caminhos do lembrar a construção e os usos políticos da memória no morro do borel

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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS DOUTORADO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS Caminhos do lembrar: a construção e os usos políticos da memória no morro do Borel Mauro Amoroso Rio de Janeiro, março de 2012

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Caminhos Do Lembrar a Construção e Os Usos Políticos Da Memória No Morro Do Borel

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Page 1: Caminhos Do Lembrar a Construção e Os Usos Políticos Da Memória No Morro Do Borel

FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE

HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS

CULTURAIS DOUTORADO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS

Caminhos do lembrar: a construção e os usos políticos da memória no morro do Borel

Mauro Amoroso

Rio de Janeiro, março de 2012

Page 2: Caminhos Do Lembrar a Construção e Os Usos Políticos Da Memória No Morro Do Borel

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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE

HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS

CULTURAIS DOUTORADO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS

PROFESSOR ORIENTADOR ACADÊMICO MARIO GRYNSZPAN

MAURO AMOROSO

CAMINHOS DO LEMBRAR: A CONSTRUÇÃO E OS USOS POLÍTICOS DA MEMÓRIA NO MORRO DO BOREL

Tese de Doutorado apresentada ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC como requisito parcial para a obtenção do grau de

Doutor em História, Política e Bens Culturais.

Rio de Janeiro, março de 2012

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Amoroso, Mauro

Caminhos do lembrar: a construção e os usos políticos da memória no Morro

do Borel / Mauro Amoroso. - 2012.

265 f.

Tese (Doutorado) - Centro de Pesquisa e Documentação de História

Contemporânea do Brasil, Programa de Pós-Graduação em História, Política e

Bens Culturais.

Orientador: Mario Grynszpan. Inclui bibliografia.

1. Memória coletiva. 2. Historiografia. 3. História oral. 4. Espaço urbano – Borel (Rio de Janeiro, RJ). I. Grynszpan, Mario. II. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. Programa de Pós- Graduação em História, Política e Bens Culturais. III. Título. CDD – 907.2

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Mauro Amoroso

Caminhos do lembrar: a produção e os usos políticos da memória no morro do Borel

Tese apresentada ao Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea do Brasil (CPDOC/FGV) para obtenção do grau de Doutor

Data da defesa: 13/03/2012

Aprovada em: 13/03/2012

ASSINATURA DOS MEMBROS DA BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________ Mario Grynszpan

Orientador (a)

________________________________________________ Paulo Knauss

________________________________________________ Marcia Leite

________________________________________________ Mariana Cavalcanti

________________________________________________ Dulce Pandolfi

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4

Resumo:

O objetivo do presente trabalho é elaborar uma reflexão sobre os processos de

construção e os usos políticos da memória na favela do Borel. Para o alcance dessa

finalidade, serão analisados o livro “As lutas do povo do Borel”, de autoria de Manoel

Gomes, ex-morador local e ex-militante comunista, já falecido, e o projeto Condutores

de Memória, realizado por moradoras das favelas do Borel e da Casa Branca em

parceria com a Agenda Social Rio. Desse modo, pretende-se pensar as características da

articulação de diferentes atores na elaboração de suportes de memória de moradores de

favelas, a partir do caso do Borel, bem como a forma como diferentes contextos

históricos podem interferir na instrumentalização da memória como forma de

reivindicação política.

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Abstract:

The aim of this work is to develop a reflection on the process of construction and the

political uses of memory in the Borel. To achieve this goal, we will analyze the

book "The struggles of the people of Borel," written by Manoel Gomes, a local

resident and former communist militant, and the Condutores de Memória project,

carried out by residents of the favelas of Borel and Casa Branca in partnership with the

Agenda Social Rio, we intend to consider the characteristics of the articulation of

different actors in the development of storage media slum dwellers from the case

of Borel and how different historical contexts can interfere the instrumentalization of

memory as a political claim.

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Agradecimentos

Esses quatro últimos anos certamente foram um dos períodos mais intensos

pelos quais já passei, e contei com o apoio de inúmeras pessoas especiais que me

auxiliaram em diversos momentos. Tive a sorte do convívio, aprendizado, carinho e

compreensão, e sei que essas linhas serão curtas para expressar a imensa gratidão que

sinto por todos vocês. Primeiramente, agradeço a meus pais, Dulcinéa Amoroso e Mário

Amoroso Anastácio (in memoriam), que mesmo à distância me ajudaram a manter o

foco em tudo que me ensinaram, pilares para eu manter meu caminho, profissional e

pessoal, margeado pela linha da ética, não importando a circunstância.

Mario Grynszpan teve um papel fundamental na realização deste trabalho. Sua

orientação me propiciou um grande crescimento profissional e uma visão mais apurada

sobre como pensar e escrever a História. Além disso, deu-me o prazer da convivência

com uma pessoa solidária, de grande presteza na resolução de problemas burocráticos e

de sincero apoio nos momentos de desânimo. Sua simplicidade é sinônimo de grandeza,

sendo essa a postura com a qual pretendo conduzir minha vida acadêmica. Mario,

ganhastes minha admiração, muito obrigado, mesmo.

O CPDOC revelou-se uma casa onde encontrei um estimulante ambiente

intelectual e apoio para o desenvolvimento do meu trabalho. Tive o prazer de ser aluno

de Ângela de Castro Gomes e Marly Motta, cujos debates realizados em seus cursos

formaram a espinha dorsal de minha análise, que também foi profundamente

enriquecida com seus comentários. O convívio com pesquisadores em atividades

realizadas pelo Laboratório de Estudos Urbanos (LEU), além dos encontros e

seminários do próprio CPDOC, se constituiu em um rico laboratório, e só tenho a

agradecer a pesquisadores como Paulo Fontes, Bianca Freire-Medeiros, Luciana

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Heymann e tantos outros. Também fica o agradecimento a todo o corpo administrativo

da casa, responsável por tornar nossa convivência menos, ou nada, suscetível aos tantos

entraves burocráticos comuns ao convívio acadêmico. E o que é melhor: sempre com

um sorriso e uma palavra de simpatia.

A banca de defesa é um capítulo à parte. Tive a sorte de reunir pesquisadores

que puderam fazer parte de minha caminhada em diferentes momentos, todos

responsáveis por contribuições de excelência para o pensamento sobre as cidades e as

favelas. Paulo Knauss, o responsável por me apresentar às favelas como possibilidade

de estudo histórico, grande historiador que me influenciou de formas diversas e

continuará influenciando indefinidamente. Marcia Leite, outra por quem nutro

admiração e de quem tive o prazer de ser aluno, tem acompanhado minha trajetória em

diferentes momentos, e, mais uma vez, é responsável por enriquecê-la com suas

contribuições. Dulce Pandolfi foi responsável por importante apoio ao pesquisar o

material do IBASE, além de inúmeros comentários de grande validade em diferentes

momentos da pesquisa. Mariana Cavalcanti merece um agradecimento especial por toda

a forma de suporte fornecida, sempre movida pela sinceridade e solidariedade

intelectual, ao longo desses quatro anos. Aprendi muito com nossa convivência, e

desejo longa vida ao “grupo dos M”.

No último ano, tive oportunidade de fazer parte da pesquisa “Bringing the State

back into the favelas of Rio de Janeiro: understanding changes in community life after a

disarmament and pacification process”, coordenada por Janice Perlman. Essa pesquisa

me deu oportunidade de conviver com um excelente grupo de pesquisadores cujos

debates influenciaram algumas das reflexões aqui presentes, além de muitas outras que

pretendo desenvolver no futuro. Desse modo, não poderia deixar de agradecer à própria

Janice Perlman, Marcelo Burgos, Mariana Cavalcanti, mais uma vez, Luiz Fernando

Page 9: Caminhos Do Lembrar a Construção e Os Usos Políticos Da Memória No Morro Do Borel

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Almeida Pereira e Mario Brum, esse último grande companheiro dos estudos sobre

favelas e um irmão que respeito e admiro muito, apesar das discordâncias futebolísticas.

Também tive um convívio maior com dois historiadores que pesquisam temática muito

próxima a minha, com quem compartilhei fontes e impressões, e que tiveram grande

influência sobre esse trabalho: Brodwyn Fischer e Rafael Soares Gonçalves. Rafael

Gonçalves é outro que merece um agradecimento especial em separado, pois seu apoio

logístico foi fundamental para o término da pesquisa, além do fato de significar um

grande companheiro de jornada e produção intelectual, que tenho passado a respeitar

cada vez mais. Outro para quem eu torço que nossa parceria dure indefinidamente. Uma

menção especial a todos os que depuseram para a pesquisa, revelando suas histórias,

cedendo documentação, indicando outros depoentes e pessoas com quem conversar, não

há palavras para lhes agradecer. Especialmente Ruth Barros, Mauriléia Ribeiro e

Mônica Francisco, que além de tudo aceitaram ser meus “anjos da guarda” no Borel,

assim como Cláudia Sabino.

Além do ambiente para o desenvolvimento do meu trabalho, o CPDOC também

me trouxe grandes irmãos que levarei comigo a vida inteira e com quem partilhei

angústias e alegrias, e que sempre terão um lugar especial em minha vida. Vanuza

Braga, Raimundo Hélio e Aline Portilho, obrigado pela amizade de vocês, ela foi

fundamental em diferentes momentos-chave. Não poderia me esquecer de Renato

Lanna, Silvana Rodrigues, Andrea Ribeiro, Lucina Matos e tantos outros. E claro, da

minha “irmã postiça” e uma das minhas maiores companheiras de elaboração de planos

mirabolantes, Vivian Fonseca, outra presente no hall dos que levarei comigo

eternamente. Também dedico especial atenção aos irmãos que há tanto já estão ao meu

lado, e, mesmo sem saber, foram fundamentais para essa minha caminhada: Gustavo

Durán, Leo Arruda, Rafael Barba-Ruiva, Marina Machado, Camila Pinto, ou

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pintocamilam, Cadu Marconi, Bruna Soalheiro, Alexandre Graseff, Calebe Mattos,

Thiago Bruce, Glauco Bruce, Giba Silva, os mais novos integrantes do “bando”, Ravi e

Néstor, e tantos outros que receberão pessoalmente o meu “muito obrigado”. O mais

importante eu preferi guardar para o final, o meu agradecimento à maravilhosa e linda

companheira que escolhi para estabelecer planos, dos simples aos impossíveis, e

construir uma vida, um futuro no qual o “nós dois” será sempre a melhor parte. Todo o

meu amor, e mais um pouco, para Maria Cristina Martins, a minha Cris.

E agora, vamos falar sobre o Borel.

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Para o eterno irmão Gabiruba Buchmann (in memoriam)

Vamos com tudo, meu velho!

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Sumário

Introdução................................................................................................................. 13

Considerações teóricas e metodológicas sobre a pesquisa........................................16

O contexto histórico....................................................................................................24

Capítulo I – O morro do Borel e a memória material: percepções e escrita do

passado a partir de um relato sobre a UTF.............................................................43

O surgimento das favelas consolidadas.....................................................................44

Visões sobre o passado: a escrita da História e os grupos sociais...........................50

O morro do Borel e a construção de uma memória material..................................55

Novos atores no palco político do Borel: A Ação Popular e o Movimento

Revolucionário 8 de Outubro......................................................................................68

As disputas do Borel durante a abertura política.......................................................70

Capítulo II – O auge das lutas do Borel: a memória sobre a União dos

Trabalhadores Favelados..............................................................................................79

O “mito de origem” do Borel........................................................................................79

A memória sobre a UTF................................................................................................91

O “homem providencial” do Borel e das favelas: a memória sobre Magarinos

Torres............................................................................................................................120

Capítulo III – Por trás de uma “memória de lutas”: a elaboração e os usos políticos

de “As lutas do povo do Borel”...................................................................................145

A livraria Muro............................................................................................................147

Page 13: Caminhos Do Lembrar a Construção e Os Usos Políticos Da Memória No Morro Do Borel

12

Ação política no Borel: os grupos de esquerda e a convivência tática....................159

O processo de elaboração de “As lutas do povo do Borel”......................................178

Sobre convivência tática e memória...........................................................................183

Capítulo IV – Ressignificar a favela pela memória: violência urbana, Agenda

Social Rio e o projeto Condutores de Memória........................................................189

O Borel e a violência urbana do pós-1970.................................................................189

Breves comentários sobre a consolidação da atuação das ONGs...........................202

Uma Agenda Social para o Rio...................................................................................207

O projeto Condutores de Memória: uma forma de intervenção social na Grande

Tijuca............................................................................................................................220

O meu lembrar pelos meus direitos: análise do projeto...........................................225

Sobre articulação estratégica e memória...................................................................245

Conclusão.....................................................................................................................249

Fontes e bibliografia...................................................................................................257

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Introdução

Em agosto de 2003, o Instituto Superior de Estudos da Religião (Iser) organizou

um seminário para debater os projetos de memória de favelas que estavam sendo

realizados no período. Acadêmicos e responsáveis por várias iniciativas nesse sentido se

reuniram para refletir sobre essa prática. Uma das participantes do evento, envolvida em

atividade do gênero no morro do Borel, relatou da seguinte forma uma de suas

impressões acerca do sentimento do morador, de certa idade, dessa favela, entendido de

forma generalizada, ao participar do projeto (COUTINHO 2004, 24): “(...) a felicidade

estampada nos olhos e nas palavras dele, de se sentir realizado porque alguém lembrou

de abrir um espaço para ele passar tudo aquilo que estava armazenado na memória. Era

como um grito que queria sair, queria passar para os jovens e ninguém dava essa

oportunidade”.

Esse depoimento apresenta o que seria um quadro de dificuldade para a

transmissão da memória em uma antiga favela do Rio de Janeiro. Esse panorama poder

ser visto em outras localidades semelhantes, preenchido por diferentes problemáticas de

acordo com cada contexto histórico. No que diz respeito à sociedade em geral, por sua

posição desfavorável na hierarquia social, os moradores de favelas historicamente têm

tido acesso dificultado a formas de se fazer conhecer suas versões sobre o passado de

forma ampliada. Entretanto, tal fato não significa a inexistência dessas versões

registradas em suportes que permitam a sua circulação, o que nos leva aos seguintes

questionamentos: o que motivou o esforço para a construção de meios de registro desses

discursos? Quais seriam os atores que participaram do processo de construção desses

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registros e seus respectivos interesses? Quais seriam os usos políticos possíveis desses

relatos sobre o passado realizados em diferentes contextos históricos?

Assim, o presente trabalho tem por objetivo analisar o processo de construção da

memória, bem como seus usos políticos, na favela do Borel, a partir de dois casos

ocorridos em momentos históricos distintos. O primeiro é o livro “As lutas do povo do

Borel”, de autoria de Manoel Gomes1. O autor foi uma antiga liderança comunitária

pertencente à União dos Trabalhadores Favelados (UTF), entidade de representação de

moradores de favelas criada em 1954, cujo primeiro diretório foi feito no Borel, ligada

ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e fortemente influenciada pelo advogado

Antoine de Magarinos Torres. Lançada em 1980 e prefaciada por Luís Carlos Prestes, a

obra narra desde a trajetória da ocupação do morro à criação da UTF como polo de

organização da resistência às ameaças de erradicação da favela. Tais ameaças são tidas

como elemento catalisador para a participação comunitária.

O segundo caso se refere ao projeto Condutores de Memória, implementado

entre 1999 e 2006 com o objetivo de coletar depoimentos orais e documentação dos

habitantes mais antigos do Borel e das demais favelas da região denominada Grande

Tijuca, a fim de gerar um acervo próprio para preservação da memória das favelas da

região. Tal iniciativa, ligada à Agenda Social Rio, movimento criado pelo sociólogo

Herbert de Souza, o Betinho, pretendeu a construção de novos significados positivos

concernentes às favelas e seus habitantes, contrapondo-se às usuais construções

simbólicas de marginalidade e violência. Visou, portanto, a uma nova inserção para os

1 Infelizmente, foram localizados poucos dados biográficos sobre Manoel Gomes. Sabe-se apenas que se trata de uma liderança atuante na favela do Borel nos anos 1950 e 1960, auge da atuação da UTF. Ao que tudo indica, pelos depoimentos colhidos, no final dos anos 1970, ele já não habitava o morro, e não foi possível estabelecer contato com seus familiares em busca de informações mais sólidas. Também não foi localizado qualquer dossiê pessoal sobre ele no Fundo de Polícia Política do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj).

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moradores de favelas na dinâmica social e cultural do espaço urbano. Com relação aos

Condutores, será estabelecida reflexão a partir do livro institucional que relata as

atividades do projeto e analisa parte de seu acervo documental, além de um vídeo

gravado pelos responsáveis pela proposta, com apoio da Agenda Social Rio2.

Desse modo, toma-se a memória como instrumento de produção de sentidos

sobre determinada área urbana e seus habitantes, bem como sobre a relação dos mesmos

com a cidade, no tocante à obtenção de bens de infraestrutura, melhores condições de

moradia e inserção no cotidiano social e cultural do espaço urbano. Também será dada

especial atenção à dinâmica relacional entre os diferentes grupos, no que se refere às

posições e interesses em disputa, no processo de concretização dessas duas propostas.

A tese se encontra dividida em quatro capítulos. No primeiro, será abordada a

importância do registro físico da memória para os habitantes do Borel, dentro da ideia

de uma memória material de favelas, a partir do livro de Manoel Gomes. Serão

analisadas as estratégias discursivas adotadas, bem como o teor dos elementos presentes

nesse relato. O segundo capítulo apresenta um debate centrado na memória e na história

da UTF, a partir, novamente, do relato de Gomes. Desse modo, será feita uma reflexão

sobre a ocupação do morro do Borel, os objetivos e formas de atuação da União dos

Trabalhadores Favelados e sua ligação com o advogado Antoine de Magarinos Torres.

Com isso, pretende-se pensar a forma como as lideranças ligadas ao PCB, pertencentes

à União, construíram significados sobre o passado do Borel e sua mobilização

associativa.

O terceiro capítulo tem como objetivo refletir sobre o processo de elaboração de

“As lutas do povo do Borel”, a partir do contexto de abertura política da virada da

década de 1970 para 1980. Dessa forma, serão feitas considerações sobre os grupos

2 O livro em questão se trata de CUNHA, 2006.

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políticos envolvidos no processo editorial que deu origem à obra, assim como o

surgimento desta dentro de um contexto de disputa, entre diferentes atores, pelas

favelas, palco para a criação e implementação de propostas de intervenção junto às

classes populares. O quarto e último capítulo aborda a forma como a memória passa a

ser utilizada como instrumento para a construção de significados alternativos às

imagens de violência que começam a ser associadas às favelas a partir dos anos 1980,

bem como o uso da memória para debater seus padrões de sociabilidade. Desse modo,

os produtos que compõem a memória material do Borel passam a ser utilizados a partir

de outros fatores históricos, como as consequências da atuação do tráfico, as

representações produzidas a partir desta e a articulação de outros atores, como as

Organizações Não Governamentais, que iniciam sua atuação nesses locais.

Considerações teóricas e metodológicas sobre a pesquisa

Nas últimas quatro décadas, a sociedade ocidental tem valorizado

consideravelmente temáticas que remetem ao passado. Assim, poderíamos falar no

advento e na consolidação do que seria uma cultura da memória, na qual Andreas

Huyssen (2000) aponta o interesse e o consumo da sociedade contemporânea por

objetos que fazem referência ao passado como consequencias da visão de que tais

objetos são atenuantes para as incertezas trazidas pelas mudanças da estrutura social

atual, servindo como garantia de alguma organicidade3. Nesse contexto, os meios e as

tecnologias de comunicação exercem papel fundamental. Os primeiros, como palco de

3 Essa valorização, quando é vista pela via da indústria cultural, pode ser apontada na comercialização de documentários do History Channel, ou no êxito de filmes como Titanic, dirigido por James Cameron e lançado em 1997 (HUYSSEN, 2000: 15). Em interpretação semelhante, David Lowenthal (1985: 4-6) aponta a compra de objetos antigos, como banheiras em art déco dos anos 1930 ou antigas jukeboxes da década de 1950, revelando o interesse por uma certa “nostalgia”, entendida como uma ânsia pelo passado traduzida pela ideia de que “o que é velho é bom” (idem: 4, tradução livre). Esses fatores estariam ligados ao que A. Huyssen (2000: 15) denominou de um “mundo musealizado”.

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17

oferta de memórias, sendo a relação entre presença e exclusão de testemunhos um rico

campo de análise de relações, interesses e disputas. As segundas, pelas transformações

que vêm provocando na maneira como o homem se relaciona com o espaço e com o

tempo e, por conseguinte, com a memória, esta cada vez mais fragmentária (idem).

Nessa conjuntura, teríamos o surgimento de lugares de memória, sobre os quais

Pierre Nora, em sua tradicional reflexão sobre a presença do passado na sociedade

contemporânea, traça considerações acerca da materialização da memória, com o

desaparecimento gradativo, provocado pela modernidade, dos meios de transmissão

dessa. Desse modo, surgiria um instrumento material, simbólico e funcional, fruto de

interesses de conservação, tendo em vista o fim da espontaneidade do resgate de

tradições passadas (NORA, 1993).

Assim, um dos conceitos-chave para o estudo proposto é o de memória. Paul

Ricoeur conceitua memória como uma ferramenta fundamental para dar sentido ao

passado. Apesar de ser um processo singular, seu produto, ou seja, o que é rememorado,

se compõe pela pluralidade. Seu sentido é dotado de polissemia. Por isso, Ricoeur

propõe uma fenomenologia da percepção, visando alcançar um conhecimento sólido e

confiável sobre a sociedade a partir da memória, a despeito de sua polissemia

(RICOEUR, 2000). Paulo Rossi entende a arte da memória como uma técnica de

organização, conservação e transmissão de saberes. Sua engrenagem tem por finalidade,

assim, o ordenamento de conhecimento, e seu uso remete à Antiguidade e ao

Renascimento (ROSSI, 2003).

Essas reflexões apontam a memória como um ato intelectual, de caráter

processual, de dotação de sentido. Desse modo, é importante a colocação da memória

enquanto fenômeno construído, partindo de um nível individual, utilizando processos

conscientes ou inconscientes, e influenciada pela conjuntura presente a partir da qual é

Page 19: Caminhos Do Lembrar a Construção e Os Usos Políticos Da Memória No Morro Do Borel

18

articulada, conforme análise de Pollak (1992). Outro importante conceito a ser

apresentado é o de trabalho de enquadramento de memória, que ocorre devido à função

da memória coletiva de conservar fronteiras coesas de organizações coletivas variadas, a

fim de manter perene o tecido social.

Uma forma de influir nesse ato é o controle ao acesso de documentação oficial e

obras de referência, pela gestão de arquivos, bibliotecas públicas e museus, além da

escolha de testemunhas “autorizadas” a falar pelo grupo. Porém, esse trabalho, que sofre

limitações impostas pela necessidade de justificativa e coerência, interpreta, reinterpreta

e associa diversas referências do passado tendo em vista interesses e objetivos do

presente e do futuro (POLLAK, 1992). Pollak fala na existência de memórias

subterrâneas em contraposição a uma memória oficial. Essas são caracterizadas por

“operarem no silêncio”, onde realizam seu “trabalho de subversão”, aflorando em

“momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados”.

Os momentos de ruptura, onde há a erupção dessas memórias, são marcados por

intensa instabilidade, com reivindicações múltiplas e geralmente imprevisíveis, com

relativa impossibilidade de controle dos rumos por elas tomados. Desse modo, há a

interpretação do “silêncio”, perante versões consideradas oficiais, sobre acontecimentos

históricos, não como aceitação passiva, mas como meio de resistência política à

imposição de representações de “cima para baixo” (POLLAK, 1989: 2-3).

A utilização dos conceitos debatidos acima objetiva a reunião de ferramentas

que possibilitem o entendimento da atual postura da sociedade perante o passado e o

resgate da memória, remetendo-se às reflexões de Huyssen. A importância do

pensamento desenvolvido por Nora, para além da problemática da percepção e dos usos

do passado, reside no instrumental para análise de criação de elementos materiais,

palpáveis como suporte de memória. Sua utilização será vital para a problematização do

Page 20: Caminhos Do Lembrar a Construção e Os Usos Políticos Da Memória No Morro Do Borel

19

lançamento de um livro e a criação de um acervo de objetos pessoais e documentais

diversos, pelos moradores do morro do Borel, como forma de legitimação de sua

memória.

Segundo Marie-Claire Lavabre (2001), memória e história possuem uma relação

intrínseca à medida que toda memória, enquanto “presente do passado”, pode servir

como fonte para a História, esta interpretada como um saber sobre o passado e crítica da

primeira, e também como todo o saber cientificamente elaborado sobre o passado.

Dessa forma, a História alimenta a memória. Para melhor problematizar a relação entre

ambas, a autora desenvolve quatro categorias que se definem e operam a partir da

relação entre elas: História, memória histórica, memória coletiva e memória comum. A

primeira diz respeito ao conhecimento cientificamente construído sobre o passado. Ou

seja, a História é uma reconstrução consciente do passado, sempre tendo a obtenção de

conhecimento como objetivo e podendo ir à busca de objetos e temáticas não

necessariamente em foco de discussão pela sociedade, ou trazidos à tona ao debate

público por grupos com interesses políticos específicos. Em contraposição, a memória

seria uma forma de designar o passado não de maneira objetiva e racional, mas visando

a sua manutenção no presente de forma “viva”, através de uma ligação marcada por

fortes cores emotivas e, por vezes, subjetivas (ROUSSO, 1998).

Por memória histórica, Lavabre (2001) entende os conflitos e interesses do

presente que significam a história, ou seja, os usos políticos do passado. A evocação do

passado, nesse caso, ocorre não por interesse de construção do conhecimento, mas para

obtenção de legitimidade, comemoração e evocação de identidade. No entanto, é válido

ressaltar que as duas primeiras categorias não se distanciam com veemência, sendo que

o que as opõe não é tanto uma questão de conteúdo, mas a forma sob a qual este é

abordado.

Page 21: Caminhos Do Lembrar a Construção e Os Usos Políticos Da Memória No Morro Do Borel

20

A pensadora francesa conceitua memória coletiva como um campo abstrato no

qual se nota a soma de memórias individuais visando à coesão de um grupo. Assim, visa

homogeneizar as diferentes representações do passado que a compõem, sendo que o

sucesso de tal esforço indica a capacidade de determinado agrupamento social de

manter-se integrado. Desse modo, os usos políticos do passado (memória histórica) não

necessariamente se confundem com as lembranças de um grupo (memória coletiva).

Contudo, dessas mesmas lembranças podem ser destacadas as experiências vividas em

comum, que por si só não esgotam a ideia de memória coletiva, uma vez que esta

também contém saberes sobre acontecimentos passados vividos apenas por ancestrais,

mas transmitidos de geração em geração por diferentes vias. Para essas experiências,

relativas aos fatos vividos em conjunto, é designada a categoria de memória comum. A

memória coletiva, em seu processo de homogeneização de representações, pode operar

a partir das diversas memórias comuns possíveis (idem).

Esses conceitos serão usados como ferramentas para melhor entendimento das

relações entre os diferentes grupos presentes na construção de memórias específicas

sobre o Borel, seus conflitos e negociações, bem como da reificação de algumas

representações em detrimento de outras. Ainda nesse sentido, gostaria de fazer

referência aos conceitos de estratégia e tática, conforme concebidos por Michel de

Certeau. A primeira categoria é apontada como o cálculo sobre relações de força de um

sujeito a partir de condições específicas. Essas condições envolvem elementos capazes

de criar uma sustentação sólida para quem os possui, propiciando um distanciamento de

relações sociais e uma menor dependência no planejamento e tomada de decisões.

Portanto, a estratégia “postula um lugar capaz de ser circunscrito como um próprio e,

portanto, capaz de servir de base a uma gestão de suas relações com uma exterioridade

distinta” (CERTEAU, 2005: 46).

Page 22: Caminhos Do Lembrar a Construção e Os Usos Políticos Da Memória No Morro Do Borel

21

Em contraponto, a noção de tática também é concebida a partir do mesmo

cálculo sobre relações de força, porém, sem que se possua um lugar próprio para tal

operação, assim como “uma fronteira que distingue o outro como totalidade visível”

(idem, ibidem). Ou seja, as tomadas de decisão movidas a partir dessas relações não são

mobilizadas em base própria e distanciada. Ao contrário do que ocorre na estratégia, tal

característica a torna um jogo constante de atos e maneiras de aproveitar ocasiões e

fatores diversos a fim de se obter possibilidades de ganho. Certeau caracteriza uma série

de práticas cotidianas como táticas, dentre elas o ato de falar, ler e cozinhar. E,

principalmente, também assim é considerado o circular, ou seja, o apropriar-se do

espaço urbano. O uso desses preceitos teóricos elaborados pelo pensador francês no

estudo proposto visa à consideração da memória como resistência “sub-reptícia” no

usufruto da cidade, percebido enquanto tática. Esta, contraposta à ideia de estratégia,

servirá como instrumental para reflexão sobre os locais de onde se constroem os

discursos e representações sobre as favelas e sobre os diferentes sujeitos responsáveis

por esse ato de dotação de sentido, suas relações e tensões.

Serão agora abordados os aspectos metodológicos utilizados na pesquisa. A

memória não deve ser oposta à História, mas desta tornar-se objeto de análise científica

e ser tratada com o mesmo rigor analítico com o qual outras fontes são abordadas

(ROUSSO, 1996). Segundo frisado por Verena Alberti, deve-se evitar polarizações

excessivas no estudo das memórias, uma vez que essas nem sempre são claras e

precisas, o que acarretaria resultados simplistas de estudos, uma vez que a sociedade é

marcada pela existência de várias memórias em disputa. As polarizações, sobretudo as

binárias, também tendem a prejudicar a objetividade do estudo, podendo conferir ao

historiador o caráter de mero “missionário” (ALBERTI, 2004: 33-43). Assim, faz-se

necessária a aplicação do rigor historiográfico intrínseco à obtenção de resultados

Page 23: Caminhos Do Lembrar a Construção e Os Usos Políticos Da Memória No Morro Do Borel

22

profícuos a partir da análise do objeto em questão, evitando, assim, uma mera “edição”

de fragmentos da mesma, e que se caia na tentação “missionária” de que nos fala

Verena Alberti. Para tal finalidade, é vital o entrecruzamento de testemunhos orais com

fontes documentais de diversas esferas, como a escrita e a visual.

Os livros de Manoel Gomes e de Neiva Vieira da Cunha (2006), bem como o

vídeo dos Condutores de Memória anteriormente mencionado, serão analisados a partir

da perspectiva de objetos, produtos culturais passíveis de serem apropriados através de

diferentes leituras e utilizações, também sendo privilegiada como foco de análise a

relação dos receptores com o texto caracterizado como objeto impresso, e não um

produto abstrato de apreensão homogênea4 (CHARTIER, 1992).

Desse modo, foram recolhidos 25 depoimentos para a realização do presente

estudo. O critério da execução das entrevistas foi baseado nos seguintes requisitos: ter

atuado politicamente no movimento associativo de favelas, não necessariamente restrito

ao Borel, nas décadas de 1970 e 1980, possuindo envolvimento no processo editorial do

livro de Manoel Gomes ou fazendo parte dos grupos nele envolvidos (dez entrevistas);

ter atuado em favelas nos anos 1980 e 1990, participando de projetos ligados à Agenda

Social Rio, principalmente o Condutores de Memória (nove entrevistas); ter morado no

Borel no mesmo período da ação da UTF ou se ator relevante para o campo político das

favelas nas década de 1950 e 1960 (quatro entrevistas); ser familiar do advogado

Antoine de Magarinos Torres (duas entrevistas)5.

4 Com relação ao vídeo, especificamente, uma perspectiva semelhante de sua apropriação como objeto cultural, que aborda suas condições de produção, bem como os aspectos de sua recepção a partir da qual diversos significados de sua narrativa podem ser produzidos, pode ser observada em MIRZOEFF, 1999. 5 No capítulo IV, serão utilizados três depoimentos tomados pela equipe responsável pela pesquisa “A ‘retomada’ das favelas do Rio de Janeiro pelo Estado: compreendendo as mudanças na vida da comunidade depois de um processo de desarmamento e pacificação”, sob coordenação de Janice Perlman e financiamento do Banco Mundial, cujo objeto é o processo de instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), principal iniciativa da política de segurança pública do atual governo do estado do Rio de Janeiro, assim como suas consequências para rotinas de diferentes favelas. Outros participantes da equipe de pesquisa foram Marcelo Burgos (PUC-RJ), Luiz Fernando de Almeida Pereira (PUC-RJ), Mariana Cavalcanti (CPDOC-FGV) e Mario Brum (UFF). Fiz parte desse grupo como responsável pela

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23

Além disso, foram consultados exemplares do jornal Imprensa Popular6,

localizados no setor de periódicos da Biblioteca Nacional, com o objetivo de analisar

reportagens referentes à UTF datadas do auge de sua atuação. Foram igualmente

consultados o Fundo Polícias Políticas do Rio de Janeiro, do Arquivo Público do Estado

do Rio de Janeiro (Aperj)7, e o Acervo Herbert de Souza, do Centro de Pesquisa e

Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas

(CPDOC/FGV)8. O primeiro acervo foi pesquisado com o intuito de obter informações

sobre as atividades da UTF e de Magarinos Torres, e o segundo, com o objetivo de

buscar fontes referentes à Agenda Social Rio9.

avaliação do caso do Borel, sobre o qual foram realizadas, com o auxílio das pesquisadoras Claudia Sabino e Marcele Sótenos, dezenas de entrevistas. Como forma de preservação dos depoentes, não serão revelados seus nomes, sendo adotados nomes fictícios. 6 Diário carioca que circulou entre 1948 e 1958 ligado ao PCB. Sua fundação ocorreu após o fechamento do jornal Tribuna Popular em 1947 (ano em que o partido teve sua licença cassada). Seu objetivo foi funcionar como um jornal de massas, apresentando formulações mais amplas do que o jornal oficial do partido. Para mais detalhes, consultar o verbete “Imprensa Popular” do Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro (DHBB) online, em http://www.fgv.br/CPDOC/BUSCA/Busca/BuscaConsultar.aspx. 7 Os documentos desse fundo integravam o arquivo ativo do Departamento Geral de Investigações Especiais, último órgão de polícia política no Rio de Janeiro. Herdou documentos de todos os órgãos da polícia política no Rio de Janeiro. O acervo da Polícia Política do Rio de Janeiro foi transferido para a Polícia Federal em 1983. Alguns documentos foram incluídos no período em que se encontrava sob a guarda da Polícia Federal. Recolhido da Polícia Federal do Rio de Janeiro em 1992, de acordo com a Lei n.º 2.027, de 29 de julho de 1992. O fundo reúne cerca de 120 mil prontuários, três mil pastas agrupadas em 58 setores, dois milhões e 500 mil fichas e centenas de códices. Informações retiradas de http://www.aperj.rj.gov.br/g_policias_politicas.htm. 8 Acervo doado ao CPDOC em março de 2004 pela esposa de Herbert de Souza e pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE), entidade por ele fundada e presidida entre 1981 e 1997, ano de seu falecimento. A consulta ao acervo privilegiou a série IBASE, dividida em duas subséries: institucional e temática. A primeira reúne, conforme diz seu título, a documentação produzida pelo IBASE e contém cinco dossiês, incluindo os documentos administrativos e organizacionais, o material de imprensa e propaganda e os projetos e resultados de pesquisas desenvolvidas pelo Instituto, entre outros. A segunda engloba os documentos, sobretudo os dirigidos ao IBASE, relativos a temas caros à instituição, tais como política nacional, meio ambiente, infância, dentre outros. Informações retiradas de http://www.fgv.br/cpdoc/guia/detalhesfundo.aspx?sigla=HS. 9 Foi feita a opção de não utilizar diretamente o acervo reunido pelo projeto Condutores de Memória devido a desfavoráveis condições de consulta, tendo em vista a deterioração da documentação, que nunca foi objeto de tratamento de organização e conservação, o que levou à inutilização de alguns documentos, além de sua localização dispersa e fragmentada.

Page 25: Caminhos Do Lembrar a Construção e Os Usos Políticos Da Memória No Morro Do Borel

24

O contexto histórico

Para fins de melhor entendimento da análise do meu objeto de pesquisa, farei

uma contextualização histórica de algumas das principais questões concernentes às

favelas durante o período que envolve o processo de edição de “As lutas do povo do

Borel” e a concepção e implementação do projeto Condutores de Memória. O final da

década de 1970 trouxe o abandono progressivo do programa de remoções, até então

adotado pelo governo federal. Um dos marcos desse abandono foi o fracasso da

tentativa de remoção da favela do Vidigal em 197710. Dentre as explicações para o

término dessa política, podem ser citadas pressões externas, pelo fim das remoções, de

organizações internacionais influenciadas pelas determinações do I Fórum Mundial de

Habitação (1976). Porém, não é possível estabelecer um olhar sobre esse fato sem se

levar em consideração o lugar dos movimentos sociais. O próprio governo passa a rever

posições e lança programas que não mais apresentam como principal diretriz a extinção

de áreas de favelas seguida pela transferência de seus moradores para locais distantes.

Como exemplos, podemos relacionar o Programa de Financiamento da Construção,

Aquisição ou Melhoria da Habitação de Interesse Social (Ficam) e o Programa de

Financiamento de Lotes Urbanizados (Profilurb) (GONÇALVES, 2010).

Uma iniciativa de grande impacto na época foi o Programa de Erradicação de

Favelas (Promorar), promovido em 1979 pelo Ministério do Interior, na figura do

ministro Mário Andreazza, então possuidor de ambições políticas, tendo em vista o

10 Pretendia-se construir no local um grande hotel de luxo pela sociedade Rio Towers. O prefeito Marcos Tamoyo (1975 – 1979) chega a defender a remoção como forma de preservar a segurança da população local devido ao risco de erosão do solo e de deslizamentos. Chegou a haver uma expropriação, pelo estado do Rio de Janeiro, de parte do terreno ocupado pela favela em 1977. Porém, dentro do contexto de mobilização e de reabertura política, uma articulação formada por juristas, políticos e membros da Igreja atuou como denunciante de ligações entre a prefeitura e o setor imobiliário, contribuindo para que a erradicação do Vidigal não se concretizasse (GONÇALVES, 2010: 194-196). Sobre a questão das remoções, há uma conhecida bibliografia de referência da qual podemos destacar PERLMAN, 1977, LEEDS & LEEDS, 1978, VALLADARES, 1978, VALLA & GONÇALVES, 1986. Para um debate mais atualizado sobre o assunto, ver GONÇALVES, 2010 e BRUM, 2011.

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25

novo contexto eleitoral que se anunciava com a abertura política (ABRANTES, 1986 e

GONÇALVES, 2010). No Rio de Janeiro, a iniciativa ficou conhecida como Projeto

Rio e foi desenvolvida nas favelas da Maré, privilegiando a recuperação da área do

entorno da Baía de Guanabara e a urbanização em vez da remoção, esta vindo a ocorrer

como última opção. Em seu escopo geral, a proposta atingiu 250 mil habitantes e ficaria

a cargo de diversos órgãos estaduais e federais. É importante mencionar que o projeto

serviu como elemento impulsionador da reorganização associativa no local, uma vez

que, a partir de sua realização, foi formada a Comissão de Defesa das Favelas da Maré

(Codefam) com o objetivo de tentar garantir os interesses de seus moradores em um

contexto influenciado pelo “espectro da ameaça remocionista”11 (ABRANTES, 1986:

142-143). Porém, é necessário frisar que essa reorganização do movimento associativo

não foi exclusiva da Maré, podendo ser citadas a criação, igualmente em 1979, do

Movimento de Reorganização da Associação de Moradores (Mora), na Rocinha, além

da renovação da Federação de Associações de Moradores das favelas do Estado do Rio

de Janeiro (Faferj) (PANDOLFI & GRYNSZPAN, 2002).

No que diz respeito ao escopo mais amplo do movimento associativo das

favelas, Marcelo Burgos (1998: 39) afirma que “entre 1975 e 1982, é essa dialética entre

clientelismo e ressentimento que vai caracterizar a relação dos moradores de favelas e

conjuntos habitacionais com o poder público e a restrita vida política existente”. Assim,

percebe-se um quadro no qual haveria um certo distanciamento entre a vida política da

cidade e a vida social das favelas. Esse “ressentimento” não assumiria um papel de

elemento catalisador de manifestações reivindicatórias por transformações, mas sim de 11 Mesmo que esse período tenha significado o abandono progressivo da política das remoções, é plausível supor uma certa desconfiança por parte de uma parcela considerável dos moradores de favelas sobre o real abandono dessa postura, bem como sobre as intenções do poder público acerca da permanência de áreas de favelas. A suposição sobre essa desconfiança pode ter como embasamento a proximidade temporal com o ápice da política, que erradicou, entre 1969 e 1970, favelas da zona sul da cidade como a Catacumba. Entre os anos de 1968 e 1975, aproximadamente 60 favelas foram erradicadas, removendo-se cerca de 100 mil pessoas para conjuntos habitacionais (PANDOLFI & GRYNSZPAN, 2002: 245).

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criador de uma postura caracterizada por uma “apatia”, ostentando uma situação na qual

a luta por direitos teria dado lugar à busca pela obtenção de pequenos favores

cotidianos, principal alimento das lealdades pessoais que embasam e perpetuam a

atuação de políticos clientelistas (idem)12.

O entendimento dessa configuração deve ser construído a partir da prática

política adotada pelo governo de Chagas Freitas no estado do Rio de Janeiro (1979-

1983)13. Nesse período, é possível perceber uma divisão interna na Federação de

Associações de Moradores de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (Faferj)14. Após a

fusão, a Fundação Leão XIII15 passou a ser o órgão responsável pelo reconhecimento da

existência e da legalidade das associações de moradores, podendo haver apenas uma por

favela ou conjunto habitacional16 (DINIZ, 1982). Essa situação levou a uma ligação

cada vez maior de algumas lideranças de associações de moradores com a máquina

pública, muitas vezes pautada pela ambiguidade e “troca de faveores” típicas do

“chaguismo”. Tal quadro fez com que em 1979 a cúpula da Faferj passasse por uma

cisão, coexistindo duas representações: a Faferj 1, reconhecida pelo governo, e a Faferj

12 Contudo, o autor também atenta para a interpretação das lideranças locais, de que esse tipo de relacionamento político poderia trazer garantias de permanência contra possíveis ameaças de remoções. 13 Antônio de Pádua Chagas Freitas ocupou cargos no legislativo durante os anos 1950 e 1960. Em 1965, com o fim do pluripartidarismo, ingressou no Movimento Democrático Brasileiro (MDB), e nas eleições de 1966 alcançou 29% dos votos destinados ao MDB para a câmara, contribuindo, com seu apoio, para a eleição de um grupo de correligionários para a o legislativo da Guanabara. Chagas Freitas chegou a ser governador do estado da Guanabara (1971- 1975) e do Rio de Janeiro (1979 – 1983), estabelecendo um tipo de atuação política que ficaria conhecida como “chaguismo”, caracterizada pela ausência de enfrentamento, sobretudo com o governo federal comandado pelos militares, e pelo foco em questões locais através de negociações diretas com lideranças políticas muitas vezes baseadas na troca de favores, lealdades pessoais e obtenção de serviços, quadro para o qual contribuiu a presença maciça de apoiadores do governador no legislativo (DINIZ, 1982, MOTTA, 1999 e 2000). 14 A Faferj teve sua origem na fundação da Federação de Associações de Favelas do Estado da Guanabara (Fafeg) em 1963. Até 1970, a Fafeg apresentou um caráter combativo, sobretudo devido à política de remoções vigente. Porém, após um período de forte repressão política e prisões de lideranças, o que levou à sua desarticulação, a entidade passou a se dedicar a questões locais, abandonando os protestos contra as erradicações de favelas (LIMA, 1989, BRUM, 2006). 15 Órgão ligado à Igreja Católica e fundado em 1947 para atuação em favelas. Para um debate mais aprofundado sobre a entidade, ver LEEDS & LEEDS, 1978, RIOS, 1986. 16 Prática que remonta ao estado da Guanabara, cujo órgão responsável por esse reconhecimento era sua Secretaria de Serviços Sociais (DINIZ, 1982).

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2, que embora não fosse credenciada junto ao poder público, passou a ter um aumento

gradual de sua base de apoio17 (idem).

Essa cisão marca uma reorganização da Faferj, sendo que essa dissidência

interna priorizaria uma atuação baseada em uma maior cobrança em cima das

autoridades e de representantes do Estado, postura justamente contrária à adotada pela

“Faferj oficial” (BRUM, 2006). Porém, é preciso ter em mente que os atores políticos

que se ligariam ao “chaguismo” envolvidos nesse processo ainda se mantinham atuantes

e possuidores de partidários, o que os coloca como mais um agente disputando espaços

de atuação e implementação de propostas políticas concernentes às favelas.

No tocante à administração municipal, podemos destacar a criação da Secretaria

Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS) em 1979, durante o governo de Israel

Klabin (1979-1980). A SMDS foi criada perante um acordo da prefeitura com o Fundo

das Nações Unidas para a Infância (Unicef), com o objetivo de atuar privilegiando as

áreas ligadas à saúde, educação, saneamento e regularização da propriedade (BURGOS,

1998: 46). Klabin também criou o Fundo-Rio, que seria gestado pela SMDS e teria seus

recursos aplicados no desenvolvimento da cidade, devendo, no entendimento do

prefeito, concentrar especial atenção nas favelas (GONÇALVES, 2010: 201). A

secretaria chegou a realizar, em 1981, um projeto piloto na Rocinha baseado em três

subprogramas: educação comunitária, saneamento básico e ações preventivas de saúde.

Também fazia parte da abordagem da SMDS a participação comunitária, bem como o

envolvimento dos moradores na execução das propostas, como uma forma de obtenção

de renda para os mesmos (BURGOS, 1998). Contudo, a atuação da secretaria passa a

ser alvo de algumas críticas, presentes nos jornais de grande circulação do período, que

a caracterizavam como uma espécie de “prefeitura à parte”, voltada exclusivamente para

17 Segundo Eli Diniz (1982: 145), em pesquisa realizada entre 1981 e 1982 pela qual foram entrevistados presidentes de 103 associações de favelas, 41% destas estavam ligadas à Faferj 1; 27% à Faferj 2; enquanto 32% se diziam independentes.

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as favelas, o que geraria uma situação na qual esses espaços seriam pensados como fora

da realidade urbana e, por isso, da administração municipal regular. Outro elemento

observado nessas críticas seria a urbanização, abordagem presente nas intenções do

órgão municipal e que poderia significar um reconhecimento legal para as favelas

(GONÇALVES, 2010).

Após a reforma que extingue o bipartidarismo em 1979, um novo desenho do

quadro político vai ganhando consistência. Seus contornos são fundamentais para se

entender o resultado final das eleições de 1982, e, dentre seus aspectos, podemos

destacar que, mesmo com a continuidade das antigas siglas, menos da metade dos

eleitores se mantiveram fiéis a elas. Isso pode ser atribuído à conjugação de dois

elementos: um quadro de ampla insatisfação com o governo e a questão do poder

decisório do voto no primeiro pleito para o governo estadual em 17 anos (SOUZA,

LIMA JUNIOR & FIGUEIREDO, 1985).

Com relação à política nacional, em um primeiro momento, a reforma de 1979

impede o choque entre as facções internas do MDB, que passa a ter o predomínio dos

membros ditos “combativos” devido à migração do grupo “chaguista” para o recém-

criado Partido Popular (PP). No entanto, a tensão entre esses dois grupos acabaria por

ocorrer mais à frente, com a reincorporação pelo agora Partido do Movimento

Democrático Brasileiro (PMDB)18, dos partidários de Chagas Freitas, motivada por

considerações do governo federal ante as eleições municipais e estaduais previstas para

1982. Essa reincorporação, inclusive, levaria a uma migração de políticos oposicionistas

do PMDB, esvaziando-o e intensificando sua pecha de identificação com o

“chaguismo”, em um contexto em que a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de

18 Partido fundado em janeiro de 1980 para suceder o MDB com a extinção do bipartidarismo pelo Congresso Brasileiro em novembro de 1989. Para mais informações, consultar o verbete online do DHBB Partido do Movimento Democrático (PMDB), em http://www.fgv.br/CPDOC/BUSCA/Busca/BuscaConsultar.aspx.

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Janeiro é vista pela população como mera ratificadora do poder executivo estadual,

perante uma população cada vez mais insatisfeita com Chagas Freitas e seu grupo

político (SOUZA, LIMA JUNIOR & FIGUEIREDO, 1985).

Deve ser chamada a atenção para o fato de que a junção do PP ao PMDB não

ocorreu de forma pacífica, uma vez que o diretório fluminense deste não aceitava a

fusão e tinha rompido com Chagas e seus partidários. Na verdade, o episódio retrata

uma disputa de poder, já que os próprios “chaguistas” impuseram restrições a sua ida

para o PMDB, mas apenas como uma estratégia para garantir que, caso a união

realmente ocorresse, teria que ser de acordo com a garantia de seus interesses

(SARMENTO, 2008).

Esse foi o pano de fundo político sobre o qual se disputaram as eleições de 1982.

Através da conjugação desses elementos, é possível observar o uso das máquinas

partidárias e o posicionamento de antigas lideranças, assim como o reingresso na cena

pública dos que retornaram com a anistia. Em um primeiro momento, duas máquinas

políticas chamam atenção: a primeira, conjugando os nomes de Chagas Freitas e seu

candidato à sucessão, Miro Teixeira, e o PMDB. A segunda, Amaral Peixoto e Moreira

Franco, com o Partido Democrático Social (PDS)19, tendo o respaldo do governo federal

(SENTO-SÉ, 1999).

Também deve ser mencionada a disputa em torno de elementos simbólicos que

remetessem ao período anterior a 1964, como a legenda do Partido Trabalhista

Brasileiro (PTB) e a herança varguista. Ironicamente, vemos o lançamento da

candidatura da lacerdista e arenista Sandra Cavalcanti pelo PTB, que inicialmente

19 Segundo verbete online do DHBB: “Partido político nacional fundado em janeiro de 1980 para suceder à Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido governista extinto com o fim do bipartidarismo em 29 de novembro de 1979. Fundiu-se em abril de 1993 com o Partido Democrata Cristão (PDC), dando origem ao Partido Progressista Reformador (PPR).” Consultado em http://www.fgv.br/CPDOC/BUSCA/Busca/BuscaConsultar.aspx.

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acabou liderando as intenções de voto20. Na visão dos correligionários do PMDB,

Cavalcanti procuraria evitar a nacionalização do debate na corrida eleitoral devido às

suas ligações com o regime militar, que era amplamente desaprovado pela população do

Rio de Janeiro à época. Essa configuração acabaria por dotar Miro Teixeira de uma aura

oposicionista, um fator positivo, caso se leve em consideração a baixa popularidade do

governo federal e dos partidários do golpe, e que viria bem a calhar com possíveis

inconvenientes que poderiam decorrer da ligação entre Miro e Chagas. A posterior

ascensão de Teixeira nas pesquisas parecia confirmar o acerto das teses pemedebistas

(SARMENTO, 2008).

No entanto, nenhum dos atores envolvidos na disputa eleitoral pareceu levar em

conta o retorno de Brizola ao país e à prática política, além dos possíveis espaços

abertos que poderiam ser encampados por essa antiga liderança trabalhista (idem). O

retorno de Leonel Brizola do exílio ocorreu em setembro de 1979, tendo sido a Lei da

Anistia aprovada pelo Congresso Nacional em 28 de agosto do mesmo ano. Brizola

passou a disputar o direito do uso da legenda do PTB com Ivete Vargas21 e seu grupo

político, e acabou derrotado. Esse fato o levou a criar o Partido Democrático Trabalhista

(PDT), cujo registro definitivo foi concedido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em

novembro de 1981. Em seus primeiros momentos, esse novo partido chegou a ser

influenciado pelo modelo do socialismo europeu e filiado à Internacional Socialista22.

Sobre a disputa eleitoral que se anunciava, os próprios “chaguistas” viriam a não

desejar a nacionalização do discurso na disputa com Brizola, mais solidamente

20 Leonel Brizola, político gaúcho com fortes ligações com o PTB e com Getúlio Vargas e João Goulart, participou da disputa pelo uso do legado partidário de Vargas, mas não foi bem sucedido e acabou por criar sua própria legenda, o Partido Democrático Trabalhista (PDT) (SENTO-SÉ, 1999). 21 Sobrinha-neta de Getúlio Vargas e detentora de mandatos no legislativo federal pelo PTB nos anos 1950 e 1960. 22 Tal situação chegou a incomodar algumas de suas correntes internas mais identificadas ao trabalhismo getulista. Para mais informações sobre o PDT e sua relação com Brizola, ver SARMENTO, 2008 e o verbete do DHBB referente ao Partido Democrático Trabalhista (PDT), a ser consultado em http://www.fgv.br/CPDOC/BUSCA/Busca/BuscaConsultar.aspx, consultado em 23/11/2011.

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identificado como opositor aos militares e herdeiro da tradição varguista. Um outro

fator que se revelaria fundamental do ponto de vista estratégico relacionava-se aos

novas procedimentos de comunicação, em rádio e televisão. Apesar de, em situações

anteriores, Chagas Freitas ter demonstrado bom uso de meios de comunicação para a

construção de resultados eleitorais positivos, sobretudo através de seus jornais, seu

grupo não se mostrou tão bem adaptado e cônscio, ao contrário de Brizola, da

importância desses veículos de mídia, conforme mostra a análise de seu desempenho

nos debates neles realizados (ibidem). A importância desses canais de comunicação é

ressaltada pelos cerceamentos à propaganda eleitoral presentes na Lei Falcão23

(SENTO-SÉ, 1999). Outro elemento de desestabilização que contribuiu para a

derrocada da candidatura de Miro Teixeira foi a crise que se instalou entre ele e a

máquina “chaguista” com a aproximação do candidato com os chamados “Luas

Pretas”24, o que resultou na retirada de apoio de Freitas. O caminho tendia a uma

polarização contra Chagas Freitas e sua imagem associada ao governo, e a candidatura

de Brizola acaba recebendo apoio de nomes simbólicos da esquerda brasileira, como

Luís Carlos Prestes e Francisco Julião (idem).

A vitória de Leonel Brizola em 1982 pode ser explicada, dentre outros fatores,

pela imagem de aversão e descrença daquilo que poderia ser identificado como

“governo” pelo eleitorado. Essa postura se intensificava em escala local, gerando

resultados negativos concretizados no repúdio à figura de Chagas Freitas e ao que se

relacionasse a ela, o que acabou ocorrendo com o candidato Miro Teixeira (SOUZA,

LIMA JUNIOR & FIGUEIREDO, 1985). Nesse caso, a aura em torno da candidatura

23 Modo como ficou conhecida a lei nº 6.339, de 1º de julho de 1976, que estabelecia restrições à propaganda político-partidária a fim de se evitar críticas ao regime militar. 24 Grupo de intelectuais e militantes de esquerda que se vincularam ao PMDB e exerceram grande influência sobre o candidato na fase final de sua candidatura, quando houve uma tentativa de desvinculação da figura de Chagas Freitas e de seus significados para o eleitor fluminense (MOTTA, 2004).

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de Brizola foi sendo impregnada por aspectos de novidade no imaginário político dos

eleitores, abrindo um campo de possibilidades que negassem o viés percorrido pela

esfera política a partir de 1964 (SENTO-SÉ, 1999). Mesmo os atores que antes se

identificavam como oposicionistas foram suplantados pelo candidato do PDT. Os

setores de esquerda tradicionais, que se viam como os legítimos representantes das

aspirações populares, foram amplamente superados pela campanha do candidato

Brizola. Tal situação tem como um de seus meandros explicativos o fato desses mesmos

setores não terem conseguido escapar da interpretação do corpo eleitoral, que associava

tudo o que era relacionado ao regime, incluindo seus opositores, a uma página que não

deveria ser apenas virada, mas superada, da história política brasileira (SARMENTO,

2008).

O fenômeno que representou o crescimento da candidatura de Brizola teve como

um de seus agentes impulsionadores o engajamento de cidadãos tradicionalmente

afastados do fazer político (idem), em uma disputa que revela uma intensa mobilização,

que não foi favorável a todos os partidos, do eleitorado (SOUZA, LIMA JUNIOR &

FIGUEIREDO, 1985).

Sobre o resultado das eleições e seus significados (idem: 11):

“A manifestação das urnas infligiu fragorosa derrota a Miro Teixeira e ao PMDB, relegando-os a um modesto terceiro lugar no conjunto da votação estadual, com menos de 20% do total apurado. Os vencedores indiscutíveis foram Brizola e o PDT, com 31,4% dos votos, seguidos por Moreira Franco e o PDS, com 28,1%. O quarto lugar na ordem das preferências do eleitorado coube à Sandra Cavalcanti e ao PTB, com cerca de 10% dos votos. Lysâneas Maciel e o PT chegaram em último lugar, com menos de 3% dos votos. Deve-se também acrescentar que a derrota do PMDB foi agravada pelo sacrifício dos candidatos mais expressivos de sua ala independente, com perfil ideológico mais nítido. Assim, embora o grupo ‘chaguista’ perdesse o comando do voto oposicionista no estado, não o perdeu sobre o partido, cabendo a seus candidatos significativa parcela dos cargos conquistados pelo PMDB nos legislativos estadual e federal”.

O primeiro governo Brizola (1983-1986) é muitas vezes visto como um

diferencial no que diz respeito às relações entre o poder público e as favelas. Em sua

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administração, foram criados programas que mostravam um direcionamento contrário às

políticas de remoção, como o “Cada Família um Lote”, que visava regularizar títulos de

propriedade, e o Programa de Favelas da Cedae (PROFACE), que buscava melhorar o

acesso a redes de água e esgoto (PANDOLFI & GRYNSZPAN, 2002, GONÇALVES,

2010). No tocante às associações de moradores, estas passaram a se relacionar de forma

mais direta com a administração pública, chegando, inclusive, a se responsabilizar pela

gestão de recursos financeiros, fator muitas vezes colocado como uma das causas da

queda de legitimidade das associações de moradores, que ocorrerá gradativamente a

partir da década de 198025 (BURGOS, 1998). Outro diferencial do governo Brizola foi a

adoção de uma nova diretriz em sua política de segurança pública, visando ao respeito

aos direitos humanos e, inclusive, ao da inviolabilidade das moradias localizadas em

favelas, postura que irá gerar uma série de acusações de “conivência com a

criminalidade”26. O governador eleito em 1982 deixa claro qual seria sua postura em

relação às favelas logo no princípio de seu governo, conforme entrevista de 1983 citada

pelo historiador Mário Brum: “Quando se considera a favela algo de incômodo, algo

que tem de terminar, algo que tem que ser removido, algo que é uma ferida no rosto

desta linda cidade, pouca importância se dá ao que ela deva merecer, e na hora da

distribuição do investimento ninguém se lembra dela” (BRIZOLA Apud BRUM, 2006:

108)27.

A década de 1980 é um período de crise econômica para o Brasil. Em 1980 e

1981, o país apresentou a inflação anual de 110,2% e 95,1%, respectivamente, sendo

25 Outros fatores compõem essa queda de legitimidade, como a própria ação do tráfico que será abordada posteriormente. 26 Para uma análise das políticas de segurança adotadas no primeiro governo Brizola, ver HOLLANDA, 2002. 27

Contudo, deve-se atentar para algumas críticas feitas, como é o caso das que fez Marcelo Burgos, a certos aspectos dessa administração estadual, que não conseguiu superar a divisão simbólica entre os mais financeiramente abastados e os desprivilegiados, além de canibalizar a máquina chaguista e transformar as associações de moradores em braços do Estado, o que acabou por reduzir sua função mobilizatória de reivindicações (BURGOS, 1998).

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34

que “paralelamente, inaugurou-se o crescimento negativo do PIB real na história

brasileira” (CYSNE, 1994: 257). Tal panorama chega a caracterizar o princípio dos anos

1990, agregando novos fatores à situação, agora no campo da política, como a descrença

na máquina pública devido a uma série de questionamentos sobre a ética no fazer

político28 (SILVA, 1994).

Inserida no contexto nacional mais amplo, observamos, igualmente, uma

situação de crise econômica no estado do Rio de Janeiro. A produção industrial da

região fluminense29 entre 1970 e 1993 apresentou um percentual de crescimento de

143,1%, enquanto São Paulo e Minas Gerais obtêm um resultado de, respectivamente,

253,56% e 405,02%, sendo o total nacional de 300,73% (OSÓRIO, 2005: 25). Entre

1985 e 2002, segundo dados do Ministério do Trabalho, o Rio de Janeiro apresentou o

pior desempenho sobre a produção de emprego nas indústrias de transformação e

extrativa mineral, com uma perda de 41,19% (idem: 26). Deve ser igualmente

mencionada a falência da prefeitura do Rio de Janeiro ocorrida durante o governo de

Saturnino Braga (1986-1988), à época filiado ao PDT e apoiado por Leonel Brizola30.

Desse modo, devemos situar a problemática econômica fluminense desse

período em um quadro mais amplo de crise que afetou a economia brasileira, não

devendo ser desconsiderado período turbulento pelo qual passava a própria economia

mundial. Contudo, é possível perceber um esforço de construção de significados acerca

da “crise do Rio de Janeiro”. Segundo Marly Motta (2004: 55-56): “Uma linha de

análise, privilegiada por políticos, jornalistas e empresários, enfatiza que a mudança da

capital federal para Brasília em abril de 1960 resultou em um esvaziamento político,

28 O início da década de 1990 foi marcado pelo governo da República de Fernando Collor de Mello (1990-1992), primeiro presidente democraticamente eleito após a ditadura militar (1964-1985), que terminou sob acusações de corrupção e com a impugnação do mandato do então presidente. 29 Já estão considerados os dados sobre o antigo estado da Guanabara até 1975. 30 Para um entendimento mais aprofundado da questão da falência da administração municipal ver BURGOS, 1992.

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35

cultural e econômico do Rio de Janeiro”. Ou seja, trata-se de uma visão embasada por

uma memória da capitalidade, na qual a fase áurea da vida política e cultural do Rio de

Janeiro é vista como o período em que a cidade foi capital federal e, de 1960 a 1975,

estado da Guanabara31. Após a fusão com o estado do Rio de Janeiro, ocorrida em 1975,

e a transformação do município do Rio de Janeiro em capital do estado, a cidade, de

acordo com os partidários dessa visão, teria sofrido sucessivas perdas, além de uma

ampla desvalorização de seu papel político no escopo nacional (MOTTA, 2000 e 2004).

Assim, temos uma visão específica sobre as causas da crise que o Rio de Janeiro

enfrentaria a partir do final dos anos 1970, atravessando a década de 1980. Mais uma

vez, friso a necessidade de compreensão dessa situação perante um quadro explicativo

mais amplo. Entretanto, essa interpretação construída a partir da memória da

capitalidade não deve ser desconsiderada, nem aceita sem críticas, uma vez que se trata

de um importante elemento para o entendimento do campo político do Rio de Janeiro,

no que diz respeito, dentre outros fatores, a seus agentes e suas formas de se relacionar

com a política nacional. Essa breve caracterização do que seria visto como “a crise do

Rio” justifica-se para uma apresentação de sua problemática, pois um outro elemento,

de interesse para minha análise, será considerado um de seus fatores a partir da década

de 1980 e, de forma mais acentuada, no início dos anos 1990: a violência urbana32.

Nesse marco temporal, teremos o fenômeno no qual a imagem associada ao Rio de

Janeiro gradativamente deixa de ser a da “cidade maravilhosa”, caracterizada por uma

31 Criado em 1960 pela lei nº 3. 752, conhecida como Lei San Tiago Dantas, o estado da Guanabara foi a solução encontrada para a transferência da capital para Brasília. O ato foi antecedido por uma ampla discussão entre setores da sociedade do Rio de Janeiro que viam a perda do status de capital federal como um fator prejudicial para o futuro da cidade. Em 1975, o estado da Guanabara se funde com o estado do Rio de Janeiro, tornando-se município do Rio de Janeiro e capital do estado (MOTTA, 2000). 32 Há certos olhares que relacionam a questão da violência com a crise econômica, a exemplo da transferência de empresas de regiões localizadas no raio de ação de quadrilhas de traficantes de drogas, como a Glaxo Welcome, do ramo farmacêutico, cujo certo funcionário de seu corpo administrativo alegou que o fechamento de sua unidade próxima à favela do Jacarezinho ocorreu devido à violência (SILVA, 2008: 99). Entretanto, esse tipo de transferência possui outros fatores causais, como organização produtiva, vantagens fiscais, dentre outros (idem).

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36

sociabilidade positiva, afabilidade de sua população, inovações culturais e

cosmopolitismo, passando a assumir sua face de “cidade partida”33 (LEITE, 2000).

No entanto, ao falarmos sobre a temática da violência na cidade do Rio de

Janeiro, devemos ter em vista uma abordagem histórica. Essa questão sempre esteve

presente no cotidiano de discussões da cidade, e sua associação às favelas pode ser

observada ainda nos primórdios do século XX34. A partir da década de 1970, a dinâmica

da violência apresenta novos desenhos, não apenas com relação às práticas e aos

sujeitos a ela relacionados, mas no tocante ao próprio tratamento dado ao tema pelo

poder público. No início dos anos 1970, o debate sobre esse assunto começa a chamar

atenção para o jogo do bicho, tendência que se estabiliza nos anos 1980, período no qual

o traficante de drogas consolida seu destaque nas discussões referentes ao tema da

violência (BURGOS, 1998).

Estudos sociológicos sobre o período apontam mudanças nos padrões de

criminalidade urbana entre meados e final dos 1970, em São Paulo, Belo Horizonte e

Rio de Janeiro. Esses novos padrões observados teriam como características o aumento

generalizado de roubos e furtos a residências, veículos e transeuntes; o maior grau de

organização social do crime; o incremento da violência nas ações criminais; e o

aumento das taxas de homicídio. Segundo Kant de Lima, Misse e Miranda, “essa

mudança de padrão se consolidaria e se expandiria nos anos 1980, com a generalização

do tráfico de drogas, especialmente da cocaína, e com a substituição de armas

convencionais por outras, tecnologicamente sofisticadas, com alto poder de destruição”

(KANT DELIMA, MISSE & MIRANDA, 2000: 49). 33 A expressão “cidade partida” popularizou-se a partir do livro homônimo do jornalista Zuenir Ventura (1994) e alude, pelo senso comum, à separação, simbólica e espacial, entre as favelas e o “asfalto” a partir, sobretudo, da violência. 34 O historiador Romulo Costa Mattos (2004: 36) menciona uma reportagem publicada pelo Correio da Manhã, em 26 de maio de 1902, que caracteriza o morro da Providência, objeto a partir do qual se construiu o “mito de origem” das favelas (VALLADARES, 2005), da seguinte forma: “Lugares existem no Rio de Janeiro onde não aparece sombra de polícia. Um deles é o morro da Providência, onde os celerados de todas as espécies campeiam à vontade, praticando toda a sorte de perversidades”.

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37

Focando o olhar no Rio de Janeiro, sobre a questão da segurança, ao final da

década de 1970, observa-se uma crise interna nas polícias civil e militar, além da

caracterização, em relatórios de organizações internacionais, da baixada Fluminense

como uma das áreas urbanas mais violentas do mundo. A sociedade encarava tal

situação de forma a considerar a atuação dos órgãos de segurança como uma agravante

para esse panorama, além de revelar uma relativa aceitação para a pena de morte como

uma solução para o problema. Desse modo, temos o fim da ditadura militar como um

período no qual a percepção sobre a violência se revelaria mais aguda e seu debate se

institucionalizaria, com a criação, avalizada pelo ministro da Justiça, Petrônio Portella,

de um grupo de trabalho para estudar e propor soluções para o problema (idem).

Esse panorama teria como outro elemento uma ação mais consolidada de

quadrilhas de traficantes de drogas nas favelas, embora se deva chamar atenção para o

fato de que, até meados da década de 1970, o jogo do bicho era o principal controlador

do mercado informal de produtos ilegais nessas áreas, tendo o tráfico de drogas passado

a constituir um agente de gradativo controle a partir do final dessa década (MISSE,

1997). Através da análise de jornais dos anos 1970, Michel Misse afirma que, desde os

primeiros anos desse decênio, é possível perceber a temática da insegurança se tornando

uma pauta crescente na página desses periódicos. Porém, o sociólogo usa como dado

para ilustrar a mudança no padrão da criminalidade a quantidade de acusações por furto

e roubo por menores infratores. Em 1975, para cada 100 mil habitantes da cidade, havia,

em números aproximados, cinco menores acusados por roubo e 17 por furto. Em 1980,

os dois casos se aproximam do número dez; em 1985, o número de acusações por roubo

ultrapassa em pouco a casa dos 20, enquanto por furto temos um resultado próximo a

dez (idem: 96)35.

35 Esses dados indicam a mudança do padrão de um tipo de atuação criminosa, uma vez que o roubo indica maior emprego de ameaça e violência, podendo ser igualmente interpretado como um possível

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38

O início da década de 1990 é marcado por acontecimentos que obtiveram grande

visibilidade da opinião pública, inclusive em esfera internacional: os arrastões na orla da

zona sul, em 1992, e as chacinas da Candelária36 e de Vigário Geral37, em 1993. Esses

fatores fazem parte do que Kant de Lima, Misse e Miranda chamam de “a crise de

segurança pública do Rio de Janeiro (1991-1994)”, caracterizada pela expansão da

atuação de quadrilhas de traficantes de drogas e pela sua repercussão perante a

sociedade, além do abalo da representação da cidade no imaginário nacional (2000: 57).

Essa situação teve como reflexo não apenas o surgimento de uma visão sobre a

necessidade de uma repressão policial mais sólida, mas um contraponto crítico a essa

tomada de posição, exemplificado em pesquisa realizada pelo Instituto de Estudos da

Religião (ISER)38, que teve como objetivo a análise de indicadores de segurança,

incentivada pela inexistência de dados oficiais sólidos, entre os anos de 1985 e 1992.

Outras iniciativas oriundas desse quadro de tensão foi o surgimento de movimentos

como o Viva Rio e o Disque-Denúncia39 (idem).

Outra característica desse período é a instabilidade política que marcou o final

do segundo governo estadual de Leonel Brizola (1990-1994), com amplas denúncias de

conivência com o crime organizado e com o tráfico de drogas, feitas sobretudo pela

grande imprensa, devido às diretrizes de sua política de segurança pública, que visava a

um maior foco no respeito aos direitos humanos (SOARES, 1996). Sobre os embates

indicador de acesso a armamentos. Também não deve ser ignorada a fonte utilizada para obtenção desse resultado, os menores de idade, tendo em vista a utilização crescente de jovens e menores pelo tráfico de drogas a partir desse mesmo período (ZALUAR, 2004). 36 Ocorrida na madrugada de 23 de julho de 1993, nas proximidades da igreja da Candelária, no coração do Centro do Rio, resultou na morte de oito pessoas, seis delas menores de idade, e contou com a participação de policiais militares. 37 Seu acontecimento se deu em 29 de agosto de 1993, apenas poucos meses após a chacina da Candelária, e resultou na morte de 21 moradores da favela de Vigário Geral. 38 Instituição fundada em 1973, promotora de estudos e pesquisas sobre as questões dos direitos humanos e da democracia. Para mais informações, ver http://www.iser.org.br. 39 Um panorama semelhante pôde ser observado em São Paulo, poucos anos depois do caso do Rio de Janeiro, resultando no movimento “São Paulo Sem Medo”. Assim como no caso do Viva Rio, a iniciativa paulista foi marcada pela participação de diferentes setores da sociedade civil visando a uma maior participação na agenda de formulação de políticas públicas (KANT DE LIMA, MISSE & MIRANDA, 2000).

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39

entre os significados acerca da problemática da violência nesse período, podemos citar

Luiz Eduardo Soares, que através de dados levantados pela equipe de pesquisa do ISER,

coloca que a situação não possuiria as cores tão carregadas que a imprensa apresentava.

(idem: 252):

“Os números de 1993 eram eloquentes: assim que o segundo governo Brizola assumiu, em 1991, diminuiu significativamente, na Baixada Fluminense, a criminalidade contra a pessoa, sobretudo aquela mais grave: o homicídio doloso. Foram presos 300 policiais ligados a esquadrões da morte. (...) de 1991 a 1993, os indicadores, particularmente aqueles relativos às formas mais graves de criminalidade, demonstravam estabilização. Os números eram muito elevados, a situação era evidentemente grave. No entanto, estávamos longe do caos, da perda de controle, da escalada vertiginosa que a mídia proclamava” (grifos meus).

O fim dessa administração estadual é marcado pela Operação Rio, implementada

no final de 199440.

A dinâmica da violência a partir do final dos anos 1970, tendo como principal

período de consolidação a década de 1990, atua, dentre outros fatores, como uma

atualização da forma de problematizar as favelas. O significado desses espaços nesse

período passa a ser filtrado pela ótica da violência urbana e pela preocupação com o

“transbordamento” desta para a “cidade formal”. A “violência” torna-se então um

elemento determinante para o planejamento de políticas para esses espaços, não

necessariamente ligadas à segurança pública, uma vez que a obtenção de equipamentos

urbanos e a implementação de diversos projetos ligados ao Terceiro Setor são

justificadas justamente pela questão da violência (BURGOS, 1998).

Contudo, nesse período, temos a consolidação da adoção, por meio dos principais

jornais e veículos de comunicação, de uma estratégia discursiva marcada por uma certa

histeria e pela suposta confirmação da condição de “cidade partida” da outrora “cidade

40 A Operação Rio foi a ocupação pelas Forças Armadas, em conjunto com as polícias civil e militar, de áreas consideradas perigosas, dando-se especial atenção às favelas, nos anos de 1994 e 1995. Seu pano de fundo foi a eleição presidencial de 1994, à qual Leonel Brizola concorreu e obteve uma margem inferior a 4% dos votos. Devido a essa disputa, Leonel Brizola desincompatibilizou-se do cargo, assumindo em seu lugar Nilo Batista. Para uma discussão mais ampla dessa ocupação, ver: COIMBRA, 2001.

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40

maravilhosa”, criando um campo fértil para generalizações que diluem diferenças de

espaço e tempo no que diz respeito às favelas e à temática da violência. Desse modo,

esse tipo de visão, caracterizada por Marcia Leite (2001) como metáfora da guerra,

possibilita, dentre outras similares, a caracterização do espaço da cidade formal e legal

como que invadido pela marginalidade e pelo crime, que teriam as favelas como

origem, e, através de uma posição radicalizada, relevaria a violação de direitos de

moradores de favelas em prol da “preservação da ordem” (LEITE, 1997 e 2001).

Dentro desse contexto de significação das favelas, surge uma política para essas áreas,

sob responsabilidade da administração municipal, que se coloca como uma “novidade”:

o programa Favela-Bairro. Sua implementação se dá na primeira gestão de César Maia

(1993-1996), e seu aspecto de “novidade”, segundo o discurso dos responsáveis pela

proposta, seria a tentativa de incorporar a favela como “parte da cidade”, através do

acesso a serviços públicos, principalmente (GONÇALVES, 2010: 244). Essa tendência

pode ser observada na Lei Orgânica e no Plano Diretor Geral da Cidade (1992), nos

quais há um reconhecimento das favelas como parte integrante da cidade.

As políticas públicas, no âmbito municipal no qual o programa se insere, passam a ser

elaboradas tendo como pressuposto a concepção de que a violência que assola tais áreas

resultaria, em grande parte, de uma “ausência do Estado” (BRUM, 2006). Desse modo,

a proposta surge em um contexto de redefinição do papel da prefeitura, cuja fase

anterior pode ser caracterizada por uma atuação desconectada da atenção aos direitos

civis (BURGOS, 1998). Seus pressupostos são o aproveitamento do esforço coletivo

feito anteriormente por moradores, a obtenção de adesão destes e a introdução de

valores urbanísticos da “cidade formal” (BRUM, 2006, GONÇALVES, 2010)41. No

41 Seu início ocorreu em 1994, como um projeto piloto na favela do Andaraí, sendo depois estendido a outras 16 favelas. Em sua segunda fase, que contou com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), chegou a planejar atuar em 130, mas só atingindo 46 (GONÇALVES, 2010: 246).

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41

tocante à questão da violência, a proposta não pretendeu em nenhum momento interferir

diretamente nessa temática, sendo interessante, porém, observar discursos de técnicos

do programa de que, ao abrir vielas e investir em acessibilidade, as favelas perderiam

suas características de “enclave urbano”, o que, segundo essa visão, desestimularia a

ação das quadrilhas de traficantes no local42.

A despeito do tratamento dado às favelas pelo Plano Diretor de 1992, ao longo dos anos

1990, temos a associação das favelas à ação do tráfico, com a adoção, em muitas

situações, de políticas de segurança pública que privilegiavam confrontos armados, sem

atentar para a questão dos direitos dos moradores dessas áreas. Como exemplo, podem

ser citadas as “premiações por bravuras” implementadas pelo secretário de segurança do

governo estadual de Marcello Alencar (1995-1999), o general Nilton Cerqueira43

(KANT DE LIMA, MISSE & MIRANDA, 2000). Essa forma de identificação das

favelas com a questão da criminalidade se perpetuará ainda durante a década de 2000,

se configurando como um importante elemento da relação entre as favelas e as cidades.

Propostas que visem à desconstrução desse olhar e à construção de representações

positivas sobre os moradores das favelas surgirão nesse mesmo período, muitas

relacionadas à atuação de Organizações Não Governamentais (ONGs), que também

42 Porém, tal interpretação se mostrou infundada, uma vez que os traficantes passaram a erguer muros e barricadas nas novas vias abertas, além do fato de técnicos terem que, em diversas ocasiões, negociar com quadrilhas para exercer suas atividades (GONÇALVES, 2010: 247). 43 Trata-se de uma premiação em dinheiro criada no início do mandato de Alencar para policiais responsáveis por “atos de bravura”, muitas vezes relacionados aos registros policiais de “resistência com morte do opositor – auto de resistência”. A medida foi amplamente criticada por um grupo de pesquisa ligado ao Instituto de Estudos da Religião (Iser), assim como parte da literatura em ciências sociais sobre o tema. Dados referentes ao número de “opositores mortos” e civis acidentalmente feridos em confrontos resultantes da ação policial subiram, respectivamente, de 155 para 358 e de 48 para 91, entre os anos de 1993 e 1995. Também em 1995, o “índice de letalidade” – número de opositores mortos divididos pelo número de opositores feridos resultantes de confrontos armados em incursões policiais – observado no Rio de Janeiro é de 2,7, menor do que em cidades como Buenos Aires (1,5) e São Paulo (1,9). Esse mesmo índice, no Rio de Janeiro, era de 1,7 entre janeiro e abril de 1995, tendo saltado para 3,5 entre maio de 1995 e julho de 1996, período de implantação da premiação, que ficou conhecida como “gratificação faroeste” (CANO, 1998: 209, 211-212).

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42

terão os anos 1990 como período de consolidação de suas ações nesses locais

(PANDOLFI & GRYNSZPAN, 2002)44.

44 O presente estudo não considerou a postura governamental presente nas Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), programa adotado pelos dois governos estaduais de Sérgio Cabral Filho (2006-2010, 2010-2014) a partir de 2008, que tem as premissas do policiamento comunitário como base. Essa escolha se deu pelo fato de que os produtos de memória aqui debatidos foram afetados, no que diz respeito às abordagens das favelas pelos planejamentos de segurança pública, pela conjuntura de violência apresentada e pela forma como essa tem sido abordada pelas administrações públicas, que apresentaram um olhar diferente ao presente nas UPPs.

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43

Capítulo I

O morro do Borel e a memória material: percepções e escrita do passado a partir

de um relato sobre a UTF

O objetivo deste capítulo é debater os significados de uma memória material,

entendida como uma memória registrada em suporte físico, sobre o morro do Borel a

partir do livro “As lutas do povo do Borel”, de autoria de Manoel Gomes. Desse modo,

será realizada uma reflexão sobre as formas de registro desse discurso sobre o passado,

o sentido de se abordar o grupo cuja história é relatada, bem como a apresentação dos

diferentes atores e interesses em disputa que permearam seu processo de elaboração. A

obra, de 73 páginas e editada pela livraria e editora Muro, ligada ao Partido Comunista

Brasileiro (PCB), expõe as atividades da União dos Trabalhadores Favelados (UTF),

entidade à qual o autor pertenceu. Possui, igualmente, prefácio de Luiz Carlos Prestes.

A UTF foi uma das primeiras entidades representativas de moradores de favelas a

apresentar uma proposta de articulação de associações de moradores desses espaços.

Influenciada pelo Partido Comunista, surgiu em 1954, como resultado de uma ação de

despejo movida contra os moradores do Borel. O objetivo da União foi a mobilização

pela permanência e reivindicação por melhores condições de moradia, através da

unificação de questões relativas a habitação e emprego (LIMA, 1989).

Também através dessa associação, a UTF travou contato com o advogado

Antoine de Magarinos Torres, figura central para a definição de objetivos e

reivindicações, assim como na organização de atos de protesto, passeatas e vigílias. Sua

importância para a organização é tamanha que seu retrato estampa a capa do estatuto da

União. Com a ditadura de 1964 e o contexto de repressão política que se instala, a UTF

é obrigada a mudar seu nome para União dos Moradores do Morro do Borel (UMMB).

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44

O surgimento das favelas consolidadas

As mudanças ocorridas a partir do final dos anos 1970 marcarão o início de uma

nova conjuntura para o relacionamento entre as favelas e as cidades, bem como o modo

em que aquelas passarão a ser pensadas pelo poder público, cuja abordagem para tais

espaços começará a ser redimensionada em uma postura que apresentará maior solidez a

partir da década de 1990. Desse modo, nota-se o aparecimento, no léxico das

autoridades governamentais, de uma nova categoria para tratar essas áreas, a favela

consolidada, conforme apontado por Mariana Cavalcanti (2007). O que marcaria essa

nova denominação seria a maior presença de construções em alvenaria, maior oferta por

serviços públicos em contraponto à crescente presença e atuação do tráfico de drogas,

bem como as consequências decorrentes desse convívio.

Nos anos 1990, notamos a adoção mais sistemática de uma abordagem

governamental, iniciada na administração estadual de Leonel Brizola (1983-1987), que

busca uma aproximação maior com as favelas no que diz respeito a políticas que não

mais objetivem sua erradicação, além de uma nova abordagem policial para esses

espaços. Contudo, essa busca ocorreu em paralelo à caracterização desses locais por

setores da sociedade, a exemplo de jornais de grande circulação, que os viam como se

fossem de domínio exclusivo do narcotráfico, quando não polo irradiador. Essa

caracterização acabou por reforçar fronteiras espaciais e sociais, gerando uma série de

tensões que afetam percepções sobre essas áreas, à medida que compromete a relação

entre favelas e espaço urbano, tempo, valores pessoais, simbólicos e econômicos,

trazendo consequências para diferentes esferas do cotidiano dos habitantes dessas áreas.

Desse modo, a visibilidade política apresentada pela problemática das favelas dentro da

conjuntura histórica mencionada acima, bem como o planejamento e a execução de

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45

melhorias materiais e urbanísticas em termos das políticas públicas do período, são

embasadas pela visão desses locais como uma ameaça real à cidade e à sociabilidade de

seus moradores.

Em meio a esses fatores, a denominação favela consolidada passa a figurar no

vocabulário de responsáveis pela concepção e execução de políticas públicas voltadas

para essas áreas, mas não como uma categoria construída a partir de um debate

intelectual mais aprofundado, nem como uma noção claramente definida. De uma

maneira geral, uma favela pode ser entendida como “consolidada” quando apresenta

considerável infraestrutura, mercado imobiliário, em sua maioria informal ou ilegal, ou

demais características que a credenciem como Zonas Especiais de Interesses Sociais

(ZEIS)45 (CAVALCANTI, 2007).

Assim, pode-se afirmar que as favelas consolidadas são frutos de uma

conjuntura específica, iniciada na virada dos anos 1970 para 1980, mas que pode ser

mais bem percebida na década seguinte, de um regime diferente de regulação e

apropriação da posse da casa de baixa renda, permeado por fatores conjugados como

crises econômicas, ajustes políticos e o próprio abandono da política das remoções dos

anos 1960 e 1970, além da maior presença e articulação na cena pública de atores

ligados ao Terceiro Setor46 e do surgimento de todo um mercado de projetos sociais.

Portanto, refletir sobre essa noção é um meio de compreender a ruptura na forma de

atuação do poder público no tocante a essas áreas e como essa mudança tem afetado

diferentes rotinas e relações sociais, principalmente as que se referem a seus moradores.

Estes, inclusive, constituem um aspecto importante para o entendimento do processo

espaço-temporal que originou as favelas consolidadas através da narrativa de suas ações

45 Para uma definição do que seriam as ZEIS e sua relação com o planejamento de execuções e intervenções em favelas, ver GONÇALVES, 2010. 46 Uma melhor definição desse campo será feita no quarto capítulo desta tese.

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46

presentes em seus discursos de memória, uma vez que contribuíram para esse cenário

por meio da promoção de modificações espaciais diversas nesses locais (idem).

O meu interesse na discussão sobre a ideia de favela consolidada levada a cabo

por Mariana Cavalcanti se deve a três fatores. O primeiro diz respeito à periodização

histórica na qual se desenvolve o fenômeno observado pela autora. Além da

reorganização do movimento associativo de favelas, articulada à atuação de grupos

opositores à ditadura, assim como o antigo PCB47, o período que se inicia em meados da

década de 1970 revela mudanças com relação a esses próprios espaços. De fato, esses

dois fatores não devem ser considerados isoladamente, uma vez que, certamente, a

retomada do associativismo em novos moldes, de acordo com a caracterização do que

Mario Brum (2006) denominou associativismo de resistência, certamente contribuiu

para a consolidação, seja através da realização de mutirões, seja através da mobilização

por reivindicações de melhorias e acesso a bens de infraestrutura urbana, como

saneamento, eletricidade e rede de água. Essa periodização abrange algumas das

principais mudanças conjunturais que permeiam a forma como as favelas se relacionam

e são percebidas pela cidade, além de influenciarem as formas de mobilização interna e

as relações sociais de seus moradores, contendo, justamente, o processo de elaboração

dos dois produtos de memória que são o objeto de estudo desta pesquisa.

O segundo fator de interesse se relaciona à maior possibilidade de permanência

das favelas no espaço urbano, sinalizada pela nova direção adotada pelas políticas

públicas no que dizem respeito a essas áreas. De meados para o final dos anos 1970,

temos o abandono do programa de remoções em um quadro de falência administrativa e 47 Fundado em 1922, o PCB foi muito presente nas favelas do Rio de Janeiro nos anos 1940 e 1950, com o intuito de formar células de atuação. Um exemplo da disputa entre atores políticos para atuar perante os moradores de favelas é a criação da Fundação Leão XIII (1947), sob a justificativa de “subir as favelas antes que delas desçam os comunistas”, e da Cruzada São Sebastião (1955), ambas ligadas à Igreja Católica e criadas a partir de diferentes arranjos, mas com o intuito de realizar ações sociais nas favelas (LEEDS & LEEDS, 1978, FISCHER, 2008, GONÇALVES, 2010). Para a atuação dos comunistas junto às favelas, ver FISCHER, 2008, GUIMARÂES, 2009, GONÇALVES, 2010. Para um debate mais aprofundado sobre o PCB, ver PANDOLFI, 1995.

Page 48: Caminhos Do Lembrar a Construção e Os Usos Políticos Da Memória No Morro Do Borel

47

financeira da proposta, além do desgaste social causado pela mesma (VALLADARES,

1978, ABRANTES, 1986). Em termos de iniciativas governamentais, temos os já

abordados Projeto Rio, em nível federal, e a criação da SMDS, em nível municipal,

cujas propostas já continham elementos que indicavam o caminho preferencial pela

urbanização in loco, postura que se torna mais clara a partir do primeiro governo

estadual de Leonel Brizola (1983-1987). Essa mudança de direcionamento pode ser

considerada um marco, ressalvando que seus significados, bem como suas

consequências, só vão se tornando mais evidentes, inclusive no imaginário de

moradores e lideranças, com o passar dos anos48.

Ou seja, estamos tratando de um quadro no qual a ameaça remocionista, tão

presente nos anos 1960, começa a tomar cores mais brandas, levantando possibilidades

mais concretas para a reivindicação do direito à permanência. Porém, deve-se olhar essa

questão sem qualquer grau de ingenuidade. Afinal, o abandono de uma política de

erradicação não significa a aceitação da existência das favelas pela sociedade como um

todo49, nem o acesso a uma situação jurídica de legalidade plena e garantia de posse.

Com referência a esse último elemento, o que notamos é uma relação de ambiguidade,

48

Entretanto, creio ser plausível a hipótese de que esse quadro não gerou um sentimento de segurança automático, que até poderia ser observado posteriormente, por parte dos moradores de favelas. Tendo em vista que a virada dos anos 1970 para 1980 constitui um curto período do abandono das remoções, não seria possível supor a existência de um certo temor dessa prática? É válido lembrar que, no caso do Projeto Rio, a CODEFAM foi criada na Maré como forma de buscar a defesa dos interesses desses moradores (ABRANTES, 1986, PANDOLFI & GRYNSZPAN, 2002), o que envolveu, dentre outros elementos, a garantia da permanência (ABRANTES, 1986). Podemos, igualmente, mencionar a tentativa de remoção sofrida pela favela do Vidigal em 1977, que não se concretizou, citada por Rafael Gonçalves (2010: 194) como marco para o fim do programa, como um exemplo de proximidade temporal do período em questão com essa prática. Contudo, Paulo Fernando Cavallieri (1986: 23) chega a citar que ao entrevistar, em 1981, lideranças, presidentes de associações de moradores e demais residentes de 364 favelas, a preocupação com a propriedade da terra chega a ser o quinto elemento mencionado, com 22% das menções, de uma lista com as cinco principais reivindicações desse grupo. Tal fato é interpretado pelo autor como um exemplo de um possível maior sentimento de segurança perante possibilidades de remoções, e tal hipótese não merece uma sólida discordância. No entanto, gostaria de deixar claro que as colocações que realizei a pouco diz respeito à crença que essa percepção de maior segurança não ocorreu automaticamente, chegando a possuir elementos de tensões. 49 Gostaria de relembrar as já mencionadas críticas da grande imprensa à atuação da SMDS por, justamente, facilitar a continuidade das favelas através de medidas que privilegiavam a urbanização ao invés da remoção (GONÇALVES, 2010).

Page 49: Caminhos Do Lembrar a Construção e Os Usos Políticos Da Memória No Morro Do Borel

48

existente em períodos anteriores, entre o poder público e as favelas no que diz respeito

ao estatuto jurídico destas, no qual não há a regularização fundiária stricto sensu, ao

mesmo tempo em que não proíbe estritamente esses espaços, abrindo brechas para

relações personalistas e de troca de favores permeadas por interesses e atores políticos

diversos (FISCHER, 2008, GONÇALVES, 2010). Mesmo assim, o fim progressivo da

chamada “era das remoções” não deve ser visto como algo de pouco valor.

A mobilização por reivindicações de infraestrutura de moradia e pelo direito à

permanência é um elemento simbólico central para o imaginário dos moradores do

Borel, sendo que seu processo de despejo data de, aproximadamente, dez anos antes da

política de remoções iniciada na administração de Carlos Lacerda (1960-1965)

(CAVALCANTI, 2007). A importância dessa mobilização pode ser conferida pelo

modo como esses moradores se referem a um “tempo das lutas” (idem, 2007: 137) como

uma era específica associada à ética e ao trabalho duro, em um contexto de resistência

contra o despejo a partir da fundação da União dos Trabalhadores Favelados,

associando valores à construção material dessa favela e privilegiando o papel de sua

associação de moradores, a própria UTF, na vida cotidiana e nas realizações e melhorias

materiais. Ou seja, a noção de “lutas” possui uma considerável carga de valorização

simbólica, que não remete apenas aos anos 1950, mas às melhorias materiais, de

infraestrutura de serviços, e até financeiras, vividas, inclusive, em tempos recentes

(ibidem). A partir dessa concepção, podemos notar como a questão da permanência é

cara para esses indivíduos, sobretudo as gerações que participaram de todo esse

processo mobilizatório.

Devido a essas reflexões, atribuímos importância ao gradativo desaparecimento

da ameaça remocionista a partir desse período50. Desse modo, haveria a permanência

50 Para uma análise de alguns impactos negativos das remoções de favelas da zona sul, ver PERLMAN, 1977.

Page 50: Caminhos Do Lembrar a Construção e Os Usos Políticos Da Memória No Morro Do Borel

49

dos laços sociais, afetivos e de identidade com o local de moradia, garantindo uma

maior estabilidade para esses indivíduos. Mas tal quadro não impediria o surgimento de

outros problemas, muitos relativos à dificuldade de estabelecer garantias para a

concretização de direitos civis e políticos nesse mesmo período, não apenas para

moradores de favelas ou do Rio de Janeiro (CARVALHO, 2001), além dos impactos do

convívio com a ação do narcotráfico e da própria ambiguidade das relações com o poder

público.

O terceiro e último fator inerente à noção de favela consolidada para o qual

gostaria de atentar diz respeito à temporalidade. A consolidação de uma favela é um

processo espaço-temporal e, por isso, dotado de historicidade. A passagem do tempo

não é notada apenas pela conjuntura externa às favelas, no que diz respeito a aspectos

sociais e políticos mais amplos, ou pela organização social. As modificações nas

moradias também são elementos perceptíveis dessa historicidade. As habitações são

elementos que criam significados distintos e se posicionam de acordo com sua

conjuntura histórica, revelando diferentes formas de estar no mundo e de morar nas

favelas (CAVALCANTI, 2007). Ou seja, cada espaço de moradia contém seu vestígio

da passagem do tempo, revelando funcionalidades e simbolismos, além de ser um

suporte da memória pessoal e coletiva. Devido a essa historicidade, cada modificação se

constitui em uma fonte para o estudo histórico dos processos dessas localidades.

No caso do Borel, cada alteração feita nas moradias também carrega um forte

laço de identificação com o indivíduo que a promoveu e, desse modo, com os processos

históricos que a permearam. Do barraco de estuque à casa de alvenaria, passando pelas

residências ainda mais sólidas, algumas contendo modificações como forma de

amenizar consequências de guerras entre quadrilhas rivais de traficantes, cada espaço

transborda vestígios do passado (idem).

Page 51: Caminhos Do Lembrar a Construção e Os Usos Políticos Da Memória No Morro Do Borel

50

Das transformações das habitações e da infraestrutura local pode-se extrair uma série de

discursos sobre o passado, alicerçados pela memória, dos quais “as lutas do povo do

Borel” é um exemplo. Desse modo, ao tratarmos de um livro sobre a constituição do

movimento associativo da favela do Borel, bem como sobre a ampla mobilização contra

a ameaça de despejo, não estamos lidando apenas com uma visão sobre disputas no

espaço urbano, mas com uma forma de construir discursos e interpretar o passado,

conduzida por um ator que participou ativamente desse processo.

Visões sobre o passado: a escrita da história e os grupos sociais

Temos observado cada vez mais debates sobre temas históricos tornados

públicos, não necessariamente tendo acadêmicos e demais intelectuais como seus

agentes principais. Assim, grupos muitas vezes sem acesso à veiculação de sua versão

sobre fatos passados, como minorias étnicas ou sociais, têm obtido a possibilidade de

escrever sua própria história. Esse movimento tem propiciado o aparecimento de novas

formas e lugares para a produção do conhecimento para além da universidade ou outros

polos do pensamento acadêmico. Todo discurso histórico pode conter um fundo político

marcado por construções e interesses diversos. Da mesma forma, no entanto, esses

mesmos discursos possuem potenciais de mobilização diferentes, em menor ou maior

escala (HARTOG & REVEL, 2001).

Portanto, no processo de construção de identidades, pode-se notar o fenômeno

no qual cada vez mais há a incorporação de grupos tidos como marginais à memória

nacional, a partir de sua mobilização em um contexto de construir caminhos para

obtenção de direitos. Essa situação tem alterado a noção de patrimônio histórico e

Page 52: Caminhos Do Lembrar a Construção e Os Usos Políticos Da Memória No Morro Do Borel

51

cultural (GRYNSZPAN & PANDOLFI, 2007) na medida em que novas memórias têm

reivindicado seu quinhão de existência na arena pública (HEYMANN, 2007).

No caso da América Latina, o final das ditaduras militares presenciou o ato de

lembrar assumindo um importante papel no restabelecimento de laços sociais ou

comunitários desfeitos pelo exílio ou pela repressão do Estado. Assim, os que foram

considerados vítimas desses regimes e seus representantes adentraram na batalha

simbólica para o reconhecimento de sua memória sobre a questão, favorecendo,

sobretudo a partir da década de 1980, o aparecimento do debate acerca da atuação do

aparato repressivo dos governos militares como crimes de Estado (SARLO, 2007). No

Brasil, o campo editorial se estabeleceu como importante esfera para uma memória de

oposição ao regime militar, através de denúncias sobre torturas, principalmente a partir

de meados da década de 1970, com a publicação de muitos depoimentos de militantes

sobre o tema51.

Porém, para além daqueles que se mobilizaram contra as ditaduras militares,

mais grupos sociais têm praticado o uso da memória e do passado como ferramenta para

a obtenção de benesses convertidas em direitos de cidadania, seja através de ações

administrativas, seja através da mobilização de sentidos positivos sobre sua imagem

perante a sociedade, ou, ainda, do fortalecimento da coesão do próprio grupo

(GRYNSZPAN & PANDOLFI, 2007). Tais fatores ocorreram em um quadro político

51 Embora o livro “Torturas e torturados”, de Márcio Moreira Alves, lançado em 1966 pela editora Idade Nova, seja um marco nesse sentido, as principais obras datam dos anos 1978 e 1979, como “Tempo de Ameaça: autobiografia política de um exilado”, de Rodolfo Konder, lançado em 1978 pela Alfa-Ômega, e “131-D Linhares: memorial da prisão política”, de Gilney Amorim Viana, pela editora História em parceria com o Comitê Brasileiro pela Anistia e com o Movimento Feminino pela Anistia (MAUÉS, 2009: 9-10). Ainda sobre o livro como uma ferramenta política crítica ao governo militar, podemos igualmente mencionar livros de memórias de líderes políticos cujas figuras possuem um significado oposicionista, a exemplo das “Memórias”, de Gregório Bezerra, membro histórico do PCB, lançadas pela Civilização Brasileira em dois volumes de 1979 e 1980, respectivamente, e o “Memória Camponesa”, editado pela Marco Zero em 1982, que relata as memórias do também integrante do Partido Comunista José Pureza, responsável pela organização de uma série de associações de lavradores no estado do Rio de Janeiro nos anos 1950. Desse modo, podemos perceber que o lançamento de um livro com as memórias de um antigo militante comunista da favela do Borel se insere em um contexto mais amplo de iniciativas críticas dentro do mercado editorial.

Page 53: Caminhos Do Lembrar a Construção e Os Usos Políticos Da Memória No Morro Do Borel

52

maior de transição para a democracia, no qual o despontar desses discursos sobre o

passado foi um dos elementos indispensáveis para a “restauração de uma esfera pública

de direitos” (SARLO, 2007: 47), sendo necessário ressaltar que o uso político da

memória difere de acordo com distintos contextos sociais, políticos e características

históricas e culturais de cada grupo e cada caso (HEYMANN, 2007). A partir do final

da década de 1970, já podem ser observadas iniciativas sobre memórias de moradores

de favelas, a exemplo da obra “Varal de lembranças”, organizada pela antropóloga

Lygia Segala e com o apoio da União Pró-Melhoramentos dos Moradores da Rocinha

(GRYNSZPAN & PANDOLFI, 2007). Também se encaixa nessas iniciativas o próprio

livro de Manoel Gomes.

A partir dessas observações, podemos refletir sobre indícios de que esses

discursos de memória articulados por diferentes grupos não constituiriam um dos

aspectos de uma cultura política (BERSTEIN, 1997) mais ampla do período52. No caso

do Borel, a memória sobre o “tempo das lutas” (CAVALCANTI, 2007) é um

importante elemento sobre o passado constituidor de uma identidade local (POLLAK,

1992). O livro de Manoel Gomes aborda justamente essa memória. Com isso, pode-se

refletir sobre sua possível função de consolidar uma identidade relativa à mobilização,

que remete aos tempos da UTF e à resistência às ameaças de despejo, bem como às

melhorias de infraestrutura conquistadas, ou assim vistas como, por seus moradores. Ou

seja, são fatores que constituem importantes códigos e referências relativas a um grupo,

e remetem a uma tradição de atuação política (BERSTEIN, 1997)53.

52 A noção de cultura política é uma ferramenta teórica para explicar diferentes tipos de comportamentos políticos visando adaptá-los à complexidade dos comportamentos humanos, privilegiando, entretanto, o entendimento de uma determinada postura pela diversidade das ações sociais, e não através de uma pretensa visão unívoca que homogeneíze escolhas de diferentes sujeitos sociais (BERSTEIN, 1997). 53 Porém, tais representações são evocadas por sujeitos específicos dentro de uma esfera de mobilização composta por diferentes atores políticos com objetivos próprios, fato ao qual retornarei posteriormente.

Page 54: Caminhos Do Lembrar a Construção e Os Usos Políticos Da Memória No Morro Do Borel

53

De fato, as atividades da UTF chegam a fazer parte de uma memória familiar de

alguns moradores do Borel, cujos familiares se envolveram na organização do

movimento e na implementação de suas atividades. Chegavam a ocorrer encontros

presenciados por crianças, uma vez que algumas reuniões, por vezes até de caráter

informal, aconteciam em suas casas (depoimento de Ruth Barros54, 21/01/2009):

“(sobre sua infância) Eu lembro das pessoas que moravam na comunidade, estavam sempre na minha casa, e eles falavam muito de política, disso, daquilo, principalmente em relação à comunidade. Estavam sempre falando em relação à comunidade, em relação ao que ia acontecer, à associação de moradores. Meu pai fazia parte da diretoria, então estava sempre falando”55.

Também deve ser mencionado que aqueles que não possuem idade para se

lembrar desses acontecimentos tiveram acesso a eles devido à transmissão oral de uma

memória familiar, como o irmão mais novo da depoente acima citada (depoimento de

Josias Pereira, 24/09/2010)56: “Eu tenho lembranças que a minha mãe contava. (...) Ela

contava a história que ela tinha que descer para eles não derrubarem as casas. Ela

contava a história do Magarinos Torres, né?”

Com a repressão que se segue após o golpe de 1964, é natural que uma memória

de uma entidade representativa de moradores de favelas ligada ao PCB passe a se

enquadrar, pelo menos em alguns aspectos, na ideia de uma memória subterrânea

(POLLAK, 1989), uma vez que o histórico de atuação da UTF não encontraria um

terreno fértil para ser transmitido de maneira ampliada através de diferentes suportes.

54 Moradora nascida e criada no Borel, que a partir dos anos 1970 se tornará uma importante liderança local, realizando trabalhos junto à Igreja Católica e, futuramente, se tornando agente comunitária. É uma das idealizadoras do projeto Condutores de Memória, o que mostra que sua atuação, nos anos 1990, passará pelo campo das ONGs através do movimento conhecido como Agenda Social Rio, a ser abordado no último capítulo desta tese. 55 Tendo em vista seu ano de nascimento (1951), a depoente se refere às atividades da UTF, da qual seu pai foi membro. 56 Josias Pereira também se tornará uma influente liderança local nos anos 1970, participando de chapas para concorrer à presidência da associação de moradores, além de, na década de 1980, participar de um grupo responsável por uma série de atividades culturais, como a edição do jornal local Folha do Borel. Sobre a importância do jornalismo comunitário em favelas nesse período, ver MOREL, 1986.

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54

Porém, é preciso atentar que o silêncio, não importando em qual grau, sobre um dado

assunto não implica sua inexistência ou aceitação passiva de sua negação.

Assim, podemos falar em uma memória, se não submersa, ao menos sem possuir

um ambiente favorável para sua ampla veiculação, transmitida por meios de

sociabilidade política ou informal, a exemplo das reuniões presenciadas pela depoente

anteriormente citada ou das histórias contadas por sua mãe para seu irmão mais novo57.

Esse tipo de memória costuma emergir em momentos de reordenamento do campo

político e de crises (POLLAK, 1989), podendo ser estabelecido um paralelo com o livro

de Manoel Gomes, cujo processo de elaboração e lançamento editorial ocorreu

justamente no momento em que, gradativamente, se consolidava a abertura política que

culminaria no fim da ditadura militar.

Uma outra característica do fenômeno das favelas consolidadas é o surgimento

de uma nova forma de lidar com o passado por parte dos moradores desses espaços,

marcada por uma certa dose de otimismo e pela possibilidade de acúmulo de capital,

ainda que por meio da informalidade, com a casa, cada vez mais seria construída em

alvenaria. Esse quadro é fruto de um rearranjo de elementos como pobreza, ilegalidade

e informalidade, além do próprio espaço urbano do Rio de Janeiro (CAVALCANTI,

2007), e a partir dele também se nota um uso específico do passado pela via da memória

e de sua materialização através de um suporte. Este também passa a obter importância,

pois se trata da inscrição física de lembranças que até então garantiam sua continuidade

através, sobretudo, da oralidade, e passam, desse modo, a ser objetos de percepção sobre

interesses políticos diversos em convívio.

57 Esses canais de sociabilidade, inclusive, como a família ou um grupo de ligações afetivas ou políticas, são elementos fundamentais para se entender a transmissão de representações sobre uma cultura política a fim de consolidá-la (BERSTEIN, 1997).

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55

O morro do Borel e a construção de uma memória material

O livro de Manoel Gomes não é apenas um relato sobre uma instituição

representativa de moradores de favelas ou sobre a resistência dos habitantes do Borel à

ameaça de despejo, mas um discurso sobre o passado feito pelo representante de um

grupo específico de lideranças do Borel e sujeito a uma série de usos políticos. Parte

desses usos estão relacionados a sua inscrição em um suporte físico, ou seja, sua

transformação em memória material, sendo que o processo de construção desse suporte

já é permeado por uma série de interesses concorrentes.

Um elemento que demonstra o caráter desse uso político é a própria concepção

sobre a função do discurso acerca do passado que se pode notar presente na obra, a

partir da imagem de seu prefaciador, o célebre líder comunista Luiz Carlos Prestes

(GOMES, 1980: 2-3)58:

“Mas o aspecto mais estimulante desta história do morro do Borel está no ensinamento que nos transmite a respeito da força que alcançam os explorados quando se unem e se organizam. A história do surgimento da União dos Trabalhadores Favelados – hoje, União dos Moradores do Morro do Borel – revela a força que pode alcançar a democracia quando posta em prática pelas próprias massas trabalhadoras. (...) Que este livro chegue às mãos do povo é pois o que desejo.” (grifos meus)

Ou seja, na própria apresentação de “As lutas do povo do Borel” já podemos

perceber três fatores. O primeiro é que se trata de uma história da UTF, objeto central

do relato de Gomes. O segundo é que essa história é vista como um exemplo da “força

que alcançam os explorados” quando, mobilizados e organizados, constituem um

coletivo de reivindicação. O terceiro diz respeito à vontade e interesse de que essa

história chegue “às mãos do povo”, ou seja, alcance um considerável grau de veiculação

e se torne conhecida. Sua circulação, assim, possibilitaria o uso de um fato histórico, a

58 Uma análise mais demorada sobre a figura de Prestes e o significado de sua participação como prefaciador da obra será realizada no terceiro capítulo desta tese.

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56

criação e atuação da UTF, e suas interpretações como um exemplo de modelo a ser

seguido, por significar “a força que pode alcançar a democracia quando posta em prática

pelas próprias massas trabalhadoras”. Assim, notamos uma tendência ao uso do passado

como um referencial positivo a ser seguido e considerado como modelo59. Outro

aspecto a ser sublinhado é o fato de que a memória e a atuação de um grupo dentro da

UTF, ligado ao PCB, constituem o ponto de valorização desse discurso sobre o passado.

Essa situação ocorre em um momento de disputa por grupos de esquerda dentro do

próprio Borel, fato ao qual me aterei posteriormente.

Outros elementos na narrativa de Gomes podem ser observados para uma

caracterização de seu olhar sobre o passado (idem, 1980: 6-7):

“Estamos agora em setembro de 1921, vésperas do ano de 1922, ano em que seria realizada a exposição do Centenário da Independência do Brasil. Havia no Centro da Cidade um reboliço de trabalhos, coincidente com a demolição do morro do Castelo, para a ampliação da área onde seriam realizados os festejos da data magnânima de 7 de Setembro. O afluxo de trabalhadores era enorme, vindo de todo o território nacional, era incontrolável. Da Europa chegavam levas e mais levas de imigrantes, principalmente de Portugal, Espanha e Itália. O mercado de trabalho aqui na Carioca tornava-se cada dia mais abundante. Houvesse disposição, que trabalho não faltava. O Rio de Janeiro, como o nosso leitor deve saber, era uma cidade despreparada para acolher afluente massa humana que a ela chegava. Sua estrutura era colonial. À moda D. João VI, havia pouquíssimos hotéis e pensões. As hospedarias eram insuficientes para acomodar tantos chegantes. Só havia mesmo uma saída, espalhar esta população pelos morros acima, pois as encostas já estavam comprometidas” (grifos meus).

A passagem acima diz respeito a um tema caro à literatura sobre favelas, as

causas de sua origem. Segundo o autor, o que explicaria a causa do início da favelização

dos morros por trabalhadores em uma cidade sem estrutura para abrigá-los, já que a ida

para esse espaço urbano teria sido motivada pela busca por empregos, cuja oferta estaria

em um patamar significativo. Porém, ao chegar, passariam a sofrer com a exploração

feita em cima de sua força de trabalho, recebendo um salário que não seria suficiente 59 As formas como as sociedades ocidentais têm lidado com os discursos sobre o passado, bem como a relação deste com as noções de presente e futuro, foram tomadas como base a partir da ideia de regimes de historicidade. Essa categoria diz respeito às formas de articulação, a partir de diferentes ordenamentos e graus de ênfase, entre passado, presente e futuro, constituindo, portanto, uma forma de entender e saber se colocar na própria experiência temporal (HARTOG, 1996 e 2006).

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57

para arcar com os custos de vida (ibidem: 12): “Não será demais detalharmos as

dificuldades que o proletariado encara para sobreviver com o círculo vicioso da inflação

diária, com o elevado custo de vida.”

Com isso, adentramos em uma concepção da sociedade, no caso, concebida a

partir do debate sobre a questão habitacional dos trabalhadores, na qual a luta de classes

possui um papel fundamental para seu entendimento, o que fica mais claro nesta

passagem (idibidem: 43):

“(ao comentar sobre a figura de Magarinos Torres) Ele estava na vanguarda da luta pela defesa da moradia do trabalhador do Rio de Janeiro, pois o seu faturamento salarial era baixíssimo e ineficiente para adquirir uma casa condigna em áreas urbanizadas, cuja valorização estava além das possibilidades do operário brasileiro. (...) Em vista dessa desordenada espoliação, a única saída do trabalhador é morar mesmo em favelas. Então, cabe a nós, os interessados, sustentar essa luta pelo direito de morar; se aqui trabalhamos, aqui moramos, já que as despesas com essa indispensável necessidade não entram nas cogitações das comissões para aumento salarial instituídas pelo Ministério do Trabalho, que limita a alimentação do trabalhador em meia ração. Esses beneplácitos senhores acham que só temos o dever de trabalhar, quanto ao direito de receber o valor real da venda do nosso produto que é força, isso não, os patrões não toleram tamanha aberração dos seus “sagrados” direitos de determinação do valor da mão de obra”. (grifos meus)

Desse modo, temos certos elementos tradicionais do discurso marxista sobre a

luta de classes, no qual a “desordenada espoliação” se configura na ausência de receber

o “valor real da venda do nosso produto que é a força”, uma vez que caberiam aos

patrões os “sagrados” direitos de determinação do valor da mão de obra”. Tal situação

levaria à necessidade de os trabalhadores habitarem as favelas, além de embasar sua

resistência pela permanência em seus locais de moradia, evitando, assim, mais um tipo

de exploração no que diz respeito a sua situação habitacional60. Ao centrar a explicação

da existência das favelas na ideia de luta de classes, presente inclusive na origem desses

espaços, podemos ver uma outra característica desse entendimento sobre o passado,

além da mencionada anteriormente. Trata-se da interpretação da experiência humana no

tempo a partir da noção de processo (HARTOG, 2006). Na situação em questão, esse

60 Sobre a interpretação marxista tradicional da questão urbana, ver ENGELS, 1986.

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58

processo seria movido pela “exploração do homem pelo homem”, conforme a visão

marxista61.

No tocante à questão de uma visão sobre o passado tendo como ponto inicial o

panorama da luta de classes, é possível tecer considerações sobre a própria figura de

Manoel Gomes. O autor de “As lutas do povo do Borel” foi um operário com papel de

destaque na UTF, e sua figura pode adotar, de acordo com algumas perspectivas, uma

certa aura mítica, como um trabalhador cuja ausência de oportunidades na vida foi

convertida em uma profunda consciência crítica. Gomes possui todos os elementos para

se constituir em um sujeito marcante para o imaginário tanto dos envolvidos na

reorganização do movimento associativo do Borel, quanto pelos opositores à ditadura

militar62, por encarnar os símbolos de uma ideologia de superação desse regime e do

que era considerado como as estruturas geradoras das desigualdades sociais. Mais do

que isso, ele representava uma realidade concreta, resultante das engrenagens e

contradições do tão criticado sistema capitalista. Segundo a memória de Fernanda

Carneiro63 (depoimento de Fernanda Carneiro, 05/11/2009): “ (...) o seu Manuel, eu já

disse que eu gosto de velho, maravilhoso aquele discurso do operário, que eu acho

muito mais verdadeiro que esses discursos teóricos. Então ali, pronto, que delícia.”

(grifos meus).

61 A visão da história como processo e progresso também apresenta outro elemento que diz respeito às perspectivas sobre o futuro no sentido de dar inteligibilidade ao processo que leva à passagem do passado para o presente, o que guarda certas semelhanças com a concepção marxista tradicional sobre como a luta de classes levará à derrocada do capitalismo e a sua substituição pelo socialismo. Essas seriam características do regime de historicidade moderno, presente na Europa a partir da Revolução Francesa (1789). A interpretação do passado como exemplo edificante a ser buscado no presente pertenceria ao regime de historicidade antigo, em voga durante a Antiguidade (HARTOG, 1996 e 2006). O próprio Hartog (idem, ibidem) diz que esses regimes não devem ser vistos como fronteiras sólidas, podendo haver características semelhantes entre ambos. Contudo, devo deixar claro que meu objetivo não é enquadrar a obra de Manoel Gomes em um ou outro regime de historicidade específico, mas apenas tecer comentários sobre suas visões acerca do passado, que, sob alguns aspectos, constituirão alguns elementos de auxílio ao embasamento para os usos políticos de seu discurso. 62 Reconhecendo-se o diálogo entre esses dois grupos, uma vez que a reorganização do movimento associativo de favelas contou com o envolvimento de militantes dos grupos opositores aos militares. 63 Militante da Ação Popular (AP) que atuou no Borel nos anos 1970 e 1980, período no qual construiu fortes laços locais. Participou de diversas atividades, como a organização de um curso pré-vestibular comunitário, sendo a responsável pela datilografia dos originais do livro de Manoel Gomes.

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59

Ou seja, a obra em questão é um relato histórico feito por uma testemunha que

participou do surgimento e do auge da criação da UTF, além da resistência contra as

tentativas de despejo do morro, o que por si só já carrega uma forte carga de

simbolismos sobre o autor do livro, dentro da ideia de valorização dos sujeitos

cotidianos e de suas narrativas testemunhais, cujo discurso em primeira pessoa

apresenta sólidos coeficientes de valorização (SARLO, 2007)64.

Outro aspecto a ser debatido é o reconhecimento que o próprio livro possui para

os moradores do Borel, ou seja, o considerável valor simbólico do suporte da memória

de Manoel Gomes, bem como os usos políticos construídos a partir deste. A criação de

um registro material pode servir como um instrumento de permanência para uma

memória que até então possuía a transmissão oral como principal veículo (depoimento

de Josias Pereira, 24/09/2010): “Uma coisa certa que a gente pensava: tem que ter algo

guardado para ficar na lembrança. Todo mundo falava nas lutas antigamente, mas

ninguém tinha nada anotado. (...) Tem que ter algo arquivado”. Com essa passagem,

notamos a necessidade de meios de garantia da perpetuação dessas lembranças sobre as

“lutas de antigamente”, e que elas possam ser consultadas, a exemplo de anotações ou

de um arquivo.

Porém, gostaria de destacar que notas ou documentos para arquivamento se

referem a suportes materiais, concretos. Ou seja, meios de inscrever a memória no

mundo físico, e com isso, “materializar uma história” (depoimento de Mirian

64

Beatriz Sarlo (2007) faz considerações sobre um tipo de narrativa histórica, não necessariamente ligada aos meios acadêmicos, estando, pelo contrário, muitas vezes fora dele, sensível a certas demandas do imaginário contemporâneo. Nesse tipo de produção, não se tem mais notado a explicação de um determinado objeto ou fenômeno a partir de causas múltiplas articuladas em hipóteses, mas a redução do campo destas. Portanto, seria uma escrita da história com a função de oferecer certezas, e não dúvidas e hipóteses, e garantir sentido, possuindo uma grande entrada e aceitação no mercado editorial. Seu desenvolvimento foi auxiliado pela guinada subjetiva perceptível entre os anos 1970 e 1980, que virou o foco de valorização para sujeitos cotidianos, suas transgressões, negociações, costumes e originalidade, passando a se valorizar elementos narrativos como o caráter testemunhal e o uso da voz em primeira pessoa como ícones da verdade (idem).

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60

Gonçalves65, 23/09/2009): “Finalmente nós conseguimos materializar uma história, foi

interessante, era bom ter isso. Um dia um amigo pediu para emprestar para o filho ler.

Pediu se podia emprestar, e aí eu disse que só tinha esse aqui e tinha ciúmes dele

(risos)”.

Outro aspecto válido para a abordagem diz respeito ao “ciúme” da depoente,

acima citada, com seu exemplar, o que denota o valor que o objeto possui para ela66.

Quando falavam do livro, temos exemplos de moradores que ou externalizavam o

desejo de tê-lo em mãos, quando não o conseguiram na época do lançamento, ou

justificavam o fato de não tê-lo mais, seja por terem-no emprestado e não conseguido

reavê-lo, seja por outros motivos quaisquer, a exemplo destas duas passagens

(depoimento de Ruth Barros, 15/01/2010 e depoimento de Josias Pereira, 24/09/2010,

respectivamente):

“As pessoas me mostraram. Mas eu não consegui o livro não, não tinha o livro não. Me mostraram o livro, alguma pessoa me mostrou, não sei se foi o meu irmão, alguém me mostrou o livro. Eu achei interessante, bacana, falei: ‘Caramba...’, aquelas coisas que a gente fala, né? História do Borel, ah, eu vou querer ler porque é bacana, eu quero emprestado com alguém!” “Acontece que meu livro alguém pegou e eu mesmo não tenho o livro.”

Contudo, é preciso prestar atenção ao conteúdo registrado, tendo em vista os

objetivos presentes nesse esforço de gravar em um suporte seus elementos, para

entender o porquê dessa valorização presente na fala dos depoentes citados. De fato, ao

nos debruçarmos sobre a obra de Gomes, é perceptível sua função de registro, através

dos acontecimentos mencionados como marcantes pela memória do autor, além dos

65 Filha do ex-militante do PCB e da UTF conhecido como “Boneco”, que chega a ter o nome mencionado por Manoel Gomes (1980: 50). A depoente, também filiada ao Partido Comunista, atuou no Borel na década de 1980, participando de chapas concorrentes à associação local e do grupo que organizou o jornal Folha do Borel. 66 Esse “ciúme” pode ser explicado a partir de três pontos de identificação cujos elementos não devem ser vistos isoladamente, mas como constituidores da identidade pessoal da depoente. O primeiro diz respeito a uma história sobre o seu local de moradia, a favela do Borel, e uma visão sobre o passado de seu movimento associativo. O segundo é relacionado aos fortes laços presentes na obra em relação a um grupo político ao qual a depoente, assim como seu pai, foi filiada, o PCB. O terceiro diz respeito à memória sobre o seu pai, que chega a ser citado no livro e pertenceu ao mesmo partido político que ela.

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61

principais envolvidos. Há uma série de entreveros à preservação da memória de

moradores de favelas, como sua condição desfavorável na hierarquia social, além da

instabilidade de sua situação perante as esferas jurídicas. Tais elementos ganham

tonalidades ainda mais desfavoráveis pelo fato de suas lembranças se referirem a um

grupo de ligações com o Partido Comunista, sendo que, no momento de feitura do livro,

ainda vivíamos em um período de repressão, mesmo que não em seu momento mais

exacerbado.

A função de registro do livro em questão é perceptível em diversos momentos,

como no caso do tratamento dos nomes dos moradores67. Ao longo de suas páginas, são

encontradas menções a 85 nomes de residentes do Borel, em diferentes situações. Como

exemplo, temos a relação de nomes dos que seriam os mais antigos habitantes da favela

(GOMES, 1980: 13):

“Entre os muitos moradores já radicados, vamos mencionar alguns deles, cujos nomes nos ocorreram à memória, como Leitão do Borel Velho, Ozório, Epaminondas, Chico Bigode, Bolinha (na gruta do mesmo nome), Seu Joaquim Carneiro da Chácara, Antônio Vizeu, Dona Luduvina, Leandro Chagas, Nelson de Moraes e Alcides Tatão da Ladeira do Leandro, Quintela, Lameira, Joaquim Quebe-quebe, Zé Turquinho, Zé Magro, João de Brito, Brandão do Borel Central, Chico Careca, Ferro-Velho, Tomás C. Barroso e seus irmãos Zequinha, Joaquim Casemiro e seu filho Zé Pereira, Antônio Mariniano, Dona Laura, José Rosa e muitos outros (...)”

A menção a esses “muitos moradores já radicados” é feita quando se explicita a

ameaça de despejo pela imobiliária Borel Meuron, fator que impulsionou a criação da

UTF (LIMA, 1989, FISCHER, 2008, GONÇALVES, 2010). O relato expõe a existência

de um grupo de moradores no local, que seriam afetados pela ação da imobiliária cuja

consequência seria a perda de seus lares. Porém, Manoel Gomes (1980: 15) afirma em

seu relato que os mesmos não aceitaram de forma passiva os atos da imobiliária:

67 Serão abordados agora, de forma inicial e introdutória, alguns aspectos da atuação dos moradores do Borel e da UTF. O objetivo das colocações que se seguirão, contudo, é de chamar atenção para a forma como é feito o registro da memória por Manoel Gomes, o que abrirá possibilidades analíticas sobre o uso político da mesma. Uma análise mais sólida sobre a memória e a história da UTF será realizada no segundo capítulo desta tese.

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62

“Foi quando os moradores receberam uma nova advertência para se mudarem dentro do prazo de 90 dias, pois, do contrário, os “donos” do morro recorreriam ao Judiciário e os despejariam. (...) Foi daí que os moradores mais radicais resolveram tomar uma posição correta para reprimir esses abusos que já estavam enchendo o saco”. (grifos meus)

Logo após essa colocação, são nomeados os que “resolveram tomar uma posição

correta”. Reparem que alguns dos indivíduos citados se encontram na primeira relação

de nomes acima68 (idem: 15-16):

“Entre os inconformados com esses subterfúgios destaca-se a atuação do cozinheiro da Marinha Mercante Izequiel Manoel do Nascimento, do português Casemiro Pereira – ali residente desde 1921 – da família de João de Brito, Francisco Antunes (o Chico Ferro-Velho), Francisco Martins e sua filha Célia, Chico da Luz, Zé Magro, João da Foice, José Pereira do Açougue, os Barroso (Joaquim e Zequinha), D. Lurdes e seu filho Jorge Neto, Leandro, Tatão, Nelson de Moraes, João Siqueira, e outros (...)”

Essas menções são feitas sem que houvesse sido realizado o contato com o

advogado Magarinos Torres ou criada a UTF. Ou seja, esse fato atestaria a existência,

segundo a fala de Gomes, de um grupo de moradores responsáveis por ações prévias de

resistência aos interesses da Borel Meuron, o que colocaria o ato de buscar a

permanência da favela como interesse inicial de um grupo de moradores, e não como

sugestão de agentes externos.

A criação da UTF, segundo a memória de Gomes, seria uma sugestão do

advogado Magarinos Torres, procurado para defender os interesses dos moradores do

Borel em um futuro processo judicial, como forma de reunir condições para se precaver

com os custos do embate jurídico que se anunciava (ibidem: 20):

“Dr. Magarinos dirigiu do alpendre a palavra aos favelados explicando a todos os presentes que, em vista deles não terem dinheiro para meterem demanda com a Borel Meuron Ltda., precisavam se organizar em uma associação onde todos colaborassem com uma pequena quantia como pagamento de suas mensalidades; fazendo assim, conseguiriam meios necessários para qualquer eventualidade que viesse a surgir”.

A partir dessa sugestão, os moradores se organizaram com o objetivo de recolher

68 A contagem de 85 nomes não levou em consideração aqueles que se repetem.

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63

a primeira soma de dinheiro para utilizá-lo, ainda segundo o relato do livro, em uma

futura contenda legal (idibidem: 21): “Enquanto um colhia assinaturas, outro fazia uma

vaquinha para tomar as primeiras providências contra a inominável violência dos

grileiros”. Logo após o recolhimento dessa verba inicial, há o registro daquela que teria

sido a primeira diretoria da União, ainda em caráter provisório (idem, ibidem):

“Após terminada a coleta de assinatura e apuração da renda da vaquinha, foi também tirada uma diretoria provisória para a devida organização social, sendo esta composta por Izequiel, Casemiro, Zé Pereira, Ferro-Velho, Zé Magro, José Rosa, Chico da Luz, Tomaz Valdemar Delfino e outros”.

Para além do caráter inicial da organização do movimento, é igualmente

abordada sua renovação através da participação de novos moradores que resolveram se

agregar à causa (idem: 50):

“Nesse vai-e-vem da luta, acercou-se de Magarinos um numeroso grupo (...) que reforçados por um certo número de moradores recém-chegados ao Borel, constituíram um grupo de lutadores dispostos a ir até o final dessa árdua batalha (...) Entre os novos moradores, queremos destacar aqui a atuação de: Joaquim Silva de Pinheiros, que substituíra José de Oliveira na secretaria da UTF (entregando-a depois ao Manduca), dos irmãos Lira, Bonifácio e Zé Bento, Raimundo, Severino Juvêncio da Costa, Antônio Elniro, Zé Boneco, Joãozinho, os irmãos Dutra, Zé Baiano, os irmãos Felipe e mais outros (...)”

Também foram registradas as mulheres moradoras do Borel em atividades

referentes à UTF (ibidem: 41):

“(sobre duas comissões de recepção, uma formada por homens e outra por mulheres, feita a Magarinos Torres em uma de suas idas ao Borel) Além de uma comissão feminina composta de D. Neusa dos Santos, a senhora do Tomaz, Dona Dora do Leandro, Alzira do Siqueira e Célia Martins, com um bonito ramalhete de flores protegido por uma capa de papel celofane, com dedicatória à distinta D. Dora, senhora de Magarinos Torres, que em dado momento chegava com seu esposo”.

Há, igualmente, casos de envolvimento feminino que vão além da participação

de uma comissão de recepção. Em meados dos anos 1950, a imobiliária responsável

pela ação de despejo contra os moradores do Borel construía uma estrada que iria até a

parte mais alta do morro. Em um dado momento, a obra foi interrompida devido a ações

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64

oriundas da mobilização dos moradores, quando ocorreu a curiosa situação (idibidem:

54):

“(...) uma visita de um dos engenheiros da obra da estrada, a fim de reorganizar os trabalhadores para seu prosseguimento. Porém, ele acabou hostilizado pelo piquete antiestrada feito pelas mulheres que lhe tiraram as calças, fazendo-o descer o morro de cuecas debaixo de uma tremenda vaia e de impropérios de baixo calão, causando-lhe um vexame sem precedente”69.

Com isso, temos passagens que revelam o registro de nomes de moradores

associados a atuações específicas de um grupo político, como a resistência às ações de

despejo, a organização da UTF e a renovação de seus militantes, além de outros

aspectos que serão aprofundados posteriormente. A menção a nomes que formariam

pequenos coletivos que se responsabilizariam por esses atos pode ser interpretada como

uma estratégia discursiva para valorização da coletividade local, o que revelaria uma

união entre os moradores em prol de sua organização associativa e da mobilização por

suas reivindicações. Porém, essa valorização do coletivo está atrelada à memória sobre

um grupo específico dentro da UTF ligado ao Partido Comunista, ou seja, está voltada

para as lembranças de um setor da União relacionado a um partido que estará envolvido

em disputas internas por espaços de atuação do Borel da virada dos anos 1970 para

1980, o que pode ser considerado como uma ferramenta a ser utilizada na concorrência

política interna do Borel e no escopo mais amplo do movimento associativo de favelas.

Uma das características dos lugares de memória, vistos como manifestações fisicamente

concretas da memória, é a sua dotação de três funções: material, simbólica e funcional

(NORA, 1993). Além disso, esses lugares devem ser investidos pelo imaginário social

de uma certa aura que os caracterize como tal, ou seja, “inicialmente, é preciso ter

69 Acerca da representação sobre as mulheres presentes no discurso de Manoel Gomes, gostaria de fazer uma observação. Na primeira passagem citada, é possível perceber uma identificação das figuras femininas com o nome de seus maridos, a exemplo da “D. Neusa dos Santos, a senhora do Tomaz, Dona Dora do Leandro, Alzira do Siqueira”. A segunda passagem, curiosamente, não possui uma lista de nomes de mulheres responsáveis pela ação abordada. De fato, a questão sobre o significado da ação feminina da UTF daria uma interessante análise que, porém, extrapolaria os limites desta tese, o que não significa que não poderá vir a ser objeto de investigação futura.

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65

vontade de memória” (idem: 22). É possível estabelecer relações entre o livro de

Manoel Gomes e a noção de lugares de memória. A obra possui as funções material,

simbólica e funcional, além da “vontade de memória” e da aura que a investe com a

função de lugar de memória, conforme pôde ser visto pelo valor significativo a ela

atribuído nos depoimentos anteriormente citados70.

No entanto, em minha análise, gostaria de focar a função material do livro de

Manoel Gomes, e, posteriormente, os produtos do projeto Condutores de Memória. Essa

função de tornar material, ou seja, de colocar o passado em um suporte físico, está

relacionada ao ato de estabelecer um elo com o que se passou, mas de forma com que

essa ligação possibilite que diferentes gerações sejam tocadas por uma memória viva e

possam construir significados sobre tradições, acontecimentos e ritos de um grupo71. Ao

chamar atenção para essa função material, a ela me refiro como memória material de

favelas, como forma de reforçar os elementos de sua materialidade, bem como sua

função de estabelecer um registro físico.

Essa característica de estabelecer um registro físico da memória é o aspecto do

qual deriva, em parte, friso, a importância atribuída pelos moradores do Borel a seus

produtos de memória, uma vez que estamos tratando de um grupo social que,

historicamente, tem acesso dificultado aos meios de construção de significados e

representações sociais sobre si (SILVA, 2002). Desse modo, o fato de moradores do

Borel estarem diretamente envolvidos na construção desse registro, a exemplo do

crédito de autoria de Manoel Gomes no livro em questão, igualmente constitui um

ponto de valorização.

70 Sobre a relação entre grupos em posição desfavorável da hierarquia social, Nora, inclusive, chega a mencionar “a defesa, pelas minorias, de uma memória refugiada sobre focos privilegiados e enciumadamente guardados” (NORA, 1993: 13), o que nos faz lembrar a fala de Miriam Gonçalves anteriormente abordada. 71 Essa perspectiva está baseada na ideia de monumento histórico desenvolvida por Françoise Choay (2001).

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66

De acordo com a memória dos contemporâneos ao lançamento de “As lutas do

povo do Borel”, o mesmo foi visto como possuidor de uma tiragem pequena

(depoimento de Ruth Barros, 15 de janeiro de 2010): “Eu sei que foi menos de mil. Não

sei se cento e pouco... Eu sei que foi bem menos, bem pouco, assim, pouquinho. E foi

uma coisa que as pessoas não tiveram acesso”. (Depoimento de Fernanda Carneiro, 5 de

novembro de 2009): “Não era uma tiragem grande, era tudo meio manual, não tinha

muito recurso”. Ou seja, por possuir uma tiragem pequena, feito por uma editora que

não mais existe, e que estava sob responsabilidade de um grupo opositor ao governo

vigente, estamos lidando com uma obra de exemplares esgotados e pouco acessíveis.

Acessibilidade esta que, com o passar dos anos, tende a ficar cada vez mais dificultada,

sem garantias concretas de reedição do livro por uma série de fatores, como o

mencionado término da editora por ele responsável72. Porém, tal situação não diminui, e

talvez até aumente, a importância e o valor simbólico desse produto concreto, desse

suporte material de memória, conforme visto anteriormente.

O lançamento do livro de Manoel Gomes se dá em um período caracterizado por

Brodwyn Fischer (2008) como de uma grande expectativa e esperança pela

concretização de direitos historicamente reivindicados por moradores de favelas.

Mesma época que marca o surgimento das favelas consolidadas e a maior permanência

desses espaços na paisagem urbana, dentre outros aspectos, inclusive os negativos

(CAVALCANTI, 2007). Não creio que esses dois fatores constituam uma coincidência,

sendo que a maior esperança pela concretização de direitos pode ser vista como que

caminhando junto com o gradativo distanciamento das ameaças de despejo, pelo menos

para as maiores favelas da cidade. Dentro desse quadro, podemos igualmente mencionar

72 Não quero com isso afirmar que a reedição da obra seria algo impossível de acontecer, uma vez que o campo de possibilidades futuras é algo sempre imprevisível. Porém, são possibilidades, o que não impede que seja colocado que, em um olhar mais imediato, dificilmente um grupo editorial veja interesse de mercado na reedição dessa obra.

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67

a busca pelo direito à memória, que também atuaria como uma ferramenta para

ressignificar a própria figura do morador de favelas no imaginário urbano, à qual

historicamente tem sido atribuída uma série de valores negativos.

Contudo, tendo em vista o conteúdo do livro de Gomes, assim como os grupos e

ações por ele abordados, é preciso se perguntar: a UTF era um órgão do qual todos os

integrantes que a formavam partilhavam dessa mesma memória? As lideranças e os

grupos políticos atuantes no Borel na época do lançamento do livro de Gomes

igualmente partilhariam os significados dessa memória? Até onde o caminho discursivo

adotado por Gomes e pelos responsáveis pela edição do livro não ocultaria tensões e

disputas existentes tanto nos anos 1950 e 1960, auge da atuação da União, e na virada

dos anos 1970 para os 1980, período de reorganização do movimento associativo de

favelas que também afetou o Borel? Essas questões são fundamentais para se pensar o

valor da memória material na qual se constitui “As lutas do povo do Borel”, não como o

“registro pelo registro”73, mas também levando em consideração seus usos políticos e as

tensões e interesses presentes em seu processo de elaboração, no qual se envolveram

sujeitos que passaram a atuar no Borel no período da abertura política do Brasil e da

rearticulação do movimento associativo de favelas.

Trata-se de agentes com interesses específicos e com uma visão própria das

favelas, consideradas como espaços para concretização de seus projetos políticos junto

às classes populares. A partir da convivência dessas propostas, bem como de interesses

em disputa, é que se estabelecerá o quadro que resultou na produção editorial do livro

de Manoel Gomes. Qual o teor dos objetivos desses atores, os modos de atuação, bem

73 A noção de cultura da memória (HUYSSEN, 2000) aponta para uma série de produtos e iniciativas de registro de memória, relativos ao campo da indústria cultural, a exemplo do vestuário e de documentários, além do advento de museus e reconstrução e preservação de centros históricos, em voga a partir dos anos 1960 na sociedade ocidental. O livro de Manoel Gomes pode ser visto dentro dessa perspectiva, e sua análise deve considerar os seus usos políticos, o que constituirá uma contribuição para o entendimento das favelas como campo de ação de atores sociais diversos, residentes desses espaços ou não, interessados em desenvolver e implementar propostas junto às classes populares em contextos históricos específicos.

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68

como sua interpretação do papel das massas populares no contexto da redemocratização

brasileira? Como poderiam ser caracterizadas suas articulações com outros grupos

também interessados em atuar a partir da concepção das favelas como palco para a

implementação de suas propostas?

Novos atores no palco político do Borel: a Ação Popular e o Movimento

Revolucionário 8 de Outubro

Os novos atores que passaram a atuar no Borel a partir de meados dos anos 1970

são alguns dos grupos que se opuseram à ditadura, muitos oriundos da luta armada e

que passaram a adotar uma nova perspectiva frente à situação política nacional. Os

principais grupos localizados que atuaram no Borel foram a Ação Popular (AP) e o

Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8)74. Desse modo, traçarei algumas

breves considerações sobre a AP e o MR-8 antes de adentrar na análise da relação de

convivência entre esses grupos no Borel, incluindo o PCB.

A AP foi fundada no início da década de 1960. Inicialmente influenciada pela

doutrina católica, a partir de 1968 aderiu ao marxismo-leninismo75. Seu objetivo foi

conjugar pensamento e ação na esquerda católica, proporcionando transformações nas

esferas política e social do Brasil pelo agir, e não apenas pelo campo da religião. A

Ação Popular chegou a ser uma alternativa ao PCB para a militância de esquerda,

atraindo universitários, operários urbanos, profissionais liberais, artistas, dentre outros.

Em sua trajetória, foi se afirmando como um movimento político e humanista

74 Ao longo de minha pesquisa, localizei militantes desses dois grupos com atuação no Borel, sendo que os moradores locais, não envolvidos em nenhum deles, apontaram ser esses os mais atuantes nessa favela. Tal fato, entretanto, não implica a inexistência de outras entidades semelhantes realizando trabalho de militância na favela do Borel nesse período. É válido destacar que a AP terá envolvimento direto no processo de edição do livro de Manoel Gomes, fato que será aprofundado posteriormente. 75 As considerações sobre a AP aqui estabelecidas foram integralmente retiradas de CIAMBARELLA, 2007.

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69

independente dos ideais católicos presentes em sua formação. Sua ascendência no meio

universitário foi grande, com alguns de seus membros alcançando cargos de direção na

UNE.

A AP, assim como outras organizações, sofre perdas em seus quadros com

exílios e “desaparecimentos políticos”, chegando a apresentar duas correntes, uma

favorável à luta armada e outra contrária. Entre 1968 e início dos anos 198076, o

maoísmo passa a ser a doutrina direcionadora das ações do grupo, que começa a adotar

uma estratégia de “proletarização”, ou seja, de integrar seus membros, muitos oriundos

da classe média, em circuitos de produção fabril, a fim de que haja uma maior

aproximação com o operariado e sua realidade. Esse contexto explicaria a entrada da AP

em favelas, sobretudo se pensarmos nas diversas fábricas que existiam nos arredores do

Borel.

As origens do Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8) remetem às

divergências internas do PCB, ainda na conjuntura que precede o golpe de 196477. Em

1965, um grupo interno do Partido Comunista passa a se denominar Dissidência

Universitária da Guanabara (DI-GB), e sua ruptura definitiva ocorre em 1966. Partidário

das ações armadas, esse grupo foi responsável pelo sequestro do embaixador norte-

americano Charles Elbrick, em setembro de 1969, passando a adotar a denominação

MR-8 a partir dessa ação. Com o aumento da repressão a partir de 1969, sucedem-se os

exílios e os “desaparecimentos políticos”, colocando o grupo em uma situação crítica.

Um setor do MR-8 se aproxima das teses da Política Operária (PO), caracterizadas pelo

leninismo ortodoxo crítico das ações armadas e que pregava esforços políticos de

aproximação com o operariado. Com a volta do exílio no Chile de parte de sua cúpula, a

organização se rearticula pondo fim às ações armadas e optando pelo trabalho de base

76 A partir de 1973, a organização passa a adotar o nome Ação Popular Marxista-Leninista (APML). 77 As considerações sobre o MR-8 aqui estabelecidas foram integralmente retiradas de CAMURÇA & REIS FILHO, 2007.

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70

em sindicatos operários, militando em ações populares, se fortalecendo como ator pelas

lutas democráticas. Após a anistia, em 1979, realiza de forma clandestina seu II

Congresso, traçando diretrizes para o fortalecimento da “frente popular” (com o MDB),

convertendo-se em um partido popular, com seus membros progressistas ditando as

regras do partido. Desse modo, o MR-8 acaba por estabelecer um campo de disputas

mais claro com o PCB.

As disputas do Borel durante a abertura política

Os anos 1974 e 1975 constituíram um período complicado para o PCB, com o

assassinato de nove membros de seu Comitê Central e a ida de parte de sua direção para

o exterior, além de o jornal oficial do partido, o Voz Operária, passar a ser editado fora

do Brasil (PANDOLFI, 1995: 210). Essa situação afetou o PCB como um todo, e seus

reflexos podem ser vistos na militância que atuava junto às universidades, de onde saiu

o grupo que foi atuar na favela do Borel78 (depoimento de Antonio Werneck79,

03/09/2009):

“Nessa época, tem uma briga também dentro do partido. O comitê universitário tomou a decisão de congelar as ações do partido e, vamos dizer assim, dissolver as bases e dissolver o comitê universitário, porque tinham sido presos os dirigentes do comitê central, em 1975, tinha caído toda a coisa da Voz Operária. E a base lá do partido na universidade era que dava apoio pra distribuição do jornal no movimento universitário, então existia uma determinação do comitê universitário de parar com as atividades, e a gente foi contra (...) aí a gente começa a montar uma outra corrente, ficam dois comitês universitários, um dissolvido e o outro querendo manter o movimento político, “uma brigalhada” (...) eu me afastei em 1977, já no sexto ano da faculdade, e aí decidiram que eu ia sair do movimento universitário e aí tinham várias opções, ou entrava no movimento sindical, ou entrava no movimento comunitário, ou chamado “do asfalto ou da favela”. E aí eu resolvi ir pra favela, escolhi a favela, não conhecia ninguém, era um trabalho conjunto Borel e Formiga”.

78 Gostaria de sublinhar que estou me referindo ao grupo que foi atuar no Borel e na Tijuca, sendo que houve outras formas de militância do PCB. Houve militantes que realizaram trabalhos em outras favelas e bairros e podem ter iniciado suas atividades a partir de outras dinâmicas internas do Partido. 79 Militante que atuou no PCB do início dos anos 1970 até antes dos meados de 1980. Teve papel fundamental para a rearticulação da ação pecebista no Borel, sendo o responsável pelo contato com os antigos integrantes da célula anteriormente existente no local.

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71

Movimento semelhante aconteceu para o fortalecimento do movimento de

bairro, já existente, na Tijuca (depoimento de Marcio Arnaldo80, 15/08/2009):

“Eu fiquei na base do partido na faculdade, entre 1969 e 1971, exatamente três anos, 69, 70 e 71. Eu fiquei na faculdade esses três anos e cheguei a ser o secretário da base. (...) eu tinha uma posição mais à esquerda da maioria do comitê universitário. Nós dizíamos que o pessoal do comitê universitário era reformista, e nós pretendíamos ser mais revolucionários, estarmos mais à esquerda, achávamos que era necessário recompor as alianças com a esquerda, além das alianças com o setor democrático (...) Em uma conferência universitária, nós assumimos uma posição mais à esquerda. E terminada a conferência nós vimos que... Eu pelo menos, e outros companheiros, colegas de faculdade, vimos que o movimento estudantil ia ficar naquela repetição, naquela repetição etc. E aí começamos a discutir, e aí voltamos... Nós éramos amigos da Tijuca, né?, e aí voltamos a discutir a possibilidade de abrir uma frente de trabalho, agora sim de trabalho de massa, de trabalho popular, não mais no setor estudantil, nem no setor sindical, mas no bairro”.

Nesse período, o PCB já revelava uma preocupação em incrementar sua base de

atuação em favelas, visando fortalecer suas bases e obter uma maior influência sobre a

Faferj, conforme demonstra o seguinte documento do partido datado, segundo

informação pessoal, do final dos anos 1970 e referente à atuação pecebista em favelas

(documento sem título, acervo pessoal de Marcio Arnaldo, s/d: 4):

“Ao nível da Federação (Faferj), nossa atuação tem se caracterizado pela desorganização e pela apatia. A presença de companheiros na direção jamais resultou em influência real no organismo, que foi praticamente largado nas mãos de outros diretores. (...) Combinamos uma atuação intermitente na Faferj e uma pequeníssima discussão nas bases sobre os problemas que vemos e as atitudes propostas com as quais discordamos. Em outras palavras, queixamo-nos do populismo e da centralização excessiva da diretoria e não temos na verdade atuado de modo a superar estas distorções pela única via possível: o fortalecimento das bases do movimento, ao nível das delegacias regionais”.

Nesse momento, havia uma disputa entre PCB e MR-8 pelo controle da Faferj,

sendo que ainda havia as lideranças identificadas com o “chaguismo” também

interessadas em garantir seu espaço (DINIZ, 1982). O presente depoimento coloca o

80 Através da sua participação no movimento de bairro, foi atuante em iniciativas que vão levar à criação da filial tijucana da livraria e editora Muro, responsável pela publicação do livro de Manoel Gomes. Esse fato revela uma articulação entre os movimentos de favelas e de bairro. Uma análise mais aprofundada da livraria será realizada no terceiro capítulo desta tese.

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quadro de disputas entre os dois primeiros (depoimento de Antonio Werneck,

03/09/2009):

“A Faferj era dominada pelo MR-8, por outros partidos. Aí a gente começa a retomar o contato dentro da favela nessa época e lança um candidato, em 1979 (...) contra o candidato do MR-8. Tomamos uma “lavada” lá, sabe?, tivemos 30% dos votos só, uma coisa assim, (...) e o MR-8 tinha uma força assim, já... Eu me lembro que esse cara ganha a eleição no dia do discurso lá dos dois candidatos, só ficaram eles também, né?, a gente foi pr’o segundo turno lá dentro. Primeiro tinha uma reunião geral dos caras, era uma reunião aberta, democrática, tinha 300 pessoas, não sei quê, mas votos mesmo devia ter uns cinquenta votantes. Mas se discutiu democraticamente, aí tinha umas teses... Esse cara ganha com um discurso assim: ‘Vamos botar um milhão de pessoas na rua pela favela brasileira!’, aquele negócio do MR-8, grande eloquente, eu falei: ‘Isso não é possível, esses caras não vão botar mil pessoas na rua, um milhão, tá muito errado esse negócio!’ E o nosso candidato tinha um discurso mais conservador, né?, o partido sempre foi um partido menos associado ao confronto, ele sempre tentou... Acho que essa tese do partido era a tese de tentativa aí de acomodação, de não arriscar também a vida das pessoas, né?, então a gente lançou esse cara em 1979. Perdemos, mas continuamos na Faferj, entendeu? O partido retomou o contato na Faferj81”.

Dentro desse contexto, esses militantes pecebistas retomam o contato com os

antigos integrantes da célula comunista do Borel82 da seguinte forma (depoimento de

Marcio Arnaldo, 15/08/2009):

“Nós dissemos: ‘Bom, vamos fazer um mapeamento do que há e do que houve aqui na Tijuca. Então nós conseguimos um contato com um velho operário que era do partido, o Moacir Pacheco Chaves, uma figura fenomenal que já morreu. Ele morava no Alto Catrambi, que era uma comunidade, uma favelinha muito bem estruturada, muito bem organizada, de antigos operários têxteis daquelas fábricas da região, e o Moacir era um negro, cujo nome de guerra era Alves, porque ele era um negro “lorde”, como Ataulfo Alves, um negro alto, magro, fumava um cigarro com piteira e tal. Mas era um operário, ex-operário têxtil, não é?, operário aposentado, e o Moacir, ele mantinha lá os contatos com o pessoal da favela do Borel, com o pessoal da favela da Formiga, e ele próprio era a maior liderança do Catrambi. E então nós sabíamos que o Moacir estava lá, ele não era mais do movimento operário porque ele tinha sido aposentado, então ele ia no sindicato incidentalmente, lá no ‘movimentozinho’ de aposentados. Mas ele não tinha muito o que fazer na Tijuca a não ser encontrar os antigos companheiros. E nós dissemos: ‘Não, vamos tentar reestruturar o partido, vamos tentar ver de que maneira a gente pode... Não ficar nesse negócio setorizado e construir um trabalho de base”.

81 Ao se referir a uma postura “acomodada” do PCB, tudo indica que o depoente faz menção à estratégia do Partido adotada durante o regime militar de ser contrário à luta armada. Para um debate mais aprofundado sobre os diferentes grupos de esquerda que participaram da resistência aos militares pelas armas, bem como a respeito das críticas por eles realizadas à escolha do Partido Comunista, ver GORENDER, 1987. 82 Não apenas no Borel, uma vez que, conforme visto no depoimento de Antonio Werneck, o objetivo era fazer um trabalho conjunto com a Formiga. Sobre esta favela, não me aterei ao trabalho lá desenvolvido, já que o foco da minha pesquisa é o Borel.

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Inclusive, ao ser questionado sobre quem eram os antigos integrantes da célula,

o depoente responde (idem): “Era o Lira, o Ezequiel, o Boneco, o Sebastião Bonifácio”.

Ou seja, antigas lideranças ligadas à UTF e mencionadas por Manoel Gomes, que

chegam a ocupar cargos de diretoria, como Ezequiel, o primeiro presidente da

entidade83.

Com relação à AP, sua atuação em favelas nos anos 1970 possui um forte

elemento de apoio em iniciativas educacionais (depoimento de Roberto Ramos84,

12/05/2011):

“(...) E aí eu começo a pegar o que tem de trabalhos populares em educação, vamos começar, e pintou essa ideia aqui no Rio. Eles começam a ideia desses trabalhos nas favelas numa brecha muito interessante, que era a questão dos cursos livres de madureza. Naquele tempo, quem tinha perdido a escola fazia, o Estado dava uma prova para você fazer o primeiro grau e o científico, segundo grau, e aí nisso surgiram (...) começou a fazer isso nas favelas”.

No caso do Borel, a própria militante Fernanda Carneiro (depoimento de

05/11/2009) passa a atuar no local a partir de um projeto ligado à educação:

“Perguntaram para mim: ‘Você falou que queria fazer política. Você gostaria de trabalhar mais na parte de organização política, na parte teórica ou mais perto do povo?’ Aí eu falei: ‘Mais perto do povo’. Aí responderam: ‘Você não quer dar aula?’ Eu estou falando por volta de 1977. Aí eu falei ‘topo’ e perguntaram: ‘Então você quer dar aula no Borel? Tem um curso supletivo lá’. E eu ia começar a dar aulas de OSPB, que eu era a melhor do mundo, lia jornais. Foi onde a gente politizava mais diretamente assim, dentro dessa visão de aprender a leitura do mundo, do mundo político”.

Além da abordagem educacional, a atuação da AP será direcionada para o

desenvolvimento de ações culturais, como a realização de peças teatrais (depoimento de

Roberto Ramos, 12/05/2011): “(...) E de repente a gente monta um grupo de teatro

muito bom, o irmão da Fernanda participa, o Helder Carneiro, muito bom. Quando o

83 Com a abertura política, o próprio Sebastião Bonifácio chegaria a ocupar a presidência da associação de moradores algumas vezes. 84 Militante apista e morador da Tijuca, atuou no Borel entre os anos 1970 e 1980, chegando a criar fortes laços locais, inclusive tendo uma casa no morro. Foi companheiro de Fernanda Carneiro, a responsável pela datilografia do livro de Manoel Gomes.

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Antônio85 vê a peça que a gente faz sobre Tiradentes, joga a toalha e acaba ali...”. A

Ação Popular não entrará em uma disputa política por cargos na associação de

moradores, porém isso não significa que o desenvolvimento de suas atividades tenha

acontecido sem que se estabelecesse um certo ambiente de concorrência com os outros

grupos de esquerda, como o PCB. A colocação de que “Antônio jogou a toalha”

demonstra um acompanhamento dos apistas pelo PCB e quer dizer que, segundo a visão

do depoente, após a realização dessa peça de teatro, passaria a haver um

reconhecimento maior das atividades da AP por parte dos integrantes do Partido

Comunista que atuavam no Borel86.

Com relação ao MR-8, o movimento já realizava atividades em outras favelas da

zona norte, a exemplo do Jacarezinho (depoimento de Irineu Guimarães87, 06/04/2011):

“Era muito forte, criamos o jornal que era do povo, nos íamos vender jornal nos bares à noite, e botávamos pra quebrar, fugíamos da polícia. Mas montamos o jornal muito forte, e o partido com muito militante. E naquele tempo no Jacarezinho, modéstia à parte, ninguém decidia nada se a gente não quisesse. Porque nós éramos organizados, chegávamos nas assembléias, a gente distribuía uma parte para aqui, uma parte para ali, e todo mundo falava o que a gente queria88”.

No Borel, o Movimento tentou construir seus quadros junto a moradores locais,

chegando a estimulá-los a montar chapas para concorrer à associação de moradores

(depoimento de José Ivan89, 24/04/2009):

“Mais ou menos com 16 anos90 eu já fazia parte do MR8. Minha entrada foi interessante. Foi através de um médico oncologista, que é oficial das forças

85 Refere-se a Antônio Werneck. 86 A relação entre AP e PCB será melhor abordada quando for tratada a questão do processo de edição do livro de Manoel Gomes. 87 Chegou a fazer parte dos quadros do PCB, além de atuar na antiga FAFEG. A partir dos anos 1970, passa a integrar o MR-8 e chega à presidência da FAFERJ. 88 Por se tratar de um depoimento de um próprio militante do MR-8, deve-se refletir sobre a possibilidade de existência de outros grupos locais que fizessem oposição à atuação desse no Jacarezinho, o que não implicaria a possibilidade de o Movimento possuir uma base de ação solidamente articulada atuando no local. 89 Liderança atuante no Borel a partir dos anos 1970, presidirá a associação de moradores inúmeras vezes entre as décadas de 1980 e 1990. Chegará a fazer parte da diretoria da FAFERJ e a se lançar candidato a vereador pelo PMDB nos anos 1980, mas não será eleito. 90 O ano de nascimento do depoente é 1956, o que situaria sua entrada no Movimento aproximadamente em 1972.

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armadas, que me procurou com uns amigos, (...) pessoas realmente preocupadas em tentar consolidar uma consciência política naquilo que a gente vivia, da ditadura e de várias coisas que perseguiam muito a vida social do nosso crescimento. (...) Primeiro foi o MR-8 que me encorajou demais a me candidatar à presidência da associação de moradores, e eu estava com medo de ser candidato. O MR-8 influenciou a gente a criar uma chapa e ir pr’o embate, e acabei aceitando. Acontece o seguinte: essa chapa teve que disputar com o eleitorado que só a situação tinha e aí está a diferença. Eu estava pedindo voto a todo mundo quando na verdade ninguém votava. Só votava um grupo seleto e o que acontece? Eu não tinha acesso à lista de votantes”.

Contudo, a ação de rearticulação da antiga base do PCB no Borel também foi

feita com o intuito de reforçar sua influência junto à associação local, em consonância

com a mesma diretriz que pregava uma maior atuação junto à Faferj, conforme consta

em já mencionado documento interno do partido que reflete sobre a atuação em favelas

(documento sem título, acervo pessoal de Márcio Arnaldo, s/d: 4): “Entre as questões

que temos que encarar estão: de que maneira aplicar nossa linha política dentro de cada

entidade, cada associação, tornando-as instrumentos democráticos de formação e

participação política da população favelada”. Desse modo, temos a associação de

moradores local como palco de disputa direta entre dois grupos: o PCB e o MR-8. Ao

estimular que um de seus filiados concorra à presidência da associação, o MR-8

pretendia estabelecer domínio sobre um órgão de representatividade perante a

população local e, com isso, ter acesso a um elemento estratégico para a execução de

suas propostas junto às classes populares. O Partido Comunista não foge à regra, tendo

em vista seu intuito de buscar uma “maneira de aplicar sua linha política dentro de cada

associação”.

José Ivan chega a mencionar a dificuldade de disputar um eleitorado que “só a

situação tinha”, sendo que ele não possuía acesso à “lista de votantes”. Por situação, ele

se referia aos membros de diretoria que tentariam se manter no cargo. Josias Pereira

(depoimento de 24/09/2010), integrante da chapa de José Ivan, embora não possuísse

filiação ao MR-8, faz a seguinte referência sobre quem seria a “situação”: “Nós

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começamos a trabalhar, era o seguinte, nós trabalhávamos na associação por fora e nós

falamos que íamos lançar um candidato novo, para disputar contra a “velharia” que era

o Lira, aqueles “coroas” da antiga, do passado, o Bonifácio”. No mesmo depoimento,

chegará a ser afirmado (idem): “Você não podia viver agora em torno de Magarinos, ele

já tinha passado. Agora você tinha que trazer outra geração para pelejar também”

(grifos meus).

Com isso, temos configurado um quadro de disputa política entre dois grupos

distintos por um importante espaço de atuação junto à população de favelas. Esse tipo

de embate envolve a construção de representações negativas que visam desqualificar a

ação do oponente (BOURDIEU, 1989), a exemplo do ato de chamar a atenção de

“trazer uma nova geração para pelejar”, não dependendo só da “velharia”. No caso, os

oponentes à chapa à qual pertenciam Josias Pereira e José Ivan fazem parte do grupo

retratado por Manoel Gomes em seu livro. Por mais que, conforme anteriormente visto,

Josias Pereira chame atenção para a importância do livro de Manoel Gomes, tal fato não

impede a desqualificação desses atores no contexto de disputa pela associação da virada

dos anos 1970 para o 1980, tendo em vista que estamos tratando de sujeitos

pertencentes a órgãos que concorrem por esse espaço.

O depoente aprofunda sua crítica, como pode ser visto (depoimento de Josias Pereira,

24/09/2010):

“(sobre a atuação do grupo à frente da associação de moradores do Borel) Nós os chamávamos de pelegos na época. Porque eles queriam ganhar dinheiro, não faziam mais nada. Eles tinham o poder nas mãos, o domínio. Na época era a UMMB ( União dos Moradores do Morro do Borel). (...) Só que o trabalho deles nós chamávamos de retrógrado, já estava ultrapassado. Parado no tempo. Não era a idade, eu digo que não era a idade (das antigas lideranças). É você acompanhar as transformações de tudo que está sendo feito” (grifos meus).

Mais uma vez podemos fazer referência ao uso de representações que visam

desqualificar sujeitos concorrentes, através do emprego dos adjetivos “pelego” e

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“retrógrado”. Porém tais denominações são aplicadas dentro de um contexto específico

de disputas referentes a um período histórico. Uma possibilidade interpretativa pode

levar em conta o fato de que o depoimento de Josias foi tomado em um período (2009)

no qual as associações de moradores de favelas demonstraram a perda de sua

legitimidade por fatores diversos, situação que se consolida a partir dos anos 1990

(BURGOS, 1998, PANDOLFI & GRYNSZPAN, 2002). Ao falar sobre a importância

do livro de Gomes, que constrói uma memória positiva do movimento associativo,

ainda que a partir da visão de um grupo político específico, o depoente não estaria,

através da memória, evocando um quadro que possibilitasse um olhar de revalorização

da atuação das associações de moradores de favelas? Contudo, ao lembrar-se das

disputas do final dos anos 1970, ocorridas dentro de um arranjo histórico específico, o

depoimento chega a revelar alguns aspectos da concorrência política interna do Borel no

período, o que não significa que, em períodos futuros, alguns dos atores, lideranças

locais do Borel, inclusive, envolvidos nesse debate não pudessem alinhar suas forças

frente a novos desafios91.

A partir das observações realizadas, temos a configuração de um panorama de

disputas protagonizadas por sujeitos que passaram a atuar no Borel no período da

abertura política do Brasil e da rearticulação do movimento associativo de favelas.

Trata-se de agentes com interesses específicos e com uma visão própria das favelas,

consideradas como espaços para concretização de seus projetos políticos junto às

classes populares. A partir da convivência dessas propostas, bem como de interesses

concorrentes, é que se estabelecerá o quadro que resultou na produção editorial do livro

de Manoel Gomes. A obra relata a memória sobre a atuação de um grupo específico

91 Os depoimentos aqui utilizados para debater essa questão são referentes às lideranças que não fizeram parte da atuação da UTF. Seria interessante enriquecer esse debate dando voz aos militantes da União que atuaram nos anos 1950 e 1960, o que, porém, não foi possível, pois muitos já haviam falecido ou estavam impossibilitados de depor para a pesquisa por problemas de saúde.

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diretamente envolvido nessa disputa, o que acabará permeando os usos desse discurso

sobre o passado diante das diferentes problemáticas trazidas por contextos históricos

distintos, sendo que sua própria elaboração revelará alguns contornos dessa disputa.

Contudo, antes de aprofundarmos essas questões, é necessário voltar o olhar para o

conteúdo presente nessa memória, referente à atuação da UTF, próximo passo da

análise.

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Capítulo II

O auge das lutas do Borel: a memória sobre a União dos Trabalhadores Favelados

O objetivo deste capítulo é refletir sobre aspectos da memória e da história da

atuação da UTF a partir do relato de Manoel Gomes. Desse modo, serão adotados três

eixos de análise. O primeiro, referente a como se deu o surgimento da favela do Borel

dentro de um contexto de exploração imobiliária desses espaços, comum às primeiras

décadas do século XX. O segundo se concentra na atuação da UTF e nos significados

presentes no relato de suas ações, bem como no seu impacto entre os moradores do

Borel. O terceiro diz respeito à figura do advogado Antoine de Magarinos Torres, seus

interesses e atos políticos dentro de um conjunto mais amplo de sujeitos sociais

proponentes de projetos de intervenção em favelas. Com isso, pretende-se uma

problematização mais sólida acerca dos significados de uma memória sobre a UTF

presentes no depoimento escrito em questão.

O “mito de origem” do Borel92

Manoel Gomes associa o surgimento das favelas do Rio de Janeiro à década de

1920, com os preparativos para a comemoração do primeiro centenário da

independência brasileira. Devido às preparações para a celebração, o “afluxo de

trabalhadores era enorme, vindo de todo o território nacional”, além de imigrantes,

92 Expressão tomada de empréstimo a Lícia Valladares (2005), utilizada pela autora para explicar a origem de um imaginário sobre as favelas do Rio de Janeiro. O emprego da ideia de mito, nesse caso, se deve à utilização de seu significado como fonte de explicação sobre o surgimento de uma realidade, ou seja, como se deu sua origem, e como essa explicação pode tomar um caráter de veracidade, possuindo um aspecto “vivo” para os que dela compartilham. Para uma discussão mais aprofundada sobre a noção de mito, ver ELÍADE, 1972.

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“principalmente de Portugal, Espanha e Itália” (GOMES, 1980: 6)93, que ao chegarem

aqui encontraram uma cidade com déficit de residências para abrigá-los, um alto custo

de vida em contraponto a baixos salários, além do fato de que “comprar um terreno e

construir uma casa dentro das normas da prefeitura seria comprovadamente impossível”

(idem: 12).

Durante muito tempo, o surgimento das favelas teve como “mito de origem” o

aparecimento da favela do morro da Providência94, que teria sido ocupada por ex-

combatentes de Canudos, o que inclusive explicaria a origem da própria expressão

como forma de denominar esses espaços95 (VALLADARES, 2000 e 2005). Gomes

(1980: 12), ao falar sobre o surgimento desses tipos de moradia, chega a fazer menção

ao morro da Providência e sua ligação com a Guerra de Canudos, ainda que não o

apontasse diretamente como a primeira favela carioca: “Daí surgiu a proliferação de

favelas no nosso Rio de Janeiro, desde São Conrado aos municípios da Baixada

Fluminense, como a favela da Providência, ao lado da Estação Pedro II, que começou

com a volta dos combatentes da Guerra de Canudos”.

Na literatura que reflete sobre a história das favelas, alguns de seus mais

importantes autores têm se dedicado ao resgate dos meios e condicionantes que levaram

ao aparecimento desses locais na paisagem urbana. Elas surgem em registros

documentais próximo ao final do século XIX, havendo referências a favelas mais

antigas que a Providência (ABREU, 1984 e 2006, VALLADARES, 2000 e 2005).

93 Ver citação completa de GOMES (1980: 6) na página 14 do capítulo I. 94 Favela localizada na região central do Rio de Janeiro, próximo à estação de trem Central do Brasil. 95 Durante boa parte das primeiras décadas do século XX, o morro da Providência foi denominado “morro da Favella”(grafia usada nesse período), sendo que, a partir dessa denominação, a palavra “favela” passou a ser designada para outras habitações semelhantes na cidade. A associação entre a favela da Providência e a Guerra de Canudos tem origem em dois fatores. O primeiro seria a existência da vegetação conhecida como favela, tanto nesse morro quanto no município de Monte Santo, localizado no estado da Bahia e que serviu como base para as operações militares contra o vilarejo de Belo Monte durante o conflito. O segundo seria uma alusão à resistência realizada por seguidores de Antônio Conselheiro no morro baiano da Favella, que teria retardado a vitória do exército da República durante a guerra (VALLADARES, 2005: 29).

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Dentre as causas do surgimento das favelas, podemos relacionar aspectos da

crise habitacional da virada do século XIX para o XX96, além da própria remodelação

urbana que será feita na região central do Rio de Janeiro. Tais aspectos resultarão na

demolição de cortiços e demais moradias para a população de baixa renda, o que teria

estimulado a ida dos que foram desalojados para as encostas da cidade (VAZ, 1986,

1994a e 2002, ABREU, 1984 e 2006, VALLADARES, 2000 e 2005). A industrialização

também pode ser apontada como uma das causas para o surgimento das favelas, além de

ser um dos fatores que contribuirá para o seu adensamento a partir dos anos 1940

(SILVA, 2005). Atualmente, outros caminhos têm sido percorridos pela literatura sobre

as origens desses espaços, a exemplo de obras que analisam sua relação com antigas

comunidades quilombolas (CAMPOS, 2007).

No caso específico da Tijuca, as fábricas começaram a surgir em sua paisagem,

então ocupada por grandes chácaras, ainda no século XIX97. Tal fato acabou

contribuindo para duas situações: a maior urbanização da área e o crescimento de

ofertas de trabalho mais favoráveis à população de baixa renda (CARDOSO, VAZ,

ALBERNAZ, AIZEN & PECHMAN, 1984). O aumento das oportunidades

empregatícias, não acompanhado pelo planejamento habitacional, criou uma conjuntura

favorável ao aparecimento de formas de moradia caracterizadas pela informalidade, no

caso, as favelas (ABREU, 1984). Contudo, outros fatores podem ser levados em

consideração para o surgimento de favelas no bairro, a exemplo da favela do Salgueiro,

96 Entre 1870 e 1890, a população da cidade passou de 235.381 para 518.292 habitantes, atingindo o número de 518.381 em 1906, sendo que, nesse período, esses residentes se concentravam na região central, situação a ser alterada apenas com a chegada dos modernos meios de transporte coletivo, que permitirá a expansão da malha urbana, e com a Reforma de Pereira Passos (1902-1906). Esse aumento populacional não foi acompanhado pelo aumento do número de moradias, havendo a agravante de que diversas atividades, como manufaturas e fábricas, se estabeleceram nessa região, reduzindo ainda mais a oferta de residências. O decorrente incremento na demanda por moradia levou a uma alta dos preços dos aluguéis, intensificando, devido à falta de recursos da população, o uso dos espaços disponíveis. Consequentemente, temos o aumento da densidade domiciliar e a piora das condições de higiene (VAZ, 2002: 26). 97 Podemos destacar a Fábrica das Chitas (1820), onde hoje se localiza a praça Sáenz Peña e a cervejaria Brahma Villezer e Cia. (1895). (VIII REGIÃO ADMINISTRATIVA, 1971: 18-28).

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formada a partir do final do século XIX por escravos fugidos de propriedades existentes

no Alto da Boa Vista (CUNHA, 2006).

O surgimento da favela do Borel, de acordo com Manoel Gomes, é explicado a

partir da exploração imobiliária do terreno, que teria sido feita a partir da esfera

informal, tal qual ocorreu com outras favelas que teriam se originado na mesma época

(FISCHER, 2008, GONÇALVES, 2010). Até 1921, o morro localizado no Vale do

Maracanã apresentava o seguinte aspecto (GOMES, 1980: 1-2): “Sua vegetação era

vastíssima e atraente, com 22 nascentes de água potável, além de dois córregos

condutores para o escoamento de água expelida”. A partir desse ano (idem: 6):

“(...) um tal senhor de nome Manoel Isidério subalugava os terrenos do morro para a construção de barracões de madeira ou pau-a-pique com cobertura de zinco. Não era permitido naquela época fazer uma casinha de alvenaria com telhas francesas. Quando algum pretendente a aluguel tentava fazer uma casinha melhor de alvenaria, ele não lhe dava permissão, alegando que fazia aluguéis baratos para os trabalhadores de baixa renda”98.

Manoel Gomes (idem: ibidem), através de uma certa dose de ironia, questiona o

direito de Isidério explorar o local, conforme sugere o uso de aspas sobre o pronome

indicativo de sua posse sobre o morro: “Seu Isidério, como era chamado, que de

‘trouxa’ só tinha a cabeça e os testículos, por um bom moço passava, alugava as terras

do ‘seu’ morro àquela gente pobre e carente de moradia” (grifos meus). Em outro

momento, através da figura de Magarinos Torres, será encontrada menção à posição de

que a terra, um bem natural, seria direito de todos (idem: 36): “(ao se dirigir aos

moradores do Borel) Vocês, meus irmãos, não são galaxianos ou extraterrenos. São

98 Sobre a questão das formas de construção de moradia em favelas, o fato de não haver residências de alvenaria pode ganhar outros significados para além de um indício da baixa renda de seus moradores; pode ser vista também como uma estratégia para permanecer em áreas de favela e não ter sua moradia erradicada pela fiscalização, uma vez que a casa deveria ser construída rapidamente, o que seria impossibilitado pela alvenaria. Conforme depoimento de Hélio de Oliveira, ex-morador e ex-presidente da associação de moradores do morro da Formiga, onde nasceu em 1955, favela próxima ao Borel (PANDOLFI & GRYNSZPAN, 2003: 254): “Na época (anos 1940, quando seus pais se mudaram para o morro), para construir um barraco era difícil; era preciso construir à noite e se mudar logo, sob pena de os policiais derrubarem. A estratégia era esta: derrubar árvores – a mata da encosta era bem fechada – e pegar a madeira para construir o barraco, mudando-se em seguida. Foi assim que a comunidade do morro da Formiga foi crescendo”.

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mesmo terráqueos no duro, portanto, a terra é nossa, é de todos. Foi Deus que a criou e

deu para os seus filhos nela viverem, e todos vocês são filhos de Deus, como todos os

seres humanos o são” (grifos meus)99.

Já chegou a se tornar um lugar comum a afirmação de que as favelas seriam

resultado de invasões, posição questionada a partir de pesquisas que revelam a

exploração imobiliária através de aluguéis. Segundo Lilian Vaz (1994: 592):

“(...) há várias referências ao aluguel de barracos, de ‘cavas’, do ‘chão’ e de terrenos nas primeiras favelas. A questão da cobrança de aluguel remete à forma de propriedade: algumas das primeiras favelas não resultaram de invasões, mas de grupos de imóveis de aluguel. Alguns proprietários de cortiços possuíam também imóveis de aluguel nas primeiras favelas; em

1948, 31,4% das unidades pagavam aluguel (dos barracos) e 6,4% pagavam aluguel ‘do chão’ (Censo das Favelas, 1949)”.

Diante desse quadro, nas três primeiras décadas do século XX, vemos surgir uma

série de interesses que tornam as favelas locais de disputas referentes à exploração de

aluguéis, propriedade da terra e construção de capital político, este através do

estabelecimento de laços de proteção relativos aos dois primeiros fatores. Desse modo, a

esfera política aparece nessa questão através de representantes que se envolvem em

pendências, seja a favor da proteção dos moradores contra os chamados “grileiros”, que

pretendiam explorar os terrenos de favela, na maioria das vezes sem sua posse

verdadeira e legalmente comprovada, seja em prol dos que desejavam o fim das favelas

justamente para potencializar possibilidades de lucro.

Esse elemento gerou uma situação de tensão que perpassava o cotidiano dos

habitantes dessas áreas (FISCHER, 2008). Ao longo dos anos 1930, observaremos uma

série de processos de despejos, movidos por proprietários ou “grileiros”. Temos o caso

do morro de São Carlos, que contou com cobertura da imprensa, entre os anos 1932 e

1934, e que resultou na criação da Sociedade dos Trabalhadores Humildes do Morro de

99 O discurso da terra como um bem natural e, por isso, pertencente a todos será utilizado pelo PCB em seu envolvimento em questões de disputa fundiária, em apoio a grupos de lavradores no campo.

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São Carlos, em 1937 (SILVA, 2005). Outro exemplo de processo de despejo foi o

ocorrido na favela Chácara do Céu, no Leblon, e na favela do Capão, cuja remoção

ocorreu com ampla participação das esferas burocráticas do exército, uma vez que se

tratava de terreno militar (idem).

O crescimento das favelas nesse período teve como uma das causas o aumento

da população no centro urbano e em seus arredores, que cresceu a uma taxa anual de

2,56%, entre 1906 e 1920, e 2,16%, entre 1920 e 1940 (FISCHER, 2008: 51). Tal

situação, aliada ao déficit habitacional (VAZ, 1994), levou à elevação do valor dos

terrenos e à busca das classes populares por moradias no subúrbio e pela ocupação dos

morros e colinas. A partir dos anos 1920, certos políticos oposicionistas chegam a ser

favoráveis aos moradores de favelas contra o despejo de seus lares e a exploração de

aluguéis (FISCHER, 2008).

A partir dos anos 1920 e 1930, notamos o aparecimento de um modus operandi

dos habitantes desses espaços na tentativa de defesa de seus interesses, e o terreno

escolhido para a batalha foi o Judiciário. A disputa entre proprietários, “grileiros” e

moradores passou a ocorrer através de encaminhamentos jurídico-legais, com estes

últimos passando a recorrer a advogados e aos jornais da época, para buscar respaldo no

conflito judicial e para denunciar arbitrariedades e violências contra eles cometidas

(SILVA, 2005, FISCHER, 2008, GONÇALVES, 2010). O contato com políticos, muitos

detentores dos principais cargos do executivo, era igualmente buscado, a exemplo da ida

do prefeito Pedro Ernesto, que em 1933 visitou o morro de São Carlos a convite “do seu

Centro Político de Melhoramentos” (SILVA, 2005: 122), ou de moradores das favelas

de Santo Antônio, Mangueira e Jacarezinho, que escreviam cartas para o próprio Getúlio

Vargas, no início dos anos 1930, ou enviavam comitês de representantes ao Palácio do

Catete, sede de seu governo (FISCHER, 2008: 261).

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85

Manoel Gomes retrata Manoel Isidério como o primeiro explorador da favela do

Borel, em um contexto em que a relação entre “grileiros”, ou proprietários, e moradores

era marcada pela tensão que, por vezes, resultava em enfrentamento judiciário. Um

dado interessante reside no fato de que Isidério “subalugava” casebres no morro,

embora Gomes não faça nenhuma alusão de um proprietário a quem Manoel Isidério

poderia se reportar. Sua figura é construída como a do “grileiro” tradicional, que se

apropriou de uma terra que a ninguém pertenceria para explorá-la, visando ao

enriquecimento à custa daqueles que não teriam como arcar com os gastos da cidade

formal (GOMES, 1980: 7-8):

“Isidério era um desses chegantes como um outro qualquer, que pairam por aí a fim de aventurar a sorte, para isso precisava de ousadia e essa qualidade ele tinha de sobra. Raciocinando bem, ele concluiu que ia persuadir os ingênuos que seria dono do morro, mas como provar? Não tinha escritura, procuração ou mesmo um documento autorizando-o a desenvolver rentoso ‘negócio da China’. Fez as suas conjecturas e concluiu: - ‘Eu faço as cavas (local onde plantar o barraco), vendo-as e cobro um pequeno preço pelo aluguel mensal do chão. Dou o direito de morar, só não posso permitir nem autorizar construções de alvenaria, pois os terrenos não são meus, e casa de alvenaria tem valor, não poderá ser demolida sem briga ou indenização’”.

Gomes constrói a figura de Isidério como um explorador que, para manter seus

lucros, “(...) não permitia a entrada clandestina de novos moradores, quem não pagasse

o aluguel seria despejado ou o barracão destruído. Com essa finalidade, constituíra uma

‘gang’, gente gananciosa como Isidério” (idem: 8). Tal descrição mostra a construção da

imagem da figura de Manoel Isidério como tantos outros exploradores das favelas nesse

período, sem comprovação legítima da posse de terra e capaz de cometer arbitrariedades

e violência, inclusive contando com um grupo de empregados para lhe auxiliar, seja na

cobrança, seja na execução de atos mais drásticos. Contudo, Isidério não teria sido o

único grileiro do Borel. Depois de um período, repassou a exploração da cobrança de

aluguéis para “dona Hortência, que reforçara mais ainda os seus lucros” (ibidem,

idibidem). A nova “proprietária” também se utilizava da violência quando necessário:

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86

“Sua turma não era de tocar viola de papo para o ar, cada vez mais violenta na expulsão

e destruição dos barracos” (idem: 9). Após determinado período, Hortência, assim como

seu antecessor, fez o repasse da cobrança dos locatários a “dois sabichões, chantagistas

portugueses” chamados Daniel e Pacheco. Este chegou, inclusive, a morar no morro. A

atuação de ambos era caracterizada da seguinte forma (ibidem: 10):

“Tirando onda de ricos para impressionar os antigos moradores, eles conservaram a equipe assalariada por dona Hortência, que fazia a cobrança, demarcava o local por cavas e a preparava quando o pretendente assim as queria, pagando pela mão de obra. (...). Agiam como se fossem policiais particulares, é lógico”.

Daniel e Pacheco seriam os últimos “grileiros” antes da imobiliária Borel-

Meuron, empresa para a qual teriam vendido o direito de exploração e que foi

responsável pela ação de despejo dos moradores do Borel. Deve ser chamada atenção

para o fato de que todas as vezes em que foi negociado o direito de exploração, segundo

a memória de Gomes, tal negociata ocorreu fora dos trâmites legais, uma vez que não

havia a posse legítima comprovada por documentos válidos. Contudo, essa era uma

prática comum no tocante às favelas da época, gerando uma verdadeira indústria

informal/ilegal de exploração imobiliária (FISCHER, 2008, GONÇALVES, 2010).

A memória constitui um meio de releitura do passado capaz de registrar

múltiplas impressões sobre seus eventos, sem, entretanto, esgotar todos os seus

significados (LE GOFF, 1982, RICOEUR, 2000). Desse modo, devemos levar em

consideração que a memória de Manoel Gomes sobre como se deu o surgimento do

Borel não deve ser tomada como uma verdade absoluta, mas como uma das versões

possíveis do acontecido. E, tendo em vista que o processo de externalização consciente

da memória é sempre direcionado por interesses específicos (FINLEY, 1989), as

representações contidas no discurso de Gomes atendem a esses mesmos interesses que,

por sua vez, estão relacionados ao quadro político do momento de sua elaboração e

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edição em livro. Assim, devemos compreender a estratégia discursiva adotada por

Manoel Gomes, de associar o surgimento do Borel à exploração imobiliária e de seus

moradores exclusivamente levada a cabo por agentes externos, indício da forma como o

grupo político que esse autor representa interpretava as favelas e a questão da habitação

popular no Rio de Janeiro.

Portanto, devemos direcionar um olhar mais complexo para a figura de Manoel

Isidério. Há uma outra memória sobre esse personagem, presente no depoimento de seu

sobrinho, conhecido como Mestre João Catinga, que foi publicado em uma reportagem

na revista Módulo100. Mestre Catinga coloca que, desde os primórdios da ocupação do

Borel, existia a cobrança de aluguéis (REVISTA MÓDULO, 1980: 31):

"Na época do Borel Antigo existiam os homens que se diziam donos do morro. Então eles alugavam os terrenos para os proprietários que moravam nele, sendo que alugavam pedaços de 100, 200 metros por 200 mirréis, por exemplo. Eles armavam vilazinhas de 5, 6 barracos e alugavam de acordo com quarto e sala: se tivesse cozinha era 60 mirréis, se era só um quarto era 30 mirréis e assim por diante”.

A atuação de seu tio é lembrada da seguinte forma (idem, ibidem):

"O Borel tinha então uns 30 barracos, apenas. O morro aqui começou a modificar depois de uns 30 anos para cá. Nessa época, havia um só que comandava, se fingia ser o dono das terras. Desse lado aqui tinha o meu tio, o Manoel Desidério101, já morto, que comandava esse pedaço. Ele pagava na época a importãncia de 200 cruzeiros, né?, antigos, e mandava fazer os barracos de acordo com a família: se era solteiro era barraquinho de 3 x 3, para um sozinho dava, então ele cobrava aluguel de 30 mirréis. Se era quarto, sala e cozinha seria o valor de 60 mirréis. Bom, com o resultado desse dinheiro ele pagava o patrício lá fora".

Manoel Gomes (1980: 6) chega a retratar Manoel Isidério como um indivíduo

que “subalugava” barracões no Borel, mas em nenhum momento menciona agentes

externos, sendo que Catinga reforça que Isidério usava parte da renda dos aluguéis para

100 Revista de arquitetura e urbanismo, editada por Oscar Niemeyer, que chegou a ser uma das mais importantes em sua temática. Em um primeiro momento, circulou de 1955 a 1965. Voltou a ser editada entre 1975 e 1989. 101 O nome “Desidério” também estará presente nas reportagens do Imprensa Popular que serão exploradas à frente. Optei pela grafia “Isidério” por ser a que consta no livro de Manoel Gomes, elemento a partir do qual construo minha análise.

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“pagar o patrício lá fora”. Pelo contrário, Gomes (idem: 7) chega a afirmar que Isidério

“tornou-se dono absoluto das terras abandonadas do morro, que se estendiam até a

virada do Andaraí”, e com isso, “se considerava rico com a transa aplicada no morro e a

negociata da ‘venda’ para dona Hortência” (ibidem: 8). Porém, João Catinga coloca uma

memória diferente sobre a questão (REVISTA MÓDULO, 1980: 32):

“Diziam então que o Borel era dos suíços não sei-o-quê (...). Só a única pessoa que conhecia os suíços era o meu tio que morreu e era cego. Cego modo de dizer, porque não tinha leitura para conversar, mas dizem que quando eles (suíços) foram embora iam deixar essas terras pra ele, como homem trabalhador que era deles, de confiança. Mas esqueceram e voltaram com a papelada toda quando foram embora”.

Com isso, temos uma visão diferente de Manoel Isidério, não mais como um

explorador de terras sem dono, mas alguém que trabalhava para os que lucravam com a

cobrança de aluguéis no morro, ou seja, alguém inserido nessa “indústria”, mas em uma

posição subalterna. O mesmo, por ser “cego”, não soube aproveitar a oportunidade que

os “suíços” prometiam para lhe deixar cuidando dos negócios. E também há registros de

que Isidério era um morador do Borel (“São donos do Borel os construtores de seus

barracos”. Imprensa Popular, 29/10/1954): “Foi em 1914 que Manoel Desidério subiu

ao terreno da Chácara, lá no Morro do Borel, e armou o seu barraco. Dizia-se dono da

terra um Sr. Lincoln Nader. O “dono” taxou o aluguel do barraco 40 mil-réis mensais”.

Além da condição de morador de Manoel Isidério, também temos a revelação de

um nome daquele que seria o primeiro a explorar o aluguel de moradias no Borel,

Lincoln Nader102. A mesma reportagem entrevistou moradores dessa favela à época, um

deles podendo ser a pessoa mencionada por Manoel Gomes (1980: 13) como uma das

mais antigas moradoras, dona Luduvina, que na matéria aparece nomeada como

Ludovina.

102 Não há certeza sobre o nome correto do indivíduo mencionado, uma vez que, em outras reportagens, ele também será referido como Lincoln Nodari.

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O periódico coloca mais detalhes sobre o processo de exploração do morro

(idem):

“(...) conta a velha Ludovina que os recibos não eram assinados pelo sr. Lincoln, e sim por uma velhinha que morava nas proximidades da chácara, vizinha da fábrica Lua Nova. O fato é que Desidério morreu, as habitações se multiplicaram, o morro passou a abrigar uma população. Um dia, Manoel Desidério adoeceu e perdeu os documentos que comprovavam a posse de Lincoln Nader. Morre Desidério, surge um Olímpio Silva, que passou a cobrar aluguéis no morro (...). Morre Olímpio Silva, toma conta dos terrenos um Sr. Daniel Gonçalves (...). Aparece então um Antônio Pacheco (...) que passou a procuração para cobrar aluguéis a seu filho, Manoel Pacheco Leal. (...). os Leais arranjaram títulos de posse do morro e ‘venderam’ os terrenos aos grileiros”.

Podemos perceber alguns elementos que apontam para caminhos ligeiramente

diferentes, no que diz respeito aos detalhes, do depoimento escrito de Manoel Gomes103.

Primeiramente, o autor de “As lutas do povo do Borel” coloca que Manoel Isidério teria

iniciado a ocupação do morro em 1921, enquanto a reportagem da Imprensa Popular

coloca em 1914. Dificilmente se chegará à data exata da construção da primeira moradia

dessa favela, bem como seu responsável, seja Isidério ou qualquer outro.

Ao analisarmos discursos de memória, nosso objetivo não é atingir a “verdade

dos fatos”, mas compreender o porquê de certas construções discursivas. Conforme

visto, a memória é uma ferramenta de significação do passado, polissêmica e que não

corresponde à exatidão de fatos ocorridos (LE GOFF, 1982, RICOEUR, 2000). Assim,

deve ser considerado o entendimento da memória não como um corpo homogêneo, mas

fragmentário, conflitivo e tenso, maculado pelas preocupações e choques do presente:

“A memória também sofre flutuações que são função do momento em que ela é

articulada, em que ela está sendo expressa. As preocupações do momento constituem

um elemento de estruturação da memória” (POLLAK, 1992: 4).

Desse modo, é possível interpretar a escolha de Manoel Gomes pela data

fundadora do Borel como 1921 a partir da conjuntura, colocada pelo próprio autor, de

103 Algumas dessas diferenças foram igualmente percebidas por Fischer (2008).

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comemoração do primeiro centenário da independência brasileira, com o afluxo de

trabalhadores, alguns de fora do país, para uma cidade com déficit habitacional, sendo

visto como o elemento que propiciou o surgimento das favelas104. No mais, há certas

discrepâncias com relação aos primeiros a controlar o aluguel de barracos no morro. Na

reportagem do Imprensa Popular, é mencionado Lincoln Nader como aquele que seria o

responsável pela organização da coleta das mensalidades, além do beneficiário dos

lucros, fato não colocado por Gomes, que relaciona Isidério como o primeiro “grileiro”

do Borel. Conforme visto pela reportagem e no depoimento de seu sobrinho, Isidério era

um empregado, residente da favela, que foi substituído em suas funções, após seu

falecimento, por Olímpio Silva, que por sua vez nem é citado em “As lutas”. Manoel

Gomes (1980: 8) também coloca que Isidério “resolvera então sair de cena, tomando

rumo ignorado, deixando o Borel para trás”, sem mencionar sua morte.

De todos os personagens abordados, deve-se pôr em foco a figura de Manoel

Isidério. Afinal, tratava-se de um morador que atuava junto aos “grileiros”, como

empregado, sem, ao que tudo indica, obter o enriquecimento citado por Gomes. Então

fica o questionamento: quais os motivos que levaram à construção discursiva, em “As

lutas do povo do Borel”, da figura de Isidério, que, segundo a reportagem e as

lembranças de Mestre Catinga, pode ter sido o primeiro morador da favela?

Beatriz Sarlo (2007) atenta para o fato de que as escritas sobre o passado que

começaram a ter grande aceitação no mercado editorial do pós-ditadura na América

Latina seriam caracterizadas pela subjetividade e pelo tom testemunhal, sendo de

responsabilidade, como convém lembrar, de sujeitos que não tiveram formação

profissional de historiador. Muitos, inclusive, estiveram diretamente envolvidos nos

episódios que retratam, passando o caráter de testemunho a possuir um certo elemento

104 Manoel Gomes (1980: 15) chega a mencionar pelo menos um morador que habitava o Borel desde 1921: “(...) do português Casemiro Pereira – ali residente desde 1921 (...)”.

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moral que denotaria veracidade. Um dos aspectos dessa vertente da escrita sobre o

passado, diferente da historiografia profissional, privilegiaria a coesão do discurso em

detrimento do estabelecimento de múltiplas hipóteses explicativas e analíticas de uma

determinada conjuntura ou período histórico.

Assim, podemos perceber que a forma como a figura de Isidério é apresentada

para o leitor, bem como sua função na narrativa sobre o surgimento do Borel, expõe

uma certa coerência visando à coesão discursiva. Afinal, caso esse personagem fosse

retratado como um morador que atuava junto aos “grileiros”, tal quadro resultaria em

um aparente paradoxo, necessitando de certas hipóteses analíticas que iriam de encontro

ao tipo de narrativa histórica elaborada por Manoel Gomes105. Porém, a situação de

Manoel Isidério se encontra dentro do complexo sistema, que tem a informalidade e a

ambiguidade da atuação do poder público e da condição da posse da terra106 como

molas propulsoras de exploração imobiliária das favelas nesse período (FISCHER,

2008, GONÇALVES, 2010).

A memória sobre a UTF

As lutas vivenciadas pelo povo do Borel às quais alude o título do livro de

Manoel Gomes estão relacionadas às formas de exploração imobiliária por ele sofridas

e, principalmente, ao direito à permanência contra as tentativas de despejo. É a partir

dessa perspectiva que a UTF, assim como Magarinos Torres, assume papel central na

narrativa. A história contada por Gomes começa com os motivos que levaram à

ocupação do Borel, como das demais favelas da cidade, e à exploração sofrida por seus

105 Por certas semelhanças em termos de forma do discurso, foi tomado por base de comparação o modelo de narrativa histórica analisado por Beatriz Sarlo (2007), anteriormente mencionado. 106 Demonstrada pelos inúmeros “donos” que reivindicavam o direito de exploração do terreno, bem como a forma com que esse “direito” foi sendo sucessivamente negociado.

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moradores por indivíduos que se passavam por proprietários daquelas terras, segundo a

visão do autor. Contudo, o grande elemento catalisador da mobilização associativa que

levou à criação da União dos Trabalhadores Favelados foi o início do convívio, marcado

por conflitos, com a imobiliária Borel Meuron.

As favelas ganham crescente importância no debate público no pós-1945, tendo

em vista, dentre outros motivos, o aumento do número de barracos registrados nos anos

1940 e 1950 (LIMA, 1989). Esse crescimento pode ser explicado pela industrialização e

pelo aumento do custo de vida, em detrimento do baixo poder aquisitivo propiciado

pelos salários (LIMA, 1989, SILVA, 2005). Na década de 1950, houve um intenso

processo de parcelamento fundiário que, aliado à criação ou valorização de novos

bairros, intensificou o interesse imobiliário em áreas ocupadas por favelas. Esse

fenômeno resultou em uma série de processos de despejo, que serviram como elemento

catalisador para a mobilização dos moradores desses espaços (LIMA, 1989, FISCHER,

2008, GONÇALVES, 2010). O início desse decênio foi um período de intensa

mobilização em favelas, conforme demonstra o crescimento de associações de

moradores desses espaços, embora muitas apenas se ativessem a questões de âmbito

local, sem uma agenda unificada de reivindicações (GONÇALVES, 2010).

Essa ação foi permeada por um quadro de crise econômica na qual surgiu uma

série de pleitos por melhorias salariais, protestos contra a alta de aluguéis e contra o alto

custo de vida. Esse quadro mobilizatório teve como um dos principais marcos o ano de

1954, crucial para a vida política brasileira devido ao suicídio de Getúlio Vargas, e data

da criação da UTF. Desse modo, temos esse ano como marcante para a organização do

movimento de moradores de favelas, que foi redefinidora das relações destes com

agentes públicos e privados, além de um novo esforço de ressignificação da

representação desse grupo no imaginário social (SILVA, 2005).

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Muitos dos atos levados a cabo pela União dos Trabalhadores Favelados não

podem ser consideradas propriamente inéditas, mas deve ser sublinhado o fato de a

entidade representar um, este sim, inédito esforço de unificação das iniciativas

reivindicatórias de órgãos representativos de favelas (FISCHER, 2008, GONÇALVES,

2010). Já havia todo um histórico de mobilização em outras favelas, através de um certo

modus operandi. Brodwyn Fischer (2008) chega a mencionar uma tentativa de despejo

iniciada nos anos 1920, não em uma favela propriamente dita, mas em áreas específicas

do então chamado “sertão carioca”, em Guaratiba e Jacarepaguá. Nessa ocasião, uma

companhia chamada Banco de Crédito Móvel tentou expulsar posseiros para especular

com seus terrenos, muitas vezes usando táticas diversas de abusos e violências, levando

seus moradores a uma série de ações, tais como se organizar, procurar jornais, endereçar

cartas ao presidente e buscar respaldo jurídico.

Há os casos em que moradores de Santo Antônio, Jacarezinho e Mangueira

endereçaram cartas a Getúlio Vargas buscando proteção, e na própria Tijuca, bairro onde

está localizado o Borel, podem ser apontados pelo menos dois outros casos, o das

favelas do Salgueiro e do Turano. No Salgueiro, durante a década de 1930, uma série de

residentes foi à justiça tentar garantir a posse de suas propriedades através do direito a

usucapião, em meio à compra do terreno, onde se localizava a favela, por Emílio

Turano, imigrante italiano com histórico de exploração imobiliária em outras favelas

locais, a exemplo da que leva seu nome e será abordada posteriormente. Foi enviado um

telegrama a Vargas, sendo que nunca se provou envolvimento do presidente na questão,

além da mobilização de sua escola de samba e do acionamento de um advogado, João

Luís Regada. A ação judicial acabou sendo favorável aos moradores após quase uma

década e diversos entreveros jurídicos, e, mesmo assim, não significou paz definitiva

para seus moradores (FISCHER, 2008).

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A favela do morro do Turano surgiu na década de 1920, a partir de um contrato

de exploração de aluguéis de um cortiço na rua Barão de Itapagipe obtido pelo

mencionado imigrante italiano. Nos anos 1940, com o fracasso de Emílio Turano

ocorrido no morro do Salgueiro, a exploração sobre os moradores da favela do Turano

prosseguiu, mais uma vez sendo relatada uma série de casos de abusos e violências.

Seus moradores, então, passaram a organizar um movimento de resistência, contando

com a participação de militantes comunistas e alguns advogados. O nome do morro

alterou-se para “morro da Liberdade”107, o pagamento dos aluguéis foi suspenso e um

jovem advogado simpatizante comunista, Benedito Calheiros Bomfim108, assume a

causa. O caso da favela do Turano não resultou na expulsão de seus moradores, o que

também não significou a garantia de estabilidade, direito à propriedade e acesso a

serviços públicos (idem).

Outro caso emblemático da época foi o da favela do Jacarezinho, localizada em

uma zona industrial e considerada a maior favela da cidade no período. A Companhia

Imobiliária Concórdia pediu a reintegração da posse do terreno no final dos anos 1940,

sendo que após um artigo do jornal Diário da Noite, de 24 de junho de 1949, a

prefeitura comunicou ao juiz responsável pela causa a expropriação do terreno,

ordenando a suspensão do despejo. Como o pagamento não havia sido feito, o juiz

responsável endereçou uma carta ao Ministro da Justiça, solicitando o envio de 200

policiais para garantir a expulsão dos moradores do Jacarezinho. Como resultado, o

prefeito Mendes de Morais enviou, em regime de urgência, uma mensagem à Câmara

dos Vereadores, em prol da obtenção do crédito necessário para a expropriação do

terreno da favela (GONÇALVES, 2010: 135-136). Essa favela apresentou uma forte

107 A alteração de nome também ocorrerá no Borel, que, assim como o Turano, não apresentará grande aceitação do novo nome. 108 Benedito Calheiros Bomfim se tornaria um conhecido jurista e chegaria a ser presidente do Instituto de Advogados Brasileiros, entidade da qual surgiu a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

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mobilização de atores diversos, como seus habitantes, militantes do Partido Comunista,

além de intrincados laços com a Igreja através da atuação da Fundação Leão XIII.

Mesmo com a expropriação, não cessaram as ameaças de despejo durante a década de

1950, quando então se destaca a figura de Geral Moreira, advogado e vereador do

Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), que assumiu a defesa da favela passando a evocar

o princípio da “função social da propriedade”, alegando que o despejo dos moradores ia

de encontro à Constituição de 1946 (idem: 137).

Esses casos ocorreram paralelamente ao grande período de politização que

caracteriza o debate sobre as favelas no final dos anos 1940. Nesse período, temos a

atuação de vereadores do PCB junto a esse segmento populacional109, além da criação

de um órgão da Igreja, em 1947, justamente para combater a temida “influência

comunista”. Outro exemplo dessa polarização sobre o debate é a série de artigos de

autoria de Carlos Lacerda, publicada em 1948 no Correio da Manhã, intitulada

“Batalha do Rio”. Em seus escritos, Lacerda fazia críticas à influência do Partido

Comunista110 e à atuação do governo municipal, buscando a criação de uma via

alternativa para solucionar o “problema das favelas” (SILVA, 2005, FISCHER, 2008,

GONÇALVES, 2010). Em termos de iniciativas governamentais, podemos citar a

criação de uma comissão para extinção de favelas, em 1947, na administração de

Mendes de Morais (1947-1951), que resultará no Censo de Favelas de 1948 (LEEDS &

LEEDS, 1978). Em 1952, será criado o Serviço de Recuperação de Favelas, ligado à

Secretaria de Saúde e Assistência, e que, a princípio, teria se organizado de forma a

atuar através da urbanização, mas que agiu por meio de ações de despejo e demolição de

109 Desde 1945, o Partido Comunista estaria na legalidade, conseguindo registro a tempo de participar das eleições presidenciais do mesmo ano, a primeira após o fim do Estado Novo. Nas eleições municipais de 1947, o partido conseguiu resultados expressivos, constituindo sólidas bancadas de vereadores. Para mais detalhes, ver PANDOLFI, 1995. 110 O PCB havia obtido 36% das cadeiras na Câmara Municipal, o que demonstra um certo êxito eleitoral, e acabou sendo, novamente, posto na ilegalidade em 7 de maio de 1947 pelo presidente Eurico Gaspar Dutra (GONÇALVES, 2010: 105-106).

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barracos (SILVA, 2005).

Posteriormente, veremos o aparecimento de outro órgão ligado à Igreja, a

Cruzada São Sebastião (1955)111, que surge com o objetivo de recuperar uma certa

legitimidade perdida pela Fundação Leão XIII, que teria se tornado um órgão mais

burocrático, e, ao mesmo tempo, apresenta um componente de inserção social mais

sólido para os moradores de favelas, sem pregar a remoção das que estivessem em áreas

de alto valor no mercado imobiliário, mas também não abdicando de certo controle

social ou de se colocar como um contraponto à influência do PCB (RIOS, 1986, SILVA,

2005 e GONÇALVES, 2010). Em 1956, surge o Serviço de Recuperação de Favelas e

Habitações Anti-Higiênicas, congregando diversos órgãos e apresentando um viés de

atuação que privilegiou mais a urbanização do que a remoção (LEEDS & LEEDS,

1978, RIOS, 1986, SILVA, 2005, GONÇALVES, 2010).

Tais iniciativas estão inseridas em um contexto de ampla polarização e debate

político sobre as favelas desde o final dos anos 1940 (SILVA, 2005), período no qual a

administração municipal opta pela erradicação desses espaços, embora não tenha

tomado nenhuma medida mais sólida para a concretização dessa finalidade (FISCHER,

2008). Nesse quadro, a oferta de favores políticos surge como um elemento de garantia,

embora consideravelmente frágil, da permanência, ainda que provisória, dessas áreas,

em detrimento da construção de uma esfera definitiva de garantia de direitos,

constituindo-se, assim, em uma moeda de troca em um mercado movido a capital

político. A legislação não reconhece o direito à ocupação do solo por meio de favelas.

111 A entidade esteve sob comando do padre Dom Hélder Câmara. Nascido em Fortaleza, onde se ordenou padre, veio para o Rio em 1936. Foi um dos fundadores da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em 1952, e, através da Cruzada São Sebastião, foi um importante ator político para o entendimento das intervenções da Igreja nas favelas durante os anos 1950 e meados dos 1960, se contrapondo às iniciativas influenciadas pelo PCB. Em 1964, Dom Hélder Câmara se afasta do Rio de Janeiro por discordâncias com o cardeal Dom Jaime Câmara, sendo nomeado arcebispo de Olinda e Recife. Foi crítico do governo militar, sobretudo no que se refere aos desrespeitos contra os direitos humanos cometidos pelo regime. Para mais informações biográficas, ver verbete “Hélder Câmara” no DHBB onlineI, disponível para consulta em http://www.fgv.br/CPDOC/BUSCA/Busca/BuscaConsultar.aspx. Consultado em 10/11/2011.

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Desse modo, torna-se moeda de troca a opção das autoridades por não aplicar a lei,

gerando uma situação especial. Em outras palavras, fazer “vista grossa” à existência das

favelas, sem tentar sua remoção, é visto como um favor, e o ato contrário é tido como

uma arbitrariedade. Assim, cria-se um quadro de dificuldade para a mobilização por

direitos, e a mera execução ou não de leis se transforma em uma forma de controle

social dos moradores de favelas (FISCHER, 2008, GONÇALVES, 2010).

Na década de 1950, não temos ainda o aparecimento de uma política

governamental que busque o fim desses espaços, algo que só ocorreria na década

seguinte. No entanto, há batalhas pela posse do solo travadas na esfera do judiciário,

que seguem o modelo apresentado pelos casos das favelas do Salgueiro, do Turano e do

Jacarezinho. Assim, vemos surgir uma “indústria da expropriação”, na qual muitos

entrarão com ações de despejo contra favelas, sem necessariamente possuírem

documentos legítimos que comprovem sua condição de donos. Seu objetivo foi obter

lucros com indenizações pagas pelo poder público (GONÇALVES, 2010). É preciso

atentar para o fato de que essas ações de despejo foram movidas por sujeitos privados,

não constituindo atos da administração pública. Nesse contexto, ocorrerá o processo de

despejo sofrido pelos moradores do Borel, que resultará no surgimento da União dos

Trabalhadores Favelados.

Essa ação de despejo foi precedida por alguns sinais, segundo observa Manoel

Gomes (1980: 13): “Por meados dos anos de 1945, os moradores do local começaram a

observar as novas construções na rua Conde de Bonfim, justamente na área fronteiriça

ao morro”. Essa situação desaguaria no princípio do processo movido pela Borel

Meuron (idem: 14): “Um belo dia do mês de junho daquele ano, às dez horas, mais ou

menos, os moradores do local receberam uma ordem: daquela data em diante ficava

terminantemente proibida a construção de novos barracos e suspensos, portanto, o

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98

aluguel ou a venda de cavas a quem pretendesse se agregar ao morro”.

Os responsáveis pela ação seriam a citada imobiliária, que já teria se

encarregado de tecer um acordo com os “grileiros” de então (idem, ibidem):

“Daniel e Pacheco suspenderam a concessão da venda de cavas porque já transavam de outra maneira, diretamente com a imobiliária Borel Meuron Ltda., que fez lançamento dos terrenos adquiridos na rua Conde de Bonfim desde os números 1.122 a 1.212. A arapuca imobiliária pretendia grilar as terras do morro até a virada do Andaraí, que valeriam uma fortuna. Por intermédio de terceiros, procuraram aproximação com os dois espertalhões e entraram em entendimento, oferecendo-lhes uma avultada quantia para que se retirassem de cena sem dar satisfação a ninguém”.

É feita, então, a única menção a um possível proprietário suíço daquele terreno,

sem que, no entanto, se estabeleça qualquer ligação com Manoel Isidério (idem,

ibidem):

“Enquanto isso acontecia cá da banda do Borel, a imobiliária Borel Meuron Ltda. desenvolvia na rua Conde de Bonfim uma febril fase de construções. Queriam impressionar os favelados daquelas terras, onde outrora cultivava-se fumo para uma antiga fábrica de rapé e outros derivados dessa planta, pertencente a um velho cidadão suíço que se alojara às margens do rio Maracanã, aproveitando essa vastidão de terras devolutas”.

Posteriormente, há menção à Seda Moderna e sua participação na negociata com

Daniel e Pacheco (idem: 15): “A Seda Moderna, que era subsidiária da Borel Meuron

Ltda., indenizou muito bem a Daniel e seu sócio, e ambos se retiraram seguindo rumo

ignorado, deixando a briga com os moradores do morro”. Todas essas ações resultam na

chegada de uma ameaça de despejo via judiciário (idem, ibidem): “Foi quando os

moradores receberam uma nova advertência para se mudarem dentro do prazo de 90

dias, pois, do contrário, os “donos” do morro recorreriam ao judiciário e os

despejariam”.

Assim, a ameaça de despejo sobre o Borel pode ser tida como um fato concreto.

Porém, a forma como é relatada pelo discurso de memória em questão deve ser objeto

de reflexão, não como uma forma de desmerecer a voz de Manoel Gomes, mas de

compreender através da “imaginação historiográfica” a complexidade de atores

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99

envolvidos na questão. De fato, ao consultarmos documentos de época, não se

encontrou menção à imobiliária Borel Meuron, mas a uma intrincada rede de

personagens, alguns não mencionados no livro de Gomes. Em reportagem da Imprensa

Popular, é possível encontrar dois responsáveis pela ação de despejo da favela em

questão (“Derrotaram a polícia os moradores do Borel”. Imprensa Popular, 5/9/1954):

“Os grileiros Eglésias Malvar112, proprietário da Casa Gebara, e Felipe Pinto, que há

muito vem tentando se apossar do morro do Borel (...)”.

Em outra reportagem do mesmo periódico, o papel de Eglésias Malvar é mais

bem aprofundado, ao mesmo tempo em que mais uma peça surge no intrincado quebra-

cabeça sobre o “mito de origem” do Borel (“Não foi executado o despejo no morro da

Independência”. Imprensa popular, 28/10/1954): “Lincoln Nodari, proprietário de uma

chácara onde hoje o grileiro Iglésias Malvar está levantando um edifício de

apartamentos na rua Conde de Bonfim, 1122 (...). Lincoln Nodari, ao viajar para a

Suíça, deixou como procurador de sua chácara um Sr. Antônio Pacheco, que, anos

depois, entrou em contato com Iglésias Malvar sobre a venda do morro.”

Ou seja, existe a possibilidade de o “suíço”, mencionado uma única vez no livro

de Gomes e também presente na memória do sobrinho de Manoel Isidério, Mestre

Catinga, ser Lincoln Nodari, ou Lincoln Nader, e sua negociação também ter envolvido

Antônio Pacheco, o que não necessariamente excluiria Manoel Isidério dessa rede de

exploração imobiliária, apenas a tornaria mais complexa, o que condiz com a questão

rentista das favelas no período (FISCHER, 2008 e GONÇALVES, 2010). Outra fonte,

oriunda de uma investigação da Polícia Política sobre Magarinos Torres, referente a

inquérito que será abordado posteriormente, menciona o já citado Felipe Pinto, mas

112 Também foram encontradas referências aos nomes Iglésias Malvar e Iglésias Malvini em outras reportagens do mesmo periódico, todas se dirigindo a mesma pessoa. Farei referência ao nome como Eglésias Malvar, por ser a referência mais antiga encontrada, o que não implica o uso dessa grafia sobre o nome do indivíduo em questão como a realmente correta.

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100

dessa vez o nomeia como proprietário da Seda Moderna (Fundo Polícia Política/APERJ,

dossiê 12, folha 28): “(...)’grileiros’” Carlos Gonçalves, dono da fábrica Franco

Brasileira de Papéis, Felipe Pinto, dono da ‘Seda Moderna’, contra os quais o Dr.

Magarinos luta defendendo-nos dos despejos que eles promovem das favelas do Mata

Machado e do Borel”.

Assim, temos a menção a dois responsáveis pelo processo de despejo do Borel,

Eglésias Malvar e Felipe Pinto. O primeiro seria proprietário da Casa Gebara, uma

tradicional loja de tecidos, e o segundo, da Seda Moderna. Porém, apenas o segundo

estabelecimento consta na memória dos moradores do Borel, o que poderia indicar uma

falha na apuração do autor da reportagem publicada pelo Imprensa Popular. Porém,

Malvar não chega a ser igualmente mencionado na memória dos residentes dessa favela,

e não foram poucas as menções a seu nome nas reportagens sobre o despejo do Borel

averiguadas, o que restringe qualquer conclusão ao campo das hipóteses. Contudo, o

fator de interesse observado é que nenhuma dessas fontes faz menção à imobiliária

Borel Meuron.

Gostaria de chamar atenção para um aspecto, constantemente observado, na

escrita de Manoel Gomes. Refiro-me a certos detalhes, como o horário da chegada da

ordem de suspenção de construção de cavas, “às dez horas da manhã, mais ou menos”

(idem: 14). Há outros exemplos, como quando da construção da escola de

responsabilidade da UTF (ibidem: 27): “Essas tarefas continuaram até as 15 horas”. Ou

quando um morador de uma favela ameaçada de remoção dirigiu-se à sede da UTF, no

Borel, visando residir nessa favela (idibidem: 33): “(...) saiu da obra, atravessou a rua,

pegou o bonde Praça 15 – Usina, saltou em frente ao colégio São José, virou a primeira

esquina à direita, passou sobre uma pinguela que estava disposta sobre o rio Maracanã

e, finalmente, chegou à sede da União dos Trabalhadores Favelados”. Ou, ainda, quando

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o mesmo indivíduo, refletindo sobre como construiria sua nova morada no Borel (idem:

38), “comeu uma dobradinha com feijão branco”.

As listas de nomes de moradores que participaram de algum momento histórico

do Borel tido como importante pelo autor também podem ser vistas como detalhes

específicos presentes na narrativa. Logo após o recebimento da ordem para abandonar

suas casas em 90 dias, anteriormente mencionada, são nominados no texto os moradores

mais inconformados e responsáveis por meios de impedir a expulsão (GOMES, 1980:

15), como forma de criar um registro físico de seus nomes, uma das funções da

memória material de favelas. Todos esses aspectos são importantes ferramentas

discursivas para a construção de uma ideia de veracidade em certos tipos de narrativa

sobre o passado (SARLO, 2007). Porém, tais estratégias de discurso nem sempre devem

ser levadas ao pé da letra, e sim ser objeto de uma reflexão histórica, o que não

significa, mais uma vez friso, demérito ou desqualificação de “As lutas do povo do

Borel”.

Com o aviso de que os moradores deveriam abandonar suas casas em 90 dias,

buscou-se procurar um advogado para lhes auxiliar. Dois foram contatados e recusaram,

sendo que o terceiro, Antoine de Magarinos Torres (GOMES, 1980: 16), “abraçou como

um Hércules a causa dos humildes moradores do morro do Borel”. Nísia Trindade, que

realizou pesquisa no Borel na década de 1980 para sua dissertação e teve oportunidade

de entrevistar aqueles que procuraram Magarinos Torres, conta que Izequiel, que fez o

contato com o advogado, dizia que (TRINDADE, 1989: 106): “(...) explicou ao

advogado que chegaram até ele por indicação de “pai-de-santo” do morro a quem

recorreram para obter proteção espiritual; o entrevistado observou que ‘Magarinos

Torres, por ser ateu, achou muita graça na estória’”.

O encontro com Magarinos Torres foi o ponto central para a criação da UTF,

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102

uma vez que o mesmo teria incentivado a criação de uma associação de residentes

dispostos a resistir às investidas da Borel Meuron. Izequiel, que se tornaria o primeiro

presidente da UTF, ao travar o primeiro contato com o advogado, foi aconselhado a

conseguir o maior número possível de adeptos à causa da permanência (GOMES, 1980:

17): “Na entrevista que mantivera com Magarinos, expondo-lhes as ocorrências do

morro, Izequiel foi aconselhado a voltar dois dias depois e recomendado a conseguir o

maior número possível de interessados nessa contenda que iria surgir, pois, “uma

andorinha só não faz verão”.

Após esse encontro, foram realizadas mais três reuniões, com datas novamente

detalhadas: 19 de abril de 1952, 21 de abril de 1952 e 28 de abril de 1952. No primeiro,

na residência de Magarinos, foi colocada a questão da falta de verbas para arcar com os

custos do processo. O segundo realizou-se no Borel, no qual Magarinos chegou às “10h

e 15 minutos da manhã” (GOMES, 1980: 20) de um domingo e alertou para a

necessidade de organização local para que os associados “contribuíssem

financeiramente, e, fazendo assim, conseguiriam meios necessários para qualquer

eventualidade que viesse a surgir” (idem: 20-21).

Nesse mesmo encontro, foram recolhidas 52 assinaturas em prol da criação da

nova associação e foi tirada sua diretoria provisória. Segundo consta no estatuto da

União dos Trabalhadores Favelados (Acervo Condutores de Memória), cuja redação

data de 21 de dezembro de 1957 e o registro de pessoa jurídica, de 2 de janeiro de

1958113, a data de fundação da UTF é dia 21 de abril de 1954. Desse modo, nota-se uma

pequena discrepância com relação à data apresentada por Manoel Gomes, que coloca o

mesmo dia, porém do ano de 1952. Contudo, ao analisarmos o prontuário de Magarinos

113 Segundo o próprio estatuto, a União é apresentada como: “Associação Civil fundada ao dia 21 de abril de 1954, no Distrito Federal, devidamente legalizada pelo registro dos seus estatutos sob o nº 5.665 do livro “A” – 4, do Registro Civil das Pessoas Jurídicas do Distrito Federal e publicado no Diário Oficial (seção I) de 2/1/1958”.

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Torres presente no Fundo de Polícia Política do Arquivo Público do Estado do Rio de

Janeiro (Fundo de Polícia Política da Guanabara/APERJ, prontuário 47. 727, folha 11),

vemos que “segundo documentos apreendidos, presidiu a mesa que dirigiu os trabalhos

de fundação da União dos Trabalhadores Favelados hoje (4/4/54), em sua própria

residência acima citada”. Nessa mesma reunião, alguns presentes, como o conhecido

militante comunista Roberto Morena, àquela altura exercendo mandato de deputado

federal pelo estado da Guanabara pelo Partido Republicano Trabalhista (PRT), “fizeram

uso da palavra apresentando sugestões ao projeto de estatutos da nova entidade”.

Roberto Morena se constituirá em um importante articulador da UTF e sua

presença na reunião de fundação da entidade indica sua proximidade com os

comunistas, embora seus integrantes sempre a tenham declarado como apartidária

(LIMA, 1989). Conforme visto, a discussão sobre seus estatutos se iniciou desde a

fundação, sendo o mesmo publicado somente após seu reconhecimento em Diário

Oficial.

Porém, o principal fato, para o qual gostaria de chamar atenção, é a data de

realização da reunião que resultou na criação da UTF: 4 de abril de 1954. Segundo os

estatutos da entidade, assim como o depoimento de Manoel Gomes, a reunião

acontecera no mesmo ano, porém no dia 21 de abril. Como não poderíamos deixar de

reparar, data de falecimento de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, personagem

histórico fundamental para entender a construção de um imaginário republicano no

Brasil a partir da ideia de “mártir da independência” (CARVALHO, 1990). Essa

pequena alteração de data pode perfeitamente ser compreendida como um dos diversos

aspectos que apresentam a memória como uma construção social, decorrente de

interesses específicos e com importante participação da mesma no processo de

constituição de identidades a partir do momento de sua externalização, ao servir como

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104

veículo de uma imagem específica de si, para si e para os outros (POLLAK, 1992). No

caso, uma imagem associada a uma representação sobre a luta pelas causas nacionais,

sustentada nem que seja ao custo do martírio114.

No encontro do dia 28 de abril de 1952, data que, como vimos, se refere ao ano

de 1954, e que Manoel Gomes (1980: 24) coloca como “dia da reafirmação da luta dos

moradores do Borel”, Magarinos comparece a essa favela “às nove e meia da manhã”

(idem, ibidem) e, através de um discurso, lança as bases de atuação da UTF (idem,

ibidem):

“1º - manter-se organizado dentro da associação local; 2º - estender a União dos Favelados em todo âmbito territorial do Rio de Janeiro; 3º - que seja criado um órgão central que controle todas elas, como os elos de uma corrente para acorrentar a sanha dos grileiros nas suas incontidas investidas contra os trabalhadores favelados, como tem sido até então. Vamos agora decidir o que vamos fazer aqui. Ali está um terreno vago, onde deverá ser construída uma escola para que as crianças daqui aprendam a ler e escrever. Aqui ao lado, depois dessa jaqueira, poderá ser construído um posto médico, para atender em casos não graves as suas famílias, porém, isso só poderá ser feito se vocês quiserem, se acharem justo. Para isso têm que ser todos associados da União, para conseguirem recursos financeiros para essas e outras despesas, caso venham a surgir”.

Através dessa passagem, vemos a valorização que a questão associativa assume

na memória de Manoel Gomes, uma vez que o foco privilegiado diz respeito à

organização interna dos moradores de favelas feita de forma interligada e coordenada

por uma entidade central, no caso, o primeiro diretório da UTF, que surge justamente no

Borel. Outro fator para o qual se deve atentar são as duas outras medidas sugeridas por

Magarinos: a criação de uma escola e de um posto médico, este com a ressalva de

atender a casos “não graves”. Ou seja, criar meios de acesso a serviços pertencentes à

“cidade formal” e, com isso, reduzir a distância em direção às benesses que 114 Um exemplo do apreço de Magarinos Torres pelo nacionalismo está presente em uma história familiar contada por seu sobrinho (depoimento de Antônio Eugênio de Magarinos Torres, 07/03/2011): “O que eu me lembro sobre política é que ele era muito patriota. Era Natal e eu pedi um acordeom, que eu queria aprender a tocar. Na época, ele disse que tinha que escrever uma carta pr’o papai Noel. Ele me ajudou a escrever a carta. Eu me lembro que ele me fez escrever que fui bom aluno, tive boas notas e que eu queria um acordeom, mas tinha que ser nacional, que eu gosto das coisas do meus país (risos)”.

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caracterizariam o direito à cidade (LEFEBVRE, 2001). Por último, gostaria de chamar

atenção para a caracterização dos moradores do Borel não como sujeitos passivos, mas

como os agentes que executarão essas propostas a partir de sua própria vontade, afinal,

sua execução só ocorrerá “se vocês quiserem, se acharem justo”.

Esse seria o elemento fundamental que marcaria o que, no imaginário dos

moradores dessas favelas, pode ser caracterizado como o “tempo das lutas”

(CAVALCANTI, 2007). Essa demarcação cronológica é associada às particularidades da

memória, carregada de simbolismos, fortes laços de afetividade e influências de

questões prementes ao presente do qual é evocada (FINLEY, 1989, ROUSSO, 1998,

RICOEUR, 2000). O “tempo das lutas possui uma forte carga simbólica de noções

ligadas à ética e ao trabalho duro associados à resistência contra o despejo, e outro

aspecto a ser observado diz respeito ao papel da associação de moradores, no caso a

UTF, na vida cotidiana desses indivíduos, através do controle do uso do espaço da

favela e do provimento de serviços, como o acesso à educação escolar (CAVALCANTI,

2007). Outro exemplo da atuação da UTF no auxílio a questões cotidianas pode ser

visto no seguinte depoimento (Sueli115, 18/12/2010): “(sobre o papel da UTF) Dava

cesta básica. Tinham muitas famílias bem pobres aqui. Nas enchentes, muitas casas

caíam e eles ajudavam”.

Mariana Cavalcanti (2007) menciona que não foram muitos os que assumiram a

frente das iniciativas da União, embora grande fosse seu número de associados, o que

surge como um ponto para explicação dessa forte memória da atuação no cotidiano

local. É preciso deixar claro que essa atuação ocorreu, porém, não seria incorreto

afirmar que apenas aqueles que participaram mais ativamente como lideranças

comunitárias é que tendem a possuir lembranças que englobem aspectos da participação

115 Moradora do Borel desde 1951, para onde se mudou ainda criança.

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106

política mais ampliada. Como visto, a memória de Manoel Gomes, presente no discurso

fundador de Magarinos Torres, deixa clara a importância do associativismo como

instrumento para o alcance dos objetivos, seja o direito à permanência, seja o acesso a

serviços.

O direito à moradia é uma questão central do livro, que aborda a exploração dos

“grileiros”, as tentativas de despejo e os abusos da Borel Meuron, além de citar as

causas para a favelização. As palavras iniciais do discurso de Magarinos contêm o

seguinte questionamento (GOMES, 1980: 23): “Por que essa absurda tentativa de

despejo, a vocês, meus irmãos, que moram aqui, uns com mais de 40 anos, que aqui

nasceram, aqui se criaram, aqui cresceram e aqui trabalham nas indústrias da

vizinhança, somente para vos inquietar?” Ou seja, o mote inicial de sua fala é

justamente a questão do direito à permanência. Porém, ressaltando, o caminho para o

mesmo é o da mobilização associativista.

Durante a década de 1950, conforme observado, não temos a existência da

promoção da erradicação das favelas pelo poder público, embora tenha sido marcante a

disputa pela terra com os “grileiros”, em grande parte propiciada pela dificuldade de se

determinar a real posse de terrenos onde se localizam favelas (GONÇALVES, 2010).

Nesse contexto temos a organização do movimento de moradores de favelas, tendo

como marco a criação da UTF como elemento redefinidor de sua relação com agentes

públicos e privados (SILVA, 2005). Nesse período, a especificidade das favelas é a

ausência do reconhecimento de sua existência pela lei, o que não impediu a tentativa de

uniformização jurídica dessas áreas por diferentes atores desde o Código Civil de 1916.

A ausência desse reconhecimento seria indicativa do descompasso entre a esfera legal e

jurídica e a realidade social, sendo que o próprio Magarinos Torres se enquadra entre os

atores que buscavam criar novos parâmetros legais para as favelas, a partir da

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apresentação de um anteprojeto de lei de outubro de 1954, que nunca chegou a ser

enviado para apreciação (LIMA, 1989 e GONÇALVES, 2010).

Trata-se de uma tentativa de estender o direito dos trabalhadores para os

moradores de favelas através de pontos como expropriação de terrenos para moradia,

financiamento especial para material de construção, urbanização, calçamento e

construção de acessos, construção de escola pública primária com refeição obrigatória

para os alunos, além do reconhecimento da UTF como instância máxima representativa

e como associação de utilidade pública com direito à subvenção (GONÇALVES, 2010).

O artigo primeiro coloca a administração municipal como responsável pelas garantias

da implementação de uma série de colocações feitas no artigo segundo, além das citadas

acima, como: “b) instalação de redes de água potável, esgoto e luz, para servir todas as

habitações; c) instalação de fornos crematórios para incineração do lixo onde não for

possível o serviço de limpeza pública diária; d) colocação de um telefone público para

cada 200 famílias; (...)”. São igualmente postas condições para melhorias dos donos de

pequenos negócios em favelas, tornando-os “isentos de impostos municipais (...)

bastando para a concessão do alvará de localização que o comerciante favelado o

requeira, indicando o gênero do comércio, nome do estabelecimento e do comerciante,

depois de atestadas a sua afirmativa pela UTF”. Com relação ao financiamento da

matéria de construção, era igualmente exigido “que o pretendente fosse abonado pela

UTF” (Fundo DPS/APERJ, pasta 146).

Desse modo, vemos que há uma busca constante pelo direito à permanência, seja

pelo questionamento ao processo de despejo presente no discurso de Magarinos Torres

retratado pelo livro de Manoel Gomes, seja pela exigência de desapropriação de

terrenos de favelas vista no anteprojeto de lei do advogado. Porém, a permanência está

aliada ao alcance de serviços que vão de equipamentos públicos (água, iluminação e

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108

coleta de lixo) ao acesso a educação e saúde. E tendo em vista a necessidade de

privilegiar o movimento associativo, presente nas duas fontes abordadas, vemos,

igualmente, que o direito à permanência precisa, segundo a visão de Manoel Gomes e

de Magarinos em seu anteprojeto, ser embasado pelo associativismo para se tornar

direito à cidade (LEFEBVRE, 2001) e garantir acesso a bens de infraestrutura, como

condições de saneamento e escolas. Ou seja, apenas a garantia de existência das favelas

não é o suficiente, sendo ressaltada a urgência de se estabelecer elos desse grupo social

com instrumentos legais que viabilizem um convívio com o poder público que não seja

pautado pela ambigüidade – fator que acaba por se transformar em moeda política e

reforça a condição hierarquicamente desprivilegiada desses indivíduos (FISCHER, 2008

e GONÇALVES, 2010) –, mas que pavimente caminhos sólidos rumo a condições que

permitam a fruição de serviços básicos.

O Estatuto da UTF (Acervo Condutores de Memória, Estatuto da União dos

Trabalhadores Favelados: 2) datado de 1957 também reforça a necessidade de

preservação dos locais de moradia dos residentes de favelas:

“A conquista da casa própria ou gleba de terra para cada família associada, reivindicando a posse dos terrenos que ocupem quando ocorra caso de usucapião; lutando pela desapropriação de terrenos cujos donos tenham legítimo título de propriedade (...); intervindo junto ao legítimo proprietário

para que os venda, por este modo, diretamente aos seus ocupantes, ou por meio de financiamento de institutos a que pertençam os associados da UTF; pleiteando junto à municipalidade ou ao governo federal o aforamento das áreas de domínio público, em favor das famílias dos associados (...)” (grifos meus).

O mesmo documento ainda alarga o escopo de atuação da entidade (idem: 1-2):

“(...) de imediato, a União dos Trabalhadores Favelados (UTF) procurará assegurar aos trabalhadores residentes em favelas ou a lavradores que cultivam terras devolutas, o direito de nelas prosseguir morando e trabalhando, defendendo-os contra as ações de despejo e outras, derrubada criminosa de suas moradias ou plantações e contra atentados à inviolabilidade do lar, assegurando-lhes imediata e eficiente proteção jurídica” (grifos meus).

Desse modo (idem: 2): “Lutará a UTF por lei de reforma agrária, que atenda aos

trabalhadores do campo e ponha, assim, um dique ao êxodo dos mesmos para a capital”.

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109

A abordagem da questão do trabalhador rural por Magarinos Torres em nenhum

momento é mencionada por Manoel Gomes ou pelos entrevistados. No entanto, é

possível encontrar menção a iniciativas de pequenos lavradores de terra do Sertão

Carioca116 semelhantes às que foram empregadas pela UTF, a exemplo da ocupação de

prédios do legislativo como forma de protesto e para entrega de reivindicações. Em

maio de 1955, lavradores de Jacarepaguá, Coqueiros e Baixada Fluminense foram à

câmara municipal e, depois, ao palácio Monroe, onde se instalava o senado, para pedir

que seus integrantes fizessem “como estão fazendo com os ‘proprietários’ das favelas,

uma investigação dos títulos de propriedade dos ‘grileiros’ do Sertão Carioca”117,

conforme relatado pelo Imprensa Popular (apud SANTOS, 2005: 123).

Já em 1958, ano do registro do estatuto da União dos Trabalhadores Favelados, o

jornal Diário Trabalhista118 (apud SANTOS, 2005: 191) relatava que iria “focalizar em

suas colunas, os problemas” que afligiam os “trabalhadores favelados e os lavradores

posseiros do Distrito Federal”. O periódico passaria a contar com a colaboração de

Magarinos Torres, e divulgava o que seriam bases comuns para a “luta” de lavradores e

“trabalhadores favelados”, dentre elas (SANTOS, 2005: 191):

“assegurar os ‘direitos’ dos ‘trabalhadores residentes em favelas’ e os ‘lavradores que cultivam terras devolutas’ em ‘de nelas prosseguir morando e trabalhando’; (...) lutar ‘na esfera municipal e no âmbito federal’ pela lei de reforma agrária; (...) desenvolver ‘o trabalho pela melhoria das condições de vida nas favelas e de outros aglomerados residenciais de trabalhadores’; dar ‘assistência’ através da União dos Trabalhadores Favelados para a ‘defesa da liberdade dos trabalhadores, inviolabilidade do lar e dos direitos

116 Antiga zona rural do Rio de Janeiro. Alguns órgãos de imprensa chegaram a considerar algumas áreas da Baixada Fluminense, como os distritos de Nova Iguaçu e Duque de Caxias, como integrantes do Sertão Carioca. Porém, a tendência de maior parte da imprensa, como do legislativo carioca e de grupos de lavradores que atuavam na região, era estabelecer uma distinção entre o Sertão Carioca e a Baixada Fluminense (SANTOS: 2005, 8). 116 É preciso atentar para a presença do PCB no Sertão Carioca, onde estimulou a realização de encontros e assembleias desde os anos 1940. Há também as Ligas Camponesas, formas de organização política de trabalhadores rurais existentes não apenas no Rio de Janeiro, que surgem a partir de 1946, apoiadas pelo PCB, embora algumas também contassem com o apoio de outras agremiações partidárias (idem). 116 Periódico de pequena circulação fundado em 1946 e ligado ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e ao Partido Trabalhista Nacional (PTN).

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110

trabalhistas’”119.

Agora, gostaria de atentar para as referências relativas à necessidade de filiação

à União. Afinal, o comerciante que pretendesse reivindicar a isenção de impostos,

proposta pelo anteprojeto de lei de Magarinos Torres, deveria ser “abonado pela UTF”,

assim como os que desejassem o financiamento para a compra de suas residências

deveriam se ater aos “institutos a que pertençam os associados da UTF”. Da mesma

forma, deveriam estar associados à União os que ansiassem pela “conquista da casa

própria ou gleba para cada família". É possível interpretar a criação da União como um

esforço para associar o morador de favelas ao universo do trabalho. Através desse

universo, iniciou-se a construção de um mundo de direitos, ligados aos direitos sociais,

de acordo com a tipologia proposta por Marshall (1967), no Brasil contemporâneo a

partir de Getúlio Vargas (CARVALHO, 2001).

Essa aproximação diz respeito, igualmente, ao esforço de construir uma imagem

de habitantes de favelas. Historicamente, aos habitantes de favelas são apregoadas

representações de anomia, marginalidade, criminalidade e ameaça à ordem moral e legal

da cidade (VALLADARES, 2005). Desse modo, associá-los ao universo do trabalho

através da imagem dos “trabalhadores favelados”, como plataforma para a busca de 119 Um outro indício da aproximação de Magarinos Torres com o movimento dos trabalhadores rurais é sua posterior filiação ao PRT, uma vez que, conforme registrado em seu prontuário (Fundo de Polícia Política da Guanabara/APERJ, prontuário 47. 727, folha 10): "Segundo publicação desta data (27/9/60), foi candidato a deputado estadual, na Guanabara, em chapa apresentada pelo PRT". Por essa legenda, o advogado concorreu a deputado constituinte do recém-criado estado da Guanabara. O PRT surgiu como Partido Republicano Trabalhista em 1948 e, sendo pouco expressivo, serviu como porto para candidatos que não possuíam legenda. Muitos militantes comunistas concorreram pelo PRT, uma vez que o PCB se encontrava na ilegalidade desde 1947. O próprio Roberto Morena se elegeu deputado federal por esse partido em 1950. Em 1958, sob influência do político paulista Hugo Borghi, ex-integrante do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o PRT transformou-se em Partido Rural Trabalhista, objetivando levar ao campo a ideologia trabalhista (CPDOC/FGV, DHBB, consultado em http://cpdoc.fgv.br/acervo/dhbb, em 9/12/2011). Em 1958, Magarinos Torres também concorreu à câmara municipal, em chapa com José Gomes Talarico, pleiteando vaga na câmara federal, pelo PTB. Nessa eleição, assim como em 1960, Magarinos é derrotado, mas sua aproximação com Talarico, que conseguiu se eleger, acaba resultando na “abertura de espaço político junto ao Ministério do Trabalho” (LIMA, 1989: 118-119), sendo que o próprio Talarico exerceria papel central no Congresso dos Trabalhadores Favelados de maio de 1959, realizado com apoio do Ministério do Trabalho. A partir de sua realização, seguiu-se uma série de reuniões plenárias que resultou na criação da Coligação dos Trabalhadores Favelados da Cidade do Rio de Janeiro (CTFRJ), em novembro de 1959, no auditório do próprio ministério (idem).

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111

direitos, é um meio de ressignificar esse grupo perante a sociedade (LIMA, 1989).

Porém, fica a questão: e no que diz respeito aos que não se associaram à UTF ou

não concordavam com suas ideias, bem como as de Magarinos Torres? A União possuiu

considerável aceitação, conseguindo, inclusive, atender a seu objetivo inicial de ser uma

entidade representativa de diversas favelas. Em reportagem de outubro de 1954, o

Imprensa Popular chega a relacionar as seguintes favelas como representadas pela UTF:

Dendê, Afonso, Formiga, Saúde, Liberdade120 e Cantagalo (“Vão reunir-se em

Congresso os favelados cariocas”. Imprensa Popular, 19/10/1954). Porém, o número de

signatários do estatuto da União de 1957 chega ao impressionante número de 44, sendo

representantes de diferentes favelas, além de um referente à Associação de Defesa dos

Lavradores da Fazenda do Piaí, assim como temos a presença de um representante de

Niterói, da favela do Martins (Acervo Condutores de Memória, Estatuto da União dos

Trabalhadores Favelados, pgs. 11-14.).

Contudo, isso não significa que a aceitação da entidade fosse unânime nos locais

onde eram estabelecidos diretórios. Manoel Gomes (1980: 42, 53) chega a mencionar “a

colaboração de alguns moradores que se engajaram no serviço dos grileiros”, sendo que

“sempre havia briga entre os militantes fiéis à defesa das favelas e os assalariados dos

grileiros, que a todo custo queriam dar cumprimento às ordens de seus desalmados

patrões”. Tal situação se daria devido à “destruição de barracos, já iniciada pela turma

de grileiros arregimentada entre alguns moradores descrentes da vitória da UTF e

alimentados por gordas propinas” (idem: 34).

Apesar da memória de Gomes explicitar uma divisão entre os membros da

União, “militantes fiéis à defesa das favelas”, e aqueles que seriam a “turma dos

grileiros”, é possível encontrar discordâncias, ideológicas, inclusive, entre os que

120 Foi como passou a ser chamada pelos moradores a favela do morro do Turano, depois da contenda com Emílio Turano. O Borel também adotará a mudança, passando seus habitantes a chamá-lo de morro da Liberdade, nome que, porém, não prevalece sobre o antigo.

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compunham a própria entidade. No dia 21 de abril de 1963, ocorreu uma denúncia

endereçada ao Departamento de Ordem Política e Social da Guanabara, feita por

Aristófanes Monteiro de Souza, morador do Borel e recém-empossado membro do

Conselho Fiscal da UTF. O conteúdo da denúncia referia-se à (Fundo Polícia

Política/APERJ, pasta 89, dossiê 2, folha 1):

“existência de elementos comunistas infiltrados na atual diretoria, tendo citado os nomes dos Srs. Raimundo Leoni (...), José Batista Lira (...), José Cupertino Lira (...), irmão de José Batista Lira, José Bento, vulgo “Barriga d’Água”, pedreiro, residente junto à escola de samba Unidos da Tijuca (rua São Miguel, nº 430), onde são realizadas reuniões comunistas (...)”

O objetivo da denúncia foi solicitar o comparecimento de um efetivo de vigília à

posse da nova diretoria da UTF, que ocorreria no mesmo dia às 18 horas. De fato, foram

enviados oficiais à paisana, que constataram a presença de, segundo sua estimativa,

“800 pessoas, das quais 200 estavam na sede”. Após a posse da diretoria, seguiram-se

discursos, dentre os quais do próprio Manoel Gomes, que (idem, folha 2) “fez um

ligeiro retrospecto da UTF (...), tendo feito elogios aos grandes colaboradores da

União, declinando os nomes de Magarinos Torres, Roberto Morena, Henrique Miranda,

Antônio Marques e inúmeros sindicatos de classes que apoiaram suas reivindicações”

(grifos meus).

Outros sucederam Manoel Gomes na palavra, sendo o último o próprio

Aristófanes Monteiro de Souza, que fez um “revide a Manoel Gomes”, chamando a

importância para si como colaborador da UTF e, segundo os policiais presentes (idem,

ibidem):

“alongou-se em seguida em elogios vibrantes ao atual governador do Estado, dizendo que este tem olhado com carinho o problema do favelado, detalhe este que não havia sido citado pelos oradores, e que ele reparava em tempo, tendo alguns discordado de suas alusões políticas (...), quando criticava acerbadamente o Sr.. Manoel Gomes, taxando-o de irresponsável, sendo aplaudido por alguns, tendo sua palavra cassada e não podendo continuar seu discurso, no que assume a palavra o Sr. Orlando Fernandes, que pede calma e rebate explicando que o Sr.. Aristófanes era um despeitado, no que foi aplaudido por uns e contestado por outro”. (grifos meus)

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113

Conforme visto, apesar de Manoel Gomes assumir uma posição dualista em seu

depoimento, entre os favoráveis à UTF versus os favoráveis aos “grileiros”, é possível

notar que a própria entidade possuía disputas internas, conforme fica claro pelo embate

verbal entre Manoel Gomes e Aristófanes Monteiro de Souza121. Gomes tem sua figura

ligada a Magarinos e sua retórica contra a exploração, além de seu histórico de luta

contra ações de despejo de favelas. Aristófanes, por sua vez, se revela um lacerdista ao

tecer “vibrantes elogios a atual governador do estado”, no caso Carlos Lacerda. Deve-se

lembrar, ainda no tocante à preferência política de Aristófanes, que no ano de 1963

Lacerda já adotava, com relação às favelas, uma postura diferente da apresentada no

início do seu governo, conforme revela a execução de sua política de remoções

responsável pela erradicação de aproximadamente 27 favelas e pela remoção de cerca

de 42 mil pessoas para conjuntos habitacionais como Vila Kennedy, Vila Aliança e

Cidade de Deus, entre 1962 e 1965 (VALLA & GONÇALVES, 1986: 91).

O embate retórico entre os dois pode ser percebido como uma disputa de poder

dentro da própria entidade, sendo que o relatório dos policiais revela que alguns dos

presentes à posse da diretoria chegaram a apoiar Aristófanes. Este, por sua vez,

denuncia seus adversários à Polícia Política, sob acusação de comunismo, o que, sem

entrar no mérito de quais os nomes relacionados eram verdadeiramente militantes do

PCB, serve como uma tentativa de controlá-los através da letra da lei, ainda que não

estivéssemos sob o regime militar, que só se iniciaria em 1964. No tocante à memória,

referente a sua preservação material, cujo veículo é o livro “As lutas do povo do Borel”,

podemos observar que em nenhum momento Manoel Gomes nomeia aqueles que seriam

da “turma dos grileiros” ou outros que fossem contrários ao credo do grupo majoritário,

121

Nessa situação, podemos ver a UTF como um espaço de disputas entre diferentes agentes por capitais simbólicos e posições de poder dentro de uma hierarquia específica, em alguns aspectos se assemelhando à noção de campo (BOURDIEU, 1989).

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embora não exclusivo, como pode ser visto pela fonte analisada acima, da UTF. Por

mais que tal escolha possa ser vista como uma certa delicadeza discursiva, não podemos

ignorar seu efeito prático: apenas os nomes dos diretamente envolvidos na resistência

foram perenizados pela inscrição física que representa a obra de Gomes. Tendo em vista

o aspecto de seletividade da memória, que assume, muitas vezes, um caráter consciente

quando externalizada (FINLEY), não se deve deixar de relacionar a construção do

passado sobre a UTF feita por Manoel Gomes ao que Pollak (1992) denomina trabalho

de enquadramento de memória.

Desse modo, para além dos nomes e das propostas da União, também estão

presentes acontecimentos que o depoimento de Manoel Gomes coloca como marcantes

para a trajetória da entidade. O primeiro diz respeito à construção da escola da UTF e à

tentativa de destruí-la, inviabilizada pela ação dos moradores. A escola teria sido

construída através da prática do mutirão, que chegou inclusive a contar com a

participação de Mestre João Catinga, sobrinho de Manoel Isidério (GOMES, 1980: 26-

27):

“(...) segunda-feira, pela manhã, Casemiro organizou um mutirão de oito companheiros, entre eles, Domingos Siqueira, João Catinga, João da Foice, Zé Magro, Biluca e Ageu, havendo revezamento de quando em vez (...). Enquanto o mutirão trabalhava, num inabalável esforço para a conclusão da cava, Casemiro foi à casa de materiais de construção e comprou todo o material necessário ao acabamento da escola, inclusive o banco para o assento das crianças (...). Essas tarefas continuaram até as 15 horas de sábado, quando nessa ocasião foi posta uma caixa de cerveja à disposição daqueles abnegados companheiros que tanto souberam avaliar a importância da sua associação. Com alegria e animação, Casemiro pagou uma boa gratificação para todos que trabalharam naquela esforçada tarefa”.

Segundo Mariana Cavalcanti, a prática do mutirão, que pode ser definida como

“um esforço organizado e coletivo para realizar intervenções nos espaços públicos e

privados da favela” (CAVALCANTI, 2007: 141, tradução livre), também representa um

importante elemento da memória dos moradores do Borel. No caso de intervenções

privadas, como melhorias específicas em uma casa, ou até a construção da mesma, a

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115

família costuma reunir conhecidos para trabalhar no mutirão e se responsabilizar pelo

material utilizado e pela comida dos que fazem parte da empreitada. Seu papel pode ser

comparado ao da associação de moradores, que, quando comanda a intervenção nos

espaços públicos da favela, também coordena a cessão de material e comida para os

trabalhadores, além da verba a ser utilizada. Assim, o mutirão serve como um gatilho,

na memória dos moradores do Borel, para a lembrança das melhorias internas da favela,

que acabam se confundindo com os avanços pessoais e familiares, que se associam à

permanência, e todos os obstáculos superados para obtê-los (idem).

O caso da construção da escola se encaixa no quadro acima, sendo que há mais

um fator a ser destacado para compreender seu papel simbólico no depoimento de

Gomes (1980: 28-29): os moradores tiveram que organizar uma resistência para evitar

sua destruição:

“Numa quinta-feira, às nove horas da manhã, parou em frente ao nº 482 um carro de transporte da limpeza pública com trabalhadores, seguido por um outro caminhão cheio de guardas da polícia municipal. Subiram e se dirigiram até a escolinha, acompanhados pelos policiais, dando a entender que eram presos que iam fazer trabalho forçado. Apearam levando ferramentas tais como: picaretas, alavancas, marretas, pé de cabra, serrote, martelos e, inclusive, duas escadas”.

Rapidamente, os moradores teriam entrado em contato com “o Dr. Magarinos,

este com o juiz (que estava afeito ao caso) e o juiz com o chefe da polícia, que enviou

ao morro do Borel uma guarnição da Polícia Especial para evitar a destruição da

escolinha” (idem: 29). Devido ao horário comercial no qual teria se realizado a tentativa

de destruição, havia poucos homens no morro, sendo a resistência à ação

majoritariamente composta por “mulheres, crianças e velhos” (ibidem: 29-30): “(...) um

aluvião de mulheres e crianças que gritavam em coro: “Não! É nossa escola!” Pelos

barrancos em volta da escola, se acotovelaram mulheres, crianças e velhos, todos

munidos de pedras e latas de excrementos, dispostos a encarar aqueles mal-encarados

guardas (...)”.

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116

Ao nos debruçarmos sobre a cobertura do fato dada pelo Imprensa Popular, a

ocasião ganha tonalidades menos cinematográficas, embora não menos dramáticas. Na

reportagem, é dito que os moradores impediram que mais de 30 policiais “destruíssem a

Escola Morena”, assim denominada em homenagem a Roberto Morena, o que revela

mais um indício da ligação do político comunista com a UTF, sendo que mais de 100

moradores foram à casa do juiz Horta de Andrade para proteger a escola que seria

inaugurada “naquela noite” (“Derrotaram a polícia os moradores do Borel”. Imprensa

Popular, 5/9/1954). Manoel Gomes (1980: 31) chega a destacar, de forma quase lúdica,

a participação da Polícia Especial para o bom final do episódio: “Tudo pacificado, a PE

se retirou sob uma ensurdecedora salva de palmas, acompanhada por foguetes

disparados dos diversos pontos do morro”. No livro de Gomes, é afirmado que a escola

já havia iniciado suas atividades, porém, pela reportagem da época, vemos que a

tentativa de destruição se deu no dia de sua inauguração.

Outro fator a ser destacado é o envolvimento de agentes externos ao evento. A

partir da ligação com Magarinos Torres, foi feito contato com o juiz Horta de Andrade,

que ordenou a suspensão da ação que levaria ao fim da escola, sendo tal iniciativa

narrada como uma ação contraditória do poder público, pelo menos aparentemente, uma

vez que a demolição que seria feita por policiais foi impedida, igualmente, por policiais.

Um dos meios de atuação da UTF foi a articulação com agentes externos (LIMA, 1989),

a exemplo do juiz Horta de Andrade e do próprio Roberto Morena que, ainda segundo a

reportagem do Imprensa Popular, esteve presente à concentração em frente à casa do

juiz junto com os moradores do Borel.

Uma das táticas comuns adotadas pela UTF foi a organização de passeatas e

protestos à frente de sedes do poder público, como o Palácio Pedro Ernesto e o Palácio

do Catete (LIMA, 1989). Essas situações são retratadas no livro de Gomes, sendo a

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117

iniciativa de responsabilidade dos próprios moradores. Conforme relatado pelo autor,

um morador chamado Joaquim Vicente da Silva teria sugerido a ocupação do (GOMES,

1980: 43) “(...) Palácio Pedro Ernesto e só sairemos de lá quando o prefeito nos der

garantias de que não seremos despejados”. A sugestão teria sido implementada em uma

quinta-feira, às 13 horas, quando “os favelados das diversas favelas, entre elas, Mata-

Machado, Esqueleto, morro dos Cabritos, Escondidinho, Arará e Candelária, estavam lá

com suas faixas e cartazes reclamando as soluções de seus angustiantes problemas”

(idem: 45). Outras passeatas foram mencionadas no livro, “umas pacíficas, outras com

violência” (ibidem: 46), uma delas realizada na sede do então governo federal, o Palácio

do Catete.

A Seda Moderna teria avisado ao DOPS a respeito da concentração, e este

organizou um bloqueio em frente ao Palácio, sendo liberada apenas a passagem de

carros e bondes. Então, os manifestantes teriam “embarcado nos bondes e saltaram na

frente do Palácio, furando desse modo a corda de isolamento que impedia a penetração

dos favelados” (idem, ibidem). Ante a presença policial, Magarinos Torres e o deputado

federal Eurípedes Cardoso de Meneses teriam conseguido uma audiência com o

secretário de Relações da presidência da República, que “no mesmo instante mandou

suspender aquele aparato policial recolhendo-os aos respectivos quartéis” (idem,

ibidem). Outro fator a ser destacado na narrativa do acontecimento é a tentativa de

separação com o PCB (idem: 46-47):

“A Seda Moderna, de acordo com alguns escalões superiores, subornados por ela, atribuiu essa manifestação a manifestantes do Partido Comunista que haviam se introduzido nas favelas a fim de promover uma revolução para a derrubada do Sr. Café Filho da presidência da República. Foram desfeitas essas insinuações incabíveis e distorcedoras da verdade dos fatos, através de comprovados argumentos, arrasadores dessa e de outras deslavadas calúnias lançadas contra os atemorizados favelados, que se reuniam naquela concentração apenas para reprimirem aquele atentado de violação de seus lares”.

Os comunistas desenvolveram trabalho de militância nas favelas desde os anos

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118

1940 (FISCHER, 2008), em grande parte baseado na perspectiva de aproximação com

as camadas populares pelo viés da cultura122. Uma das causas que teriam levado à

criação da Cruzada São Sebastião, em 1955, teria sido, inclusive, a aceitação que a UTF,

órgão identificado aos comunistas, estaria obtendo nas favelas, sendo que o decréscimo

da influência do Partido Comunista só começaria a partir do final da década de 1950

(GONÇALVES, 2010). Conforme já observado, a despeito da ligação com nomes como

Roberto Morena, as lideranças do Borel que participaram do auge da atuação da UTF,

entrevistadas por Nísia Trindade Lima (1989) para a pesquisa de sua dissertação de

mestrado nos anos 1980, se esforçaram para manter uma imagem da UTF como

instituição apartidária123.

A cobertura do Imprensa Popular sobre o episódio, outro indício de ligação com

o PCB, afirma que o próprio presidente Café Filho teria convocado representantes do

Borel para discutir a questão do conflito judiciário com a Seda Moderna. Porém, o então

presidente da República teria enviado o prefeito Alim Pedro em seu lugar. Teriam

participado da manifestação moradores do Santa Marta e da favela da União, além do

próprio Borel, com números que, nas reportagens, variam de mil a cinco mil moradores.

(“Desceram do morro até o Catete” e “Comprometeu-se o prefeito em não consentir

com o despejo”. Imprensa Popular, 22/10/1954, 26/10/1954). Utilizar a imprensa como

um veículo para denunciar arbitrariedades foi uma tática empregada pela União que

remete a mobilizações anteriores, ocorridas desde os anos 1930 (FISCHER, 2008).

Sobre a tentativa de demolição da escola, Manoel Gomes (1980: 31) chega a afirmar:

122 Desde os anos 1930, uma série de escritores passará a se filiar ao PCB, a exemplo de Mário de Andrade, Patrícia Galvão (Pagu) e Jorge Amado, este último chegando a se eleger deputado constituinte pelo partido nas eleições de 1945. Nesse mesmo período, o Partido Comunista buscou aproximação com o universo do samba (GUIMARÃES, 2009), e, no caso da UTF, suas reuniões em diversas vezes aconteceram na quadra da escola de samba Unidos da Tijuca, localizada na entrada da favela do Borel (LIMA, 1989). 123 Pode ser levada em consideração a hipótese de parte das lideranças, entrevistadas por Nísia Trindade Lima, possuir um certo receio de revelar ligações com o PCB, uma vez que o período de realização de sua pesquisa se deu quando ainda estávamos sob a ditadura militar, mesmo que não em sua fase de maior repressão.

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119

“Na manhã seguinte, as manchetes dos jornais eram atrativas: “Os favelados do Borel botaram a polícia para correr”, “A polícia causa destruição no morro do Borel”, “O advogado Magarinos Torres junto com os favelados do morro do Borel rechaça a polícia”; essas e outras mais alarmantes eram a atração dos jornais naquele dia”.

.

Porém, esse otimismo com relação à imprensa deve ser relativizado, uma vez

que, ao mesmo tempo em que o Imprensa Popular construía uma imagem positiva da

entidade e de Magarinos Torres, através de suas reportagens, outros periódicos lhes

reservavam uma visão crítica (GONÇALVES, 2010).

Acontecimentos e personagens são elementos de estruturação da identidade

presentes na memória, sendo que a experiência desses elementos pode ser válida quando

vivenciada pessoalmente, ou quando se tem contato através dos mecanismos de

transmissão da memória (POLLAK, 1992). Portanto, os acontecimentos, assim como o

nome dos envolvidos narrado por Gomes, são elementos fundamentais para a

construção de uma identidade acerca da UTF. A União foi uma organização que teve

amplo contato com sindicatos, como o da indústria têxtil e da construção civil

(GONÇALVES, 2010), embora seu objetivo fosse de ampliar a mobilização do morador

de favelas para além destes (LIMA, 1989). Desse modo, o esforço de construção da

figura do “trabalhador favelado” é igualmente um meio de trazer novos significados

para esse grupo social, a fim de contrapor as representações negativas tradicionalmente

a ele associadas (idem). A inscrição física dessa memória em suporte material é um

esforço de perpetuação da mesma no espaço, assim como da identidade que ela pretende

construir. Para além dos acontecimentos e dos moradores por ela registrados, sua

compreensão passa pelo entendimento da atuação e do envolvimento de uma figura

política que ainda não foi objeto de aprofundada atenção pela literatura sobre as favelas:

Antoine de Magarinos Torres.

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120

O “homem providencial”124 do Borel e das favelas: a memória sobre Magarinos

Torres

Magarinos Torres é um personagem fundamental para o entendimento da União

dos Trabalhadores Favelados. No Borel, existe uma memória consolidada sobre este

personagem, caracterizada pela sua mitificação como um autêntico paladino das favelas.

Sua primeira aparição na narrativa de Manoel Gomes (1980: 16) já revela a reverência

com a qual é tratado: “(...) que morava no Rodo da Usina e chamava-se Doutor Antoine

de Magarinos Torres (a quem pedimos os mais respeitosos sentimentos por sua

coragem, denodo e bravura)”. Há poucos estudos aprofundados sobre esse importante

personagem para o entendimento das favelas como campo para a implementação de

projetos políticos, além da batalha de significados sobre a percepção simbólica desses

espaços perante a sociedade nas décadas de 1950 e 1960. É conhecido o seu papel

central na criação e durante o auge da atuação da UTF, sendo que o mesmo também

atuou em demais movimentos de contestação da época, como o “movimento carioca

pela paz”125 (“Nota do movimento carioca pela paz”, Imprensa Popular, 09/04/1952).

O advogado nasceu no Rio de Janeiro em 1916, filho de Antônio Eugênio de

Magarinos Torres e da francesa Victorine Marie Jeanine Planchon Magarinos Torres

(Fundo de Polícia Política da Guanabara/APERJ, prontuário 47. 727, folha 1). Seu pai

foi um reconhecido jurista, autor do modelo de nota promissória até hoje adotado no

Brasil, desembargador e presidente do Tribunal do Júri durante dez anos (“O último

adeus a Magarinos Torres”. Última Hora, 17/10/1966). Segundo a memória familiar

124 GIRARDET, 1987. 125 Em 1948, a antiga União Soviética iniciou um movimento, de forte teor antiamericanista, em prol da assinatura de um “pacto pela paz”. A iniciativa foi ganhando adeptos e um maior escopo ao longo dos anos, abrangendo protestos contra a Guerra da Coreia e ações da OTAN. No Brasil, a campanha foi comandada pelo PCB (RIBEIRO, 2006), o que indicaria mais um sinal da relação entre Magarinos e os comunistas.

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121

presente no depoimento do sobrinho de Magarinos Torres, o pai deste já teria sua

atuação caracterizada pela preocupação com a questão social (depoimento de Antônio

Eugênio de Magarinos Torres, 07/03/2011):

“Meu avô também defendia a causa dos presos, ele nunca dava um veredito sem conhecer muito bem o preso. Ele, antes da dar uma palavra final, convidava o réu para almoçar com ele durante uma semana. Aí via como foi a infância do cara, se ele era mau mesmo porque tinha índole ruim ou se ele foi pr’o crime porque não teve outra oportunidade. De repente era pobre, foi criado na rua. Aqui tudo era um atenuante pra pena do cara. (...)Quando o cara saía da prisão, às vezes por falta de opção, porque ninguém queria dar trabalho para um ex- presidiário, às vezes o cara tinha matado alguém. Ele dizia que por falta de trabalho o cara ia acabar voltando pr’o crime. Sem trabalho ia acabar roubando. Meu avô montou um galpão, na casa onde meu tio Antoine morava. Ali ele arrumava uns trabalhos com a vizinhança, botar palha na cadeira, estofar um sofá, concertar charrete... A vizinhança tinha medo, diziam que naquela casa tinha um monte de gente perigosa. Era uma forma de ressocializar os caras. Depois que meu avô morreu, eles montaram esse mesmo serviço, só que bem maior dentro do presídio Frei Caneca. Levou até o nome do meu avô, era Centro de Ressocialização Magarinos Torres, dentro do presídio Frei Caneca”.

O ponto a ser destacado dessa passagem é a memória sobre o desembargador

Magarinos Torres como alguém cuja preocupação com o lado social do sistema

penitenciário pôde servir como influência para a postura que seu filho adotaria ao longo

de sua vida profissional, norteada pela preocupação com os moradores das favelas, o

que o teria levado a “abraçar como um Hércules a causa dos humildes moradores do

Borel (GOMES, 1980: 16)”. A imagem do mitológico herói serve como exemplo para

dar cores à imagem que os moradores faziam do advogado, descrito como de “estatura

mediana, tez branca, olhos azuis, testa longa, nariz saliente fino e comprido, queixo

comprido, boca regular coberta por um bigode bem tratado, a barba longa e ruiva da cor

dos cabelos semialourados” (idem, ibidem). Ainda se aprofundando na memória dos

moradores, podemos notar a expectativa de herói que provocava a menção do nome

Magarinos Torres, pela sua atuação e constante presença na favela, bem como por seu

carisma (depoimento de Ruth Barros, 21/01/2009):

“Eu devia ter uns 10, 11 anos quando eu o vi, ele era muito bonito, tinha uns olhos, um carisma incrível, tinha uma coisa assim que chamava... Eu me lembro que fiquei olhando muito, e ele não é aquele homem que a gente olha,

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porque falavam tanto de Margarinos Torres, pensa que vai encontrar um homem imenso, grandão, aí você via um homem pequenininho, estatura média, normal, só o olho que era aquele “olhãozão”, branco pra caramba, fiquei olhando, ele tinha um carisma, quando ele falava todo mundo parava”.

Uma história de vida é organizada através de uma praxe discursiva que ordena

os acontecimentos de uma existência individual de forma que a mesma seja concebida e

relatada, com o perdão da redundância, como uma história. Por diversas vezes, o senso

comum tende a, metaforicamente, caracterizar a existência como uma estrada, nos quais

erros, acertos e desvios constituem etapas ordenadas em direção ao fim, este

considerado duplamente em seus significados de término e objetivo. Tal configuração

consiste em um aspecto específico de uma certa filosofia da história, no que concerne ao

relato biográfico (BOURDIEU, 2005).

Assim, a forma como a figura de Magarinos Torres é construída nos diferentes

depoimentos que revelam uma memória sobre ele caminha para a consolidação de uma

representação sobre o mesmo dentro do imaginário acerca das favelas, mais

especificamente o Borel126. Esse processo de significação é um esforço discursivo para

a constituição do que Raoul Girardet (1987) chama de o mito do salvador, representação

possuidora de grande força dentro do imaginário político, ainda quando concernente a

um indivíduo que atuou dentro de um intervalo de curta duração. Esse papel pode ser

exercido por um indivíduo de características comuns, cuja construção da agem, porém,

no campo das representações, é estabelecida por uma narrativa mitificadora (idem).

Desse modo, podemos ver como ocorre a mitificação da figura de Magarinos Torres

como um autêntico herói, que resolveu “abraçar a causa” dos moradores do Borel,

126 Um exemplo do reconhecimento sobre uma memória de valorização da figura do advogado, cuja imagem remete aos militantes do PCB que faziam parte da UTF, pode ser vista no depoimento de José Ivan (24/04/2009), militante do MR-8 e, portanto, pertencente a um grupo concorrente ao PCB: “Eu fiz muitos eventos homenageando a mulher dele e também a irmã (de Magarinos Torres) (...) eu acho memorável o nome de Magarinos Torres (...), principalmente com as pessoas que conheciam um pouco do passado e da história do Borel, onde o nome do Magarinos Torres era referência (...). Porque, se falar mal do Magarinos, você simplesmente está cometendo uma infelicidade terrível”.

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conforme os depoimentos de dois antigos moradores (depoimentos de Tavinho,

23/10/2010, e Chico da Lapa, 15/02/2011):

“(...) e teve alguém que abraçou essa causa, que foi o Dr. Magarinos Torres, que era advogado, que abraçou essa causa em favor do povo aqui e começou a brigar pelas causas do povo. E o povo, qualquer coisa que acontecia, polícia chegava e o povo ia à casa dele”. “Ele [Magarinos Torres] era muito querido. Morreu cedo talvez porque se preocupou muito. Era uma criatura fantástica. Não tinha grandes coisas de confusão, não, quando tinha que tirar tirava tudo. Eles [policiais] não queriam que construísse, mas quando a pessoa já estava morando não tinha jeito. O pessoal construía em um dia e no outro já estava morando. (...) O Magarinos pra mim foi uma grande criatura, largava as coisas dele e vinha pra cá ajudar”.

Segundo essas caracterizações, Magarinos é visto como um defensor dos

moradores do Borel, capaz de se dedicar a sua causa a ponto de “largar as coisas dele e

vir pra cá ajudar”. Ou seja, um ator cujo objetivo, a defesa da “causa do Borel”, ou das

favelas, orienta sua existência dentro de uma narrativa coesa, de acordo com essa forma

de relato biográfico. Desse modo, sua existência passaria a obedecer a uma cronologia

lógica, permeada por um princípio, visto enquanto razão de ser, e um término ou

alcance de um objetivo (BOURDIEU, 2005). A construção de sua imagem, inserida no

quadro de disputas pela posse da terra pelo qual passou a favela do Borel a partir dos

anos 1950, é feita de forma a apresentar “a brusca irrupção de um Salvador à frente do

poder, de um herói que capta em torno dele todos os fervores da esperança coletiva”

(GIRARDET, 1987: 66).

A visão de Magarinos como um “salvador à frente do poder” é reforçada pela

expectativa em torno de sua primeira ida ao Borel, quando (GOMES, 1980: 16):

“Estava ali reunida uma massa incalculável de seres humanos, esperando ansiosamente por alguém que lhes trouxesse uma palavra de encorajamento, decidida e confortável para os angustiantes dias que provavelmente adviriam, pois a incerteza de futuros dias de atribuições se via na fisionomia de cada um”.

E quando chega, Manoel Gomes afirma que o advogado teria sido recebido

“com uma estrondosa salva de palmas que o faz enrubescer” (idem, ibidem), construção

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estilística que ao mesmo tempo revela sua importância para os moradores e sua

simplicidade. Esse tipo de recepção era comum nas idas do advogado ao Borel, o que

demonstra a importância e o papel central dessa figura, conforme construído pelo

discurso de Gomes: “Com uma estrondosa salva de palmas e um pipocar de foguetes no

ar, Magarinos entrou na escolinha que estava apinhada de gente curiosa para conhecê-lo

e ouvir sua palavra”. Em ocasião em que o advogado foi ao Borel acompanhado da

esposa e do irmão, “uma grande ovação de aplausos estonteantes surpreendeu os novos

visitantes, cumprimentos, apertos de mão foram revesados entre a quase totalidade dos

presentes que, numa incomensurável demonstração de aplausos, entusiasmou toda

aquela multidão ali presente” (GOMES, 1980: 35, 41).

Segundo essa memória, Magarinos Torres, mais do que uma figura celebrada

com aplausos e “um pipocar de foguetes no ar”, é retratado como um personagem

messiânico, capaz de reunir “gente curiosa para conhecê-lo e ouvir sua palavra”. E

dessa forma é colocada sua atuação na UTF que, mais uma vez reforço, era uma

entidade na qual os moradores possuíam controle, conforme mostra o próprio

depoimento de Gomes. Qualquer ato reivindicatório passava pela anuência dos

interessados, que possuíam os cargos principais da entidade, sendo sua diretoria sempre

formada por habitantes de favelas. Com relação à memória material da entidade, o livro

não aborda apenas suas ações, mas também as reuniões de seus membros mais ativos,

como se quisesse preservar virtuais atas sobre seus processos decisórios. Na primeira

dessas reuniões, temos uma demonstração da ascendência de Magarinos sobre o órgão,

bem como da opção de deixar os principais cargos administrativos sob responsabilidade

dos moradores (idem: 25-26):

“Convidado a dirigir os trabalhos, Magarinos sentara-se ao centro, Izequiel à direita, Casemiro à esquerda, Chico Ferro-Velho e Hermógenes de Souza nas respectivas cabeceiras, sendo abertos os trabalhos com a palavra de Izequiel Manoel do Nascimento que, como presidente, dera um informe sobre o andamento dos trabalhos dos tratores. (...). A seguir, Casemiro Pereira, que

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tinha feito a construção da guarita para funcionar provisoriamente a secretaria, acrescentou que mais de 90 favelados haviam se inscrito e que tinha gastado 5 mil reis na construção da guarita, tendo em seu poder 745 mil réis, que estavam à disposição do doutor, quando precisasse. (...). Entre esses e outros problemas surgidos e discutidos, foi aprovada a discussão de um espaçoso barracão com 30 metros quadrados para o funcionamento de uma escolinha, no terreno do Zé Pereira, com o consentimento deste, é claro” (grifos meus).

Essa passagem retrata a forma pela qual as atividades administrativas ficavam a

cargo dos moradores, e como se procurava demonstrar sempre a anuência desses, a

exemplo do caso da construção da escolinha. A narrativa assemelha-se muito a uma ata

oficial de reunião, colocando a condução dos trabalhos por Magarinos Torres, bem

como a ordem na qual se sentaram os presentes, ocupando o advogado uma posição

central, e tendo a palavra inicial o presidente da UTF, um morador do Borel. Desse

modo, pode-se considerar esse ato como um esforço de preservação física de uma

memória sobre o processo decisório da União.

A influência do advogado pode ser vista em dois documentos, sua carteira de associado

(Fundo de Polícia Política/APERJ, prontuário 47.727) e os estatutos da entidade

(Acervo Condutores de Memória):

Imagem I

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Imagem II

Na carteira, vemos que Magarinos Torres figura como sócio-fundador nº 1 da

entidade. Outro ponto a ser observado é o endereço de sua sede, que não fica no Borel

ou em suas proximidades, mas no centro administrativo do Rio de Janeiro, mais

especificamente, no escritório do advogado, conforme os registros do DOPS (Fundo de

Polícia Política/APERJ, prontuário 47.727, folha 4): “Segundo anotações aqui

existentes, trabalha na rua México, 21, 16º andar, sala 601". A assinatura que consta no

documento de associado é, inclusive, a própria assinatura de Magarinos, uma vez que o

mesmo atuava como secretário-geral da União, sem nunca, mais uma vez friso, ocupar

cargos em sua diretoria. Outro elemento revelador da ascendência de Magarinos Torres

sobre a UTF é a existência de sua foto na contracapa de seus estatutos, seguida da

seguinte apresentação: “Dr. Magarinos Torres, fundador e organizador da União dos

Trabalhadores Favelados, seu 1º secretário e advogado da associação, defensor

intransigente dos trabalhadores”.

Tais aspectos revelam como foi central a atuação de Magarinos para a existência

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e atuação da União, porém, conforme visto, é com frequência destacada a importância

da participação dos moradores do Borel em funções administrativas e de organização,

bem como a constante concordância dos mesmos para a realização das ações da

entidade. Esses elementos reforçam uma visão mítica sobre o advogado, atentando, mais

uma vez, para o fato de que o mito possui a função de selecionar fatos do passado a fim

de torná-los inteligíveis, visando a sua transmissão para gerações futuras, estabelecendo

uma ligação com certos ritos de origem, moralidade e conduta (FINLEY, 1989). Ou

seja, pode-se comparar o processo de construção do mito com o caminho que

caracteriza a narrativa biográfica, também marcada pela seleção e pelo intuito de dotar

de inteligibilidade seu objeto, em um esforço de criação artificial de sentido

(BOURDIEU, 2005). Esses aspectos em comum embasam a construção mítica da

imagem de Magarinos Torres como o homem providencial, figura de chefe ou guia, da

qual Raoul Girardet se utiliza para analisar o imaginário político da França, que

consolida representações de emoção, esperança e adesão, constituindo “personagens

símbolos”, que “através de um e de outro exprime uma visão coerente completa do

destino coletivo” (GIRARDET, 1987: 70).

Há uma dificuldade em se estabelecer diferenças entre a imaginação mitológica

e os fatos históricos, sendo necessário o entendimento do processo de transposição da

fronteira entre o factual e o mítico, marcado por parcelas de “espontaneidade criadora” e

“construção intencional” (idem: 72). Esse contexto permeia a apresentação de outro

aspecto da personalidade de Magarinos Torres retratada por Gomes, as dificuldades

pelas quais passa o advogado em seu caminho na defesa dos moradores de favelas. A

primeira diz respeito à questão financeira (GOMES, 1980: 48):

“Magarinos, nessas atribulações de defender os favelados dos despejos que eram iminentes, pouco a pouco ia sofrendo um esvaziamento financeiro, devido ao afastamento de sua clientela, cujos processos passaram a sofrer uma morosidade tremenda em suas soluções, devido à falta de interesse por parte do defensor que se entregara sem sombra de dúvida à luta pela defesa

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dos trabalhadores favelados”.

Contudo, a despeito das dificuldades surgidas a partir da escolha do caminho

profissional e político realizada pelo advogado, Gomes não chega a indicar que tal

situação tenha lhe trazido problemas pessoais, principalmente no campo familiar. Pelo

contrário, a esposa e um dos irmãos de Magarinos chegam a ser mencionados no texto

lhe demonstrando apoio. No caso da companheira de Magarinos Torres, ela surge na

narrativa quando os moradores do Borel o procuram pela primeira vez, sendo atendidos

por “sua esposa, dona Dora, esta, já prevenida, recebeu os visitantes com toda a

amabilidade possível (...). Terminadas as formalidades desse histórico encontro,

Magarinos foi ao banheiro tomar seu banho e, logo após, enquanto este jantava, dona

Dora servia um delicioso cafezinho aos visitantes” (GOMES, 1980: 18). Gostaria de

atentar para o fato de que, em um momento posterior, Gomes relata que “diariamente a

casa de Magarinos enchia de favelados, devido à divulgação dada pelas concentrações

feitas na Câmara dos Vereadores e no Palácio do Catete” (idem: 47).

Sobre seu irmão, uma vez teria chegado a comparecer ao Borel com o advogado

e sua esposa, tendo sido recepcionados por uma comissão que entregou (GOMES, 1980:

41-42):

“(...) um bonito ramalhete de flores protegido por uma capa de papel celofane, com dedicatória à distinta D. Dora, senhora de Magarinos Torres que em dado momento chegava com seu esposo, acompanhado pelo capitão de Mar-e-Guerra Renê de Magarinos Torres, militar distinto e profundo conhecedor da questão social brasileira. (...). D. Dora foi conduzida para a casa de D. Virgínia que da ampla varanda de seu barraco observava aquele maravilhoso e inédito espetáculo. D Virgínia era acompanhada de emoção e lágrimas de contentamento pela visita da modesta e nobre senhora a sua casa, uma rústica moradia sem nenhum requisito moderno”.

De fato, a questão financeira era um problema frequente para Magarinos Torres,

chegando a afetar sua dinâmica familiar, conforme as lembranças de seu sobrinho

(depoimento de Antônio Eugênio de Magarinos Torres, 07/03/2011):

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“Não era muito chegado a fazer conta com dinheiro não. Ele ia vivendo. Defendia muitos processos dos pobres do morro do Borel, da Formiga. E o pessoal não tinha dinheiro pra pagar. Ele era muito bom advogado, falava muito bem. Era muito inteligente e sempre ganhava os processos. Ele ficava defendendo os pobres do morro do Borel e no final ficava sem dinheiro, e quando ia chegando um período no qual ficava bem duro, não tinham mais dinheiro pra colocar gasolina no carro, iam cortar a luz. Aí minha tia ficava estressada com aquela situação e falava que iria se separar. Aí ele dizia pra família que estava na hora de pegar uma causa perdida. Aí pegava um caso tipo “Bateau Mouche”127 da vida e ganhava. Aí ganhava um dinheirão e ficava um ano vivendo daquilo e defendendo os pobres. Um ano depois o dinheiro já tinha acabado e minha tia queria separar de novo, aí ele pegava outra causa e ganhava. Foram vários anos assim”.

Outro aspecto que deve ser mencionado no tocante à vida conjugal de Magarinos

é o parentesco de sua esposa, dora Mourão de Magarinos Torres, com o general Olímpio

Mourão Filho, um dos principais articuladores do golpe de 1964. Sua cunhada, irmã do

líder da UDN e aliado de Carlos Lacerda, Mauro Magalhães, chega a afirmar que existia

uma convivência amistosa entre o advogado e o general (depoimento de Maria Helena

Magalhães Magarinos Torres, 07/03/2011):

“(...) antes de ser preso, ele era muito amigo do Mourão Filho. Mourão passava as noites na casa dele aqui na Usina, jogando xadrez. Eles eram muito amigos e jogavam xadrez sempre, a noite toda. Deu essa confusão, de repente estourou essa revolução toda, e ele pegou o nosso carro, a kombi do meu marido, que não era conhecida assim pela polícia, mas o carro dele era, e saiu pela rua. Ele parava no botequim e ligava para o Mourão e falava: ‘Mourão, seu safado, você me deixou numa dessa, jogou comigo a noite toda e nem me falou nada, que bananosa que eu estou’. Ele desligava e saía, e a polícia batia aqui. Passava um pouco, ele estava em outro bairro e dizia: ‘Mourão, seu isso, seu aquilo, como você faz uma coisa dessa?’ E o Mourão, coitado, também não podia falar. Ele falava: ‘Eu não podia falar, Antoine, o que eu podia fazer?’ O Antoine era o comunista, o Mourão era do governo”.

Há outros elementos da memória familiar sobre o advogado que reforçam sua

ligação com seus parentes de posição ideológica contrária (idem):

“(sobre o golpe de 1964) Quando ele soube que já se preparava algum movimento, ele estava a par disso, ele morava em uma casa muito grande, e o terreno dele tinha oito quilômetros de terreno para cima. Ele ia até a Estrada do Cristo, então aquela casa tinha aquele terreno que saía lá em cima naquela estrada. Ele ia levando em um saco, ele levava tijolos, levava cimento. Ele construiu uma coisa qualquer dentro daquela mata. Dizia ele: ‘Eu estou fazendo isso aqui porque nós vamos ganhar essa, eu e meus amigos’. O Mauro Magalhães, que era meu irmão, na época era líder da UDN, trabalhava com Carlos Lacerda, e o Antoine dizia ‘ele vai ser perseguido pelo meu grupo, e a minha turma é muito mais violenta do que eles. Ele vai ser

127 Referência ao caso de naufrágio de uma embarcação turística no litoral do Rio de Janeiro no réveillon de 1988, no qual 55 pessoas morreram. A empresa responsável foi acusada de negligência devido à superlotação e à ausência de revisão periódica do equipamento e de itens de segurança.

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perseguido, o Mourão também vai ser perseguido, eu estou fazendo um esconderijo, eu vou botar eles lá, que ali dentro da mata da minha casa ninguém vai descobrir. Eu vou lá levar comida para eles, então eu estou fazendo essa casa’. Ele mesmo construiu com as mãos dele, levou tijolo e fez um cômodo escondidinho ali, ele sempre dizia: ‘Olha, vocês têm sorte que vocês ganharam, se a minha turma ganha era uma violência tal que vocês não escapavam’”.

Deve-se ter em mente que essa abordagem colocada pela família de Magarinos

Torres também revela uma visão que contribui para a construção mítica do advogado,

que, perante as dificuldades financeiras, estaria disposto a assumir “causas perdidas”,

que lhe provessem sustento e possibilitassem dedicação exclusiva à “causa dos pobres”.

O mesmo elemento encontra-se presente no ato da construção de um esconderijo para

Olímpio Mourão Filho e Mauro Magalhães caso a “sua turma saísse vencedora em

1964”. Porém, a despeito do maior ou menor grau de afetividade dos laços entre o

advogado e seus parentes de ideologia contrária, suscetível às variações e sentidos

múltiplos típicos da construção da memória, é inegável que tal relacionamento poderia

constituir um elemento de tensão na vida pessoal de Magarinos, bem como em seu

convívio familiar.

No tocante a seu irmão, o militar da Marinha Renê de Magarinos Torres, trata-se

de um caso que expõe ainda com mais clareza como a atuação de Antoine de Magarinos

Torres pôde afetar sua dinâmica familiar. Quando ocorreu o golpe de 1964, o militar

sofreu perseguição por suas ligações com o advogado, segundo consta em seu

prontuário. No dia seguinte ao golpe, dois oficiais da Marinha foram ao DOPS pedir

auxílio em "diligência que seria por eles efetuada" para a realização de buscas na casa

dos dois irmãos, com a seguinte justificativa (Fundo de Polícia Política/APERJ,

prontuário n. 47. 727, folhas 39 e 40):

“Na véspera do dia 1º de abril, o comandante Magarinos Torres havia saído do prédio do Ministério da Marinha levando consigo algumas metralhadoras "INA" pertencentes àquele ministério. Por outro lado, tendo em vista informes que eram do conhecimento daqueles oficiais, existia a possibilidade de tais metralhadoras haverem sido levadas à casa de Magarinos Torres,

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bastante conhecido por suas atividades de agitação junto aos favelados, o qual, segundo ainda os mesmos informes, pretenderia praticar atos terroristas".

A situação acabou acarretando o desligamento de Renê de Magarinos Torres da

marinha, ocasionando outro ponto de tensão em seu convívio familiar (depoimento de

Antônio Eugênio de Magarinos Torres, 07/03/2011):

“Ele (Renê de Magarinos Torres, quando ia para o local onde se encontrava lotado) pedia uma carona pr’o meu tio Antoine, que sempre passava por ali. Só que ele sempre arrumava um jeito de fazer um comício antes do meu tio Renê chegar. Eu sei que, numa dessas, ele incentivou todos os marinheiros a tirarem a farda e jogarem dentro do mar. Aquilo deu uma confusão danada e meu tio Renê foi preso. (...) Ele ficou vários meses preso nesse navio. E como os militares ganharam a revolução, ele foi caçado e dado como morto. Não podia ter mais nada no nome dele. Morreu e aquilo durou dez anos. (...) A cassação dele durou dez anos. Depois ele foi anistiado e ia ser incorporado à marinha. Foi chamado porque, quando ele foi caçado, tiraram as medalhas dele todas, tiraram a farda. Quando ele ia ser reintegrado à marinha, ele ficou tão emocionado que enfartou a caminho de lá, não chegou lá. Morreu no táxi. Aquilo era uma coisa que mexia com ele, deixou ele muito triste no dia que saiu e muito feliz quando ia voltar”.

Nenhum desses casos é relatado por Manoel Gomes, que, conforme visto,

aborda sua relação familiar através de um apoio, não descrito de forma direta, mas

sugerido através da presença de dora Mourão Magarinos Torres, que o acompanhava ao

Borel e recebia seus clientes de lá, assim como Renê Magarinos Torres, também

presente na favela na única ocasião em que é mencionado no livro. Esses fatos aqui

debatidos revelam a complexidade de relações na qual se envolvia Antoine de

Magarinos Torres, o que revela a pluralidade de sua identidade, comum a qualquer outro

personagem histórico, multiplicidade essa nunca abordada pelo relato biográfico que

tende a sublinhar apenas alguns aspectos da personalidade retratada (BOURDIEU,

2005). O processo de construção do mito combina diferentes sistemas de imagens e

representações, constituindo uma “espécie de encruzilhada do imaginário”

(GIRARDET, 1987: 73). Entretanto, deve-se ter em mente que a construção de um

relato biográfico varia, tanto na forma quanto no conteúdo, de acordo com os interesses

presentes em sua produção e com o público para o qual o mesmo é voltado

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(BOURDIEU, 2005).

Outro aspecto importante colocado por Manoel Gomes diz respeito ao papel

desempenhado pelo advogado para o desenvolvimento do associativismo entre as

favelas. Conforme visto, em um de seus primeiros discursos para os moradores do

Borel, Magarinos Torres ressaltou, segundo as palavras de Manoel Gomes, a

necessidade de consolidar o associativismo como a via capaz de assegurar o direito à

permanência através da necessidade de “1º - manter-se organizado dentro da associação

local; 2º - estender a união dos favelados em todo o âmbito territorial do Rio de Janeiro,

onde quer que haja favela” (GOMES, 1980: 24). E, de fato, representantes de outras

favelas passam a procurá-lo a fim de contar com seus serviços contra ameaças de

despejo, como o caso da favela de Mata-Machado, localizada no Alto da Boa Vista,

presente em um dos encontros de Magarinos com moradores do Borel (GOMES, 1980:

35): “Daí a 15 minutos chegava Magarinos, acompanhado por uma comissão de

moradores da favela Mata-Machado, pra lá do Alto da Boa Vista, que estavam

desesperados com a ameaça de despejo promovida por outros grileiros interessados em

tomar as terras por eles ocupadas”. Ao realizar seu discurso, Magarinos Torres teria

ressaltado a importância dessa presença, bem como a necessidade de união entre

moradores de favelas (idem: 37):

“Estão aqui entre nós alguns moradores da favela Mata-Machado, que vieram pedir minha ajuda, pois estão nas mesmas condições que vocês, intimados a abandonarem seus lares no prazo de 30 dias. (...) Novos e velhos se confraternizem e adotem esse lema: um por todos e todos por um, que unidos venceremos”.

Além dos moradores de Mata-Machado, há a figura do personagem Manduca,

morador da favela do Santo Antônio, à época sendo removida devido à obra de

construção da futura avenida Chile. Este, ao chegar ao Borel procurando estadia

definitiva, foi comunicado de que deveria cumprir as seguintes “exigências: 1º - ser

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sócio da União; 2º - trazer dois retratos 3x4; 3º - vir do morro de Santo Antônio, que

estava sendo despejado. Essa última posição provava cabalmente que a luta dos

favelados do Borel não tinha discriminação bairrista” (GOMES, 1980: 33). Além das

favelas de Mata-Machado e Santo Antônio, foram mencionadas as seguintes, que

apoiaram a concentração em frente aos palácios Pedro Ernesto e do Catete: Esqueleto,

morro dos Cabritos, Arará, Escondidinho e Candelária (idem: 45).

Porém, ao nos debruçarmos sobre o livro de Gomes, temos indícios para melhor

refletir sobre o impacto da atuação da UTF entre os moradores, não apenas do Borel.

Manoel Gomes (1980: 34) chega a colocar a necessidade de “não permissão de

construção de novos barracões a elementos desassociados da União – só ela exerceria o

poder central nos casos relativos à vida interna dos moradores ali localizados”. Tais

medidas são descritas por Gomes como uma forma de reforçar a resistência contra as

investidas da Borel-Meuron. De fato, um dos aspectos relativos à atuação da associação

de moradores, durante a década de 1950 e parte dos anos 1960, período em que atuou

enquanto UTF, foi a regulação da propriedade e da organização interna do Borel

(CAVALCANTI, 2007). Essa questão fica visível no depoimento de antigos moradores

(depoimento de Jacaré128, 06/11/2010): “Quando a gente invadia pra fazer um

barraquinho, o presidente dizia que tinha que falar com ele antes. Fui fazer o

barraquinho de um amigo meu, aí juntou o pessoal da associação, um tesoureiro e o

primo dele e disse que não poderia fazer. Mas eu fiz”.

A situação descrita acima levanta a possibilidade de conflitos de interesse

movidos pela atuação da União como agente de regulação na favela do Borel, do qual

podemos relacionar ao caso de Aristófanes Monteiro de Souza abordado anteriormente.

Porém, esses conflitos não existiram apenas no Borel, podendo ser estendidos a outras

128 Nascido em 1931, o depoente reside no Borel desde 1954. É pai do já mencionado depoente José Ivan.

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favelas nas quais a UTF atuou, dentre as quais podemos destacar o Parque União,

localizada na região que atualmente convencionou-se chamar de Complexo da Maré. A

maior ocupação do Parque é iniciada a partir de 1959 sob o comando de Magarinos

Torres, que coordenou o loteamento e estabelecia controle sobre quais indivíduos

podiam se instalar como moradores da favela, podendo ser proprietários de apenas um

único terreno, além de defender os habitantes de tentativas de remoção. Segundo

memória local, o próprio advogado ordenava a destruição dos barracos que eram

construídos sem sua autorização (VAZ, 1994b). A influência do advogado sobre o

Parque União pode ser vista quando o mesmo denominou seu loteamento inicial como

bairro Desembargador Magarinos Torres, em homenagem a seu pai.

Conflitos internos dentro da diretoria da associação local, um diretório da UTF,

um modelo que guarda algumas semelhanças com o caso de Aristófanes Monteiro de

Souza, podem ser observados no Parque União. No dia 21 de fevereiro de 1962, foi

encaminhada uma denúncia pedindo a apuração de uma situação de conflitos existente

no diretório da “União dos Trabalhadores Favelados do Bairro Desembargador

Magarinos Torres”. Segundo o documento (Fundo Polícia Política/APERJ, pasta 2,

dossiê 19, folhas 5 e 6):

“Foi presidente dessa associação João Alexandrino da Silva, o qual estaria desservindo os seus companheiros, e, antecipando sua demissão, exonerou-se. (...). Tivemos conhecimento de que Alexandrino tem promovido um ambiente de terror através de porte de arma e de auxílio de seus parentes, que estariam também portando facas e outros instrumentos ofensivos”.

Desse modo, Alexandrino teria ameaçado de morte dois moradores do Parque,

Raquel Souza dos Santos e Albino Manoel dos Santos, “porque não se submeteram a

Alexandrino, que os compelia à assinatura de um papel em branco.” Também foram

feitas ameaças ao “soldado da PMEG Alberto Camilo (...), ameaça feita em presença de

indivíduos que se diziam policiais”. Por último, foi solicitada a presença de Magarinos

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para a prestação de esclarecimentos: “Esteve presente o Dr. Magarinos Torres, filho,

que, à minha sugestão, apresentaria um relatório posterior e dos antecedentes, bem

como do aspecto legal e contábil da associação” (idem, ibidem).

Em um primeiro momento, a situação acima revela certas semelhanças com o

ocorrido no Borel, devido a uma disputa interna pela liderança do diretório local da

UTF. Porém, o nome de João Alexandrino se envolverá em outro caso de contornos

mais dramáticos, revelador da disputa de diferentes atores pela implementação de

projetos no tocante às favelas naquela região. Em 1962, Magarinos Torres se envolve

em duas pendengas judiciais. A primeira, movida contra o advogado, acusando-o de

obter lucros com a exploração ilegal do terreno, promovendo a venda de bens da União,

além de se envolver no assassinato do operário Eufrásio Severino da Silva, que teria em

seu poder fichas fornecidas pelo SERFHA para um levantamento dos moradores da

favela, o que teria sido a causa de seu assassinato. O segundo inquérito trata da defesa

de Magarinos e da exigência de punição de seus detratores, bem como de uma ação de

manutenção de posse do terreno movida contra o SERFHA (AMOROSO &

GONÇALVES, 2011).

Em seu depoimento, Magarinos Torres chega a afirmar “que todos os depoentes

que figuram neste inquérito, ou foram introduzidos subrepticialmente por aquele João

Alexandrino ou foram por atos de violência da polícia, e muitos, inclusive, não

moravam sequer no local, como os três signatários da petição que dá origem a este

inquérito” (Fundo Polícia Política/APERJ, dossiê 12, folha 66). Porém, meu intento não

é averiguar a veracidade das informações presentes nesse longo ou intrincado processo,

mas entender sua ocorrência dentro do campo de disputas de projetos políticos para as

favelas nesse período. Pistas para tal objetivo estão presentes na ação de manutenção de

posse comandada por Magarinos. Nela, o advogado faz as seguintes acusações (Fundo

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Polícia Política/APERJ, pasta 2, dossiê 12, folhas 5 a 8):

“Desde princípios de 1961, os possuidores do terreno localizado na avenida Brasil, 7020 a 7030, vinham sendo ameaçados de esbulho, por intermédio do engenheiro Anísio Silva, usando, para ameaçar, guardas e ‘memoranda’ de intimação do Departamento Estadual de Estradas de Rodagem, marcando prazo aos possuidores para abandonarem a posse (...) o Sr. Artur Rios, diretor do SERFHA, mandou ao local um choque da polícia de vigilância ,orientado por um seu funcionário, de nome Montel de tal, e com um grupo de trabalhadores contratados. Derrubou oito moradias habitadas, entre as quais a de viúva, com quatro filhos menores, fato que foi registrado neste distrito (Registro 6 para 7 de novembro de 1961) (...). Em relação a este processo de homicídio, que corria sob a honrada vigilância de V.Sa., o governador, avocando-o, entregou-o à delegada de ordem política e social, mandando que o delegado Ventura distorcesse a verdade, de modo a indiciar o advogado que esta assina como mandante do crime, o que aquele delegado prevaricador e desonesto tem feito, por meio de depoimentos que sabe falsos, alguns a ele levados por dois “grileiros”, Carlos Gonçalves e Felipe Pinto, contra os quais o ora denunciante tem promovido queixas crimes por atos de esbulhos e tentativas de despejo e outros crimes, relativamente à posse dos favelados do Borel e da Favela do Mata-Machado, na Estrada das Furnas. (...) junta-se, também, com o seu inegável prestígio, o arcebispo Hélder Câmara, como presidente da Cruzada São Sebastião, telefonando a diretores de jornais e pedindo-lhes que deem curso às caluniosas notícias que propalam a respeito e mandando que padres deponham caluniosamente nos processos forjados, tudo porque, estando acusado pelo ora denunciante e advogado, de haver-se apropriado, indebitamente, de mais de 20 bilhões de cruzeiros destinados a melhoramento em favelas, por intermédio da dita Cruzada, nada realizando ou aplicando do dinheiro que lhe doou o presidente Juscelino, durante o seu governo” (grifos meus).

A longa passagem acima serve para ilustrar os principais agentes com quem a

UTF, personificada na figura de Magarinos Torres, disputava a implementação de suas

propostas políticas nas favelas ao longo das décadas de 1950 e 1960. Ao mencionar

acusações de desvio de verbas públicas contra Dom Hélder Câmara e “seu inegável

prestígio”, independentemente das afirmações serem ou não verídicas, Magarinos

voltava sua artilharia contra a Igreja, um dos atores que vinha atuando junto aos

moradores de favelas desde o final dos anos 1940, com a criação da Fundação Leão

XIII, embora seu alvo direto fosse a Cruzada São Sebastião.

É necessário lembrar que a Fundação Leão XIII foi criada, dentre outras

intenções, para disputar a influência dos moradores de favelas com o Partido

Comunista, com um projeto de controle ideológico que depois foi sendo revertido em

uma atuação de manutenção de serviços, como provimento de água e esgoto (LEEDS &

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137

LEEDS, 1978 e RIOS, 1986). A própria Cruzada São Sebastião surge logo após o

aparecimento da UTF, em um contexto de disputas internas dentro da própria Igreja,

com um projeto de promoção da integração a partir do conceito de desenvolvimento

comunitário, baseado na interpretação dos habitantes de favelas como agentes

promotores de sua própria inserção social (RIOS, 1986). A crescente aceitação da UTF

entre este segmento social também foi um dos motivos que levaram ao aparecimento da

Cruzada (GONÇALVES, 2010).

Porém, ao citar Carlos Lacerda e José Arthur Rios, Magarinos Torres menciona

novos atores em disputa em um contexto político que se inaugura a partir da criação do

estado da Guanabara, em 1960. Lacerda foi o primeiro governador do recém-criado

estado, e sua política para favelas pode ser dividida em dois momentos, tendo como

marco divisório o ano de 1962. O primeiro foi caracterizado pela atuação de José Arthur

Rios à frente da Coordenação de Serviços Sociais. Rios era partidário da metodologia

de Economia e Humanismo, movimento francês fundado pelo padre Louis-Joseph

Lebret, que permeou a elaboração de famoso estudo, conhecido como “Relatório

Sagmacs” (VALLADARES, 2005).

Em seu trabalho, o sociólogo teceu uma série de críticas à atuação da Fundação

Leão XIII e da Cruzada São Sebastião, e no final da década de 1950, ele assume o

SERFHA, passo que o levou ao cargo de coordenador de Serviços Sociais do governo

Lacerda (1960-1965) (RIOS, 1986). Em sua atuação frente à coordenação, José Arthur

Rios pregava a necessidade de maior autonomia do morador de favelas para negociar

com o poder público sem intermediários, e, sendo assim, estimulou a criação de

associações de moradores passando o SERFHA, subordinado à Coordenação de

Serviços Sociais, a exercer um papel de consultoria jurídica, técnica e financeira

(LEEDS & LEEDS, 1978). Durante os anos de 1961 e 1962, chegaram a ser criadas

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138

mais de 75 associações de moradores dentro dessa perspectiva (PANDOLFI &

GRYNSZPAN, 2002: 243)129.

Com isso, podemos perceber que os agentes citados por Magarinos Torres em

sua denúncia eram atores com propostas para a implementação de projetos políticos

para as favelas, além de, no caso de Rios, Lacerda e seus funcionários, representantes do

poder público. Ou seja, sujeitos políticos concorrentes da União dos Trabalhadores

Favelados, configurando um quadro de disputas que envolve, inclusive, confrontos no

campo dos discursos e elaboração de representações (BOURDIEU, 1989). Esse

imbróglio visa à obtenção de posições de poder, e pode ser observado tanto na troca de

acusações exemplificadas pela acusação de Magarinos Torres no assassinato de Eufrásio

Severino da Silva, quanto nas insinuações de corrupção movidas pelo advogado.

É interessante perceber que, mais uma vez, temos um quadro de disputas entre

atores políticos, envolvendo as favelas, na esfera do judiciário. Porém, há algumas

diferenças de interesse quanto às “batalhas pela terra” (FISCHER, 2008), que abrangem

período dos anos 1930 aos 1950, uma vez que elas não visam ao direito à permanência

ou a interesses da “indústria da expropriação” (GONÇALVES, 2010). Nesse caso, o

objeto de disputa é a legitimação para a implementação de projetos de intervenção em

favelas por sujeitos políticos concorrentes.

O próprio José Arthur Rios chega a expor esse quadro de disputas em seu

depoimento (depoimento de José Arthur Rios, 15/05/2011):

“O Partido Comunista ficou indignado com minha atuação. Ele viu nas comissões de moradores uma réplica das células. Mas as células não poderiam fazer nada, além de “blá blá blá”. E eu tinha que trazer a obra, material de construção. Minhas ideias eram pegar essas células e transformar em cooperativas de habitação, sem dar o nome de cooperativas. Mantendo a ideia do mutirão. Eu fui apedrejado na subida do Borel. Lá era o grande núcleo. Vi que era impossível trabalhar ali”.

129 Após 1962, devido a uma série de condicionantes políticos, a coordenação se torna Secretaria de Serviços Sociais e passa ao comando de Sandra Cavalcanti. Esse passo promoveu a guinada da política de Carlos Lacerda para as favelas, privilegiando as remoções para conjuntos habitacionais (LEEDs & LEEDS, 1978).

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139

O sociólogo (idem) chega a colocar sua atuação frente ao governo Lacerda como

uma tentativa de agregar capital político junto aos moradores de favelas (BOURDIEU,

1989): “Acontece que o governador Lacerda, um homem inteligente, sentiu a

importância política dos favelados, que eram todos em geral do PTB e do PC do B.

Ninguém era da UDN. Ele percebeu que, pela primeira vez, foi recebido com aplausos

nas favelas. Algo espontâneo”.

Com relação aos processos nos quais Magarinos Torres se envolveu, gostaria de

atentar para outro de seus aspectos, a data de realização, a partir de um acontecimento

ocorrido no final de 1961 e cujos desdobramentos jurídicos adentram o ano de 1962.

Também gostaria de relembrar o ano de ocorrência do caso de Aristófanes Monteiro de

Souza: 1963. O final da década de 1950 é tido como decréscimo da influência

comunista nas favelas (GONÇALVES, 2010). Em 1959, foi criada a CTFRJ a partir das

articulações obtidas pela UTF com José Gomes Talarico, em sua chapa com Magarinos

Torres nas eleições de 1958 (LIMA, 1989). Nísia Trindade Lima chega a mencionar os

embates da coligação com o SERFHA, já sob o comando de José Arthur Rios, e com a

Cruzada São Sebastião, ocorridos desde o I Congresso dos Trabalhadores, evento que

deu origem a CTFRJ. Ainda segundo Lima (1989: 124): “A interferência de questões

partidárias nas atividades da entidade motivou, segundo algumas lideranças do

movimento de favelas, o declínio das atividades da CTFRJ e sua posterior substituição

pela FAFEG em 1963”.

Desse modo, poderíamos considerar o final dos anos 1950 e início dos anos

1960 como um possível período de declínio para as ações da UTF. Porém, diante dos

processos no qual Magarinos se envolveu, claros indicadores de uma disputa pelo

campo de atuação política para implementação de propostas em favelas, é preciso se

questionar sobre o grau desse declínio, sobre uma virtual perda de importância da UTF

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140

e de seus diferentes diretórios capitaneados pela CTFRJ.

A partir da própria memória de Manoel Gomes, temos o final dos anos 1950

como um período de declínio das ações de Antoine de Magarinos Torres, e o canto do

cisne foi sua candidatura em 1958. Gomes coloca o nome de Magarinos para concorrer

à Câmara dos Vereadores como uma ideia originária dos próprios moradores do Borel,

personificados pelo já abordado personagem Manduca, que declarou em uma das

reuniões (GOMES, 1980: 63):

“Quero fazer uma proposta a vocês, companheiros. Nós estamos às vésperas de um pleito eleitoral, nós votamos em candidatos descompromissados conosco (...). Nós precisamos eleger representantes nossos, não temos Partido dos Trabalhadores Favelados. Temos o Partido Trabalhista, cujo presidente é o Ministro do Trabalho, o Dr. João Goulart. Vamos comissionados a ele pedir uma legenda para vereador à Câmara Municipal, cujo candidato será nosso esforçado companheiro Dr. Magarinos Torres (...)”

No entanto, como já colocado anteriormente, Magarinos não consegue se eleger,

e sua derrota é explicada por Gomes (idem: 68) da seguinte forma: “A grande maioria

dos favelados, displicente, não tinha traquejo de campanhas eleitorais. O desinteresse

predominava, muitos julgavam que eleição se ganha com conversa ou com bafo de

cachaça nas tendinhas”. Após o revés eleitoral, “Magarinos resolveu se afastar um

pouco da luta para se refazer da canseira que o perturbou devido ao grande esforço

despendido durante essa árdua batalha, onde procurou impedir um desfecho desastroso

para os moradores do morro do Borel” (ibidem: 69), sendo que (idibidem: 72):

“Magarinos Torres, em novembro de 1966, veio a falecer no rodo da Usina da Tijuca em sua própria residência (...). O cadáver de Magarinos foi transladado para a sede da UTF, onde foi feito o velório até o dia seguinte, quando saiu o esquife, acompanhando-o 28 carros particulares e dois coletivos para o cemitério de São Francisco Xavier. Foi enterrado em cova rasa, de acordo com seu último pedido, rodeado por todos os seus lamentosos amigos, que sentiram na própria carne tão irrecuperável perda”.

Assim termina a história da UTF segundo Manoel Gomes, sendo o livro

encerrado com menções ao golpe de 1964, descrito como (idem: 73):

“(...) uma reviravolta no sistema político brasileiro com a deposição do

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presidente João Goulart, e cassado os mandatos dos legítimos representantes do povo, e Talarico também entrou nessa “fria”, pagando bem caro pelo desprendimento em defender os injustiçados trabalhadores brasileiros, a exemplo de outros, que também pagaram pelo mesmo “crime”.

Com essas palavras, se encerra “As Lutas do povo do Borel”, mas, entre a

derrota nas eleições de 1958 e seu falecimento, há mais elementos não mencionados na

história de Magarinos Torres, além da já citada participação nas eleições constituintes da

Guanabara em 1960. Quando ocorreu o golpe de 1964, Magarinos foi à rádio Mayrink

Veiga, ainda no 1º de abril, fazer um comunicado em nome da União dos Trabalhadores

Favelados (Fundo Polícia Política/APERJ, prontuário nº 47. 727, folha 22):

“Trabalhadores favelados, trago, através da rádio Mayrink Veiga, a rádio que divulga a palavra de ordem do deputado Leonel Brizola, também a palavra de ordem da União dos Trabalhadores Favelados, reunida esta madrugada e que decidiu o seguinte. (...) seus milhares de associados de todas as favelas do estado da Guanabara, se mantenham com seus rádios sintonizados com a Mayrink Veiga, cumprindo ordens do CGT, permaneçam em suas casas, obedientes à greve geral decretada. Organizem-se em grupos de 11, sob a chefia de um chefe e subchefia de outro trabalhador. Homens e mulheres favelados, escolham o comandante geral e o seu substituto e subchefe. Destes grupos de chefe, escolham o comandante geral de cada favela, que deve levar seu mandato à sede da União dos Trabalhadores Favelados, na rua São Miguel, na Tijuca (...) contra os golpistas, contra a ameaça do governador Carlos Lacerda, em luta contra o domínio fascista que não respeita o lar dos trabalhadores favelados (...). As armas chegarão às nossas mãos em defesa do homem que traz o legado da carta de pensamento de Getúlio (...) atentos à rádio Mayrink Veiga, que ordens partirão daqui, se usar a força, contra a violência do governador fascista”.

Desse modo, vemos que o advogado fez um esforço para agregar a UTF aos

“grupos dos onze” de Leonel Brizola130, mais uma vez estabelecendo uma série de

críticas a Carlos Lacerda, além de atentar para a possibilidade se “se usar a força”. A

cunhada de Magarinos Torres relata a lembrança do discurso da seguinte forma

(depoimento de Maria Helena Magalhães Magarinos Torres, 07/03/2011):

“Eu sei que liguei um dia de manhã, já na revolução, ele estava falando na rádio de Mayrink Veiga. Ele dizia: ‘Olha, vamos arrastar essa turma pelos cabelos, vamos invadir esse palácio, vamos pegar essa gente toda lá, vamos

130 Movimento criado por Leonel Brizola em outubro de 1963 para militar em prol das reformas de base. Sua denominação vem de sua organização em grupos de 11 pessoas, das quais uma liderava. Após o golpe de 1964, o movimento foi abandonado.

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arrastar pela rua, pelo cabelo, para eles aprenderem’. Meu irmão estava no palácio, e meu cunhado gritando, meu irmão no palácio, eu fiquei doente com aquilo, (...). O Mauro ligou e disse assim: ‘Olha, não se preocupe com o que Antoine está falando na rádio não, que a situação já está totalmente dominada, e ele não sabe porque ele está na rádio, e nós estamos aqui no palácio, o general Mourão já chegou aqui, e não temos risco, o palácio está cercado, não há condição de eles fazerem nada, eu vou procurar segurar o Antoine, vou dar um jeito de resguardar um pouco o Antoine.”

E, de fato, com o golpe, o advogado caiu na ilegalidade, chegando a passar uma

temporada escondido na casa de seu irmão, o médico Hélio Magarinos Torres, período

no qual o auxílio de Mauro Magalhães se mostrou fundamental, segundo a memória

familiar (idem):

“O Mauro botou ele lá em casa, e disse: ‘Eu vou dar notícia para você, da forma que eu puder, você que entenda’. Ele ligava e o nosso telefone era censurado, ele ligava e dizia assim: ‘Maria melhorou?’ Eu respondia: ‘Melhorou sim’, tudo eu entendia o que ele queria dizer. Ele dizia: ‘Olha, tem um médico que vai não sei aonde’. Eu sabia que era a polícia, então ele sempre mudava”.

Posteriormente, Antoine de Magarinos Torres chegou a se exilar na embaixada

da Bolívia, de onde conseguiu visto para entrar nesse país. Porém, acabou retornando

para o Brasil, mais uma vez para a casa do irmão. Sua cunhada tentou fazê-lo passar

incólume por possíveis olhares denunciadores (ibidem):

“Eu raspei a barba dele, botei tinta clarinha no cabelo dele, botei ele louro, sem barbicha e louro. Ele ficou diferente, com aquele olhos dele grandes e azuis que não escondiam, eu comprei uns rolinhos e fiz permanente, fiz o cabelo dele igual carapinhas, enrolei o cabelo dele todo, ele ficou diferente. Botei ele no carro e disse: ‘Vamos passear’. (...) mas não é que quando passou no Borel ele gritou: ‘Ei, pessoal! Sou eu, o Margarinos, olha, só estou lá na casa do meu irmão’. Eu disse: ‘Antoine, hoje eu vou te matar agora, Antoine, não faça isso’. Ele: ‘Olha, é que eu pintei o cabelo. Vocês não tão reconhecendo?’ E deu a ficha toda ali pela rua do Borel (risos)”.

De fato, diante de rumores da presença de Magarinos Torres pelas proximidades

do Borel, temos mais uma prova da existência de grupos contrários à atuação do

advogado, devido a uma denúncia encaminhada a Carlos Lacerda por um morador do

morro da Formiga partidário da UDN (Fundo Polícia Política/APERJ, prontuário nº 47.

727, folhas 27 a 29):

“Meu grande governador, que Deus o abençoe! Quero por meio desta

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reafirmar-lhe minha fé inabalável de velho crente com dom de profecia, pois falo com Deus a seu favor e ele tem nos garantido que a sua vitória será certa, pois ele diz que o senhor é um de seus escolhidos! (...) é preciso lutar contra os divisionistas da nossa querida UDN (...). Venha até o meu morro, que é o das favelas Formiga e Borel. A nossa igreja fica na rua São Miguel (...). Eu quero aproveitar a oportunidade para avisá-lo que estou plenamente informado de que este que se chama Magarinos Torres está no morro do Borel de forma incógnita, isto é, de cabeça e de cavanhaque raspados. Toda a Tijuca já sabe disso, eu me comuniquei com um detetive amigo meu, mas não sei se ele tomou as providências do caso”.

Antoine de Magarinos Torres falece no dia 15 de outubro de 1966 de infarto do

miocárdio, problema congênito do qual faleceram seus irmãos, todos por volta dos 50

anos, conforme dito por sua família. O entendimento de sua atuação política deve

atentar para sua figura não apenas como o herói descrito por Manoel Gomes, que

abdicou da segurança financeira para militar pela causa dos moradores de favelas, mas

como mais um ator em um campo de disputas no qual a favela assume seu lugar como

espaço de implementação de propostas políticas para as classes populares.

O livro de Manoel Gomes tem seu surgimento a partir do final da década de

1970, período no qual o PCB tenta reorganizar suas bases de ação nas favelas, a partir

de uma visão crítica sobre os pilares nos quais se assentavam o movimento associativo e

a Faferj. Contudo, novos atores, também do campo de oposição à ditadura militar,

ensaiarão o mesmo movimento, abrindo um novo campo de disputa que se configurará

por outros meios. A conjugação desses atores dará a base para a Faferj, que ressurgirá

nos anos 1970 e 1980 dentro do modelo de associativismo de resistência (BRUM,

2006). Em entrevista concedida em 1980, Irineu Guimarães, antigo militante do PCB

que depois se filiaria ao MR-8, então presidente da Faferj, chega a citar a UTF como um

modelo (COSTA, 1980: 24): “O Borel representa toda uma tradição de luta nos

trabalhos para a filiação em 1954, apoiado pelo único deputado que tínhamos, Roberto

Morena”. Isso demonstra que a existência de diferentes interesses em disputa não

impediu o uso de uma memória sobre a UTF pela Federação. Porém, as apropriações

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sobre essa memória, bem como as diversas relações, permeadas por certos níveis de

tensão, que propiciaram a construção de um suporte que garantisse sua inscrição física,

ou seja, sua materialidade, merece um olhar mais detalhado.

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Capítulo III

Por trás de uma “memória de lutas”: a elaboração e os usos políticos de “As lutas

do povo do Borel”

O objetivo deste capítulo é analisar o processo de elaboração de “As lutas do

povo do Borel”, quais os grupos envolvidos nesse processo, bem como seus interesses,

projetos, espaços de atuação e possíveis interpretações acerca dos significados presentes

nesse discurso de memória. Desse modo, será abordada a trajetória da livraria Muro,

bem como os responsáveis pelo seu surgimento e sua ligação com o PCB. Serão,

igualmente, retratados os demais grupos de oposição à ditadura atuantes no Borel e o

convívio entre eles. Por último, será relatado como ocorreu o processo editorial que deu

origem ao livro de Manoel Gomes, além dos interesses por trás da iniciativa.

Em maio de 1981, foi enviada uma denúncia anônima, através de uma carta, ao

delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). O conteúdo da

correspondência tinha como foco alertar “diversas irregularidades que vêm acontecendo

na União dos Moradores do Morro do Borel” (Fundo Polícia Política/APERJ, pasta 279-

J, folha 501). O estopim que motivou a denúncia teria sido o lançamento do livro “As

lutas do povo do Borel”, de autoria de Manoel Gomes, um ex-morador do local, “militar

reformado e de tendências vermelhas”, conforme reportado pela missiva.

A carta faz referência à necessidade de que se investiguem as eleições para a

diretoria da UMMB, que se realizariam no dia 24 de maio daquele ano (o lançamento de

“As lutas” ocorreu no dia 10 do mesmo mês). O objeto de preocupação do denunciante

seria a relação de uma das chapas concorrentes com (idem)

“vários políticos de esquerda (...) um grupo de moças e rapazes que andam fazendo distribuição no morro do jornal Hora do Povo (...). Quero alertar vossa excelência sobre o perigo que vai representar para aquele povo tão sofrido se esta chapa for a vencedora, pois vão transformar a UMMB em escritório político desses vermelhos antinacionalistas”.

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O PCB possui uma tradição de atuação junto a moradores de favelas na Tijuca

desde a década de 1940, quando forneceu auxílio a este grupo no tocante à questão de

posse de terra e direito à permanência em seus locais de moradia, a exemplo das favelas

do Salgueiro e do Turano (FISCHER, 2008). Quase quarenta anos depois após esses

episódios, é possível notar a existência de outros grupos de esquerda na favela do Borel,

conforme menção ao jornal Hora do Povo, distribuído pelo Movimento Revolucionário

8 de outubro (MR-8) (CAMURÇA & REIS FILHO, 2007). É sabido que a Ação

Popular (AP) também atuou no local, não se descartando a existência de outros grupos

de esquerda na favela. Todos esses atores exerceram sua militância em um período de

abertura política, ao final do governo militar, possuindo concepções e projetos

específicos sobre o movimento associativo e comunitário. Suas relações eram marcadas

por certa concorrência, ainda que não de forma explícita e estritamente conflituosa.

O livro de Manoel Gomes se tornou um “lugar de memória” para os moradores

do Borel, embora seu significado difira de acordo com os grupos locais, e como tal, está

sujeito a diversas formas de instrumentalização política. Mesmo tendo sido lançado por

uma editora do Partido Comunista, sua elaboração possuiu participação de militantes da

AP, uma delas tendo sido responsável pela datilografia dos originais antes que fossem

levados para a editora. O próprio grupo ligado ao MR-8 apresenta sua forma própria de

se apropriar do discurso de Gomes, com tonalidades mais críticas, tendo em vista a

visão predominante de militantes do PCB no depoimento no qual se constitui a obra.

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A livraria Muro

Segundo a memória de um ex-militante do PCB, a livraria Muro teria sido

fundada a partir de um grupo, ligado ao Partido, que atuava na área cultural no bairro da

Tijuca desde meados dos anos 1970. Esse foi um período de reorganização da atuação

de base dos movimentos de oposição à ditadura, após o desmantelamento dos grupos

que optaram pela luta armada e o exílio de diversas lideranças de relevância nesse

cenário131 (depoimento de Márcio Arnaldo, 15/08/2009):

“Então o Rui, o Aloísio e o Tinoco se juntaram, já eram... Se tornaram sócios da Muro Ipanema e se juntaram pra abrir a Muro Tijuca. O Tinoco era do Cineclube Glauber Rocha, o Aloísio Leite era da cinemateca do MAM e era nosso amigo do Cineclube Glauber Rocha132 (...) e o Rui nós conhecemos naquele momento. Então nós dissemos: “(...) a Muro, ela pode dar um novo status, um status empresarial a um trabalho político”.

A matriz da livraria e editora surgiu em 1975 no bairro de Ipanema, criada pelo

empresário e atual dono da rede de livrarias Travessa, Rui Campos133. A filial tijucana é

criada posteriormente (idem):

“A filial da Tijuca foi o Tinoco, junto com o Aloísio Leite e um outro companheiro que morreu também, o Pestana, Paulo Pestana, e eles, então, o Tinoco entrou com a parte principal do dinheiro, né?, o Tinoco e a família dele lá. Eles tinham algumas posses e tal, e eles então abriram essa empresa num prédio, na galeria ali do lado do Palheta (...). Lá era a Muro Tijuca. (...) Isso foi em 1979, talvez”.

131 É preciso levar em conta que essa reorganização teve como pano de fundo, no escopo mais amplo da política nacional, a abertura política iniciada no governo de Ernesto Geisel (1974-1979) e aprofundada no governo de João Baptista Figueiredo (1979-1985). A Lei da Anistia, aprovada pelo congresso nacional, significou a reintegração à vida social e política brasileira de milhares de exilados, presos políticos ou demais indivíduos que se encontravam na clandestinidade, à exceção dos que foram considerados “culpados por atos de terrorismo”, os quais não representavam um número considerável quando da aplicação da lei. Também foram restabelecidos os direitos políticos para aqueles que os perderam devido aos Atos Institucionais. Desse modo, figuras como Leonel Brizola e Luís Carlos Prestes, além de diversos outros que retornaram do exílio, passaram a figurar novamente no fazer político do período. Durante o final dos anos 1970, além do retorno de atores políticos à cena com a Anistia, também se percebe um quadro de menos restrições à imprensa, embora esta ainda pudesse sofrer pressões, ameaças e até violências ocasionais. Esses elementos são alguns dos que revelam uma maior abertura do sistema política brasileiro desde 1968 (SKIDMORE, 1988). 132 Glauber Rocha foi um dos diversos cineclubes que existiram na Tijuca e em seus arredores nesse período, muitos ligados a simpatizantes ou militantes de grupos de oposição à ditadura. Seu papel será discutido posteriormente. 133 O próprio empresário caracteriza a Muro como o princípio de sua atuação no mercado de livros, conforme pode ser visto em: http://www.travessa.com.br/wpgquemsomos.aspx.

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148

Sua localização se dá ao lado do tradicional Café Palheta, no coração da praça

Sáenz Peña, um dos principais pontos do bairro e possuidora de uma aura de

efervescência cultural, devido aos inúmeros cinemas que lá existiram, e que lhe fizeram

valer o apelido de “a Cinelândia da Tijuca”, a partir da década de 1940 (CARDOSO,

VAZ, ALBERNAZ, AIZEN & PECHMAN, 1984: 115).

O contexto do advento da Muro é marcado por uma conjuntura específica

relativa ao mercado editorial brasileiro. Nesse período, vemos o despontar de livros de

denúncia à tortura e à repressão política do regime militar, inserido em um panorama de

retomada da ação política após o declínio da luta armada. Assim, há uma reorganização

do campo da esquerda na luta pelas liberdades democráticas, na qual se insere um

movimento cultural e editorial com a revitalização de editores de perfil político e de

oposição ao governo militar. Desse modo, o que Flamarion Maués define como

“literatura política” (MAUÉS, 2009: 4) ganha força a partir de 1977 e 1978, em um

cenário no qual se pode destacar o retorno à cena do movimento sindical e estudantil, as

greves do ABC e a campanha pela anistia. Com isso, ganham força as “editoras de

oposição”, definidas como aquelas que (idem, ibidem)

“tinham perfil nitidamente político e ideológico de oposição ao governo militar, com reflexos diretos em sua linha editorial e nos títulos publicados (...) a marca distintiva de uma editora de oposição é o fato de ela ter perfil de oposição ao governo militar e ter publicado certo número de livros de oposição. Um número suficiente, na produção daquela editora, para que fique claro que aqueles livros representavam parcela importante da produção da empresa. Disso resulta que os diferenciais básicos para se saber se uma editora pode ser chamada de editora de oposição são o perfil político e ideológico da editora, determinado pelas simpatias, filiação política de seus proprietários e/ou editores, e o seu catálogo de livros publicados”.

É válido ressaltar que essas editoras apresentavam um perfil variado, sendo

algumas mais socialistas, reformistas ou liberais, e não necessariamente ligadas a uma

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visão mais à esquerda, marxista e de oposição aguerrida134 (idibidem).

A Muro pode ser enquadrada no grupo de editoras caracterizado por Maués.

Seus envolvidos aqui entrevistados eram militantes do partido comunista, e tiveram

envolvimento de graus diferenciados ao longo da existência da filial da Tijuca. O já

referido Márcio Arnaldo chegou a ser gerente da loja da Tijuca durante o ano de 1981.

Além dele, também foram tomados depoimentos de Armando Sampaio e Wilton

Chaves. Todos eram frequentadores da livraria, militavam no PCB nos anos 1970 e

1980 e moraram na Tijuca nesse período. Outro ponto comum entre eles, que

caracterizava demais integrantes da Muro Tijuca, é o envolvimento com o bairro. Os

entrevistados chegaram a residir na praça Afonso Pena, ou em suas proximidades, e a

tinham como um espaço de sociabilidade no qual se discutiam teses de esquerda, com

participação de integrantes do Partido Comunista: “(...) na praça Afonso Pena, que a

gente depois veio a chamar de “Praça Vermelha”, porque tinha tanta gente do partido (se

referindo ao Partido Comunista) lá que a gente brincava falando assim” (depoimento de

Armando Sampaio, 21/09/2009).

Portanto, surge a perspectiva de fundar uma “livraria/editora” na qual “a ideia já

era criar uma estrutura empresarial pra propiciar a edição de livros” (depoimento de

Márcio Arnaldo, 15/08/2009). Objetivou-se, igualmente, criar um espaço de atividades

culturais, sempre ligadas às ideias de esquerda e de oposição ao regime, com a

finalidade de estimular o debate intelectual e proporcionar um local de encontro entre

pessoas que simpatizavam com essa visão, não sendo necessariamente militantes do

Partido Comunista (idem):

“(...) a gente pegava os intelectuais, assim, reconhecidos na época, o Leandro

134 Dentro desse universo, podemos destacar as seguintes editoras: Alfa-Ômega, Global, Brasil Debates, Ciências Humanas, Kairós, Codecri, Veja, Livramento, entre outras. A partir de meados de 1970, também podemos destacar o fato de editoras de maior tradição, como a Vozes, a Paz e Terra, a Civilização Brasileira e a Brasiliense também passarem a dar maior destaque a publicações de crítica ao regime de 1964 (idem: 3-4).

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150

Konder, aí fazia um curso sobre Marxismo e Arte, o Carlos Nélson Coutinho, fazia um curso sobre democracia, marxismo e democracia (...). Também passava lá, quando queria algum contato, perdeu o contato, perdeu o ponto, não sei o quê, a gente vivia na clandestinidade, né?, mas já estava menos... A repressão já era menor”.

A função de sociabilidade não se restringia à filial tijucana: “A Muro tinhas duas

lojas no mesmo espaço ali na Visconde de Pirajá, era uma livraria pra atender o público

infantil, chamada Murinho, e tinha carteira de sócio, meu filho foi sócio” (depoimento

de Wilton Chaves, 10/08/2009). É interessante observar que a criação de um espaço

voltado para o público infantil revela um esforço de maior envolvimento da família dos

frequentadores. Afinal, com essa iniciativa, eles levariam seus filhos à livraria cientes de

que haveria um local para o entretenimento deles. Essa proposta levanta uma série de

possibilidades, dentre as quais gostaria de destacar duas. A primeira refere-se a um

esforço de consolidação de um público frequentador, gerando possibilidades de

continuidade do projeto da Muro. A segunda pode ser relacionada ao caráter de

“oposição democrática” que passa a predominar entre o perfil dos que contestavam o

regime militar, após meados dos anos 1970 e do desmantelamento dos grupos armados

de esquerda, uma vez que o perfil do “pai de família” que leva seu filho a uma livraria,

ainda que, nesse caso, impregnada de um significado político oposicionista, não condiz

com o guerrilheiro disposto a arriscar sua vida pelas “liberdades democráticas”.

Com relação ao Partido Comunista Brasileiro, agremiação partidária à qual

pertenciam os envolvidos com a Muro, gostaria de fazer algumas considerações sobre as

transformações pelas quais passou a partir da década de 1970, sobretudo. Desde 1968, é

possível observar um contexto de crise no bloco socialista, tendo como exemplos

concretos invasões na Tchecoslováquia, rebeliões na Polônia, culminando na queda do

Muro de Berlin e no fim do chamado “socialismo real”, em 1989. Esse panorama

acabou por afetar os partidos comunistas presentes nos países capitalistas, que passaram

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151

a buscar alternativas de renovação e possíveis “terceiras vias”, a exemplo do

“eurocomunismo” (PANDOLFI, 1995).

No caso do Brasil, é preciso que se contextualize essa perspectiva em relação ao

quadro político relacionado às eleições de 1974. Nesse pleito135, o resultado favorável às

articulações oposicionistas em torno do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) foi

considerado pela direção do Partido Comunista como confirmação do “acerto” das

resoluções aprovadas em seu VI Congresso, em 1967, que estabelecia o direcionamento

de buscar a queda do regime vigente pelo caminho institucional e legal. Desse modo, a

opção pela luta armada era tida como uma “aventura” sem embasamento histórico e à

margem das massas, conforme observado por Dulce Pandolfi (idem: 209).

No entanto, surge uma corrente crítica em relação à postura adotada pelo

Partido. Para esses críticos, dentre os quais se incluíam o próprio Prestes, o apoio à

oposição institucional/legal ao regime militar, representada pelo MDB, seria uma

aceitação do sistema político então adotado no Brasil, sem que houvesse uma

diferenciação mais sólida das oposições ditas liberais, e deveria ser abandonada por uma

posição mais combativa. Assim, vemos surgir uma divisão interna, algo comum ao

longo da história do PCB. À ala combativa se opunha uma corrente renovadora,

influenciada pelas ideias do Partido Comunista Italiano, que discordava da noção de

“etapismo”, na qual a democracia é vista como um degrau necessário para a revolução.

Para este grupo, os valores democráticos seriam universais e deveriam estar em um

primeiro plano em projetos de reconstrução social (ibidem: 215-216).

Com relação aos envolvidos com a Muro, podemos utilizar como exemplo o

caso de Márcio Arnaldo. Em um primeiro momento, ao ser questionado se era partidário

de alguma das cisões citadas dentro do Partido, assim como os demais articuladores da

135 Deve ser lembrada a marcante vitória do partido de oposição, que obteve 16 das 22 vagas ao senado.

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152

livraria e editora, ele responde: “Não, especificamente, não, nós éramos do Partido

Comunista”. No entanto, ao mencionar as influências que levaram à criação da Muro,

explica: “Nós éramos inspirados pelo partido italiano, né?, que tinha livrarias, editoras,

não sei o quê, nós dissemos: ‘Vamos criar em cima da cultura até uma possibilidade

empresarial para o Partido se financiar’”136 (depoimento de Márcio Arnaldo,

15/08/2009).

Conforme observado anteriormente, os primeiros anos de 1970 foram um

período crítico para a oposição ao regime militar. A fase de maior recrudescimento do

autoritarismo do regime resultou em uma série de “desaparecimentos políticos”, além

do exílio de lideranças importantes, que afetaram não apenas a resistência armada, mas

o próprio Partido Comunista. O secretário geral Luís Carlos Prestes encontrava-se

exilado desde o final dos anos 1960 na então União Soviética. Os banimentos, incluindo

o de Prestes, e os “desaparecimentos” acabaram contribuindo para que se abrisse

caminho à ascensão de novas lideranças dentro da agremiação, algumas com ideias

comuns à chamada corrente renovadora, influenciada pelo Partido Comunista Italiano e

por pensadores como Palmiro Togliatti (PANDOLFI, 1995)137. Ou seja, os fatos desse

período revelam uma necessidade de recomposição de quadros, e uma nova geração

passa a atuar nos cargos de direção e de militância de base, convivendo com militantes

mais antigos.

Segundo Márcio Arnaldo, “entre 1972 e 1980, o partido cresceu muito na

136 O Partido Comunista Italiano foi uma referência sobre as mudanças na cultura comunista observadas a partir da década de 1970 e o debate acerca da questão democrática. Em 1990, ele abandona a denominação “Partido Comunista”, assim como o tradicional símbolo da foice e do martelo, o mesmo acontecendo no Brasil em 1992. No entanto, é válido ressaltar que, no caso brasileiro, a crise pela qual passava o socialismo não explicava, por si só, a transformação do PCB no Partido Popular Socialista (PPS), processo que envolveu uma série de conflitos e tensões em torno da herança de um passado ligado à cultura comunista (PANDOLFI, 1995). 137 Togliatti foi um dos principais nomes dentro do debate sobre a questão democrática, influenciando os críticos brasileiros da “visão etapista” de revolução (idem). Seu livro “Socialismo e Democracia” chegou a ser editado pela Muro em 1980.

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153

Tijuca”138, em um contexto no qual “a Tijuca tinha sido uma ilha de onde a

reestruturação do partido, né?, da ideia de uma frente de trabalho cultural ocorreu”

(depoimento de Márcio Arnaldo, 15/08/2009). A afirmação do bairro como uma “ilha

de reestruturação” deve ser interpretada à luz da conjuntura mencionada a respeito do

início da década de 1970139. Esse novo grupo, entre os quais se inserem meus

entrevistados, começou sua atuação e militância no final da década de 1960, e tinha

como características iniciativas ligadas ao campo da cultura140. Duas delas foram

fundamentais para o surgimento da Muro, o cineclube Glauber Rocha141 e a Associação

Pró-Teatro da Tijuca (depoimento de Márcio Arnaldo, 15/08/2009):

“Então, nós criamos o cineclube e ele inicialmente funcionou, assim, na casa de um, de outro, na casa do deputado Délio dos Santos (...). E, aí, saía nos jornais, os jornais que a gente botava, no JB, no Globo, né?, “sessão extra! Cineclube Glauber Rocha, endereço tal na Rua Haddock Lobo (...) e tínhamos um bom afluxo de pessoas, passávamos filmes, que normalmente não passavam... Filmes bons que normalmente não passavam no circuito. (...) Depois, surpreendentemente, talvez já com o dedinho da repressão, nunca soubemos, um dia nós chegamos lá e nos disseram que não íamos mais funcionar lá, porque a igreja não... E aí ficamos na rua, e acabamos encontrando a Igreja de São Francisco Xavier (...). E criamos então o grupo que tocou... Que fundou a chamada Associação Pró-Teatro da Tijuca, cuja sigla era APTT, e com esse nome ficou conhecida. Aí na área da Tijuca o Partido Comunista tinha duas frentes de trabalho, uma de teatro, que era a APTT, e uma de cinema, que era o Cineclube. Então, a livraria Muro, ela serviria como uma abertura, num outro nível, como uma superação daquelas entidades, que eram entidades de certa forma precárias, a livraria Muro, ela tinha uma legalidade comercial, empresarial etc. E era uma respeitável livraria, reconhecida na cidade inteira.”

138 No entanto, mais uma vez gostaria de lembrar que o PCB já possuía uma tradição anterior de atuação no bairro, inclusive com entrada em favelas. 139 Algo interessante de se observar é o envolvimento familiar dos entrevistados para essa pesquisa com o Partido. Armando Sampaio é filho do militante Sampaio Netto; Antônio Werneck, médico que atuou no Borel até o final da década de 1970, é sobrinho de Moacir Werneck; Mirian Gonçalves, moradora do Borel, é filha do militante José Emídio Gonçalves, o “Boneco”, filiado ao PCB e um dos fundadores da UTF; e Felipe Villas Boas, militante de base que também atuou no Borel, teve seu pai e irmão mais velho como filiados. 140 É preciso mencionar que isso não chega a ser uma novidade, conforme mostra o envolvimento anterior do PCB com algumas escolas de samba (GUIMARÃES, 2009). A diferença, nesse caso, é o contexto histórico da cisão do PCB na década de 1970 e a influência do PCI. 141 Os cineclubes se constituíram, entre os anos 1970 e 1980, como um importante fórum de ações político-culturais de crítica à ditadura militar. Podemos destacar os seguintes cineclubes do período: Leme, Barravento, Dinafilmes, Grande Otelo, dentre outros. Para um debate mais aprofundado sobre o assunto, ver MATELA, 2007.

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154

É interessante notar a visão de Márcio Arnaldo de atentar para a “legalidade

comercial e empresarial” que caracterizaria a Muro, em consonância com sua

interpretação de que era necessário “dar um status empresarial a um trabalho político” e,

com isso, mais uma vez citando as influências do Partido Italiano, “criar em cima da

cultura até uma possibilidade empresarial para o partido se financiar” (idem). Essa

função da Muro como forma de financiar o partido pode ser considerada uma

interpretação da nova conjuntura que se anuncia a partir dos meados de 1970, com o

prenúncio da abertura política, além da mudança de perspectiva de uma nova geração de

militantes.

As sessões do cineclube, assim como as festas do Partido, possuíam um papel de

agregação para essa geração de militantes mais jovens: “Não passo pelo Cineclube (não

faz parte da direção), eu ia assistir filmes, tinha as festas do Partido de final de ano pra

arrecadar dinheiro, tinha essas coisas assim. Aí todos os militantes iam pra onde era a

festa” (depoimento de Antônio Werneck, 3/09/2009). Com relação à atividade

cineclubista, é importante atentar que o Glauber Rocha não era a única iniciativa pelos

arredores da Tijuca: “(...) eu logo a seguir fui militar no Cineclube, em Vila Isabel. (...)

Era no... Ali na Gonzaga Bastos, era no clube Raio de Sol” (depoimento de Felipe

Villas Boas, 29/10/2009). A diferença de posturas entre os militantes mais jovens e os

mais antigos é percebida por Antônio Werneck, ao observar os envolvidos com o PCB

que residiam no Borel (depoimento de Antônio Werneck, 3/09/2009):

“(...) os jovens vinham, vinham pras reuniões na Cinelândia, vieram, né?, pra todas as, é... A coisa da eleição em 78, isso os jovens, os velhos não, ficavam nas reuniões do Partido lá, levavam o deputado lá, entendeu?, levavam o Délio dos Santos lá dentro da favela. Agora, você sair pra vir numa manifestação no congresso, na assembleia, na câmara de vereadores, eles não vinham. (...)Aí eles ficaram com uma base dois de jovens, não botavam esses caras com os velhos, entendeu?, porque não dava certo, não dava certo, os caras eram os pais, os tios (...)”

O advento da livraria e editora Muro está inserido em um projeto mais amplo,

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155

levado a cabo por esses militantes mais jovens, dentre os quais Márcio Arnaldo,

Armando Sampaio e Antônio Werneck. Seus objetivos continham resgatar antigos

militantes, que já haviam realizado uma atuação na Tijuca e em seus bairros vizinhos, e

a mobilização deveria ocorrer através de iniciativas culturais, como o Cineclube

Glauber Rocha, como forma de congregar “favela” e “asfalto”, a partir da tomada de

consciência da importância do trabalho de bairro por parte de tal grupo (depoimento de

Márcio Arnaldo, 15/08/2009):

“(...) vamos aqui tentar organizar um cineclube, uma organização de massa, que seja aberta, que não seja clandestina, que tenha uma atuação legal, que faça algum tipo de trabalho, que movimente, e que mostre às pessoas que é possível fazer alguma coisa, e tal, e criamos um cineclube (...). Quê que nós fizemos? Nós dissemos: Bom, vamos fazer um mapeamento do quê que há, e do quê que houve aqui na Tijuca. Então, nós conseguimos um contato com um velho operário que era do partido (...) Era o Moacir Pacheco Chaves. (...) Então, eu e os outros dois companheiros organizamos um comitê na zona norte, chamado Comitê da Zona Norte, e começamos a procurar as pessoas que poderiam ser... Vir a ser... Que seriam... Que teriam sido do partido, que poderiam de novo nos ajudar a reconstruir o partido em toda a zona norte, não só na Tijuca, mas em toda a zona norte, que abrangia até o Grajaú. Grajaú, Andaraí, Vila Isabel, Tijuca, Usina, Rio Comprido, e tal. E aí começamos a organizar o partido, a recuperar esses contatos, e começamos então a estruturar o partido. Tudo surgiu daí, tudo o que aconteceu, inclusive a livraria Muro, surgiu daí.”

A iniciativa de buscar os membros do PCB mais antigos é relacionada ao desejo

de reconstrução de bases de atuação, após a relativa desestruturação resultante da

repressão do início da década de 1970. Esse movimento envolve também as favelas,

conforme mostra a menção a Moacir Pacheco Alves, falecido operário das fábricas que

existiam no local e que atuou amplamente no Borel e na UTF. A diretriz de atuação

ligava-se às ideias desses militantes, que pretendiam atuar em uma esfera de legalidade,

ou, segundo as já citadas palavras de Márcio Arnaldo, através do “status empresarial”

que esse tipo de mobilização poderia fornecer. Outro fator para o qual gostaria de

atentar é o esforço de que se realizasse um diagnóstico sobre os bairros de atuação do

chamado Comitê da Zona Norte, a fim de que se conhecessem os vieses da região sobre

a qual se pretendia trabalhar (depoimento de Armando Sampaio, 21/09/2009):

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156

“(...) o Comitê da Zona Norte, que era formado por quatro pessoas, e nós começamos a fazer um estudo, de quantas fábricas existiam, quantas favelas, quantas faculdades, quantas universidades, que público nós... É um estudo meio econômico, meio sociológico, mas basicamente político, da nossa região. O que nós estabelecemos como nossa região é chamado de Grande Tijuca, que seria Tijuca, Vila Isabel, Grajaú, Andaraí, Rio Comprido, Catumbi. Essa área seria a Grande Tijuca142”.

Ao recuperar-se o contato com a militância mais antiga do Borel,

carinhosamente denominada por Werneck como “velhinhos do partido”, houve inclusive

uma reflexão sobre como as diferenças sociais entre os militantes e os moradores da

favela poderiam influenciar o convívio e a atuação de ambos os grupos (depoimento de

Antônio Werneck, 3/09/2009):

“Como a base do Borel recupera os caras antigos da base anterior (...) é que o pessoal de classe média não poderia ou não deveria ficar em contato com os operários lá do Borel, por segurança, ou por constrangimento mesmo, dos caras se sentirem dominados pela classe média ou qualquer coisa dessa assim (...) além dos velhinhos do partido, tinha o Seu Moacir, que não morava no Borel e era... Agora, de lá era o Bonifácio, o Lira, o Severino, o Emídio Gonçalves, que era o Boneco”.

Nesse cenário histórico, podemos observar uma crítica instrumentalizada pela

literatura política, cujo florescimento é marcado pela atuação das editoras de oposição

(MAUÉS, 2009). Desse modo, nos encontramos diante de um contexto fértil para o

surgimento de obras como a de Manoel Gomes143. No que se refere ao mercado

editorial, esse quadro é caracterizado pela existência de circuitos de comunicação

(DARNTON, 1990), elemento presente no processo de elaboração de livros que abarca

a atuação de diferentes sujeitos, como autores, editores, distribuidores e leitores144. No

tocante à livraria e editora Muro, estamos tratando de um caso no qual uma proposta

142 No caso, não há qualquer indício de relação com o recorte espacial de atuação adotado pela Agenda Social Rio, que será abordada posteriormente, referente à mesma área mencionada pelo depoente. 143 Contudo, é válido atentar para o fato de que o uso da cultura escrita, manifesto tanto no caso de livros quanto de periódicos, para a disseminação do ideário comunista é possível de se encontrar em outras conjunturas históricas, remetendo ao período varguista (SÁ MOTTA, 2006 e CARNEIRO, 2006). 144 Esses “circuitos” influenciariam autores antes e depois do processo de edição, uma vez que esses mesmos autores são igualmente leitores, lendo e se associando a outros leitores e escritores, formando noções de gênero e estilo, além de uma ideia própria do empreendimento literário que acaba por direcionar a escrita de seus textos (idem). Creio que essa noção pode ser aplicada a partir dos exemplos mencionados na nota sete do capitulo I.

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157

editorial encontra-se inserida em um projeto político mais amplo, pertencente a um

segmento específico de uma agremiação partidária, dotado de concepções próprias

acerca dos caminhos para a retomada da normalidade democrática no Brasil.

Conforme visto anteriormente, o contexto histórico que marca o fim das

ditaduras militares da América latina revela o ato de lembrar como uma atividade

importante para a restauração de laços sociais e comunitários, perdidos no exílio ou

pelas práticas repressivas do Estado, sendo o florescimento de discursos testemunhais

um importante suporte para a “restauração de uma esfera pública de direitos” (SARLO,

2007: 47). Pode ser estabelecido um paralelo desse quadro com os diversos livros de

denúncia às torturas praticadas pela ditadura militar brasileira (MAUÉS, 2009). Nos

casos brasileiros e argentinos, esses analisados por Beatriz Sarlo (2007), estamos

tratando de memórias, silenciadas pelo recrudescimento da repressão estatal, vindo à

tona e sendo utilizadas como ferramentas políticas. E esses discursos de memória

tinham como suporte a produção editorial do período. Isso não significa que toda

editora dessa época, envolvida com esse tipo de publicação, seja relacionada a grupos

políticos de quaisquer espécies, porém, conforme demonstrado, esse foi justamente o

caso da livraria e editora Muro.

Como a presente reflexão aborda a questão de discursos de memória

transformados em produtos culturais, algumas considerações sobre o tema devem ser

feitas. Ulpiano Bezerra de Meneses caracteriza como “memória protética” a memória

cultural pública em elevada escala, sendo produzida fora do sujeito, ou seja, apropriada

sem a experiência de um passado vivido em comum, o que caracteriza justamente o

consumo de memórias enquanto produtos culturais. Desse modo, tem-se o ato de

seleção e apropriação de memórias em oferta a partir da escolha do consumidor, e não

mais apenas como herança de um grupo social. Assim, nos deparamos com o fenômeno

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158

do advento de memórias portáteis, com possibilidades amplas de circulação, compondo

um verdadeiro e complexo mercado de memórias. No entanto, Meneses menciona a

seguinte questão com relação a esse formato do discurso memorialístico: “Seria tal

memória politicamente desmobilizadora ou progressista?” (MENESES, 2009: 451).

Acerca de um potencial mobilizatório, ou seu inverso, dessas memórias

transmutadas em produtos culturais, alguns aspectos devem ser considerados, tendo em

vista o próprio livro de Manoel Gomes. Sobre as possibilidades de circulação desse tipo

de produto cultural, Ulpiano B. de Meneses chega a afirmar que, no momento atual, a

partir da disseminação da internet, ele circula “sem fronteiras” (idem, ibidem). Contudo,

em 1980, ano do lançamento de “As lutas”, existiam certas restrições à circulação,

afinal, ainda vivíamos em um regime de exceção, mesmo que não apresentasse a ênfase

repressiva observada entre o final da década de 1960 e meados de 1970. Também não

havia um campo de difícil vigilância e cerceamento como a internet, embora existissem

formas de circulação de produtos culturais clandestinos de oposição ao regime. A

própria obra em questão caiu na rede de observação dos militares, conforme mostra a

carta com a qual abro este capítulo. Esse fato levanta uma questão a ser relacionada à de

Ulpiano de Meneses: as restrições a obras de caráter contestatório nesse período, dentre

as quais se incluem discursos de memória, não criariam, justamente, uma aura de

mobilização política ao dotar esses produtos de um simbolismo de oposicionismo

político?

A livraria e editora Muro encerra suas atividades em meados dos anos 1980. A

filial do Catete, caracterizada por Márcio Arnaldo como um passo em falso dado pelos

demais sócios, por ser uma “aventura” maior que o fôlego da empreitada permitia, foi a

primeira a fechar as portas. Logo depois, a filial tijucana segue o mesmo caminho. A

principal causa do fim da atividade das duas sedes seriam problemas financeiros: “Nós

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começamos a dever muito às distribuidoras, né? (...). Então, as pessoas chegavam

procurando livro que era da Brasiliense, nós não tínhamos. Isso mata, né?, isso dá uma

dor, pra mim, que era o gerente da loja, e eu via que isso, do ponto de vista empresarial,

matava, porque as pessoas pararam de ir à livraria” (depoimento de Márcio Arnaldo,

15/08/2009). A matriz de Ipanema, mesmo sendo, conforme a visão dos depoentes,

“uma livraria badalada como era”, possuidora de “espaço na imprensa” (depoimento de

Wilton Chaves, 10/08/2009), é a última a encerrar, também por motivos financeiros,

suas atividades. No tocante ao PCB, o mesmo período foi marcado pelo desenrolar de

uma crise que culminaria em sua transmutação em PPS na década seguinte. Antônio

Werneck e Márcio Arnaldo se desligam do partido quando este confirma o apoio à

candidatura de Miro Teixeira às eleições estaduais de 1982, um dos principais marcos

políticos do país à época.

Ação política no Borel: grupos de esquerda e convivência tática

A pesquisadora Nísia Trindade Lima realizou uma pesquisa de campo em favelas

como Salgueiro e Borel com o intuito de compreender as formas de mobilização e

participação política de moradores de favelas, tendo como pano de fundo as campanhas

para as eleições de 1982. Apesar do clima de mobilização que se instaura com a

proximidade do pleito, a socióloga expõe o seguinte quadro com relação às favelas:

“Mesmo com o desenvolvimento de associações voluntárias, discute-se a pequena

participação do conjunto de associados em suas atividades e a falta de informações que

normalmente se concentra na diretoria em grupos mais ‘mobilizados’” (LIMA, 1982: 2).

A própria pesquisadora, embasada em seu trabalho de campo, afirma que esse quadro

não se aplica de maneira uniforme em todas as favelas. No entanto, suas observações

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160

abrem portas para certas considerações. Muitas vezes, a perda do referencial

mobilizatório das associações de moradores de favelas é relacionada ao seu

encampamento pela máquina pública, o que de fato começa a ocorrer na primeira

administração de Brizola. As melhorias de infraestrutura e a participação das

associações na gestão de recursos por vezes são apontadas como fatores

desmobilizatórios, a exemplo da afirmação de Itamar Silva, liderança comunitária do

Santa Marta e um dos fundadores do grupo ECO145 (PANDOLFI & GRYNSZPAN,

2003: 320):

“O início da década de 1980 forami as comunidades de favela mostrando a força da reivindicação (grifos meus). Aí vieram os benefícios. Tivemos a experiência do Cantagalo, um sinal de que a urbanização era possível e que era importante investir nas favelas. Depois veio o Proface em várias comunidades (...). Nessa hora começa o afastamento, porque as pessoas sentiram que não precisavam mais fazer tanta força (grifos meus)”.

O maior envolvimento com a máquina pública durante a administração de

Brizola teria tido consequências dentro da própria Faferj, ainda segundo Itamar Silva

(idem: 322): “(...) das relações que a Faferj estabeleceu com o próprio poder público;

ganhou aquela sede da rua República do Líbano, toda reformada, dinheiro do governo

Brizola. Aliás, alguns membros da diretoria entraram para o governo, e essa relação

ficou muito complicada (grifos meus)146”.

O relato de Nísia Trindade sobre a situação que encontrou na favela do Borel

revela uma população com um considerável grau de mobilização, e é interessante notar

que esta não passa exclusivamente pelo crivo da associação de moradores, o que não

145 Grupo de moradores dessa favela, surgido no final dos anos 1970, que desenvolve uma série de atividades educativas e culturais. 146 Não creio que se deva corroborar ou negar a interpretação das novas relações entre poder público e associações de moradores de favelas como um fator mobilizatório. No entanto, a partir da já citada afirmação de Nísia Trindade, acredito ser válido manter a perspectiva de que a menor participação de moradores de favelas nas associações possa ter causas anteriores à administração estadual de Brizola, tendo em vista que o estudo de Trindade ocorreu antes dos resultados do pleito de 1982. Cabe a questão: essa tendência não seria parte de um processo que já vinha ocorrendo, ainda mais ao levar-se em conta que estávamos saindo de uma ditadura com sólidos dispositivos de restrição à mobilização reivindicatória?

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161

quer dizer que seja esvaziada. Além da associação, foi encontrado no local um centro

comunitário originário de um projeto da antiga Funabem147, cujo representante

concorreria como deputado estadual em 1982, com ligações a atividades desenvolvidas

pelo representante da Pastoral de Favelas, padre Olinto Pegoraro.

As temáticas que permearam as eleições de 1982, sobretudo nas questões

relativas às favelas, tiveram ressonância local: “A questão da luta pela democracia, da

oposição ao governo federal apareceram em todas as entrevistas realizadas” (LIMA,

1982: 6). Os moradores entrevistados também construíram seus próprios significados

acerca do perfil dos candidatos ao governo do estado, tendo em vista seu histórico na

vida política nacional, o que chegou a gerar alguns constrangimentos para a candidata

Sandra Cavalcanti148, identificada pelos moradores como (idem: 7)

“inimiga desta população e responsável por uma série de remoções à época do governo Carlos Lacerda (...). A influência do tratamento dispensado às favelas e da identificação dos candidatos enquanto mais ou menos propensos a defenderem a política de urbanização se fará sentir de forma clara tanto no Borel como no Salgueiro. No caso da primeira comunidade, após manifestação de protesto quando da visita da candidata Sandra Cavalcanti ao morro, ela passa gradativamente a perder suas bases de apoio”.

Um ponto para o qual gostaria de atentar é a pluralidade de perfis dos grupos

militantes encontrados por Lima no Borel. As diferenças entre eles englobam faixa

etária, local e formas de atuação e origem (ligação com partidos, Igreja ou outra

instituição, “de dentro” ou “de fora” da favela). Com relação aos locais de convívio,

foram encontradas diferenças na faixa etária. Na sede da associação de moradores, foi

notada a presença, em média, de pessoas maiores de 30 anos, enquanto o Centro

Comunitário era frequentado pelos mais jovens, muitas vezes interessados nas

atividades culturais e recreativas (ibidem: 9).

147 Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, criada em 1964 para o planejamento e execução de políticas para menores de idade. 148 Secretária de Serviço Social do governo de Carlos Lacerda (1960-1965), atuou nas remoções de favelas nesse período. Também foi a primeira presidente do Banco Nacional de Habitação. Seu depoimento consta em FREIRE & OLIVEIRA, 2002.

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162

Essas instituições possuíam uma “convivência tensa, algumas vezes solidária e outras

de conflito latente”, sem que se revelasse “no entanto, uma oposição explícita de uma

entidade com relação à outra” (idibidem: 10). Com referência às impressões mútuas

desses grupos, mais uma vez utilizarei as palavras da pesquisadora (idem, ibidem):

“(...) comportamento de lideranças que vinham ‘de fora’ realizar alguns trabalhos no morro (recreação, entre outros) e tinham um estilo de comportamento estranho para os moradores (falar em voz alta na igreja, mulheres bebendo cerveja no bar da associação, roupas ‘esquisitas’, entre outras observações)”.

Gostaria de chamar atenção para dois aspectos a partir da observação de Nísia

Trindade. O primeiro é relacionado à questão etária. Conforme abordado anteriormente,

existia uma convivência entre diferentes gerações de grupos políticos nessa favela, com

concepções e formas de atuação distintas. O segundo diz respeito aos “de fora”, que

vinham desenvolver trabalhos recreativos. Essas atividades, na verdade, poderiam ser

consideradas como parte de um trabalho político, ligadas a grupos de esquerda. Os

entrevistados para minha pesquisa citaram três grupos majoritários atuando no Borel

nessa época149: o Partido Comunista Brasileiro, que desenvolvia um trabalho desde a

década de 1950 e possuía uma tradicional relação com a associação de moradores; o

MR-8; e a Ação Popular, que tinha como característica justamente o desenvolvimento

de atividades educacionais, além do contato, no caso do Borel, com a Igreja Católica,

personificada na figura do padre Olinto. Portanto, o estranhamento de posturas como

“mulheres bebendo cerveja no bar da associação” pode estar relacionado a concepções

diferentes, dentro do tema das gerações, sobre posturas comportamentais. Mas também

deve ser vinculado a essas questões o componente político, de pertencimento a grupos

diversos. Afinal, as “reclamações” citadas foram observadas em entrevistas na sede da

associação, reduto não apenas de pessoas de faixa etária maior a 30 anos, mas

149 Isso não quer dizer necessariamente que sejam os únicos grupos que estiveram presentes. Os entrevistados afirmaram a existência de outros no local, ou até mesmo os realmente majoritários. No entanto, não consegui localizar representantes de outras organizações de oposição do período.

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163

tradicionalmente associada, pelo menos até aquele momento, a militantes do PCB, com

suas próprias noções sobre condutas comportamentais.

Com relação à convivência entre esses grupos no Borel, primeiramente, gostaria

de atentar para a posição ocupada pelo PCB. Esta era uma agremiação partidária mais

antiga, criada em 1922, e com atuação no Borel desde os primórdios dos anos 1950.

Muitos dos grupos de oposição à ditadura de 1964, inclusive, surgiram de dissidências

do próprio PCB, como é o caso do MR-8. Essa situação coloca os comunistas em uma

posição diferente da de outras organizações que realizaram uma aproximação com a

favela, no que se refere à assimilação pelos moradores do Borel. Afinal, eles já

possuíam uma atuação consolidada na área, o que lhes posicionava privilegiadamente

em relação a grupos que ainda precisariam galgar zonas de atuação e legitimidade

perante a população ante a qual pretendiam agir.

A fala de Fernanda, militante da AP, ilumina alguns aspectos nesse sentido

(depoimento de Fernanda Carneiro, 05/11/2009):

“Então eu fui de cara trabalhar no supletivo. (...) Era AP e o outro era... Mas, bem, e digamos assim, próximo do Lira, Lira permitiu. O Lira era o contato e, então, era na associação de moradores que funcionava. Nessa época, tinha essa cooperação na base, isso sou eu interpretando, e o Lira, no caso, era o presidente da associação” (grifos meus).

O trecho por mim destacado do depoimento de Fernanda serve para chamar

atenção para algumas considerações, a partir da conceituação de Michel de Certeau

sobre “tática” e “estratégia”. Para o pensador francês (CERTEAU, 2005: 46):

“Denomino, (...), “tática” um cálculo que não pode contar com um próprio, nem, portanto, com uma fronteira que distingue o outro como totalidade visível. A tática só tem por lugar o do outro. (...). Ela não dispõe de base onde capitalizar os seus proveitos, preparar suas expansões e assegurar uma independência em face das circunstâncias”.

O “próprio” ao qual se refere Certeau pode ser interpretado como um espaço

para a concretização dos interesses de um grupo a partir de um posicionamento ocupado

dentro da hierarquia social. Desse modo, a “base de onde capitalizar seus proveitos”

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164

poderia se manifestar como o status privilegiado de um indivíduo ou grupo que lhe

garantiria certas benesses com correspondentes na esfera material150.

Com relação ao trecho destacado do depoimento de Fernanda, gostaria de atentar

para o aspecto referente à “permissão do Lira” para o estabelecimento do curso

supletivo implementado no Borel. O Lira a quem ela se refere é José Batista Lira, uma

das antigas lideranças residentes na favela, participante da UTF e com ligações no grupo

do Partido Comunista, embora não se saiba se chegou a ser um filiado151. O fato de ele

ocupar a presidência revela que o PCB possuía uma ascendência considerável sobre a

associação de moradores, quadro que depois se reverte, conforme analisarei mais

adiante. No entanto, por ser um grupo estabelecido há mais tempo, podemos observar

algumas diferenças com a AP que revelam acesso a um “próprio” que lhes coloca em

uma posição mais vantajosa. Primeiramente, as ligações com a própria associação,

estabelecidas diante do histórico de formação da mesma, o que lhes possibilita o alcance

a um instrumento de mobilização e influência sobre os demais moradores da favela.

Esse instrumento, além de lhes gerar uma certa legitimidade no local, lhes possibilitaria

uma base física para sua atuação, a exemplo da sede da associação.

No caso da AP, ela precisaria de um meio para “entrar” e se estabelecer na

favela, conforme mostra o “contato próximo do Lira”, que permitiu o uso dessa sede

para as atividades do supletivo, em um primeiro momento. A “permissão do Lira”

possibilitou o acesso a um meio físico para sua atuação, além de lhe garantir uma certa

legitimidade, pois se trata de uma liderança antiga do local. Porém, é necessário ter em

mente a escala mais ampla do quadro político geral do país naquele período. Mesmo

que não estejamos mais tratando do momento de maior repressão, entre os anos de 1969

150 Sobre as relações entre o simbólico e o material decorrentes dos posicionamentos ocupados em uma determinada hierarquia de um grupo social, ver BOURDIEU, 1989. 151 Seu nome é um dos citados por Manoel Gomes (1980: 50) ao falar da entrada de novos militantes na UTF.

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165

e 1972, continuamos a falar de um momento de restrições à atuação política. Essas

organizações de oposição ainda se encontram na clandestinidade, ou seja, ocupam uma

situação de considerável fragilidade para sua atuação, independentemente de qualquer

outro fator.

A atuação do PCB, em comparação com a dos outros grupos, é vista da seguinte

forma por Antônio Werneck: “Aí eu cheguei lá, eu cheguei lá e não tinha ninguém,

tinha passado esse pessoal em 1976, tinha passado ‘nego’ como candidato do MR-8 em

1976, o PC do B, mas não ficou ninguém. O Partido ficou, o Partido propôs uma

associação de moradores e um médico, era Deus pra eles” (depoimento de Antônio

Werneck, 3/09/2009). Esse depoimento caracteriza a relação dos comunistas como de

fidelidade com esse local, uma vez que aponta outras organizações que tentaram

estabelecer laços, fizeram promessas que não foram concretizadas, ao contrário do

Partido Comunista, segundo essa visão. É lembrado, segundo a percepção do depoente,

o estímulo e a participação na associação desde os idos da UTF (“o partido propôs uma

associação de moradores”), além da atuação no final da década de 1970, quando os

comunistas auxiliaram na criação de um posto médico no qual o próprio Werneck

trabalhou como tal. Ou seja, para esse antigo militante, o “partido ficou”, e por isso era

“Deus pra eles”. Essa é uma interpretação do passado que valoriza o grupo, com uma

atuação mais tradicional e antiga, e as ações da qual o depoente fez parte.

Há uma visão entre os próprios militantes comunistas que reconhece que o

convívio entre os grupos de esquerda possuía certos elementos complicadores, por mais

que não apontasse para uma concorrência mais ferrenha a inviabilizar a relação entre

eles (depoimento de Felipe, 29/10/2009): “(...) mais ou menos nos víamos não como

inimigos, mas como adversários, ali, sabe, como se cada um... Como se cada um

precisasse ganhar um... No caso, um “’espaçozinho’”. A memória do militante

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166

comunista Felipe corrobora as afirmações de Nísia Trindade sobre o convívio

relativamente tenso, embora não implicasse uma concorrência abertamente declarada.

A interpretação dessa situação à luz da noção de “tática” pode levar a algumas

reflexões sobre a configuração dessa convivência. Conforme já citado, estamos tratando

de um período que ainda representa restrições a projetos oposicionistas, mesmo que não

esteja mais em seu momento de maior endurecimento. Desse modo, não haveria espaços

totalmente seguros para iniciativas contrárias à ordem vigente, ou seja, um “próprio” a

partir do qual esses sujeitos pudessem articular e implementar essas propostas. Segundo

Certeau, o sujeito que recorre à “tática” “tem constantemente que jogar com os

acontecimentos”, ou seja, “‘captar no voo’ possibilidades de ganho” (CERTEAU, 2005:

47). Tal fator decorre, justamente, do fato de eles não possuírem uma “base de onde

capitalizar seus ganhos” (idem: 46), o que revela o caráter fluido e, por isso, precário,

por vezes, de seu posicionamento em uma determinada conjuntura pela qual atravessa

uma sociedade. Nesse caso, a concorrência aberta pelas poucas áreas de atuação

possível não contribuiria para tornar ainda mais precária a condição desses atores? Não

estaríamos diante de um caso em que seria melhor estabelecer um convívio com um

virtual concorrente do que partir para a disputa declarada, o que poderia resultar em um

enfraquecimento ainda maior no contexto de um quadro não muito favorável a esses

atores.

É interessante observar que a visão sobre o convívio entre esses grupos por parte

da militante da AP, organização que teve de buscar suas bases de consolidação em um

local onde já existia uma entidade estabelecida há mais tempo, apresenta uma

tonalidade de conflito um pouco mais acentuada (depoimento de Fernanda Carneiro,

05/11/2009):

“Eles (militantes do PCB) olhavam pra gente com muita desconfiança, eu já falei isso um pouquinho com você. Eles não se abriam, não eram abertos. (...)O fechamento era do pessoal de lá. Porque a gente não tinha cabeça de

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arregimentações, depois é que começou a organização do PT152. E o PT começa quando? Em 79. A gente ficou dois anos. Eu não estava arregimentando pra AP”.

O MR-8 parece encontrar dificuldades semelhantes, segundo a percepção de

José Ivan, militante dessa organização que, posteriormente, chegaria à direção da

Associação de Moradores. Em fala já citada sobre como o MR-8 o teria incentivado a

concorrer à presidência da associação, Ivan (depoimento de 24/04/2009) menciona

dificuldades por disputar, segundo sua percepção, “o eleitorado que só a situação tinha e

aí está a diferença. Eu estava pedindo voto a todo mundo quando, na verdade, ninguém

votava. Só votava um grupo seleto e o que acontece? Eu não tinha acesso à lista de

votantes”. No entanto, é necessário constatar que o espaço de disputa estabelecido com

o PCB seria diferente do caso da AP, uma vez que o MR-8 tenta o comando da própria

associação.

Entretanto, além da presença dos grupos com perfil nitidamente opositor ao

governo militar, podemos notar a presença dos políticos ligados a Chagas Freitas

tentando estabelecer uma atuação junto à associação de moradores do Borel, em troca

de apoio político, prática comum em favelas durante os anos 1970 e parte dos 1980

(DINIZ, 1982). Essa situação fica perceptível em uma circunstância narrada por Nísia

Trindade Lima (1982: 12), ocorrida durante a campanha para as eleições de 1982 no

Borel: “Quem passa pela rua São Miguel (via de acesso ao Alto da Boa Vista), onde se

localiza a sede da associação (do Borel) constatará a visibilidade superior de uma das

faixas do PMDB – Rodrigo Farias Lima para vereador, Raimundo de Oliveira, deputado

estadual, Jorge Leite, deputado federal e Mário Martins, senador” (grifos meus).

Jorge Leite, que se elegeu pela primeira vez deputado estadual pelo MDB em

1970, é apontado como (idem, ibidem) “principal candidato a deputado federal dentre os

152 Muitos militantes da AP migram para o Partido dos Trabalhadores (PT) quando a primeira encerra suas atividades (CIAMBARELLA, 2007), como foi o caso de Fernanda.

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168

políticos liderados pelo governador Chagas Freitas”. Sua entrada no Borel teria ocorrido

a partir de uma articulação com a associação de moradores para servir de intermediário

entre essa e a CEDAE, para a instalação de uma rede de água (idem, ibidem). Tal fato,

entretanto, não deve ser encarado como uma adesão da associação ao “chaguismo”, uma

vez que, em 1982, seu presidente era José Ivan, membro do MR-8 que aderiria ao

PMDB, partido pelo qual, inclusive, chegará a disputar o cargo de vereador, que se

encontra representado na faixa mencionada153. No entanto, deve ser chamada atenção

para a atuação de um político identificado com o “chaguismo” e sua tentativa de

estabelecer elo com a associação do Borel, através da prática, típica dessa corrente

política (DINIZ, 1982), de intermediar acesso a serviços públicos em troca de apoio

político, o que aponta para a situação na qual não apenas os grupos de esquerda estariam

atuando no local.

A entrada do MR-8 na cena política do Borel se dá no já mencionado contexto

de aumento de disputa com os comunistas, quando o primeiro oficializa seu apoio à

“Frente Popular”, intensificando sua participação junto aos ditos “meios operários”.

Nesse período, a disputa ocorre igualmente na Faferj, que viria a ser assumida por Irineu

Guimarães, ligado ao MR-8 e uma das principais influências de José Ivan, conforme

citado em seu depoimento. Essa disputa é exposta por Armando Sampaio da seguinte

forma:

“Nós só entrávamos em disputa em dois momentos, basicamente. No MDB, onde se disputava uma participação lá dentro, e formas de visões diferentes de encarar as coisas, (...) em geral nós tendíamos mais para uma política democrática, uma política de frente democrática (...). E, é, outro momento

153 Na época, o PMDB encontrava-se dividido entre o grupo do então governador do estado do Rio de Janeiro e os chamados “autênticos”, dos quais Raimundo de Oliveira, candidato a deputado estadual pela mesma chapa, é um representante. No entanto, é interessante notar que o próprio José Ivan (apud Lima, 1982: 12) estabelece uma tentativa de desvincular sua imagem do “chaguismo” sem confrontá-lo diretamente: “A questão não é o ‘chaguismo’, é meu inimigo também, mas meu inimigo central é a tortura (...) a secretaria de segurança é nomeada pelo governo federal”. Sobre tal afirmativa, podemos nos questionar se não haveria interesse de Ivan na utilização do serviço obtido através do contato com Jorge Leite, no caso, a rede de água, como capital político em disputas do movimento associativo interno do Borel, buscando uma maneira de não ter sua imagem associada à corrente política de Chagas Freitas, criticada por parte do PMDB e da própria Faferj.

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169

também em que a gente se encontraria em atrito era na Federação de Favelas do Rio de Janeiro, a Faferj, onde o MR-8 tinha uma grande participação. Nós tínhamos uma razoável participação, aí tinham várias zonas, a Faferj tinha zonais por áreas, e tinha a Faferj como um todo, que o presidente na época até era o Irineu, que era do MR-8. Mas nós tínhamos participação lá dentro também”.

Essa diferença da retórica sobre a forma como deveria ocorrer o combate à

ditadura também é explicitada por Antônio Werneck, assim como a Faferj como um

território mais influenciado pelo MR-8 (depoimento de Antônio Werneck, 3/09/2009):

“(...) é essa coisa da Faferj, quando a gente levou essa moçada pra Faferj eles tiveram contato com o MR-8, que eles não tinham ainda, e pode ser que ele(s) tenha(m) gostado mais, assim, do espírito, né?, que o MR-8 falava, de glória, de ‘não sei das quantas’, de um milhão na rua, essa coisa assim, pode ser que essa ilusão aí desse discurso tenha atraído mais o cara (...)”

A postura mais incisiva do MR-8, de acordo com a caracterização tanto de

Werneck quanto de Sampaio, poderia ter um maior atrativo para os militantes mais

jovens, segundo a avaliação deste último. A passagem citada de Werneck diz respeito a

um comentário dele sobre a entrada de José Ivan, que começa sua vida política no final

da década de 1970 com apenas 17 anos, no MR-8, e representa uma nova geração154 de

lideranças de favelas que passaria a atuar a partir desse período (BRUM, 2006).

Contudo, mesmo a colocação de ambos os comunistas da Faferj como território do MR-

8, é possível notar a participação de indivíduos ligados ao PCB em sua diretoria, como é

o caso de José Batista Lira, do Borel, o que revela a necessidade de não se interpretar

essas virtuais barreiras de atuação como intransponíveis155. Essa questão geracional

(SIRINELLI, 2005) pode ser percebida no quadro mais amplo da prática política em

associações de moradores de favelas, de acordo com o que Mário Brum se refere como

154 A noção de geração é interpretada por Jean-François Sirinelli (2005) como um padrão periodizante elástico, uma escala móvel do tempo que afeta os domínios do político. Desse modo, dentro de um partido, ou grupo político, seria possível observar a existência de diferentes gerações, que despertaram para o debate político em contextos distintos e estabelecem relações de convivência. 155 Essa afirmação é baseada em uma entrevista de Irineu Guimarães a Marcos de Lontra Costa, da qual participou José Batista Lira na condição de secretário de divulgação e membro do conselho fiscal da FAFERJ. Ver COSTA, 1980.

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“novo associativismo”. Esse grupo que começava a ocupar cargos de direção nessas

entidades classifica a postura de seus antecessores, muitas vezes, como um tipo de

associativismo “atrelado ao Estado, às políticas clientelistas e que não buscava uma

transformação efetiva da realidade do favelado” (BRUM, 2006: 79).

Conforme já abordado, houve uma certa resistência dos militantes mais antigos

do PCB à atuação desses novos grupos. No entanto, é possível notar que muitos jovens

se envolveram na vida associativa a partir dessas novas formas de manifestação, como é

o caso da AP, que utilizava atividades recreativas e educacionais. Antônio Werneck

chega a comentar o fato (depoimento de Antônio Werneck, 3/092009):

“O partido e a AP tinham uma convivência muito interessante, não é? A gente fazia as festas juntos, fazia as coisas juntos, teve uma... Teve uma mobilização pra ir, é... Exigir lá do governo do estado em 78 a subida até a caixa d’água, acabar a estrada, e aí foi todo mundo fazer o movimento junto, né?, esses meninos eram meninos elétricos, teve um momento de teatro, Cineclube, que eram muito juntos”.

Nesse caso, Werneck se refere à ala mais jovem de militantes pecebistas, os

“meninos elétricos”, que se interessavam pelo formato das atividades desenvolvidas

pela AP. Em sua memória sobre essa questão, Fernanda afirma que conseguiu superar o

estranhamento da “velha guarda” a partir da participação dessa nova geração de

moradores, sem abandonar sua metodologia de aproximação e mobilização comunitária,

conforme conta através da seguinte história (depoimento de Fernanda, 05/11/2009):

“(...) então tivemos a ideia de fazer um teatro pra pegar eles na armadilha. Perguntamos: ‘Quem quer fazer teatro? A gente quer fazer uma peça 21 de abril’. E, aí, todos os adolescentes levantaram a mão. Aí fiz uma pesquisa com meu irmão, que era professor de Português de lá e trabalhava com teatro, depois ele cursou Unirio e tudo. Fizemos um texto com pesquisa, tudo engajado, e apresentamos a peça, que foi maravilhosa. E a nossa apresentação no Borel foi com essa peça, que “neguinho” caiu o queixo, tanto a diretoria quanto os familiares”.

No entanto, devem ser mantidas ressalvas em relação a quanto “caiu o queixo,

tanto da diretoria quanto dos familiares”, afinal, a convivência no contexto de um certo

clima tenso pôde ser percebida por Nísia Trindade em 1982. Uma possibilidade

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interpretativa com relação à ala mais jovem dos militantes pecebistas pode ser

construída a partir da maior liberdade de fluxo que eles possuíam entre os diversos

grupos. Devido a ligações familiares e de vizinhança, tinham entrada no setor mais

tradicional ligado à associação. Pelo interesse nas atividades culturais e educativas

desenvolvidas, principalmente, pela AP, teriam acesso a esse outro grupo. Essa situação

pode levar a um entendimento de uma maior amenidade entre essas organizações de

esquerda, conforme presente na memória de Mirian Gonçalves, uma das jovens

militantes do PCB à época: “(...) mas não sentia nada dessa coisa de ‘vamos lotear isso

aqui, isso aqui é do PCB’. Eu não percebia isso” (depoimento de Mirian Gonçalves,

23/09/2009).

Contudo, é preciso explicar que alguns desses militantes mais novos possuíam

restrições com relação à atuação dos mais antigos, chamando atenção para a

necessidade de uma renovação dentro da própria associação de moradores, como mostra

o depoimento de Josias Pereira, ao mencionar o desejo de “lançar um candidato novo

para disputar com aquela velharia” e ao afirmar que agora se deveria “trazer uma outra

geração para pelejar também” (depoimento de Josias Pereira, 24/09/2010). E, de fato,

essa nova geração passa a ganhar mais solidez em suas ações, e começa a crescer a

importância de sua participação dentro da associação, quadro que se acentua nos anos

1980 (depoimento de Roberto Ramos, 12/05/2011): “A gente estava crescendo muito,

estava muito forte, e eles viram que tinham que dividir o poder, abrir o poder, percebe?

Antes estavam só eles com o Antônio, e a nossa gente começa a formar uma garotada

militante”.

Conforme visto, uma das características do imaginário político presente nas

eleições de 1982 foi o desejo pelo novo, de algo que fosse dissociado do regime militar

e de práticas a ele vinculadas, como o clientelismo apregoado ao estilo operacional de

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Chagas Freitas. Esse viés interpretativo serve, inclusive, dentre outros fatores, para

justificar a vitória de Brizola, visto como representante de uma posição nova, não

desvirtuada por velhos vícios (SENTO-SÉ, 1999, SARMENTO, 2008). Esse desejo

pode ser percebido igualmente no movimento associativo de favelas e nos agentes que

buscavam a renovação de seu modus operandi (BRUM, 2006).

Podemos identificar essas manifestações no comportamento dos militantes que

atuaram no Borel nessa época. Desse modo, eram buscados outros canais de

participação além da associação, sem que necessariamente se negasse esta. Um exemplo

é o grupo da Folha do Borel, um jornal comunitário independente que circulou na favela

durante a década de 1980, em moldes semelhantes à iniciativa do grupo ECO, do morro

Santa Marta. Seu objetivo era promover informações que seriam do interesse dos

moradores, fomentando debates políticos, indo de uma esfera mais ampla aos problemas

de infraestrutura urbana referentes ao morro. Felipe Villas Boas, um dos envolvidos na

elaboração da “Folha”, relembra a questão da seguinte forma: “Na associação do Borel,

eles não tinham uma vida no asfalto, uma relação no asfalto, as pessoas da associação,

porque o pessoal da Folha do Borel não era da associação, a associação é do pessoal

mais velho, um pessoal mais fechado (...)” (depoimento de Felipe Villas Boas,

29/09/2009). Assim, notamos mais uma vez a questão das diferenças de postura e

formas de mobilização entre grupos de perfis etários diferentes.

É preciso ter em vista que os estranhamentos presentes na convivência entre

grupos de distintos perfis, nesse período, resultam de uma conjugação de diferenças de

extrato social aliadas à questão geracional. Muitas pessoas de “classe média”

desenvolviam algum trabalho, embasados pelos objetivos de um projeto político

oposicionista, na favela nessa época, seja prestando serviços médicos, como foi o caso

de Antônio Werneck, seja atuando na área educacional, como Fernanda, ou até

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participando de grupos que desenvolviam atividades culturais e recreativas, caso de

Felipe, na Folha do Borel e no cineclube. Essa presença “de fora” causou algum

impacto nas lideranças locais, a exemplo de José Ivan (depoimento de José Ivan,

24/04/2009):

“Tinha 85 pessoas de classe média atuando no Borel politicamente. Cada uma de uma forma: como professor, como médico, e eu perguntava: ‘O que vocês fazem aqui?’ Eu queria entender isso. Aí depois... E certamente eles eram muito organizados, fizeram uma reunião entre eles e saíram, porque não faria sentido 85 universitários participando de disputas, fazendo grupos, pra atuar dentro, na questão geral. Não era questão da associação”.

Alguns comentários merecem ser feitos com relação a essa passagem. Segundo

as entrevistas realizadas com as “pessoas de classe média”, em nenhum momento foi

detectada predisposição de atuar diretamente na associação. Elas faziam parte de grupos

políticos, como o PCB, que, notoriamente, tinham um projeto de manter alguma

influência nesses espaços, mas os cargos da associação deveriam ser ocupados por

moradores. A saída dessas pessoas só foi ocorrer a partir do final da década de 1980, e

envolve motivos diversos, dos pessoais aos políticos, como a constituição de família ou

o abandono da militância. No entanto, é interessante perceber, na visão desse ator, a

separação de esferas, valorizando o papel da entidade na atuação política e declarando

as atividades desenvolvidas por eles como “não sendo questão da associação”. Tal

declaração também pode ser interpretada como uma forma de ler aquele espaço como

exclusivamente de moradores.

Ainda sobre a questão da atuação em favelas por parte de moradores “do

asfalto”, é preciso atentar para possíveis contribuições entre os movimentos associativos

de bairro e de favelas. Para tanto, tomarei como exemplo a participação dos militantes

do PCB156. Felipe Villas-Boas157 (depoimento de 29/10/2009) relata a participação dos

156 Os depoentes pertencentes à AP e ao MR-8 aqui entrevistados não mencionaram a atuação em associações de bairro. Contudo, não deve ser descartada a participação desses dois grupos, além de outros, nesses movimentos associativos. Uma análise mais aprofundada sobre como se deu a organização

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comunistas em movimentos de bairro da Tijuca e proximidades:

“E tinha a atuação em bairro, em associação de moradores, de que o PCB participou, da Praça Sáenz Peña. A fundação da associação Amaum, da Usina e da Muda, o PCB participou. No Rio Comprido, a Amorico. Ele tinha essa atuação em associação de moradores e começa a haver algum desdobramento, né?”

Contudo, ao falar sobre possíveis contribuições entre as associações de bairro e

as de favelas da Tijuca, o depoente (idem) chega a afirmar que não seria uma prática

comum:

“Não tinha essa relação, não. Até onde eu conheço, né? Por exemplo, na associação do Borel, eles não tinham uma vida no asfalto, uma relação no asfalto, as pessoas da associação, porque o pessoal da Folha do Borel não era da associação, a associação é do pessoal mais velho, um pessoal mais fechado, era um grupo”.

Esse depoimento denota uma interpretação semelhante à apresentada pela fala de

Antônio Werneck (depoimento de 03/09/2009), sobre um possível não envolvimento

entre as representações de bairro e de favelas, pelo menos no caso do Borel. Segundo

Werneck, o militante pecebista “entrava no movimento comunitário, ou do asfalto ou da

favela”. Porém, tal visão pode ser relativizada a partir de certos elementos que indicam

um envolvimento entre ambas as esferas de associativismo. Marcio Arnaldo

(depoimento de 15/08/2009) define sua atuação da seguinte forma: “A gente fazia um

trabalho mais na pequena burguesia, na classe média da Tijuca”. No entanto, o mesmo

teria chegado a realizar trabalhos na favela do Borel (idem): “Lá no Borel a gente fez

um curso supletivo, né?, junto com a associação de moradores. Eu dava aula de Ciências, né?,

de noite, na favela”. Marcio Arnaldo não chegou a fazer parte diretamente de associações de

bairro da Tijuca ou entorno, embora militasse em iniciativas culturais, as já citadas APTT e

livraria Muro, voltadas para públicos desses espaços da cidade, a exemplo da “classe média da

associativa de bairros, não apenas na Tijuca, bem como quais são os grupos e diferentes interesses nela presentes, mereceria uma pesquisa à parte, tendo em vista a complexidade do objeto, que, no entanto, ultrapassaria os limites da reflexão aqui proposta. 157 Militante do Partido Comunista que atuou no Borel entre o final dos anos 1970 e parte dos 1980. Integrou o grupo responsável pela edição do jornal comunitário Folha do Borel.

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Tijuca”. Além de dar aula em cursos supletivos, devemos chamar atenção para o próprio fato de

a edição do livro de Gomes ser uma contribuição entre as militâncias pecebistas da favela e do

bairro, uma vez que “As lutas do povo do Borel” envolveu os grupos atuantes nessas duas áreas,

os que desenvolviam atividades junto à associação do Borel e os responsáveis pela livraria e

editora Muro.

No que diz respeito ao movimento de associações de moradores propriamente dito,

outro elemento que deve relativizar as afirmações de ausência de envolvimento entre a

associação do Borel e as de bairro é a identificação de certos pontos de atuação comuns entre a

Federação de Associação de Moradores do Estado do Rio de Janeiro (Famerj), existente desde

1978, e a Faferj. Na década de 1980, ambas chegaram a se articular em ações pontuais, a

exemplo da reivindicação, desde 1983, da criação de um grupo de trabalho, do qual a Faferj

seria um dos integrantes, para controle dos reajustes das tarifas de passagens de ônibus

(MADURO, 1986: 58). A Famerj também defenderia interesses que diriam respeito aos

moradores de favelas, uma vez que, oficialmente, reivindicava a urbanização e o saneamento

dessas áreas (idem: 61).

Segundo Henri Lefebvre, um dos vetores de significação do espaço urbano é o

urbanismo, entendido como prática reflexiva de planejamento das cidades. No entanto,

o ato de planejar deve ser encarado como político e estratégico, configurando um

“saber-fazer”. Planejar significa selecionar e, portanto, ignorar certos aspectos a partir

de uma realidade dada. Assim, jamais pode ser encarado como neutro158. Partindo dessa

perspectiva, o pensador francês estabelece a noção de “direito à cidade”, compreendida

como uma realidade global que transcende escalas de macro (“o urbano”) e micro (“o

bairro”). Dessa forma, os “cidadãos”, entendidos como sujeitos de direitos159, devem ser

considerados como todos os “citadinos”. Os grupos sociais nos quais eles se inserem

158 Certeau conclui de forma semelhante a Lefebvre sobre esse assunto (CERTEAU, 2005). 159 O debate sobre direitos fez parte da redemocratização no Brasil e pôde ser percebido ao longo dos anos 1980, sendo um importante elemento para se entender o processo que permeou a elaboração da constituição de 1988, conhecida como “Constituição Cidadã” (CARVALHO, 2001). Para a compreensão sobre os debates acerca da ideia de cidadania, ver MARSHALL, 1967, BENDIX, 1996 e HUNT, 2009.

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figuram sobre redes e circuitos de comunicação, informação e trocas, o que depende de

uma centralidade, considerada como um espaço de encontros entre objetos e sujeitos.

Esses padrões de relacionamento e seu espaço de ocorrência são percebidos

como o “urbano”, que passa a ser visto de uma forma relacional, e não apenas como o

espaço, ainda que considerado “não neutro”, da cidade. Portanto, excluir grupos sociais

dessa centralidade e suas relações é violar o “direito à cidade” 160, fomentando, assim,

um quadro de fragmentação do convívio social (LEFEBVRE, 2001). Ainda sobre a

cidade, Certeau aponta o que ele chama de “práticas e saberes microbianos”, ou seja,

não programados, não controlados, não previstos, que se reforçam mesmo com as

tentativas do sistema urbanístico de gerir e eliminar tais posturas “não planejadas”.

Trata-se de “criatividades sub-reptícias” e “resistências cotidianas”, que se reproduzem

na lógica vigilante e conservadora, apesar de seis instrumentos de normatização,

controle, vigilância e, por vezes, tentativas de erradicação. Com isso, é chamada atenção

para a necessidade de se compreender o papel das práticas de resistência políticas e

culturais do cotidiano (CERTEAU, 2005: 172-175).

À luz de tais acepções, é interessante notar o comportamento do eleitorado nas

eleições de 1982. Nesse período, 48% dos eleitores do estado do Rio de Janeiro

residiam na cidade do Rio de Janeiro, sendo que 28,5% se localizavam na região

metropolitana, estando os demais 23,5% presentes nos municípios do interior. Dos

votos obtidos por Brizola, 63% se concentraram na cidade. Com relação a seus

concorrentes, o PMDB e o PDS somaram pouco mais de 37% do total de votos para

governador, subindo essa proporção para 47% na Baixada Fluminense, 67% no Vale do

160 Contudo, devemos estar atentos ao utilizar a noção de direito à cidade em contextos históricos distintos. Nos anos 1980, essa concepção será permeada pela conjuntura de reconstrução democrática associada, dentre outros fatores, às reivindicações dos movimentos sociais. Na década de 1990, no que diz respeito, sobretudo, aos moradores de favelas, o pano de fundo da reivindicação dos elementos que constituem o direito à cidade é caracterizado por esforços de construção de sentidos positivos sobre esses indivíduos, em contraponto às imagens ligadas à violência, e pela atuação de atores sociais, como as ONGs, a partir de articulações específicas com a sociedade civil e o poder público.

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Paraíba, 70% na região serrana e 77% no norte do estado. Tal situação revela a

importância do voto urbano para a vitória de Leonel Brizola (SOUZA, LIMA JUNIOR

& FIGUEIREDO, 1985: 12-14).

O comportamento político do eleitorado da cidade não deve ser interpretado

apenas a partir desses números. No caso do Borel, puderam ser observadas formas

próprias do fazer político, a partir de uma configuração específica. As organizações

oposicionistas que lá atuaram possuíam um projeto político amplo, e um dos vieses de

tentativa de implementação desse projeto foi a aproximação com setores da sociedade

tidos como “excluídos”, como os moradores de favelas, o que justificaria sua entrada

nesses espaços. Esse público eleito como alvo possuía suas formas de resistência,

muitas delas “cotidianas” e “microbianas”, nos dizeres de Certeau, como percorrer a

favela distribuindo um jornal mimeografado e realizar atividades de cineclubes ou

grupos de teatro. Essas atividades seguiam uma série de padrões comportamentais

ditados por uma cultura urbana, que se desenvolvia através do convívio entre agentes de

diferentes extratos sociais nas favelas, conforme indica a presença de membros da

classe média, podendo chegar a causar estranhamento entre alguns moradores, como a

prática de “mulheres beberem cerveja no bar da associação”.

Apesar das diferenças já citadas, a mobilização política local passava por

reivindicações históricas dos movimentos de favelas, como o direito à permanência e a

melhorias de infraestrutura urbana. Ou seja, passava pelo evitar da exclusão da

centralidade da qual nos fala Henri Lefebvre. Nesse momento, esse processo

reivindicatório passa por uma conjuntura nacional histórica específica, a luta pelas

liberdades democráticas e o fim da ditadura, que coloca em cena certos sujeitos

políticos, as organizações de esquerda opositoras ao regime de 1964. Esses atores

estabeleceram uma convivência tática, à maneira de Certeau, devido à fragilidade de sua

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condição política e institucional em um regime com restrições concretas às liberdades e

às vozes politicamente contrárias. Essa convivência possuía elementos de tensão velada,

afinal, trata-se de grupos concorrentes e com percepções ideológicas próprias, e por

vezes discordantes. No entanto, não se configura uma situação de disputa declarada, que

poderia levar a um quadro de hostilidades e enfraquecer ainda mais a situação desses

agentes.

O processo de elaboração de “As lutas do povo do Borel”

O livro de Manoel Gomes foi editado e lançado pela livraria e editora Muro,

ligada ao PCB, conforme visto. No entanto, seu processo de elaboração envolveu outros

atores, como Fernanda, militante da AP. Manoel Gomes foi um operário com papel de

destaque na UTF, sendo uma figura simbólica no morro do Borel, de acordo com o

depoimento dos entrevistados. Contudo, o conteúdo de seu livro é criticado em alguns

aspectos, seja por remeter demais a uma memória ligada ao Partido Comunista, seja por

não fazer menção à participação da Ação Popular, personificada no envolvimento já

citado da militante Fernanda. Tal situação, entretanto, não impediu que o livro se

tornasse um lugar de memória para os moradores dessa favela, ou que tivesse seu valor

simbólico reconhecido pelos representantes de outros grupos políticos que não o PCB.

Manoel Gomes não era o único com essas características. Os militantes do PCB

entrevistados mostraram um profundo respeito pelo histórico participativo de figuras

como José Batista Lira, José Emídio Gonçalves, o “Boneco”, Sebastião Bonifácio e

outros moradores do Borel cuja participação remetia à criação da UTF, todos

envolvidos na luta pela permanência perante as ameaças de remoção da década de 1950

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e presentes no depoimento escrito de Manoel Gomes (depoimento de Antônio Werneck,

03/09/2009):

“Todos tinham sido presos, ou por causa do movimento, ou por causa de uma briga, ou por causa de uma invasão, ou por causa de... De uma coisa... Uma... Eles fizeram várias barreiras ali no... E as barreiras eram mais pra defender as coisas de moradia, do direito à moradia e do direito a se reunir. Durante muito tempo, a associação de moradores ficou fechada.”

É compreensível que a visão dos participantes de outros grupos de esquerda não

tenha como traço a valorização dos demais militantes históricos ligados ao PCB. No

entanto, Manoel Gomes também suscita palavras elogiosas de José Ivan, representante

do MR-8 (depoimento de José Ivan, 24/04/2009):

“Manoel Gomes é o maior teórico e prático da divulgação do comunismo. Era um homem de estatura baixa e fazia eventos na casa dele com frequência. E as pessoas começaram a participar e certamente não faltava oportunidade para ele dar um pequeno jornalzinho sobre o comunismo. Ele tentava ter na vizinhança dele, que não era pequena, uma adesão muito grande. Manoel Gomes foi um dos principais homens de bem, sério e que não fingia que era comunista. Ele era comunista mesmo, era um homem atuante, um grande líder, e eu tive a sorte de morar num bairro do Borel que se chamava Feijão, onde a segunda casa acima da de meu pai, ou a primeira, era de Manoel Gomes (...)”

Não se sabe ao certo como surgiu a ideia do livro, se Manoel Gomes já o possuía

manuscrito ou se foi estimulado a escrevê-lo. A memória, de acordo com seu caráter

intrínseco, dos depoentes é um tanto fluida com relação a esse fator, ao sabor dos

interesses e ligações de grupo do período. Segundo Fernanda (depoimento de Fernanda,

05/11/2009):

“Eu não sei se ele já estava escrito ou se ele ia me ditando, isso agora eu já não sei. Não acho que ele tinha escrito à mão. Por que eu não levava para casa? Geralmente eu não gosto de pegar original, eu sou muito distraída. Eu não sei se na época eu tinha essa postura. Eu acho que ele podia ter alguma coisa escrita e eu fui puxando mais”.

No entanto, no momento da função desempenhada, a memória começa a fazer

seu jogo de significação, a partir dos interesses e da inserção de cada indivíduo em seu

meio de atuação. Armando Sampaio recorda quem levou os originais para Luís Carlos

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Prestes: “Fui eu e uma outra pessoa, uma menina, uma companheira, e ela ajudou

inclusive a revisar o livro” (depoimento de Armando Sampaio, 21/09/2009). Na

verdade, tudo indica que se tratava de Fernanda. Mas, ao mencionar uma

“companheira”, fica a ideia de que foi outra pessoa ligada ao PCB que participou desse

processo de revisão, o que excluiria o envolvimento da AP. Antônio Werneck já é mais

generoso com relação à função de Fernanda no processo (depoimento de Antônio

Werneck, 03/09/2009):

“O pessoal da AP, principalmente a Fernanda, ficou em contato com ele. Aí ela dava pra mim o que já estava datilografado, a Fernanda, aí eu ia sugerindo, rabiscando, teve uma parte que eu datilografei e devolvi pra eles também. Mas ela dá o formato final e quem faz o contato dela com a editora é a Fernanda, eu acho, não tenho certeza se foi ela, mas foi o pessoal dela que fez o contato (...)”

O interessante dessa passagem foi atribuir ao “pessoal da Fernanda” o contato da

editora, que era uma editora ligada ao PCB, fato de que o próprio Werneck tinha

ciência. Essa atribuição ao “pessoal da Fernanda” pode ocorrer devido ao envolvimento

da AP em atividades culturais na localidade, sempre estimulando a participação dos

moradores, ou à própria participação de Fernanda na elaboração do livro, ao que tudo

indica, bem vultosa. Manoel Gomes já não residia no Borel na época em que redigiu a

obra, embora continuasse frequentando a favela. Sua residência era em São Gonçalo,

para onde Fernanda se deslocava com frequência para datilografar a obra, como ela

conta em seu depoimento. Contudo, sua memória registra o alijamento da sua

participação, ou seja, o não reconhecimento de seu trabalho, não tendo sido sequer

chamada para o lançamento, o que demonstra o uso político da obra feito pelo PCB

(depoimento de Fernanda, 05/11/2009):

“E, em um determinado momento, eles tomaram a frente e eu, na verdade, só podia ir até o texto. Eu não tenho contato com editora, eu não sei se eu ia fazer alguma coisa mais pra frente, mas meu trabalho ali era transformar aquilo em texto. A minha intenção, o meu prazer era esse. Eu não fui até o fim da datilografia, não. Eles pegaram e lançaram, e eu não fui convidada para o lançamento. Eu não fiquei sabendo desse lançamento. Quer dizer, nem que fosse por que eu desejava muito essa comemoração, mas também por um

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crédito, né? Merecia até nesse aspecto ético. Não fiquei sabendo e esbarrei nesse livro em outro lugar. Isso que eu digo que é uma pena, porque eu não ia parar de fazer o trabalho porque ele era do PC e eu não vou fazer, e também não me importei de eles terem levado à frente, porque ali ele se transformou em livro. Da minha parte não tinha boicote”.

Para entender esse uso, primeiramente, é preciso compreender a escolha do

prefaciador do livro, Luís Carlos Prestes. O “cavaleiro da esperança” ocupou, e de certa

forma ainda ocupa, um lugar simbólico na mitologia política brasileira. Seu histórico na

Coluna Prestes, a aliança com o homem que enviou sua mulher para os campos de

concentração hitleristas, dentre outros fatores, contribuíram para a construção de sua

imagem como um homem que punha sua ideologia à frente de interesses pessoais. O

golpe de 1964 levou Prestes ao exílio, e tal situação acabou gerando uma certa

separação entre ele e a direção do PCB, que lhe tecia várias críticas. Em resposta,

Prestes afirmava que “em vez de assumir o papel de vanguarda do proletariado, o PCB

estava se transformando em um partido reformista, próximo da social-democracia”

(PANDOLFI, 2007: 236). O retorno, com a anistia, não amenizou a situação, e o

rompimento se daria em março de 1980, pouco antes da data de assinatura do prefácio

do livro de Gomes, com o documento “Carta ao povo brasileiro”, sendo que seu

desligamento definitivo ocorreria em janeiro de 1984 (PANDOLFI, 1995: 219-220).

Para seus adversários dentro do Partido, Prestes era visto como “caudilho”,

“personalista” e “autoritário” (idem: 220).

A despeito do desligamento de Prestes, gradativamente a partir de 1980, ou de

sua crise com a direção partidária, anterior à ruptura, é interessante observar como a

memória dos depoentes ligados ao PCB tenta buscar uma proximidade pessoal com essa

antiga e notória liderança comunista ao lhe apresentar o manuscrito de Gomes. Antônio

Werneck declara em seu depoimento (03/09/2009): “O Prestes, fomos nós que... Fui eu

que procurei, né?, o Prestes (...)”. E Amando Sampaio (depoimento de 21/09/2009)

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afirma: “Tanto é que, ainda o Prestes, eu conhecia o Prestes de Moscou, e o Prestes me

conhecia, conhecia o meu pai. Então eu fui uma espécie de intermediário pra fazer esse

contato com o Manoel Gomes”. Tal situação se explica pelo fato de se tratar de uma

liderança histórica e simbólica que exerce um certo fascínio, inclusive sobre os

militantes mais jovens, conforme o depoimento de Mirian Gonçalves (depoimento de

Mirian Gonçlaves, 23/09/2009): “Tive uma oportunidade em que fiquei muito

emocionada, foi em uma reunião que naquela época nem era oficialmente do partido. O

Prestes estava nessa reunião. Fiquei muito emocionada de estar ali diante de uma figura

tão lendária. Nunca mais esqueci essa reunião, foi simbólica”.

Gostaria, agora, de retornar à carta-denúncia sobre a presença de comunistas no

Borel, com a qual inicio este capítulo, notificando o lançamento do livro de Gomes, que

teria contado com a presença do próprio Prestes. O objetivo seria atentar para as

eleições à diretoria da associação de moradores, que ocorreria no dia 24 de maio de

1981 (o lançamento teria sido em 10 de maio). A preocupação do autor da carta seria,

principalmente, com o então “garoto de nome José Ivan, que é ligado a vários políticos

de esquerda (...), inclusive chefia um grupo de moças e rapazes que andam fazendo

distribuição no morro do jornal Hora do Povo” (Fundo Polícia Política/APERJ, pasta

279-J, folha 501).

Como consequência, foram enviados informantes do DOPS para vigiar as

eleições, que de fato ocorreram no dia marcado, às 10 horas da manhã. Os enviados

averiguaram a presença de 460 associados, sem que fosse atingido o quórum para a

abertura das urnas, que seria de 480161. Três chapas concorriam ao pleito: a chapa verde,

de José Emídio Gonçalves; a chapa amarela, de Sebastião Bonifácio; e a chapa azul, de

José Ivan (idem). Nota-se, portanto, a presença de duas chapas com nomes ligados ao

161 Esses números revelam o alto grau de participação na associação do Borel nessa época, quadro inverso do atual.

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PCB162 e uma ligada ao MR-8. Não deve ser encarada como mera coincidência a

ocorrência do evento de lançamento de “As lutas do povo do Borel” duas semanas antes

dessa eleição, inclusive com a possibilidade da presença da liderança comunista mais

conhecida no local. Esse fato revela que o livro teve um uso político por parte do PCB,

referente ao Borel. A principal ascendência da época na Faferj era o MR-8, e nessa

disputa estava presente um de seus representantes, ligado a Irineu Guimarães e que

depois assumiria um cargo na Faferj, o “garoto de nome José Ivan”.

José Ivan percebe esse uso, conforme deixa claro em seu depoimento

(depoimento de José Ivan, 24/04/2009):

“Porque, na verdade, quem estava por trás disso era o Partidão. O Partidão é que fez o livro e tinha histórias de Manoel Gomes, referências de Manoel. (...) Aquele livro foi uma edição muito simbólica e pequena. Foi mais para fazer referência ao PCB. Não foi um livro de grande escala, de grande divulgação, era um negócio meio fechado ao grupo, e era mais ou menos assim, e é claro que eu discordei completamente, porque eram pessoas que se diziam representativas, mas não tinham compromissos com mudanças de que o Borel precisava”.

Sobre convivência tática e memória

Andreas Huyssen afirma que, nos últimos trinta anos, o campo da memória se

tornou objeto de atenção das esferas cultural e política na sociedade ocidental. Os anos

1960 veem o despontar de novos discursos de memória, no contexto da descolonização

e da entrada de novos movimentos sociais na arena pública. Essa tendência avança pela

década de 1970, se manifestando em aspectos da indústria cultural, no vestuário, em

documentários históricos e nas demais formas de comercialização de nostalgias. Nesse

mesmo período, temos a restauração de centros urbanos históricos na Europa e nos

162 Não se sabe se essa separação tem alguma relação com uma possível discordância pessoal ou até mesmo política por parte de Bonifácio ou Gonçalves. Esse tipo de cisão não foi comentado pelos depoentes e carece de fontes para sua averiguação.

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Estados Unidos, exemplificando uma das possibilidades de afetação desse contexto nos

caminhos das cidades. A década seguinte apresentaria a aceleração de um debate sobre o

Holocausto, também nos Estados Unidos e na Europa, além de uma mudança de visão

sobre a primeira e a segunda Guerras Mundiais, influenciada pela conjuntura da queda

do Muro de Berlin. Na América Latina, temos a memória instrumentalizada em uma

plataforma contra os excessos das ditaduras militares na reconstrução de regimes

democráticos. Essa “cultura da memória” deve ser entendida de forma a não restringir

as raízes do fenômeno à mera comercialização do passado pela indústria cultural, ou a

uma possível consciência retrospectiva motivada pela virada do milênio, deixando

claras suas inflexões políticas. Inflexões pautadas pela relação entre memória e

identidade, e suas consequências políticas, na Ásia e na África da descolonização do

pós-guerra e no leste europeu pós-URSS, e pela entrada em cena de temáticas como

direitos humanos, justiça e responsabilidade social (HUYSSEN, 2000).

Desse modo, a construção de lugares de memória (NORA, 1993) decorre da

necessidade humana de buscar novas formas de se relacionar com o passado. O pano de

fundo dessa busca é um panorama de inúmeros fatores, dentre os quais destacamos as

mudanças da experiência do tempo e do espaço, causadas em grande parte pelo

incremento, nas últimas cinco décadas, das tecnologias de comunicação (HUYSSEN,

2000), levando ao que Nora chama de “aceleração da história” (NORA, 1993: 7-8).

Também devem ser consideradas as transformações políticas pelas quais passou a

sociedade ocidental, com o advento de inúmeros polos de reivindicação de grupos

sociais, muitas vezes tendo como suporte a questão da memória e do uso político dos

significados do passado.

No caso do Borel, a conjuntura histórica aqui abordada fez com que se

estabelecesse uma convivência tática, em conformidade com os parâmetros conceituais

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utilizados, entre atores pertencentes ao campo de oposição ao regime militar que lá

atuavam. O caráter dessa convivência resultou das restrições impostas pela situação

política daquele momento, o que dotava a posição desses atores de uma certa

fragilidade. Daí o convívio tenso entre grupos de perfis distintos, embora com alguns

pontos de convergência, que concorriam em seu espaço de atuação, embora não

dispusessem de condições para partir para a disputa aberta, sob risco de tornar ainda

mais precária sua situação.

O objetivo principal desses sujeitos não foi a construção de um lugar de

memória, no caso, o livro de Manoel Gomes. Essa publicação foi um dos resultados de

uma proposta mais ampla de atuação perante as classes populares. À época, o fantasma

das ameaças de remoção ainda estava relativamente presente, uma vez que, no período

que engloba o processo de elaboração e lançamento do livro, havia pouco tempo que o

programa da CHISAM tinha sido abandonado, e ainda não havia sido iniciado o diálogo

do governo estadual com associações de moradores de favelas, bem como os programas

de governo que privilegiavam a abordagem da urbanização. Também deve ser ressaltado

que a política brasileira era marcada pelos esforços de reconstrução de um regime

democrático.

Esse quadro representava uma gama de possibilidades futuras – a história revelaria

quais se tornariam concretas – e continha uma série de projetos políticos em disputa. O

livro “As lutas do povo do Borel” possui significados distintos entre aqueles que

contribuíram para o seu surgimento e para os próprios moradores do Borel. Para o PCB,

trata-se de um objeto de valorização de sua atuação e de abordagem das classes

populares, conforme a memória presente no livro. Isso levou à omissão de parte dos

créditos referentes à obra, o que foi percebido na memória de Fernanda, e segundo

apontam as críticas feitas por José Ivan. No entanto, a obra também pode ser vista como

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uma plataforma de valorização da identidade de moradores de favelas, o que mostra o

apego destes em relação ao livro e à figura de seu autor.

Luís Antônio Machado da Silva faz a seguinte observação sobre a constituição

do “favelado” como categoria social (SILVA, 2002: 224): “(...) uma categoria social

subalterna, cuja intervenção na cena pública, duramente conquistada, não mexeu no

padrão básico de sociabilidade urbana, pouco alterando sua posição relativa na

estratificação social e seu papel como força social”. A observação do sociólogo

concerne a um outro momento do qual tratamos, mais relativo à atualidade e à maior

consolidação das favelas no cenário da cidade. Contudo, gostaria de chamar atenção

para o aspecto desfavorável da posição desse segmento social, que tem sido uma

constante ao longo da história dos moradores desses espaços.

É justamente sob o signo dessa posição desfavorável que devemos compreender

os amalgamados aspectos material, simbólico e funcional de “As lutas” como lugar de

memória. Possuir uma “história materializada”, ou uma memória material, escrita por

um morador de favela, possui um peso muito forte para uma parcela da população cuja

ameaça remocionista ainda não constituía um passado distante, embora também não um

espectro tão ameaçador quanto nas décadas de 1960 e 1970. Outro componente digno de

nota é a possibilidade de valorização do papel do morador de favelas a partir da

memória de sua mobilização, em um contexto de ampla atuação dos movimentos sociais

e de uma crescente reivindicação pela redemocratização que atinge a sociedade como

um todo. Mais uma vez, faço uso das palavras de Mirian Gonçalves (depoimento de

Mirian Gonçalves, 23/09/2009): “(sobre ‘As lutas’) Acho que tem toda importância,

porque é a nossa memória, a nossa origem, a nossa formação, tudo começou ali com a

nossa resistência. A vontade de garantir o nosso espaço, de ter dignidade, e foi um

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senhor começo, e não foi só para o Borel, foi um exemplo, acho que para a sociedade

como um todo”.

Desse modo, há indicativos fortes do significado do livro de Gomes para os

moradores do Borel, a partir dos quais gostaria de fazer algumas indagações, tendo em

vista a posição de José Ivan. Conforme abordado, não apenas a obra, mas a própria

figura de seu autor possui um simbolismo de valorização. José Ivan lhe reserva

elogiosas palavras (“maior teórico e prático da divulgação do comunismo”, “um dos

principais homens de bem, sério e que não fingia que era comunista”), a despeito de seu

pertencimento a uma agremiação partidária concorrente do MR-8. Fica o

questionamento: em que medida o fato de Manoel Gomes ser o responsável por um

livro de memórias políticas de um morador de favelas é o fator que evoca tais

sentimentos? Se fosse outro o autor de “As lutas do povo do Borel”, a exemplo de

Sebastião Bonifácio ou José Emídio Gonçalves, tais palavras seriam a ele destinadas? A

autoria de um fato concreto, um lugar de memória, se constituiria em um elemento de

valorização perante os demais, tornando esse sujeito parte desse mesmo lugar de

memória? Ou talvez o próprio sujeito se configurasse como um lugar de memória à

parte?

Por último, já foi devidamente apontado o caráter de concorrência e relativa

tensão que marcava o relacionamento entre os grupos de esquerda que atuaram no Borel

no período estudado. Embora não possuíssem um projeto de comum execução, nota-se

uma possibilidade de articulação, de atuação conjunta, no caso do livro de Gomes, haja

vista a participação da AP e do PCB em sua elaboração. Outras tentativas de atuação

conjunta ocorreram, como a instalação do curso supletivo, organizado pela AP, e para o

qual foi solicitada a “permissão do Lira”, na sede da associação de moradores, uma área

de predominância pecebista. Porém, essa articulação desanda em um determinado

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188

momento, com o curso tendo que se mudar para outro local. Assim como no livro de

Gomes, em que houve o afastamento da AP na fase final de editoração e lançamento do

livro. Esses seriam os sinais da convivência tática, por mim referida outras vezes, na

qual não se observa uma disputa aberta, que inviabilizaria qualquer contato, mas sim um

elemento de tensão que traz à tona algum caráter conflitivo. Desse modo, nota-se uma

articulação restrita entre esses atores, permeada pelos obstáculos colocados pela

conjuntura histórica e política específica daquele momento. Obstáculos que limitam as

possibilidades de esse tipo de articulação obter ecos mais amplos na sociedade em geral

e de garantir o envolvimento de outros setores sociais, para além desses militantes de

esquerda e dos moradores daquela favela. Esse tipo de convivência tática também não

consegue configurar um espaço de gestação de propostas que resultem em

transformações significativas dessas áreas da cidade, ou na alteração da posição

ocupada por seus moradores no quadro social.

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Capítulo IV

Ressignificar a favela pela memória: violência urbana, Agenda Social Rio e

o projeto Condutores de Memória

A partir da virada da década de 1970 para 1980, dois novos fatores se tornarão

fundamentais para a compreensão do debate sobre as favelas: a violência urbana e a

ação do tráfico de drogas. Tais elementos permearão os olhares sobre esses espaços e

terão profundo impacto na discussão sobre o acesso a direitos para seus moradores. A

partir deles, ocorrerá uma disputa, na qual a memória será uma das ferramentas

empregadas, de significados sobre as relações entre as favelas e a cidade. O objetivo

deste capítulo é refletir sobre o papel exercido pelo projeto Condutores de Memória

nesse campo de contendas, construindo uma visão alternativa às imagens de violência

muitas vezes evocada ao se falar desses espaços. Para tanto, primeiramente serão feitas

algumas considerações sobre como a questão da violência, dentro desse contexto

histórico, tem afetado a favela do Borel, e como outros atores, no caso, a Agenda Social

Rio, têm atuado de forma a propor intervenções que revertam os principais impactos

negativos da convivência com o tráfico. A partir desses dois elementos, será realizada

uma reflexão sobre o caráter da implementação do Condutores de Memória.

O Borel e a violência urbana do pós-1970

Deve-se ter em mente que a criminalidade, em suas diversas vertentes, sempre

foi um foco de preocupação das cidades, e, no Rio de Janeiro, em diferentes momentos

históricos, foi associada às favelas, sendo pensada através de distintos olhares e

possibilidades de solução. No entanto, a década de 1970 deve ser pensada como o início

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de um recorte histórico para se refletir sobre um modelo de atuação criminosa, bem

como o momento no qual a sociedade, não apenas no Rio de Janeiro, passou a significar

a questão e a relacioná-la com espaços de habitação popular. No caso específico do

Borel, gostaria de chamar atenção para o depoimento de Fernanda Carneiro

(05/11/2009), uma vez que sua militância nessa favela se inicia justamente durante o

princípio das mudanças ocorridas no padrão da criminalidade urbana163:

“O tráfico, quando a gente chegou, era bem interessante. O chefe do tráfico era chamado Paulo Mãozinha, já ouviu falar? O Paulo Mãozinha era um senhor, andava com uma capa preta, acho que era maneta. Ele era super respeitado no morro. Quando eu cheguei, não era tão ostensivo, o tráfico. E ele só contava... Eu sabia onde ele morava, no Natal ele dava presentes para as crianças. Ele era um cara da comunidade. Depois ele foi para o sítio dele e começou a sucessão”.

Como podemos ver, a figura mencionada por Fernanda Carneiro se assemelha a

um personagem que costuma ser recorrentemente citado quando se fala do

estabelecimento das quadrilhas nas favelas a partir do final dos anos 1970. Ou seja,

trata-se de indivíduos que possuem uma ligação orgânica com essa localidade, muitas

vezes sendo morador nascido e criado, não aparentando uma menor idade que chamasse

atenção, nem utilizando a violência extremada como norma de regulação de suas

relações locais. Essa memória expõe a realização de atos que denotam a busca por uma

maior aceitação entre os moradores locais, como a distribuição de presentes para as

crianças no Natal164. O traficante em questão, inclusive, teria “se aposentado”, ou seja,

por opção pessoal, decidiu abandonar suas atividades criminosas e foi residir em um

“sítio”.

163 Gostaria de atentar para o fato de que meu objetivo não é estabelecer uma cronologia de quais foram os principais responsáveis pelo tráfico no morro do Borel, mas apenas compreender como a consolidação da ação desse ator, dentro do desenho que se fortalece a partir dos anos 1970, afetou os padrões de sociabilidade e mobilização local e, por conseguinte, as formas de externalização e transmissão da memória. Desse modo, optei por manter nomes de traficantes citados, porém sem pretender, a partir dessa escolha, construir uma cronologia sucessória ou informação semelhante. 164 Para uma noção da construção desse tipo de traficante, bem como do início da mudança para um perfil de atuação local mais violento, e de como os trabalhadores habitantes de favela constroem sua autoimagem diferente de ambos, ver ZALUAR, 1985.

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Desse modo, se atentarmos para a construção da imagem desse personagem,

podemos elencar certos elementos do imaginário sobre o tráfico presentes na memória

da depoente. Ou seja, mais do que um interesse na veracidade sobre as formas de atuar e

de se relacionar localmente de um suposto traficante conhecido como Paulo Mãozinha,

devemos nos ater sobre os significados acerca de um “passado do tráfico” produzidos

pela memória e contidos nesse depoimento. Nele podemos atentar para um período no

qual não se pode observar um conflito extremado ou a utilização da violência,

características que têm como consequência um impacto profundo nos padrões internos

de relacionamentos sociais do Borel, fenômeno que ocorrerá, assim como em outras

favelas, justamente a partir dos anos 1980 (BURGOS, 2005, SILVA, 2004a, 2004b,

2008). O que se revela, segundo a visão da militante da AP, é um indivíduo “super

respeitado no morro”, que, no Natal, “dava presentes para as crianças”, sendo que o

abandono de seus atos ilícitos ocorre por escolha pessoal, conforme retratado, e de uma

forma idílica, com a imagem da “ida para seu sítio”. Depois de sua retirada da vida

criminosa, passa a ocorrer o período mais problemático ou, conforme as palavras de

Fernanda Carneiro, “começou a sucessão”165.

O companheiro de militância de Fernanda Carneiro, Roberto Ramos, chega a

mencionar conflitos no final dos anos 1970, porém, dentro de uma lógica de disputas

individuais, e não por tomadas de pontos de venda de drogas, ou configuração

semelhante (depoimento de Roberto Ramos, 12/05/2011):

“Eu me lembro que, em 1978, o Deco, um garoto que resolveu cismar, tinha lá uma armazinha, uma arma alemã, garrucha, sei lá, cismou de matar o Luneta166. Foi lá e deu um teco e errou, e o Luneta já estava com aquela, como se chama? Escopeta. Ele deu um tirinho e saiu correndo, e o Luneta, pimba!, matou o Deco na porta da igreja, da capelinha. Foi um acontecimento, escopeta (...)”

165 Porém, deve-se ressalvar que essa imagem é uma representação de memória, que, por vezes, tende a romantizar um olhar sobre o passado a partir de certas noções do presente. 166 O depoente se refere a Paulo Luneta, um traficante que, segundo sua memória, teria atuado no Borel nesse período.

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Pode se chamar atenção para o fato de que um assassinato cometido em frente a

um lugar de considerável frequência, a igreja, com uma arma de maior calibre, a

escopeta, configure um evento incomum, a ponto de se tornar um “acontecimento”,

segundo a memória do depoente. Nada impede que o confronto entre Deco e Luneta

tenha ocorrido dentro da lógica da venda de drogas, mas a lembrança de Ramos lhe dá o

significado de um “cisma”, o que marcaria a diferença com o quadro atual de frequência

de confrontos armados e de como os moradores precisam estabelecer estratégias para

construir padrões de rotina que levem em consideração essa mesma frequência (SILVA,

2008).

O mesmo depoente chega a citar as primeiras disputas nas quais as menções a

pontos de venda de drogas, as chamadas “bocas de fumo”, aparecem em sua narrativa

de memória (depoimento de Roberto Ramos, 12/05/2011)167:

“Um dia estou eu, naquela época as coisas estavam meio tensas, eu e Ivanzinho168, quando a gente está descendo (o morro), portanto isso já em 1980, o Deco tinha ameaçado, dado uns tiros lá embaixo, porque ele tinha uma rivalidade na boca antiga embaixo, porque os garotos fizeram uma boca na Chácara, no Terreirão, em cima, antiga, percebe? Tudo... Porque o Luneta era uma boca só, ainda tinha Virada Cruz, a Casa Branca não tinha nada, a Formiga não tinha uma proliferação, virou um... Agora, o Deco tinha dado uma geral no bar, esqueci o nome, quando você entra à direita, tinha um bar ali, e quando eu estou descendo, ‘pow’, eu e Ivanzinho corremos, entramos em um bequinho assim, e a gente ainda ouve: ‘Estão correndo de que, seus bundões?’ Como assim, caramba, e ele passou batido subindo com a arma na mão, ele e mais dois caras... E dias depois o garoto morre lá, quer dizer, essas experiências”.

A própria situação que estava se configurando a partir daí chegou a limitar a

circulação do próprio Roberto no Borel, que, até então, não colocava empecilhos sobre

ir e vir nesse espaço (idem):

“A gente viveu e, antes, em 1976, 1977, não tinha nada, nada (...) quando a gente ia dar uma festa, eu vou lá em cima, 1978, 1979, (...) era um tempo romântico, uma época em que, de repente, os pais traziam os filhos para a

167 Gostaria de atentar para uma certa confusão de nomes que aparece nessa passagem, uma vez que Roberto Ramos chega a mencionar o nome de Deco em uma história que teria se passado em 1980, sendo que este teria sido morto em 1978, segundo anteriormente colocado pelo próprio depoente. 168 Apelido de José Ivan, liderança que chegou a presidir a associação de moradores do Borel durante um longo período e cujo depoimento foi por mim abordado em passagens anteriores.

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escola, esse tipo de coisa, agora, depois realmente pára... Aí essas coisas, o pessoal faz um jantar para a gente, um almoço pra gente, vou subir o morro e o cara me fala: ‘Não, Beto, não vai subir sozinho, não’. E eu: ‘Não vou subir o caramba’. E ele: ‘Não vai subir sozinho, não’. Um dia eu passo na boca, tem dois garotos ali: ‘Vai aonde?’ Só faltou me chamar de playboy, e eu digo: ‘Eu vou na marcenaria do senhor Jorginho’, e fui embora. O Jorginho: ‘Beto, não faz mais não’, porque passava ali pela boca, um relacionamento completamente diferente”. 169

Desse modo, temos o princípio de uma nova configuração do tráfico local,

dentro dos moldes gerais dessa atividade descritos por Kant de Lima, Misse e Miranda

(2000). Devo destacar que isso não significa a ausência de criminalidade no Borel

anteriormente, mas apenas o aparecimento de um outro padrão de atuação. Também

devemos estar atentos para o fato de que as consequências desse novo padrão não

devem ser motivo para a “romantização” – um dos perigos recorrentes dos discursos de

memória – das formas anteriores de relacionamento e atuação local de antigos

indivíduos que praticavam atos ilegais ou ilícitos. Figuras como a de Paulo Luneta e

suas ações, como distribuir presentes, não devem ser interpretadas como benéficas ou de

maior aceitação por parte daqueles que convivem com uma maior proximidade de seus

atos, pois também trouxeram empecilhos ao estabelecimento de padrões positivos de

sociabilidade e de relacionamento com a cidade e com uma esfera de direitos.

Até o presente momento, os significados sobre a atuação do tráfico, bem como

suas formas de ação, foram abordados através de depoimentos de “agentes externos”, ou

seja, indivíduos que não nasceram na localidade e passaram a nela atuar, dentro de um

contexto de militância contra o regime militar. Porém, é preciso ter em mente que a

presença dos grupos de traficantes afetou padrões de sociabilidade locais, bem como

representações socialmente construídas e veiculadas sobre a favela do Borel, assim

como outras, devendo-se ter consciência de que, no caso de seus moradores, há a

169 Notem como a memória contida nesse depoimento romantiza o período anterior aos anos 1980, denominado de “tempo romântico”. Essa significação positiva da época anterior à atual configuração do tráfico de drogas pode ser entendida como uma das consequências do convívio com disputas armadas e com a arbitrariedade e a imprevisibilidade que caracterizam o padrão de atuação dos traficantes.

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agravante da convivência próxima com as quadrilhas, o que os torna mais suscetíveis às

consequências da atuação dos traficantes (SILVA, 2008).

Com relação ao Borel, a configuração do quadro de violência a partir do final

dos anos 1970 tem como consequências uma nova significação para as divisões internas

da própria favela, além de seu relacionamento com as vizinhas, devido a rivalidades e

disputas entre quadrilhas rivais (CAVALCANTI, 2007). A partir desse período,

começa-se a falar em divisões mais sólidas entre as favelas do Borel, Chácara do Céu e

Casa Branca170. Segundo Ruth Barros (depoimento de 21/01/2009):

“Começou no início da década de 1980, começaram todas essas coisas de separar. Chácara é uma coisa, Borel é outra, de guerra do tráfico. Começou na época, porque antes não tinha, antes se andava livremente, você ia na Chácara do Céu, subia, você andava (...)”

Porém, essa divisão não se limitava a diferentes favelas, podendo afetar sub-

regiões do próprio Borel (depoimento de Monica Francisco, 22/07/2011):

“Eu me lembro da divisão clara entre Terreirão e Barranco171. Porque Terreirão era um grupo e Barranco era outro. E engraçado que até hoje os moradores do Terreirão e do Barranco não são muito próximos. (...) a turma do Barranco e a turma do Terreirão. Essa coisa você tinha... Aí o Isaías unifica o morro, né?, com a morte do Bombinha, e o Isaías é meio que um Gengis Khan que unifica (...). Eu vinha muito na Casa Branca, pegar doce de Cosme e Damião, a pedreira era uma coisa que ficava muito na cabeça na infância. Cosme e Damião, a gente vinha pra cá. Subia, era muito engraçado, né? E aí começa essa coisa e a gente não vem... Aí chega o Isaías com a guerra com a Casa Branca e a coisa fica mais feia. Aí começa realmente a ter guerra, aquela coisa da polícia mesmo”.

170 Chácara do Céu e Casa Branca são favelas contíguas ao Borel, sendo a primeira localizada no topo da colina onde fica esta última. Borel e Chácara do Céu possuem histórias interligadas, uma vez que, ao que tudo indica, a ocupação da primeira começou pela segunda, que se situa na parte mais elevada do morro. Essa área, nos primórdios de sua ocupação, era privilegiada, pela possibilidade de se construírem barracos que não ficassem tão à vista e acessíveis para a polícia, que geralmente os derrubava. No entanto, a maior intensificação da ocupação da Chácara só ocorre a partir dos anos 1970 (CUNHA, 2006). A partir da década seguinte, o laço que unia essas localidades começou a se esgarçar por conta da atuação do tráfico de drogas, que também trouxe problemas com relação à favela da Casa Branca (CAVALCANTI, 2007). Inclusive, a representação associativa da Casa Branca e da Chácara do Céu ocorria pela associação do Borel. Elas só foram ter associações independentes em 1979 e 1989, respectivamente. 171 Trata-se de dois espaços internos da favela do Borel. O Terreirão é um dos principais locais de sociabilidade da favela, onde se localizam bares, além da sede de uma ONG e de uma igreja. O Barranco é uma área de difícil acesso, onde ainda se localizavam barracos de estuque e havia dificuldades para o fornecimento de água quando Mariana Cavalcanti (2007: 115) realizou sua pesquisa etnográfica sobre a favela.

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O Isaías a quem se refere a depoente é Isaías da Costa Rodrigues, conhecido

como Isaías do Borel, um dos mais antigos traficantes ainda vivos de sua geração. Seu

domínio sobre o tráfico do morro teria se iniciado em 1981, e sua quadrilha também

teria realizado assaltos a mansões no Alto da Boa Vista, bairro localizado no topo do

maciço da Tijuca (“Área concentra mais tráfico e armas”. O Dia, 22/09/1989). Sua

descrição no depoimento anteriormente citado, como um “Gengis Khan que unifica o

morro”, exemplifica o sentido investido em sua figura como um chefe militar

conquistador que inauguraria uma nova era para o tráfico do Borel172.

Desde a década de 1980, é possível encontrar representações na mídia

específicas sobre a atuação de Isaías da Costa Rodrigues. Dessa época, datam

reportagens que afirmam (“PM desfaz barricada e prende dez no Borel”. O Dia,

21/09/1989):

“Oficiais do comando do 6º BPM, na Tijuca, acreditam que o morro do Borel poderá se transformar numa réplica minúscula de pequenas cidades colombianas dominadas pelo Cartel de Medellin (...) os traficantes liderados por Isaías Rodrigues da Costa (sic) já dispõem de organização tão poderosa que até prestam assessoria ou fazem segurança das bocas de fumo de outros morros da região”.

Na outra reportagem, já citada, notam-se novas cores ao quadro descrito (“Área

concentra mais tráfico e armas”. O Dia, 22/09/1989):

“O poderio de Isaías é grande, conforme foi levantado pela P2. Ele mantém um exército de 150 homens no mínimo, que o auxilia no patrulhamento do morro e na distribuição da droga (...). O exército dispõe de uniforme, roupa de camuflagem, à semelhança das Forças Armadas, e de armamentos pesados, como lança-granadas, fuzis importados FAL em grande quantidade”.

A dramaticidade da situação colocada pelo periódico analisado teria provocado a

declaração do então governador em exercício, Wellington Moreira Franco (1987-1991),

deixando claro que o governo estadual “não irá permitir que o Borel seja uma nova

172 Atualmente, Isaías encontra-se preso na penitenciária federal de segurança máxima de Catanduvas.

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Meddelin” (“Moreira anuncia ‘invasão social’ no morro do Borel”, O Dia,

23/09/1989)173.

Ao analisarmos essas imagens, é possível perceber a construção de

representações sobre o tráfico que o configuram como um poder armado fortemente

estabilizado e fortalecido. A quadrilha comandada por Isaías possuiria, conforme

exposto pelas reportagens, um armamento composto por armas importadas, de alto

poder de letalidade e de uso das Forças Armadas. A comparação com um grupo

paramilitar prossegue, pela descrição das vestimentas adotadas, e sua força chegaria a

garantir “consultoria” e “segurança” para a venda de entorpecentes de possíveis aliados.

Por último, fica a comparação com uma cidade colombiana cuja atuação de um cartel de

drogas foi notória e detentora de redes internacionais de contato. Desse modo, temos um

exemplo da forma como era retratada a ação de quadrilhas de traficantes de favelas pela

grande imprensa, caracterizada pela socióloga Marcia Leite (2001) como metáfora da

guerra, percepção que poderá ser notada de maneira mais aprofundada nos anos 1990.

Na primeira metade dos anos 1990, temos a realização da Operação Rio como

um elemento importante para se entender a forma como parte da sociedade associava as

favelas à problemática da violência (LEITE, 1998). No caso do morro do Borel, a

ocupação pelas forças armadas ocorreu no dia 25 de novembro de 1994, quando

aproximadamente dois mil homens apoiados por helicópteros, carros de combate e

armamento pesado ocuparam a sede da associação de moradores. Foram feitas e

tornadas públicas escutas de telefone, bem como foi ocupada a sede da igreja São

173 Para o entendimento das disputas de quadrilhas de traficantes entre Borel e Casa Branca, deve-se ter em mente o desenvolvimento das organizações criminosas que detêm o controle da venda de drogas no Rio de Janeiro. O Comando Vermelho, grupo ao qual pertence Isaías do Borel, foi fundado no final dos anos 1970, sob o nome de Falange Vermelha, a partir de presidiários encarcerados no presídio de Ilha Grande. No mesmo período, na penitenciária da Frei Caneca, foi fundada a Falange do Jacaré, que se tornaria o Terceiro Comando (MISSE, 1997). Ao longo dos anos, uma série de disputas internas daria origem a outros grupos, como o Amigos dos Amigos (ADA). Enquanto o Comando Vermelho atuava no morro do Borel, o Terceiro Comando atuava na Chácara do Céu e na Casa Branca, o que ocasionava disputas e confrontos armados nessa região, em variáveis graus de intensidade, a partir da década de 1980 (CAVALCANTI, 2007).

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Sebastião, localizada na favela, além da ocorrência de uma série de denúncias de tortura

(COIMBRA, 2001: 166).

Olinto Pegoraro174 relembra o episódio da seguinte forma (depoimento de

25/07/2008):

“E eu estava dando aula aqui na Uerj quando que me telefonaram, foi uma advogada que me telefonou, ‘eles invadiram o Borel, venha logo’, e eu fui. Cheguei lá por volta do meio-dia e tinham tomado o centro comunitário. Erraram, certamente, se engaram, e, quando eu fui depor no Comando do Leste, disse que eles fotografaram errado, eles devem ter feito umas fotografias aéreas, e quando chegaram lá seria parte para comandar todo o espetáculo. E pensaram que fosse alguma coisa da associação, era nossa. Era lá na Chácara do Céu, no centro comunitário da igreja, onde havia exatamente um ambulatório, uma creche, e a igreja! Tudo no mesmo prédio. E vários outros serviços. Então eu cheguei e perguntei quem é que comanda aqui, cheio de soldado para tudo quanto é lado, e o comando estava para baixo, eu fui até o CIEP175, e o comando era lá no centro, era no Comando do Leste, e eu disse: ‘Isso aí, vocês invadiram uma igreja!’ Tinha que assustar esses militares aí, que intervieram. E eu não tive resposta até o fim da tarde, aí eu fui à imprensa e foi um bafafá danado, veio ministro da Defesa, na época, Leônidas Pires Gonçalves, e ele disse: ‘Teve tanta coisa que essa Ação Comunitária176 faz que claro que tem um auxílio do bandido!’ E eu respondi que dou conta de tudo que eu faço cada mês, e de fato nunca tive nenhum auxílio do bandido lá. Mas essa denúncia de tortura que nós tivemos lá... Mas nas favelas anteriores não tinham denunciado nada. Depois acabou a intervenção militar, nunca mais foi nada”.

O exemplo da cobertura do jornal O Dia sobre a atuação de Isaías do Borel, bem

como a forma como a Operação Rio foi implementada nessa favela, ilustram a maneira

como parte da sociedade do Rio de Janeiro passou a encarar a problemática das favelas

durante os anos 1980 e, de forma mais acentuada, na década de 1990. Nesse período, a

associação desses espaços à violência, dentro da lógica da metáfora da guerra, foi um

de seus principais elementos direcionadores. A própria cobertura midiática da Operação

Rio reforçou a construção de representação das favelas como polos irradiadores de

violência e ameaça para o resto do espaço urbano, lançando sugestões de que

174 Olinto Pegoraro é ex-padre e importante liderança local, atuando no Borel e na Casa Branca desde o final dos anos 1970 pela pastoral das favelas. Atualmente, desenvolve projetos através da instituição Ação Comunitária Pró-Favela. 175 Trata-se do CIEP Antoine de Magarinos Torres, localizado na rua São Miguel, na entrada da favela do Borel. 176 Ação Comunitária Pró-Favela, ONG coordenada por Olinto Pegoraro.

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desrespeito a direitos básicos de cidadania dos moradores dessas áreas seriam toleráveis,

tendo em vista a suposta ameaça sob a qual se encontrava a cidade (LEITE, 1998).

Contudo, os anos 1990 apresentam uma atuação cada vez mais consolidada das

quadrilhas de traficantes. Esse convívio, aliado às consequências trazidas pela disputa

armada por grupos rivais, afeta padrões de sociabilidade existentes nesses locais,

incluindo-se as formas de organização e mobilização. A partir de meados da década de

1980, as associações de moradores de favelas entram em declínio no que diz respeito a

sua representatividade e legitimidade como instrumento mobilizatório e de

reivindicação, quadro que se acentua nos dez anos seguintes. As ligações desses órgãos

com o poder público, incluindo a possibilidade de gestão de verbas, foram um dos

fatores que acarretaram tal esvaziamento, sendo, porém, necessário considerar a cada

vez mais crescente influência do tráfico sobre os mesmos (BURGOS, 1998 e

PANDOLFI & GRYNSZPAN, 2002).

Nos anos 1980, durante uma campanha pela presidência da associação de

moradores, Miriam Gonçalves (depoimento de 23/09/2009) relata a seguinte situação:

“O que eu mais senti foi na época da campanha, na campanha da nossa chapa. Eles (traficantes) começaram a se engraçar, a interferir nessa coisa, e eu me senti muito insegura e pensei se valia a pena. E quando a gente não ganhou, no fundo não lamentei tanto, porque não ia ser fácil viver com isso. Você passar e ver todo mundo fortemente armado...”177

Ao longo dos anos 1990, essa situação se agrava até se constituir em um dos

elementos de perda de representatividade (depoimento de Monica Francisco,

22/07/2011):

“Você passa a olhar a associação como completamente ligada ao tráfico. Já não é mais uma diretoria eleita legitimamente pelo povo. É imposta, se não claramente, pelo menos tem relação. Aí você fica... ‘Não foi legítimo’. As pessoas questionam, ‘não foi legítimo’, reclamam muito, mas também dizem assim: ‘Ah, não tira. Sei lá, vai mexer... Quem colocou? Quem está por trás?’”

177 Situação semelhante de “alívio”, por não ter ganhado uma eleição para a associação, pode ser observada na favela Santa Marta, localizada no bairro de Botafogo, na zona sul carioca, através do depoimento de Itamar Silva (PANDOLFI & GRYNSZPAN, 2003), liderança local que atualmente atua junto a ONGs. Alívio inclusive por parte de familiares do depoente e de pessoas mais próximas.

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Inclusive, a memória de Ruth Barros (depoimento de 21/01/2009) chega a

interpretar a disputa entre quadrilhas como um dos elementos que teriam levado à

criação de uma associação independente para a Chácara do Céu em 1989178:

“É, porque tinha problema (referindo-se aos conflitos armados), o pessoal não descia, os outros não subiam, o pessoal vinha buscar carta aqui na associação, era comum, vinham cá embaixo, e era normal, tanto é que na prefeitura era uma coisa só. Agora não, está separado porque tem outra associação, mas antes era uma coisa só”.

Com o acirramento dos confrontos entre quadrilhas rivais de traficantes, a vida

associativa não foi o único elemento a ser afetado, mas também rotinas cotidianas, uma

vez que confrontos armados passaram a ser um elemento de convívio quase que diário,

conforme a fala de uma moradora da Chácara do Céu (depoimento de Marisa Vieira,

27/07/2011)179:

“O pior dia de todos era domingo. Para a gente, parecia que eles marcavam encontro dia de domingo. Antes, domingo, dava seis horas da noite e a gente começava a sentir uma preocupação imensa, eles subiam no campo, os daqui (Chácara do Céu) atiravam para lá (Borel), os de lá atiravam para cá, e a gente rezando para que amanhecesse o dia, porque a polícia só vinha quando amanhecia, não vinha de noite”.

A imagem da “guerra com hora marcada”, tendo um dia específico sempre como

o pior, além de um horário próprio para a ação policial, revela como o confronto entre

quadrilhas estava entranhado em um certo imaginário sobre o cotidiano local. Além da

situação citada, podemos relacionar outras, de violência presenciada ou diretamente

vivenciada, conforme estes dois depoimentos (depoimento de Carlos Roberto de

Oliveira, 28/07/2011 e de Vera Silva, 29/07/2011)180:

178 Entretanto, não deve ser descartada a possibilidade de outros elementos terem levado à criação da Associação da Chácara do Céu. 179 Depoimento tomado pela equipe responsável pela pesquisa “A ‘retomada’ das favelas do Rio de Janeiro pelo Estado: compreendendo as mudanças na vida da comunidade depois de um processo de desarmamento e pacificação”. Adotou-se nome fictício para o depoente, por motivos apresentados na introdução desta pesquisa. 180 Esses dois depoimentos também pertencem ao acervo da pesquisa anteriormente citada e os depoentes também são relacionados com nome fictício.

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“Tinha um garotinho lá embaixo, que até deu uma matéria muito forte, e uma vez a polícia chegou atirando e estourou a cabeça dele... Ele estava andando de velotrol, tinha uns dois aninhos”. “Levei nas costas e saiu por aqui. Eu ligava para os outros, ria, chorava, e achavam que não tinha acontecido nada comigo. Eu sempre fui muito brincalhona, ria e chorava de nervoso. E ninguém veio me socorrer, porque estava o maior tiroteio aqui. Aí minha filha mais velha foi no vizinho chamar socorro para mim.”

Recapitulando, foram expostos alguns elementos relativos a consequências do

maior fortalecimento da atividade de venda de drogas, na favela do Borel, a partir do

final dos anos 1970. Desse modo, podemos elencar situações como o estabelecimento

de fronteiras simbólicas entre localidades contíguas e de histórico de vivência e

mobilização em comum, bem como o convívio forçado com confrontos armados e com

atos de violência. Essas situações não são concernentes apenas à favela aqui em

questão, mas a diversas outras dentro de nosso espaço urbano181.

Esses elementos constroem um quadro de padrões relacionais denominados por

Luís Antonio Machado da Silva (2004a, 2004b e 2008) de sociabilidade violenta,

perceptível nas favelas onde o tráfico de drogas possui uma atuação mais sólida. Esse

quadro é caracterizado pelo uso da força como elemento regulador, bem como por uma

considerável capacidade de improvisação e de lidar com situações espontâneas, tendo

em vista a arbitrariedade dos sujeitos que detêm o elemento de regulação, ou seja, os

traficantes. Desse modo, há uma submissão por parte dos moradores de favelas a uma

série de situações e normas inconstantes e mutáveis, gerando uma situação de difícil

adaptação e, ao mesmo tempo, da qual esses atores não possuem controle.

Diversos aspectos de tal configuração podem ser observados ao se refletir sobre

os elementos abordados no que diz respeito aos moradores do Borel, devendo-se

acrescentar alguns fatores extras. Primeiramente, é preciso chamar atenção para a

181 Nessa situação, o escopo de visão deve ser expandido para outras cidades, não apenas brasileiras, tendo em vista a internacionalização do tráfico de drogas que ocorre a partir dos anos 1980, respeitando-se as dinâmicas específicas de cada caso.

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barreira simbólica que afeta as favelas, sobre as quais os que vivem no “asfalto”

possuem um desconhecimento acerca de sua real complexidade, o que não os impede de

tecer significados que associam esses espaços à violência do tráfico, bem como

construir considerações de conivência, quando não envolvimento direto, dos moradores

dessas áreas com os responsáveis por essa atividade ilícita (LEITE, 2001). Desse modo,

é possível notar um processo de fragmentação de sentidos sobre o espaço urbano, no

qual as favelas são consideradas como “anticidades”, passando a representar áreas

concentradoras de todas as mazelas que impedem um convívio social positivo. Essa

fragmentação, que pode ser vista como uma territorialização da cidade, é um dos

fatores que limitam a partilha dos bens que caracterizariam um regime democrático

(BURGOS, 2005).

O caso do Borel, assim como o de outras favelas, não escapa a nenhum desses

processos, havendo ainda o modo como essa configuração afeta percepções locais sobre

o espaço e o tempo. Mariana Cavalcanti (2007), além de destacar como a ação do

tráfico contribui para a construção de novos significados locais sobre o espaço, afirma,

igualmente, que essa atuação afeta a forma como os moradores desses espaços lidam

com a questão do tempo, passando a se preocupar com elementos como o horário mais

frequente dos tiroteios, além de toques de recolher182. Sobre a questão relativa aos

modos de se perceber e lidar com o tempo, gostaria de sublinhar outro aspecto: a

problemática da transmissão da memória. Tendo em vista o fato de esta última possuir

um aspecto de construção social coletiva que envolve uma complexa rede de relações de

memórias individuais (LAVABRE, 2001 e HALBWACHS, 2004), deve-se ter em

mente que, quando padrões de sociabilidade e convívio entre indivíduos são afetados,

assim também o são as formas de transmissão de memória.

182 O depoimento da moradora que alude à “guerra com hora marcada” é um exemplo ilustrativo de tal afirmativa.

Page 203: Caminhos Do Lembrar a Construção e Os Usos Políticos Da Memória No Morro Do Borel

202

Afinal, foram anteriormente mencionados casos em que as histórias sobre a UTF

foram transmitidas a partir de conversas familiares. À medida que empecilhos à

circulação de moradores são criados, bem como ao estabelecimento de laços de

convivência, inclusive entre parentes, canais de transmissão orais sobre o passado são

prejudicados. Assim como também o acesso a suportes de memória, uma vez que o fato

de um morador da favela da Chácara do Céu possuir um livro chamado “As lutas do

povo do Borel”, quando do auge da disputa entre quadrilhas rivais, poderia lhe gerar

represálias. Esse quadro, portanto, levantará novas questões e hipóteses sobre estímulos

e interesses para a construção de novos suportes materiais, bem como sua utilização

política183.

Breves comentários sobre a consolidação da atuação das ONGs

Nos últimos 20 anos, podemos observar o fenômeno de consolidação da atuação

de um ator político no campo das reivindicações sociais e nas áreas de favelas do Rio de

Janeiro, inclusive: as Organizações Não Governamentais (ONGs). Esse agente possui

uma concepção própria sobre a questão social, bem como sobre o papel do Estado e da

sociedade em seu desenrolar, assim como campos e formas de atuação. Representantes

desse campo colocam como o marco inicial de sua atuação as mudanças e rupturas da

intervenção estatal a partir da década de 1980184 e, mais especificamente no caso

183 Gostaria de explicar que, ao abordar o quadro de violência que afeta a favela do Borel, dentre outras, não incorporei em minha análise a nova situação que se inaugura com a implantação da Unidade de Polícia Pacificadora no local desde o dia 7 de junho de 2010, fato que acarretou um novo quadro de debates no que diz respeito à problemática da violência em seus múltiplos aspectos. Como o principal objeto de interesse do presente capítulo é a reflexão sobre o projeto Condutores de Memória, preferi me ater à forma como os padrões de violência contemporâneos e a sua execução influenciaram suas diretrizes. 184 Gostaria de chamar atenção para esse recorte histórico, o mesmo que contém a consolidação da atuação de quadrilhas de traficantes nas favelas do Rio de Janeiro, além de outros estados brasileiros.

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203

brasileiro, o panorama dado pela conjuntura do impeachment do primeiro presidente

eleito após a ditadura militar (1964-1985), Fernando Collor de Melo185.

O início dos anos 1990 tem sido caracterizado por uma perspectiva de crise, com

tonalidades de aumento da desigualdade social, do desemprego e da violência urbana.

Tendo como pano de fundo analítico o final do governo Collor (1990-1992), Ana

Amélia da Silva (1994) atenta para uma percepção geral que caracteriza esse momento

como de crise moral, ética e política, em um panorama marcado por relações

clientelistas e apropriação de instituições estatais públicas para finalidades sociais. Tal

quadro teria gerado uma resposta da sociedade fundamentada em novas iniciativas de

intervenção e mobilização pelo estabelecimento de novos direitos.

Assim, os movimentos sociais urbanos exerceriam um papel fundamental ao

lançar olhares sobre novas formas de práticas políticas, através da articulação de

diferentes atores sociais. O resultado pretendido seria a constituição de novas dimensões

de interlocução pública e de formulação de políticas sociais que contemplassem

interesses múltiplos e diversos (SILVA, 1994). É justamente nesse contexto que as

ONGs ganham um maior espaço de articulação e proposição de formas de intervenção,

assim como sua existência e atuação tem ganhado uma maior notoriedade em meio à

opinião pública.

Tanto Rubem Cesar Fernandes (1994) quanto Rubens Naves (2003)186 afirmam

ser necessária a atuação das instituições em questão, devido às mudanças sobre a

Porém, isso não significa que o início do crescimento da atuação das ONGs em favelas esteja exclusivamente relacionado à elaboração de projetos voltados para a questão da violência urbana e seus desdobramentos. 185 Contudo, é preciso levar em consideração que algumas das instituições que formam o campo das ONGs possuem uma atuação que remete ao início da década de 1960, como a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) e a Ação Comunitária do Brasil do Rio de Janeiro (ACB-RJ), embora tais instituições não adotassem a denominação “Organização Não Governamental”, pelo fato desta ser uma terminologia que se consolida a partir dos anos 1980, assim como as principais concepções de atuação e reflexão sobre a questão social relacionadas a esse termo.

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204

concepção do Estado e de suas funções que ocorreram, sobretudo, a partir da década de

1980, quando emergiu a proposta que se convencionou chamar de “neoliberal”

(FERNANDES, 1994 e NAVES, 2003)187.

Fernandes (1994: 92) caracteriza o papel do Estado, em um período anterior às

ditaduras militares da América Latina, como de “função integradora”, sendo

responsável pela “proteção econômica, os contratos definidores das grandes linhas de

investimento, a mediação entre capital e trabalho, os serviços sociais, a identificação

coletiva com o ‘povo’ e a ‘nação’”. O período sob comando dos militares representaria

uma ruptura com esse quadro e, no entanto, para o autor (idem: 93):

“(...) a democratização não se fez sob a égide de uma restauração. Em vez de voltar aos padrões anteriores, prosseguiu no caminho da desestruturação da herança populista. (...); e aderiu às estratégias neoliberais de política econômica. Às incertezas decorrentes da redefinição das leis e das parcerias somaram-se ‘os ajustes estruturais’ com o desmonte sistemático das funções reguladoras e protecionistas do Estado. Em vez de recuperar os vínculos de proteção perdido para os militares, a democratização radicalizou as medidas de ruptura com os padrões integradores do passado”.

Desse modo, vemos como representantes de um campo de ação social

problematizam o que seria uma das principais vertentes causadoras da desigualdade,

colocando-se como possível solução a atuação cada vez mais presente de “um conjunto

de organizações e iniciativas privadas que visam à produção de bens e serviços

186 Esses dois autores são representativos do pensamento sobre as ONGs e das instituições que formam o chamado Terceiro Setor, a partir dos próprios atores que compõem esse campo de atuação, devido a suas trajetórias individuais. Rubem Cesar Fernandes é um dos fundadores da ONG Viva Rio, da qual é diretor executivo, além de já ter colaborado com o Instituto de Estudos da Religião (Iser). Rubens Naves já foi presidente da Fundação Abrinq, entidade que congrega diversos setores do empresariado que desenvolvem projetos embasados pela noção de “responsabilidade social”. José Eduardo Marques Mauro e Rubens Naves definem o Terceiro Setor como um “conjunto de atividades espontâneas, não governamentais e não lucrativas, de interesse público, realizadas em benefício geral da sociedade e que se desenvolvem independentemente dos demais setores (Estado e mercado), embora deles possa, ou deva, receber colaboração” (apud, NAVES, 2003: 574). 187 Naves (2003: 565) define a postura neoliberal da seguinte forma: “Durante as décadas de 1980 e 1990, o chamado ‘discurso único’ propôs o fim da utopia socialista e, assim, dos embates ideológicos (o ‘fim da história’), com a hegemonia absoluta do mercado, entendido como entidade quase metafísica. (...). Nessa visão, o ‘mercado’ das trocas financeiras e comerciais é visto como harmonizador (ou catalisador) ‘automático’ de todos os interesses dos indivíduos, o locus principal da conciliação do conjunto de interesses individuais. Porque Adam Smith preconizava a não regulamentação das forças do mercado, foi chamado de ‘liberal’. Daí a retomada de seus princípios ser conhecida como ‘neoliberalismo’”.

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205

públicos” (ibidem: 21). Tal conjunto não deve ser visto como substituto do Estado, mas

como fomentador de parcerias, junto com o setor privado. Segundo Naves (2003: 582):

“Nesse sentido, é esperado que as ONGs cumpram um papel transformador, propondo

novas formas de tornar as políticas públicas mais eficientes e capazes de abarcar os

direitos de todos os brasileiros”. Assim, nota-se a menção a uma situação política, que

toma corpo a partir de meados da década de 1980 e se consolida durante a de 1990,

como um marco para a atuação desses atores, bem como seu papel a ser desempenhado

a partir dela.

Em relatório de 2003 elaborado por representantes nacionais e estrangeiros da

OXFAM NOVIB188, Sérgio Haddad (apud, OXFAM NOVIB, 2003: 10), então

presidente da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (ABONG),

caracteriza os oito anos do governo Fernando Henrique Cardoso: “O desgaste do

governo Fernando Henrique e suas políticas neoliberais leva a uma crise econômica

permanente com o aumento do desemprego, a dependência dos capitais internacionais, o

aumento da dívida nacional e internacional e a queda crescente dos índices de

popularidade do segundo mandato”.

A escolha pela avaliação do governo de Fernando Henrique Cardoso feita pelo

relatório não tem aqui o objetivo de analisá-lo, mas ocorreu apenas por seu recorte

histórico (1994-2002), que abrange o período de consolidação da atuação das ONGs

junto às favelas no Rio de Janeiro (PANDOLFI & GRYNSZPAN, 2002). Uma análise

da administração federal citada é um caminho complexo, com cada um de seus

condicionantes merecendo especial atenção, o que não é o objetivo da minha pesquisa.

Para a presente análise, não pretendo tecer juízos de valor sobre a política de Fernando

188 Organização holandesa de fins filantrópicos, surgida apenas como NOVIB em 1956. A partir de 1994, se une à Oxfam International, passando a adotar a denominação Oxfam Novib. Esse organismo foi responsável por parte considerável do financiamento de projetos da Agenda Social Rio, como o Condutores de Memória. Para mais informações, consultar http://www.oxfamnovib.nl/en-home.html e http://www.oxfam.org/.

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206

Henrique Cardoso, apenas destacar que atores relacionados ao Terceiro Setor citam a

postura do poder público federal, nesse período, como determinantes para uma suposta

conjuntura de crise, que levaria à necessidade de atuação desses mesmos atores. O

relatório segue desqualificando uma série de posturas governamentais da época (idem:

11):

“(...) aumento de juros que chega a 26,5% e aumento do superavit primário (...). Essa política tem como consequência o aumento do desemprego, a diminuição das exportações e leva a uma crescente dependência externa, além de diminuir a capacidade do investimento do Estado em áreas importantes. Em síntese, diminui a capacidade de fazer política social e de infraestrutura (grifos meus)”.

Ao aludir à diminuição “da capacidade de investimento do Estado em áreas

importantes”, como a “capacidade de fazer política social e de infraestrutura”, é feita

uma crítica sobre uma postura administrativa que teria levado a um vazio a ser

preenchido pela atuação seja do próprio Estado, seja de outros sujeitos. Dessa forma, as

ONGs poderiam atuar como um agente de mobilização, abrindo possibilidades de

atuação de outras instâncias da sociedade, suprindo certas funções que não mais

estariam sendo desempenhadas pela esfera governamental. Conforme a visão desses

atores, “(...) nacionalmente e internacionalmente, nossa tarefa como mediadores de

organizações e sociedades é construir as pontes de participação e cooperação no debate

político” (ibidem: 13).

Desse modo, a década de 1990 pode ser vista como um período de consolidação

de uma forma específica de percepção sobre a questão social brasileira e de formulação

de propostas de intervenção nesse campo (ASSUMPÇÃO, 1993). Nesse quadro, temos

a eleição de uma causa que apontaria, segundo os sujeitos envolvidos, a necessidade e a

premência desse tipo de atuação: o conjunto de concepções sobre a relação entre Estado

e sociedade e as políticas que têm recebido a denominação de “neoliberal”. A partir de

tal perspectiva, podemos refletir sobre o surgimento da proposta da articulação que

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207

ficou conhecida como Agenda Social Rio, bem como seus modos de pensar a cidade e

atuar como um fórum fomentador de propostas de intervenção.

Uma Agenda Social para o Rio

Em 1996, é lançada a candidatura da cidade do Rio de Janeiro para sediar as

Olimpíadas de 2004. Diversos debates foram suscitados a partir dessa questão e, dentre

eles, gostaria de destacar o que considerava essa candidatura como uma oportunidade de

chamar atenção para as mazelas sociais do Rio, criando um compromisso da sociedade

em geral com a melhoria da qualidade de vida de todos os seus indivíduos189. Assim,

surge a Agenda Social Rio, movimento que se articulou como um fórum para agentes de

diferentes perfis debaterem e proporem soluções para questões sobre miséria e exclusão

de direitos de grande parcela populacional190 (IBASE, 2001). Portanto, esse movimento

idealizado pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, também fundador do Instituto

189 No início dos anos 1990, o Rio de Janeiro voltou a figurar no panorama internacional por diferentes vetores. Em 1992, entre os dias 3 e 14 de junho, ocorreu a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, mais conhecida como ECO-92 ou Rio-92. Esse acontecimento serviu para colocar a cidade em uma rota de organização e sede de grandes eventos internacionais. Já em 1993, ocorrem as chacinas da Candelária e de Vigário Geral, que também colocaram o Rio no cenário midiático internacional, dessa vez sob a ótica da violência urbana. Creio na hipótese desses acontecimentos terem mobilizado, a partir de diferentes olhares, o conjunto de representações que compõem a memória da capitalidade (MOTTA, 2000 e 2004). O primeiro poderia ser considerado um gatilho que associasse a cidade, segundo os atores que compartilham da memória da capitalidade, a seu aspecto cosmopolita e estratégico para o Brasil perante o panorama internacional. O segundo, ainda, friso, de acordo com os sujeitos que têm em comum a crença no conjunto de significados em questão, remeteria à crise e desmoralização devido às perdas pelas quais o Rio tem passado desde a transferência da capital federal para Brasília, em 1960. 190 A publicação institucional do Ibase aqui utilizada levanta uma lista de vários membros parceiros que compunham a Agenda. Há diversas associações de moradores de favelas da Tijuca e de suas proximidades, assim como órgãos da administração pública estadual e municipal, creches, escolas, ONGs e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Deve ser levado em conta que o grau de participação de cada um desses integrantes variava bastante, sendo poucos os realmente ativos na ampla lista divulgada. Com relação a integrantes do poder público e do empresariado, deve-se destacar, principalmente, a atuação de Paulo Magalhães e Raimundo Santa Rosa, representantes da Caixa Econômica Federal e da Light, respectivamente. Apesar da participação desses órgãos ter sido realizada de forma institucional, o empenho pessoal desses dois indivíduos foi determinante para o envolvimento das instituições que representam. Mesmo com a perda de força do movimento após a morte de Betinho, deve-se chamar atenção para os diversos eventos, iniciativas, reuniões e debates realizados, sobretudo entre os anos de 1999 e 2002. Atualmente, apesar de ainda realizar reuniões e eventos esporádicos, a Agenda Social Rio encontra-se em um ponto de quase estagnação, com muitos de seus parceiros, inclusive os relativos aos órgãos públicos, não mais constando de seu rol de integrantes (IBASE, 2001).

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208

Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase)191, tem seu início descrito da

seguinte forma (idem: 9):

“A proposta da Agenda nasceu em 1996. Idealizada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, durante a campanha pela candidatura do Rio como sede das Olimpíadas de 2004, a Agenda Social Rio pretendia criar um compromisso social. Esse compromisso envolvia sociedade civil e governo, em torno de metas voltadas para a melhora da qualidade de vida de todos e todas que vivem no Rio de Janeiro. Mesmo com a eliminação da candidatura do Rio, a articulação em torno da Agenda Social se consolidou para cumprir a missão de contribuir com a materialização de seus compromissos, independentemente dos Jogos Olimpícos: educação de qualidade para todas as crianças e jovens; ninguém morando na rua; favelas urbanizadas e integradas à cidade; alimentação de qualidade para todas as crianças e jovens e esporte e cidadania jogando no mesmo time”.

Betinho residiu em terras cariocas desde 1979, quando retornou do exílio, e em

1988 ocupou o cargo de Defensor do Povo da Cidade do Rio de Janeiro, na

administração municipal de Saturnino Braga (1986-1988). Sua função era, como

representante da sociedade civil, ouvir reivindicações, denúncias e sugestões dos

cidadãos, buscando soluções para as mesmas e providenciando o encaminhamento para

os órgãos responsáveis, atuando, portanto, como ponte entre a sociedade e a

administração municipal192. Já em 1990, através de artigos na imprensa, o criador da

Agenda defendia publicamente o combate à pobreza e à desigualdade social, o

atendimento às necessidades vitais de todo cidadão, a implementação de uma política de

segurança que respeitasse os direitos civis de qualquer habitante da cidade, além do

atrelamento de qualquer projeto econômico a finalidades e objetivos sociais de geração

de emprego e distribuição de renda (PANDOLFI & HEYMANN, 2005).

Após as chacinas da Candelária e de Vigário Geral, Betinho participou

ativamente do Viva Rio, além de lançar o movimento “Se essa rua fosse minha”, em

defesa dos menores moradores de rua. Em 1996, capitaneou a mobilização em torno da

191 ONG criada em 1981 e uma das principais articuladoras da Agenda Social Rio. Para mais informações, ver http://www.ibase.br/. 192 O sociólogo abriu mão do cargo na administração de Marcello Alencar (1989-1993) sob alegação de que o prefeito concedia pouco prestígio e atenção a essa função.

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209

criação da Agenda Social Rio a partir de cinco metas, que representavam os cinco anéis

olímpicos, relativas a temáticas como educação, alimentação, abrigo para moradores de

rua, esporte e cidadania e integração das favelas à cidade, todas entrelaçadas pela

inclusão social. Tais metas sensibilizaram parte da opinião pública, propiciando uma

articulação entre diferentes setores desta em prol do que o próprio Betinho alegava ser

uma novidade em meio às candidaturas para sede dos jogos olímpicos (idem).

Algumas considerações sobre a criação da Agenda Social Rio precisam ser

feitas. Primeiramente, ela foi pensada a partir de um gatilho, a disputa pela sede das

Olimpíadas, com amplo potencial mobilizador e de repercussão nacional e

internacional, capaz de suscitar representações acerca do cosmopolitismo da cidade e de

toda sua “aura de capitalidade” (MOTTA, 2000). E a disputa se deu em um momento

imediatamente posterior a acontecimentos, como a chacina da Candelária, que foram

simbolizados como sintomas de uma suposta “decadência do Rio”. Desse modo,

estariam reunidos alguns ingredientes necessários para recolocar a cidade em seu

pedestal de “vitrine”, em um momento de repercussão desfavorável para sua imagem,

acarretando um considerável potencial mobilizatório. Isso não quer dizer que os sujeitos

envolvidos no surgimento da Agenda estivessem interessados em ressignificar um

imaginário, em esfera nacional e internacional, sobre o Rio de Janeiro, em vez de

estabelecer um meio de intervenção na questão social. Porém, não se deve ignorar

certos significados passíveis de serem suscitados pela iniciativa, que serviriam como

fator mobilizatório de outros sujeitos sociais, para além do campo dos movimentos

sociais e das ONGs193.

193 Também é válido atentar que no momento de criação da Agenda, conforme anteriormente abordado, o campo de atuação das ONGs estava em franca expansão, consolidando uma forma própria de conceber a questão social brasileira, as relações entre Estado e sociedade, através de um léxico próprio de percepção e significação do mundo, operacionalizando campos e formas de intervenção.

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210

Sobre a figura do sociólogo Herbert de Souza, sua forma de atuação e todos os

significados a ela atribuídos, temos o depoimento de uma das atuais coordenadoras da

Agenda (depoimento de Nahyda Franca, 22/06/2009):

“(Betinho) era uma pessoa muito carismática, ele cultivava todo mundo que estava perto e, agora, ele era também uma liderança muito importante, ele tinha um caráter de líder mesmo, e sabia exercer isso com muita propriedade. E naquilo que a gente aposta como uma liderança importante aqui para o nosso país, e pelos nossos ideais de cidadania e de democracia, principalmente”. “(sobre o falecimento do sociólogo, poucos meses após o surgimento da Agenda) o próprio Betinho faleceu, e aí a gente ficou muito sem nosso mobilizador-mor, porque o Betinho era uma pessoa bastante conhecida pelo seu poder de mobilização popular, a partir de todas as campanhas que ele desenvolveu, e ele tinha uma capacidade muito forte de articular a mídia em torno dele, das bandeiras que ele pregava. Isso era um facilitador grande para a mobilização e a articulação política.”

Apesar de ainda ativo, o movimento abordado não possui o mesmo caráter

aglutinador de seu início. O depoimento acima revela como uma memória sobre seu

idealizador está carregada de simbolismo sobre uma liderança carismática, capaz de

grande articulação de diferentes atores em torno de seus ideais de cidadania e igualdade

social; a partir da sua figura e do universo que orbita em torno de si, esses ideais passam

a atingir um patamar para além do Rio de Janeiro. Nesse contexto, e destacando seu

alcance nos veículos de mídia, Herbert de Souza exerceria perfeitamente o papel de

liderança cujo discurso, que interpreta questões pertinentes à cidade do Rio, também se

projeta em um panorama nacional, considerando-se a possibilidade da extensão dessa

categoria para além do tradicional campo de partidos e eleições. A figura do líder

carismático, seu potencial de aglutinação e mobilização em seu entorno, assim como o

alcance de suas propostas, é um importante elemento para se entender o imaginário

político, sendo que o campo político do Rio de Janeiro não escapa à regra (MOTTA,

1999). Deve-se, igualmente, levar em consideração que o político não se restringe à

esfera partidária tradicional e à administração da máquina pública, perpassando práticas

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do cotidiano, outras formas de atuação individual e da sociedade civil (RÉMOND,

1996).

A identificação do movimento com a figura de seu criador pode ser confirmada

pelo seguinte artigo de Ciro Torres, sociólogo pesquisador do Ibase (TORRES, 1998:

2):

“O sociólogo Herbert de Souza nos ensinou – e, é óbvio, ensinará sempre! – uma incrível capacidade de indignação e mobilização frente aos problemas e às injustiças sociais que, muitas vezes, transformaram aquele frágil corpo em um gigante de ideias e ações. E é justamente este o caminho a seguir: utilizar a indignação para buscar uma grande mobilização na tentativa de mudar a sociedade e as pessoas. (...). Um certo método Betinho. Uma metodologia que busca, na criação de ações e no lançamento de campanhas, colocar nos meios de comunicação fatos políticos e sociais relevantes que iniciam uma verdadeira transformação da sociedade brasileira, tendo sempre em mente que podemos – e devemos – fazer a nossa parte e que estas ações tornam-se exemplares”.

O autor realça a capacidade que Betinho possuía de mobilizar diferentes atores,

o que, de fato, a Agenda demonstra em seu primeiro momento de existência. Nessa

concepção, somente a ampla participação e envolvimento de diferentes setores da

sociedade seria capaz de gerar um corpo orgânico apto a propor e implementar soluções

para os dilemas sociais prementes. No entanto, o mais interessante é notar a expressão

“metodologia Betinho”, utilizada como forma de caracterizar esse tipo de intervenção.

Essa construção discursiva associa diretamente a Agenda Social Rio à figura de Herbert

de Souza e pode ser vista como uma estratégia para garantir o capital simbólico que

detinha seu, agora falecido, idealizador e principal mobilizador.

No entanto, é preciso compreender o que se desejava alcançar com a

“metodologia Betinho”, ou seja, como se pretendia pavimentar um caminho para

intervenções sociais, que levassem à resolução dos problemas sociais, e construir um

campo de direitos. Para a Agenda (IBASE, 2001: 1):

“A perspectiva que orientava a ação procurava associar a preparação da cidade para a recepção às delegações olímpicas com a possibilidade de consolidar a resolução dos problemas sociais mais agudos e visíveis. Esta

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asociação materializava-se na constituição de cinco metas relacionadas com os cinco anéis olímpicos: educação de qualidade para todos, ninguém morando na rua, todas as crianças bem alimentadas, esporte e cidadania jogando no mesmo time, favelas urbanizadas e integradas à cidade” (grifos meus).

Foi desejo do criador da Agenda Social Rio que as cinco metas acima citadas,

bem como o objetivo de solucionar os “problemas sociais mais agudos e visíveis” da

cidade, fossem cumpridas, independentemente da escolha do Rio como sede194.

Contudo, é preciso compreender em qual território se pisa quando se fala em solução

dos “problemas sociais mais agudos e visíveis”. Como podemos perceber, os principais

entraves para o alcance da cidadania são colocados em diferentes eixos temáticos, que

podem ser sintetizados em três grandes grupos: acesso à educação de qualidade (meta

que leva o mesmo nome), saúde (“todas as crianças bem alimentadas” e “esporte e

cidadania jogando no mesmo time”) e moradia (“ninguém morando na rua” e “favelas

urbanizadas e integradas à cidade”).

Ao nos depararmos com esses temas, notamos algumas particularidades. A

primeira para a qual gostaria de chamar atenção é o fato de não haver qualquer recorte

espacial para a constituição de um público beneficiário, ou seja, não há um espaço da

cidade considerado específico como locus da miséria. Por mais que haja uma menção às

favelas, a mesma não possui predomínio sobre as demais, pelo menos nesse momento,

figurando como uma das metas. Outro espaço urbano mencionado é a própria “rua”, na

figura dos que a habitam. E os tópicos sobre “educação”, “saúde” e “esporte” não

resultam em delimitações restritas para grupos de beneficiários195.

194 Betinho chegou a criticar publicamente o Comitê Olímpico Brasileiro pela pouca atenção dada às propostas da Agenda em seus discursos públicos (PANDOLFI & HEYMANN, 2005). 195 Um exemplo da influência da conjuntura histórica na elaboração dessas proposições é a escolha, por recortes específicos, de moradores e crianças de rua, o que pode ser visto como resultado das reações da sociedade à chacina da Candelária, cujas seis vítimas, de um total de oito, eram menores de idade.

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Porém, gostaria de destacar a última meta colocada, a princípio, uma dentre as

outras cinco: favelas urbanizadas e integradas à cidade. Segundo declarado pela direção

do movimento (idem, 2001: 2):

“Foi definido, posteriormente, que ‘favelas urbanizadas e integradas à cidade’ passaria a ser a meta síntese e eixo de atividades que articula, aglutina, sinergiza e potencializa os esforços dos participantes. No Rio de Janeiro, a existência de espaços urbanos que sintetizam a um só tempo exclusão/inclusão, negação/afirmação, discriminação e orgulho, é parte da essência da cidade. Justamente por isso, as instituições participantes adotaram a ‘questão das favelas como elemento ordenador de um amplo conjunto de iniciativas, que tem o sentido mais geral de fortalecer a cidadania e os laços de solidariedade social’”.

A perda da sede das Olimpíadas de 2004 e o falecimento de Betinho pouco

depois foram elementos que levaram a uma reavaliação do movimento por sua direção.

Trata-se de dois acontecimentos que diminuiriam o potencial mobilizatório da

articulação, segundo a visão de Nahyda Franca (depoimento de 22/06/2009): “Então,

quando a gente perde essa figura, a gente ficou meio fragilizado pra continuar com esse

campo inteiro, e a própria mobilização da candidatura também foi embora”. Aqueles

que tomaram a frente das ações da Agenda se esforçavam para reafirmar a identificação

do movimento com seu falecido idealizador, a exemplo da expressão “metodologia

Betinho”, criada por Ciro Torres em seu já citado artigo. No entanto, houve uma

preocupação de delimitar os espaços de atuação da Agenda como uma estratégia para

tentar superar possíveis obstáculos pelos dois acontecimentos, considerados pelos

integrantes da Agenda como dois grandes fatores desmobilizatórios. Assim, foram

estabelecidos dois recortes. O primeiro diz respeito à escolha da região que foi

denominada Grande Tijuca como local de atuação196. O segundo, ao qual me aterei

agora, é a eleição das favelas como “meta-síntese”.

196 A questão da escolha da “Grande Tijuca” será discutida em uma seção específica deste capítulo, quando será realizada a análise do projeto Condutores de Memória.

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214

Além de um fato urbano, Lícia Valladares destaca que a favela também é uma

construção social. Ou seja, além de uma realidade concreta com a qual nos

confrontamos, há uma gama de representações sociais a partir dela construídas. Essas

imagens e construtos simbólicos têm sido de responsabilidade de diversos atores ao

longo do século XX: higienistas, jornalistas, administradores públicos, assistentes

sociais, membros da Igreja, cientistas sociais, dentre tantos outros (VALLADARES,

2005). Essa diversidade de agentes criou um corpo complexo de percepções e

significados sobre esses espaços, que perpassam elementos que vão da negação e

marginalização à compreensão e problematização.

A escolha dessas áreas como síntese da exclusão é a sua eleição como palco de

reflexão e proposição de medidas para o drama social que atinge a cidade. Ou seja, é

mais uma construção social sobre as favelas. Desse modo, vemos a compreensão destas

como um campo para pensar o espaço urbano, construir projetos para as suas

deficiências e buscar o alcance para que os mesmos possam ser adotados pelo poder

público como abordagens de atuação. Em seu Plano de Ação Estratégico para a Área da

Grande Tijuca, a Agenda Social revela o “objetivo de contribuir na formulação e

implementação das políticas públicas sociais que estão sendo propostas pelo governo de

Estado para a área da Grande Tijuca” (AGENDA SOCIAL RIO/VIVA RIO, s/d: 1).

Tal opção por esse local de atuação é uma construção social, e toda construção

social é historicamente contextualizada. Assim, a escolha da Agenda pelas favelas é uma

forma de entender o debate social dos anos 1990, assim como os interesses nele

envolvidos. Nesse caso, já foi brevemente mencionada a questão da Operação Rio, bem

como as opiniões veiculadas por órgãos de imprensa de grande circulação, que

associavam às favelas a pecha de território da criminalidade, que ameaçaria a “ordem

legal vigente no asfalto” (LEITE, 1998, COIMBRA, 2001). Boa parte desse tratamento

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215

pela grande imprensa persistiria durante a década, através do tratamento discursivo da

metáfora da guerra, um dos elementos que embasaria o desrespeito aos direitos

constitucionalmente garantidos de grande parte da população do Rio de Janeiro, os

moradores das áreas em questão (LEITE, 2000 e 2001). Devem ser igualmente

mencionadas as gratificações por bravura implementadas durante o governo estadual de

Marcelo Alencar (1995-1999) (CANO, 1998).

Os fatores explicitados acima servem de reforço para a visão de que a

delimitação do local de atuação da Agenda pode ser encarada como uma escolha

política, uma forma de se posicionar perante um debate de considerável relevância em

uma dada conjuntura histórica pela qual passava a sociedade carioca: o tema das

favelas, sua relação com a problemática da violência urbana e como tal debate afetou

toda uma discussão sobre a temática dos direitos de cidadania197.

Tal fato não significa que os espaços em questão devam ser encarados como

áreas de exclusividade da miséria, pois isso não reflete sua real complexidade, segundo

as palavras de Lícia Valladares (1999: 68):

“Insistimos que as favelas são áreas pobres, mas não são as únicas áreas pobres da cidade, pois é inquestionável a existência de pobreza fora das favelas. Tampouco são, necessariamente, mais pobres do que todos os outros bairros, pois existem áreas onde a concentração dos muito pobres é maior do que nas favelas e onde a presença de equipamento urbano é menor. Ainda é bom lembrar que as favelas não mais reúnem, exclusivamente, uma população pobre nem os mais pobres entre os pobres, os sem-teto. Segmentos médios, e agumas vezes até mais altos, podem ser ali encontrados, apontando uma estrutura social onde já podemos identificar fortes sinais de segmentação e mobilidade social”.

Ou seja, existem outros setores da sociedade capazes de serem postos como

elementos provocadores do debate sobre a questão social, a exemplo dos moradores de

rua. Porém, ao refletir sobre a opção da Agenda Social, não se deve seguir uma linha de

197 A pesquisa do Iser anteriormente mencionada pode ser compreendida dentro desse contexto, o que demonstra posicionamento semelhante de entidades de perfil próximo ao da Agenda, através de iniciativas próprias.

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216

raciocínio que busque, segundo a feliz expressão do historiador francês Olivier Pétré-

Grenouilleau, uma “escala Richter dos sofrimentos”, e sim compreendê-la como um

movimento inserido dentro das condicionantes de um contexto histórico específico.

Um indício de como a figura de Betinho pode ser vista como uma alternativa à

associação das favelas à esfera da violência, e sua consequente aceitação do desrespeito

aos direitos dos moradores dessas áreas, se configura no fax enviado pelo bancário Joel

Bueno e Silva a Betinho. No documento, é narrada uma ocorrência referente à Operação

Rio que se passa em Copacabana, na qual um rapaz de 20 anos é espancado por cinco

militares. O bancário, assim como sua companheira, que também presenciou a cena, ao

tentar esclarecer o que ocorria, é levado ao militar que respondia pelo comando da

operação. Conforme registrado no documento (Acervo Herbert de Souza/CPDOC/FGV,

série IBASE, II – 12 – A2: 1-3):

“Como falamos em direitos humanos e liberdades civis, ele afirma que estamos em uma região militar, ‘zona de exceção’ onde os militares tudo decidem. ‘Unilateralmente?’, pergunta minha companheira. ‘Unilateralmente’, confirma o coronel. Finalmente, ele nos convida a nos retirarmos. Como recusamos esse convite, ele ordena uma escolta armada para nos levar à força até os limites da zona militar. (...). Como todo habitante do Rio de Janeiro, acompanhei com angústia a escalada da criminalidade. Fiquei apreensivo às primeiras informações sobre a intervenção do exército, mas o discurso democrático do comandante geral da operação e um noticiário em geral tranquilizador me deixaram esperançoso. Tenho que admitir que cometi um erro grave” (grifos meus).

O fax obteve uma resposta em 4 de janeiro de 1995, informando que o mesmo

tinha sido levado ao conhecimento de Betinho, que o pôs em discussão em uma reunião

com representantes do Viva Rio. A atitutude de Joel Bueno e Silva revela uma

percepção da violência e da abordagem oficial, representada pelo exército, nesse caso

específico, diferente das representações contidas nos jornais analisados por Márcia Leite

(1998) por conta da Operação Rio. Mesmo que, em um primeiro momento, ele tenha se

tranquilizado em meio ao “discurso democrático” e do “noticiário geral tranquilizador”,

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217

revela sua indignação à clara violação dos direitos de um cidadão, assim como tenta

intervir, sem sucesso, para reverter tal situação.

Com relação ao envio do fax, é interessante se perguntar: o que teria motivado o

bancário a realizar tal denúncia? Parte da resposta está no próprio documento (idem):

“O combate ao autoritarismo tem que ser travado em seu nascedouro – depois pode ser

tarde demais”. Dessa forma, temos o objetivo do ato: “combater” uma atitude arbitrária

por parte dos representantes do poder público. O caminho escolhido para a inciativa foi

fazer a situação descrita chegar ao conhecimento de uma pessoa pública com histórico

de militância social. Com isso, não é de todo equivocado supor que sua atitude tivesse

sido motivada pelo desejo de provocar uma ação concreta que, por sua vez, indicasse

sentido inverso às ações feitas pelas autoridades, que eram apoiadas por parte da

sociedade, no tocante às favelas e sua relação com a violência.

Em texto de 1993, Betinho aborda a problemática da violência da seguinte

forma (SOUZA, 1993):

“A violência estará sempre presente onde não houver cidadania. A violência não é um caso de polícia, mas de cultura, e seu remédio chama-se exercício amplo e irrestrito de solidariedade, através do qual se constrói a democracia. (...) O Rio que está sendo apresentado como a imagem da violência vai demonstrar que pode curar esse mal pela raiz, que não usará do mal para se curar. (...). Vai dizer sim a um novo e fundamental modelo de ser, onde a sociedade civil vai reeducar o próprio poder público” (grifos meus).

Conforme visto pelas passagens grifadas, o sociólogo não comunga com a

postura – pelo contrário, condena – puramente repressiva no campo da violência urbana.

A solução encontrada se daria pela via do reforço de laços de solidariedade, em

consonância com diretrizes gerais de diversas ONGs, que se colocam como

formuladoras de políticas e modos de intervenção social. Betinho afirma a necessidade

de que tal postura deve ser adotada pelos órgãos públicos, sobretudo os ligados às

políticas de segurança. É válido notar que, pela data estipulada, a questão levantada por

Herbert de Souza ocorreu no período próximo às chacinas da Candelária e de Vigário

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218

Geral, acontecimentos que, conforme visto, foram fundamentais para ressignificar a

temática da violência na cidade e sua relação com a mesma.

A Agenda Social também intenciona consolidar essa concepção sobre a questão

da violência em contraponto à visão comumente dominante no aparato governamental

(AGENDA SOCIAL RIO/VIVA RIO, s/d: 1)

“(...) esforço conjunto de mobilização dos atores da sociedade civil e governamentais, no enfrentamento da questão da segurança pública. (...). A política de segurança pública é consensualmente vista numa perspectiva mais ampla, ou seja, é preciso que se conjugue a ação policial a outras ações socioculturais e educativas para as comunidades e bairros que hoje sofrem com a violência urbana (grifos meus)”.

Como um dos temas centrais da agenda pública, a violência urbana tem

provocado uma carga de sentimentos de insegurança e medo. Nesse caso, estamos

tratando de uma categoria de senso comum, a “violência urbana”, que engendra uma

série de simbolismos e práticas. Para além do complexo de atitudes definidas como

crime, legal e administrativamente, essa categoria abarca a oposição entre o binômio

integridade física/garantia patrimonial e a força física, esta interpretada como meio para

atingir objetivos e instrumento de regulação entre relações individuais e sociais. A partir

dessa oposição, há uma ruptura da normalidade e uma alteração da rotina em seus

aspectos cognitivo, instrumental e moral (SILVA, 2008).

Esse debate, não apenas no caso do Rio de Janeiro, ocorre em uma arena

específica: nas cidades. Betinho, em texto de 1993, entende que: “As cidades

constituem hoje o lugar do encontro de todos os desencontros de nossa história, é onde

se encontra a encruzilhada e a saída através da luta da cidadania” (SOUZA, 1993: 1). A

cidade tem desempenhado função determinante para reprodução das relações de

produção e ganhos econômicos dentro da atual configuração espacialmente dispersa e

globalmente integrada da economia internacional (SASSEN, 2001). Partindo da

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219

configuração urbana de Los Angeles, Mike Davis (1991)198 apresenta um modelo de

cidade marcado por forte padrão de segregação espacial e simbólica. A década de 1990

teria revelado significativo investimento em sistemas de segurança física e controle

arquitetônico das fronteiras sociais. Desse modo, é construída uma percepção social da

ameaça que engendra uma mobilização por segurança, resultando em esforços para o

confinamento de confrontos em fronteiras étnicas ou de classe, além da construção de

representações negativas sobre áreas de gueto por parte da classe média. A mídia exerce

papel determinante nessa equação, através da formulação e veiculação de visões que

contribuem para o que o autor se refere como “apartheid espacial”199 (DAVIS, 1991:

211).

Desse modo, vemos a cidade sob duas óticas. A primeira diz respeito à sua

centralidade na atual configuração globalizada da economia, sendo palco para

circulação e reprodução de capital e relações de produção. Ao mesmo tempo em que o

papel central da cidade para a sociedade contemporânea é posta em foco, há uma outra

face mais obscura da moeda, referente à segregação de seu espaço a partir do

investimento simbólico em torno da temática da violência urbana e do confronto. A

atuação da Agenda Social Rio deve ser objeto de reflexão a partir desse contexto, assim

como suas propostas de intervenção embasadas pelo seu modo de pensar o espaço

urbano e suas fronteiras simbólicas e, no caso destas últimas, em como superá-las.

Eleger a problemática das favelas como sua “meta-síntese” não significou o abandono

de suas preocupações no que diz respeito à educação ou à questão da infância, mas

198 É preciso atentar para a data do livro de Mike Davis, período contemporâneo ao debate sobre a violência urbana no Rio de Janeiro e à questão das favelas, o que demonstra um certo caráter global da discussão referente à forma como a percepção da violência afeta padrões de pensamento, sociabilidade e intervenções na esfera urbana. Deve-se, igualmente, estar atento a certas semelhanças com o caso carioca nos comentários que seguirão no corpo do texto, como a importância das representações produzidas pela mídia para essa problemática. 199 Deve ser notado que o modelo proposto por Davis a partir de Los Angeles data do início da década de 1990, período no qual o Rio de Janeiro passa por debate semelhante, o que demonstra a abrangência do tema.

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220

pretendeu contextualizar aqueles espaços dentro de uma conjuntura histórica de debates

públicos, em prol da superação de barreiras simbólicas e da busca por uma igualdade de

acesso a direitos.

O projeto Condutores de Memória: uma forma de intervenção social na Grande Tijuca

O projeto Condutores de Memória foi realizado entre os anos de 1999 e 2006200

com o objetivo de preservar a memória de moradores de favelas da Grande Tijuca201,

através da coleta de depoimentos de moradores antigos e da constituição de um acervo

documental. Desse modo, a intenção dos realizadores da proposta era o seguinte

(CUNHA, 2006: 7): “Por meio da memória coletiva desses espaços urbanos, as pessoas

que neles moram refazem sua própria trajetória, reelaboram sua experiência de vida e

transformam a dura realidade na qual estão inseridas”. Entre os anos de 1999 e 2003,

foram realizadas 20 oficinas de memória202 nas favelas do Borel, Chácara do Céu,

Andaraí, Salgueiro e Formiga203, sendo quatro em cada uma. Nos anos restantes do

projeto, a equipe se dedicou à realização de palestras, participação em seminários e

capacitações (idem). A concepção e a implementação do projeto foram entremeadas

pelos dois panoramas debatidos nas seções anteriores a este capítulo: as consequências

da atuação do tráfico e a consolidação da atuação das ONGs, fatores que permearão os

objetivos e a metodologia adotados por essa proposta de resgate de memória.

200 Nas décadas de 1990 e 2000, é possível notar a realização de diversos projetos de memória de moradores de favelas, como a Rede de Memória da Maré, o Centro Histórico da Rocinha, o website Favela Tem Memória e outros. Para uma análise dessas propostas, bem como do papel dos sujeitos nelas envolvidos, ver COMUNICAÇÕES DO ISER, 2004, GRYNSZPAN & PANDOLFI, 2007. 201 Região que compreende os bairros da Tijuca, Praça da Bandeira, Alto da Boa Vista, Grajaú, Andaraí, Vila Isabel e Maracanã (SANTOS, LEITE & FRANCA, 2003: 4). 202 O caráter das oficinas será abordado posteriormente. 203 Como o objeto de minha pesquisa é a produção e o uso político da memória no morro do Borel, o foco de minha análise da atuação dos Condutores recairá majoritariamente sobre essa favela.

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221

Antes de focar na análise do projeto propriamente dito, gostaria de tecer algumas

considerações acerca da Grande Tijuca. Sobre a escolha dessa área para atuação,

podemos destacar a opção por certos componentes estratégicos percebidos pela própria

Agenda Social. O primeiro a ser destacado é o falecimento de Betinho e a forma como

esse ocorrido marca, até hoje, a memória dos envolvidos na iniciativa, como um

acontecimento que denotou perda de força e potencial mobilizatório, conforme visto

anteriormente. Outro fator ao qual deve ser dada atenção diz respeito à existência de

uma identidade própria no bairro, relativa, sobretudo, à classe média que lá habita. No

entanto, essa mesma classe média seria rodeada pelas favelas do local, fato que pode ser

compreendido, dentre outras possíveis interpretações subentendidas na fala da depoente

que citarei agora, como um objeto de tensão (depoimento de Nahyda Franca,

22/06/2009):

“(...) porque a gente não teria pernas, recursos financeiros, nem a figura do Betinho, pra mobilizar mídia e todos os atores pra cidade como um todo, então resolveu eleger uma parte da cidade. E pelo que consta nos documentos aí, porque eu já não participei disso, mas a escolha da Tijuca se deve primeiro a um lugar do Rio de Janeiro que tem uma concentração de favelas muito grande, em volta de uma classe média, e uma classe média alta, que tem uma coisa assim de bairrismo e de sentimento pelo seu local de moradia muito forte (...)”

Porém, é necessário dar a devida atenção à escolha dos bairros que formam o

que foi chamado de “Grande Tijuca”204. Primeiramente, não existe uma denominação

oficial, por parte do poder municipal, correspondente a essa área. Conforme explicitado

pelo próprio movimento, os locais escolhidos constam nos autos oficiais do município

como Regiões Administrativas VIII e IX, parte da área de Planejamento 2.2. No

entanto, parece ter sido uma escolha própria reunir esses bairros, que são, de fato,

bairros vizinhos e, por isso, compartilham certas semelhanças e relações. Mas é preciso 204 Com relação ao sentimento de “bairrismo” mencionado pela depoente, não é possível negar que exista uma representação forte e corrente na cidade sobre o que seria o “tijucano”. Mesmo assim, os limites dessa denominação, assim como seu real alcance, por si só já merecem um estudo particular.

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222

compreender o porquê da opção por esse local de delimitação, tendo em vista o próprio

desenvolvimento histórico da região, possuidor de uma série de particularidades205.

A construção desse recorte não se deu sem que houvesse uma reflexão acerca

das características e particularidades dessa região, objetivo do livro organizado por

Alexandre Santos, Marcia Leite e Nahyda Franca (2003)206. Nessa obra, a justificativa

da escolha pela atuação nesse local começa a ser delineada (SANTOS, 2003: 9):

“A simultaneidade de sua urbanização tem permitido a todas as pessoas que já moraram ou ainda moram lá percepções e vivências semelhantes. São memórias compartilhadas de paisagens urbanas (a percepção da dualidade bairro-favela na encosta e bairro-asfalto na baixada) e a vivência de problemas urbanos comuns (as consequências de chuvas intensas como enchentes, enxurradas e desmoronamentos), despertando também um sentimento de pertencimento, a partir dessas percepções e vivências, ao espaço Grande Tijuca”.

Desse modo, podemos notar que, a partir da concepção de experiências207

vivenciadas em conjunto pelos moradores dessa área, abre-se um campo para a

construção de “percepções e vivências semelhantes”. No caso, a passagem sublinha dois

205 A ocupação da Tijuca data do século XVI, feita por jesuítas (CARDOSO, VAZ, ALBERNAZ & AIZEN, 1984: 48). Desse modo, formou-se a região que mais tarde ficaria conhecida como Engenho Velho, referente aos bairros Maracanã, Tijuca, Andaraí e Vila Isabel, sendo aproveitados para a plantação de canaviais até o século XIX, quando o café passaria a ser o principal produto de plantio. A partir da década de 1920, as classes mais abastadas residentes no local começaram a migrar para bairros da zona sul, dando espaço a uma classe média formada por funcionários públicos, militares e profissionais liberais, igualmente em busca do status aristocrático da Tijuca. Essa aura de tradição e importância, que data da ocupação da área por antigos barões do império, acaba por criar uma marca diferencial da Tijuca com relação a outros bairros da zona norte, conforme demonstra uma fala de um antigo morador: “O sujeito de Vila Isabel queria ir para a Tijuca, o da Tijuca queria ir para Copacabana (grifos meus) (idem: 131)”. Desse modo, vemos que, mesmo estando numa escala preferencial inferior à zona sul, a partir das primeiras décadas do século XX, a Tijuca possuía um status de maior importância em comparação aos demais bairros da zona norte. É interessante observar que a obra organizada por Alexandre Santos, Marcia Leite e Nahyda Franca (2003), elaborada sob âmbito da Agenda Social Rio com o intuito de debater o local de atuação desse ator, possui um capítulo escrito por três autores da obra usada, nesta pesquisa, por mim como referência para um histórico sobre a Tijuca, no caso, Elizabeth Cardoso, Lilian Vaz e Mario Aizen. A escolha desses autores pode ser interpretada como uma tentativa de estabelecimento de diálogo com um saber previamente produzido sobre o local que a Agenda Social elegeu como espaço de atuação, uma vez que o livro sobre a Tijuca foi elaborado na década de 1980 e pertence a uma coleção premiada sobre histórias do bairro do Rio de Janeiro. 206 Os dois primeiros são professores da Uerj e integravam, respectivamente, os grupos de pesquisa Rede de Observadores Urbanos e Núcleo de Antropologia e Imagem. Essa atuação é mais um exemplo de perfis dos diferentes atores que a Agenda Social pretendeu abrigar, no caso, o universo acadêmico de produção de conhecimento e reflexão sobre as cidades. 207 Na perspectiva do autor, o termo é entendido da seguinte forma (TUAN apud SANTOS, 2003: 27): “Experiência é o termo que abrange as diferentes maneiras pelas quais uma pessoa conhece e constrói a realidade”.

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223

aspectos, a dualidade entre favelas e “asfalto” e “problemas urbanos comuns”,

elementos que possibilitariam a construção de uma identidade local, ou “um sentimento

de pertencimento”208.

Ainda segundo Santos (2003: 10):

“A possibilidade de utilizar esse sentimento de pertencimento ao conjunto de bairros, Grande Tijuca, para os propósitos da Agenda, está na origem de sua estratégia de atuação. (...) que faz uso das categorias espaço e memória (...) articuladas no seu modus operandi de maneira a estimular sentimentos de identidade e pertencimento nos(as) moradores(as) participantes. (...). Ao mesmo tempo, utiliza o espaço com outro significado, o de arena ou fórum, onde são traçadas estratégias de atuação local como formação política de “lideranças” comunitárias, educação ambiental, mobilização social por meio de fóruns de discussão política e cultural, reuniões para trocas de experiências e oficinas com atividades voltadas para o resgate da memória e muitas outras” (grifos meus).

Ou seja, conforme a passagem demonstra, temos a instrumentalização da

categoria memória, articulada à categoria espaço, transformada em uma ferramenta para

tentar superar as barreiras simbólicas, indicadas pela própria instituição, existentes entre

as favelas e as demais áreas dessa região, uma vez que, segundo a visão da Agenda, “a

inexistência de um marco legal para a delimitação entre as duas partes distintas do

bairro é o fato que fundamenta o discurso da Agenda Social que inclui a favela no

bairro” (idem: 24). Já foram abordados alguns aspectos concernentes às diferentes

barreiras simbólicas erguidas entre o morro do Borel e espaços da Tijuca, incluindo

favelas vizinhas. Como um desses aspectos, podemos apontar a construção midiática,

sob a lógica da metáfora da guerra (LEITE, 2001), da disputa entre quadrilhas desde os

anos 1980 e da atuação de Isaías do Borel. Contudo, devemos ter em mente que a

208 Gostaria de explicar que o próprio autor, mesmo com sua interpretação de uma identidade comum aos moradores da Grande Tijuca, reconhece as particularidades dos bairros que a formam, o que, segundo sua hipótese, não impediria a observação da existência dessa identificação pautada, justamente, na ideia de experiência e na reconstrução da memória sobre essas vivências (SANTOS, 2003: 27): “A reconstrução da memória, embora ponha em evidência as identidades partidas de cada bairro, aponta para a possibilidade de construir uma identidade única para a Grande Tijuca com base nas experiências” (grifos meus). De fato, a própria obra de Santos, Leite e Franca (2003) é um esforço de entender essas particularidades, dentro do que seria essa “identidade única”, uma vez que seus capítulos, além de apresentarem a noção de Grande Tijuca, abordam os bairros do Grajaú, Vila Isabel e Andaraí, além da praça Sáenz Peña, um dos espaços principais de sociabilidade e acesso a serviços do bairro Tijuca.

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atuação do tráfico no local, assim como em outros, trouxe consequências para os

padrões de sociabilidade compartilhados pelos indivíduos que habitam essas áreas em

disputa. A partir da percepção da atuação desses grupos ilegais, houve, igualmente, a

realização de iniciativas de políticas de segurança pública que reforçam a visão das

favelas como “território inimigo”. Muitas vezes, tais políticas desrespeitam, ou

contribuem para tal, direitos constitucionalmente assegurados dos habitantes desses

espaços.

O texto citado também revela alguns dos caminhos da atuação construída pela

Agenda. O primeiro diz respeito ao próprio caráter do movimento, ou seja, sua

constituição enquanto fórum, de criar espaços e vínculos entre diferentes atores para o

desenvolvimento de projetos distintos, ainda que interligados, dentro de uma proposta

de ação. Além disso, podemos observar o intuito de capacitar moradores para que

possam atuar como “lideranças” locais, o investimento na temática da educação

ambiental, além da realização de encontros voltados “para o resgate da memória”. Esta

possui um caráter aglutinador a partir de situações vividas por um grupo, ou

transmitidas para membros deste a partir de redes de sociabilidade (POLLAK, 1992).

Tal característica, percebida pela Agenda Social, é utilizada como ferramenta no campo

das significações entre as diferentes visões concorrentes sobre as favelas e sua relação

com o espaço urbano. O objetivo desse uso é, conforme visto, estabelecer laços de

convívio social que não excluam ou coloquem empecilhos para a participação dos

moradores de favelas nesse mesmo convívio, possibilitando um campo de atuação,

através de propostas de intervenção desses mesmos moradores, para o alcance dessa

finalidade, sendo essa a função a ser desempenhada pelo projeto Condutores de

Memória dentro da proposta mais ampla da Agenda Social Rio.

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225

O meu lembrar pelos meus direitos: análise do projeto

A origem do Condutores de Memória se encontra em um curso, realizado em

novembro de 1999, organizado pela ONG Gestão Comunitária, uma das componentes

da Agenda Social Rio (CUNHA, 2006: 11). O curso se encaixava dentro da proposta da

Agenda de “formação de lideranças”, abordando os seguintes temas: “formação do

espaço urbano e exclusão social, direitos coletivos e organização local, elaboração e

gestão de projetos, educação e meio ambiente, segurança pública, saúde coletiva,

relações de gênero e saúde comunitária” (idem, ibidem). Ao final do curso, os

participantes deveriam apresentar um projeto, e Ruth Barros, Maria Aparecida

Coutinho, moradoras do Borel, e Mauriléa Januário Ribeiro, moradora da Casa Branca,

elaboraram a proposta que deu origem ao Condutores (idem: 12).

Gostaria de chamar atenção para o perfil dos diferentes atores envolvidos, em

diferentes graus, no surgimento da iniciativa. Temos a ONG Gestão Social, três

moradoras de favelas, além da própria Agenda Social, que, embora não seja

propriamente uma instituição atuante, mas um fórum de debates para o surgimento de

propostas, integra diferentes instituições. De fato, tem sido comum o envolvimento de

atores de diferentes perfis na implementação de projetos de memória de favelas209 que

surgem nos anos 1990 e 2000210. No caso do Condutores, essa situação terá influência

209 Mario Grynszpan e Dulce Pandolfi (2007) chegam a atentar para o que seria uma diferença entre memória em favelas e memória de favelas. A primeira seriam iniciativas, muitas vezes de âmbito individual ou privado, de guardar documentação ou objetos pertinentes ao histórico de uma favela, além da própria prática de transmissão oral da memória. No entanto, esse ato seria permeado por quadros sociais, coletivos (HALBWACHS apud GRYNSPAN & PANDOLFI, 2007). A segunda se refere aos projetos de reconstrução de memória, influenciados por processos de seletividade baseados em critérios de relevância para os sujeitos que deles se responsabilizam. Sujeitos que, muitas vezes, tomam a concepção de memória em favelas como base para seu desenvolvimento, acabando por torná-lo coletivo, ao realizarem a apropriação desse conteúdo. 210 Tal pluralidade, inclusive, pode levar a se pensar na questão de agentes externos (ONGs, partidos políticos, igrejas, intelectuais e a mídia) e internos (os próprios moradores) envolvidos nessas iniciativas. Essa configuração pode gerar tensões em relação ao que seria uma certa legitimidade de fala sobre as favelas, reivindicada pelos “de dentro” (agentes internos), sendo que as fronteiras que separariam esses

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226

no que se refere à metodologia de ação adotada e à concepção do objetivo de sua

iniciativa211.

Nesse caso, é importante chamar atenção para a entidade responsável pelo curso

sob o qual nasceu a proposta, a Gestão Comunitária. Segundo Patrícia Gouveia,

fundadora e coordenadora da instituição durante cinco anos, a entidade surge em 1997

com o seguinte perfil (depoimento de Patrícia Gouveia, 19/09/2009):

“A gente tinha uma concentração na área de saúde sexual e reprodutiva, que foi muito bem sucedida. Até o termo, na época, não tinha, a gente agregou, porque tem uma tradição na área de saúde reprodutiva muito intervencionista, então a gente tentou trazer a discussão da sexualidade, que depois ficou uma coisa bem comum. Na época, eu fui consultora do Ministério da Saúde, consultora ad hoc, de programas de prevenção pra comunidade. Então a gente tinha um enfoque muito grande pra essa coisa que a gente chama de saúde sexual reprodutiva, muito também porque o Olinto Pegoraro tinha uma tradição muito grande na área da saúde, então a gente tinha uma inserção facilitada, e geração de trabalho e renda”.

A referência a Olinto Pegoraro se deve ao fato de que a Gestão surge a partir de

uma articulação que data de um projeto coordenado por ele, na virada da década de

1980 para 1990, que contou com a participação de Patrícia Gouveia, futura

coordenadora da Gestão Comunitária, e Marize Cunha, que dará suporte ao Condutores

de Memória. Trata-se do projeto “No fio da navalha: memória histórica e convívio

social no morro do Borel” (idem), que visava, justamente, construir um resgate da

memória de moradores antigos do Borel. A iniciativa se dá a partir de um grupo que

atuava com “contação de histórias”212 (depoimento de Marize Cunha, 31/07/2009):

dois perfis não podem ser consideradas como rígidas ou intransponíveis (GRYNSZPAN & PANDOLFI, 2007). 211 Ruth Barros, Mauriléa Ribeiro e Maria Aparecida Coutinho eram as responsáveis pela execução direta do projeto, além de articularem a realização das oficinas com os moradores, mobilizando os participantes. Além delas, fazia parte da equipe uma profissional com formação na área das Ciências Sociais, que atuava com o intuito de acompanhar a realização das atividades, além de debater a dinâmica das mesmas e auxiliar na elaboração de projetos. Já ocuparam essa função Mariana Cavalcanti, Marize Cunha e Neiva Cunha, atualmente professoras e pesquisadoras, respectivamente, do Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV), Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz) e do Departamento de Ciências Sociais e Educação, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). 212 Prática ligada à arte/educação, relacionada à interpretação a partir da oralidade, trabalhando, em grande parte, com um universo lúdico.

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227

“Tinha um grupo, junto com dois amigos meus, chamados Contadores de História, no IFCS213 (onde se bacharelou e licenciou em História), quando a gente estava terminando a faculdade, por volta de 1987, e a gente tinha uma perspectiva de trabalhar de uma forma mais diferenciada, em que se articulasse o conhecimento acadêmico, mas com intervenção, (...) e aí fomos convidados pelo Olinto, ex-padre, professor Olinto, que era da UFRJ, ele era da Filosofia do IFCS e chamou a gente pra trabalhar, fazer a história do Borel. A gente montou (...) um projeto pelo CNPq214, que foi aprovado, e começamos o trabalho...”

Sua metodologia é explicada da seguinte forma (depoimento de Patricia

Gouveia, 19/09/2009):

“(O objetivo) era trabalhar a memória da comunidade do Borel, o recorte era o Borel, em cima da fala dos moradores, trabalhando essa coisa intergeracional, porque, assim, são falas tão diferenciadas, dos jovens e dos mais velhos. Só que isso mudou, foi mudando ao longo do tempo, a gente terminou por uma questão de execução, e pelo dinamismo mesmo, a gente não conseguia dar conta disso. Então, a gente dividiu, por exemplo, primeiro a gente encontrou uma realidade muito mais complexa do que a gente imaginava, geográfica, política, culturalmente, socialmente, então a gente falou: ‘Epa, não vai dar conta disso!’ Começou, por exemplo, na Chácara do Céu, que era no fim do Borel, que era uma comunidade que estava se formando como autônoma, na verdade era uma extensão do Borel, mas por mil questões de mercado, de tráfico, enfim, de geopolítica, começava a se diferenciar, a ser uma outra comunidade, não a comunidade do Borel”.

Portanto, é interessante observar a existência prévia de uma experiência de

coleta de relatos de moradores antigos nessa área por parte de integrantes que

assessoravam as três moradoras responsáveis pelo Condutores de Memória. Contudo,

ressalte-se que a concepção dessa proposta, bem como os principais aspectos de

planejamento e execução, era atribuída às três idealizadoras do projeto (depoimento de

Marize Cunha, 31/07/2009): “A gente tinha clareza de que o Condutores era um projeto

delas (Ruth Barros, Mauriléa Ribeiro e Maria Aparecida Coutinho)”.

Havia uma dinâmica de reuniões entre o grupo de moradoras idealizador dos

projetos e os responsáveis pela supervisão e assessoria técnica da proposta, conforme

mostra o depoimento de Mariana Cavalcanti (depoimento de 24/09/2009), uma das

213 Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 214 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, órgão federal de fomento à pesquisa.

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228

primeiras coordenadoras do Condutores: “A gente fazia reuniões na Gestão,

normalmente quando estava perto de alguma atividade (...) sempre tinha essas reuniões

antes, na Gestão, para planejar, aí, enfim, tinha o campo, né?” A partir dessa rotina de

encontros, não seria de todo equivocado supor que a troca de experiências abordasse

situações ocorridas durante o projeto “No fio da navalha”, a partir da presença de

Marize Cunha, que acabaram por influenciar a metodologia de ação do Condutores215.

Na memória dos agentes que participaram da proposta com o perfil de realizar

supervisão técnica, podemos observar o projeto “No fio da navalha” como um marco

cuja influência pode ser vista como um ponto de partida para o Condutores216. Contudo,

as moradoras envolvidas chamam atenção para outro marco que teria influenciado não

apenas a formação de uma rede de agentes comunitários que passaria a atuar dentro do

âmbito da Agenda Social Rio, mas cuja visibilidade seria uma das causas que as fariam

pensar na proposta de resgate de memória em questão. No caso, refiro-me ao programa

Favela-Bairro.

O impacto do Favela-Bairro pode ser caracterizado de duas formas, segundo a

memória de Ruth Barros (depoimento de 15/01/2010).

“(...) o que teve, assim, de mudança, na favela, foi... Pavimentação, muitos becos que foram abertos, e que não tinha como você chegar, contenção, aqui foi feita muita contenção. Muita contenção. (...) as contenções que foram feitas na Vila da Preguiça (...) porque era muita casa, muita casa que estava

215 Tal interpretação ganha corpo a partir do depoimento de Marize Cunha (depoimento de 31/07/2009), que menciona sua participação de leitora crítica e formuladora de sugestões: “O meu papel no início era um pouco problematizar. Eu li o projeto, levantei algumas questões e meio que dei alguma consultoria técnica, vamos rever isso aqui e tal”. Outro ponto de reforço para essa visão é a declaração de uma das supervisoras de que as moradoras em questão apresentavam a postura de buscar um certo tipo de conhecimento a partir do convívio com profissionais detentores de um perfil de formação diferente dos seus (depoimento de Neiva Cunha, 14/07/2011): “Quando eu recebi o convite para supervisionar as meninas, isso começou também a ganhar sentido, porque elas tinham uma enorme curiosidade de entender e de conhecer mais, saber mais. De compreender melhor esses processos que teriam dado origem ao modelo urbano que a gente tinha no Rio de Janeiro. Aí, da própria formação das favelas, de constituição desse espaço urbano. E eu comecei a discutir com elas alguns textos (...)”. 216 Essa visão fica mais clara no depoimento de Patrícia Gouveia (depoimento de 19/09/2009): “(...) do ponto de vista pessoal, as pessoas agregam valor às coisas, assim os usos que as pessoas fizeram, e aí eu digo os usos mesmo, não acho à toa que a Ruth tenha muito tempo depois pensado em fazer um trabalho que é, para mim, fantástico, quase vanguarda (...) a questão dessa memória local, a valorização da memória, e essa perspectiva de empreender com a memória, isso eu acho muito vanguarda, e não acho que é à toa, eu acho que isso tem a ver com o que a gente fazia, embora tenha que deslocar no tempo”.

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229

em risco (...) foi feita muita escadaria, melhoras de becos, aquele... Foi feito ali em cima... Aquela, foi feita aquela praça da Bíblia (...)”

Nesse caso, nota-se a presença das melhorias de infraestrutura feitas na favela,

diminuindo as áreas de risco e criando novas áreas de lazer e sociabilidade. No entanto,

houve igualmente contribuição para a formação de novas referências para os habitantes,

e, por conseguinte, o surgimento de lideranças comunitárias não necessariamente

ligadas às associações de moradores (Depoimento de Mauriléia Ribeiro, 23/08/2009):

“Inclusive passamos a ter maior visibilidade, a equipe, depois com essa ampliação, a equipe passou a ter contatos com o local onde a gente atuava. Você era conhecido do posto de saúde, a gente era uma referência da comunidade, e passou a ser referência pra qualquer instituição, era agente comunitário”.

A Agenda Social reconhece que programas como o Favela-Bairro “rompem com

paradigmas anteriores, que se desenvolviam num campo onde a remoção ou a

erradicação das favelas apresentavam-se como diretriz principal” (IBASE, 2001: 25).

Porém, afirma que os mesmos não resolvem as “demandas nos campos da saúde,

educação, cultura, esporte e lazer, oportunidades de geração de trabalho e renda” (idem:

26). Conclui que, “nas favelas do Rio, apesar da presença importante do aparato

governamental, sua ação impacta pouco as condições sociais das localidades e mantém

praticamente intocadas as desigualdades”, afirmando que o “Estado não poderá resolver

sozinho todas as questões colocadas. Da mesma forma, não é possível prescindir da

atuação governamental” (ibidem, idibidem)217.

Contudo, podemos refletir sobre a possibilidade da atuação estatal ter permitido

um campo fértil para a implementação de projetos da própria Agenda, por ter deixado

configurada uma rede mobilizada de agentes comunitários e que foi, de fato,

217 Portanto, conforme visto, a Agenda se coloca como um agente necessário para atuar em áreas às quais o Estado não tem apresentado soluções para problemas concernentes à desigualdade social nas favelas. É preciso ressaltar que tal constatação realizada pela organização não a coloca em um polo oposto à máquina estatal, mas como uma importante parceira, como é comum na atual forma configurada de atuação dos órgãos que formam o chamado Terceiro Setor, dentre eles, as ONGs (NAVES, 2003).

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230

aproveitada pela articulação218. Tal utilização pode ser pensada a partir do depoimento

de uma das idealizadoras do Condutores de Memória (Depoimento de Mauriléia

Ribeiro, 23/08/2009):

“Geralmente se procurava o Favela-Bairro, secretarias, para estar entrando com algum projeto extra, alguma coisa. A Agenda Social, ela entrou nesse espaço aí, o Ibase entrou, aproveitando aquele momento do Favela-Bairro. Todo mundo estava envolvido, querendo benefício e, na verdade, pra promover uma discussão”.

A visibilidade trazida pelo Favela-Bairro fez com que os locais beneficiados

passassem a receber visitas periódicas de técnicos envolvidos no projeto. Com isso,

temos a presença em favelas de sujeitos de diferentes origens, que desconheciam o local

para o qual contribuíam para a alteração da paisagem (depoimento de Ruth Barros,

21/01/2009:

“Eu e Mauriléia, a gente já trabalhava como servidora pública na época no Favela-Bairro, e o Favela-Bairro estava aqui dentro da Grande Tijuca. Então era o “boom” do momento, em que todas as obras do Borel estavam sendo feitas, na Chácara do Céu, na Formiga, nessas comunidades por aqui todas, no Andaraí, era o grande “boom” do Favela-Bairro. Então, estava acontecendo tudo nessa época, e nós começamos a observar que a própria prefeitura, o pessoal lá do departamento de comunicação, trazia pessoas de fora do próprio BID219, e pessoas de outros lugares que queriam visitar as comunidades (...). Essas pessoas que vinham, como na época eu era supervisora, eu trabalhava na Grande Tijuca, sabia tudo sobre essas comunidades onde estavam acontecendo obras (...) eles perguntavam para a gente... Sempre quando tinha visita o pessoal avisava a gente, avisava a Mauriléia, que na época era técnica, e avisava que ia ter visita dia tal, ‘eu gostaria que vocês fossem, pra vocês falarem um pouquinho’, e para a gente sempre eles perguntavam ‘por que Borel, esse nome Borel?’”

Essa curiosidade observada, segundo a memória de Ruth Barros, teria sido o

gatilho para pensar a proposta, inicialmente com caráter de geração de renda e voltada

para um público específico (idem):

“E os pontos também que as pessoas pediam para a gente levar... ‘Eu quero ir nos locais que vocês acham interessantes’, tipo a bica do Borel, que era a bica que todo mundo falava, ‘lá no Terreirão tem a bica; na Chácara do Céu vai lá na igreja’. É difícil porque é uma trilhazinha, ‘eu quero ir lá assim mesmo,

218 Sem falar nas melhorias de infraestrutura nas favelas, facilitando formas de comunicação e acesso aos moradores. 219 O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) foi um dos financiadores do Favela-Bairro.

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231

como é que a história disso aqui?’ O pessoal sempre queria saber, então a gente começou a observar aquilo (...) e eu, a Mauriléia e a Cida220 (...) ‘por que a gente não faz um projeto sobre guia turístico para as comunidades, não para a rua, mas para as comunidades?’ Porque a nossa intenção era fazer um projeto com adolescente, onde eles aprendessem tudo sobre a comunidade, sobre a história da comunidade, a memória da comunidade, a história, tudo, e depois eles fossem os guias dessas pessoas que viessem, seriam guias turísticos na comunidade, a gente pensou até isso, colocamos até lá, guias turísticos na comunidade, um projeto para adolescente”221.

Ao nos debruçarmos sobre o surgimento do Condutores de Memória, podemos

observar sujeitos de diferentes perfis envolvidos em sua gênese, que podem ser

enquadrados dentro da perspectiva de agentes internos e externos, comum às propostas

de resgate de memória de favelas contemporâneas ao projeto (GRYNSZPAN &

PANDOLFI, 2007). Porém, possíveis tensões referentes à questão de quais agentes

teriam maior legitimidade para falar sobre as favelas, os “de dentro” ou os “de fora”

(idem), são diluídas ao máximo, tendo em vista a postura das supervisoras que atuaram

ao longo do projeto, bem como dos integrantes da coordenação da Agenda Social, de

darem o crédito da proposta para as três moradoras que a pensaram inicialmente, bem

como autonomia em sua condução. Desse modo, possibilitou-se o surgimento de uma

dinâmica de trabalho cooperativa, na qual sujeitos de diferentes perfis puderam

estabelecer uma metodologia de atuação a partir de trocas de experiências práticas,

inclusive as que surgem ao longo do desenvolvimento da proposta.

Assim sendo, quando da implementação do projeto, a abordagem inicialmente

pretendida pelas moradoras, ligada à formação de guias turísticos, foi sendo substituída

por uma outra metodologia, a das “oficinas de memória”, vistas como encontros “nos

quais as lembranças da comunidade pudessem ser levantadas e discutidas”222. É

220 Apelido de Maria Aparecida Coutinho. 221 Na década de 1990, temos o despontar das favelas como roteiros turísticos explorados por agências do ramo. A maior referência dessa atividade tem sido a favela da Rocinha, que chega a receber até dois mil turistas por mês (FREIRE-MEDEIROS, 2006: 53). Para um debate mais aprofundado sobre as favelas como roteiros turísticos, ver FREIRE-MEDEIROS, 2009. 222 A partir da experiência realizada na favela do Borel, primeira a ser contemplada, estabeleceu-se a metodologia de realização de quatro oficinas: “Recordando a História”, “Buscando a História”,

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232

interessante observar que a metodologia de ação não constitui um receituário rígido a

ser seguido, podendo abrir espaço para a espontaneidade das responsáveis pelo

direcionamento dos encontros e podendo vir a ser, inclusive, parte da metodologia a ser

adotada futuramente223.

A partir do material coletado e registrado das oficinas, a equipe reuniu um

acervo documental sobre do qual foram elaborados dois produtos: um vídeo e um

livro224, datados de 2001 e 2006, respectivamente. Trata-se de dois registros que visam

tornar material a memória dos moradores de favelas da Grande Tijuca, dentro da

perspectiva de sua perpetuação. Porém, podemos notar certas diferenças com o caso do

livro de Manoel Gomes, como o perfil dos atores que participaram da articulação que

possibilitou a elaboração desses dois produtos, a preocupação para que esses

alcançassem um setor específico de seu público-alvo, além da própria abordagem da

produção de significados sobre as favelas.

Com relação às diferenças, primeiramente devemos destacar que o livro de

Gomes foi produzido a partir de uma articulação que envolvia grupos de esquerda

“Vivências Passadas” e “Reconstruindo a História”. No primeiro encontro, são reunidos moradores mais antigos da localidade, a fim de que seja realizada coleta de depoimentos e, caso haja interessados, doação de documentos pessoais. Na segunda, há a participação dos moradores mais jovens e são usadas diferentes linguagens, como música, fotografia, além dos depoimentos anteriormente coletados, para se debater a questão da ocupação do espaço urbano. A terceira visa ao resgate das condições iniciais que datam do surgimento de cada favela, atentando-se para a questão ambiental e a produção do lixo domiciliar. Na quarta e última, há a junção dos moradores antigos e jovens, objetivando o estabelecimento de estratégias, com o intento de perpetuar a iniciativa do resgate da memória local (CUNHA, 2006: 14). 223 Conforme visto no depoimento de uma das idealizadoras do projeto (COUTINHO, 2004: 24): “(sobre as dificuldades nas realizações das oficinas) Bom, a primeira dificuldade a enfrentar era a dispersão de alguns jovens. Eles foram à oficina e pedimos que eles fizessem um trabalho de casa. Porém, isso não foi muito interessante, pois quando retornaram no encontro seguinte, observamos que muitos não tinham feito o trabalho. Foi então que nos perguntamos: ‘E agora, como vai ser a oficina?’ Surgiu uma brilhante ideia: convidar um morador antigo, que vivia próximo ao local onde estávamos realizando essa oficina, para participar. E foi maravilhoso. (...) Percebemos que a fórmula deu certo e adotamos, não só no Borel, como também em outras comunidades”. 224 O livro em questão é a obra organizada por Cunha (2006), que está sendo utilizado para descrever a metodologia de trabalho adotada pelo Condutores, bem como para o fornecimento de dados sobre sua atuação, revelando uma das funções desse trabalho – criar um registro material sobre o histórico da proposta, o que o coloca dentro da ideia de memória material de favelas. Também foram reproduzidos registros sobre as oficinas, no formato de informativos que igualmente se encaixam na ideia anteriormente mencionada.

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233

opositores ao regime militar, como a AP e o PCB, enquanto os produtos oriundos do

Condutores de Memória contaram com uma articulação envolvendo um fórum de atores

(Agenda Social Rio) representantes do poder público e do Terceiro Setor, além de

pesquisadores ligados à área do conhecimento acadêmico. O livro de Manoel Gomes

não apresenta um direcionamento específico para um público pretendido, enquanto, no

caso do Condutores, há uma preocupação com a questão dos jovens, dentro do contexto

da atuação do tráfico de drogas225. Por último, a iniciativa da qual resultou “As lutas do

povo do Borel” faz parte de um conceito que interpretava as favelas como uma área

para a concepção e o desenvolvimento de propostas de atuação junto às classes

populares, em um período no qual o Brasil caminhava para a reconstrução de um regime

democrático. No tocante ao Condutores, há um esforço de ressignificação das favelas, a

fim de desvinculá-las da imagem de locais irradiadores da violência urbana e de ameaça

à ordem legal, bem como de impedir a construção de barreiras simbólicas que limitem,

ou até mesmo impeçam, a livre circulação ou o usufruir de direitos constitucionalmente

garantidos.

Contudo, o conteúdo bruto do Condutores que se pretende registrar não se

diferencia muito do presente em “As lutas do povo do Borel”, devendo-se, reitero, estar

atento às diferenças históricas que colocam distintas condições de surgimento e usos

políticos. O vídeo possui aproximadamente 16 minutos, direção geral de Mariana

Cavalcanti, conforme consta nos créditos, responsável, igualmente, pela produção

executiva junto com Valter “Filé”. São apresentadas, além de cenas do Borel e da

Chácara do Céu, objetos da filmagem, 12 depoimentos226, sendo nove deles de

225 É preciso esclarecer, no entanto, que apesar da preocupação de que a iniciativa alcançasse os jovens, em nenhum momento ela se pretendeu restrita a eles. 226 O último depoimento diz respeito a um debate com um grupo de jovens, que contabilizei como um, uma vez que sua construção se deu a partir de conversas entre seus integrantes, provavelmente tendo como ponto inicial perguntas direcionadas a todos. Com relação à Chácara do Céu, há três depoentes, dois deles moradores antigos e o último sendo o do grupo em questão.

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234

moradores desses locais desde os anos 1940. Nota-se uma certa continuidade com o

livro de Manoel Gomes, uma vez que três depoentes (Marinho Lira, Sebastião

Bonifácio e José Calegário) são mencionados em “As lutas”, estando os dois primeiros

entre algumas das lideranças mais atuantes227.

No vídeo, há alguns elementos comuns à narrativa de Manoel Gomes, como a

questão dos “grileiros”, pelo menos um desses também aparecendo no depoimento do

autor de “As lutas” (depoimento de Maria Marçal228, vídeo Condutores de Memória):

“A gente veio aqui em cima, morar perto da casa da Dona Maria Portuguesa. Quem fez

a gente ficar tão “desregulado” foi o tal do grileiro, o Pacheco, que estragou o Borel”. A

imagem de Magarinos Torres como o protetor contra as ameaças de despejo também é

um elemento mencionado (depoimento de Elza Nascimento229, vídeo Condutores de

Memória): “Eu não esqueci a música que nós cantávamos: ‘Doutor Magarinos,

advogado do morro, impediu que derrubassem os nossos barracões. Doutor Magarinos.

Doutor Magarinos, ele mora em nossos corações’, e todo mundo sambando com essa

música”.

As precárias condições de habitação também são relatadas, conforme o

depoimento de uma moradora da Chácara do Céu sobre a ausência de ruas asfaltadas

(depoimento de Amélia Gouveia, vídeo Condutores de Memória):

“Eu, quando cheguei aqui, não tinha estrada, era uma trilhazinha aqui, era essa mesma rua, mas não tinha rua, mas uma trilha estreita, dois metros de rua, de beco (...). Esse lugar era uma chácara, né?, uma chácara de verdura, e na associação de moradores do Borel me botaram para cá, não tinha água, não tinha luz (...) (grifos meus)230”.

227 Ou seja, temos a escolha de um grupo de lideranças específico, que atuou na UTF como depoente e é considerado como detentor do saber sobre esse passado de mobilização. 228 Senhora de idade avançada e moradora do Borel. Embora não revele seu tempo de moradia, as situações e nomes mencionados em seu depoimento levam a crer tratar-se de uma moradora antiga. 229 Essa moradora se encontra no mesmo perfil da anterior. 230 Gostaria de chamar atenção para o aspecto dessa passagem, que revela a Chácara do Céu como parte integrante da favela do Borel, uma vez que a associação de moradores desta, possivelmente ainda sob a denominação de UTF, controlava a ocupação local.

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235

É igualmente observada a memória local sobre o pioneirismo do Borel no que

diz respeito ao movimento associativo de favelas (depoimento de Josias Pereira, vídeos

Condutores de Memória):

“Ela foi fundada em 1952231, através das lutas pelas quais o Borel passava. O objetivo dessa associação era fortalecer a nossa comunidade. Foi a primeira associação de favelas, que se chamava UTF, União dos Trabalhadores Favelados (...) que até a década de 1960, ela tinha o primeiro estatuto, e todas as comunidades que fundaram (associações de moradores) depois vinham até a nossa comunidade para poder aprender e estudar o estatuto que foi formado nessa época”.

O suporte audiovisual possibilita que não sejam registrados apenas os nomes das

lideranças mais antigas, mas também seus rostos e vozes. O livro de Manoel Gomes faz

menção a diversos personagens, conforme visto, o que fortalece a imagem de um grupo

coeso. Registrar em vídeo esses mesmos nomes, dando voz a eles de acordo com a

proposta da gravação, seria um processo mais complicado, uma vez que esse registro

requer a realização de entrevistas e, tendo em vista a data das filmagens (2001), muitos

dos indivíduos citados por Gomes haviam falecido ou se mudado do Borel232. Porém, a

principal diferença do vídeo se refere ao registro de depoimentos de jovens moradores,

revelando suas impressões sobre a memória dos moradores antigos entrevistados.

O primeiro momento em que a gravação foca nos moradores mais jovens

registra a apresentação de um grupo de dança de rua ligado à ONG Jovens Com Uma

Missão (Jocum)233. A situação de jovens moradores de favelas participando de uma

prática de expressão artística contrasta com a seguinte descrição referente a jovens

231 Mesma data declarada por Manoel Gomes, recordando que documentos oficiais, inclusive o próprio estatuto da UTF, afirmam que sua fundação ocorreu em 1954. Não deve ser ignorado que Josias Pereira é ligado ao grupo responsável pelo jornal local Folha do Borel, que chegou a noticiar o lançamento de “As lutas do povo do Borel”. 232 Sem contar o fato de que, por ter participado diretamente da mobilização dos anos 1950, Gomes possuía mais facilidade para ter em sua memória os nomes por ele colocados, sendo necessário atentar que os indivíduos que constam nessa obra fazem parte de um grupo específico dentro do Borel, simpatizante dos membros da diretoria da UTF ligados ao PCB (o que não significa que sejam necessariamente ligados ou simpatizantes do mesmo partido). 233 Organização missionária que atua no Brasil desde 1975. Para mais informações, ver http://www.jocum.org.br.

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236

envolvidos com o tráfico, muitas vezes presentes no imaginário comum da sociedade

carioca (ZALUAR, 1996: 55):

“A imagem do menino favelado com uma AR-15 ou metralhadora UZI na mão, as quais considera como símbolos de sua virilidade e fonte de grande poder local, com um boné do movimento negro da América do Norte, ouvindo música funk, cheirando cocaína produzida na Colômbia, ansiando por um tênis Nike do último tipo e um carro do ano”.

Tal imagem, presente no senso comum, dentro da conjuntura histórica que se

forma a partir da virada dos anos 1970 para os 1980, tende a criar uma série de barreiras

para moradores de favelas, devido a uma visão estereotipada que os associa à

violência234. No mesmo vídeo, uma jovem narra a seguinte situação (depoimento de

jovem não identificada, vídeo Condutores de Memória): “Eu estava na praia, chegou

uma garota e começou a falar comigo, aí eu falei onde eu morava, ela falou ‘vou ali

falar com a minha mãe’ e não voltou mais”. A partir dessa fala, podemos destacar a

hipótese de que uma das funções do vídeo seja chamar atenção para essa “clivagem

sócioespacial” que afeta os moradores de favelas. Tendo em vista essas situações, a

opção pela escolha de um grupo jovem através de uma prática artística visa, justamente,

propor uma imagem alternativa do jovem morador de favelas, muitas vezes corrente no

imaginário urbano. Em vez da percepção pela arma, a percepção pela arte. Em vez da

percepção pela ameaça, a percepção pelo preconceito e pela segregação sofrida. Tal

postura discursiva não deve ser encarada como algo natural, mas como um esforço de

construção de significados com objetivos próprios235.

234 Em uma pesquisa qualitativa, baseada em grupos focais, sobre os principais problemas e reivindicações referentes também a favelas da Grande Tijuca, um dos moradores menciona a seguinte situação (NOVAES, 2000: 16): “Quando você fala assim: ‘Endereço? É... Rua São Miguel 500.’ ‘Que bairro?’ ‘Tijuca!’ ‘Tijuca?’ ‘Usina’ ‘Onde?’ ‘Na Estrada da Independência!’ ‘Fica onde?’ ‘Borel’ ‘Ahn, tá... Deixa o seu currículo aqui...’ Pela fama que o morro tem, pensa que todo mundo no morro é bandido (...)” 235 Duas passagens diferentes colocam a participação das três idealizadoras do Condutores no produto final, após o processo de edição do vídeo. A primeira consta do depoimento de Marize Cunha (depoimento de 31/07/2009): “O filme que os condutores fizeram, na época que eu estava na coordenação da Gestão, não era o filme que eu gostaria. Se eu tivesse que montar um filme não seria aquele. (...). Mas era o filme que elas queriam, e a gente tinha clareza de que os condutores era um projeto delas”. A

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237

Por último, o vídeo reflete o esforço do projeto de estabelecer um elo entre os

moradores mais jovens e os mais antigos, perceptível pela metodologia adotada pelas

oficinas de memória de realizar atividades conjuntas com ambos, a partir das

experiências presentes na memória dos primeiros, que dizem respeito aos processos

referentes a acesso a serviços, além da resistência aos despejos, dentre outros. Ao ouvir

as dificuldades referentes à ausência de asfaltamento e de acesso à luz e água, um jovem

faz a seguinte declaração (depoimento de jovem não identificado, vídeo Condutores de

Memória): “Interessante saber como era a comunidade, a luta para trazer esses recursos.

Nós não valorizamos, mas foi duro trazer água e luz para cá”.

Com relação ao livro do projeto Condutores, de 2006, o primeiro fator que

gostaria de destacar é sua abrangência sobre as demais favelas da Grande Tijuca, de

acordo com a diretriz da Agenda Social Rio236. No que diz respeito ao Borel, é feita

menção ao livro de Manoel Gomes como “um instrumento fundamental para se

conhecer um pouco da memória da comunidade e acompanhar as mudanças e

transformações vividas por ela” (CUNHA, 2006: 21), bem como sua importância como

registro documental (Josias Pereira apud CUNHA, 2006: 21):

“Então foi feito esse livro para registrar (...). Esse livro é para resgatar essa história e eu espero que as pessoas continuem contando para os seus filhos, para que eles possam entender que houve uma luta, sim! Luta para se ter água encanada, para se ter uma casa melhor, para se ter luz. Houve luta aqui!”

Outros elementos podem ser observados, como os depoimentos de José

Calegário, Sebastião Bonifácio e Marinho Lira (CUNHA, 2006: 22, 24, 27), cujos

segunda, no depoimento de Mariana Cavalcanti (depoimento de 24/09/2009): “E as meninas queriam muito fazer um vídeo. (...). A gente tinha um projeto de fazer o vídeo, mas era meio longínquo, ainda, tanto que o vídeo só foi ficar pronto... Quando o vídeo ficou pronto eu já tinha viajado (refere-se ao período de sua estadia fora do Brasil para realização de seu doutoramento pela Universidade de Chicago). Elas o editaram e eu já tinha ido”. 236 É preciso explicar que tal feito não seria possível no vídeo do projeto, já que, quando sua finalização se deu (2001), nem todas as oficinas de memória haviam sido realizadas, ao contrário do livro. Como o foco de minha pesquisa é o morro do Borel, será sobre o seu conteúdo que me aterei no que diz respeito à obra em questão.

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238

nomes foram escolhidos por motivos já abordados, além das menções do que teria sido

o pioneirismo da UTF, no que diz respeito a associações de moradores de favelas, “uma

das mais antigas do Rio de Janeiro (Sebastião Bonifácio apud CUNHA, 2006: 23).

Estão igualmente presentes as ameaças devido às ações dos “grileiros” dos anos 1950

(José Calegário apud CUNHA, 2006: 22): “(...) nós começamos a ser perseguidos pelos

grileiros que existiam aqui nos anos 1950”. Ou seja, podemos notar a presença de uma

série de elementos referentes à memória das lideranças ativas da UTF que possuíam

afinidade, ou até militância, com o antigo PCB, além do uso da categoria “lutas”,

conforme visto, importante para a evocação de um tempo marcado pela solidariedade e

por uma moral de mobilização para certas lideranças do Borel (CAVALCANTI, 2007).

Contudo, há outros elementos para os quais devemos atentar. O primeiro diz

respeito a uma breve biografia, com foto, de cada uma das três idealizadoras do

Condutores de Memória (CUNHA, 2006: 7-9). Tal postura é uma forma de valorizar a

ação destas, moradoras de favelas, como sujeitos produtores de conhecimento sobre o

espaço onde habitam. De fato, uma das responsáveis pelo projeto chega a colocar que

(COUTINHO, 2004: 24):

“Quando chegávamos em outras comunidades e dizíamos que éramos moradoras de comunidade como eles, os olhares eram de admiração, principalmente dos adolescentes. Isso porque os moradores de comunidade estão acostumados a receber o que pessoas de fora levam para eles”.

Essa valorização, pelo menos no campo dos discursos, também pode ser

encarada como uma tentativa de diluição de possíveis tensões entre agentes “de dentro”

e “de fora” pela legitimidade de fala sobre as favelas, além de constituir um esforço de

ressignificação desses espaços por um viés positivo, uma vez que demonstra uma

construção discursiva sobre os moradores de favelas contrastante com as imagens de

violência e associação com o tráfico que começam a ganhar força a partir da virada dos

anos 1970 e 1980.

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239

O livro do Condutores igualmente coloca a importância dada ao alcance do setor

jovem de seu público-alvo a partir do registro das atividades do projeto em escolas. O

objetivo dessa atuação foi (CUNHA, 2006: 48)

“(...) despertar nos(as) alunos(as) a capacidade de pensar historicamente, incentivando, assim, a reconstrução do conhecimento da região em que moram e a identificação positiva com a realidade na qual vivem. (...) estreitar os vínculos com as comunidades trabalhadas. Pelos depoimentos de jovens e antigos(as) moradores(as) exibidos no vídeo237, foi possível estimular o debate sobre o processo de construção coletiva da história local, levando professores(as) e alunos(as) a refletir sobre a importância das pessoas comuns, por meio de suas trajetórias e experiências de vida, para essa construção (...). Acima de tudo, a entrada do projeto Condutores(as) de Memória nas escolas contribuiu para desfazer o preconceito e diminuir a distância existente entre “favela” e “asfalto”, fornecendo aos(às) professores(as), geralmente oriundos(as) da classe média, informações que permitem compreender a realidade social dos alunos e das alunas, em sua maioria residentes em favelas e bairros populares”.

A busca pela superação de barreiras simbólicas, inter ou intrafavelas, ou com a

“cidade formal”, são exemplificadas pela atuação em diversos fóruns e eventos, além da

capacitação de outros grupos para que os mesmos possam aplicar a metodologia do

Condutores, ou para estabelecer contato com experiências semelhantes (idem: 49-52)238.

Conforme visto, o livro de Manoel Gomes e os produtos do projeto Condutores

de Memória possuem elementos comuns no que se refere à memória sobre o Borel.

Porém, esses suportes apresentam certas diferenças para as quais precisamos atentar. O

primeiro é um suporte textual, enquanto os outros possuem tanto forma textual quanto

audiovisual. O livro de Gomes foi editado por uma pequena editora, ligada a um partido

de oposição ao governo militar da época. Foram produzidos poucos exemplares e nunca

houve reedição, o que limita o acesso à obra. Os produtos do Condutores oferecem

237 Tal menção demonstra outra função do vídeo do Condutores para além do registro documental, referente ao campo didático. 238 Podem ser mencionados contatos com a Rede Memória, do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm), capacitações como a realizada junto ao grupo teatral Nós do Morro, no Vidigal, além da participação no seminário organizado pelo Iser em 2003, que contou com a participação de diversos projetos de memória de favelas, articulados com debates sobre suas iniciativas com diversos intelectuais. Tais iniciativas podem ser vistas como outra das características desses projetos, dentre os quais o próprio Condutores, no que diz respeito a sua institucionalização, ou seja, a seu desenvolvimento em parcerias com diferentes instituições, além da articulação em redes (GRYSNZPAN & PANDOLFI, 2007).

Page 241: Caminhos Do Lembrar a Construção e Os Usos Políticos Da Memória No Morro Do Borel

240

maior possibilidade de acesso. A publicação de Neiva da Cunha (2006), além de ter sido

distribuída em seu lançamento, pode ser consultada livremente no website do Ibase239.

O vídeo também pode ser visto no Ibase, onde é possível obter uma cópia, e ainda há a

possibilidade de ser futuramente veiculado em sites pela internet, o que também

demonstra sua maior acessibilidade.

Deve ser destacada uma outra diferença. Ao relatar a história da UTF a partir de

seus membros ligados ao PCB, o livro de Manoel Gomes promove a valorização da

memória de um grupo político específico dentro do Borel, em um contexto de

reconstrução da democracia no Brasil, no qual outros grupos opositores aos militares

buscavam implementar projetos junto às classes populares. Temos, então, um quadro de

concorrência com características próprias que, entretanto, não impediu momentos de

articulações táticas, pelo menos no Borel, entre esses atores.

Passados quase 20 anos do lançamento de “As lutas do povo do Borel”, a

evocação e o registro em suporte desses membros ganha outro sentido. Não se nota mais

a valorização de um grupo político do Borel em um momento de disputas internas na

associação de moradores240. Ao vermos Josias Pereira resgatar a memória da criação da

UTF como uma das “primeiras associações”, na qual “outras comunidades vinham

aprender e estudar o estatuto”, que seria “o primeiro estatuto do tipo”, não notamos a

crítica, vista anteriormente, às lideranças com quem sua chapa disputou a direção da

associação de moradores na virada dos anos 1970 para os 1980. Afinal, muda-se o

contexto histórico, surgem novos desafios. Em um período de desmobilização das

239 A distribuição de exemplares gratuitamente constitui uma política da Oxfam Novib, financiadora do projeto. Para consultar a obra, ver htpp://www.ibase.br. 240 Nos anos 1980, a AP e o MR-8 se incorporarão, respectivamente, ao Partido dos Trabalhadores (PT) e ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) (CAMURÇA & REIS FILHO, 2007, CIAMBARELLA, 2007). Em 1992, o PCB deu origem ao Partido Popular Socialista (PPS) (PANDOLFI, 1995: 24). Ou seja, as agremiações partidárias envolvidas nessa disputa passaram por transformações e rearranjos, o que exemplifica as transformações do quadro político que implicará novas articulações, inclusive no que se refere às relações com associações de moradores e demais órgãos representativos de habitantes de favelas.

Page 242: Caminhos Do Lembrar a Construção e Os Usos Políticos Da Memória No Morro Do Borel

241

associações de moradores de favelas, além das complicadas relações delas com o

tráfico, essa memória acaba por valorizar essa entidade, buscando recuperar o

significado da importância de seu papel como agente de mobilização em torno de

reivindicações diversas.

Do mesmo modo, a presença de Sebastião Bonifácio e Marinho Lira como

depoentes perde, de certa forma, o caráter de referência às ações de grupos ligados ao

PCB. O depoimento desses antigos moradores ganha a função de suporte para a

afirmação da antiga busca dos moradores de favelas por acesso a serviços e moradia,

valorizando seu esforço para o alcance desses objetivos, e apresentando uma imagem

diferente das relacionadas à violência e ao tráfico.

Para além dos usos abordados dos produtos do Condutores de Memória,

pensados por suas três executoras em articulação com os agentes ligados à Agenda, há a

própria valorização dada pelos moradores de favelas pelo registro material que eles

representavam (depoimento de Mariana Cavalcanti, 24/09/2009):

“Os produtos interessavam muito para os moradores, você se ver, se ver impresso, se ver num vídeo, tudo isso era importante. Nesse momento, sim, ainda é, mas hoje em dia isso está mais banalizado, ninguém acha a mesma coisa que achava naquela época. Isso porque tem câmera de celular, eu posso fazer um documentário sobre você me entrevistando. Naquela época, não.”

Parte dessa valorização pode ser vista pelo fato de esses sujeitos passarem a se

colocar como emissores, e não mais meros receptores, dos discursos sobre o seu

passado, seja diretamente vivido ou transmitido por uma memória familiar ou local

(idem):

“As pessoas queriam se ver representadas de um jeito que não fosse o modo que o Jornal Nacional representa. (...) Agora, eu acho que, nesse sentido, o Condutores é um documento histórico muito interessante, tudo isso que ficou, o rastro que o Condutores deixou, porque era nesse momento, era nesse momento que os moradores de favela estavam querendo se apossar dos meios de produção de discurso sobre eles, e é isso. (...) Nesse sentido, um documento diferente, mas é um documento”.

Page 243: Caminhos Do Lembrar a Construção e Os Usos Políticos Da Memória No Morro Do Borel

242

A questão da ressignificação das favelas, em concorrência a certos tipos de

representação presentes na grande imprensa, não pode ser pensada de forma dissociada

à temática dos padrões de relacionamento desenvolvidos entre moradores (depoimento

de Ruth Barros, 15/01/2010):

“As pessoas ficaram egoístas! Ficaram. As pessoas não têm mais, não existe mais aquela coisa que eu dizia, partilha. Não tem. Ainda existem muitas pessoas bacanas, muita gente, ainda, que ainda tem fraternidade, mas a maioria, a maioria que você vê, as pessoas agora se trancam, né? Mesmo em favela, você andando, quando eu te levar agora você vai ver, a maioria de portão fechado, os becos, você passa, está tudo fechado, você não vê mais as pessoas alegres, brincando, conversando (...). Eu acho que se as pessoas tivessem memória, se olhassem um pouquinho para trás, não estariam tão egoístas. Lembrariam que muita coisa foi meu vizinho que fez, foi meu vizinho que ajudou, que foi feito em coletividade, que não foi feito, você chegando, e isso aí está pronto, ‘ah, bom, agora é assim, vou arrumar só aqui, vou varrer só a minha parte, fulano que varra a dele!’ (...) Fraternidade, amor, carinho, são poucas as pessoas que têm hoje em dia241”.

Contudo, o principal meio de materialização da memória pretendido pelo projeto

não foi alcançado: a construção do Centro de Memória da Grande Tijuca. Esse espaço

teria por objetivo (CUNHA, 2006: 53) “tornar possível a construção de um novo olhar

sobre a história das favelas, que leve em consideração a experiência de vida e o ponto

de vista das moradoras e dos moradores dessas comunidades como atores sociais”. Seria

um local para guardar e conservar o acervo reunido pelo Condutores de Memória242,

além de servir como espaço para a realização de atividades culturais e educativas. O

Centro poderia ser considerado como uma das iniciativas de patrimonialização da

favela, que tem como um de seus objetivos caracterizar esse local, através da história,

como parte da cidade (FREIRE-MEDEIROS, 2006). Outras iniciativas implementadas

241 Com relação a essa visão, gostaria de atentar, mais uma vez, para os perigos de romantização excessiva do passado, comuns em discursos de memória. 242 Acervo formado pela gravação de entrevistas e atividades realizadas nas oficinas de memória, documentação cedida por participantes dessas e outros objetos. Já foi mencionada a dificuldade de sua consulta por sua localização dispersa, assim como o estado de deterioração de seus componentes.

Page 244: Caminhos Do Lembrar a Construção e Os Usos Políticos Da Memória No Morro Do Borel

243

se encaixam nesse perfil, como o Museu a Céu Aberto, do Morro da Providência243, e o

Museu da Maré244.

Buscar todas as causas e fatores que impossibilitaram a viabilização do Centro

de Memória do Condutores, em comparação com os casos da Providência e da Maré,

pode configurar um caminho analítico pouco sólido, mas ainda assim gostaria de fazer

algumas observações. Primeiro, no que diz respeito à articulação dos agentes envolvidos

nessas iniciativas, os museus da Providência e da Maré firmaram parceria com o poder

público, capaz de garantir os investimentos necessários para seus funcionamentos. O

primeiro caso contou com o investimento feito pelo Favela-Bairro, sendo uma iniciativa

da administração municipal de César Maia (2005-2009) pensada para fazer parte do

roteiro turístico oficial da cidade245. O segundo caso chegou a receber verba de R$

150.000,00 do programa Cultura Viva246, ligado ao governo federal (idem: 57).

O Condutores de Memória não chegou a receber apoio sólido traduzido em

financiamento direto por parte da administração pública247, contando fundamentalmente

com o patrocínio da Oxfam Novib, assim como muitas propostas ligadas à Agenda

Social Rio. O Condutores poderia ter conseguido apoio da iniciativa privada para a

construção do seu Centro, mas o aspecto para o qual devemos estar atentos é a ausência

243 Criado em agosto de 2005 pela administração municipal, tem por objetivo estabelecer ruas e casas dessa favela como um roteiro turístico, sendo que as obras do Favela-Bairro realizadas no local foram pensadas com essa intenção (FREIRE-MEDEIROS, 2006). 244 Criado em maio de 2006 a partir de uma articulação dos moradores com o governo federal, através do programa Cultura Viva, do Ministério da Cultura. Localiza-se em um balcão cedido pela antiga Companhia Libra de Navegação. Sua origem está ligada a um projeto de coleta de depoimentos de moradores antigos, realizado pelo Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm), que deu origem à Rede Maré, a partir da qual nasceu o Museu (idem). Para mais informações, ver http://ceasm.tumblr.com/. 245 É preciso mencionar o fato de que a atuação da prefeitura chegou a receber críticas de moradores pela ausência de diálogo com os mesmos, no que diz respeito a quais residências e localidades internas da Providência receberiam investimentos, dentre outros fatores (ibidem). 246 Programa de estímulo à difusão da atividade cultural e do fomento de parcerias com instituições diversas, inclusive não governamentais. Possui preocupação social, incluindo em seu público-alvo “adolescentes e jovens adultos em situação de vulnerabilidade social” e “comunidades indígenas, rurais e remanescentes de quilombos”. Também possui aspectos de valorização do patrimônio histórico. Para mais informações, ver http://www.cultura.gov.br/culturaviva/cultura-viva/objetivos-e-publico/. 247 Isso não significa que não tenha havido parcerias com o poder público, como mostra a realização de atividades em escolas municipais (CUNHA, 2006: 47).

Page 245: Caminhos Do Lembrar a Construção e Os Usos Políticos Da Memória No Morro Do Borel

244

de uma parceria que possibilitasse a obtenção de um espaço e a constituição de um

corpo técnico que tornasse possível a proposta em questão, sendo o poder público um

agente de peso considerável para tal papel. Outro aspecto a ser pensado diz respeito

mais especificamente ao caso da Maré. Seu museu foi projetado e articulado a partir de

uma ONG criada por lideranças, muitas delas moradoras da Maré ou que com ela

possuíam elos de ligação. Ou seja, a Maré possuía uma entidade que contava com uma

equipe composta por diferentes profissionais a seu dispor, além de um estatuto jurídico,

uma vez que se trata de uma instituição estabelecida e legalmente registrada, que

facilitou a obtenção e a gestão de verbas248.

Em nenhum momento a Agenda Social pretendeu ser uma instituição executora;

manteve seu caráter de fórum de debates, construindo pontes entre diferentes agentes. A

ONG Gestão Comunitária poderia ter desempenhado o papel de instituição responsável

pela implementação do Centro de Memória, mas para transformar essa possibilidade em

afirmação seria necessário conhecer a fundo o momento pelo qual passava essa

entidade, bem como seus projetos e interesses, quando o debate sobre o Centro do

Condutores apresentava maior vitalidade. Se as três idealizadoras do projeto tivessem

constituído uma instituição própria, em conjunto com demais executores de propostas

ligadas à Agenda Social, realizadas em favelas da Grande Tijuca, estabelecendo menos

intermediários para o alcance de seu objetivo, teria sido outro o destino do Centro de

Memória? Conforme anteriormente afirmado, esses questionamentos enveredam por um

traçado que não oferece pontos sólidos de apoio para a elaboração de afirmações

explicativas, por se tratarem de casos com especificidades próprias e diferentes agentes

envolvidos, mas creio ser útil a menção a esses fatores como pontos para a reflexão249.

248 Caso semelhante ao Museu de Favela (MUF), que atua em moldes semelhantes ao Museu da Maré, nas favelas Pavão-Pavãozinho e Cantagalo. Para mais informações, ver http://www.museudefavela.org/. 249 Outro elemento interessante a ser pensado seria a localização do Centro de Memória. Em conversas informais, as executoras do projeto afirmaram o desejo de que ele se localizasse em um prédio da Tijuca

Page 246: Caminhos Do Lembrar a Construção e Os Usos Políticos Da Memória No Morro Do Borel

245

Contudo, mesmo não conseguindo a realização de seu objetivo principal, a

construção do Centro de Memória, os produtos do Condutores anteriormente analisados

podem ser vistos como elementos de uma memória material a partir dos quais podem

ser concebidos usos políticos. Desse modo, podemos ver que a produção de uma

memória material de favelas, pensada a partir do caso do Condutores de Memória,

revela certas preocupações concernentes à conjuntura histórica de seu desenvolvimento

no que se refere a esses espaços. Partindo desse caso, pode-se estabelecer uma reflexão

acerca de como os moradores de favelas se relacionam com a cidade, do ponto de vista

da problemática do estigma da violência, e como lidam com os padrões de sociabilidade

presentes em seus locais de moradia, além dos mesmos padrões referentes a esse grupo

e ao espaço urbano como um todo.

Sobre articulação estratégica e memória

A elaboração de produtos de memória que se configure como memória material

de favelas necessita da articulação de diferentes agentes. No entanto, essa articulação,

quando se dá, não ocorre sempre com as mesmas configurações, que variam ao longo de

diversas conjunturas históricas. Com relação ao projeto de memória em favelas

desenvolvido pela Agenda Social Rio, o Condutores de Memória, podem ser observadas

algumas características próprias. Primeiramente, essa articulação mostra uma gama

diferenciada de atores, que envolvem empresas privadas, como a Light, ONGs e demais

ou de bairros próximos, e não em alguma favela, o que poderia trazer dificuldades para a frequência de moradores de favelas dominadas por facções rivais. Porém, conseguir uma sede no “asfalto” poderia significar a existência de entraves burocráticos, além de dificuldades de aceitação da vizinhança, por se tratar de um espaço destinado, embora não somente, a moradores de favelas. Bianca Freire-Medeiros (2006: 60) chega a mencionar comentários negativos sobre uma nota relativa aos museus da Providência e da Maré veiculada pelo extinto site de notícias No mínimo. Ainda no que diz respeito à localização, gostaria de fazer o seguinte questionamento: no caso do Museu da Maré, teriam os responsáveis pelo galpão da Companhia Libra de Navegação cedido seu espaço caso o mesmo estivesse em uma área de maior valorização imobiliária?

Page 247: Caminhos Do Lembrar a Construção e Os Usos Políticos Da Memória No Morro Do Borel

246

representantes do chamado Terceiro Setor, órgãos públicos, como a Caixa Econômica

Federal, instituições de educação básica e superior de ensino, como a escola particular

Oga Mitá e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), e pelo menos um órgão

internacional de financiamento de projetos sociais, a Oxfam Novib. Deve ser

mencionada ainda a rede resultante da implementação do Favela-Bairro, que também

proporcionou um quadro favorável à implementação dos projetos da Agenda.

À noção de “tática”, utilizada no capítulo anterior, Michel de Certeau opõe a de

“estratégia”, entendida como (CERTEAU, 2005: 46) “o cálculo das relações de forças

que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder é

isolável de um ‘ambiente’. Ela postula um lugar capaz de ser circunscrito como um

próprio e portanto capaz de servir de base a uma gestão de suas relações com uma

exterioridade distinta.”

Ao mencionar “um lugar capaz de ser circunscrito como um próprio”, Certeau se

refere a uma situação caracterizada por uma relativa estabilidade para as ações de um

determinado sujeito. Essa estabilidade seria decorrente da não necessidade de planejar e

executar ações a partir das regras do outro, ou seja, a partir de configurações que

priorizem interesses que não necessariamente são os seus. Para termos de comparação,

essa situação se aplica ao caso do Terceiro Setor e, portanto, da Agenda, que, ao

contrário dos grupos de esquerda citados, não estariam sujeitos às limitações impostas

pelo regime militar. Assim, tendo em vista a nova situação política de democracia,

podem estabelecer uma relação de estratégia, de acordo com os termos de Michel de

Certeau, para formulação e execução de suas propostas.

Isso não significa que não exista qualquer tipo de limitação às ações dessa

articulação. Por se tratar de um corpo coletivo formado por agentes de diferentes perfis,

com seus próprios interesses, há sempre a possibilidade de existência de conflitos, além

Page 248: Caminhos Do Lembrar a Construção e Os Usos Políticos Da Memória No Morro Do Borel

247

de diferentes graus de envolvimento e participação na iniciativa. É compreensível que,

em suas publicações institucionais, a Agenda divulgue seu amplo número de parceiros,

pois se trata de uma estratégia de autovalorização veicular a imagem de um grupo capaz

de ter acesso a diferentes setores da sociedade civil. Mas tal fato não implica que todos

possuam o mesmo envolvimento, ou que este se dê em uma intensidade constante, a

exemplo do comentário de Nahyda Franca sobre o envolvimento da prefeitura

(depoimento de Nahyda Franca, 22/06/2009):

“(...) da época do Betinho vivo, da articulação inicial da Agenda, tinha uma conjuntura naquele momento do governo, da prefeitura, do governo estadual, que facilitou essa articulação. Depois isso veio mudando com a entrada do Conde, depois César Maia, e essa alternância (...). Então essa mudança pr’o Conde já foi um baque”.

Outro exemplo de limitação é a diminuição de verbas destinadas à Cooperação

Internacional, que afetou diretamente a Agenda devido à diminuição do financiamento

ofertado pela Oxfam Novib (OXFAM NOVIB, 2003: 13): “A crise da Cooperação

Internacional nos faz mudar de estado, de tema e de expectativa de recursos, obrigados

que somos a nos defender permanentemente das alterações nas diretrizes políticas da

Cooperação Internacional”.

A despeito desses fatores, a amplitude e a diversidade desse conjunto de atores

proporcionou um considerável acesso a diversas esferas da sociedade. No caso do

Condutores de Memória, podem ser citadas reportagens jornalísticas e participação em

diversas palestras e eventos. Desse modo, estamos diante de uma articulação ampla,

baseada em relações de estratégia, principalmente quando comparada à articulação que

propiciou a elaboração, editoração e lançamento do livro de Manoel Gomes, restrita a

militantes de partidos e a grupos de esquerda. Essa articulação ampla é marcada por um

modus operandi específico, concernente às concepções e intervenções referentes à

forma de atuação das ONGs e demais instituições do chamado Terceiro Setor.

Page 249: Caminhos Do Lembrar a Construção e Os Usos Políticos Da Memória No Morro Do Borel

248

Com o abandono progressivo das políticas remocionistas, a partir do final dos

anos 1970, e a implementação de políticas públicas que visassem dotar as favelas de

mais recursos de infraestrutura urbana, a partir da década de 1980, Mario Grynszpan e

Dulce Pandolfi (2007: 74) observam que “à medida que vão deixando de ser

descartáveis, erradicáveis, conquistando um direito à posteridade, as favelas vão

igualmente conquistando o direito às suas memórias”. Porém, tal quadro se desenvolve

paralelamente a um outro, no qual o crescimento das favelas em nosso espaço urbano

tem sido associado ao crescimento da violência (LEITE, 2001).

Desse modo, essa conjuntura histórica arma uma arena para uma batalha de

representações. De um lado, as que associam as favelas à violência urbana,

principalmente a do tráfico de drogas, trazendo consequências sérias que se traduzem

em impedimentos de circulação e de uso dos espaços da cidade, fragmentando-a e

diminuindo possibilidades para a construção de uma via sólida de acesso a direitos

(BURGOS, 2005). De outro, grupos de moradores de favelas articulados com diferentes

atores, objetivando a construção de uma via pavimentada por significados positivos que

termine no acesso ao direito à cidade (LEFEBVRE, 2001).

David Harvey diz que o direito à cidade é “muito mais que a liberdade

individual de acessar recursos urbanos: é o direito de mudar a nós mesmos mudando a

cidade” (HARVEY, 2008: 1, tradução livre). Mudar a cidade, no caso contemporâneo

do Rio de Janeiro, deve ser compreendido não apenas como o reconhecimento do

passado de parcela relevante de seus habitantes, mas como um investimento em um

futuro em que a história de nosso espaço urbano possa ser vista sem clivagens oriundas

da necessidade de se apontar um judas simbólico a ser responsabilizado por problemas

cujas soluções só surgirão a partir do pensar em conjunto.

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249

Conclusão

O final dos anos 1970 traz algumas questões significativas para a análise aqui

desenvolvida. No tocante às favelas, temos o início do fenômeno que deu origem às

favelas consolidadas, ao mesmo tempo caracterizadas por maior acesso a serviços

públicos e de infraestrutura urbana e pelas consequências da atuação do tráfico de

drogas, que, paulatinamente, passa a apresentar uma nova configuração de atuação a

partir do mesmo período (CAVALCANTI, 2007). Nesse mesmo período, temos a

reorganização do movimento associativo de favelas, com o aparecimento de novas

associações, reativações de antigas (PANDOLFI & GRYNSZPAN, 2002), além de

novas lideranças se colocando como alternativa à linha adotada pela Faferj (BRUM

2006). Com relação ao quadro político geral, temos a Lei da Anistia, de 1979, um

importante elemento para a volta de direitos políticos e para a renovação da luta política

da época (CARVALHO, 2001). Esses fatores não devem ser pensados separadamente,

uma vez que a abertura política foi um panorama importante para a renovação do

movimento associativo de favelas, inserida dentro do contexto de cada vez maior

participação dos movimentos sociais. As melhorias realizadas nos espaços em questão,

por sua vez, devem ser compreendidas levando-se em conta a atuação dos órgãos de

representação de seus moradores como fórum para reivindicações.

No Borel, temos uma nova configuração de seu quadro político. Novos

militantes do PCB passaram a atuar no local, a partir de contatos com a antiga base

comunista lá existente, da qual participavam muitas antigas lideranças ligadas à UTF,

reativada após a inatividade durante a fase de maior repressão do governo militar.

Paralelamente, militantes de grupos como a AP e o MR-8 começaram a desenvolver

suas atividades nessa favela, o que acabou por configurar um convívio marcado por uma

Page 251: Caminhos Do Lembrar a Construção e Os Usos Políticos Da Memória No Morro Do Borel

250

certa concorrência por legitimidade e espaços de atuação, quadro semelhante ao vivido

pela Faferj.

Diante dessa configuração, temos a memória como um dos instrumentos

utilizados nessa disputa. Essa utilização se dá a partir de seu aspecto material,

personificado em seus produtos de memória, no caso, o livro “As lutas do povo do

Borel”. Sua materialidade possui função de registro, inscrição no mundo físico, e sua

importância é sustentada pelos seus usos políticos possíveis. Diferentes interesses

permeiam o conteúdo que se quis registrar, bem como o processo de elaboração que deu

origem ao seu suporte. Primeiramente, temos a figura do autor do depoimento escrito,

Manoel Gomes, antiga liderança com ligações com o PCB, ou seja, representativo dos

militantes do Partido.

A forma como seu discurso é construído expõe a valorização dos moradores

como um grupo, a exemplo dos diversos nomes citados mesmo sem que

individualmente exerçam papel relevante em sua narrativa, que, segundo seu relato,

acaba por constituir uma considerável e sólida base de apoio às atividades da UTF,

dotando-a de legitimidade como veículo de reivindicações. Encontros para

planejamento das atividades da União são, igualmente, objetos de registro, bem como a

importância da luta dessas lideranças para garantir o direito à permanência e buscar

acesso a serviços como a educação, representada pela escola fundada pela UTF e

gerenciada pelos próprios moradores. A importância da atuação do advogado Antoine

de Magarinos Torres, descrito por Gomes como figura vital para a execução das

atividades da União, também é outro elemento para o qual se deve atentar.

Contudo, devemos prestar atenção em dois aspectos. O primeiro é o fato de que

as lideranças da UTF com ligações com o Partido Comunista não constituíam o único

grupo formador da entidade, embora, ao que tudo indica, tenha sido hegemônico, como

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251

sugere a situação na qual se envolveu a figura de Aristófanes Monteiro de Souza,

membro da diretoria da entidade e simpatizante das ideias de Carlos Lacerda. Ou seja, o

registro material da memória de Manoel Gomes sobre a UTF representa a consolidação

de um discurso sobre um grupo que formava a UTF, não contendo as visões dos que

dele discordavam. O segundo aspecto diz respeito ao fato de o registro da memória de

um militante ligado ao PCB surgir em um período no qual grupos concorrentes, como a

AP e o MR-8, pleiteavam espaços de atuação no Borel. Mais uma vez, focamos o

passado a partir da ótica de um ator político, o Partido Comunista, o que acaba por

valorizar sua atuação e pode ser visto como uma estratégia de reafirmação de sua

legitimidade perante os seus grupos concorrentes. O próprio processo de elaboração de

“As lutas do povo do Borel” é marcado por tensões, uma vez que a AP esteve nele

envolvida, tendo depois o PCB tomado a frente, fato relatado pela memória da militante

apista como um “alijamento”.

Contudo, o quadro no qual esse processo se desenvolveu é marcado por uma

convivência tática. Nesse tipo de relação, temos o convívio de atores políticos

concorrentes marcados por tensões, sem que haja uma disputa que vise ao impedimento

da atuação do grupo com o qual se concorre. O caráter tático (CERTEAU, 2005) dessa

convivência se dá devido às restrições colocadas pelo período histórico. Ainda que o

momento político brasileiro caminhasse cada vez mais para sua abertura,

continuávamos a viver sob a ditadura militar, havendo censura e vigilância por parte das

instâncias de repressão, mesmo que sob forma mais branda. Desse modo, não havia um

espaço de atuação no qual esses grupos pudessem agir com ampla liberdade de

planejamento e execução de propostas, e uma disputa por esse espaço, marcado por

essas restrições, podia tornar sua condição ainda mais desfavorável.

Page 253: Caminhos Do Lembrar a Construção e Os Usos Políticos Da Memória No Morro Do Borel

252

A partir dessa configuração, é possível compreender os usos políticos dados à

memória material de favelas na qual se constitui o livro de Manoel Gomes. Esse uso

apresenta um aspecto de conflito quando visto do ponto de vista da política interna do

Borel, uma vez que ele significa um respaldo para a atuação de um ator político perante

os demais, uma vez que consolida a memória de sua atuação desde os anos 1950. Não é

excessivo lembrar que seu lançamento se deu 14 dias antes das eleições para a

associação de moradores, o que já denota o interesse de seu uso nessa disputa. Seu

conteúdo também será objeto de críticas por parte de outros militantes, a exemplo de

José Ivan, pertencente ao MR-8, por se ater demais a uma “memória pecebista”.

Porém, a obra em questão pode ser vista por outro aspecto. Um livro que relata a

memória de mobilização de moradores de favelas escrita por um deles representa o

acesso à voz sobre o passado de uma parcela da sociedade que não costumava tê-lo.

Esse elemento constitui um sólido ponto de valorização para esses mesmos moradores,

o que, inclusive, serve como ponto para compreensão da disputa em torno de seu

processo de elaboração. A valorização da memória de mobilização dos moradores do

Borel será afirmada pela própria Faferj, na figura do presidente que ocupou o cargo na

virada do ano de 1979 para 1980, integrante do MR-8, que atenta para a “importância da

tradição de mobilização do Borel” desde 1954, ou seja, faz referência à própria UTF. O

reconhecimento do valor desse passado associativo pode ser interpretado como uma

afirmação dos moradores de favelas como sujeito político em uma época na qual se

procurava reconstruir a democracia no Brasil, outro possível uso político para a obra de

Gomes.

Porém, a década de 1980 começa a consolidar outra conjuntura no que diz

respeito ao relacionamento das favelas com a sociedade. Conforme dito anteriormente,

as favelas consolidadas não possuem como perfil apenas o aumento das construções em

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253

alvenaria e o acesso a serviços, mas também uma maior atuação do tráfico de drogas

dentro de uma configuração de atuação específica (CAVALCANTI, 2007). Nos anos

1990, o debate sobre a questão da violência urbana e da guerra entre quadrilhas rivais,

presente desde meados da década anterior, é percebida constantemente em órgãos de

imprensa, através de um olhar que associa as consequências negativas dos confrontos

armados às favelas, dentro da ideia de metáfora da guerra (LEITE, 2001). Essa visão

identifica os moradores desses espaços com representações de conivência com o crime e

de uma ameaça em potencial à “cidade formal”. Nesse período, a própria imagem do

Rio de Janeiro será afetada pela questão da violência, a partir de acontecimentos como

as chacinas da Candelária e de Vigário Geral.

A partir dessa perspectiva, esse período revelará a transformação das favelas em

problema de segurança pública, fato que já ocorreu em outros contextos históricos com

outras características, com abordagens que privilegiarão uma ação repressiva que, em

diversas vezes, irá desconsiderar direitos constitucionalmente garantidos a seus

moradores. Porém, outros atores passam a propor interpretações alternativas a essa

visão, as ONGs e entidades ligadas ao Terceiro Setor, que consolidarão suas ações em

favelas nessa mesma época (PANDOLFI & GRYNSZPAN, 2002). Dentro desse quadro

se dará a atuação da Agenda Social Rio e seu debate se concentrará, basicamente, em

propostas que consolidem o acesso a uma esfera de direitos pelos moradores de favelas,

tendo a cidade como espaço para seu desenrolar.

Esses novos elementos darão outro sentido para o uso da memória material do

Borel, agora sob outra iniciativa: o projeto Condutores de Memória. Idealizado por três

moradoras de favelas vizinhas, o próprio Borel e a Casa Branca, seu objetivo é afirmar o

espaço das favelas como parte da cidade pela valorização de sua história, criando uma

imagem positiva de seus moradores que se contraponha às representações negativas

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correntes sobre os mesmos, revertendo os empecilhos ao convívio social provocados

por estas. Ou seja, temos outros interesses políticos, não mais relacionados a disputas

internas por espaços de atuação, embora ainda haja um coeficiente de afirmação como

sujeito social, porém em outro contexto de finalidades. A proposta também possui um

caráter de refletir sobre os padrões de sociabilidades internos às favelas, revelando uma

preocupação em levar ao conhecimento de jovens as memórias locais. Outra diferença é

o escopo de atuação: enquanto o livro de Manoel Gomes retratava uma única favela,

como fica claro em seu título, o Condutores de Memória atuou dentro da região da

Grande Tijuca.

A memória material construída pelo Condutores apresenta outros suportes. Um

textual, representado por um livro institucional, e um audiovisual, concretizado em um

vídeo. Esses suportes apresentam possibilidades de acesso mais amplo que o livro de

Manoel Gomes, em parte por elementos que não existiam na época de seu lançamento,

como a internet. O objeto retratado possui pontos em comum nos dois casos, uma vez

que os produtos de memória do Condutores narram acontecimentos presentes também

no livro de Manoel Gomes, como a exploração de terras pelos “grileiros”, a criação e o

pioneirismo da UTF, além do acesso a serviços. Há, inclusive, a presença de mesmos

personagens nos dois casos. Porém, a principal diferença do tratamento está presente

nos objetivos intrínsecos a ambos. O Condutores de Memória se apropria do passado

sobre o Borel a partir de suas finalidades explicitadas anteriormente, como resposta aos

desafios trazidos pelo contexto histórico no qual o projeto foi pensado e desenvolvido.

Outro aspecto a ser abordado é a relação dos sujeitos sociais que viabilizou a

iniciativa do Condutores de Memória a partir de uma articulação estratégica. O caráter

estratégico (CERTEAU, 2005) dessa articulação diz respeito às condições mais

favoráveis do que as observadas no tocante ao livro de Manoel Gomes. Em um

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panorama político mais amplo, não havia mais a existência de certos fatores repressivos

anteriormente presentes na sociedade brasileira, uma vez que já havia se restabelecido o

regime democrático. Contudo, isso não implica a ausência completa de empecilhos,

tendo em vista as imagens negativas que associavam as favelas à violência, associação

muitas vezes exagerada devido ao desconhecimento de moradores do “asfalto” sobre

esses espaços (LEITE, 2001), bem como aos confrontos armados entre quadrilhas e

destas com a polícia. Porém, o próprio caráter da Agenda contribuiu para uma atuação

mais sólida ao reunir sujeitos de diferentes perfis e esferas, como representantes do

poder público, entidades internacionais de financiamento de projetos sociais,

representadas pela Oxfam Novib, ONGs, escolas, além das próprias lideranças de

favelas.

Ou seja, trata-se de uma reunião de perfis muito mais amplos e com um escopo

de ação em diferentes áreas, além de acessos a diferentes tipos de capitais, físicos ou

simbólicos, quando comparados aos grupos presentes na elaboração de “As lutas do

povo do Borel”. Tal fato permitiu um maior acesso aos produtos de memória do

Condutores, além do estabelecimento de um contato do grupo com outras propostas

semelhantes, o que caracteriza o esforço para a criação de uma atuação em rede.

Desse modo, foram analisados dois exemplos diferentes de construção de

suportes de memória de moradores de favelas, tendo os próprios como agentes centrais,

em diferentes conjunturas históricas. As formas como se constroem essas memórias

materiais de favelas, bem como os usos políticos dados às mesmas, são uma importante

forma de compreender a relação desses espaços com a sociedade. Mais que isso, é uma

forma de se pensar um dos vieses pelos quais as favelas podem se configurar como

palco para o planejamento e implementação de ações de intervenção na questão social

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em diferentes contextos históricos, bem como os interesses, tensões, conflitos, acordos e

demais elementos próprios que permeiam todo esse processo.

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