camões

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LUÍS VAZ DE CAMÕES LUÍS VAZ DE CAMÕES GRANDES PROTAGONISTAS DA HISTÓRIA DE PORTUGAL

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Colecção de biografias de personalidades portuguesas. Editora Planeta de Agostini. 2004

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LUÍS VAZ DE

CAMÕESLUÍS VAZ DE

CAMÕES

GRANDES PROTAGONISTAS DA HISTÓRIA DE PORTUGAL

GRANDES PROTAGONISTAS

DA HISTÓRIA DE PORTUGAL

© Editora Planeta DeAgostini, S.A. | Lisboa | 2004

Direitos reservados para a língua portuguesa

AUTORIA: Manuel Margarido

REVISÃO CIENTÍFICA: António Paço

REVISÃO TIPOGRÁFICA: Laurinda Brandão

PROJECTO GRÁFICO: Alexandra Paulino

PAGINAÇÃO: Alexandra Paulino

IMPRESSÃO: Cayfosa – Quebecor Santa Perpètua de Mogoda [Barcelona]

Impresso em Espanha – Printed in Spain

Depósito Legal 203369/03

ISBN 972-747-880-8

LUÍS VAZDE

CAMÕES

GRANDES PROTAGONISTASDA HISTÓRIA DE PORTUGAL

Manuel Margarido

Quase tudo é obscuro no conhecimento factual da vida de Luís Vaz

de Camões. Não se sabe o local do seu nascimento, por exemplo, nem a

data. Pensa-se que terá nascido em 1524, ou no ano seguinte. Como diz

Hernâni Cidade:

«O que nem ele nem ninguém nos dá de decisivo é a indicação do lo-

cal e da data do seu nascimento. Como sucedeu com Homero, várias loca-

lidades disputam a glória de ser seu berço, mas Lisboa e Coimbra com mais

probabilidades. Deixemos a discussão aos mais interessados pelas glórias

locais do que pelo legado do Poeta, e digamos que as duas cidades têm,

para seu orgulho, pábulo que baste: Coimbra, por ter-lhe condicionado o

seu honesto estudo de humanista; Lisboa, a sua longa experiência social.»

A GLÓRIA

DA LÍNGUA PORTUGUESA

CAMÕES LÊ OS LUSÍADAS

7

Camões nasce, portanto, no início do reinado de

D. João III, filho de D. Manuel, o Venturoso. Sabe-se, com

segurança, que o seu pai foi Simão Vaz de Camões e a mãe

Maria de Sá de Macedo, da família escalabitana dos Mace-

dos. A linhagem dos Camões em Portugal, oriundos que

eram de Castela, remonta à segunda metade do século

xiv. Tendo D. Fernando, o Formoso, tomado partido na dis-

puta entre Pedro I e Henrique II pelo trono vizinho, vie-

ram os partidários do primeiro, apoiado pelo monarca

português e derrotado na contenda, refugiar-se em terras

lusas. Nesse contingente de foragidos encontrava-se um

tal Vasco Pires de Camões, galego fidalgo que se acolhe

na corte de Lisboa em 1370 e depressa vai prosperar

na sua pátria de exílio.

Vasco Pires, trisavô do poeta, recebe, ao longo dos

primeiros anos de estada em Portugal, diversas benes -

ses e ricos privilégios da parte de D. Fernando. Logo em

1373 é-lhe doada a Quinta do Judeu, próxima de Santarém,

e os bens de um fidalgo que apoiara D. Henrique II. Cinco

anos depois, o fidalgo foragido é agraciado com diversas

outras propriedades no Alentejo. Em 1380, Vasco Pires de

Camões já é alcaide-mor de Portalegre, e sê-lo-á de Óbidos

em 1383, detendo igualmente os senhorios das vilas do

Sardoal e de Constância, Marvão e Amêndoa.

Os ventos da fortuna mudarão, porém, para Vasco

Pires de Camões, o primeiro representante da família em

terras portuguesas. Quando se dá a crise da sucessão do

trono português, vai naturalmente apoiar as pretensões

8

AS ORIGENS

de D. Beatriz, casada com o monarca espanhol e filha dos

reis portugueses D. Fernando e D. Leonor Teles, a quem

Vasco tantos favores devia, contra D. João, Mestre de Avis.

À época, Vasco era alcaide do castelo de Alenquer e vai

resistir às investidas do futuro rei de Portugal, que cerca

a sua defesa.

De acordo com a Crónica do Condestável, de Fernão

Lopes, D. João parte de Lisboa «não mais que com duzen-

tas ou trezentas lanças e poucos homens de pé e besteiros,

e se foi a Alenquer sobre Vasco Pires». Rezam os relatos, e

as insinuações que o tempo

deixou, que o alcaide

ten tou negociar a ren -

dição a troco de uma so-

ma de dinheiro. O que é

certo é que o fidalgo

renitente acabou

derrotado, tendo per -

dido, em 1384, uma

quantidade significa-

tiva dos seus bens e

propriedades e man-

tendo, ainda assim,

importantes terras

no Alentejo, que

converte em

morgadios.

9

D. JOÃO I

O que se torna particularmente interessante na

genealogia do grande poeta seu descendente é a propen-

são de Vasco Pires de Camões para a poesia, dentro do

âmbito da tradição galaico-portuguesa, estando alguns

dos seus versos recolhidos no Cancioneiro de Baena, no qual,

sob o nome de Vasco Lopes de Camões, demonstra uma

veia irónica e acintosa, em versos de sabor espontâneo

escritos em castelhano.

Vasco Pires de Camões deixou três descendentes

do seu casamento com uma filha do português GonçaloD. AFONSO V

10

UMA LINHAGEM DE NOBRES

11

Tenreiro, capitão de Armada. O segundo deles, João Vaz,

viria a servir D. Afonso V, o Africano, nas pelejas do Norte

de África e de Castela. Pelo lado dos antepassados tinha

já Luís uma grande tradição de pena e espada. João Vaz

passou grande parte da sua vida em Coimbra, de onde se

estabelece a sólida ligação da família àquela cidade, ten-

do chegado a procurador às cortes e corregedor da co-

marca, cargos de grande importância administrativa que

o colocavam na elite do reino. A sua importância reve-

la-se, de resto, na especial nobreza e requinte escultórico

da sua sepultura, na crasta da Sé de Coimbra.

Filho de João Vaz, Antão será o avô do poeta. Tal

como os antepassados, também ele firmará a sua repu -

tação pelas armas lutando nas campanhas das Índias.

Viria a casar com D. Guiomar da Gama, que pertencia à

família de Vasco da Gama. Embora remota, esta ligação

entre as famílias do grande nauta dos Descobrimentos e

o poeta que os glorificou para a eternidade não deixa

de ser significativa.

Antão Vaz terá dois filhos. O primeiro, Simão Vaz

de Camões, viria a tornar-se um importante funcionário

da administração real, com título de «cavaleiro-fidalgo

da casa real» – não propriamente um fidalgo, como alega

Aquilino Ribeiro – responsável pelos serviços de armaze -

na men to das rotas da Guiné e da Índia, cargo que envol -

veria, certamente, elevado grau de confiança. Em 1529

D. João III atribui-lhe o direito de «cidadão de Lisboa», em

reconhecimento do seu mérito. Simão Vaz casa com Ana

de Macedo, que pertencia à casa dos Macedos de Santa -

rém, como se referiu.

Os Descobrimentos desencadearam uma nova mentalidade

em Portugal e em toda a Europa. As ideias dos autores clássi-

cos da Antiguidade quanto à natureza do Mundo foram aba-

ladas. As navegações e o experimentalismo baseado no conhe -

cimento pela observação factual vieram dar uma luz nova às

antigas ideias de Plínio ou de Ptolomeu.

Novos povos, novas terras, outras gentes foram reconheci-

dos. A percepção de que o Mundo era um globo, que todos os

mares o abraçavam, e que a comunicação entre continentes era

O humanismo renascentista em Portugal

A família de Camões era pobre, bastante pobre, e

ao longo da vida Luís não cessa de piorar a sua condição.

É assinalável o facto de que Simão virá a recupe-

rar para a família a Quinta do Judeu, que pertencera ao

primeiro representante da família em Portugal. Após o

casamento em Santarém, Simão e Ana virão viver para

Lisboa, onde aquele desempenha funções que, como se

viu, são relevantes. Do seu casamento nascerá Luís Vaz de

Camões, seu filho único, admitindo-se que as complica -

ções do parto tenham impedido a Ana de Macedo nova

concepção.

O segundo filho de Antão Vaz chama-se Bento de

Camões. Da profunda obscuridade que envolve a maior

parte da vida do imortal poeta, talvez tenha tido grande

importância este tio na sua formação.

12

possível por via marítima acabou com as «fronteiras» mentais

até aí existentes. Esta «re volução» foi-se produzindo pouco

a pouco, mas encontra-se no momento histórico certo com a cor-

rente huma nista que come çava a varrer a Europa. Em Por tugal

o humanismo foi introdu zido por mestres italianos: Mateus

Pisano, Estêvão de Nápoles e Cataldo Parísio Sículo, no qual a

literatura tem um peso importante.

Não foi uma transição fácil entre o pensamento clássico e

a modernidade humanista. Em primeiro lugar pelo paradoxo

de serem os humanistas defensores dos valores da Antiguidade

Clássica, crentes no conhecimento antigo, presente no pensa-

mento de Sá de Miranda ou de Francisco de Holanda. Defen-

sores de uma posição intermédia, que cultivava o classicismo

mas que se entusiasmava com a náutica e as suas maravi -

13

O homem

do RENAS-

CIMENTO

procurou

uma visão

total do

universo

lhosas descobertas, seriam D. João de Castro, João de Barros

ou Pedro Nunes. Já Duarte Pacheco Pereira e Garcia da Horta

eram ardorosos defensores (e empreendedores) dos novos co -

nhecimentos adquiridos pelos Portugueses.

O velho conhecimento clássico manteve, ainda, bastante in-

fluência em Portugal, mas foi, pouco a pouco, perdendo terreno

para um humanismo que reconhecia nas descobertas, na ciên-

cia que se estava a formar, no reconhecimento de um novo mun-

do, temas para o progresso civilizacional.

Inicia-se um progressivo trânsito na troca de informações,

auxiliado pela imprensa, que era técnica recente, e pelas via-

gens de estrangeiros a Portugal e de portugueses (como Damião

de Góis) pela Europa. Lisboa era, no dealbar do século XVI, talvez

o mais importante centro de novos conhecimentos científicos

do velho continente.

Terá nascido Luís Vaz de Camões em Lisboa? A in-

cógnita permanecerá para sempre. Muitos historiadores

inclinam-se para Coimbra. Aquilino Ribeiro refuta, apon-

tando Lisboa. O seu pai administrava os armazéns da Gui -

né e da Índia, na capital. Residia na Mouraria, fora das

muralhas antigas mas dentro do núcleo central da cidade.

É bem possível que tenha sido no antigo bairro lisboeta,

reminescente de evocações de épocas antigas, da melopeia

triste da ocupação árabe, que Luís viu a luz do mundo.

14

FACTOS OBSCUROS

A partir daí a dedução é igualmente o único caminho para

traçar o seu percurso infantil.

Luís nasce alegadamente fidalgo, segundo os pri -

meiros biógrafos. Mas, como afirma António José Saraiva,

«um “escudeiro” era um reles lacaio de um fidalgo, recru-

tado geralmente entre indivíduos de condição baixa,

embora vivendo segundo o código da nobreza e com pre-

tensões [...]: era uma gente vadia, que se alimentava das

migalhas dos fidalgos, imitando os seus modos na espe -

rança de uma promoção que era uma verdadeira lotaria.

“Rascões”, lhes chamava Gil Vicente. Mas não se confun-

diam com o povo e não sabiam o que era trabalhar».

15

O PORTO

DE LISBOA

Camões provinha de um grupo social de baixa ca -

tegoria, dependente do reconhecimento do trabalho e dos

favores que se recebem dos conhecimentos e das relações

privilegiadas. Na expressão de Jorge de Sena, Camões

sentia-se nobre «mas perdido numa massa enorme de

aristocratas socialmente sem estado, e para sustentar os

quais não havia Índias que chegassem, nem comendas,

tenças, capitanias, etc.».

Desde logo os astros são-lhe desfavoráveis, à luz do

conhecimento da época. Pois não estava previsto pelos

astrólogos um dilúvio de proporções bíblicas para 1524?

Desde o ano anterior

que a Europa estava

aterrorizada com es ta

perspectiva, pro pi cia da

pela con ju ga ção dos

astros no signo de Pei -

xes. O mundo marcado

pelo conhecimento su -

pers ticioso medieval

predominava sobre o

empirismo renascen-

tista que começava a

nas cer. Camões virá a

re gistar sobre o tem -

po do seu nascimento,

dan do voz à sua senti -

mentalidade depressi-

va, a expressão Estrelas

infelices.

16

D. JOÃO III

Sabe-se que em 1526, teria o poeta dois anos (ou

apenas um), ocorre em Lisboa um terramoto pavoroso.

Não se comparando àquele que, dois séculos mais tarde,

destruiu Lisboa, foi motivo suficiente para arrastar a corte

de D. João III para Coimbra. Logo no ano seguinte a cidade

é assolada por um surto de peste que leva o rei a deter-

minar o prolongamento da estada na cidade do Mondego

por tempo indefinido, até que as condições sanitárias

permitissem o regresso à capital.

Parece crível que, à semelhança dos funcionários

da corte, Simão Vaz de Camões tenha rumado com o seu

rei para o centro do país. Aí encontrava vantagens espe -

ciais. Podiam habitar o velho solar do seu avô, João Vaz.

Contudo, a situação parece ter vindo a revelar-se ruinosa.

Como era costume da época, as famílias com maior capa -

cidade económica eram obrigadas a receber os elementos

da corte que não possuíam meios de subsistência próprios.

Terá sido a generosidade de Simão Vaz de Camões

no acolhimento de cortesãos motivo para o seu rápido

declínio financeiro. Poder-se-ia falar de ruína. É talvez a

esta situação particular de Simão Vaz que Gil Vicente, con-

temporâneo do pai do poeta, se refere na peça Divisa da

Cidade de Coimbra, mencionando a dívida de um fidalgo

pobre ao hospedeiro, nunca cobrada: «Pior voz tem Simão

Vaz, tesoureiro e capelão...». Alvitra-se mesmo que terá

17

UM TIO PODEROSO

sido a precária situação financeira de Simão que levou o

rei a condoer-se, sabendo que o sacrifício havia sido feito

em prol dos interesses da corte, designando-o, em 1529,

«cidadão de Lisboa», com os privilégios inerentes a essa

condição.

A corte regressa à capital em 1529. Com ela terá

vindo Simão Vaz de Camões, em virtude das suas respon-

sabilidades. Mas não se sabe se o rapazito de quatro ou

cinco anos acompanhou os pais ou se ficou em Coimbra,

já ao cuidado de seu tio, Bento de Camões.

18

O núcleo

histórico

de COIMBRA

Este tio era uma importante figura no panorama

social coimbrão. Ingressara novo no mosteiro de Santa

Cruz, dedicando-se a uma carreira erudita e monástica.

Este mosteiro era uma relevante instituição de estudos,

talvez a mais importante à época. Com a reforma geral do

ensino promovida em 1527, D. João III iria alterar profun-

damente a organização do mosteiro de Santa Cruz. Na

década de 30 de Quinhentos, Bento de Camões tornar-se-

-ia o primeiro prior geral e chanceler da Universidade de

Coimbra. Podemos, deste modo, perceber a posição social

do tio de Camões, ao mesmo tempo que se adivinha a sua

profunda erudição e capacidade de mando.

Não existem provas documentais que assegurem

ter Camões estudado em Coimbra. Porém, tudo leva a

crer que sim. Desde logo o cargo do tio propiciava que um

rapaz fidalgote, mas de família pobre, pudesse estudar

de modo capaz, sem os custos que de outro modo teria de

sustentar; o temperamento que o poeta viria a revelar

mais tarde devia, por outro lado, fazer-se sentir na infân-

cia, demonstrando dotes de inteligência e curiosidade

intelectual que levaram certamente a família a querer

dar-lhe boa formação escolar; finalmente, a erudição pa -

tenteada na obra camoniana (em particular a visível pre-

paração clássica) é significativa do aprofundamento dos

estudos de Luís Vaz.

19

ESTUDANTE EM COIMBRA

É plausível que o tio tenha ensinado as primeiras

letras ao sobrinho, que ingressará num dos colégios de

Coimbra, talvez o colégio de Todos-os-Santos. No prin cípio

da adolescência inicia estudos que o levariam à obtenção

hipotética de um grau académico. Dada a referência a

Camões, em algumas fontes, como bacharel latino, houve

quem nisso encontrasse a prova de que o poeta teria cul-

minado os estudos com a obtenção desse título, facto que

não é documentalmente confirmado.

Certo é que Camões poderá ter tido, em Coimbra,

oportunidade para desenvolver uma considerável erudição

que marcaria indelevelmente a sua obra. Os docentes, em

virtude da reforma do ensino, eram de grande qualidade

(os chamados mestres parisienses, por haverem estudado

na Universidade de Paris). O adolescente pode provavel-

mente assim estudar Gramática, Retórica e Dialéctica,

Lógica e Filosofia, além do Latim, que era basilar nos es-

tudos da época. Teve igualmente a possibilidade de con-

tactar com a obra dos clássicos gregos e romanos, dos

árabes e hebreus. Não nos esqueçamos da importância da

biblioteca do mosteiro de Santa Cruz e podemos imaginar

a viva curiosidade do jovem para quem o conhecimento

só pode ter sido um impulso poderoso.

Como afirma Hernâni Cidade: «Camões [...] tem

acesso às obras de Petrarca – a quem toma por modelo –,

Bembo, Garcilaso, Ariosto, Tasso, Bernardim Ribeiro, entre

outros. Domina a literatura clássica da Grécia e Roma; lê

latim, sabe italiano e escreve o castelhano.»

Refira-se que alguns historiadores refutam a hipó -

tese de Camões ter estudado em Coimbra. Em primeiro

20

lugar o seu nome não consta nos registos. Depois, como

explica António José Saraiva, «nem era preciso ser uni-

versitário para adquirir a bagagem de conhecimentos, ver-

dadeiramente notável, que Luís de Camões revela nas suas

obras. Basta lembrar o nome de homens que não terão fre-

quentado a universidade, como João de Barros, geógrafo,

historiador, linguista, humanista, que aliás foi uma das

principais fontes de Camões. Havia nessa época métodos

de estudo das letras que não na universidade».

Aquilino Ribeiro, na sua obra de referência Camões

Fabuloso e Verdadeiro, refuta a tese dos estudos em Coim-

bra de forma veemente.

21

Dois temas

filosóficos caros

a Camões:

A FORTUNA

E O AMOR, aqui

simbolizados

por Cupido

equilibrado

sobre uma

esfera e que

dirige, a seu

bel-prazer,

o seu caminho

soprando numa

vela, que repre-

senta a aliança

entre o engenho

e a sorte

Francesco Petrarca nasce em Arezzo, Itália, em Julho de

1304. Com oito anos parte com a sua família para França. Após

a morte do pai, na época em que estudava leis, toma votos ecle-

siásticos menores, no ano de 1330. Teria sido na Sexta-Feira

Santa de 1327 que vislumbrou a mulher idealizada, a célebre

Laura que vai marcar a sua obra. Nela se exprimem as carac-

terísticas que tanto hão-de influenciar os poetas do Renasci-

mento, e em particular Camões. Uma expressão lírica intensa

de sentimentos puros e idealizados. Com Boccaccio, seu con-

temporâneo, Petrarca vai redes -

cobrir o valor da cultura clássica,

operando uma fusão entre as di-

vindades do panteão antigo e as

figuras tutelares do cristianismo,

prática muito presente na obra de

Ca mões, que muito bebeu da in-

fluência do poeta italiano.

Na senda de Petrarca, muitos

escritores do Renascimento vão

dar expressão à racionalização

artística (uma forma de sublima -

ção) das emoções amorosas, jo-

gando na tensão entre a alma e a

pulsão erótica. Camões atinge uma dimensão única dentro

desta lógica formal pela capacidade de organizar no poema

paradoxos, antíteses e jogos semânticos que elevam a sua líri-

ca a níveis de excepcional qualidade artística.

Petrarca e Camões

PETRARCA

22

Perto dos 20 anos, Camões concluiria os seus estu-

dos. Nada mais o prenderia às margens do Mondego – a

crer na maior parte dos historiadores –, nem sequer uma

hipotética carreira eclesiástica, talvez desejada pelo tio,

certamente contrariada por um temperamento fogoso e

amigo da estúrdia, que deveria ter sobejas ocasiões de se

revelar na vida juvenil do estudante de Coimbra. No deal-

bar da idade adulta, sem profissão, sem cargo e sem fol-

ga financeira, é Lisboa, onde vivem os pais, que vai atrair

Camões. Na capital encontram-se todas as razões para

que o jovem pudesse ter esperança num futuro promis-

sor e à medida do seu talento.

Parte de Coimbra, da qual, a avaliar por algumas

estrofes, guardará enorme saudade.

Doces e claras águas do Mondego,

Doce repouso da minha lembrança

Onde a comprida e pérfida esperança

Longo tempo após si me trouxe cego.

De vós me aparto, sim; porém não nego,

Que inda a longa memória que me alcança,

Me não deixa de vós fazer mudança,

Mas quanto mais me alongo mais me achego.

Como era o jovem Luís Vaz que chega a Lisboa por

volta de 1542? Era certamente um espírito muito vivo, de

temperamento apaixonado. Aliava uma formação cultu -

23

A CAMINHO DE LISBOA

ral muito superior à maior parte dos seus contemporâ-

neos a um aspecto físico que seria muito apreciado nos

anos seguintes pelas donzelas mais ilustres do reino.

Homem elegante e atraente, de cabelo arruivado e olhos

grandes, sabia falar, sabia estar. Tinha ainda as qualidades

de um exímio espadachim e de um voluntarioso lutador.

Enfim, era um fidalgo muito atraente, capaz de fazer as

melhores amizades e de despertar secretas paixões. Pena

era que fosse pobre.

De novo, no dizer de António José Saraiva: «Um

pária, sem clã, sem protecções, sem respeitabilidade

social, sem modo de vida certo.»

24

Em Lisboa, o jovem Camões vai soltar as rédeas do seu espírito

irrequieto. Se é um rapaz culto, é igualmente um grande amigo das

festas, das rondas nocturnas pelas tabernas, do galanteio fácil. A sua

têmpera ajuda a fazer amigos. E a meter-se em sarilhos. Nos meses

seguintes entrega-se à ociosidade, o que nem seria mal visto para

um jovem da sua condição, mesmo sem dinheiro.

De novo, de acordo com António José Saraiva: «As mulheres que

conheceu [...] foram as rameiras; por companheiros teve arruaceiros

que se chocavam em bandos na Lisboa nocturna da época, de mistura

com os embarcadiços de passagem.»

UMA MOCIDADE

APAIXONADA

VISTA DE LISBOA, em 1572, da autoria de Braun

25

Luís continua a versejar, certamente, mas o melhor

da sua atenção vai para os amores ocasionais com moças

de baixa condição, para as surtidas nocturnas onde sem-

pre havia lugar para uma briga e para a afirmação da ca -

ma radagem. Noites em que as bebidas, as conversas e as

arruaças se confundiam.

Nesta época faz amizades decisivas, como a que

estabelece com D. Manuel de Portugal, poeta e neto do

bispo de Évora. D. Manuel, pela sua posição social, será

certamente um dos introdutores de Luís na corte. Lisboa

é pequena, e toda a gente que importa acaba por se co-

nhecer. Nos Pátios de Comédias, onde se encenavam pe-

quenas peças e autos e se faziam despiques de poesia,

Camões conhece António Ribeiro Chiado, franciscano e

poeta, que vai identificar no jovem o talento e, sobretudo,

a valentia desses anos de juventude. Estima-se que é o

poeta Chiado quem inventa a alcunha de «Trinca-Fortes»

para designar Camões, querendo com ela significar que o

moço era dado a bater-se e a dobrar os fortalhaços que o

enfrentassem.

Os divertimentos da época eram, como se percebe,

de enorme agrado do filho de Simão Vaz. Por um lado, as

querelas poéticas, os duelos no versejo, estimulavam a sua

criatividade e talento; por outro, os prazeres mundanos

satisfaziam o seu temperamento apaixonado e aventureiro,

capaz de correr mil riscos por uma boa aventura.

A consciência dos limites deste tipo de vida não é

de todo alheia a Camões, que dele acabará por se lamen-

26

A EMBRIAGUEZ DA CAPITAL

tar, sabendo certamente que o seu talento a mais o des -

tinava. As noites passadas na taberna do Malcozinhado,

regadas a vinho e alegradas por mulheres fáceis, deixam-

-lhe um travo de desilusão que ele acaba por referir.

A famosa designação da taberna é um nome inventado

pelo próprio poeta para referir, possivelmente, uma das

barracas que se encontravam na Ribeira, frequentada por

populares, mulheres de pouca virtude, fidalgos indo len -

tes. Como diz Camões: «Eu o crismei há poucos dias e lhe

pus o nome de Malcozinhado, porque sempre acharei nele

que comer, quer bem, quer mal.» Ao mesmo tempo que

o diverte e entusiasma, a vida de Lisboa parece-lhe algo

de putrefacto, como descreve longamente, num re gis to

pejado de ironia e desencanto, numa carta a um amigo:

27

A ALCOVITEIRA,

de Vermeer

de Delft, 1656

«E, para verdes, digo que há cá dama tão dama que, pelo

ser de muitos, se a um mostra bom rosto, porque lhe quer

bem, aos outros não mostra ruim, porque lhe não quer mal.»

Numa comparação entre a agitação citadina e o bu-

colismo campestre, de que supostamente o amigo a quem

escrevia se queixava, mostra o poeta saudades de uma vi-

da mais recatada, evocando Vergílio:

«Como vos parece, Senhor, que se pode viver entre

estes, que não seja milhor essa vida que vos enfada,

essa quietação branda, com um dormir à sombra de uma

árvore e ao tom de um robeiro, ouvindo a harmonia

dos passarinhos, em braços com os Sonetos de Petrarca,

Arcádia de Sannazzaro, Éclogas de Vergílio, onde vedes

aquilo que vedes?

Se a vós, Senhor, essa vida vos não contenta, vinde

trocar pela minha, que eu vos tornarei o que for bem.»

Na expressão «onde vedes aquilo que vedes» pode

perceber-se o desencanto de Camões perante um mundo

novo que acaba de descobrir, que o atrai, mas onde percebe

que tudo é um jogo de aparências, uma rede de falsida -

des, onde nada do que se vê é aquilo que parece. Em breve,

porém, a vida de Luís vai mudar, proporcionando-lhe os

anos de maior felicidade, ou pelo menos de mais profun-

do encantamento de toda a sua vida. Aos vinte e poucos

anos, Camões vai ser introduzido na corte.

28

UMA MUDANÇA DECISIVA

Bem parecido, ele-

gante e cheio de espírito,

relacionado com algumas

importantes figuras da fi-

dalguia, a entrada de Ca -

mões nos círculos da corte

seria apenas uma questão

de tempo. Referiu-se já a

amizade que nutria por Ma -

nuel de Portugal, filho do

conde de Vimioso. Deverá

ter sido este amigo o pro -

mo tor da sua apresentação

no Paço da Rainha em Xa -

bregas, onde D. Catarina,

mulher de D. João III, orga -

ni zava a sua vida munda -

na, e no palácio da infanta

D. Ma ria, irmã do rei.

Entrar nestes cír -

culos, onde se encontrava a

elite social e cultural do tempo, não era fácil. A simples

con dição, um elevado estatuto, não eram, só por si, sufi-

cientes. Nos salões de D. Catarina e de D. Maria o que mais

impor tava era quem apresentava quem e que reputação

tinha o candidato. Luís Vaz, possivelmente pela influên-

cia de D. Manuel de Portugal, mas também certamente

por uma reputação emergente enquanto versejador, con -

se guiu transpor o delicado filtro que o aproximava do

centro da cultura e da sociedade da época.

29

D. CATARINA

Francisco de Sá de Miranda nasce em Coimbra, cerca de

1481, no reinado de D. João II. Estudou no colégio de Santa Cruz

de Coimbra, onde se distinguiu pela sua capacidade intelec tual.

Estuda leis em Lisboa, alcançando o grau de doutor em Direi -

to, tornando-se docente da Universidade.

Em breve, pelo valor do seu espírito e pela sua ligação à no-

breza, passa a frequentar a corte, onde se vai dedicar, no quadro

dos divertimentos muito apreciados na época, à prática da

poesia, na qual imediatamente se distingue. No tempo em que

Camões começa a frequentar os meios palacianos, Sá de Mi-

randa é um nome venerado no domínio da arte poética.

Homem do Renascimento, Sá de Miranda é em breve atraí-

do pela necessidade de conhecimento característica dos in quie -

tos espíritos humanistas. Tem de conhecer Mundo.

Passará cerca de cinco anos em Itália, onde conhece

os maiores espíritos literários e se familiariza com

as novas tendências do género e da métrica. Será

o introdutor, no nosso país, do decassílabo italiano.

Camões beberá fundamente do conhecimento pro-

porcionado por Sá de Miranda.

Sá de Miranda é senhor de uma grande cultura

humanista, que o vai conduzir à crítica de algu-

mas práticas da Igreja, nomeadamente a concessão

de indulgências, nisso se aproximando do pensa-

mento luterano. A sua cultura é dominantemente renascentista,

integrando o movimento que alarga os horizontes da cultura

à incorporação dos clássicos gregos e romanos.

30

SÁ DE MIRANDA

Sá de Miranda

Espírito crítico, Sá de Miranda vai conhecer, ainda em vida,

o violento retrocesso cultural promovido durante o reinado de

D. João III. Opor-se-á ao fanatismo obscurantista da Contra-

-Reforma. Desiludido com a vida da capital, refugia-se no

Mi nho, em Duas Igrejas, no concelho de Vila Verde. Casa com

D. Briolanja de Azevedo. Recebe a comenda de Duas Igrejas,

que o desafoga financeiramente, e vive anos felizes dedicando-

-se à família e à escrita.

Segue atentamente a vida do país, tecendo comentários críti-

cos sempre que tal se proporcionava. Os seus últimos anos são

marcados por grandes desgostos, nomeadamente pela morte

da mulher e de um filho. A morte do príncipe D. João, protector

das letras e seu especial amigo, deixa-o igualmente mergulha-

do em tristeza.

Sá de Miranda morre em 1558, estando sepultado na igre-

ja de S. Martinho de Carrazedo.

31

Dando continuidade ao brilho da corte manuelina,

que conhece um grande desenvolvimento das artes e da

literatura, os primeiros anos do reinado de D. João III bri-

lham pelo requinte e sofisticação, albergando os melhores

espíritos do seu tempo. Tanto em Xabregas, Paço da Rai -

nha, como em Santa Clara, palácio de D. Maria, as activi-

dades culturais eram o motivo que reunia a fina flor da

juventude da época. A poesia, o teatro e a música conci-

O ESPLENDOR DA CORTE

tavam alegres serões que serviam de pretexto para o en-

tretecer de laços, vínculos, amizades. E, é claro, para uma

interminável roda de jogos amorosos nos quais o poeta

possivelmente se terá envolvido, com a paixão desmesura-

da característica do seu temperamento. Certamente que

foi bem aceite. Para lá da figura e do talento, avultava a

facilidade de expressão em castelhano, a língua franca da

corte, e o conhecimento do latim, espécie

de santo e senha que distinguia as pessoas

verdadeiramente interessantes.

Neste ambiente vai fazer diversos

amigos, como Francisco de Morais, poeta

e novelista, autor de um romance de

cava laria muito apreciado à época,

Palmeirim de Inglaterra. Estabelece

igualmente amizade com D. Fran-

cisco de Noronha, que fora em-

baixador em Paris e camareiro-

-mor da rainha D. Catarina. As

amizades seriam determinantes

para afirmar a sua posição no

selectivo meio da corte.

No entanto, foi sobretudo a

facilidade que Luís tinha em responder aos

motes das damas com voltas graciosas e requintadas que

o fez ser apreciado. O costume da época permitia às don -

zelas entregarem a um praticante da arte poética um tema

(um mote) para receberem uma resposta em verso que

supostamente desenvolvia esse tema de modo elegante

e galanteador, a volta ou glosa.

ROMANCES

DE CAVALARIA,

muito aprecia-

dos na época

32

Atente-se na resposta que Camões dá a D. Francis-

ca de Aragão, que lhe sugere um complicado mote: «Mas

porém a que cuidados?» D. Francisca não era uma donzela

qualquer. De fulgurante beleza e elevada erudição, bri -

lhava a grande altura na corte de D. Catarina, a ponto de

ser o tema de vibrantes poemas dos melhores versejado -

res do seu tempo, como Pêro de Andrade Caminha e o

próprio D. Manuel de Portugal. Segundo a descreve o seu

futuro marido, D. João de Borja, D. Francisca «es tenida por

la mujer que mejor ha sabido hacer el oficio de dama que

ha havido en nuestro tiempo en Portugal». Pois ao tema

do mote, responde Camões com três glosas, a última das

quais se revela de enorme beleza:

Se as penas que Amor me deu

Vêm por tão suaves meios,

Não há que temer receios,

Que vale um cuidado meu

Por mil descansos alheios.

Ter nuns olhos tão formosos

Os sentidos elevados,

Bem sei que em baixos estados

São cuidados perigosos.

Mas, porém, ah! que cuidados!

Torna-se evidente o talento de Luís Vaz na corte.

Algumas invejas se despertarão entre os menos afortuna -

dos pelo génio. Fala-se no despeito de Pêro de Andra de

33

UMA RESPOSTA SEMPRE PRONTA

Caminha. As donzelas reparam nele, devem disputar o

favor de umas estrofes numa folha de papel. O poeta vive

num clima de exaltação, ao mesmo tempo romântica e

intelectual, duas vertentes que nunca nele se afastarão.

Contudo, não pode esquecer a sua condição social. Fidal-

go pobre, poucas ou nenhumas esperanças deverá

acalentar de um dia vir a pertencer plenamente àquele

mundo que o fascina. Porém, deixar-se-á levar pelo entu-

siasmo da sua juvenilidade. Pagará caro por isso.

VÉNUS

E CUPIDO

34

Há, no estabelecimento de uma biografia camo -

niana, uma questão pendente (entre muitas outras, é

certo), sobre a qual muitos historiadores se debruçaram.

Quem era Natércia, a presumível primeira grande paixão

de Luís Vaz na corte, que o levou a escrever alguns dos

mais belos poemas de amor deste período da sua vida?

Parece claro que a Natércia presente em diversos

poemas é um anagrama, ou seja, um nome composto com

todas as letras de outro nome, o qual seria Catarina, que

naquela época se escrevia Caterina. Este amor desco -

berto na obra do poeta tem um recorte bastante lendário,

como aliás muitos outros acontecimentos que podemos

deduzir na sua atribulada vida. Segundo alguns investiga -

dores, terá sido na Sexta-Feira Santa de 1544, na igreja

das Chagas, que Camões se apaixona perdidamente por

Natércia, aliás Catarina.

Na corte existiam diversas Catarinas, entre as quais

Catarina de Ataíde, dama de grande importância e aia da

rainha. Alvitrou-se ainda a possibilidade de ser uma pri-

ma remota de Luís, da família dos Gamas. Mais tarde, as

atenções dos investigadores incidem sobre uma outra Ca -

tarina de Ataíde, filha de D. António de Lima Ataíde, ca-

mareiro-mor do infante D. Duarte. Catarina era dama da

rainha. Além disso tinha outra particularidade: era muito

nova! Teria entre 12 e 14 anos quando se inflamaram os

ânimos de Luís, que já entrara nos 20.

Não deve, porém, estranhar-se a criação de um

vínculo amoroso com a rapariga que, na expressão de

35

A MISTERIOSA NATÉRCIA

Camões, tinha tão «tenra idade», ou «tenros anos» («Quem

cuidara que uns tão tenros anos/E uma tal claridade, que

excedia/Quanto podem cuidar peitos humanos; [...]»). Dama

da corte, Catarina de Ataíde estaria na altura da vida em

que se iniciavam os jogos de coqueteria e de sedução,

aos quais a sua presumível beleza ajudava.

É identificável, nos versos de Luís, uma alternância

de sentimentos, que vão desde o ciúme à devoção, do

galanteio à recriminação: «Ah, Natércia cruel! Quem te

desvia/Esse cuidado teu do meu cuidado?/Se tanto hei-de

penar desenganado,/Enganado de ti, viver queria. [...]»

Isto faz supor ter sido o namoro marcado pelos encontros

e desencontros próprios dos jogos amorosos da ado les -

cência na corte, mais dados à experimentação dos limites

dos códigos de conduta que a um vínculo profundo. Po -

rém, na sua poesia Camões exprime um amor desmedido

e exacerbado por Natércia, com a carga de paixão própria

de uma linguagem poética.

Aquilino Ribeiro coloca fortemente em causa esta

versão «romântica» de uma ligação a uma dama da corte,

que se lhe afigura impossível dada a baixa condição do

jovem poeta. De resto, contesta mesmo que Luís Vaz de

Camões tenha alguma vez frequentado a corte. A ser

assim, surge uma pergunta à qual António José Saraiva

res ponde, perante a enorme bagagem de conhecimentos

do poeta: «Este tipo de cultura só podia adquirir-se à época

de viva voz, em rodas de iniciados que passavam de mão

em mão livrinhos raros ou cancioneiros manuscritos. É

evi dente, portanto, que Camões conviveu com letrados ou

amadores das letras, na sua juventude [...] Não era, evi-

36

Neste soneto, Camões exprime com grande elegância e pro-

fundidade o sentimento amoroso. Seria Catarina de Ataíde

quem o inspirou?

Julga-me toda a gente por perdido,

Vendo-me, tão entregue a meu cuidado,

Andar sempre dos homens apartado,

E de humanos comércios esquecido.

Mas eu, que tenho o mundo conhecido,

E quase que sobre ele ando dobrado,

Tenho por baixo, rústico e enganado

Quem não é com meu mal engrandecido.

Vá revolvendo a terra o mar e o vento,

Honras busque e riquezas a outra gente,

Vencendo ferro, fogo, frio e calma;

Que eu por amor somente me contento

De trazer esculpido eternamente

Vosso formoso gesto dentro da alma.

Perdido de amores

37

dentemente, na taberna ou no bordel do “Malcozinhado”,

onde ele era assíduo, que se formavam tais rodas, mas sim

em círculos palacianos ou satélites.»

Como parece evidente, tal namoro, a ter aconteci-

do, não podia durar muito. A diferença de condição social

entre Luís Vaz e Catarina de Ataíde era demasiado óbvia,

numa época em que os casamentos se ditavam, àquele

nível social, por razões de conveniência económica e de

posição. Camões não era conveniente, era pobre. Nada

ti nha de seu, excepto a guarida em casa dos pais. Sem

pro fissão definida, a não ser

o pouco honroso título de aio

de D. António de Noronha, só

pode ter sido severamente

proibido de manter qualquer

espécie de veleidade relati -

va mente à ama de D. Catarina.

A própria moça perderia a sua

posição na corte se tal enleio

tivesse continuidade.

Parece que D. Catarina

de Ataíde, a Natércia de tantos

versos apaixonados, sofreu um

grande desgosto com o aparta-

mento do jovem e fogoso poe -

ta. Terá mesmo rejeitado fu-

turas propostas de casamen-

to. Sabe-se que morreu muito nova, com cerca de 25 anos,

tuberculosa (doença simbolicamente muito associada

aos males do coração), deixando inconsoláveis os que a

conheciam e apreciavam os seus talentos.

DAMA DA CORTE

38

O FIM DE UMA ILUSÃO

A ela, como futuramente à Dinamene da Índia,

se aplicaria com justeza o soneto excepcional, que ainda

hoje perdura como uma das peças maiores da arte camo-

niana:

Alma minha, gentil que te partiste

Tão cedo, desta vida descontente,

Repousa lá no Céu, eternamente

E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,

Memória desta vida se consente,

Não te esqueças daquele amor ardente

Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te

Alguma cousa a dor que me ficou

Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,

Que tão cedo de cá me leve a ver-te,

Quão cedo de meus olhos te levou.

Luís Vaz de Camões fica, assim, arredado dos amo -

res desta Natércia secreta, que a sua sentimentalidade

traduz na poesia. Mas era novo, e novos amores viriam.

É o que parece ter acontecido pouco depois.

39

40

Um dos sonetos mais impressivos de toda a arte lírica

camoniana, influenciado pela escola petrarquista, é uma

obra-prima da literatura portuguesa e universal, que aborda

a te mática amorosa.

Amor é um fogo que arde sem se ver,

é ferida que dói, e não se sente;

é um contentamento descontente,

é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;

é um andar solitário entre a gente;

é nunca contentar-se de contente;

é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;

é servir a quem vence, o vencedor;

é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor

nos corações humanos amizade,

se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Amor ardente

Estamos no domínio da lenda. Aceitando que Luís Vaz de Camões

frequentava a corte, surgiu, no trabalho de alguns historiadores, uma

hipótese romântica de contornos maravilhosos e trágicos.

A falta de co nhecimento directo da maior parte dos factos da vida

do poeta permite a liberdade de imaginar esta cena que, a ter ocorrido,

explicaria muito do seu destino e poesia.

PAIXÃO

E DESGRAÇA

NA POESIA, a fúria dos ventos; na vida, a fúria dos sentimentos

41

Na corte, Luís Vaz já houvera experimentado as

alegrias e as agruras do amor, o amor que aparece nos seus

sonetos escrito com maiúscula, como se o sentimento ti -

vesse nome próprio, identidade divina. Agora, um outro

enlevo, mais profundo e inatingível, vai marcar de modo

dramático a vida do poeta.

D. Maria, irmã de D. João III, tem uma história sin-

gular, de verdadeiros contornos teatrais. Já viúvo pela se-

gunda vez, o rei D. Manuel enceta diligências para obter

de Carlos V de Espanha a mão da irmã do monarca caste -

lhano, D. Leonor de Áustria, para casar com o seu príncipe

herdeiro. Ao ver o retrato da futura nora, D. Manuel muda

de ideias e decide casar ele mesmo com a belíssima in-

fanta, alegando que o seu filho não tem qualidades sufi-

cientes. A ideia é aceite por Carlos V e causa grande em-

baraço na corte de Lisboa, sem falar na mal disfarçada

tristeza que D. João III sente em relação ao pai, que deste

modo lhe rouba a bela princesa. D. Maria é a geração úni-

ca deste matrimónio, e o seu pai apenas lhe sobrevive dois

anos. Podia ser filha de seu irmão, D. João, a quem a sua

mãe fora destinada.

Segundo consta, após a morte do marido D. Leonor

vai envolver-se amorosamente com o seu primeiro noivo,

agora enteado. A relação gera descontentamento e vozes

pedem que o matrimónio entre ambos se realize, ainda

que pouco convencional. Porém, aquele que agora era

monarca em breve se entedia deste enleio e a pouco e

pouco afasta-se de D. Leonor. Mais tarde aceita a propos-

42

A INFANTA D. MARIA

ta de Carlos V para que a irmã se venha a casar com Fran-

cisco I de França. A rainha de Portugal seria agora rainha

43

CASAMENTO

de D. Manuel

com D. Leonor

de França. Mas perde, com esta decisão política de seu

irmão, a filha D. Maria, que D. João III não permite que

saia de Portugal com a mãe. Nem ela, nem a portentosa

herança que a criança herdara de D. Manuel.

D. João III viria a casar com uma irmã de D. Leonor,

D. Catarina, tia de Maria. Será esta mulher, de carácter

reservado e sentido prático, a criar a sobrinha, a quem, de

resto, proporcionou uma excelente educação, que se tra -

duziria, mais tarde, num requinte de espírito, raro e ad-

mirado.

A jovem era, aliás na senda de sua mãe, de uma

extrema beleza para os padrões da época. Dela se descreve

a «formosura suavíssima, bem revelada na alvura da pe -

le, no azul celeste dos olhos vívidos e na cor loura dos

ca belos». Algumas pinturas subsistentes que a retratam

apontam de facto para essa beleza. Contudo, essa não

era a sua maior qualidade.

De uma cultura refinada e personalidade vincada,

desde cedo que D. Maria vivia de forma independente dos

seus tutores, mantendo no palácio de Santa Clara um sé -

quito próprio e sobretudo recebendo a fina flor das artes

do país. Era um ambiente onde se entrecruzavam a ele-

vada craveira intelectual digna de uma academia com a

beleza e a juventude nata daquele tempo. Aí Camões sen-

tiu que se encontrava numa espécie de paraíso pessoal.

44

UM ESPÍRITO RARO

Não é de estranhar que se tenha estabelecido uma

afinidade intelectual entre Luís Vaz e D. Maria, apesar das

diferenças sociais que os separavam. Afinal, o jovem poe -

ta era um dos mais brilhantes espíritos que frequentavam

a corte, e naquele meio, protector do talento e da gracio -

sidade, o jovem Camões teria alguma liberdade de con-

tacto com tão insigne senhora.

Deveria igualmente

comover o coração senti-

mental de Luís a desdita

da princesa. Afastada da

mãe, toda a vida manifes-

taria o desejo de a voltar

a ver, desejo esse contra -

riado pe la necessidade de

man ter nos cofres da coroa

a espan tosa fortuna que

D. Maria her da ra. Esse foi,

possivelmen te, o motivo

pelo qual se viu impedida

de casar com vários pre-

tendentes, entre os quais

estava Filipe II, herdeiro

de Espanha, filho de Car-

los V e futuro Filipe I de Portugal. As razões de Estado não

permitiam que tal dote seguisse para Madrid. Assim,

no lugar de Maria, Filipe II viria a casar-se com uma filha

de D. João III, igualmente chamada Maria, sua sobrinha.

De novo o desapontamento tomba sobre a vida da bela

princesa.

45

INFANTA

D. MARIA

Segundo consta, D. Maria depressa percebeu o ta -

lento do poeta. Este, por seu lado, descobre na infanta a

elevação espiritual e intelectual capaz de compreender

a dimensão dos seus sonhos e dos seus projectos.

Na história da vida de Camões são mais as sombras

do desconhecimento que as luzes da revelação. Mas foi

tentador, ao longo dos séculos, descobrir na sua poesia, e

em pequenos outros sinais, o despontar de uma paixão do

poeta pela requintada princesa. Alvitra-se que da admi -

ração passaram à cumplicidade. E que Luís a ela vai con-

fidenciar o embrião da sua obra maior, Os Lusíadas. Des -

cobrem-se, em sonetos, hipotéticos retratos de D. Maria:

Um mover de olhos, brando e piedoso,

Sem ver de quê; um riso brando e honesto,

Quase forçado; um doce e humilde gesto,

De qualquer alegria duvidoso;

Um despejo quieto e vergonhoso;

Um repouso gravíssimo e modesto;

Uma pura bondade, manifesto

Indício da alma, limpo e gracioso;

Um encolhido ousar; uma brandura;

Um medo sem ter culpa; um ar sereno;

Um longo e obediente sofrimento:

Esta foi a celeste formosura

Da minha Circe, e o mágico veneno

Que pôde transformar meu pensamento.

46

Ao longo dos tempos foi-se constituindo um fundo

de lenda sobre este relacionamento amoroso, que seria

necessariamente platónico, como é evidente. Também se

enfa bularam cenas de encontros discretos, nos quais o

poeta lia as suas obras à princesa desditada, compreen-

47

PROXIMIDADE

ROSTO

da edição

de 1598 das

Rimas de Luís

de Camões

dendo esta a magnitude do seu talento e apercebendo-se,

a pouco e pouco, dos afectos crescentes do pobre fidalgo.

Alvitrou-se mesmo que, perante a beleza da poesia de

Camões, D. Maria teria chegado a chorar, declarando ser

ele o maior de todos os poetas.

Terá continuado por algum tempo a afinidade inte -

lectual e a inclinação afectiva entre a princesa e o poeta,

48

A BELA INFANTA

conjugação que hoje nos parece mais crível à luz da his-

toriografia do Romantismo que à crua realidade das con-

venções sociais da época. Mas a íntima decisão de Camões

em tornar-se um grande poeta talvez justifique a ideia da

sublimação de um impulso amoroso impossível como se-

ria a afeição por D. Maria. Por outro lado, apesar da sua

posição social, poderia D. Maria ter apreciado para além

das razões puramente estéticas a sincera e apaixonada

devoção de um homem que, para ela, tinha um talento ex-

cepcional. Não nos podemos esquecer da grande erudição

e educação artística da princesa, e do valor que ela daria

às manifestações de genialidade.

Esses cabelos louros e escolhidos,

Que o ser ao áureo sol estão tirando,

Esse ar imenso adonde naufragando

Estão continuamente os meus sentidos,

Esses furtados olhos, tão fingidos

Que minha vida e morte estão causando,

Essa divina graça que, em falando,

Finge os meus pensamentos não ser cridos.

Esse compasso certo, essa medida,

Que faz dobrar no corpo a gentileza

A divindade em terra tão subida,

Mostrem já piedade e não crueza,

Que são laços que Amor tece na vida,

Sendo em mim sofrimento, em vós dureza.

49

Neste soneto, toda a semântica que referencia a

mulher amada aponta para uma pessoa de elevada posi -

ção social, ao mesmo tempo que se adequa à descrição

física de D. Maria e, sobretudo, à distância intransponível

que separa o poeta da princesa.

A ter de facto acontecido, como é suposição de

muitos, esta afinidade, caminhando para a paixão, tinha

de terminar. Se Camões se vira afastado de Catarina de

Ataíde por diferença de estatuto social, imagine-se o fos-

so que o apartava de uma infanta de Portugal. Ao que

parece, Luís, personalidade viva, sempre em movimento e

constantemente rodeado de amigos, terá deixado escapar

algumas inconfidências. O perigo que corria era, porém,

mortal. Não era caso único que jovens, ainda que nobres,

tivessem sido condenados à morte por passarem a fron-

teira do decoro.

Alvitra-se que a história chegou aos ouvidos da

rai nha e que D. Maria, alarmada com o perigo que corria

Luís Vaz, o terá avisado. Mais uma vez, a narrativa tem de-

masiados contornos de romance. Seja como for, uma pos-

sibilidade se coloca: Camões foi afastado da corte por

«amores com uma dama do Paço». E a medida, que o

obriga a manter-se distante da corte, é suficientemente

severa para pensar que o estatuto social da «dama» seria

elevado. É certo que jamais se designaria D. Maria como

50

UM AMOR INTERDITO

«dama do Paço». Nisso vêem alguns motivo para consi -

derar que a punição se deveu aos amores de Camões por

Catarina de Ataíde; outros defendem que a expressão

se destina a proteger a identidade de D. Maria.

Mas é preciso ser cauteloso. António Sérgio contes-

ta claramente a ideia de que Camões se tenha «exilado»

por questões amorosas, como defendia o historiador Jo sé

Maria Rodrigues. E vai mais longe: associar a poesia ca-

moniana aos acontecimentos da sua vida é extrapolar a

veia poética para o plano da realidade pessoal. Hernâni

Cidade questiona-se: «serão tais desterros impostos como

penali dade ou apenas ausências da terra onde se preferia

estar, tantas vezes na linguagem do tempo, designadas

com aquela palavra?» É provável que assim tenha sido, se

bem que, com o seu estilo de vida boémio, libertino e beli -

co so, Camões tivesse múltiplas razões para fugir de Lis-

51

CENA DA VIDA

NA CORTE

Terão Luís Vaz e a hipotética amada ousado um último

encon tro? Arriscaram a reputação ela, a vida ele, numa

ma druga da de despedida? É o que apetece pensar, lendo este

soberbo soneto, onde o tema do afastamento se exprime de

modo pungente.

Aquela triste e leda madrugada,

Cheia toda de mágoa e de piedade,

Enquanto houver no mundo saudade,

Quero que seja sempre celebrada.

Ela só, quando amena e marchetada,

Saía, dando à terra claridade,

Viu apartar-se de uma outra vontade,

Que nunca poderá ver-se apartada;

Ela só, viu as lágrimas em fio

Que de uns e de outros olhos derivadas,

Juntando-se, formaram largo rio;

Ela ouviu as palavras magoadas

Que poderão tornar o fogo frio,

E dar descanso às almas condenadas.

Um último encontro

52

boa.

Para todos os efeitos, a vida de Luís Vaz iria mudar.

Era o adeus aos lugares queridos em que vivera. Os saraus

nos quais conhecera os melhores espíritos do reino, para

não falar das mais belas donzelas. Ou mesmo das mais

oferecidas, cuja preferência (ou oportunidade) lhe mar-

cavam as noites de boémia. Não durara mais que dois ou

três anos esta vida descuidada e intensa, que vai para sem-

pre moldar a personalidade do poeta, revestindo-a de uma

melancólica nostalgia de um tempo dourado que jamais

voltaria.

Em 1546 Camões sai de Lisboa e parte para uma es-

pécie de exílio interno, sendo obrigado a permanecer a

uma certa distância da capital. Vai constrangido, amar-

gurado e certamente nostálgico dos luminosos dias. As

razões deste afastamento talvez não se possam reduzir

aos «amores com uma dama do paço».

O poeta tinha escrito um auto, uma peça teatral,

chamada Auto de El-Rei Seleuco. Ignora-se a data da exe-

cução da obra e mesmo da sua representação. Aventa-se

que te nha sido encenada em 1545, na casa de Estácio da

Veiga, homem de grande importância na corte. E há quem

veja no enredo da peça, nitidamente baseado numa peça

de Plutarco, uma acintosa crítica à tumultuosa relação en-

tre D. João III e D. Leonor de Áustria, facto que teria so-

53

BANIDO

bremaneira desagradado ao rei. Esta interpretação parece

duvidosa, mas ainda assim de considerar. Apesar de não

ser um género maior na sua obra, Camões escreverá ain-

da dois outros autos ao gosto vicentino, Comédia de Filode-

mo e Comédia dos Enfatriões.

Seja como for, Luís Vaz encontrava-se longe de Lis-

boa e dela afastado para longe. Para onde? Até hoje não

há certezas. Seria forçosamente nas margens do Tejo, a

avaliar pelos poemas que o poeta nos legou a partir do seu

exílio. Os trabalhos de investigação têm apontado diver-

sos lugares, cada um deles reivindicando a glória de haver

albergado, ainda que de modo efémero, o poeta.

Houve quem propusesse Santarém, por ser casa de

família, onde talvez se encontrasse sua mãe; outros,

apoiando-se em documentos, palpitaram que Coimbra:

apesar de não se encontrar nas margens do Tejo, seria o

local mais provável, beneficiando do apoio de seu tio,

D. Bento; muitos confiaram na possibilidade de Constân-

cia, em virtude de lá haver uma casa de família; falou-se

SANTARÉM

em meados

do século xvi

54

até de Abrantes. Finalmente foi defendida a hipótese de

Belver, com as plausíveis razões de que a geografia local

corres pondia muito mais à descrição enunciada nos poe-

mas camoneanos que qualquer outra das localidades.

Seja qual for o lugar onde o banido jovem se refu-

giou, o certo é que a escrita se intensifica, com uma pro-

dução poética assinalável, marcada pelas saudades, pela

nostalgia, pelo sentimento de impotência perante a roda

da fortuna que o deixara no isolamento e abandono.

Após a natural revolta, ter-se-á seguido a resignação

abatida. Depois, Luís, com o vigor da juventude e a crença

inflexível no seu talento, começa a recuperar. E é no pa-

pel, sob a forma poética, que acaba por reflectir nos acon-

tecimentos que o haviam transformado num homem afas-

tado do convívio dos que mais gostava e admirava.

Datará provavelmente desta época a amarga re-

flexão constante na Écloga II, em que duas personagens,

Agrário e Almeno, dialogam. É significativo o trecho de

Agrário:

Perigos, línguas más, murmurações,

Ciúmes, arruídos, competências,

Temores, mortes, nojos, perdições.

Estas são verdadeiras penitências

De quem põe o desejo onde não deve,

55

UMA LONGA ESPERA

De quem engana alheias inocências.

Mas isto tem Amor, que não se escreve

Senão onde é lícito e custoso;

E onde é mor o perigo, mais se atreve.

A reveladora afirmação «De quem põe o desejo onde

não deve» contextualiza toda a estrofe à luz do drama que

Camões terá vivido em relação a D. Maria.

Nas margens do Tejo, Luís escreve e aborrece-se.

Longe vão os seus pensamentos de idealismo bucólico,

quando, mergulhado na agitação da vida lisboeta, escrevia

a um amigo invejando-lhe a virgiliana condição rural. No

seu exílio experimenta o tédio e anseia percorrer o curso

das águas que o Tejo leva até Lisboa. Contudo, é neste

período da sua vida que vai compor alguns dos seus mais

belos poemas, imbuídos de uma graça e de um primor es -

NAS

MARGENS

DO TEJO

56

té tico que os elevam aos grandes momentos da sua obra.

Lembranças, que lembrais meu bem passado,

Para que sinta mais o mal presente,

Deixai-me, se quereis, viver contente,

Não me deixeis morrer em tal estado.

Mas se também de tudo é ordenado

Viver, como se vê, tão descontente,

Venha, se vier, o bem por acidente,

E dê a morte fim ao meu cuidado.

Que muito melhor é perder a vida

Perdendo-se as lembranças da memória,

Pois fazem tanto dano ao pensamento.

Assim que nada perde quem perdida

A esperança traz de sua glória

Se esta vida há-de ser sempre em tormento.

Sentimentos de culpa. Lembranças amargas. Visão

funesta de um futuro que se adivinha negro. A exacerba-

da sensibilidade poética de Luís vai exprimir-se em toda

a sua plenitude nestes sonetos de exílio, onde as horas

amargas da solidão lhe devem pesar muito.

[...] Perdi numa hora tudo quanto em termos

Tão vagarosos e largos, alcancei; [...].

Mas o castigo imposto a Luís acabaria por terminar.

57

No seu exílio campestre, Camões compôs diversos sonetos

de sabor bucólico e tonalidade vergiliana, plenos de graça

e domínio formal, como este em que invoca a natureza para

compreender o seu sentimento de saudade.

Alegres campos, verdes arvoredos,

Claras e frescas águas de cristal,

Que em vós os debuxais ao natural,

Discorrendo da altura dos rochedos;

Silvestres montes, ásperos penedos,

Compostos em concerto desigual:

Sabei que, sem licença de meu mal,

Já não podeis fazer meus olhos ledos.

E, pois me já não vedes como vistes,

Não me alegrem verduras deleitosas

Nem águas que correndo alegres vêm.

Semearei em vós lembranças tristes,

Renegando-vos com lágrimas saudosas,

E nascerão saudades de meu bem.

Saudades

58

Estando Camões no seu triste exílio, escrevendo e sentindo-se in-

feliz, apartado do mundo que tanto amara, da animada vida na capital

onde o seu espírito e a vibrante juventude que o impregnava o tornavam

estimado, quando não amado, pessoa amiga vem dizer-lhe que o castigo

findara. Não se sabe quem, nem quando. Mais uma vez, é como se a vi-

da do poeta fosse uma espécie de tela em branco, apenas com alguns

traços esboçados, sobre os quais todos podem dar a sua pincelada.

O SOLDADO

QUE PERDE UM OLHO

SOLDADO POETA – a peleja nas armas e nas letras

59

Podemos sentir a excitação que se apoderou de Luís

quando recebeu a notícia. Era um homem novo, que pe-

nara a solidão da vida campestre durante talvez três anos.

Tinha agora cerca de um quarto de século, estava no

apogeu da juventude, as «musas» tinham-no abençoado

com uma perfeição de escrita que não cessara de depurar

no seu longo afastamento. Poderia ele voltar à corte? Pode-

ria reconquistar os corações que cativara, especialmente

o grande amor que o mantinha cativo? É provável que os

sentimentos do poeta fossem paradoxais, mas o que im-

portava era rumar a Lisboa o quanto antes.

Camões dirige-se à capital, ao longo do rio Tejo,

que fora personagem principal nos seus poemas de exílio.

Mal chega, deverá ter usado todos os seus conhecimen-

tos, visto que pouca influência tinha, para voltar a entrar

na corte. É possível que tenha instado D. Manuel de Por-

tugal, ou D. Francisco de Noronha, amigos importantes e

de reputação sem mácula, a franquearem-lhe as portas

dos círculos literários e culturais, mas também das taber-

nas, dos arruaceiros e dos embarcadiços, sem falar das

rameiras que tanto prezava.

Numa carta, «passa Camões a ocupar-se das damas

de aluguer. Há muito que dizer delas, posto que alguns

julguem que com estas “É só pagar e andar.” Camões, co-

mo se vai ver, não as conhecia apenas como freguês pa-

gante, mas como boémio que frequentava e vivia o seu

mundo, como homem que tinha olhos para as apreciar»,

segundo António José Saraiva.

60

DE VOLTA A LISBOA

Contudo, as evasivas chegaram. Com a diplomacia

possível, fizeram-lhe sentir que, com a sua idade, deveria

dar provas de valor militar nas praças de África se quisesse

envergar vestes de varão, ou seja, antes de entrar no paço

teria de fazer carreira de armas.

Tornar-se expedicionário no Norte de África era

inteiramente alheio aos desejos de Luís Vaz. Possivel men -

te tal ideia jamais lhe teria passado pela cabeça. Naquele

tempo os Portugueses mantinham diversas praças afri -

canas sob seu domínio, num estado de conflito latente

com os Árabes, mais que de guerra declarada. Era uma

boa ocasião para os jovens nobres lusitanos praticarem as

artes bélicas e clamarem feitos valorosos.

O valor económico da presença portuguesa nes -

tas paragens era quase inexistente (pelo contrário, seria

61

TÂNGER,

conquistada

em 1471

mesmo ruinoso para os cofres do Estado) e a importância

estratégica pouco relevante. Aliás, será no reinado de

D. João III que quase todas as posições dos Portugueses

na África saariana serão abandonadas.

Neste ano de 1549 (ou 1550), com cerca de 25 anos,

Luís Vaz de Camões encontra-se numa encruzilhada.

Sem profissão útil, não tem rendimento garantido e as

amizades, benévolas, é certo, olhariam para ele com a mal

disfarçada estranheza que sempre provoca um ser que,

aos olhos dos outros, deveria já ser um pouco excêntrico.

Sem um protector capaz de o alcandorar aos voos a que

aspira, Luís pergunta-se para onde ir. «Onde vás, Luís?»

Talvez como nenhum outro testemunho, a partida

de Camões para África certifique o seu ardente desejo de

voltar. Se essa era a condição imposta, pois havia que

cumpri-la. Por outro lado, o seu arrebatamento natural de-

via encontrar nesta expedição um ideal de nobilitação.

Quem sabe se, por excepcionais feitos de armas, por al-

gum acto heróico e grandioso, não ganharia o respeito dos

maiores do seu país? Haveria algum feito de bravura que

pudesse apagar a distância?

Camões não era, a meio dos seus 20 anos, apenas

um poeta de talento excepcional, mal avaliado pelos con-

temporâneos. Era também um homem feito, forte e des -

temido, habituado a lidar com armas e experimen tado em

62

«ONDE VÁS, LUÍS?»

querelas e rixas de rua. Uma temporada na carreira das

armas não o atemorizava. Talvez mesmo o estimulasse,

até porque o seu espírito, sedento de conhecimento e de

novas, deveria aspirar ao contacto com aquelas terras onde

tantos portugueses se haviam coberto de honra. Talvez o

projecto de Os Lusíadas já ocupasse a sua mente, estando

mesmo algumas estrofes já escritas.

Sem nada a perder, Luís parte para Ceuta. Antes da

largada, poderá ter escrito estas nostálgicas estrofes:

Partir não me atrevo,

Que me lembram mágoas;

Se me levam águas,

Nos olhos as levo.

Se vou ao Tejo

Para me despedir,

Não me posso ir

Sem ver meu desejo,

E quando o vejo,

Partir não me atrevo;

Se me levam águas

Nos olhos as levo.

Se de saudade

Morrerei ou não,

Meus olhos dirão

De mi a verdade.

Por eles me atrevo

A lançar às águas,

63

Que mostrem as mágoas

Que nesta alma levo.

As águas que em vão

Me fazem chorar,

Se elas são do mar,

Estas de amor são.

Por elas relevo

Todas minhas mágoas;

Que se força de águas

Me leva, eu as levo.

Todas me entristecem,

Todas são salgadas;

Porém as choradas

Doces me parecem.

Correi, doces águas,

Que se em vós me enlevo,

Não doem as mágoas

Que no peito levo.

Luís Vaz sai da barra do Tejo numa armada, certa -

men te numerosa, que vai levar alguns dias a chegar a Ceu-

ta. Não se sabe quando, mas pensa-se que terá feito esca-

la num dos portos algarvios, talvez Lagos, talvez Portimão.

64

EM CEUTA

À chegada a Ceuta, toda e qualquer esperança de

uma jornada gloriosa em terras africanas se desvanece

em pouco tempo. A ronceira vida dos homens de armas,

em condições climatéricas hostis, com dificuldades de

abastecimentos, comendo mal e pelejando em recontros

inconsequentes com os mouros depressa o vão enfastiar.

Não se podia pedir, de igual modo, uma vivência intelec-

tual e espiritual num meio rude, entre homens rudes.

Camões vai entregar-se, de novo, àquilo que melhor

sabe fazer. Escreve. Numa carta a um amigo, provavelmen -

te D. António de Noronha, dedica-se a longas e elípticas

confabulações filosóficas, onde são já patentes a sua desi -

lu são com o género humano e o cepticismo ante o futuro.

65

CEUTA

E por tão triste me tenho

Que, se sentisse alegria,

De triste não viveria,

Porque a tal sorte vim,

Que não vejo bem algum

Em quanto vejo,

Que não nasceu para mim;

E por não sentir nenhum,

Nenhum desejo.

Decididamente, Camões não é um homem feliz na

praça de Ceuta. Experimenta os sentimentos contraditó -

rios da sua existência. Desejando ardentemente ser aceite

e querido num mundo que fora o seu, procura, tem o desí -

Gravura

fantasiosa

que representa

CAMÕES NUMA

LUTA EM CEUTA

66

gnio paradoxal de viver «apartado do mundo», num afas-

tamento onde possa viver em paz a sua dor. Mas a dor irá

marcá-lo inesperadamente de forma cruel e definitiva. Os

fados, o termo a que com frequência se refere ao seu des-

tino, ainda se vão virar mais contra ele.

É seguro que Camões se envolveu em diversas pele-

jas que, mais do que combates militares de grande mag-

nitude, seriam sortidas militares rápidas e esporádicas, ou

respostas a provocações. Nelas não se deve ter acanhado.

Escreverá uma carta, já na Índia, onde se vangloria de nun-

ca ter negado «conversações» deste género: «Ajuntou-se a

isto acharem-me sempre na pele a virtude de Aquiles, que

não podia ser cortada senão pela sola dos pés. As quais,

de me não as verem nunca, me fizeram ver as de muitos,

e não enjeitar conversações da mesma impressão, a quem

fracos punham mau nome, vingando com a língua o que

não podiam com o braço.»

Uma vez mais, os ventos sopram contra ele, ou os

deuses, como Luís gostava de pensar. Num recontro é feri-

do com gravidade no rosto, lesão que lhe provoca a perda

de um olho e o desfigura para sempre.

Fica Luís de Camões à beira de morrer, o que não é

de admirar se se avaliarem as condições sanitárias e os

co nhecimentos médicos da época. Acabará por sarar, mas

o ferimento provoca um retorno antecipado a Lisboa.

67

A PERDA DE UM OLHO

Ao longo dos tempos muito se especulou sobre qual

seria o olho perdido por Camões. A gravura inserta nas

primeiras edições de Os Lusíadas mostrava-nos um vazio

no lugar do olho esquerdo. Porém, aconteceu que foram

invertidas as chapas da gravura na altura da impressão,

pelo que só mais tarde se deu conta de que o olho perdi-

do era o direito.

DESENHO

AGUARELADO

68

A temática do olhar é recorrente na poesia camoniana,

havendo estrofes que se referem quase explicitamente à perda

de um dos olhos e de como esse acontecimento pode ser subli-

mado pela elevação do espírito. O poeta vai encarar a sua mu-

tilação como algo que, de certo modo, o eleva sobre os outros.

Falta-lhe um olho, sobra-lhe a agudeza do olhar:

Sem olhos vi o mal claro

Que dos olhos se seguiu:

Pois cara sem olhos viu

Olhos que lhe custaram caro.

De olhos não faço menção,

Pois quereis que olhos não sejam,

Vendo-vos, olhos sobejam,

Não vos vendo, olhos não são.

A importância do olhar

Às agruras temporárias desta segunda espécie de

exílio, juntava agora Luís a amargura de uma mutilação

definitiva. Para sempre estava perdido o encanto daque-

les olhos grandes e expressivos que tanto impressiona-

ram as damas de qualquer origem. O fulgor de um rosto

vibrante e intenso era agora a expressão de uma repul-

siva cara desfigurada. Se os seus anseios de aceitação

social estavam já hipotecados, como se sentiria agora Luís

perante os desígnios que almejava?

69

Ao chegar a Lisboa, por volta de 1550, Luís encon-

tra uma sociedade em rápida mutação. É uma mudança

que contra ele se virará. Em 1536, após grande dispêndio

de verbas dos cofres da nação, a Santa Sé autoriza a ins -

talação do Santo Ofício em Portugal. A Inquisição chegara

para aterrorizar as almas durante mais de dois séculos.

Quatro anos depois, estabelece-se no país a Companhia

de Jesus. Com os inacianos opera-se uma profunda mu-

dança de mentalidade em toda a sociedade portuguesa, a

começar pela corte de D. João III.

Onde antes imperava o humanismo renascentista,

aberto ao conhecimento dos autores clássicos e do mun-

do antigo, às novas ideias e práticas vindas da Europa e,

INÁCIO DE

LOYOLA

AOS PÉS DE

PAULO III.

Dois

símbolos

da Contra-

-Reforma

70

REGRESSO A UMA LISBOA DIFERENTE

sobretudo, à maravilhosa gesta de conhecimento cien tífico

proporcionada pela saga dos Descobrimentos, fermenta

agora o obscurantismo, a superstição e o medo instiga -

dos pelo espírito da Contra-Reforma. Os jesuítas muito

depressa tomam conta dos cargos eclesiásticos mais im-

portantes na corte. Tornam-se confessores, conselheiros,

educadores, administradores. A sua influência alastra

pelo reino como fogo em palha seca.

Na própria educação do infante D. João, o único

herdeiro masculino ao trono de Portugal que sobrevivera

à extensa prole de D. João III, se pode verificar como os

tempos mudaram. Para a formação do jovem príncipe,

D. João III chamara à corte Damião de Góis, o mais insigne

humanista português e um dos maiores vultos intelec -

tuais da Europa do seu tempo. Damião de Góis abandona

os seus cargos no estrangeiro, aliás de enorme relevo,

e ruma a Lisboa para se ocupar da tarefa de educar o

príncipe, mester que se revestia de enorme importância

social ao tempo.

Contra o ilustre humanista, os jesuítas não perdem

tempo. Insidiosamente, o padre Simão Rodrigues denun-

cia-o à Inquisição de Évora, alegando simpatias heréticas

daquele para com o protestantismo. Homem do mundo,

Góis conhecera Lutero, com quem debatera ideias, mas

estava longe de ter perdido a fé católica. Esse facto era,

porém, irrelevante face à intriga.

O brilhante espírito renascentista é afastado, toman-

do o seu lugar António Pinheiro, da confiança dos jesuí-

tas, que se revelará um homem de enorme cobiça pelo

poder, vindo a ocupar destacadas posições no Estado.

71

Filho de D. Manuel I, D. João III será o décimo

quinto rei de Portugal. Desde novo recebe instrução

de carácter humanista, com mestres de grande

craveira como Luís Teixeira e o médico Tomás de

Torres. Durante a juventude, duvidava-se das ca-

pacidades do futuro monarca. Seu pai chega a de-

clará-lo «néscio», pouco dotado de capacidade inte -

lectual. Porém é educado nos assuntos da governação,

como pertencia aos ditames da descendência régia.

D. João III será aclamado rei aos 19 anos, vindo a casar com

uma irmã de D. Leonor, D. Catarina de Áustria. Durante o reina-

do de D. João III assiste-se a uma dramática alteração da es-

trutura do poder, caminhando-se para o absolutismo real, ao

mesmo tempo que as ideias do humanismo do Renascimento

D. João III

Este António Pinheiro virá mais tarde a cruzar-se no cami -

nho de Camões. Quanto a Damião de Góis, resta-lhe a con-

solação dada pelo rei. Será guarda-mor da Torre do Tombo.

Nem esse facto o salvaguarda das mãos da Inquisição.

Após a morte do monarca, é preso em 1572, com 70 anos,

e condenado por heresia a prisão perpétua. No cárcere

ainda será denunciado, entre outros, por Pêro de Andrade

Caminha, o poeta cortesão denegridor de Camões. Li ber -

tado devido talvez à provecta idade, é assassinado em

Janeiro de 1574.

72

serão rapidamente substituídas pela Contra-Reforma, pelo poder

dos jesuítas e pela instauração da Inquisição em Portugal,

facto que merece o empenho pessoal do monarca.

É no reinado de D. João III que a extensão do império co -

me ça, de certo modo, a implodir (à excepção do Brasil, face

ao qual o monarca é o primeiro a fazer uma tentativa séria de

valo rização e de exploração, com o sistema de capitanias).

Nos territórios orientais, os ataques dos Otomanos e dos Árabes

tornam-se cada vez mais frequentes, combatendo a situação

monopolista imposta pelos Portugueses.

Em virtude do enorme esforço financeiro empregue na

manutenção das praças do Norte de África, que não eram, de

modo algum, produtivas, D. João III decide abandonar os ter-

ritórios de Arzila, Azamor, Alcácer-Ceguer e Safim, criando uma

legião de nobres e homens de armas desempregados.

Com o filho de D. Manuel, o absolutismo torna-se uma for-

ma de governo. Com ele apenas despacham um secretário de

Estado, António Carneiro, apoiado por dois dos filhos deste. A

legião de súbditos, em parte vindos das praças de África, noutra

parte nobres caídos em infortúnio financeiro pela perda de poder

das grandes famílias do reino, aumenta, representando para

os cofres nacionais um esforço hercúleo que nem os rendimen-

tos da Índia conseguiam prover. Não admira que no reinado de

D. João III tenham ocorrido graves crises financeiras, sempre

colmatadas com a ruinosa solução dos empréstimos externos.

É nas relações com Espanha que se revela a maior debi -

lidade de D. João III. Alinhando descuidadamente com as

manobras de Carlos V, estreita de tal modo os laços de pa-

rentesco entre as duas coroas que deixa iminente a possibi -

73

lidade de o reino espanhol se apoderar da coroa portuguesa.

Tendo tido diversos filhos varões, todos morrerão (mesmo

um filho natural). O único dos seus filhos que chega a pro -

criar, D. João, casa com uma filha de Carlos V e morre antes

de o seu descendente, neto de D. João III, nascer. Este, por sua

vez, morrerá muito novo. Era D. Sebastião. Espanha pôde

então tomar a coroa de Portugal.

Outra das vertentes da política de

D. João III foi a estreita relação que esta -

beleceu com o papado, pagando uma soma

gigantesca para a instauração da Inquisi -

ção em Portugal e permitindo a introdução

do espírito da Contra-Reforma, tendo os

jesuítas entrado (com poderosa presença)

no nosso país durante o seu reinado.

Releve-se a seu favor que, durante os

primeiros anos de poder, D. João III é um

grande apoiante das artes na senda, aliás,

da corte de seu pai. Sá de Miranda, Ber -

nardim Ribeiro, Pedro Nunes, João de Cas-

tro e João de Ruão, entre outros, brilharão

na corte e conhecerão a sua protecção. Pro-

cede igualmente à reforma da Universidade portuguesa e cria

o Colégio das Artes. Os seus últimos anos de reinado, contudo,

estão bem longe do brilho renascentista, mergulhados na

obscuridade trazida pelos jesuítas e pela Inquisição.

Com D. João III assiste-se à passagem abrupta de um perío-

do luminoso, do apogeu da história de Portugal, para o declínio

económico e moral.

74

Portada do

REGIMENTO

DO SANTO

OFÍCIO

de 1640,

que

aperfeiçoa

os de 1552

e 1613

Quando Camões chega a Lisboa, toda a cultura so-

cial estava em acelerada mutação. As perseguições, as

denúncias, os autos-de-fé contaminavam a vida da cidade

com um verda deiro es-

pírito de medo, em que

todos podiam ser dela-

tores de todos a partir

de denúncias ridículas,

ditadas pela superstição

ou pelo medo. O povo

mal conse guia compre -

ender o que se passava,

mas acompanhava os sinais da mudança procurando o

recato, o falar discreto, a presença reforçada nos ofícios

religiosos. Nin guém andava contente.

Além disso, as finanças de Portugal caminhavam

de mal para pior. As desastrosas decisões de D. João III a

ní vel económico haviam mergulhado o país numa grave

crise, onde a falta de dinheiro nos cofres do Estado amea -

çava tornar-se uma doença crónica.

Para colmatar as enormes despesas com a vasta

legião de funcionários que gravitavam à volta da corte,

as fortunas despendidas nas relações com a Santa Sé, os

rios de dinheiro gastos nas praças do Norte de África e as

riquezas geradas pelo florescente comércio com a Índia

não chegavam. Assim, o monarca, já imbuído do espírito

absolutista, pouco e mal aconselhado, vai recorrer com

uma alarmante frequência aos empréstimos externos,

75

UMA SOCIEDADE EM MUDANÇA

PROCISSÃO DO

AUTO-DE-FÉ,

a sair do

palácio dos

Estaus, a sede

da Inquisição,

no Rossio em

Lisboa

que têm como consequência o agravamento das condi -

ções de vida da população em geral.

Nada melhor para a manutenção da ordem que a

existência de um poder «espiritual» com instrumentos

para exercer a justiça, manter a ordem, atemorizar os re -

nitentes. Se a alta nobreza perdia influência, resmungava

com as dificuldades e dependia cada vez mais do poder

real; se o povo passava por agruras inimagináveis à luz

dos valores de hoje; estavam lá a Inquisição para impor

a ordem e os jesuítas para aplacar as almas. D. João III

havia assegurado o seu poder. O reino, contudo, entrara

em declínio.

A vida na corte também havia mudado. Rapida-

mente se vão desvanescendo os sinais de apreço pelas

artes e pelas letras, as festas e os saraus onde os be los

espíritos se manifestavam. O rei e os mais destacados

mem bros da nobreza estão inteiramente dominados pe -

los representantes da Companhia de Jesus, como o padre

Simão Rodrigues, que se torna confessor do monarca.

Mesmo o cardeal D. Henrique, irmão de D. João III, que an-

tagonizara os inacianos, é agora, após ter sido designado

inquisidor-geral, um indefectível seguidor dos Apóstolos,

como a si mesmos se designavam os membros da com-

panhia. Como se sabe, D. Henrique terá um papel crucial

no período da perda de independência de Portugal.

A rainha velava pelos costumes. Agora, a música, o

teatro, a poesia, as práticas de galanteria eram conside -

radas doenças para a alma e alçapões para os abismos do

inferno. É este novo clima que Luís vai encontrar na sua

chegada a Lisboa.

76

Damião de Góis é consi -

derado um dos grandes vultos

do humanismo europeu, esta-

belecendo pontes culturais de

primeira importância entre a

elite ilustrada portuguesa e os

meios culturais mais avança-

dos na Europa seiscentista. Tal

como Erasmo ou Dührer, este

grande renascentista respira-

va um ambiente de ciência e

liberdade intelectual.

Damião de Góis nas ceu

em Alenquer, em 1502. Ten -

do ficado órfão aos 11 anos,

torna-se moço de câmara na

corte de D. Manuel I. As qualidades de espírito do jovem cedo

atraíram a atenção de D. João III, que o nomeou escrivão da

feitoria na Flandres, quando era feitor Rui Fernandes de Al-

mada e, mais tarde, o enviou em negócios a várias cortes da

Europa, «servio nas partes da Alemanha, Frandes, Brabante e

Holanda en negoçeos de muita importancia aonde foi tão quis-

to e aceyto que o tinhão todos por seu natural».

Assoberbado pela «curiosidade e desejo que tinha de co -

nhecer o mundo», conheceu e privou com algumas das mais

destacadas figuras da sua época em todo o continente europeu,

como Martinho Lutero, Erasmo de Roterdão e Melancton.

Damião de Góis

77

DAMIÃO

DE GÓIS

Damião de Góis viveu em Basileia junto de Erasmo e estu-

dou na Universidade de Pádua. Prosseguiu os seus estudos em

Lovaina, onde publicou vários trabalhos: os Comentarii rerum

gestarum in India e o Fides, religio moresque Aethioporum sub

imperio Preciosi Joanni. Antes já havia desistido do cargo de

tesoureiro da Casa da Índia, que lhe havia sido atribuído por

D. João III, justamente para prosseguir os seus estudos.

Retornou o grande humanista a

Portugal, em 1545, tendo sido designa-

do guarda-mor da Torre do Tombo. É

encarregue de escrever a Crónica do

Felicíssimo Rei D. Manuel, apesar de não

ser o cronista-mor do reino. A obra que

produz, extremamente cuidada e fun -

damentada, é de uma enorme qua -

lidade. Escreverá ainda a Crónica do

Príncipe Dom João o Segundo do Nome.

Foi ainda um apaixonado cultor da

música e do convívio com os espíritos

mais eruditos da sua época em Lisboa.

A Inquisição promove a sua des-

graça. Foi preso pelo Santo Ofício (de-

nunciado por Sebastião Rodrigues de Azevedo), acusado de ser

espírito heterodoxo. Em 1574 será achado morto na sua casa

de Alenquer, suspeitando-se de assassinato.

Historiador e diplomata, viajante e funcionário régio, Góis

foi o espírito mais moderno e iluminado do seu tempo em Por-

tugal e o porta-voz das novas ideias humanistas, um homem

do Renascimento e um dos mais eruditos do seu tempo.

78

CRÓNICA

DO

FELICÍSSIMO

REI

D. MANUEL

Ao chegar à capital, Camões deve já trazer consigo a pala negra

que lhe recobre o olho estropiado e afasta o olhar alheio da horrível visão

de uma cavidade escura e funda. Não vem apenas mutilado. É, certa-

mente, um homem ferido na alma, envergonhado, cada vez mais imerso

num mundo próprio, onde ecoa a voz que lhe dita os versos, o génio que

organiza os poemas.

Contudo, não perde o desejo, quase como se de uma obsessão

se tratasse, de voltar aos lugares e às pessoas que amara. É como uma

borboleta em torno de uma luz, como aliás refere um dos seus poemas.

UM REGRESSO

TRÁGICO

VISTA DE LISBOA

79

Neste ano de 1550, Camões parece tentar a sua sorte

na Índia, alistando-se para embarcar numa das frotas que

em breve partiriam. Mas tal não acontece, e mais uma vez

a roda da história lhe será funesta. Que fazer, então? É ain-

da uma pessoa orgulhosa do seu talento, absolutamente

crente da sua missão de poeta, investida no desígnio de

escrever uma obra que, dando corpo à sua vastíssima

erudição, glorificasse a saga marítima dos Lusitanos.

Contudo, o jovem imberbe e altivo que, anos antes,

causara brado em Lisboa, havia mudado. Era agora um

homem feito, de considerável envergadura, barba ruiva,

bigode, cabelo grande. Perdera o brilho da moci dade. Con-

servava apenas um olho, que mantinha ainda o olhar cáli-

do e inquie to de outrora. O outro estava tapado por uma

pala negra, simbolizando o negru me do seu destino. Co-

mo o aceitariam sendo pobre, proscrito, mutilado?

No entanto, Camões vai tentar. A pri meira abor-

dagem que faz é a mais lógica. Procura aproxi mar-se da

corte do príncipe D. João, único filho varão de D. João III,

que por essa época desenvolve uma grande afeição pela

poesia e se torna protector dos poetas, entre os quais Fran-

cisco Sá de Miranda, D. Manuel de Portugal, amigo de

Camões, Fernando da Silveira e João Lopes Leitão, entre

muitos outros. Com o príncipe D. João a poesia ganhava

novo impulso. Havia que tentar, pensou Luís. Até porque

tinha consciência nítida da sua superioridade sobre os

restantes vates do reino. Além disso, portava consigo um

projecto do maior interesse nacional: um poema que glo-

80

DESFIGURADO

rificava os Descobrimentos, a gesta lusitana e, pormenor

com alguma importância, a casa de Avis. Mais do que

a glória, contudo, talvez procurasse uma pequena tença

ou até uma malga de sopa.

81

Camões vai utilizar todos os recursos para voltar

a ser aceite: a influência dos amigos, a pressão de conhe -

cimentos nas altas esferas, mas também a lisonja. E quem

melhor para ser lisonjeado que o tutor de estudos do

príncipe, o famigerado D. António Pinheiro? Pois é a ele

que Camões dirige um soneto laudatório, manifestamente

exagerado no tom, que nos chocaria se não tivéssemos

presentes as vicissitudes que enfrentava Luís Vaz.

[...] E, fazendo a sua dor ilustre engano,

A Júpiter pediu que o verdadeiro

Preço da nobre palma e do loureiro

A seu pinheiro desse, soberano.

[...] Oh! ditoso pinheiro! Oh! mais ditoso

Quem se vir coroar da folha vossa,

Cantando à vossa sombra verso eterno!

A última estrofe é bem exemplificativa do esforço

que o poeta faz para impressionar Pinheiro, ao mesmo

tempo que, implicitamente, lhe promete criar, à sua som-

bra, «verso eterno». Estaria Camões a pensar no poema

épico que já então elaborava?

De nada lhe vão valer, porém, estes rebaixamentos

da arte, estas cedências de conveniência. O ambiente cul-

tural, social e religioso havia mudado, o humanismo re-

nascentista de Camões seria certamente encarado como

um perigo, uma ameaça de corrupção dos espíritos, por

aqueles que tutelavam a educação do príncipe. Que o

82

UM ESFORÇO INÚTIL

jovem herdeiro do trono se dedicasse às belas letras,

daí não viria mal ao Mundo. Mas admitir um homem que

ma nifestamente se desenquadrava do espírito fanatizado

do tempo, isso era outra coisa.

Sem pretextos de carácter normativo, como os que

antes o tinham levado ao Norte de África, as portas foram-

-lhe sendo fechadas de modo dissimulado, menos franco,

de certo modo ainda mais frustrante. Camões compreende

que não vale a pena continuar a insistir.

83

CAMÕES tenta

impressionar

D. António

Pinheiro

A infanta não perdera, com as profundas alterações

sociais que estavam em curso, o costume de se fazer rodear

de actores, poetas e músicos em Santa Clara. O seu es-

tatuto e independência de espírito assim o permitiam.

Lembrar-se-ia ela do arrebatado Luís Vaz? Talvez sim.

Um belo dia é-lhe feito saber que seria bem rece-

bido nos salões da senhora dos cabelos claros. Pode -

mos imaginar a emoção do poeta, o seu nervosismo, as

dúvidas e receios que o assaltaram. Como iria a senhora

do seu destino acolher aquele homem tão mudado, ao

ponto da desfiguração? Como suportaria ele o olhar de

D. Maria, mantendo a compostura e os modos próprios

de um ambiente de corte? Deve ter sido com o coração

aos pulos que Luís Vaz entrou em Santa Clara para en-

contrar, anos depois, a irmã de D. João III.

Nos salões é provável que o olhassem com estra -

nheza. Todos se questionariam como poderia aquele

homem quase taciturno ter sido a brilhante estrela de

anos atrás. Alguns, que ainda o conheciam dos anos

felizes, espantavam-se em ver como mudara o rapaz

luminoso de antes.

Estamos, de certo modo, no domínio da efabulação.

Não existem registos que nos comprovem a cena, apenas

indícios. Sinais que contam ter D. Maria recebido Luís de

Camões com toda a deferência e consideração, chaman-

do-o junto de si, pedindo-lhe narrativa dos anos trans -

corridos. Não lhe permite que se ajoelhe, dizendo-lhe que

ele era da casa.

84

NOS SALÕES DE D. MARIA

A medo, Camões terá perguntado se não lhe pare-

cia ele outro com aquele terrível ferimento, que tanto o

desfigurava, ao que D. Maria responderia ser esse um sinal

de maior glória a somar ao seu talento.

85

RETRATO

FEITO

EM GOA

Há um soneto escrito por Luís de Camões que, de

certo modo, pode transmitir os sentimentos decorrentes

deste reencontro:

Vós, que de olhos suaves e serenos

Com justa causa a vida cativais,

E que os outros cuidados condenais

Por indevidos, baixos e pequenos;

Se de Amor os domésticos venenos,

Nunca provados, quero que sintais,

Que é tanto mais o amor despois que amais,

Quanto são mais as causas de ser menos;

E não presuma alguém que algum defeito

Quando na cousa amada se apresenta,

Possa diminuir o amor perfeito;

Antes o dobra mais; e se atormenta,

Pouco a pouco desculpa o brando peito;

Que amor com seus contrários se acrescenta.

Luís de Camões foi ficando por Lisboa. Adiado

estava o hipotético projecto de demandar a Índia em bus-

ca de duvidosas riquezas, de glórias improváveis. E esse

foi o seu infortúnio, não ter saído da cidade do Tejo antes

que algo de terrível acontecesse. Mas o épico poeta esta-

86

TRAGÉDIA

va destinado aos mais negros desígnios. Neste caso, devi-

do a um impulso escusado, a uma irreflectida atitude que

só se explica num homem que, à beira dos 30 anos, guar-

dava em si tanta genialidade como uma impulsiva na-

tureza.

A 16 de Junho de 1552, quinta-feira, Lisboa enga -

la na-se para ver passar a procissão do Corpo de Deus. É

uma data litúrgica marcante e um dos acontecimentos

mais importantes do ano, no qual se apresentam todas as

pessoas de importância no reino, as quais o povo vem ver

87

PROCISSÃO.

Chegada

das relíquias

de Santa Auta

à igreja

de Madre

de Deus

passar. Multidões acotovelam-se para ver o cortejo que,

saindo da Sé, serpenteava ao longo das estreitas ruas da

época até chegar ao convento de São Domingos, um pouco

acima da praça do Rossio, na capital. Aí se ajoelhavam

e oravam os penitentes, retornando depois a procissão

ao ponto de partida, a Sé de Lisboa.

O rei seguia a pé, acompanhado do príncipe D. João,

atrás da riquíssima custódia de ouro que encerrava a

hóstia sagrada. Na peugada do monarca marchavam a

passo lento os mais ilustres dignitários da igreja, as cor-

porações de ofícios, as confrarias e irmandades, os re-

presentantes do poder civil e militar. A procissão era de

tal modo importante que a Câmara lhe destinava todos os

anos uma verba especial.

Luís de Camões encontrava-se no local, certamente

para observar um acontecimento que, pela sua excep-

cionalidade, a todos atraía e agradava. Estava a pé e trazia

consigo uma arma branca. A multidão agitava-se, esti-

cando o pescoço para ver melhor. De repente, mesmo ao

pé de Luís Vaz, sente-se alvoroço. Dois embuçados desen-

cadeavam arruaça com um homem que, por se encontrar

a cavalo, deveria ter certamente alguma importância e

estar em funções.

Então, num vislumbre fatal, Camões reconhece

os embuçados como seus amigos, ou pelo menos co -

88

PRISÃO

nhecidos, ao mesmo tempo que o cavaleiro desembainha

a espada e se prepara para os ferir. Sem hesitar, Luís Vaz,

o mesmo Luís das arruaças que anos atrás lhe haviam

conferido a alcunha de «Trinca-Fortes», saca do punhal e

ataca o cavaleiro, ferindo-o severamente. Os embuçados,

os amigos que protegera, fogem a sete pés. Camões fica

no local. Não se afasta. Enfrenta as consequências.

O impulsivo Camões acabara de ferir Gonçalo Bor -

ges, criado de arreios do rei, de espírito arruaceiro. Enten-

da-se que ser criado do rei estava longe do desprestígio.

Pelo contrário, era um dos inúmeros cargos de pouca

utilidade criados para empregar com dignidade e distin -

ção os filhos da nobreza que dependia cada vez mais das

benesses reais. Gonçalo Borges era, pois, figura em Lis -

boa, embora provavelmente mais estroina e certamente

muito mais inútil que o pobre poeta.

O que era pior para Luís Vaz é que tinha cometido

um crime de sangue na via pública, com o rei na cidade e,

89

VISTA DO

ROSSIO.

À esquerda,

a igreja de

S. Domingos;

à direita,

o hospital

de Todos-

-os-Santos

ainda por cima, nas proximidades. Tal acto configurava

um crime de lesa-majestade e era punido com a pena de

morte.

Imediatamente prendem Camões e é levado às

pressas para a cadeia do Tronco, que ficava muito próxi-

ma, entrando-se nela por uma estreita viela que ainda

hoje existe, embocada na Rua das Portas de Santo Antão.

Preso. Luís Vaz de Camões está preso, nas mais mi -

seráveis condições que se possam imaginar. A cadeia do

Tronco não passa de uma enxovia cercada de grades, onde

não eram encarcerados os nobres, onde qualquer sinal de

conforto, como uma vela ou a limpeza dos dejectos, se con-

segue apenas à força de corrupção dos carcereiros. Com

ele mais 18 homens foram de leva.

Devido a uma verba entregue de acordo com o

regulamento, lá consegue o poeta ter uma vela garantida,

mais pena e tinta. Durante os seus primeiros dias entre-

ga-se a um desespero profundo. Depois começa a escre -

ver, deste modo expurgando o seu sofrimento:

Tristezas! Compassar tristes gemidos!

Passo a noite e o dia imaginando;

Nesta escura cova estou cuidando

De me ver com meus dias tão perdidos!

90

O PREÇO DA LIBERDADE

Vão passando, como sombra, escondidos,

E sem fruto nenhum irem deixando,

Mais que os ver passando e rodando

Com a roda da fortuna os meus sentidos.

Nestas imaginações, triste, comigo

Estou, na alma enlevado, que não s(i)ento

Se com alguém falando estou, o que digo.

Se vem alguém estar, no pensamento

Nem sei dizer de mim neste tormento

Se estou fora de mim, se estou comigo.

Amigos acorreram à prisão, vi -

sitando-o. Não era de todo vulgar que

um fidalgo, ainda que de baixa con -

dição, se encontrasse na cadeia do

Tronco. Possivelmente algum deles

lhe terá levado uns poucos livros, en-

tre os quais, conta a lenda, se en-

contraria a História do Descobrimento

e Conquista da Índia pelos Portugueses,

de Fernão Lopes de Castanheda, que

permanece até hoje uma fonte in-

contornável do período áureo dos

Descobrimentos. Não terá sido, por

isso, infrutífera a passagem do poeta

pela prisão. O livro de Castanheda dá-lhe informação de

carácter vital para a elaboração do poema épico, para a

narrativa de Os Lusíadas.

91

HISTÓRIA DO

DESCOBRIMENTO

E CONQUISTA

DA ÍNDIA PELOS

PORTUGUESES

Após longos nove meses de negro encarceramento,

os esforços dos amigos para a sua libertação acabam por

dar resultado. Gonçalo Borges é persuadido a pronunciar

o seu perdão, uma vez que do ferimento não resultara

qualquer dano duradouro. Munidos de uma declaração de

perdão, requereram ao rei a mesma graça para com Luís

Vaz de Camões. Finalmente, em nome de D. João III, é-lhe

passada uma Carta de Perdão, implicando o pagamento

de quatro mil réis para os fundos da Piedade, quantia de-

certo impossível de ser paga pelo poeta mas que terá si-

do adiantada por amigos, talvez os condes de Linhares e

Vimioso.

No que diz respeito à parte do crime que envolvia

o delicado assunto da lesa-majestade, é imposto ao de-

safortunado Luís Vaz que parta para a Índia na primeira

armada a largar do Tejo. Por volta do dia 7 de Março, o pri-

sioneiro é libertado. Mal pode conter a sua alegria. Mas,

de novo, a angústia se atravessa no seu caminho. A pró -

xima armada da Índia partia dentro de duas semanas.

92

Camões passara nove meses na prisão do Tronco. De lá viera

certamente fragilizado, fraco de forças, subalimentado. No entanto, o seu

ardente espírito continuava febril, criativo, esperançoso.

Os dilemas agora eram de ordem prática. Neste transe da sua

vida não podia questionar que a única saída possível era o rumo do

Oriente, onde talvez pudesse restabelecer a sua reputação e, quem sabe,

arranjar meios de fortuna, glória, ou pelo menos de subsistência condigna.

Mas como partir, se nem roupas tinha?

NO CAMINHO

DA ÍNDIA

93

MAPA do Índico, de inspiração ptolomaica

Nas vésperas de partir, o poeta tem de resolver

pro blemas ínfimos, mas que para ele eram de monta.

Como adquirir o vestuário e os alimentos necessários

ao embarque? Mais uma vez os amigos lhe devem ter vali-

do. A sua posição era, porém, muito precária.

Não embarca Luís Vaz como capitão, ou, ao menos,

com uma posição de destaque. Pelo contrário, sairá de Lis-

boa como escudeiro, posto que o equiparava à marinhagem

vulgar. Em nada se distingue de um simples marinheiro

do povo, arregimentado à pressa a troco da liberdade. Tem

a obrigação de servir durante cinco anos.

O destino que espera Luís Vaz conhece-o ele bem.

Lutar nas ardilosas querelas comuns à presença por-

tuguesa no Oriente; sofrer a insalubridade dos porões e os

maus tratos das viagens; conviver com gente que não é

capaz de com ele dialogar, quanto mais de reconhecer o

seu talento; esperar uma quimérica oportunidade de for-

tuna, fruto de algum saque mais opulento.

Em Março de 1553, a armada de Fernão Álvares

Cabral sai da barra do Tejo. Nela segue o poeta, para um

destino que se viria a revelar repleto de agruras mas igual-

mente pleno de glória poética. Parte com o coração amar-

gurado e com uma nova perspectiva de vida, que já não

lhe permite alimentar sonhos de um futuro dourado.

No seu monumental poema épico, Os Lusíadas,

Camões coloca na perspectiva da armada de Vasco da

Gama os sentimentos que, como é evidente, o assolaram

naquele momento:

94

PARTIDA

Já a vista pouco a pouco se desterra

Daqueles pátrios montes que ficavam;

Ficava o caro Tejo e a fresca serra

De Sintra, e nela os olhos se alongavam.

Ficava-nos também na amada terra

O coração, que as mágoas lá deixavam;

E já depois que tudo se escondeu,

Não vimos mais, enfim, que mar e céu.

95

ARMADA DE 1553,

na qual partiu

Camões

Não deixa de ser curioso que Camões tenha lar - ga-

do o Tejo com poucos dias de diferença da armada de Vas-

co da Gama, ainda que mais de 50 anos depois. De certo

modo, a sua viagem reproduz a heróica gesta des cobridora

do Almirante, facto que, por certo, vai permitir ao poeta

A VIDA

a bordo

das naus

96

A BORDO

uma reconstituição extremamente vívida da jornada,

que ele genialmente verterá em registo poético.

Tal como a pequena armada do nauta de Sines, a

frota em que segue Camões cumpre a rota das Índias sem

grandes variações. Parece seguro que Luís Vaz seguia na

nau capitânia, a São Bento, comandada por Fernão Álvares

Cabral, capitão-mor da expedição. Com ele navegavam

mais três naus, uma vez que a quarta, a Santo António,

seria consumida pelo fogo ainda na barra de Lisboa.

Nos primeiros dias, a viagem decorre bonançosa.

Mas parece que, em pleno Atlântico, uma tempestade dis-

persa a frota, obrigando cada uma das naus a seguir um

rumo diferente. É a São Bento, a nau capitânia em que

seguia Camões, que melhor se adapta às condições ad-

versas, conseguindo prosseguir a sua rota até à Índia sem

contratempos de maior.

Podemos imaginar a vida de Luís Vaz a bordo. Tem

quase 30 anos. Ainda está em pleno fulgor da idade, mas

já temperado por inúmeros infortúnios que o tornam

me lancólico. Nos dias de hoje dir-se-ia que podia estar

deprimido. De que falaria ele com os homens a bordo, ao

longo dos penosos meses da travessia?

Decerto que não poderia entabular conversação

sobre poesia, revelar o poema épico que trazia inscrito na

alma, trocar chistes espirituosos com referências erudi-

tas. Era uma vida marcada pela dureza das condições

climáticas, pela falta de alimento, pelos parasitas e pelo

cheiro infecto da podridão dos porões. As doenças dizi -

mavam muitos homens ao longo da viagem e era precisa

grande robustez para lhes resistir. Camões era, porém, um

97

homem ainda muito forte. Em Os Lusíadas dá-nos conta,

de forma brutal, dos tormentos do escorbuto:

Apodrecia cum fétido e bruto

Cheiro, que o ar vizinho inficionava.

Não tínhamos ali médico astuto,

Sururgião sutil menos se achava;

Mas qualquer, neste ofício pouco instruto,

Pola carne já podre assi cortava

Como se fora morta; e bem convinha,

Pois que morto ficava quem a tinha.

Enfim, que nesta incógnita espessura

Deixámos para sempre os companheiros

Que, em tal caminho e em tanta desventura,

Foram sempre connosco aventureiros.

Todas as impressões que a viagem proporcionou

a Luís de Camões serão inscritas no seu grande poema

épico. Como se sabe, a acção do poema tem o seu núcleo

central na viagem de Vasco da Gama no descobrimento

do caminho marítimo para a Índia, cume da gesta dos

Portu gueses, da sua própria natureza e glória, que faz de

Os Lusíadas um poema que exalta a epopeia lusitana.

Contudo, ao transpor a acção para o tempo do Ga -

ma, Camões apoia-se tanto no saber erudito que adqui -

98

O VELHO DO RESTELO

riu ao longo da sua vida como na experiência que agora

atra vessa ao percorrer a rota da Índia.

Parece, assim, evidente que algumas das reflexões

inscritas no poema teriam mais a ver com o tempo de Ca -

mões que com a época do final de Quatrocentos, quando

o almirante de Sines alcança as costas da Índia. É o caso

do episódio conhecido como «o velho do Restelo», que vai

marcar a cultura nacional com um simbolismo incon -

tornável. É patente, à luz da historiografia contemporânea,

99

A despedida

dos navegantes

é assombrada

pela voz

de descrédito

do VELHO

DO RESTELO

que as palavras da personagem camoniana se aplicariam

mais ao declínio do período de D. João III que à pujança

vigorosa do melhor período do reinado de seu pai:

Mas um velho de aspeito venerando,

Que ficava nas praias, entre a gente,

Postos em nós os olhos, meneando

Três vezes a cabeça, descontente,

A voz pesada um pouco alevantando,

Que nós no mar ouvimos claramente

Cum saber só de experiências feito,

Tais palavras tirou do experto peito:

— Ó glória de mandar! ó vã cobiça

Desta vaidade a quem chamamos fama!

Ó fraudulento gosto que se atiça

Cûa aura popular que honra se chama!

Que castigo tamanho, e que justiça

Fazes no peito vão que muito te ama!

Que mortes, que perigos, que tormentos,

Que crueldades neles exprimentas!

Na personagem inesquecível do velho do Restelo

não se deverá talvez ver a presença de uma voz conser-

vadora, incrédula perante a importância e as vantagens

dos Descobrimentos. Talvez seja apenas o ressentimento

do poeta num tempo em que a exaltação das grandes

proezas marítimas dera já lugar a um mundo de corrupção,

pe quenos interesses e grandes esbanjamentos. Mundo esse

no qual Camões se sentia profundamente injustiçado.

100

A viagem seguiu de porto em porto, percorrendo

a rota da Índias. Tudo maravilhava Luís de Camões. Nave -

gam pela costa ocidental afri cana abaixo, depois rumam

a Cabo Verde, onde se abastecem de mantimentos e água

na ilha de Santiago. Seguem até ao golfo da Guiné, ini-

ciando, de seguida, a volta larga, a rota descoberta pelos

Portugueses que, virando o bordo a sudoeste, os atirava

para o largo do Atlântico até atingirem os ventos favorá -

veis que os levariam à ponta sul do continente africano.

Só deste modo podiam evitar os ventos e as correntes con-

101

O ADAMASTOR

COSTA

DE ÁFRICA

até à costa

da Guiné

trárias, mas os perigos dos mares austrais eram terríveis.

O poeta coloca na voz de Vasco da Gama a narrativa, em

que este tenta descrever ao sultão de Melinde os perigos

do mar:

ADAMASTOR

enfrentado

pelo Gama

102

Contar-te longamente as perigosas

Cousas do mar, que os homens não entendem,

Súbitas trovoadas temerosas,

Relampados que o ar em fogo acendem,

Negros chuveiros, noites tenebrosas,

Bramidos de trovões, que o mundo fendem,

Não menos é trabalho que grande erro,

Ainda que tivesse a voz de ferro.

Numa estrofe de oito versos Camões transmite, com

uma sensibilidade que apenas lhe poderia advir de uma

experiência pessoal, os perigos e os terrores que os ho -

mens do mar passavam nos mares do Sul até chegarem a

bom porto. Depois vinha o Cabo. Que fora das Tormentas

e era, agora, da Boa Esperança.

Numa das mais conhecidas cenas de Os Lusíadas, o

poeta decide, de modo a dramatizar as horríveis dificul-

dades vividas pelos Portugueses na transposição do cabo,

antropomorfizar a formação geológica. É assim que cria a

personagem do Adamastor, navegante castigado pelos

deuses e agora dedicado a aterrorizar os nautas:

Eu sou aquele oculto e grande cabo

A quem chamais vós outros Tormentório,

Que nunca a Ptolomeu, Pompónio, Estrabo,

Plínio e quantos passaram fui notório.

Aqui toda a africana costa acabo

Neste meu nunca visto promontório,

Que pera o Pólo Antártico se estende,

A quem vossa ousadia tanto ofende.

103

Para Camões, a passagem do cabo das Tormentas é

o sinal de que, no fantasiado conflito entre os deuses, a

balança teria acabado por pender a favor dos Portugue-

ses, assim se cumprindo o desígnio da predestinação da

gente lusitana, amada e protegida pelas divindades po de -

rosas. A justaposição da plêiade de referências às divin-

dades da Antiguidade e às referências do cristianismo é

uma constante na obra, revelando o homem do Renasci-

mento que Camões, acima de tudo, nunca deixará de ser.

A viagem de Camões

a caminho da Índia é, de cer-

to modo, compreensível na

des crição que o poeta nos dá

no núcleo central de Os

Lusíadas. Deve ter-se sentido

impotente perante as tem-

pestades, exasperado nas cal-

marias, so fre dor nos longos

dias de au têntica luta pela

sobrevivência no porão e no

convés. As tempestades ha -

viam marcado a jornada, e

delas Luís deixa testemunho:

TEMPESTADE no mar

104

O FIM DA JORNADA

O céu fere com gritos nisto a gente,

Com súbito tremor e desacordo,

Que no romper da vela, a nau pendente

Toma grão soma de água pelo bordo.

«Alija – disse o mestre rijamente, –

Alija tudo ao mar, não falte acordo!

Vão outros dar à bomba, não cessando!

À bomba, que nos imos alagando!»

Correm logo os soldados animosos

A dar à bomba, e, tanto que chegaram,

Os balanços, que os mares temerosos

Deram à nau, num bordo os derribaram.

Três marinheiros, duros e forçosos,

A menear o leme não bastaram;

Talhas lhe punham de ua e doutra parte,

Sem aproveitar dos homens força e arte.

Agora sobre as ondas os subiam

As ondas de Neptuno furibundo,

Agora a ver parece que deciam

às íntimas entranhas do profundo.

No final de Setembro, a nau São Bento chega a Goa,

levando consigo Camões. O poeta devia estar exausto, uma

exaustão física e anímica que era comum aos marinheiros

que passavam pela provação de uma viagem tão longa e

atribulada. Naquele ano de 1553 as tempestades ao largo

do cabo da Boa Esperança haviam sido particularmente

severas, derrubando o ânimo dos homens, que apenas

desejavam já chegar a terra sem cuidarem de qualquer

105

outra benesse do destino. Mas a Camões não devia certa-

mente escapar a fraca sorte que um escudeiro podia es-

perar nas terras da Ásia.

Haviam transcorrido «seis meses de má vida por

esse mar». À luz da dimensão temporal contemporânea,

dificilmente podemos imaginar a violência a que se su-

jeitavam os embarcados nas naus por um período tão con-

siderável. Contudo, conseguimos seguramente sentir o

alívio que experimentavam quando chegavam ao porto

de destino, mesmo que aquilo que os esperava não fosse

mais que uma nova forma de miséria e pobreza.

A alegria com que as armadas eram recebidas em

Goa não deixava de ser enganadora. Os homens não pos-

suíam, na maior parte dos casos, uma moeda sequer para

comprar comida. Não tinham onde se albergar. Muitos

acabavam por pernoitar nos navios que, em virtude da

longa travessia, abominavam. Os que têm algo de seu ven-

dem-no imediatamente. Alguns morrerão de fome.

Ao chegar à cidade que constituía a principal capi -

tania e sede do poder administrativo português na Índia,

Camões não conhecerá as agruras dos mais humildes sol-

dados. Era um homem do mundo, tinha alguns amigos e

parentes. Vários deles estavam em Goa. Primos da família

Camões vão recebê-lo de braços abertos, proporcionando-

-lhe, desde logo, condições de conforto e, sobretudo, de

106

CAMÕES INSTALA-SE EM GOA

repouso, absolutamente necessário para recuperar da difí-

cil viagem. Entre eles contava-se João de Camões, filho de

Pedro Alves de Camões, que possuía o morgado de Camões

em Alenquer. Uma alimentação cuidada e o descanso

merecido vão operar maravilhas no estado de espírito do

poeta, que se vangloria de viver «mais venerado que os

touros de Merceana, e mais quieto que a cela de um frade

pregador». Era um início auspicioso.

Ao longo de dois meses, Luís vai passar um belo

tempo de vida despreocupada, ociosa, absorvendo o que

o rodeia, bebendo avidamente os cheiros, os sabores e as

cores que o envolviam, como seria característico do seu

espírito irrequieto e curioso. Terá visitado Goa, observan-

do com a maior atenção a cidade que para ele constituía

um mundo novo.

Goa era, à época, uma urbe plenamente desen-

volvida, com inúmeras edificações militares e civis por-

tuguesas, onde se cruzava uma turba cosmopolita oriun-

da de todas as partes do mundo oriental e da Arábia. Ali

convergiam mercadores da Arábia, da Pérsia, de Bengala,

da Arménia, do reino de Pegu, do Ceilão e de Malaca, da

ilha de Java e da China. Num pequeno território governa-

107

VISTA DE GOA

do com mão de ferro pelos Portugueses, todos viam opor-

tunidades de negócio num ambiente de grande liberali-

dade, à maneira da costa do Malabar que os Portugueses

depressa adoptaram, vendo as vantagens que o comércio

com gentes tão diferentes lhes trazia.

A liberdade religiosa era absolutamente respeitada

e todas as crenças se toleravam, dos hindus aos cristãos,

dos muçulmanos aos judeus. Afinal, essa era a tradição

milenar dos povos do Índico. Cinquenta anos após a chega-

da dos Portugueses à Índia, estes tinham percebido que,

desde que detivessem o poder e a força, nenhum mal viria

ao Mundo se fossem brandos e cordatos com os povos

exóticos com os quais conviviam. É neste lugar nevrál -

gi co para a presença dos Portugueses no Índico que Ca -

mões toma pela primeira vez contacto com a realidade do

Oriente. Teria, por obrigação, de servir durante cinco anos.

Na verdade, aqui se deteria muito mais tempo.

108

MERCADO

em Goa

CANTO I

Proposição (estrofes 1 a 3). Revela a in-

tenção do poema: ce lebrar os feitos lusi-

tanos, navegações e conquistas. Invocação

(estrofes 4 e 5) às ninfas do Tejo (Tágides)

para que dêem inspiração. Dedicatória (es-

trofes 6 a 18) ao rei D. Sebastião. Narração

(a partir da estrofe 19). Concílio dos deuses

sobre a ousada decisão dos Portugueses:

devem favorecê-los ou impedi-los? Júpiter

é favorável; Baco, ferrenhamente contrário;

também são a favor Marte e Vénus, esta

vendo nos Portugueses a raça latina des -

cendente de seu filho Eneias. Baco, derro-

tado na assembleia divina, põe em acção a

sua hostilidade contra os Lusos, procurando impedir que che -

guem à sua Índia, e para isto se valendo da gente africana,

que lhes arma ciladas.

CANTO II

Chegada a Mombaça, onde continuam as hostilidades de Baco

na traição dos Mouros: os navegadores seriam sacrificados se

acedessem ao pérfido convite do rei para desembarcarem. Vénus,

porém, de novo os salva, intercedendo junto a Júpiter. Retrato

de Vénus (36) «Os crespos fios d'ouro se esparziam/pelo colo».

Júpiter profetiza os gloriosos feitos lusíadas no Oriente (44

e seg.) e envia Mercúrio a Melinde, a fim de predispor os na -

Resumo sinóptico de Os Lusíadas

109

CONCÍLIO

DOS DEUSES

turais desta cidade a bem acolherem os Por-

tugueses, o que se cumpre. O rei de Melinde

pede ao Gama que lhe narre a história de

Portugal.

CANTO III

Invocação à musa da eloquência e da epo -

peia, Calíope, e logo a narração do Gama

«Entre a Zona que o Cancro senho reia».

Geografia e história de Portugal. Destaque

para a Bata lha de Ourique, a guerra con-

tra os Mouros, a Batalha do Salado e, so -

bre tudo, o episódio de Inês de Castro (118-

-135) «Que depois de ser morta foi Rainha».

CANTO IV

Prossegue a narração do Gama, com relevo para Nuno Álvares

Pereira e as batalhas contra os Castelhanos, sobretudo a de

Aljubarrota (28) «Deu sinal a trombeta Castelhana,/Horren-

do, fero, ingente e temeroso», as conquistas na África, a Bata -

lha de Toro, o reinado de D. Manuel e seu sonho do domínio das

Índias, a partida para o Oriente e as famosas imprecações do

velho do Restelo (94-104) «Ó glória de mandar! Ó vã cobiça»,

que em clímax inspirado encerram o canto.

CANTO V

Partida da expedição do Gama. A tromba marinha (19-23). Na

ilha de Santa Helena; aventura de Fernão Veloso. O gigante

Adamastor (38-60). Conclusão da narração do Gama.

110

MORTE

DE INÊS

DE CASTRO

CANTO VI

Festas aos Lusos em Melinde e partida da frota para Calecute.

Novas insídias de Baco, junto a Neptuno, no fundo dos mares.

Descrição do reino de Neptuno (8-14). Fernão Veloso narra o

episódio dos Doze de Inglaterra (42-69) para distrair a mo-

notonia a bordo. Tempestade provocada por Baco (70 e seg.),

com nova intervenção de Vénus (85 e seg.), que amaina o furor

dos ventos. Chegada a Calecute (92), acção de graças do Gama

(93-94) e elogio da verdadeira glória, a dos que enfrentam «tra-

balhos graves e temores», «tempestades e ondas cruas».

CANTO VII

Chegada à Índia. Elogio de Portugal pelo

poeta. Descrição da Índia. Encontro com o

mouro Monçaide, que descreve a Índia (31-

-41). Portugueses recebidos pelo regente

dos reinos, o Ca tual, o Samorim. Troca de

gentilezas e informações. O poeta nova-

mente invoca as musas (78 e seg.) para,

ins pirado, prosseguir no canto.

CANTO VIII

Paulo da Gama, irmão de Vasco, narra ao

Catual a história dos heróis portugueses

(Luso, Ulisses, Viriato, Sertório, D. Henrique,

Afonso Henriques, Egas Moniz, etc.). Baco insiste na persegui -

ção, instigando em sonhos os chefes dos nativos. Hostilida -

des, retenção do Gama em terra, que só se liberta a poder de

dinheiro (93-96), «o poder corruptor do vil metal» (96-99).

111

VASCO DA

GAMA E O

SAMORIM

CANTO IX

Retenção de Álvaro e Diogo, portadores

da «fazenda», mero pretexto para se de-

terem os descobridores europeus. Por fim,

libertados, recolhem às naus que preparam

a volta à pátria. Vénus resolve premiar

os heróis (18 e seg.) com prazeres divinos:

a Ilha dos Amores (51-87) e seu simbo lis -

mo (88-95).

CANTO X

Banquete de Tétis aos Portugueses, na

ilha dos Amores. Canta uma ninfa pro fe -

cias de Proteu. Nova invocação do poeta

a Calíope (8-9), que permita condigna

conclusão do poema. Relembrança das profecias da Ninfa;

gló rias futuras de Portugal no Oriente (10-73). Tétis mostra a

Gama a máquina do Mundo, como a viu Ptolomeu (76-142),

céus e terras, com destaque para a ilha de São Tomé (109-119).

Partida da ilha dos Amores e regresso a Portugal. Desalento do

poeta (145): «No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho/Des -

temperada, e a voz enrouquecida» por «cantar a gente surda

e endurecida». Fala final a D. Sebastião e conclusão do poema.

(elaborado por José Pedro Luft, historiador brasileiro)

112

VÉNUS E

GAMA NA

ILHA DOS

AMORES

Pouco depois de chegar a Goa, Luís de Camões vê-se envolvido em

missões militares que definiam claramente o seu estatuto. Escudeiro, teria

de lutar. É o que fará, não se sabe se com entusiasmo, se já com mal con-

tido enfado ante as desgraças das pugnas militares que muito haverão

de magoar a sua sensibilidade de poeta e de humanista, a ponto de

descrever os horrores da guerra nos seus poemas.

CEILÃO - lutas em terras longínquas

113

SOLDADO

AO SERVIÇO DA COROA

Na época em que Camões chega a Goa, D. Afonso

de Noronha, vice-rei da Índia, prepara uma expedição mi -

litar naval contra o rei de Chambé, mais conhecido como

o «rei da pimenta». Este senhor local não tinha, de facto,

grande importância, quer pela dimensão do seu território,

quer pelo seu poder económico ou militar. Representava,

contudo, uma ameaça à livre circulação das mercadorias

portuguesas, atacando os navios portugueses isolados sem-

pre que tinha oportunidade e obrigando à escolta das naus

carregadas de especiarias.

D. Afonso de Noronha só precisava de um motivo,

e ele surgiu no emaranhado de alianças que marcavam as

relações diplomáticas dos Portugueses com os diversos

reinos da costa do Malabar. O intrépido rei de Chambé

ata cou o reino de Pocá, que prestava vassalagem à coroa

de el-rei D. João III. Deste modo estavam reunidas as

condições para uma sortida militar.

O vice-rei organizou então uma operação de grande

envergadura. Reuniu uma armada de mais de uma cen-

tena de navios, de diversas tipologias – desde naus a cara -

ve las até galeotas e galeões. Ao comando de tão formidá -

vel armada seguiam os mais destacados capitães de Goa.

Luís Vaz embarcou na frota, pronto para o combate, mas

sem qualquer cargo que o distinguisse.

A frota sai de Goa em Novembro e dirige-se a sul,

aportando a Cananor, onde Camões, metido no meio dos

mais altos dignitários da comitiva, presta homenagem à

sepultura de D. Henrique de Meneses, antigo vice-rei da

114

CONTRA O REI DE CHAMBÉ

Índia. De novo regressam ao mar, rumando até Cochim,

onde são decididos os planos da batalha. E estes são ter-

ríveis, como se veio a verificar. Os Portugueses vão destruir

pelo fogo e pela metralha as casas, as árvores, tudo o que

vive, fazendo, de passagem, alguns prisioneiros e perden-

do uns poucos de homens. A vitória é total. Regressados a

Cochim, recebem mensageiros do rei de Chambé, que

anuncia render-se incondicionalmente. A expedição du-

rara entre dois a três meses, pelo que a armada terá re-

gressado a Goa em Fevereiro de 1554.

Camões vai citar este episódio, no qual participou,

sem que haja registo de qualquer acidente ou feito seu:

Foi logo necessário termos guerra:

Uma ilha, que o Rei de Porcá tem,

115

COCHIM

E que o Rei da Pimenta lhe tomara,

Fomos tomar-lha e sucedeu-nos bem.

Com uma grossa Armada, que juntara

O Viso-Rei, de Goa nos partimos

Com toda a gente de armas que se achara.

E com pouco trabalho destruímos

A gente no curvo arco exercitada:

Com morte, com incêndios os punimos. [...]

A partir de Goa, os Portugueses tinham de vigiar as

costas do Malabar, tanto a sul como a norte. É nessa mis-

são que se vai empenhar, mal Camões regressa da bem

sucedida missão contra o «rei da pimenta», Fernando de

Meneses, filho do vice-rei. É ainda um jovem, mas tem já

uma grande autoridade e convida o poeta a participar na

expedição. Luís Vaz não hesita. A armada do Norte sai de

Goa ainda no mês de Fevereiro, dirigindo-se ao golfo Pér-

sico. Trata-se de uma poderosa força de mais de 1000

homens e para cima de 30 embarcações.

Camões terá sido especialmente considerado pelo

comandante da frota, visto que lhe dedica um soneto enal-

tecendo as suas qualidades. Deve sentir-se fascinado por

estas novas paragens, para ele em absoluto desconheci-

das.

116

COMBATES VÃOS

Conhecerá as águas do golfo Pérsico, combatendo

com gentios, derrotando corsários e apresando valioso

saque, do qual Luís não verá uma moeda. Na refrega com

as galés de Ali-Cheloby, importante corsário daquelas pa -

ragens, Camões assiste impotente ao assassinato dos ini -

migos sobreviventes, que são atirados ao mar sem mise -

ricórdia, episódio que o impressiona profundamente. Em

Outubro de 1554 regressam a Goa.

À chegada, mudara o vice-rei. D. Afonso de Noro -

nha fora destituído por graves acusações de corrupção,

situação vulgar naquele tem -

po e naquelas paragens. Em seu

lugar, ocupa o cargo D. Pedro de

Mascarenhas que, encontran-

do-se já em idade avançada,

aceita a contragosto a missão.

Apesar disso, desde logo o fidal -

go decide cortar a direito, im-

pondo princípios de organiza-

ção, racionalidade e austeridade

em tudo estranhos à corrupção

e ao aproveitamento dos bens

públicos que grassava na capi-

tal da costa indiana. Recusan-

do o tráfico de influências, a

pressão dos jesuítas, já então

uma poderosa força presente

no terreno, D. Pedro de Mascarenhas vai imprimir uma

forte, ainda que efémera, marca de probidade na admi -

nistração de Goa.

117

D. AFONSO

DE NORONHA

Ao enfrentar a Companhia de Jesus, o vice-rei es-

tava a meter-se em grandes trabalhos. Os inacianos domi-

navam postos importantes no controlo da administração

pública, com incidência profunda nas actividades comer-

ciais, de que retiravam generosas rendas, ao mesmo tem-

po que exerciam um poder eclesiástico cada vez maior.

Enquanto teve saúde, o velho fidalgo não cedeu.

D. Pedro de Mascarenhas vai, entre outras medidas,

decidir-se pela perseguição do corsário Safar, outro aven-

tureiro que afligia o tráfego naval português. Sob o coman -

do de Manuel de Vasconcelos, Camões embarca em mais

HOMENS DE

ARMAS a bordo

de uma nau

118

ENFADO SUBLIMADO NA ESCRITA

esta expedição, que se faz ao largo de Goa em Fevereiro de

1555, e dirige-se ao largo do Monte Fe liz onde permanece

durante seis longos meses. Não se sabe se chegou a ocor-

rer refrega, mas o certo é que a longa estada naquelas pa -

ragens, provocando mortes atrás de mortes entre os ho -

mens das naus lusitanas, vai encher Camões de enfado

que, como lhe era hábito, seria vertido em poema:

Aqui me achei gastando uns tristes dias,

Tristes, forçados, maus e solitários,

De trabalho, dor e de ira cheios:

Não tendo tão somente por contrários

A vida, o sol ardente, as águas frias,

Os ares grossos, férvidos e feios,

Mas os meus pensamentos, que são meios

Para enganar a própria natureza,

Também vi contra mi:

Trazendo-me à memória

Alguma já passada e breve glória

Que eu já no mundo vi, quando vivi;

Por me dobrar dos males a aspreza,

Por mostrar-me que havia

No mundo muitas horas de alegria [...].

Depois de visitarem Mombaça, os navios chegam a

Mascate, para proteger as naus que transitavam entre Or-

muz e Goa. Aí chega de novo Luís de Camões, em Setem-

bro de 1555. Estivera mais seis meses no mar, mas a sua

longa tarefa de cinco anos parecia nunca mais chegar ao

fim. Vinha doente e desanimado. Valia-lhe que, nestas

119

viagens tão ociosas como deprimentes, entrecortadas por

combates episódicos que ainda mais o deviam incomodar,

ia escrevendo o seu poema épico, Os Lusíadas.

Ao chegar a Goa, Camões é surpreendido por uma

nova mudança na administração do território. D. Pedro de

Mascarenhas não resistira às vicissitudes da idade e à exi -

gência do cargo. Morre e, no seu lugar, surge Francisco Bar-

reto, que manterá com o poeta uma relação que até hoje

é discutida pelos historiadores. Para uns, terá sido ele o

autor da injusta decisão de «desterrar» Camões para Mala-

ca. Para outros não se pode, de modo algum, falar em

desterro, antes numa oportunidade de fazer uma «viagem

de mercê» que possibilitasse ao barbudo vate amealhar

uma soma significativa nas paragens do Extremo Oriente

onde, nesta altura, era mais fácil fazer fortuna.

Certo é que Francisco Barreto foi muito estimado

pela sua acção enquanto governador e amplamente ad-

mirado pelas suas qualidades de homem. Pouco depois da

sua chegada, nos festejos de São João, um foguete incen-

deia o galeão São Mateus, alastrando de imediato a seis

galeões, quatro caravelas e duas galés, o que representa-

va uma catástrofe. À cabeça do combate ao incêndio dis-

tinguiu-se a figura de Francisco Barreto, que chegou mes-

120

DE NOVO EM GOA, E FELIZ

mo a oferecer as suas jóias aos que mais se haviam desta-

cado no ataque às chamas. A admiração que tal gesto

provocou foi geral. Dele dirá Diogo do Couto: «liberal, ca-

marada oficioso, e sempre propenso a perdoar as ofensas

recebidas».

Luís de Camões

parece de novo feliz,

talvez pela influência do

novo governador. Nas

festas organizadas em

honra de Francisco Bar-

reto, o poeta vai apre-

sentar o auto Comédia de

Filodemo, a sua segunda

obra dra mática.

Finalmente agora

Ca mões consegue estar

sos segado. Tem tempo

para ir avançando na

sua obra maior, que de-

veria então estar já mui-

to adiantada na escrita.

Teria uma vida sem

qual quer espécie de lu -

xos mas, ainda assim,

com o mínimo de confortos. Morada, comida e bebida. Al-

guns amigos. Conversas e galhofas. E a presença de uma

jovem que lhe alegrava as horas, uma escrava mestiça,

provavelmente originária das costas de Moçambique,

que surge referida com o nome de Bárbara.

121

Rosto da

COMÉDIA

DE FILODEMO

Cronista excepcional, testemunha privilegiada da presença

portuguesa no Oriente, Diogo do Couto nasce 1542, em Lisboa,

em pleno vigor do Renascimento cultural e literário. Tendo

educação jesuítica, estuda Latim e Retórica no colégio de San-

to Antão. Será moço de câmara na corte antes de partir para a

Índia em 1559, seguindo a carreira das armas. Como soldado

participará, ao longo de uma década, em pugnas diversas que

se destinam a consolidar a presença portuguesa no subconti-

nente indiano.

Antes de regressar ao Oriente, retorna a Portugal por dois

anos. No decurso da viagem que o conduz a Lisboa vai desco-

brir Camões em Moçam-

bique, com dívidas e sem

dinheiro para voltar. Dio-

go do Couto, entre outros,

disponibiliza-se a ajudar

o poeta, que deste modo

poderá apresentar na ca -

pi tal a sua obra maior.

Não é de estranhar

este gesto, visto que Dio-

go do Couto era, também

ele, vocacionado para as

letras, além de ser um ho -

mem de acção. Não fora

apenas Camões a viver as

duas condições.

Diogo do Couto

122

DIOGO

DO COUTO

De novo em Goa, é nomeado guarda-mor do arquivo da

Torre do Tombo da Índia, sendo-lhe cometida a missão de con-

tinuar as Décadas de João de Barros.

Estes relatos serão a sua princi-

pal obra, conjuntamente com o fa -

moso Diálogo do Soldado Prático,

acerada crítica à presença dos Por-

tugueses na Ásia. Diogo do Couto

sabia do que falava, pois assistira

durante largos anos à corrupção,

mau funcionamento e ganância que

grassava entre muitos dos ociden-

tais que mandavam em Goa. Deste

modo, e não perdoando a ninguém,

fosse qual fosse a sua posição, vai

denunciar as prepotências que os

mais poderosos exercem sobre os

gentios e mesmo sobre os portu -

gueses de baixa condição, os solda-

dos práticos (experientes), paus para toda a obra na inexo rável

marcha da máquina colonial. Esta denúncia dos desvios e das

traições, das deslealdades e dos actos desonrosos é-nos trans-

mitida em diálogos de extrema acuidade, travados entre um

funcionário da Coroa, um fidalgo e um velho militar.

Numa linguagem muito directa, quase crua, de grande sim-

plicidade, Diogo do Couto traça um fresco de ampla enver-

gadura, não hesitando em descer ao pormenor de carácter chis-

toso, à pequena história ilustrativa, ao episódio grotesco.

Morre em Goa em 1616.

123

TRATADO

DE TODAS

AS COISAS

SUCEDIDAS

AO

VALOROSO

CAPITÃO

VASCO

DA GAMA

A grande miscigenação operada ao longo dos Des -

cobrimentos pelos Portugueses conhecia em Goa uma ale-

gre permissividade. Mulheres de todas as cores e credos

confluíam na localidade

com usos, costumes e li ber -

dades muito diferentes das

europeias. Além do mais,

preferiam os portugueses,

a quem se entregavam de

bom grado e com orgulho

de se relacionarem com

aqueles homens brancos.

Não se tratava, em qual-

quer caso, de alguma for -

ma de prostituição, mas

sim ples mente um estabe -

le cimento de relações que,

pelo seu carácter social-

mente estranho aos valores

que os portugueses conhe -

ciam, muito os confundiam

e agradavam.

Como esperar que o

ainda jovem Luís Vaz, que

sempre fora atraído pelos

encantos femininos, pudes-

se deixar de se enredar nos

doces braços de uma jovem

124

UMA ESCRAVA QUE O CATIVA

MULHER

MAMELUCA

da costa

de África

que, por certo, lhe prodiga lizaria carinhos de que há muito

se desabituara? Não admira, pois, que Bárbara surja can-

tada num dos seus poemas:

Aquela cativa,

que me tem cativo

porque nela vivo,

já não quer que viva.

Eu nunca vi rosa

em suaves molhos,

que para meus olhos

fosse mais fermosa.

Nem no campo flores,

nem no céu estrelas

me parecem belas

como os meus amores.

Rosto singular,

olhos sossegados,

pretos e cansados,

mas não de matar.

Üa graça viva,

que neles lhe mora,

para ser senhora

de quem é cativa...

Pretos os cabelos,

onde o povo vão

perde opinião

que os louros são belos.

125

Pretidão de Amor,

tão doce a figura,

que a neve lhe jura

que trocara a cor.

Leda mansidão

que o siso acompanha;

bem parece estranha,

mas bárbora não.

Presença serena

que a tormenta amansa;

nela, enfim, descansa

toda a minha pena.

Esta é a cativa

que me tem cativo.

E pois nela vivo,

é força que viva.

Estava o poeta nestes enlevos, sereno e entregue a

uma vida que por uma vez era tranquila, quando tem de

partir na armada do Sul, rumo a Oriente. Era sua obriga -

ção embarcar, como lhe fora ordenado. Afinal, não ha viam

ainda expirado os cinco anos a que se encontrava obri -

gado. De Goa, Camões ruma para leste. Levará muito tem-

po a voltar.

126

Luís Vaz de Camões parte para o Extremo Oriente em Abril de

1556. Talvez procure, desta vez, a fortuna que sempre lhe fugira.

Não deve ter contudo muitas ilusões. A única aspiração que na

verdade deve alimentar é o termo do seu longo poema épico, a obra a que

consagrou o talento. Em breve quase lhe custaria a vida.

À BEIRA DO FIM,

SURGE A OBRA

CAMÕES.

Gravura de

A. Paulus,

1624

127

Camões embarca na armada de D. João Pereira,

capitão de Malaca. Com a frota seguiam alguns navios de

comércio, entre eles o veleiro do mercador Francisco Mar-

tins, que tinha especial licença para fazer negócios no

Extremo Oriente, o «trato da China». É possível, mas não

certo, que o poeta tenha seguido no navio comercial.

De Goa passam em escala por Cochim, velejam ao

largo do Ceilão, até aportarem em Malaca, que era o pon-

to nevrálgico das rotas do Oriente distante. A fortaleza é

palco de ardente actividade comercial, desenfreada ga -

nância e de fortunas que se fazem com rapidez e sem pu-

dor. Aqui quem manda são os capitães-mercadores e os

co merciantes de ocasião, aqueles capazes de fazer o que,

com propriedade, a língua portuguesa viria a designar

como «negócios da China».

OS NEGÓCIOS DA CHINA:

«baixela ricamente dourada,

seda solta e tecida, ouro, almique,

aljofre, cobre e porcelana»

128

A CAMINHO DE TERRAS EXÓTICAS

O navio de Francisco Martins terá estado igualmente

em Ternate, ilha de especiarias e de comércio franco, que

ostentava um vulcão, descrito por Camões:

Com força desusada

Aquenta o fogo eterno

Uma Ilha, nas partes do Oriente,

De estranhos habitada,

Aonde o duro Inverno

Os campos reverdece alegremente.

A Lusitana Gente

Por armas sanguinosas

Tem dela o senhorio.

Cercada está de um rio

De marítimas águas saudosas:

Das ervas que aqui nascem,

Os gados juntamente e os olhos pascem.

Não podemos deixar de notar o olhar do homem

que nunca deixará de ser curioso e de se espantar com as

novas paragens do Mundo e, por outro lado, o mal dis-

farçado desencanto com que fala das «armas sanguinosas»

da Lusitana Gente.

Em Ternate permanece até Fevereiro de 1557 Luís

Vaz. A ilha é capitaneada por um homem brutal e cobiçoso,

129

NAS ILHAS DAS ESPECIARIAS

Duarte de Eça, que se porta com tal ferocidade que chega

a prender o rei local e a sua família para lhes ficar com a

fortuna. Essa ganância vai gerar uma revolta contra os

portugueses, na qual Camões se envolve, sendo ferido.

Aqui minha ventura

Quis que uma grande parte

Da vida, que eu não tinha, se passasse;

Para que a sepultura

Nas mãos do fero Marte

De sangue e de lembranças matizasse

Na sua viagem pelas ilhas das especiarias, Camões

estará igualmente na ilha de Banda, e também em Am-

boina. Especula-se com a ideia de que o poeta, nestas suas

andanças pelas rotas comerciais do Extremo Oriente, te -

nha finalmente enriquecido. Não se sabe se é verdade, em-

bora pareça certo que ganhou algum dinheiro, mais do

que vira provavelmente em toda a sua vida. Talvez tivesse

parte do lucro dos negócios do capitão do navio, o que lhe

teria permitido juntar uma soma considerável, ainda que

ínfima se comparada com os lucros de Francisco Martins.

Estes «negócios da China» são bem descritos por

Garcia da Orta: «E sabei que as mercadorias que dela vêm,

são: leitos de prata e baixela ricamente dourada, seda sol-

ta e tecida, ouro, almique, aljofre, cobre e porcelana, que

vale às vezes tanto, que é mais que prata duas vezes.»

Se ganhou muito dinheiro, mais depressa o gastou,

com a falta de habilidade que revelaria sempre para lidar

com as coisas materiais. Pêro Moniz afirma, mesmo: «Nem

130

a enchente de bens que lá granjeou o pôde livrar que em

terra não gastasse o seu liberalmente.» Com anos de pri-

vações atrás de si, e os bolsos de repente cheios, não re-

siste Luís Vaz à tentação de, também ele, gastar com far-

tura, ostentar com volúpia. Quem o condenaria?

Sem que haja registos que possam explicar os mo-

tivos, Camões dirige-se a Macau. O território não era ain-

da possessão portuguesa, mas antes uma base dos piratas

131

CHEGA A MACAU

MACAU

dos mares da China. É possível que no acordo entre o vice-

-rei da Índia e Francisco Martins estivesse a imposição de

eliminar a pirataria do território, que causava muito dano

às práticas comerciais. De facto, a partir de Macau, os

homens de Cham-Si-Lau (assim se chamava o cabecilha

dos piratas) mantinham bloqueados os portos da China.

132

CAMÕES

NA GRUTA

DE MACAU

É Fernão Mendes Pinto quem relata ter a frota do

mercador perseguido os piratas, que tiveram de abandonar

o território apressadamente, tendo o seu chefe cometido

suicídio. Como recompensa, o imperador da China ofere -

ce Macau de presente aos Portugueses. Ora isto ocorre em

1557, ano da chegada de Camões ao território, que deve

ter par ticipado na expedição puni tiva que culmina com o

recebimento de Macau para a co roa de el-rei.

Em Macau Luís Vaz per ma nece até Outu bro de 1559,

gastando, segun do testemunhas, somas considerá veis de

dinheiro e suscitando algumas invejas e alcovitices. Afir-

ma-se mesmo que se tornou boémio, desregrado, incon-

veniente. Não se saberá se assim foi.

Uma das figuras lendárias presentes na vida de

Camões é Dinamene, quiçá chinesa, quiçá escrava, com

quem terá mantido um romance e a quem dedicou alguns

sonetos. Dinamene é exaltada mais pelo seu carácter e

quali dades morais que pela beleza. Rodrigues Lapa, na

obra Líricas, afirma que, para Camões, a asiática «foi das

coisas mais suaves da sua vida, uma nota de amorosa

mansi dão na sua existência turbulenta».

Certo é que em Macau descobre um lugar para se

isolar e escrever. Talvez farto do convívio dos homens,

talvez cansado dos mexericos, provavelmente tendo gas-

to todo o seu dinheiro, Camões encontra uma gruta que

se tornará lendária, a gruta de Camões em Macau, que o

poeta descreve num soneto:

Onde acharei lugar tão apartado

E tão isento em tudo de ventura,

133

Que, não digo eu de humana criatura,

Mas nem de feras seja frequentado?

Algum bosque medonho e carregado,

Ou selva solitária, triste, e escura

Sem fonte clara ou plácida verdura,

Enfim, lugar conforme o meu cuidado?

Porque ali, nas entranhas dos penedos,

Em vida morto, sepultado em vida,

Me queixe copiosa e livremente;

Que, pois a minha vida é sem medida,

Ali triste serei em dias ledos

E dias tristes me farão contente.

Na solidão da gruta, composta por duas rochas que

sustentam uma outra que as recobre, avistando o mar e

as ilhas de Taipa e de Lintão, o poeta medita no seu desti-

no, o espírito de novo mergulhado em negras amarguras.

Segundo a lenda, aqui vai trabalhar com afinco na fina -

li zação de Os Lusíadas.

As atribulações com a justiça ou com os poderes

fácticos, que foram uma constante ao longo da sua vida,

não tinham ainda acabado para o poeta.

134

UM TRISTE REGRESSO

Por razão indeterminada, o capitão de uma nau, que

exerceria provisoriamente a justiça num território que ain-

da não passaria de um conjunto de abarracamentos, vai

dar-lhe voz de prisão. Sob detenção, embarca numa Nau

da Prata e da Seda (designação que se atribuía aos navios

que destas mercadorias se carregavam) rumo à costa in-

diana, na viagem de retorno de 1559.

Estamos em Outubro. Nos baixios da foz do rio

Mecom (Mecong), no Camboja, território do actual Viet-

name, naufraga o navio em que segue Luís Vaz mais a sua

preciosa carga: o manuscrito de Os Lusíadas. É deste mo-

do que o próprio Camões descreve o terrível episódio:

Vês, passa por Comboja Mecom, rio

Que Capitão das Águas se interpreta,

Tantas recebe de outro só no estio,

Que alaga os campos longos e inquieta;

Tem as enchentes, quais o Nilo frio;

A gente dele crê, como indiscreta,

Que pena e glória têm depois da morte

Os brutos animais de toda a sorte.

Este receberá, plácido e brando

No seu regaço o Canto, que molhado

Vem do naufrágio triste e miserando

Dos procelosos baixos escapado;

Das fomes, dos perigos grandes, quando

Será o injusto mando executado

Naquele, cuja Lira sonorosa

Será mais afamada que ditosa.

135

Nadando com o vi gor emprestado pela ne ces sida -

de de salvar a vida e a obra, em águas bem mais calmas

que as representações do episódio costumam retra tar, Luís

Vaz deve ter pas sado por horas de angústia.

Conta a lenda que, para salvar o manuscrito do poe -

ma épico, Camões deixa Dinamene entregue ao seu des-

136

NAUFRÁGIO

e salvamento

137

tino. Terá morrido, para grande desgosto de Luís, que a

chorará para sempre.

Ah! minha Dinamene! Assim deixaste

Quem não deixara nunca de querer-te!

Ah! Ninfa! Já não posso ver-te,

Tão asinha esta vida desprezaste!

Como já pera sempre te apartaste

De quem tão longe estava de perder-te?

Puderam estas ondas defender-te

Que não visses quem tanto magoaste?

Nem falar-te somente a dura Morte

Me deixou, que tão cedo o negro manto

Em teus olhos deitado consentiste!

Oh mar! oh céu! oh minha escura sorte!

Que pena sentirei que valha tanto,

Que inda tenho por pouco o viver triste?

Camões salva-se e ficará durante muito tempo nes-

tas terras, sem se saber como consegue sobrevi ver, o que

viu, como se sentiu. Muito menos se sabe de que modo re-

tornou a Malaca, sendo possível que algum navio por-

tuguês de passagem tenha aceitado levá-lo a troco dos

serviços de homem de armas que ainda era.

Sem nada de seu a não ser um manuscrito que mais

ninguém conhecia, Camões chega a Malaca em 1561, de

onde segue para Goa, em Maio ou Junho. Não perdera a

sua condição de prisioneiro, e mal chega é imediatamente

conduzido à cadeia do Tronco de Goa, ainda mais mi se -

138

NA PRISÃO

em Goa

139

Camões conheceu a realidade dos condenados ao cárcere e

dela retirou toda a amarga sensibilidade dos prisioneiros sem

esperança:

Em prisões baixas fui um tempo atado,

Vergonhoso castigo dos meus erros;

Inda agora arrojando levo os ferros,

Que a morte, a meu pesar, tem já quebrado.

Sacrifiquei a vida a meu cuidado,

Que amor não quer cordeiros nem bezerros;

Vi mágoas, vi misérias, vi desterros:

Parece-me que estava assim ordenado.

Contentei-me com pouco, conhecendo

Que era o contentamento vergonhoso,

Só por ver que cousa era o viver ledo.

Mas, minha estrela, que eu já agora entendo,

A morte cega, e o caso duvidoso

Me fizeram de gostos haver medo.

A memória do cárcere

rável que a de Lisboa. Bem pode Camões enviar poemas

laudatórios a D. Constantino de Bragança, agora vice-rei.

Nada o comove, e Camões é esquecido.

Contudo, as voltas do mundo irão mudar a favor do

poeta. Morre D. Constantino de Bragança e, no seu lugar,

assume a governação D. Francisco Coutinho, 2.º conde de

Redondo, que conhecia bem o poeta dos tempos felizes da

corte e apreciava o seu talento. Imediatamente o liberta e

recebe afectuosamente, procurando inteirar-se da sua

condição.

Esta breve alegria é de novo toldada. No início de

1562 chega ao território Miguel Rodrigues Coutinho, o

«Fios Secos» de alcunha, militar de grande valentia mas,

igualmente, agiota. Seis anos antes emprestara algum

dinheiro a Luís, aquando da partida deste para o Extremo

Oriente. Pois agora queria-o de volta, ou então o poeta

voltava à prisão do Tronco. E assim foi, com a con dição

de só de lá sair quando pagasse a dívida. Triste sina a de

Camões, a quem nem o seu amigo D. Francisco Coutinho

podia valer, dado o melindre do cargo que ocupava. Foram

os amigos do poeta que convenceram o agiota dos moti -

vos de Luís Vaz. Naufragara e portanto perdera tudo, es-

tando impossibilitado de pagar. A contragosto, Miguel

Coutinho cedeu.

Camões pode agora descansar, na companhia dos

amigos antigos, como João Lopes Leitão, Vasco de Ataíde

ou Jorge de Moura, e dos novos amigos que vai fazendo,

entre os quais Garcia da Orta, humanista, médico e botâ -

nico com quase 70 anos à época, de extrema importância

no desenvolvimento das ciências naturais e no conhe -

cimento científico no século XVI. Deverá ter-lhe mostrado

140

UM DESEJO DE PARTIR

a sua obra Colóquio dos

Simples e das Drogas que

muito deve ter impres-

siona do o culto poeta,

que ela bora um poema

para seu antefácio. Ao

que parece, foi por in-

fluência de Camões que

o vice-rei deu alvará de

privilégio de impressão

da obra ao velho sábio.

Os anos passam.

Luís sente-se a ficar ve -

lho. Está sobretudo farto

da vida corru p ta de Goa

onde, a par da os ten siva

demons tração da rique -

za, todos parecem que -

rer tirar o maior partido de pequenos e grandes es que mas

de enriquecimento às custas dos outros, quando não do

próprio reino. Acima de tudo, o poeta que ele é deseja ver

publicada a sua obra.

Decide voltar à pátria. Acompanhá-lo-ia um jau, ou

javanês, natural da ilha de Java. O seu nome era António,

mas para sempre ficaria conhecido como Jau. O poeta have-

ria de catequizá-lo e libertá-lo, ficando a ele ligado por la -

ços de grande amizade e trazendo-o consigo para Lisboa.

Em 1567 Camões parte com o capitão Pedro Barreto

Rolim para Moçambique, obtendo deste um empréstimo

de 200 cruzados. Muito caro lhe saiu.

141

Rosto da

1.ª edição de

COLÓQUIO DOS

SIMPLES E DAS

DROGAS

Já em Moçambique, Pedro Barreto Rolim vai sujeitar

Camões às piores humilhações, em nome da dívida brigam

e o poeta é preso. Serão Diogo do Couto e outros amigos

que entretanto chegaram a Moçambique que acudirão a

Luís de Camões, fazendo uma colecta que reuniu o di nhei-

ro necessário para pagar a dívida. Camões quase não tem

que vestir, apresentando-se num estado miserável e faméli-

co. Contudo, nesses dois anos tivera a energia suficiente

para rever Os Lusíadas, estando agora a obra acabada.

A sua energia criadora não se encontrava, porém,

esgotada. Diogo do Couto refere que Camões tinha tam-

bém um manuscrito para «um livro mui douto, de muita

erudição, que intitulou Parnaso de Luís de Camões, porque

continha muita poesia, filosofia e outras ciências». Infe-

lizmente esta obra perdeu-se, tendo sido roubada.

Em Novembro de 1569 Camões abandona Moçam-

bique, a bordo da nau Santa Clara de D. António de Noro -

nha. Chegam a Lisboa em Abril de 1570. Camões olhava

agora com comoção a cidade onde a maior parte dos seus

sonhos tinha nascido e morrido. Estivera afastado 17 anos.

Era agora um desconhecido na capital do império.

Sentia-se velho, era pobre, não conhecia influentes. Foi vi-

ver provavelmente para a Calçada de Santana, com a sua

mãe, que estava em idade avançada e era igualmente

pobre. O ambiente em Lisboa era igualmente deprimente.

À pavorosa peste do ano anterior acresciam os graves pro-

blemas económicos da população criados pelo jovem rei

e pelas suas medidas estouvadas. Este jovem, a quem

142

A GLÓRIA DO POEMA. A HUMILDE MORTE

Camões dedicará um fervor quase religioso e deslocado

das reais qualidades do monarca, chama-se D. Sebastião.

Neste contexto, como conseguiu Luís Vaz de Camões

obter permissão para a publicação do seu poema épico?

É altamente provável que os conhecimentos antigos ain-

da pudessem ter dado uma preciosa ajuda. Não é de ex-

cluir que D. Francisca de Aragão, que sempre apreciara

Camões e o seu talento e era amiga de Pedro de Alcáçova

Carneiro, escrivão da puridade da confiança de D. Sebastião,

tivesse intercedido. Mais provável é que tenha sido a aju-

da do conde do Vimioso a desbloquear a publicação. Im-

pante de orgulho, o jovem monarca deve ter sido conven-

cido com argumentos que lhe agradariam. A sua vaidade

seria certamente agraciada com a descrição da gesta dos

143

CAMÕES LÊ

OS LUSÍADAS

a D. Sebastião

Descobrimentos, da glória dos seus antepassados, na qual

D. Sebastião se revia e desejava continuar, com os desas-

trosos resultados que a História demonstra.

Após obtida licença régia, foi o poema épico anali -

sado pela Inquisição, na pessoa do censor, frei Bartolomeu

Ferreira, o qual, embora reprovando a utilização de «Deuses

dos gentios» na narrativa, aceita que se tratava de um meio

de «ornar o estilo poético». Foi por isso o livro considera-

do «digno de se imprimir».

Com o alvará, D. Sebas -

tião concede uma tença anual

de 15 000 réis, «em respeito aos

serviços prestados na Índia e

pela suficiência que mostrou

no livro sobre as coisas de tal

lugar». Inicialmente por um

pe ríodo de três anos, esta ren-

da será renovada, em 1578, até

à morte do poeta e depois

trans mitida para a sua mãe.

Era muito pouco di nhei -

ro àquela época (aproximada-

mente 40 réis por dia, quando

um carpinteiro ganhava 160

réis diários) e, ainda por cima,

pago sempre com enormes

atrasos. É desta tença que Luís

Vaz de Camões vive até ao fim dos seus dias. Fica também

na lenda que o poeta sobreviveria graças às esmolas que

o seu criado Jau recolhia nas ruas.

144

D. SEBASTIÃO

No entanto, seu sonho fora cumprido, com o título

Os Lusíadas, de Luís de Camões. Seguidamente escrevia na

capa: «Com privilégio real. Impressos em Lisboa, com

licença da santa Inquisição, e do Ordinário: em casa de

António Gõçalvez, Impressor, 1572.» Os primeiros 200

exemplares estão cheios de erros tipográficos e de cortes

da censura, que só serão repostos na 4.ª edição de 1608.

145

Rosto da

1.ª edição

de OS LUSÍADAS

A obra foi recebida com extremo agrado pelos mais

cultos espíritos de Lisboa. Em breve a sua fama chega a

diversas partes da Europa, sendo elogiada por Tasso, em

Itália, e por Ronsard, em Espanha. Secretamente, talvez

Camões tenha desejado que D. Maria o tivesse lido. A in-

fanta morre em 1577.

Em 1578 dá-se o desastre de Alcácer Quibir. Camões

deve ter ficado destroçado com mais este desgosto, que

lhe leva o jovem de quem esperava o renascer da glória

nacional, o monarca Desejado.

A sua saúde deteriora-se. Não resiste à peste de

1579. Febril, escreveria a D. Francisco de Noronha: «Enfim

146

CAMÕES

acompanhado

por sua mãe

e o fiel Jau

acabarei a vida e verão todos que fui tão afeiçoado à mi -

nha Pátria que não só me contentei de morrer nela, mas

com ela.»

Foge-me, pouco a pouco, a curta vida,

Se por acaso é verdade que inda vivo;

[...] Choro pelo passado; e, enquanto falo,

Se me passam os dias passo a passo.

Vai-se-me, enfim, a idade e fica a pena.

E da peste morre no ano seguinte. É enterrado na

colina de Santana, no cemitério que aí existia junto ao

convento. O seu corpo deve ter sido largado à terra numa

leva de outras vítimas da peste. Os seus ossos perdem-se.

Assim o tratou a Pátria.

Nesse mesmo ano, Portugal perde a independência.

147

TÚMULO DE

CAMÕES NOS

JERÓNIMOS.

É duvidoso que

contenha os

ossos do poeta

Erros meus, má fortuna, amor ardente

em minha perdição se conjuraram;

os erros e a fortuna sobejaram,

que para mim bastava amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente

a grande dor das cousas que passaram,

que as magoadas iras me ensinaram

a não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;

dei causa que a Fortuna castigasse

as minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos...

oh! quem tanto pudesse, que fartasse

este meu duro Génio de vinganças!

148

149

CRONOLOGIA

LUÍS DE CAMÕES

de José Malhoa

c. 1524/25Nasce Camões em Lisboa, ou Coimbra.

c. 1542Provável chegada do jovem Camões

a Lisboa, depois de concluir os seus

estudos. Graças à sua erudição

e talento consegue entrar nos

círculos cultos da corte, nos salões

de D. Catarina e D. Maria.

c. 1544Na igreja das Chagas, na Sexta-

-Feira Santa, apaixona-se Camões

por Natércia, anagrama de Caterina

(Catarina), de quem é obrigado

a afastar-se devido à posição social

da jovem.

c. 1546Talvez devido aos seus amores

com a infanta D. Maria, Camões

sai de Lisboa e parte para uma

espécie de exílio, longe da capital.

c. 1549Camões volta a Lisboa, onde é

«aconselhado» a dar provas de valor

militar nas praças de África. Parte

para Ceuta onde, numa escaramuça,

perde um olho. Camões fica à beira

da morte. Acaba por curar-se, mas

150

CRONOLOGIA

o ferimento provoca o retorno

antecipado à capital.

c. 1550Já em Lisboa, o poeta alista-se com

o intuito de partir para a Índia, mas

tal não se concretiza. Volta a aproxi-

mar-se da corte. O projecto de Os

Lusíadas já pairaria no seu espírito.

1552A 16 de Junho, quinta-feira, durante

a procissão do Corpo de Deus,

Camões fere Gonçalo Borges, criado

de arreios do rei, ao proteger dois

embuçados, talvez seus amigos.

É imediatamente preso na cadeia do

Tronco, onde permanece nove meses,

ao fim dos quais recebe uma carta

de perdão do rei com a obrigação

de pagamento de 4000 réis

e de servir na Índia por três anos.

1553No início de Março Camões sai

da prisão e dentro de duas semanas

parte para a Índia, na armada

de Fernão Álvares Cabral. No final

de Setembro chega a Goa, após seis

duros meses no mar.

Durante dois meses recupera forças

em casa de primos, entre eles João

de Camões. Em Novembro sai de

Goa na frota que o vice-rei D. Afonso

151

CRONOLOGIA

de Noronha organiza para combater

o rei de Chambé.

1554Por volta de Fevereiro a armada está

de volta, vitoriosa. Logo de seguida

Camões é convidado a participar na

expedição organizada por Fernando

de Meneses ao golfo Pérsico. Os

combates sucedem-se e em Outubro

chegam, de novo vitoriosos, a Goa.

1555Em Fevereiro, sob o comando

de Manuel de Vasconcelos, segue

na expedição contra o corsário Safar,

que dura mais de seis meses.

De volta a Goa, em Setembro,

Camões vive um tempo de descanso.

Avança na escrita de Os Lusíadas,

que o tem acompanhado em todas

estas aventuras. Bárbara é a cativa

que o tem cativo.

1556De novo parte, rumo ao Oriente,

na armada de D. João Pereira.

1557Em Ternate, numa escaramuça con-

tra os portugueses, Camões é ferido.

Segue viagem para o Oriente, e nes-

152

CRONOLOGIA

tas andanças talvez tenha feito

fortuna, que depressa delapidaria

em Macau, onde chega ainda nesse

ano. Aí terá encontrado numa gruta

o lugar sossegado onde continuaria

a sua obra épica. Encontra também

um novo amor, Dinamene.

1559Em Outubro, por motivos incertos, o

capitão de uma nau dá-lhe voz de

prisão, pelo que segue, sob custódia,

para Goa. Ao largo do rio Mecong,

o navio naufraga. Camões consegue

salvar-se com o seu precioso

manuscrito.

1561Sem se saber como, chega a Malaca,

de onde segue para Goa em Maio

ou Junho. Mal chega, é preso

na cadeia do Tronco de Goa pois,

apesar do tempo decorrido, tem

ainda o estatuto de prisioneiro.

153

CRONOLOGIA

Recebe perdão quando D. Francisco

Coutinho, seu amigo dos tempos da

corte em Lisboa, é nomeado vice-rei.

1562A liberdade foi de curta duração.

No início do ano chega a Goa Miguel

Rodrigues Coutinho, que exige o

pagamento de uma dívida com seis

anos. Camões ficará preso até os

seus amigos intercederem por si

e a dívida ser perdoada. Seguem-se

tempos mais tranquilos, de convívio

e trabalho.

1567Cansado da vida em Goa, quer

voltar a Lisboa. Parte para

Moçambique com o capitão Pedro

Barreto Rolim, que lhe concede

um empréstimo de 200 cruzados.

1569Em Moçambique, Pedro Barreto

Rolim sujeita Camões às piores

humilhações em nome da dívida.

Camões é preso. Diogo do Couto

e outros amigos fazem uma colecta

e conseguem pagar a famigerada

dívida e a viagem de regresso.

O poeta parte de Moçambique

em Novembro, na nau de D. António

de Noronha.

1570Camões chega a Lisboa em Abril.

Estivera afastado 17 anos. Provavel-

mente terá ido viver com a sua mãe

na Calçada de Santana. Com cerca

de 45 anos, Camões era pobre e es-

tava velho, mas ainda tinha alguns

amigos. Será por sua influência que

se viria a publicar o poema épico.

154

CRONOLOGIA

1572Os Lusíadas são finalmente

impressos e recebidos com extremo

agrado pela elite cultural de Lisboa.

Em breve a sua fama se espalharia

por toda a Europa. Com o alvará de

impressão, Camões passa a receber

uma tença anual de 15 000 réis.

1580Camões não resiste à peste e dela

morre, possivelmente a 10 de Junho.

O seu corpo é enterrado no cemitério

situado na colina de Santana.

1595Publicação das Rimas (Rythmas).

1587Edição dos autos Comédia

de El-Rei Seleuco, do Comédia

de Filodemo e Comédia de

Anfitriões.

155

CRONOLOGIA

BELL, Aubrey F. G., Luís de Camões, trad. do inglês por A. A.

Dória, Porto, 1936

BRAGA, Teófilo, Camões. A Obra Lírica e Épica, Porto, 1911

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1936, Luís de Camões. II – O Épico, Lisboa,

1950, e Luís de Camões. III – Os Autos

e o Teatro do Seu Tempo – As Cartas e Seu

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GONÇALVES, F. Rebelo, A Fala do Velho do Restelo

– Aspectos Clássicos Deste Episódio

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MACEDO, J. Borges de, «Os Lusíadas» e a História, Lisboa,

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156

BIBLIOGRAFIA

157

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Prefaciadores da Lírica de Camões»,

in Ensaios, tomo IV, Lisboa, 1934

STORCK, Wilhelm, Vida e Obra de Luís de Camões,

trad. anotada por Carolina Michaëlis

de Vasconcelos, Lisboa, 1897

158

UMA RESPOSTA SEMPRE PRONTA

A MISTERIOSA NATÉRCIA

Perdido de amores

O FIM DE UMA ILUSÃO

Amor ardente

PAIXÃO E DESGRAÇA

A INFANTA D. MARIA

UM ESPÍRITO RARO

PROXIMIDADE

UM AMOR INTERDITO

Um último encontro

BANIDO

UMA LONGA ESPERA

Saudades

O SOLDADO

QUE PERDE UM OLHO

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A GLÓRIA

DA LÍNGUA PORTUGUESA

AS ORIGENS

UMA LINHAGEM DE NOBRES

O humanismo renascentista

em Portugal

FACTOS OBSCUROS

UM TIO PODEROSO

ESTUDANTE EM COIMBRA

Petrarca e Camões

A CAMINHO DE LISBOA

UMA MOCIDADE

APAIXONADA

A EMBRIAGUEZ DA CAPITAL

UMA MUDANÇA DECISIVA

Sá de Miranda

O ESPLENDOR DA CORTE

ÍNDICE

LUÍS VAZ

DE CAMÕES

SOLDADO

AO SERVIÇO DA COROA

CONTRA O REI DE CHAMBÉ

COMBATES VÃOS

ENFADO SUBLIMADO NA ESCRITA

DE NOVO EM GOA, E FELIZ

Diogo do Couto

UMA ESCRAVA QUE O CATIVA

À BEIRA DO FIM,

SURGE A OBRA

A CAMINHO DE TERRAS EXÓTICAS

NAS ILHAS DAS ESPECIARIAS

CHEGA A MACAU

UM TRISTE REGRESSO

A memória do cárcere

UM DESEJO DE PARTIR

A GLÓRIA DO POEMA.

A HUMILDE MORTE

CRONOLOGIA

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DE VOLTA A LISBOA

«ONDE VÁS, LUÍS?»

EM CEUTA

A PERDA DE UM OLHO

A importância do olhar

REGRESSO

A UMA LISBOA DIFERENTE

D. João III

UMA SOCIEDADE EM MUDANÇA

Damião de Góis

UM REGRESSO TRÁGICO

DESFIGURADO

UM ESFORÇO INÚTIL

NOS SALÕES DE D. MARIA

TRAGÉDIA

PRISÃO

O PREÇO DA LIBERDADE

NO CAMINHO DA ÍNDIA

PARTIDA

A BORDO

O VELHO DO RESTELO

O ADAMASTOR

O FIM DA JORNADA

CAMÕES INSTALA-SE EM GOA

Resumo sinóptico

de Os Lusíadas

159

ÍNDICE

Com um poema épico, um homem vai selar a identidade

nacional. Luís Vaz de Camões, o príncipe das letras

portuguesas, incendiou com a sua escrita a alma lusitana.

E tem confundida a data da sua morte

com o Dia de Portugal.

Tanto mais é de espantar esta identificação entre a nação

e o poeta quanto, em vida, a fortuna lhe foi madrasta

e todas as portas se lhe iam fechando. É verdade

que por «Erros meus, má fortuna, amor ardente»,

tudo em sua perdição se conjurou. Mas também

não é menos certo que os contemporâneos do escritor

nunca compreenderam, e muito menos recompensaram,

o seu talento. Era brigão, mulherengo, arrebatado e

emotivo. Por isso criou inimigos, gerou animosidades,

cavou incompreensões. Mas consigo carregava igualmente

a funda erudição, o génio criador, o sentido de um desígnio:

nobilitar Portugal e a sua gesta.

Morreu pobre, cansado, precocemente envelhecido.

Só o tempo lhe dará o lugar que ocupa nas letras

e no imaginário de uma nação: o lugar cimeiro.

GRANDES PROTAGONISTAS DA HISTÓRIA DE PORTUGAL