2001.

    SENA, Jorge de. Trinta anos de Cames 1948-1978. Lisboa: edies 70, 1980. 2 v.

    SILVA, Vtor Manuel de Aguiar e. Maneirismo e barroco na poesia lrica portuguesa. Coimbra: Centro de Estudos Romnicos, 1971.

    ______. Teoria da Literatura. 8 ed., Coimbra: Almedina, 1973.

    ______. Cames: Labirintos e Fascnios. Lisboa: Cotovia, 1994.

    WEISE, Georg. Il Rinascimento e la sua eredit. Npoli: Editore Liguori, 1969.

    MANUSCRITOS E CANCIONEIROS DITOS OU INDITOS:

    1. CANCIONEIRO de ISM. Manuscrito apenso (MA) ao exemplar da edio de 1595 das Rhythmas de Lus de Cames que se acha na Seco de Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa sob a cota CAM 10 P. Fac-smile. Ver: PEREIRA FILHO, Emmanuel. As Rimas de Cames.

    2. CANCIONEIRO do Padre Pedro Ribeiro. VASCONCELOS, Carolina Michaelis de. O cancioneiro do Padre Pedro Ribeiro.

    3. CANCIONEIRO ou Ms. Juromenha. VASCONCELOS, CarolinaMichalis de. Mitteilungen [...] Cpia xerox do originalpertencente Biblioteca do Congresso dos Estados Unidosda Amrica: II Portuguese Collection - D 87270.