caminho 27 dez interativo

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O caminho mais longo

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G867c Grings, Márcio O caminho mais longo / Márcio Grings – Santa Maria : [s. n.], 2013. 98 p. 1.Literatura Brasileira 2.Crônicas II.Título

CDU 821.134.3(81)-94

Ficha Catalográfica elaborada pela Bibliotecária Eunice de Olivera – CRB 10/1491

Conselho EditorialPaulo Henrique Teixeira

Silgia SchmidtSílvia Raimundi Ferreira

Revisão de estilo e revisão finalSilgia Schmidt

Projeto gráficoPaulo Henrique Teixeira

Márcio Grings

Capa e diagramaçãoPaulo Henrique Teixeira

Foto do autorJanaína Falcão

Foto capaFabiano Dallmeyer

Foto contracapaLauro Alves

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Prefácio / Eis o caminho 7

Eu e Santa Maria 11Quantas vezes eu ainda vou esquecer 13Ouvindo os conselhos do doutor 15Grama cortada, consciência pesada 17Eu vi um cavalo negro passeando pelas ruas 19Cacos de vidro e pétalas de rosa 21Uma imagem clássica de um álbum inesquecível 23Insônia 25O céu de fevereiro 27Nightclub 29Ele e os gatos 31O fazedor de barulhos 33Cada um tem o Bob Dylan que merece 35Se eu fosse um lenhador e você minha dama 37As botinas 39O visitante 41 Campo de junquilhos 43Santo xis santa-mariense 45O sorriso de Helena 47Pequeno ensaio sobre a vaidade 49Salve a banda do Tio João 51Chato de galochas 53O caminho mais longo 55Pode colocar na minha conta 57A maçã de Vitinho 59Tal como fênix 61Seja bem-vindo outono 63Velhos amigos 65A vida com música 67Veredicto: Culpado 69Apenas o tempo 71Linda 73A barraca iglu 75O ermitão 77Calor dos diabos 79Rádio de pilha 81Enchente de São Miguel 83

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Só as mães são felizes 85Leviandade 87O banho fica pra depois 89Não é “Kêiti, é “Kif” Richards 91Quem vai apertar o botão? 93Kototama 95Vida e correção ortográfica 97Quarenta e oito segundos 99O Tratador de cavalos 101

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Este livro é dedicado a minha mãe, Maria Eleni Grings.

Tenho um bom chapéu na cabeça / uma trouxa às costas / o meu bordão / a brisa refrescante & a lua cheia.

Dwight Goddard

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Eis o caminho “A longa e tortuosa estrada que me leva até a tua porta / Nunca desaparecerá / Já vi essa estrada antes / Ela sempre me leva até aqui / Até a tua porta”

The Long and Winding Road (Lennon/McCartney) Por natureza própria, sempre fui observador e calculista. Muitas vezes me enxergo como aquele cara que fica matan-do tempo de propósito, sabe? Só pra poder visualizar as minúcias do cotidiano com todos os seus desdobramentos. Gosto de colecionar instantâneos, espiar pelas frestas diminutas, buscando luz e sombra nas entrelinhas.

Às vezes sou um homem santo, disfarçado de franciscano a implorar epifanias e supostas verdades absolutas. Outras vezes sou um pecador desmiolado, um idiota inconsequente, tolo experimentador que presume como vai iniciar seu solo, mas sinceramente não tem a mínima ideia de como o troço vai terminar. Sem atravessar a música, e de preferência na tonalidade correta, “O Caminho Mais Longo” apresenta aos leitores uma coletânea de 46 textos que foram publicados ao longo de dezesseis meses (2012-2013), sempre as sextas--feiras no Diário de Santa Maria, época em que atuei como cronista do jornal.

Essas histórias falam de temas comuns a todos nós: - an-gústias, alegrias e o previsível gosto pela nostalgia. Muitas crônicas versam sobre o tempo e nos mostram per-

Prefácio

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sonagens obstinados em encontrar o significado implícito das coisas.

Solidão, a assumida inaptidão em vivermos sozinhos, a inabilidade com afazeres domésticos, a peculiar relação entre pai e filho, a contemplação da natureza e a busca por uma vida simples. Também estão lá textos que exploram o amor, a amizade, o vai e vem dos relacionamentos, sonhos e pesadelos, reflexões sobre dilemas da humanidade, Deus e o Diabo se pegando no pau e a eterna luta da bondade contra a malvadeza.

Uma curiosidade: dentro do cercado dos mil oitocentos e poucos caracteres, a figura materna é abordada em muitos textos, seja de forma direta, ou até mesmo como uma voz interior que guia os personagens pela saga aramada em cada história. E claro, além das citações literárias, das pinçadas pelos filmes, a música [sempre ela, a música] é borrifada incessantemente pelas páginas de “O Caminho Mais Longo”. Bandas ou artistas como Bob Dylan, Neil You-ng, Gram Parsons, Stones, Grateful Dead, Crosby Stills and Nash, AC/DC, Tim Hardin, Willie Nelson, Cazuza, Secos & Molhados, Dolores Duran, entre tantos outros, fazem a trilha sonora do leitor. Tenha um toca-discos por perto, as canções serão tocadas em muitas das páginas do livro.

Somos aprendizes, todos sabemos que apenas uma vida é muito pouco, ou quase nada, para que possamos usufruir de tudo aquilo que experiência humana pode nos proporcionar. Paciência, afinal é o que temos. Ainda mais quando, eston-teados pela procura do atalho mais próximo, muitas vezes nos perdemos em alguma curva ou quebrada inóspita, e só então nos damos conta que, o próximo retorno está distante anos luz de algum momento único que foi desperdiçado.

Não nos basta apenas querer voltar, quando há impossibi-lidade de inverter a nossa própria curva. É nessa situa-ção que nos vemos caminhando resignadamente pelo caminho mais longo. E só assim, depois de muito esforço, poderemos (quem sabe) chegar até o nosso destino. E se formos bem--aventurados e tivermos sorte, a consciência estará tran-quila, com aquela sensação de dever cumprido.

Dá pra imaginar a cena: o sujeito permanece imóvel em frente ao portão, e por um segundo ou dois hesita em bater na porta de quem ama. Tudo o que ele quer é receber em troca o seu tão aguardado troféu. Pois é, não tenha dúvida

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- nada se compara ao familiar deslumbre de presenciar a um sorriso aberto como reflexo dessa eterna procura. Eis a tão esperada recompensa.

Márcio Grings, dezembro de 2013.

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Eu e Santa Maria

Muitas vezes pensei em ir embora de Santa Maria. Sabe aquele sonho de partir em busca de uma nova Terra das Oportunidades? Nunca saí. De alguma forma ou outra eu me movimento por essas esquinas e quebradas há mais de quatro décadas. Conheço cada palmo dessa província de chão bati-do, paralelepípedos e asfalto. Sei o nome das ruas, conhe-ço o cheiro dos lugares e identifico grande parte das pes-soas com quem cruzo no dia a dia. Já contei os ladrilhos da calçada da minha infância na Pedro Gauer, atravessei a Presidente rumo a Alceu Valmose, próximo ao Cemitério Municipal. Joguei bola no antigo campo do Mallet, brinquei de trabuco em um terreno baldio na Av. Liberdade, joguei bolita na Lucídio, levei um “corridão” do Pinduca e da Gang da Quitéria. Tomei um soco do Adriano em frente ao açougue do seu Osvaldo, na Silva, rodei na sexta série do Colégio Fátima e arrumei uma namorada na época do Cilon.

Comecei a forjar minha identidade na Independência, fiz lenha com cadeiras da cozinha do Marco e alimentei a la-reira da sua casa só pra ver o fogo brilhando no escuro. Ao seu lado, conversando por horas e horas, tomei vinho tinto barato nas madrugadas insones ouvindo Jethro Tull e Chico Buarque. Vi o show do Alceu Valença no estádio do Riograndense, cantei Volver a los 17 com Mercedes Sosa na Estância do Minuano – e, bebum, eu apaguei feio em uma barraca minúscula na Tertúlia de 1987. Em um sábado à noi-te, vi A Bruxa no ATC, e no domingo, tomei banho de serra no Pinhal. Quando Gavião fundiu o Alfa Romeo, eu estava na carona do automóvel.

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Vendi discos na Bobbysom, loquei fitas na Da Cás Vídeo, fiz programas de rádio, toquei com minha banda no Coyote e outros bares. Falando de mim, tenho certeza, muitas pes-soas irão vislumbrar traços de si próprios. Já perceberam como a história se apaga ao não resgatarmos nossas lem-branças? Essa galeria na memória precisa ser alimentada. Faça um exercício e tente se lembrar daquilo que aconteceu na sua vida por esta terra. (sem ordem cronológica).

Tenho certeza, muitos resquícios de épocas vividas serão ressuscitadas.

Da mesma forma que continuo vendo o fantasma do meu pai caminhando pela velha oficina da Venâncio, muitas vezes ainda ouço o ronco da Brasília azul do Xandoval em frente ao portão de casa. Parece que foi ontem que Teco passava com seus bolachões debaixo do braço, instigando minha ima-ginação. Não sei por que, acordei saudosista, me lembrando de coisas como essas que contei. Existem outros tantos relatos, alguns impublicáveis, provavelmente até mais in-teressantes, no entanto, destinados a figurar apenas como histórias orais em algum lugar dessa cidade.

Viver e morrer em Santa Maria, talvez seja esse o meu des-tino. Cansei de olhar para o horizonte em busca das Terras do Leite e do Mel, miro os olhos para o céu da Depressão Central e vejo nuvens de algodão se encaixando no quebra--cabeça do firmamento. Mesmo assim, gosto de me imaginar em outros lugares.

Insisto...

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Quantas vezes eu ainda vou esquecer

A memória é uma coisa estranha. Com que frequência somos traídos por ela? Por que será que nos lembramos de certas coisas que aconteceram há 20 anos e muitas vezes, apagamos da mente o que vivemos (dissemos) há apenas 20 minutos? Fico encasquetado com esse troço. Aconteceu de novo, pois não me recordo do que comi no almoço de ontem. Purê de batatas ou mandioca frita? Essa recorrente história de ficar se esquecendo de tudo é algo que faz parte de mim. E tem tempo. Desde criança sou assim, esquecido. Ganhei fama como tal. No trabalho, em casa, em todos os lugares. Nasci com o maldito gene do esquecimento borbulhando nas minhas células. E por isso, sou referência nesse quesito.

Dizem algumas crenças que, quando morremos, nosso espí-rito ainda está atrelado ao que vivemos aqui na Terra. Dessa forma, em uma espécie de treinamento no Mundo Astral por anos e anos precisamos apagar da memória (espiritual) toda a experiência que tivemos. Sim, coisas como o próprio nome, pessoas de nossas relações, amores, sabores prefe-ridos, aromas, enfim, todas as marcas e lembranças dessa vidinha material. Beleza, isso pelo menos me conforta. O recado é que não adianta mesmo lembrar-nos de droga nenhu-ma, pois, queiramos ou não, o Criador vai apagar tudo da nossa cuca. Então, só nos resta relaxar e gozar a experi-ência de esquecer. Pelo menos, dessa forma, já estaremos em sintonia com o lado de lá. Conclusão: como senhor do esquecimento, sou um facilitador. Você se lembra daquele dogma do não-apego budista? Pois é, não se apegue! Esqueça tudo de bom e de ruim, e assim, sofra menos.

Fácil dizer, não é?

E lá vou eu, pela milésima vez, ficar procurando a chave do carro por um bocado de tempo para, logo depois, encon-trá-la dentro do bolso da jaqueta. Quantas vezes eu ainda vou me esquecer de pagar uma conta por puro esquecimento mesmo? E dá-lhe juro! Quantas vezes eu ainda vou esquecer

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a senha daquela minha conta no Pay-Pal?

Qual é o nome da marca do amaciante de roupas preferido da minha mãe? Que piada! De novo esqueci qual o meu signo ascendente. Que disco do Bruce Springsteen tem Drive All Night? Preciso ouvir aquela música. Aonde guardei aquelas 100 pratas que ganhei num trambique? Qual o nome daquele cara chato que vive me aporrinhando no Facebook? Em que tom eu toco Heart of Gold do Neil Young? Putz, que horário preciso tomar o meu guaraná cerebral? Qual é o nome do meu médico? Mário do que, mesmo?! Que idade vai fazer a minha avó? Qual a receita daquela maionese sem azeite? Preciso lembrar-me de colocar aquele pacote nos Correios...

O que eu ia te dizer, mesmo? PQP! Droga de memória. Pre-ciso atravessar esse Mar do Esquecimento.

Mas afinal: com quantos paus se faz uma canoa?

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Ouvindo os conselhos do doutor

A rua está parcialmente trancada por causa de centenas de jovens reunidos em torno de uma distribuidora de bebidas. Ele permanece o tempo todo entre freio de mão e embrea-gem, fica dando uns cutucões de leve no acelerador e a mão direita não sai da primeira marcha. A sinaleira está distante. Tem a impressão que os intervalos de mudança do semáforo estão durando o dobro do tempo. A cada troca de cor, o automóvel avança apenas alguns centímetros. Não emula nenhum tipo de protesto. Afinal, já há protestos demais. Buzinas. O amontoado de luzes, faróis e lanternas traseiras projetam um conglomerado de imagens borradas de vermelho, tons alaranjados e similares. Não tem como sair dali, sem chances. Já está atrasado para o seu compromis-so, não vai chegar na hora nem com intervenção divina.

18h15min.

Imóvel, via celular, dá uma conferida no e-mail, responde mensagens, enquanto ouve Hoje nos Esportes, na rádio Gaú-cha. Nando Gross diz que o Internacional precisa ganhar a próxima partida para avançar no campeonato. Não vai ga-nhar...

Antes do break comercial, Nando toca Changes do Black Sa-bbath. “I’m going through changes”. A fila não anda. Ficar parado no trânsito é uma espécie de divã involuntário. Dentro do automóvel, um terapeuta imaginário lhe indica o caminho a ser percorrido.

– Você precisa parar de criar expectativas demasiadas – diz o especialista.

Ele baixa o volume do rádio e tenta prestar a atenção no cara.

Não é apenas uma voz interior, acredite – ele vê um homem confortavelmente reclinado no banco do carona. O estranho

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continua falando.

– Você se lembra do Dr. House, da série de TV?

– Claro, sou fã do doutor – responde o motorista.

– Então já ouviu as palavras do filósofo Jagger: você não pode sempre ter o que quer. Dessa forma, o personagem de Hugh Laurie introduzia um de seus bordões favoritos, ex-traído de uma música dos Rolling Stones (You Can’t Always Get What You Want). Uma frase aparentemente depressiva, não concorda?

Balança a cabeça positivamente e fala:

– E daí, quem sabe, você encontra o que precisa, é isso né - but if you try sometimes, you just might find you get what you need!?

Pois é, por outro ângulo, esse conselho pode soar anima-dor. Afinal, se você tem o conhecimento prévio de que nem sempre as coisas sairão como você quer, há chances de se decepcionar um pouco menos com as pessoas e com a vida. Muitas vezes esse pessimismo disfarçado pode ser uma forma de otimismo. Ah, e pare de cobrar tanto a si mesmo. Ok? – complementa o doutor.

Logo após, ao término de sua “análise” preliminar, como num passe de mágica, o terapeuta desaparece. No mesmo ins-tante, a fila anda e o motorista finalmente rompe a faixa de segurança cruzando o ponto crítico do congestionamen-to. Não tem outra, poucos metros depois ele para o carro, abre o porta-luvas e procura Let It Bleed, dos Stones. Seleciona a faixa nove do CD, dá o play e ouve o coral inglês cantando a frase do Doutor.

Mick sabe das coisas.

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Grama cortada, consciência pesada

Ele coloca uma bermuda, camiseta de física e calça o velho par de botinas. O gramado precisa de um corte urgente. O mato e as ervas daninhas tomaram conta de tudo. Faz tempo, estão sufocando a grama. Se você olhar para o terreno, não verá vestígios de alguma forma organizada de cultivo por ali, apenas um monte de inços indesejados. Passado o inverno, tiririca, barba de bode, picão preto, voadeira, beldroega, urtiga, carrapicho e tantas outras pequenas vegetações, multiplicam-se assustadoramente em volta da-quela casa e desafiam seus parcos conhecimentos em botâ-nica. Tem uma porção de coisas com nomes não identificados proliferando a passos largos. Inclusive, algumas delas devem servir pra algum tipo de tratamento fitoterápico.

Quando a estação fria se despede, anunciando a proximidade da primavera, prontamente os brotos das árvores apontam, vingativos, nos galhos (aparentemente) secos, indicando que outro ciclo se iniciará. Temperatura agradável, chei-ro de floração no ar, o sol queimando mais forte às quatro da tarde. Ele estica a extensão, liga o fio na tomada, aperta o botão vermelho na máquina e começa a patrolar o gramado. Passeia pelo terreno com a máquina. Em pouco mais de uma hora, atora um sapo no meio, entorta uma das pás com as pedras escondidas no terreno, leva um ricocheteio de caco de vidro na canela (uia!) e finalmente finaliza o trabalho mais pesado. Faz os acabamentos com uma tesoura e leva um tempo até recolher todos os resíduos. Acumula a grama e o mato desbastado no fundo do pátio, e se o tempo colaborar, em uma semana tocará fogo naquele troço.

Enquanto recolhe o material e brinca com o cachorro, fica curtindo os últimos raios de sol iluminando o gramado bar-beado e asseado. É bonito de ver o resultado do seu esfor-ço. Aquele ‘shape’ no quintal valoriza o arvoredo, assim como as gatas parecem felizes em perceber os grilos des-guarnecidos de seu esconderijo natural. Um joão-de-barro, cuidadosamente, disputa os insetos enquanto esgravateia o

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chão. Os matizes no céu ganham tons rosados e a temperatu-ra despenca rapidamente. Um pedaço da lua desponta morro acima. Mas sabe o que não sai da cabeça dele? É que, como não arrancou as ervas-daninhas, ao passar com a máquina sobre a vegetação, as pás do cortador inevitavelmente, além de cortar a grama, também lançaram as sementes igual confete envenenado pelo terreno. As raízes nocivas também não foram ceifadas. Por isso, não tem jeito: o mato vol-tará a crescer com o mesmo viço de antes. Provavelmente mais fortes. “O que fiz?”, ele se pergunta. “Afinal, não adianta maquiar a situação”, conclui em pensamento.

Varrer o lixo para debaixo do tapete, quase sempre uma estupidez.

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Eu vi um cavalo negro passeando pelas ruas

Naquela hora da madrugada, o som das patas do cavalo se propaga facilmente pelas ruas mortas. O animal troteia mansamente, como se soubesse o caminho de casa, farejando alguma coisa que encontra no caminho e aparentemente ig-norando o protesto dos cães, que latem ao vê-lo cruzar em frente aos pátios onde estão confinados. O cavalo negro não, naquele momento está livre, sem sela, arreios, nenhum tipo de mortalha ou acessório para lhe cercear o trote. Crinas revoando, músculos impulsionando a fera, que não possui cavaleiro a conduzi-lo para algum tipo de tarefa ou exercício. E apesar de aparentar cansaço, aquele bi-cho ostenta a imponência e a força de um dos personagens coadjuvantes mais injustiçados da história da humanidade.

Já pensaram quantos animais tão majestosos quanto esse sucumbiram em guerras e presenciaram tragédias pessoais pelos quatro cantos do planeta? E sempre anônimos, carre-gando heróis, mártires e claro, muitos idiotas de todos os naipes. Alguém algum dia já leu algo sobre o cavalo baio de Bento Gonçalves? Será que o alazão de Simon Bolívar era tão belo quanto a imagem que vemos nas pinturas? O mustang do General Custer era realmente branco? Será que Adolf Hitler tratava devidamente seu corcel?

Quando criança, minha principal preocupação ao assistir os faroestes na TV, era de ficar imaginando o monte de cavalos mortos naqueles tiroteios e embates sanguinários entre índios e mocinhos. Na mesma época, lá pelos 11 anos, tornei-me um leitor voraz de HQs western, principalmente um “fumeti” italiano chamado Ken Parker. Sempre gostei de ver a relação entre Ken e seus cavalos. Havia muita sabe-doria naqueles gestos entre homem e bicho. Eu me lembro do primeiro que montei na vida, uma égua de pelo avermelhado do meu avô. Pitiça, ela era tão mansa que suportava uma tarde inteira de sobe e desce pela chácara da família, le-vando eu e meus primos pelos quatro cantos, sem em nenhum momento, demonstrar desaprovação ou irritabilidade. Pobre

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do bicho. Gostava de alimentá-la de manhã, antes do meu avô prepará-la para mais um dia de feira.

Já o nosso cavalo solitário continua marchando para al-gum lugar da cidade. Encontra o asfalto, alguns carros e fica mais agitado ao ouvir o som de suas ferraduras e as chispas rebatidas no piche. Em um movimentado cruzamento, não para frente ao sinal vermelho do semáforo. Um relincho estridente corta ao ar e faz uma mashup com o soar de uma buzina.

Crash!

Um caminhão bate de frente no cavalo, que não encontra tempo algum de buscar uma saída. Impacto. Pancada na car-ne, ossos expostos. O animal fica esperneando no chão e o sangue toma conta de seu corpo. Fraturas. A frente do veículo fica destruída, mas o condutor não sofre um ara-nhão sequer. “Sem problemas maiores, o seguro irá cobrir os danos”, ele diz ao policial que atende a ocorrência. Morto, o cavalo é recolhido e, posteriormente, deve ser enterrado em algum local desconhecido. Sem nome, sem dono, como se nunca tivesse existido.

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Cacos de vidro e pétalas de rosa

Espia pela porta e vê muitas garrafas quebradas. Centenas delas. Entreabre a porta e o ranger do metal com a madeira produz um ruído. As janelas estão escancaradas, e quando o sol bate nos cacos de vidro, produz um mosaico de cores que refletem raios lasers fictícios nas paredes brancas daquela sala vazia. Gosta do que vê – luz e sombra. Os estilhaços no chão parecem um estranho tapete carnívoro sedento pelos pés descalços de um novo passante. Levanta a cabeça e olha para frente com um tipo de olhar Messi-ânico pertencente aos heróis. Mas... Por um instante, a confiança se esvai e ele reluta. Parece sentir antecipa-damente a dor de dezenas de fagulhas perfurando a sola dos pés. Segundos depois, cria coragem e progride sobre a superfície cortante. Não há dor. O barulho do impacto da pisada firme se chocando contra as lâminas de vidro lembra som de mastigação, parecido com alguém faminto devorando bolachas cream cracker.

Ele segue e não há dor. Chega até uma antessala e agora o cenário muda. Um número incontável de pétalas de rosas vermelhas jogadas no assoalho assombra seu olhar. Nova-mente olha para os pés e agora vê que o vermelho também toma conta da sola dos pés, vazando como tinta guache por entre os dedos. Sangue. Mas ainda não há dor. Novamente a luz toma conta do ambiente. Caminha adiante e diversas pétalas ficam adesivadas aos seus pés. A pisada fica mais macia. Chega até um ambiente menor, sem janelas e pouca luz. Aquele local semelhante a um banheiro está coberto de azulejos brancos do teto ao chão e tem no seu centro uma enorme banheira. Há um abajur em uma das extremidades, distribuindo fachos alaranjados que deixam sua pele com a aparência de desenho animado. Como um herói da Marvel. Ao se aproximar da banheira, fica de cócoras e coloca a mão dentro do bojo. Água morna. Tira a camiseta, jeans e a cueca e se ajeita dentro daquela pequena piscina.

Dentro d’água, a mansidão vai tomando conta. Escora a

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cabeça na borda e fecha os olhos. Percebe que uma brisa leve vai tomando conta do ar, um sopro agradável. Abre os olhos e só agora vê uma diminuta báscula entreaberta junto ao alto do teto. Um vapor semelhante a fumaça de cigarro surge serpenteando por entre aquela abertura, distribuin-do um suave aroma de pinho. Percebe que a saliva ganha um gosto de eucalipto. O coração fica acelerado e dá pra ouvir os batimentos cardíacos como se fosse um pedal no bumbo de uma bateria.

A fumaça se materializa numa figura humana de túnica e capuz. Levanta da banheira como uma baleia sendo arpoada. Água para todos os lados. Aquele estranho ser permanece imóvel. O homem nu fica acuado num dos extremos, e percebe um interruptor de luz.

Liga.

Acorda.

Um copo de água com limão desaba do criado mudo direto para os cobertores. Um desastre no sono às três e vinte da matina.

Ele resolve que vai parar de ver filmes antes de dormir.

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Uma imagem clássica de um álbum inesquecível

Sempre achei que o olho ainda é a melhor máquina da ima-gem. Na maioria das vezes, o que é capturado pelo olhar humano, nenhum equipamento conseguirá reprisar. Aprisio-nar o instante mágico - esse é o grande desafio de quem fotografa. Encapsular um dropes do tempo e transforma-lo numa preciosa filigrana da eternidade. Tem uns caras que já chegaram perto. Folhando um velho livro de fotografias que tenho em casa, revi alguns takes de gigantes do gêne-ro. Em cada foto, minha cabeça girava montando histórias por trás do que via. O que aconteceu antes do clique? O que se sucedeu depois que o fotógrafo baixou a guarda? Cada personagem carrega uma ciência conectada às cenas.

Por exemplo, imagens e capas dos LPs nunca deixaram de me encantar. Tem uma em especial, que sempre inspira curio-sidade: a foto impressa no primeiro álbum do trio Crosby, Stills & Nash.

Grande disco, muitas sensações.

Lançado em 1969, na imagem vemos três camaradas sentados a um sofá carmim esfarrapado, recostados confortavelmen-te junto a um humilde casebre de madeira. Na foto, temos David Crosby, preguiçosamente espichado no sofá. Bem ao centro, vemos Stephen Stills, dedilhando uma nota qual-quer no violão, e na outra ponta, Grahan Nash, atento ao disparo da câmera fotográfica de Henry Diltz, o homem que apertou o botão e eternizou o encontro. Ah, e ainda tem o elemento surpresa! Na contracapa, o baterista Dallas Taylor aparece espiando pela vidraça da janela de uma por-ta de madeira. O que muita gente não sabe é que o rosto de Taylor foi acrescentado à foto, ele não estava lá.

Isso aconteceu porque, egressos de outras bandas, quando o trio de dissidentes realizou a sessão de fotos, semanas antes da conclusão das gravações, eles ainda não tinham nome definido e não haviam encontrado o baterista que iria

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auxiliá-los na feitura do futuro álbum. A casa abandona-da em que foram feitas as imagens ficava localizada em West Hollywood, em frente a uma lavagem de carros. Quan-do Dallas Taylor efetivou como membro do projeto, David, Stephen, Grahan e o fotógrafo retornaram com o baterista até lá, para então, refazer a foto com o novo colaborador.

Tiveram uma surpresa.

O casebre havia virado uma pilha de madeiras. Isso sim-boliza uma dos truques da fotografia, na imagem, a casa continuava intacta, e assim Taylor pôde ser incluído “men-tirosamente” na foto da contracapa.

Olhar uma fotografia é como embarcar em uma máquina do tempo. Álbuns de famílias, capas de discos, fotos anti-gas no jornal, imagens aleatórias buscadas na internet são apenas tentativas de guardar um pedaço do tempo. E quando o fotógrafo consegue chegar perto desse objetivo, acorrentando uma fração de segundo com seu clique mágico, aceitamos que há limitação de nosso olhar frente a essa máquina. Os olhos registram o sublime em nossa memória, que pateticamente não encontra um meio de expor aos outros sua experiência. O fotógrafo, com ajuda de sua máquina, tem esse coelho na cartola.

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Insônia

Oh, insônia! Por que força a fechadura da porta do meu quarto justamente quando estou tão cansado de tudo e de todos? Por que me fragiliza com seus infortúnios e male-dicências? Insônia, tal como um corvo agourento, repousa com propriedade e abre suas asas na guarda da minha cama, crepitando as garras sobre os lençóis e puxando com unhas afiadas os cobertores para baixo. Insônia que me deixa nu, tremendo de frio e me assombra com memórias daquilo que vivi há milhares de anos, ou há apenas alguns instan-tes. Tenho certeza que aos olhos desse demônio impiedoso, mil anos não diferem do dia de ontem, cruzando rápidos como um piscar de olhos. A insônia é igual a um psicopata partindo pra cima de você com uma arma de fogo na mão. A insônia fragiliza o tempo que vai precisar de bem mais do que sessenta segundos para me convencer que os ponteiros do relógio não estão pregando uma peça no minuto corrente.

Ah, maldita insônia dessa noite fria. Sob esse jugo, sigo aborrecido e contrariado em rezar nessa cartilha a qual sou obrigado a praticar sua estranha doutrina. Não vou me ajoelhar ou implorar por piedade ou me render a essa vereda. Por favor, pare de apontar teu dedo em riste na minha cara. Abandona o inverno dos meus dias e não trans-forma outra madrugada chuvosa em um pavoroso filme de ter-ror, atopetado de efeitos especiais enganadores. Chega de raios, trovões e jogos cênicos de esconde-esconde. Implo-ro por uma pausa de todo e qualquer pensamento. Insônia, por que grita tão alto bem próximo ao meu ouvido e puxa meus pés quando quase pego no sono? Sou um pescador que lança linhas na correnteza esperando um peixe graúdo que possivelmente não irá morder a isca. Mesmo assim, fecho os olhos e busco o Eldorado no lago artificial de meu traves-seiro. Tenho a impressão que alguém trocou as plumas por espinhos e cacos de tijolos.

Entendo que há recados e duplicidades em teus avisos e missivas. Contradição? De minha parte, apenas gratidão,

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eu diria. Por isso, preciso sim compreender tua [suposta] indesejada visita, pois sem dúvida, há um sinal de alerta sendo soprado sem nenhuma sutileza. Abençoada seja essa santa insônia de agosto, obrigado por colocar o holofote na minha cara e lembrar o quão frágil sou dentro dessa armadura corpórea que eu habito. Obrigado pelas aulas de reforço e por fixar-me no devido lugar que nunca deveria ter saído.

Por fim, bendita insônia que pega na minha mão e me conduz por esse corredor estreito que leva até um limbo particu-lar. Espreme meus ossos e raspa o verniz do sono pesado, e por favor, livra-me do engodo de uma vida que não é a minha. Daqui alguns dias, quando novamente receber tua visita, quero encontra-la com o coração aberto, e quem sabe, bater um longo tête-à-tête ao som do Vento Norte. Vai acontecer de novo.

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O céu de fevereiro

Ultimamente tenho olhado para céu de uma forma mais aten-ta. É preciso reparar, contemplar, ficar um tempo com os olhos voltados para o horizonte. Como é bom poder assis-tir de graça um espetáculo dessa amplitude todos os dias. Tenho o costume de acordar cedo, sempre antes das 7h, e é inacreditável com o que ando me deparando nos últimos dias. Uma série interminável de chumaços de algodão, nu-vens que bailam tontas de azulina. Minha parte preferida é ver o sol dourando a pílula no amanhecer. Nos últimos minutos da madrugada, aos poucos o Astro Rei vai semito-nando a manhã com seus raios em serpentina, que disparam luzes vermelhas, rosadas e amarelas.

Na outra ponta do dia, temos o entardecer... E, Deus do céu! Fiquei viciado em admirar esses fins de tarde. O sol derretendo como manteiga num pão caseiro recém-saído do forno, desmanchando-se lentamente em cores mornas por trás dos morros. Tenho visto muitos shows desse naipe, quase sempre antecipando noites de céu estrelado. É quando me lembro de Entardecer, poema do saudoso Antônio Augusto Ferreira, que virou música na voz de Leopoldo Rassier:

“Um matiz caboclo/Pinta o céu de vinho /Pra morar sozi-nho/Todo o pago é pouco/Todo o céu se agita/O horizonte é louco /No matiz caboclo/de perder de vista”.

Logo adiante ele diz:

“O sol poente arde/Em sobrelombo à crista/ Quando Deus artista/Vem pintar a tarde”.

Quanta sabedoria, Antônio Augusto! Em suma: sempre me vem a mente essa música/poema quando o dia recolhe suas cor-tinas. O hábito de olhar para o céu me derruba de verda-de. Enquanto homem que sou, falível em minhas virtudes e fraco em tentar evitar os descaminhos, apesar de todas as turbulências que vivemos, sim, o sol sempre brilhará para

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todos. Sem exceção. Basta olhar pra cima e aceitá-lo como um presente. E aí a música me recorda:

“Vai chegando a tarde/De pensar meu rumo/Alço o olhar lobuno/Mais além do poente/Onde vive ausente/Meu olhar reiuno”.

Certa vez conversei com o poeta sobre o ofício de es-crever. Nunca vou me esquecer de um conselho: “Busque a simplicidade”. Antônio Augusto não gostava do falso re-quinte, do embuste, do artifício da erudição poética re-quentada pela sobrepujança plástica. Simples assim. Pre-cisamos entender que o mais difícil, muitas vezes, é não enfeitar o jogo. Nada de fazer embaixadinhas na frente da torcida apenas para arrancar aplausos fortuitos. Sou apegado a essa linhagem que Antônio Augusto prega em sua obra. Simplicidade. Almejo ser chamuscado por esse pre-ceito. Por outro lado, nobre poeta, não posso concordar com as últimas linhas de Entardecer:

“Amada/Amada/Por viver sozinho/Não me apego a nada”.

Sou apegado a muitas coisas. Pra começo de conversa, ape-sar de já adentrarmos o mês de março, sou completamente apaixonado por esse céu de fevereiro. Puro saudosismo. Que março não nos decepcione. Olhe pra cima...

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Nightclub

A bola de espelhos gira e distribui luzes por todo o am-biente. Como um tolo, ele fica olhando aquele pisca-pis-ca que parece antecipar as luzes do Natal. Puro brilho e contentamento. A música eletrônica não oferece nenhum tipo de atrativo, pelo contrário, parece que o bate-estaca está enchendo a bunda dele de pontapés. Como se tivesse o expulsando dali. Tonteia com aquela combinação estranha e claustrofóbica. Paralisa. Ele é um estrangeiro honorário com extrema dificuldade de se comunicar, como se falasse outra língua. Fica encostado em um pilar e até consegue bater o pé, meio que desajeitado, mas tentando se inserir no contexto. Mas não ‘tá fácil.

Alguém se aproxima e lhe pergunta algo. Ele coloca a mão no ouvido e inclina a cabeça, que fica bem próxima des-ta garota, tentando explicar que não entendeu o que foi dito. Desconectada, ela repete, falando mais alto, bem no momento em que muda a música, e o som fica mais grave. O que acontece? Novamente não entende nada. Ela fica brava e dá de ombros, se afastando dele, que definitivamente, ficou perdido naquela tentativa de diálogo.

Resolve ir até o balcão e pede um cardápio. Os drinques são caros pra caramba! Pede uma cerveja. O garçom teve dificuldade de entender o que ele quer. Precisa apontar ‘pro papel para que o barman finalmente o entenda e o atenda. No final das contas, a ceva veio quente. O tempo todo fica se perguntando: “O que estou fazendo aqui?”. A cada segundo, uma nova evidência dava um toque na sua cara: “Salta fora, rapá!”.

Procura um rosto conhecido. Não encontra. Aquele night-club não foi feito para pessoas como ele. Paga a conta e volta para as ruas em direção ao caminho de casa. Mora a algumas quadras dali, portanto, resolve ir a pé. Não im-porta a direção que se vai quando não se sabe aonde ir. Na verdade, não está com vontade de voltar para a cama.

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Meia quadra adiante, o pisca-pisca de outro boteco atrai seus olhos cansados. Coloca a mão no bolso, e fica para-do no meio da calçada olhando a porta de entrada. Não há fila. “Entro ou não entro nessa joça?”. Acaba entrando. Engraçado, dessa vez em um ambiente menor, de cara, se sente mais à vontade. Talvez porque o bar não esteja lo-tado. Fica olhando para a TV, onde passa um show do AC/DC gravado em Buenos Aires. Angus Young está vestido com a roupa de sempre, um colegial endemoniado que pula de um lado para o outro, como se fosse um garotinho. O público argentino responde a altura.

Enquanto não descola os olhos da tela, ele fica repetindo a palavra nightclub meia dúzia de vezes, bem baixinho: “náiticlâb, náiticlâb, náiticlâb...”. Nunca entendeu por que faz coisas desse tipo. O som de certas palavras o atrai. Certo, algum troço dentro da cabeça dele não fun-ciona muito bem. Angus começa a tocar o riff de You Shook Me All Night Long. Debruçado no balcão, lentamente enrola os fios do seu bigode, bate o pé (agora com certa elegân-cia) enquanto observa zelosamente a cerveja ficando choca entre as mãos.

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Ele e os gatos

Ao acordar, percebe a garganta embolada. Liga o rádio para ouvir as notícias e pigarreia porta afora da cozinha. O Papa domina os noticiários. Tosse soltando fumaça pela boca. Para soltar o peito, dá uma senhora cuspida. Nojento aquele troço. Lembra-se do velho Ford Modelo T de seu avô engasgando na garagem. Quantas vezes aquele caco deixou a família na mão? Conversa com os gatos enquanto enche os potes de ração. O som da sua voz sai rouco, estranho. Olha o termômetro na área externa e percebe que a coisa ‘tava braba. Se pudesse se ver no espelho, a autoestima iria para o saco. O Espantalho do Mágico de Oz dá um banho de elegância perto daquela imagem deprimente. Caminha pelo pátio com um roupão azul de listras brancas, um cuecão de lã preto justo que o deixa com pinta de bailarino russo aposentado, chinelos de lã, cachecol e boné de caminhonei-ro na cabeça. Uma barbuda figura deprimente retorcida pelo frio segue fantasmagoricamente até o portão para buscar o jornal. Na capa, a manchete diz que o Colorado é líder do Brasileirão. Procura uma réstia de sol para folhear as páginas até perceber que o jornal já está velho às sete e meia da manhã. Que coisa! Neste mundo de hoje a velocidade é um mal difícil de ser derrubado do alto do pódio. Tudo parece turbinado pelos movimentos do relógio que implaca-velmente nos empurra para o futuro de nossos dias.

Tem um poema que fala disso:

“Perceba, antes que amanheça/Cada segundo é uma despedida/Cada palavra que dizemos pode salvar uma vida/Ou feri-la com um golpe mortal. (...) Repare antes que seja tarde/Antes da próxima chuva/Ou antes, que alguém desapareça/Tudo passa muito rápido”.

Sim, não há dúvida. Tanto que escreveu essas linhas há 10 anos, e parece que foi ontem que as rascunhou num guarda-napo de papel. Enquanto tira a erva da cuia, fica imagi-nando o quanto seria fácil se pudesse fazer o mesmo com

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algumas coisas na sua vida. Extirpar o lado nefasto como erva velha atirada no fundo do pátio. Não que ainda haja esqueletos escondidos no armário da cozinha ou que esteja com o rabo preso em alguma situação indesejada, nada dis-so. ‘Tá tudo zerado dentro dele. Aquela velha história de recomeçar pela milésima vez não é mais novidade nenhuma. Faz parte do jogo. Talvez o frio o deixe um tanto mais pensativo, reflexivo como sua errática existência... Até ser despertado pelo barulho da chaleira chiando. Ajeita a erva nova no canto esquerdo da cuia, coloca a água quente na térmica e previsivelmente, outra vez, procura um sol-zinho no fundo do pátio para matear solito. Bem, nem tão sozinho assim, já que o “gataredo” fica se roçando o tempo todo em suas pernas. Os três bichanos disputando segundos de sua atenção.

Assim como Bill Burroughs, nos últimos anos também se tor-nou amante dos gatos. E, agora, reconhece a alma felina como um espírito familiar. Sem dúvida, compartilha coisas com os gatos. Como aquele momento único que vai passar voando.

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O fazedor de barulhos

Nunca conseguiu explicar o porque disso, mas sente um es-tranho prazer em assinar parte de suas ações com baques e barulhos característicos. Para quem não sacou o espírito da coisa, é simples. Por exemplo: gosta de bater portas de forma abrupta. Armários, cancelas, caixas, enfim, tudo que possa gerar um estampido seco. Outra cena, de madruga-da, ao caminhar no asfalto ou em algum terreno pedregoso, quando o silêncio paira sobre a noite, necessita ouvir o som dos tacos do par de botinas chispando sobre o chão. Batucar no teto do carro é algo que sempre lhe dá pra-zer. Acionar alarmes que lembram golfinhos o faz sorrir. É como se precisasse de evidências que não passou dessa pra outra. Sim, ele não é um fantasma. A cada novo rugido das moléculas promovido pelos seus movimentos, existe uma prova de que está vivo.

Esse troço do som talvez aconteça por que muitas vezes tem a impressão de quê tudo que vê e sente – é tão nebuloso e embaçado. Artificial como um comercial de cartão de crédi-to. Sorrisos demais, cores em excesso, sabe? Como uma foto publicada no Instagram, essas imagens antecipam previsí-veis finais felizes e cinematográficos. As coisas preci-sam dar errado de vez em quando. O velho Neil já dizia:

“Só merece o sucesso quem conhece o fracasso”.

Pois bem, novamente, ele acaba de estourar o limite da sua conta. E sem um puto pila na carteira, vê o ponteiro do tanque de gasolina chegando à reserva.

Essa coisa do som é engraçada. É como um videoclipe sem música. Tire o som da TV e comprove como a magia evapora. Pois então, imagine um jogo de truco sem oralidade e ges-tos? Impossível, não é?

Agora está quase chegando a sua casa. O som do pisca-pis-ca o faz sorrir. As mãos ásperas deslizam pelo volante e

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isso lhe causa uma sensação boa. Aproxima-se da entrada do portão. Abre o cadeado e solta a corrente. A cancela está aberta. Entra e estaciona o veículo. Desce do carro, bate e porta com força e aciona o alarme. O golfinho diz ok. À noite, o som se propaga como mais facilidade. As botinas batucam no chão. Retorna e fecha aquele amontoado de arame e metal que faz um barulho característico quando engata no seu lugar. Transpassa a corrente no portão e afivela o cadeado nos elos. Percebe que sob a sombra da lua cheia tudo que o cerca parece estar imantado com uma luminosidade elegante.

Fica um tempo escorado no muro que divide o terreno. Ba-lança o molho de chaves e escuta o tilintar reverberando além. Ele sabe, aquela coruja que sempre visita o pinhei-ro mais alto do seu pátio deve piar em instantes. Dizem que é mau agouro. Na Roma antiga, poucos minutos antes de morrer, um bicho desses pousou na janela do quarto de Com-modus Aurelius. Por outro lado, reza a lenda que Gengis Khan foi salvo por uma. Já esse sujeito, que recostado ao muro, faz desenhos no ar com o molho de chaves pirigete-ando como guizos de uma cascavel, parece não ter pressa de entrar.

Tenho a impressão que ele apenas quer ter certeza que o pesadelo ainda não terminou.

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Cada um tem o Bob Dylan que merece

Ele pega o telefone e fica olhando para o aparelho. Um misto de ímpeto e dúvida. No meio da muvuca do shopping, sentado na praça de alimentação, começa a ligar para um número qualquer. Você olha para o cara, e, de ‘prima’, vê que o cidadão não passa de uma piada. O que são aquelas calças jeans folgadas? Tecla metade da numeração e para... Dispersa. Olha as redes sociais, abre o álbum de fotos e compartilha uma lembrança do ano passado, mas como se fosse vivida naquele momento, saca? Na verdade, quando se compreende que a vida é repleta de armadilhas, muitas vezes é tarde para retroceder. A mesma joia que grifou a marca do entusiasmo na retina, detona com toda confian-ça quando a luz migra para a opacidade. Com o passar dos dias, nenhuma espécie de cuidado ou zelo podem abrir o brilho de um falso brilhante.

Continua fuçando no celular. Essas máquinas de hoje são repletas de idiossincrasias. Você carrega a Bíblia em ver-são Android e o número de uma prostituta na mesma tela. E não me olhe com esse olhar de surpresa, seu hipócrita de meia tigela! Quem nunca pecou que atire a primeira pe-dra. E qualquer um adora lançar uma pedrinha no telhado de vidro do vizinho, não é? Mas daí, meu, o tal efeito bumerangue vem que é um Dodge pra cima dos seus cornos, e é quando se lembra da implacável lei do eterno retor-no. Tudo que vai, volta. Tudo que sobe, desce. Tudo que sopramos pra lado de lá, um dia volta para o lado de cá. Ainda batendo na pinha dos clichês: “O que aqui se faz aqui se paga”, não é assim que as coisas são? “Olho por olho, dente por dente?”.

E o cara continua no seu mundo particular, como uma espé-cie de autista honorário. Acho que ele ‘tá jogando aquele game estúpido dos passarinhos e estilingues. Pra comple-tar o quadro, coloca o fone de ouvidos e dispara uma mú-sica da Ana Carolina no talo. Dá pra ouvir aquela letra idiota que fala de um descornamento comum a tantos de nós.

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Música ridícula! Que tipo de ser esverdeado gosta de uma música como essa? Mais intragável, só se for uma Maria Gadú, o maior engodo dos últimos tempos da MPB. E o pior: meio mundo engole essas duas e mais uns duzentos do mesmo naipe sem tomar um antiácido. Haja estômago de avestruz. Deus do céu! Não se engane - Nosso Pai Celestial ouve Crosby, Stills & Nash no café da manhã, Gustavo Telles no almoço e Free nas noites de sábado. Ok, ‘tá certo, igual a Ele, você também tem o direito de se perder no Expresso de Marrakesh.

Enquanto isso... Nosso personagem cria coragem e disca a sequência completa de números que o conecta com o “a-l--ô-u” de uma voz feminina. Um tom piadista lhe responde, separando as letras como se inventasse um novo sotaque gringo. Ele desliga. Não teve coragem de falar uma sílaba sequer. Seleciona um som da Legião Urbana, assesta os fo-nes no ouvido e sai caminhando rumo à saída do shopping.

Bom, cada um tem o Bob Dylan que merece.

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Se eu fosse um lenhador e você minha dama

Tem uma música de Tim Hardin (...) a letra meio que pas-sa a impressão uma cena pastoral envolvendo um casal em alguma época perdida no tempo. O personagem masculino da canção teme que a escolha por uma vida mais simples possa afastá-lo dos seus. E para isso, supostamente ele se torna um carpinteiro, um homem humilde que se realiza esculpindo a madeira ou fazendo serviços braçais para ganhar o pão de cada dia. Assim, esse sujeito se isola com a mulher amada num lugarejo fora do mapa. Pena que isso não passa de um sonho hippie.

Já você é uma típica figura do mundo moderno. Como muitos de nós, está sujeito a truculência do capitalismo. Faz mil coisas para pagar as contas, e apesar disso, no final do mês, acaba percebendo que mais uma vez... Quaaase chegou lá. É... Não foi dessa vez, meu bem! Isso na verdade rou-ba toda sua energia. E aí entra novamente a letra de If I Where A Carpenter. O cara da música vive um dilema pareci-do, e de seu esconderijo nada idílico, pergunta à mulher que está ao seu lado:

“Se eu fosse um funileiro por ofício/ainda assim você iria segurar a barra ao meu lado/quem sabe, carregar as panelas que eu fizesse/seguindo atrás de mim sem recla-mar?”.

Tem outra parte que diz:

“Se eu fosse um moleiro/consertando as pás do moinho/você sentiria falta do seu mais belo vestido e daqueles sapatos macios e reluzentes?”.

Essa droga de vida nos joga no liquidificador e sacode cabeças com a velocidade de uma Ferrari a 300 por hora.

Da mesma forma que reinventa a letra de Tim Hardin, ele imagina que poderia ser um lenhador. Agora trabalha den-

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tro de uma mata de pinheiros por 50 cents ao dia. Um personagem messiânico que derruba árvores centenárias. Um paladino que palita os dentes dessa floresta cheirosa e inundada de vultos milenares. Gosta de ver os troncos desabando e abrindo brechas no meio do vale das sombras. E só assim cumpre sua missão: – favorecer o livre acesso dos raios de sol.

No final da tarde, ele guarda seu machado e volta para a cabana onde vive. Do alto da estrada, vê a pequena chaminé fumegando uma fumaça branca que aos poucos vai se juntan-do as nuvens dopadas do mais belo entardecer de todos os tempos. Abre a porta e vê sua mulher, que o recebe com um sorriso equivalente a mil sóis – uma soma de inúmeros lu-mes semelhantes ao que viu naquela manhã. Beija o rosto da amada e sente sua pulsação soando mais forte. Recostado ao ombro dela, percebe a cortina bailando com os batimentos cardíacos do vento. O último suspiro de um dia que anuncia a melhor das noites.

Boom! Um foguete. Gritos de ordem. É despertado pelo baru-lho dos manifestantes. Bem-vindo ao século 21, baby! #Bye-ByeSoLongFarewell Pura balela! Em um de seus livros, J.D. Sallinger inventou a melhor das profissões. Um sujeito que protege as crianças a não caírem em um precipício próximo a um campo de centeio. Enquanto elas brincam, o cara não tira o olho do criaredo. Ele se candidataria a trabalhar num troço desses.

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As botinas

Ele gosta de usar calçados rústicos, botas de cano curto. Em lugar de cadarços, elásticos para a fixação aos pés. Botinas desse gênero geralmente são boas para dirigir a caminhonete, caminhar pela cidade ou dar boia para os porcos. Versáteis. Servem até para os bailinhos de fim de semana no salão da igreja. Tem um filme, Blaze, que o personagem de Paul Newman abriu ainda mais o leque. No papel de Earl Long, governador do estado da Louisiana, ele afirma:

“Na hora de fazer amor, não tiro as botinas. Elas dão mais tração!”.

Como supostamente precisava de um novo par, foi até a agro-pecuária onde fazia suas compras semanais para o sítio. Uns dias antes, o número desejado, 42, estava em falta. Ao entrar no estabelecimento, olhou para as prateleiras e viu um amontado de caixas. Finalmente haviam chegado.

Suas velhas botinas já estavam com ele havia cerca de dois anos. Desgastadas, puídas, salto esboroado, a tinta que cobre o couro batendo no osso, desaparecendo dia a dia. Mas... É, sem dúvida, o mais confortável par de sapatos que já guarneceu aqueles pés. Porém, na cabeça dele, es-tava no momento de aposenta-las. Solicitou ao atendente um modelo escuro, com saltos pretos e costuras mais claras. N0 42. Experimenta-as e fica em dúvida. “Preciso amaciá--las”, pensa. Sem dúvida, é um belo par de botas. Compra e resolve sair porta afora com as novas. Coloca as velhas na caixa e as joga no banco do carona.

Quando liga o carro e começa os procedimentos nos pedais, comuns a todo motorista, não consegue sentir a intensidade da pisada no acelerador, embreagem e freio. Dá uma de ma-neta valendo, até acertar o tranco. Já fica puto da cara. Com as antigas botinas não havia esse problema. “Merda!”, pragueja. Uns minutos depois, chega ao centro do lugare-

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jo, estaciona o veículo no único posto de gasolina dali, e segue até o restaurante. É meio dia, precisa almoçar. Serve-se rapidamente, e escolhe uma mesa próxima a janela central.

As botinas começam a pressionar seus pés. O dedão direito dói. O novo calçado parece um eficiente instrumento de tortura. No meio o almoço, pensa até mesmo em tirá-las, para que só assim, possa relaxar do apertume. Perde o ape-tite. Paga o que comeu e dá um tempo no estacionamento, fumando o último cigarro da carteira. Amassa a embalagem e atira o bolo de papel na lata do lixo. Fica pensando na besteira que acabara de fazer.

“Que saudade das minhas velhas botinas”, pensa. Dá a úl-tima tragueada no crivo, joga a bagana no chão e vai até o carro. Abre a porta, senta-se em frente ao volante e re-tira a tampa da caixa de papelão. Tira o pé esquerdo novo e troca pelo equivalente do calçado velho. Faz o mesmo como o outro. Guarda o modelo novinho em folha dentro da embalagem. Sente-se aliviado como nunca. Olha para os pés e diz baixinho: “Quanta estupidez!”. Liga o Chevy e tem certeza de que nunca mais usará aquelas lindas botinas. Agora, ele dirige perfeitamente.

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O visitante

Ao desembarcar, seu corpo rapidamente é tomado pela poei-ra. Enquanto o ônibus se vai, a estrada desaparece imersa numa nuvem vermelha. Bate com as mãos nas pernas limpando a calça jeans. Ajusta os óculos escuros, coloca o boné e posiciona a mochila nas costas. Pluga o fone no celular e escolhe um MP3 de Willie Nelson. Just Breath do Pearl Jam, na versão do véio. O refrão diz:

“Vamos apenas respirar”.

Massa! Só que ‘tava quase impossível de fazer isso naquela estradinha de terra.

“No problem, man”.

Na verdade, não avisou que iria aparecer naquele final de semana. Simplesmente resolveu revê-la. Ela não tem a mínima ideia que receberá aquela visita. Sim, é uma droga de surpresa! De onde apeou, em poucos minutos de caminhada, logo estará batendo naquela soleira. A mesma porta que tantas vezes preguiçosamente já cruzou. E ali, naquele lugarejo, o tempo parece engolir as horas ainda mais devagar. Enquanto se desloca a pé pela borda da vie-la, contempla quilômetros de campos e plantações, imagens verdejantes que se alastram serpenteando até o horizonte. Vislumbra um casebre simples de madeira costeado por um gigantesco flamboyant. Outro veículo cruza por ele e o faz engolir mais uns goles de poeira.

De qualquer forma, desejou morar ali.

Os morros, os pomares, o passaredo, o cheiro de bosta de vaca, os salsos-chorões com suas cigarras barulhentas. Sempre gostou desse refúgio e quando chega ao portão, enquanto enxuga o suor e abre a cancela de madeira, per-cebe que a casa dela está com portas e janelas arriadas. Estranho, pensa. Início de tarde, provavelmente ela está

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vendo a reprise da novela. Então, sem anunciar, continua avançando no pátio. Tira o fone dos ouvidos e procura si-nais do pulguento de sempre, mas relembra que o cachorro morreu faz pouco. Ouviu dizer que um novo filhote habita aquele lar. Não vê rastros do bichinho. Passa pela frente da habitação e resolve se aproximar da janela lateral. Está aberta. Ao chegar próximo à abertura de um dos quar-tos, percebe estranhos gemidinhos, sussurros e o ranger da cama de ferro. Sim, os mesmos lençóis onde tantas vezes esteve com aquela mulher, agora recebe um novo visitante. Surpreso, paralisa como uma estátua. Ele reconhece o riso dela, sabe o que está acontecendo, afinal, já viu aquele filme, conhece o cenário na palma da mão. Não precisa ver nada, basta o que já ouviu.

Emudece.

Sorrateiramente, resolve voltar pelo mesmo lugar de onde veio.

Não vai ligar. Não vai dizer nada. Poucos minutos depois – já está em frente ao único armazém dali, mesmo lugar onde o próximo ônibus passará no final da tarde. Respira fundo. Sorrindo, balança a cabeça desacreditando o que viu. O local está fechado. Senta-se numa cadeira velha recostada a edificação, e em instantes, um gato brazino surge do nada e se enrosca nas pernas dele. O animal pede carinho, ele deseja: “fique aqui comigo, bichano. Vamos apenas respirar”.

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Campo de junquilhos

Ele levanta cedo. A neblina ainda toma conta de tudo. Pa-rece que alguém entortou uma chaminé que desemboca fumaça diretamente na porta da cozinha. Do meio da bruma, o gato mia pedindo comida. Seu dono enche o pote com ração e o bicho olha pra ele com um ar de tristeza. Então o afaga. Só assim o bichano começa a comer. O homem mira o pequeno vaso de flores na cozinha e percebe que o ramalhete de junquilhos está seco. Dá uma cheirada de leve no buquê e constata que não há aroma algum. Joga as plantas moribun-das no lixo e resolve colher um novo maço.

O fogo parece gelo seco, aquele “fumacê” cafona usado em filmes B de terror. Mas não é. Trata-se da vida real. Apenas a natureza soprando seu bafo úmido como prenúncio do final do outono. Vestindo um pijama esfiapado, gorro de feltro e com os pés envoltos em um velho par de meias de lã – que se mostra inoperante dentro de sandálias –, aquele homem abre a cancela do pátio. Atravessa o terreno onde mora com a companhia do seu cachorro farejando tudo ao redor.

Após uma dúzia de passos, ele está com os pés completamen-te molhados pelo orvalho que se deposita nas plantas de um lugar como aquele. Pouco se importa. Ali ele observa bergamoteiras, laranjeiras, limoeiros, caquizeiros, goia-beiras, araçazeiros e outras árvores frutíferas, mas nada disso faz seus olhos brilharem tanto como o campo de jun-quilhos. Lembrou-se da avó, que a vida toda plantou flo-res naquela pequena propriedade. Das dezenas de espécies cultivadas ali, apenas os junquilhos resistiram à ação do tempo e ao descaso dos herdeiros daquela família. É en-graçado como, independentemente de haver cuidado ou não, os cormos dos junquilhos sempre fazem as plantas ressur-gir nessa época do ano. Chega a pensar naquela brincadei-ra de que se houvesse um desastre nuclear, apenas “Keith Richards e as baratas sobreviveriam”. Em pensamento, ele completa: “Keith, as baratas e os junquilhos”.

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Cuidadosamente, fica de cócoras e apanha cerca de 20 pen-dões florais. Aproxima-se de um butiazeiro e, meticulosa-mente, desfia um filete da extensa folha do fruto amarelo, para que assim, possa usa-lo como um eficiente barbante que amarra o ramalhete de flores – da mesma forma que seus avós faziam com os produtos que levavam a feira. Feito o serviço, só então se afasta da bordadura de canteiros. Seus pés estão desconfortavelmente encharcados pela umi-dade da vegetação. Ao chegar à porta dos fundos da casa, pendura as meias no varal e troca o calçado.

Já com chinelos de lã e um novo par de meias, coloca água fresca no vaso e deposita as flores nele. O aroma rapida-mente se espalha pelo ambiente. Vai até a sala e abre a gaveta da estante de livros. Procura a caixa de incensos. Encontra, dá uma cafungada em uma das varetas perfuma-das e faz cara de desaprovação. Amassa o pacote e o joga no lixo. Respira fundo em busca do aroma das flores. Um sorriso de satisfação toma conta do rosto daquele pobre homem.

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Santo xis santa-mariense

“Um homem solitário e sua casa”. Você já viu a droga de filme e o iminente desastre que se configura nesse ce-nário. Além da limpeza do lugar onde vive, há afazeres que demandam um bocado de tempo, isso bem antes de você colocar os pés na rua e dizer: “uuuufaaa!”. Lavar roupa, limpar o pátio, alimentar os bichos, fazer compras, enfim, é muita coisa para cabeças desmioladas do sexo masculi-no. Eu me rendo: as mulheres são foda! Grande parte delas resolve tudo isso (e muito mais), fazendo embaixadinhas na sua frente. Assobiando e chupando cana. E rindo na sua cara. Pois é, minha opinião como um dono de casa de araque é que a pior parte compete ao rango.

Claro que gosto de ir para a cozinha! Cozinhar na boa e curtir os preliminares, abrir uma garrafa de vinho, ir degustando-a aos poucos, apreciar o barulho das panelas cozinhando seu jantar e o aroma que se espalha até as ou-tras peças. Mas, puta que pariu! Cozinhar todo o dia é um pé no saco! Não aguento mais essa lida. É aí que entra o junkfood mais próximo. Ou o “cachorrão”, onde você sabe que vai se entupir de porcarias, é super bem tratado e acaba ignorando todos os avisos do tipo: “maionese demais faz mal e vai levar você para o buraco”, coisas assim. Conversa fiada. Será?

Existe uma lancheria que atende todos meus pré-requisitos quanto atendimento e satisfação. Nesse lugar eles vendem os tradicionais cheese burgers, ou como carinhosamente chamamos por aqui – xis, e santa-mariense em sua essência, é claro! Não existe melhor em lugar algum do planeta. Quem já comeu no Serve Bem, sabe do que falo. Pois é, ando me entupindo de xis nos últimos dias. Em cerca de duas se-manas, já devorei uma boa dezena deles. Entre tantas op-ções, como sou um homem tradicional, geralmente opto por um completo clássico: hambúrguer de carne, mais bacon, ovo, queijo, alface picado, tomate, milho e ervilha. Es-petáculo! Um tijolo “que desce rolando, abrindo caminhos

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(...) e que para na encruzilhada...” do seu estômago. Cla-ro que tudo isso, de preferência, precisa estar nadando em maionese caseira, ketchup e mostarda. A satisfação de um homem acabando com um desses, igual um troglodita, com a barba toda suja numa mistura explosiva, é demais! E lá vou eu empurrando outro goela abaixo na velocidade de um heavy rock. Vai por mim, brother: é um prazer comparado a poucos. Quem já recorreu a um desses, sabe do que falo.“-Dilíciaaaa”!

Se o colesterol vai subir às alturas, se o coração vai explodir daqui alguns anos, ou se você (eventualmente) sofrer de algum indesejado efeito colateral, buenas, faz parte do jogo. Nada é perfeito. A não ser o nosso santo xis de cada dia, sempre no mesmo lugar e com o mesmo gar-çom nos atendendo. Coisa de homem. Vou lançar a campanha: se Porto Alegre tem um pôr(zinho) de sol de araque como símbolo, nós temos o nosso xis. Patrimônio local que pre-cisa ganhar uma estátua na Praça Saldanha Marinho. Um voto pra estátua. Alguém ‘tá comigo nessa?

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O sorriso de Helena

Nada como o tempo pra nos fazer entender o incompreensí-vel. Uma coisa é certa: você pode ser seu melhor amigo ou o pior inimigo. No momento, sinto aquela estranha sen-sação de que preciso separar o joio do trigo. Principal-mente dentro de mim. Aquela historinha do anjo e demônio se tapeando nos ombros. Cada um deles soprando epifanias; capeta no ouvido direito, a entidade da auréola no outro extremo.

Num domingo desses, enquanto organizava meu acervo de LPs em meio a essa pendenga, me lembrei de uma frase de Li-berato Vieira da Cunha, do livro A Companhia da Solidão:

“viver é perder pessoas”. Sim, isso é batata! Amigos, amores, parcerias... Eles vêm e vão. E por mais que a sensação de vazio nos acompanhe por um tempo, essa danada de vida encardida sempre se re-nova. Isso não tem jeito. Algumas peças continuam fixas no tabuleiro, olhando pra você e piscando o olho num sinal de “ok”. Outras, desaparecem e te sabotam. Ou você mesmo faz isso. Toda a vez que perco uma batalha, tenho certeza, no andar da carruagem, ao longo do traçado um bocado de coisas boas irão acontecer. Aprendizes. Isso é que somos.

Há alguns dias, visitei uma amiga. Vamos chamá-la de He-lena. Ela tem quase 70 anos e é um exemplo de vigor e sa-bedoria. Faz um tempo que rompeu um casamento de 40 anos e começou a pintar. Suas obras ilustram as paredes da casa onde vive. Fugindo de uma relação falida, ela justificou a saída estratégica pela fato de não estar contente em ter (apenas) um companheiro. Ela queria um amor. Olho para o lado e vejo dois ou três exemplos de pessoas que vivem com um “companheiro(a)”. Helena optou por ficar sozinha. Pelo menos por um tempo.

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Em sua nova vida, fez exposições, conquistou novas amiza-des, viajou pra caramba e começou a namorar. O escolhido poderia ser seu filho. No entanto, eles se entendiam mui-to bem, todavia, infelizmente o namorado não compreendeu a liberdade de Helena, e começou (de várias maneiras) a cerceá-la do direito de ir e vir. Até que certo dia, em visita a sua dentista, ouviu a seguinte frase: “O que aconteceu com teu sorriso?”. Ao constatar que havia per-dido o brilho e a alegria, Helena rompeu o relacionamen-to. Ela busca a tranquilidade e um sorriso pleno. E essa serenidade transpira nas ambiências da casa dela.

Naquele gelado início de noite, tomando um delicioso café, sentado num sofá confortável e ouvindo seu relato, cantei um pedaço de Todo Amor que Houver Nessa Vida, de Cazuza:

“Eu quero a sorte de um amor tranquilo / Com sabor de fruta mordida”.

Helena de bate pronto rememorou A Noite do Meu Bem, de Dolores Duran:

“Hoje eu quero paz de criança dormindo / E abandono de flores se abrindo. Quero a alegria de um barco voltando / Quero ternura de mãos se encontrando / Para enfeitar a noite do meu bem”.

Helena é uma mulher sábia. Ela é sua melhor amiga. Eu preciso viver um bocado mais, perder uma pá de outras pessoas, para só assim navegar num mar de serenidade se-melhante àquele. E quem sabe, igual a ela, voltar a sorrir de verdade.

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Pequeno ensaio sobre a vaidade

Elmo conversa com um amigo – especificamente, eles discu-tem sobre a valorização no trabalho. Então, ele ouve essa do interlocutor: “Tu és um homem vaidoso, né?”. Elmo reba-te com veemência: “Sou nada! Apenas espero reconhecimento por aquilo que faço”. Uns dias depois, narra o episódio a uma amiga psicóloga e, para surpresa dele, ela compactua com a opinião do camarada de Elmo. Resolve tirar a prova.

E o que o dicionário nos diz sobre vaidade? Segue uma pe-quena definição:

“Vaidade: característica daquilo que é vão; que não pos-sui conteúdo e se baseia numa aparência falsa, mentirosa. Excesso de valor dado à própria aparência, aos atributos físicos ou intelectuais, caracterizado pela esperança de reconhecimento e/ou admiração de outras pessoas. Autocrí-tica ou opinião envaidecida que alguém possui sobre si mesmo. Ideia exageradamente positiva que alguém faz de si próprio”.

Entre outras coisas, para um cara que todas as manhãs, ao acordar, mal se olha no espelho, e que não liga a mínima para a aparência, quanto a esse aspecto, sem dúvida, ele não se enquadra na jogada. Agora, quanto ao âmbito, “atri-butos (...) intelectuais, caracterizado pela esperança de reconhecimento (...)”, sim, Elmo consegue se enxergar nesse perfil. O que o deixa puto da cara é a possibilidade das pessoas não entenderem, que muitos processos (profis-sionais), e dá para estender isso a uma diversa gama de atividades, – não sobrevivem sem reconhecimento. E como progredir? Às vezes ele inveja determinadas profissões onde as práticas de rotina não apresentam a necessidade imediata de reconhecimento ou meritocracia. É aquela his-tória, de qualquer forma, quer esse sujeito faça seu tra-balho – de forma displicente (ou não), a grana vai pingar na conta dele e o leite das crianças estará garantido.

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Outro dia, eu estava caminhando no centro da cidade quando passei por um ponto de táxi e, para minha surpresa, um dos taxistas dali me cumprimentou e disse: “Frio né? Gosto de dias assim. É bom para trabalhar”. Não conhecia o sujeito, e ele prosseguiu: “Gostei muito da tua crônica do Diário sobre o frio. Penso exatamente daquela forma. Nessa época do ano tenho mais gás para tocar a vida”.

Pensei que talvez seja essa uma das definições de reconhe-cimento que Elmo se refere. Esse homem me lê. Eu poderia escrever um monte de coisas e ter uma papelada armazenada dentro de uma gaveta qualquer. Se alguém lê o que você escreve, e mais, se reconhece e concorda (ou até mesmo discorda) do seu ponto de vista, tudo bem:

– Então já tá valendo!

E nem estou falando da grana, outro importante viés do re-conhecimento (ou valorização). Pois entenda, até podemos ser vaidosos, mas estúpidos, amigo Elmo, isso nunca! Ou você acredita em contos da carochinha?

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Salve a banda do Tio João

Liga o carro e não fala nada. Ela também permanece ca-lada. O ronco do veículo é sufocado pelo player que toca Uncle John’s Band, do Grateful Dead. Faz tempo que esse CD não volta para o porta-luvas. Impressionante saber que Workingman’s Dead, um dos melhores discos de country rock de todos os tempos saiu da cabeça dessa trupe califor-niana. Muito ácido naquelas cucas para exprimir tamanha lucidez e maturidade. Enquanto o garota fita o nada, aque-le homem olha negligentemente para o trânsito, Ninguém naquele quadro emite alguma conclusão ou desabafo. Eles pareciam estar esgotados. E, muitas vezes, uma boa música cumpre a função de preencher os espaços vazios. Digo mais, com uma trilha sonora apropriada, certamente não precisa-mos falar banalidades, apenas para movimentar os lábios. O tal dizer por dizer. Além do mais, em alguns momentos, certas canções permitem que o silêncio não exerça seu po-der de constrangimento.

Voltando ao som do Dead, a letra tem passagens interessan-tes escritas por Robert Hunter.

“Você vai vir comigo, você não quer vir comigo? Eu pre-ciso saber se você virá. Como o sol da manhã você vem e como o vento, você se vai”. Chega com o vento e parte com a poeira.

E vai e vem, recebemos outro convite:

“Venha ouvir a Banda do Tio João”.

Ok. A bandinha segue no seu compasso de espera, como se tivesse a capacidade de fazer o sol surgir milagrosamente entre nuvens incorruptíveis. Imagens inofensivas de al-godão ou rochas milenares? Lá fora, um dia cor de chumbo é pincelado pela garoa fina. Igual uma banda marcial bem ensaiada, o limpador de para-brisas desembaça o vidro dianteiro. Ele deseja que seus pensamentos e culpas tam-

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bém possam ser desembaçados por uma máquina dessas. Uma peleia danada esse troço dentro dele! Mas não tem jeito, a máquina humana é uma engrenagem complexa demais para ser compreendida em sua totalidade. Um enovelamento que nunca será desembaraçado ao ponto de abolirmos todos os nós que atravancam as coisas.

A cena continua pesada. Abre os vidros para que o ar pos-sa ganhar alguma leveza. A mulher veste um casaco branco, quente demais para um início de tarde batendo na casa dos 25°C. Em poucos minutos, a frente fria derrubaria as tem-peraturas. Mais uma vez ela estava certa.

Chegando ao destino, retira as malas do carro e dá um beijo no rosto dela. A garota não diz absolutamente nada. Os olhos nem ao menos se fecham. Isso talvez indique algo ruim. Pelo retrovisor, fica olhando ela atravessar a rua, até desaparecer do seu campo de visão. Poucas vezes se sentiu tão triste. Bem, os primeiros dias são os mais di-fíceis. Sempre são.

Não adianta ficar se lamentando quando a vida é uma ave-nida ampla. Volta pra cabeça do som e coloca a bandinha do Tio João para trabalhar novamente.

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Chato de galochas

Chato de galochas. Você já ouviu essa expressão, não é? Aparentemente extintas, as galochas eram uns sapatos de borracha que adaptados por cima dos calçados normais, nos possibilitavam sair na chuva. E sempre tinha um chato que entrava na casa alheia sem tirar a tal galocha e molhava tudo. Era o “chato de galochas”.

Sem nenhum tipo de agente complicador, segunda-feira sem-pre será um dia murrinha. Imagine então quando tudo pare-ce colaborar para tirar você do sério? O nosso chato de galochas nunca foi a nenhuma espécie de médico pra diag-nosticar algum nível de bipolaridade. Sabe por quê? Tem certeza que ouvirá algo do gênero: “Meu caro você sofre de um tipo de transtorno bipolar do tipo XYZ...” E blá, blá, blá! No entanto, eis que muitas vezes, ele mesmo percebe oscilações de humor que o tornam um ser insuportável. O primeiro passo é reconhecer esse problema. Pois bem, ele reconhece. Não precisa de nenhum especialista prescreven-do receitas médicas ou algo parecido.

Voltando a falar sobre a última segunda, imagine a se-guinte situação: você compra um aspirador de pó pra poder limpar seu carro e assim, consequentemente acabar com toda aquela sujeira depositada há semanas no carpete do veí-culo. Massa! Nada como começar a semana higienizando as coisas. Segundo nosso personagem, há uma analogia com a “limpeza” da vida de cada um de nós, quando executamos uma faxina dessa linhagem. Pode lhe chamar de doido, mas ele realmente acredita nisso. Deve ser algum tipo de trans-torno. Voltando ao aspirador e o automóvel, daí que o tal aparelho, novinho em folha, funciona 10 minutos e dá pau. Liga pra loja onde parcelou a droga do aspirador, reclama do acontecido, e simplesmente a atendente não localiza o nome dele entre o cadastro de clientes da empresa. Soletra seu sobrenome três vezes e depois disso a moça avisa que o sistema entrou em pane. É...

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E tem mais. Em seguida, logo depois de desistir da limpe-za, vai pro PC, tenta concluir um trabalho no computador e a máquina parece estar se recuperando de um porre homéri-co. É tanta lentidão no processamento de cada clique, que seus nervos ficam ainda mais a flor da pele. Ele reinicia o PC e a coisa continua preocupante!

É quando a gota d’água faz o copo transbordar. Já a beira de um infarto resolve tomar um banho pra relaxar. É quando então descobre que aquele vazamento que parecia ter ces-sado no chuveiro, voltou com tudo e está prestes a inundar o banheiro com um incessante pinga-pinga dos infernos. Sim, tudo pode ficar pior. Bufando e soltando fogo pelas ventas, chega a pensar em calçar as extintas galochas para sobreviver à nova inundação.

Tem chatice que resista a uma provação dessas? Pede arrego aos céus e se joga na cama do quarto. Deita-se de bruços nos lençóis desarrumados, fecha os olhos, respira fundo e afunda o rosto no travesseiro de penas.

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Olha para o relógio. 18h30min. Bate o ponto, joga o cra-chá sobre a tela do PC e parte em passos rápidos até o estacionamento. Desativa o alarme do carro, abre a porta, atira a bolsa no banco de trás e assenta-se em frente ao volante. Fixa o rádio no encaixe do painel, olha atenta-mente os CDs disponíveis e escolhe um disco de Tom Wa-its, Mule Variations. O ator, cantor e compositor é uma figuraça! Sempre se lembra dele como o maluco Renfield comendo insetos na prisão, em uma das cenas do filme de Copolla baseado no livro de Bram Stocker.

Waits parece se sentir à vontade com sua imagem de malu-quete convicto. Pesquisar sons distorcidos e ruidosos faz parte do processo criativo dele. Certa vez, revelou em uma entrevista que gosta de desvelar esses ruídos ouvindo dois rádios ao mesmo tempo e gritando melodias num gravador enquanto dirige o seu carro. “Quando você tem uma família, o automóvel passa a ser o único lugar tranquilo”, disse o artista norte-americano a um repórter.

“Tom Waits tá coberto de razão”, pensa ao girar a ignição, relembrando o catecismo do artista publicado em uma entre-vista antiga. Ele seleciona com o dedo indicador a faixa 12, Chocolate Jesus. Agora está pronto para partir para as ruas. Não tem outra: o automóvel é um dos melhores lugares para se ouvir música. Além disso, com o trânsito caótico de hoje, é também um baita antídoto ao stress. Com as ruas vazias, é possível que ele levasse cerca de 8 a 10 minutos pra chegar até sua casa. Não é o que acontece. Dá mais que o dobro desse tempo até abrir o portão e suspirar: “Lar, doce lar”. Às vezes, nem tão doce assim...

Naquele dia, resolve pegar o caminho mais longo. Afinal, nada como levar o carro para outras bandas, fugir do fluxo e adentrar na noite como um animal sorrateiro. De supetão, decide que não vai requentar o almoço. #FastFoodFeelings.

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Resolve passar em uma lancheria e encomendar um xis. Bate papo com o garçom enquanto aguarda sua janta. Paga o débi-to com os últimos créditos de seu Vale Refeição, para logo após, teoricamente, acelerar o veículo até o previsível destino de todos os dias. O xis-salada não pode esfriar.

Que nada! Outra vez quebra o protocolo e escolhe o caminho mais longo. Enquanto isso, Tom Waits continua recitando uma nova epístola pelos alto-falantes. Olha para o reló-gio do painel: 19h13min. “Ainda é cedo”, pensa. Fica re-fletindo ao andar da carruagem. Novamente toma as rédeas do player e seleciona a faixa 12. O poeta Gregory Corso dizia: “Estar na esquina à espera de ninguém é PODER”. Ele conclui: “Escolher o caminho mais longo é PODER”. Ao invés de seguir reto em um cruzamento, novamente vira para a direção contrária.

O xis continua esfriando no banco do carona. Segura firme no volante, engata a quarta marcha e acelera para lugar nenhum.

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Pode colocar na minha conta

Já pensou que no telefone celular que você usa nesse exato momento há tecnologia criada por Steve Jobs? Computadores pessoais, filmes de animação, música, tablets e publica-ção digital: grande parte dos recursos tecnológicos que usufruímos no nosso dia a dia, saiu da cuca desse sujeito que morreu em 2011, aos 56 anos.

‘Tava me ensaiando faz tempo pra desbravar a biografia do mago da tecnologia. Tempos atrás, um amigo que leu o li-vro, vivia me relatando passagens específicas da história de Jobs. Enfim, comecei a ler e cá estou imerso na vida e obra do homem. Como ainda folheio o início das mais de 600 páginas do tomo escrito por Walter Isaacson, um fato de cara me chamou a atenção: o lance de Jobs ter sido en-tregue à adoção por sua mãe.

Ele foi adotado, e na casa que o acolheu, os novos pais nunca esconderam esse episódio dele. Pelo contrário, Ste-ve sempre soube – em primeiro lugar – que era uma criança especial, carinhosamente escolhida para fazer parte do então humilde clã dos Jobs. E isso definiu tudo. Sua fa-mília foi decisiva para torná-lo o homem e o profissional que conhecemos.

Nosso berço, o lugar de onde viemos, determina muita coi-sa na gema de cada um de nós. E nessa amálgama familiar, muitos dos hábitos, crenças, costumes e a forma como en-xergamos o mundo são desenhados nesses primeiros anos de caminhada. Partimos do princípio de sermos gerados por uma cepa genuinamente boa. E quando falo de cepa, não me refiro somente à linhagem sanguínea, falo também de osmo-se pelo convívio mesmo. Por isso recorro ao bordão popu-lar:“Pai é quem cria”. Paul Jobs, pai de Steve, é a prova disso. Daí, quando aos poucos, vamos nos deparando com certos valores e crenças. Por mais que haja percalços, o preparo que recebemos de nossos progenitores naturalmen-te nos fornece gás e condicionamento para superá-los. E

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assim, nos sentimos fortes o suficiente para esmurrarmos uma parcela significativa dessas dificuldades. Comigo foi assim.

Fico pensando: que legado eu vou deixar para meu filho? Que tipo de pai eu sou frente aos olhos dele? Qual a pri-meira coisa que vem à mente do meu garoto quando ele se lembra de mim? Imaginando a resposta, instintivamente peguei o telefone e pensei: “Vou indagar isso pro guri”. Quando ele atendeu, titubeei. Acabei combinando um pas-seio. Provavelmente nunca vou questionar nada a respeito dessa dúvida.

Olhando pela lente de um pai coruja, lembro-me do quanto fiquei orgulhoso quando ele começou a se interessar pelo som dos Beatles. Essa herança tem endereço certo: o toca--discos aqui de casa. Meu filho foi mordido pelo besouro, e fui eu quem deixou o bichinho passeando pela sala. Pode colocar na minha conta, eu tenho orgulho disso. E não há antídoto que desfaça o estrago (do bem) deflagrado pela picada desse inseto.

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A maçã de Vitinho

Ele acorda cedo. Arregaça a cortina do quarto e, assim favorece o terreno para que a luz do sol banhe aquela peça com as cores da manhã. Olha para sua Fender Telecaster vermelha, que o pai negociou com um Comissário de bordo da TAM, e parece ainda não acreditar que ganhou de lambu-ja aquele modelo tão desejado. Ele carinhosamente batizou seu instrumento de Big Apple. Liga o PC e procura um som específico do The Byrds. Encontra rápido, já que todos seus arquivos digitais estão precisamente organizados. Lembra-se da forma absurda com que Clarence White, gui-tarrista do grupo, bateu as botas. O músico foi morto por um motorista bêbado, logo após uma apresentação, enquanto guardava seu equipamento em um carro.

Liga a sua Maçãzinha num cubo Princeton e toca simultane-amente o riff de Fido, segunda faixa do disco derradeiro da banda californiana nos anos 1960. Tocando em cima do que vaza pelos alto-falantes do PC, fica brincando de en-contrar os acordes. Ele está quase lá. Descobriu na rede que parte do segredo do homem está no B-Bender, um efeito que ele usava para deixar os bends com sonoridade de um pedal steel.

A mãe grita da cozinha que o café está na mesa. Viti-nho pede para que ela traga a refeição até o quarto. Ela diz: “Sem chances”. Ele pensa: “O café vai esfriar”. O que será que impulsiona um garoto de 16 anos a se ligar em coisas antigas e aparentemente atreladas a músicos pro-fissionais? Nem mesmo ele sabe de onde veio essa fissura. Nada ligado à herança familiar. Pescou alguma coisa no YouTube, leu outro tanto em blogs e sites especializados, trocou figurinhas com um amigo, ganhou o primeiro violão aos 12, aos 14 começou a tocar na guitarra meia boca de um primo e finalmente chegou a sua maçã madura. O garoto detesta videogame, não se liga em TV e acha um porre ter que ir ao colégio. O lance dele é tocar guitarra e ouvir

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seus sons antigos.

Até mesmo a escolha do seu ídolo não torna Vitinho um jovem previsível. Afinal, quando os velhotes estão em pauta, ele poderia se espelhar em estrelas como Jimi Hen-drix, Jimmy Page, Eric Clapton e dezenas de outros nomes do primeiro escalão de popularidade no rock. Mas afinal, quem é Clarence White? Inclusive, quando o assunto é a guitarra dos The Byrds, a grande maioria se lembra de Ro-ger McGuinn e sua Rickenbacker de 12 cordas. Já Vitinho prefere o quase incógnito Clarence. Muitos não sabem, mas, por exemplo, Wasn’t Born To Follow, uma das músicas da trilha sonora do filme Sem Destino, tem uma das guitarras tocada por White. Isso antes dele entrar oficialmente no Byrds. Teoricamente, o guitarrista não passava de um cara contratado pra tapar um buraco. Através dessa brecha, ele pavimentou uma avenida...

Desliga o cubo, carinhosamente deposita a Fender na cama e ruma até a cozinha para tomar café. Antes, lava as mãos no banheiro e dali percebe que ainda consegue ouvir a gui-tarra de Clarence ecoando pela casa. Do corredor dá mais uma olhada na sua maçãzinha vermelha reluzindo sobre os lençóis.

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Tal como fênix

Já pensaram que, em dado momento, precisamos deixar tudo transbordar para que possamos perceber aquilo que muitas vezes não vimos às claras? Como exemplo, dá para remontar o Mito de Fênix. Reza a lenda que quando esse pássaro da mitologia grega morre, entra em autocombustão e, passado algum tempo, renasce das próprias cinzas. Outra caracte-rística da ave mitológica é sua força que a faz transpor-tar em voo cargas muito pesadas, havendo jornadas as quais chega a carregar até mesmo elefantes. Daí vem à frase:“tal como fênix, renascerei das cinzas”. Ou seja – voltar à tona ainda mais forte e confiante do que já foi um dia.

Nessa seara metafórica, podemos dizer que todo mundo que renasce, passa um tempinho no seu limbo particular. E dentro do cativeiro, possivelmente haja um terreno fértil para a reflexão. Também podemos remontar os ensinamentos do japonês Kotama Okada:

“Onde não há reflexão, não há progresso”.

Muito bem. Ainda segundo ele,

“refletir significa examinar seus erros e deficiências, e se esforçar para corrigi-los de um modo ou outro”.

Além disso, Okada nos avisa para que não esqueçamos nossos pontos positivos. Mas a melhor parte desse ensinamento – é quando o mestre reforça a origem semântica da palavra reflexão:

“observar atentamente a si mesmo”.

Se todo mundo que lê essas linhas parasse um tempo para refletir sobre diversos aspectos de sua existência, seria muito provável que inúmeras intempéries que os assolassem caíssem por terra. Isso é sério! Quando brecamos o tran-co, puxamos o freio de mão e reduzimos a velocidade de

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200 km/h, para míseros 30 km/h, só então podemos sacar as cores como elas são. E nessa balada, nossos olhos ganham lentes de aumento, observando atentamente novas (velhas) tonalidades que nos puxam de volta ao chão. Eu digo terra mesmo, barro, natureza e a natureza das coisas que re-almente importam. Precisamos esvaziar (e limpar) o copo sujo, para depois enchê-lo com água limpa. Os japas tem uma definição para esse troço. Chama-se Misogi Harahi. Trocando em miúdos, literalmente, quer dizer raspar as impurezas e abrir o espírito para o positivo. Significa purificar por meio do resgate.

Por isso, quando caímos feio e nos deparamos com nossos equívocos, podemos dizer que se todo o conseguinte gerado por isso deflagrar uma reflexão, a queda nos rendeu seu ensinamento. O dito popular alerta: “aprender com nos-sos erros faz parte do jogo, persistir no erro, é burri-ce”. E não esqueça: “Tal como fênix, ressurgiremos das cinzas”. Todos nós renascemos todos os dias. Irmão Sol e Irmã Lua são bons exemplos desse ciclo de retorno contí-nuo. Apenas precisamos resgatar algumas coisas boas que ficaram para trás. E não deixar de olhar para frente.

Eis que vejo um elefante voando, porém, longe das garras de Fênix.

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Seja bem-vindo outono

Tem um livro que, vira e mexe, me pego folheando. O nome da publicação é O Primeiro Gole de Cerveja, de autoria do escritor francês Philippe Delerm. No conteúdo, crôni-cas que falam sobre os pequenos grandes prazeres da vida. Aquelas sensações e vivências cotidianas que muitas ve-zes não percebemos serem fundamentais ao nosso dia a dia. Exemplo: ler o jornal enquanto se toma o café da manhã, tomar banho de banheira, comer um croissant na calçada, calçar alpargatas molhadas, ouvir os ruídos de uma bici-cleta ou saborear o primeiro gole de cerveja. No texto que dá título ao livro, Delerm diz que é apenas o pri-meiro gole que importa. Os outros, cada vez mais longos, acabam apenas potencializando a evanescente percepção da abundância esbanjada. E completa: esses goles apenas “en-cerram a desilusão do fim de um falso poder”. E talvez por isso, muitas vezes, nos embebedemos em busca dessa sensação perdida.

Eu sou um cara que sempre retorna aos seus livros. Por isso, não costumo emprestá-los. Tem vezes que me dá aquela fissura de reler alguma passagem de determinado tomo, daí, rumo até a estante para pegá-lo e... Não está em casa! Perco o sono quando isso acontece. Então, quando vi que O Primeiro Gole de Cerveja estava no seu devido lugar no escaninho, suspirei aliviado e o apanhei de lá.

Essa semana, começou o outono, prenúncio de uma estação que emula em mim muitas sensações de contentamento. Como conter a euforia de novamente escolher uma camisa de man-gas longas no guarda-roupa? Como não curtir o céu cinzento de março com cara de agosto? Como descartar o prazer de chegar a sua casa e ter um prato de sopa lhe esperando na mesa? Vou sorvendo-a aos poucos, molhando uma fatia de pão no líquido quente. Embaçando deliciosamente a visão à procura dos escassos grãos de arroz, enquanto a colher afunda no caldo cheiroso. No fim, nada supera a sensação de roer os ossos de galinha caipira e perceber a barba

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lambuzada com as sobras da canja. Estação fria, por favor, chegue rápido. Todos os naipes e modalidades de pratos quentes irão figurar pelo cardápio aqui de casa. Um música de Shelby Lynne no toca-discos e uma boa companhia para dançar I Only Want To Be With You. Isso me lembra de que preciso correr atrás de uma garrafa de vinho...

E tem mais: chimarrão abrindo as manhãs, início de tarde descascando bergamotas no sol, noites geladas com um bom livro e cobertas felpudas. Filmes e mais filmes para as-sistir nos domingos de outono. Mesmo de leve, a primeira vez no ano que percebi o friozinho percorrendo a espi-nha, teve um sabor de imensa satisfação. Lembrei de cara dos “ensinamentos” de Delerm. Tenho uma pá de pequenos prazeres para redescobrir à medida que os dias ganharem contornos ainda mais gelados. Muito obrigado, Senhor. Sou um homem afortunado.

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Velhos amigos

Quantos amigos de verdade você tem? Fácil ou difícil res-ponder? É engraçado, muitas vezes quando paramos para pensar sobre isso e nos damos conta de como temos poucos amigos. Como diz um conhecido dito popular, “não enche-mos os dedos de uma mão” ao enumerarmos nossas amizades. Uma noite dessas, você recebeu uma ligação de um velho camarada. Ele o convidou para participar de uma festa de aniversário de um amigo em comum. No primeiro momento, você refuta o convite. Desculpa-se que está indisposto e não gostaria de sair de casa. Do outro lado da linha, seu brother lhe manda às favas e diz que já está passando na sua casa. Daí, você resolve aceitar carona, relaxa e acaba por comparecer ao encontro.

Chegando lá, percebe que rever antigas amizades é como resgatar páginas arrancadas de sua memória. Existe um tipo de pacto nessas relações que não pode ser explicada em algumas linhas. Ao lado desses caras, você passou por poucas e boas, riu, chorou, aprendeu, ensinou, vivenciou coisas quando apenas imaginava o que seria da sua vida. Hoje, olhando para trás, essa turma lhe rememora o quan-to a ingenuidade funcionava como elixir de uma juventude perdida. Naqueles tempos, você pensava que sabia de tudo, e não sabia porra nenhuma. Hoje, você tem certeza de que não sabe de nada, e quanto mais se aprofunda em qualquer assunto, conclui, resignado, que nunca elucidará nenhuma verdade absoluta.

Outro dos grandes baratos de rever essa turma das anti-gas é que muitas histórias das quais você protagonizou, e que foram inexplicavelmente apagadas da memória, voltam à vida pelos lábios afiados dessa rapaziada. Assim como você também descobre que aqueles irracionais adolescentes de ontem se tornaram homens aparentemente comuns. Reforço: aparentemente. Não precisamos nos aprofundar para perce-ber que nem de longe, todos vocês não podem ser consi-derados pessoas “normais”. O velho espírito adolescente

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impera nesses encontros.

É uma volta no tempo! Você se recorda das sessões inter-mináveis de Hair e Woodstock girando intermitentes nos videocassetes. Tardes embaladas por músicas do Rush, Led Zeppelin, Pink Floyd. Estalos crepitantes nos toca-discos e nas lareiras. Sente o gosto do pé-sujo ou “samba” (be-bida feita à base de aguardente e Coca-Cola), passando de mão em mão e a consequente dor de cabeça pós-celebração. E aí vai... Tanta coisa! Daí você se lembra daquele “fogue-taço” que tomou na Tertúlia de 1987. Difícil foi encarar a mãe abrindo a porta e seu irmão dando lição de moral. E alguns velhos amigos que encontrou nesse churrasco foram testemunhas dessa e de tantas outras passagens. É. Nova-mente você virou piada. As risadas soaram altas e, por isso, sempre vale a pena reencontrá-los. Ah, se vale...

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A vida com música

Eu coloquei a cuca pra pensar nessas férias. Aquela his-tória de fazer um balanço daquilo que “é”, e o que “não é” verdadeiramente relevante na vida de cada um de nós. E, é óbvio, ouvi muitos LPs nesse período de lazer e refle-xão. Esse talvez seja um momento em que a música consegue atuar ainda mais forte como conselheira e apaziguadora de nossos espíritos turbulentos. No meu caso, a música paga minhas contas há mais de 20 anos. Na alegria e na triste-za, ela sempre está comigo. Trabalho com ela e por ela. Para mim, ouvir música é um assunto sério. Nesses dias, aqui em casa, fiquei literalmente revirando a terra e a prateleira.

Entre tanta coisa que escutei com mais atenção, redescobri um álbum em especial. Trata-se de Song for Beginners (Can-ções para Iniciantes), vinil lançado pelo cantor e com-positor inglês Graham Nash, em 1971. Em um breve resumo, antes de colocar na rua esse trabalho, Nash já era um cara respeitado pela sua passagem pelo The Hollies, como também já tinha gravado álbuns espetaculares ao lado de David Crosby, Stephen Stills e Neil Young. Longe de ser mirim no ramo, no ano que lançou seu primeiro disco solo, ele estava com mais de 10 anos de estrada. É aí o X da ques-tão. O cara se coloca numa posição de iniciante, quando na verdade ele sabe que tinha tudo para fazer um bom álbum. Como realmente fez. O primeiro recado é esse.

O estilo musical de Graham Nash é indiscutivelmente meló-dico, romântico e calmo, isso tanto em discos individuais, como ao lado de seus parceiros. Mesmo os temas mais agi-tados dele têm sabor doce amargo, suavemente nostálgico. E digo mais: esse cara tem um poder de síntese invejável quando ao assunto é nos fazer valorizar situações aparen-temente corriqueiras do cotidiano. Suas canções espargem cenas simples da vida, pequenas minúcias, detalhes muitas vezes imperceptíveis, que de tão comuns, parecem isentos de magia ou substância.

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Ou seja, por meio de sua arte, Graham elucida o enigma de visualizar a poesia onde teoricamente ela não está. Exemplo? Ouça Our House, tema lançado um ano antes de sua estreia solo, no álbum Déjà Vu. Na letra, ele desenha uma cena doméstica de um casal, onde a mulher coloca flores em um vaso enquanto seu homem acende a lareira. Fora da casa, dois gatos brincam no quintal. E aí chegamos a Sim-ple Man, primeira faixa do Lado B de Song For Beginners. Na primeira frase ele já entrega o jogo: “Eu sou um homem simples, então eu canto uma simples canção”. Esse som foi resgatado para o grande público em 2007, quando ilustrou a abertura do filme Reine Sobre Mim, com Adam Sandler. As cenas iniciais com Sandler passeando pelas ruas de Nova York com um patinete motorizado ficaram muito bonitas.

Ouça, veja, corra atrás. Nietzsche sabiamente afirmou um dia:

“Sem a música, a vida seria um erro”.

Pelo menos esse erro, esse em especial, eu nunca cometi.

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Veredicto: Culpado

Ele já tinha descoberto algumas sensações amargas na vida. Como protagonista e coadjuvante teve noções básicas de decepção, medo, egoísmo, arrependimento, tristeza pro-funda e outras amarguezas que engoliu dos semelhantes ou propiciou aos seus pares no decorrer da vida. Mas nada, mas nada mesmo, se compara ao sentimento de culpa. A vi-lania é para os cafajestes, para homens sem escrúpulos, para sujeitos aliados com o lado negro da força, pessoas com zero sensibilidade e sem nenhum senso de responsabi-lidade. Mas não para um cara como ele. Compara sua vida no estágio atual ao julgamento de Pinky, personagem de Bob Geldoff, no musical Pink Floyd The Wall. O filme circunda o material autobiográfico de Roger Waters e Syd Barrett, combinando a infância de Waters com a retirada de Barrett das fileiras do Floyd - e seu consequente esgotamento men-tal que o lançou a demência.

Lá no finalzinho da fita, rola uma canção chamada The Trial(O Julgamento), música que representa uma espécie de acerto de contas de Pinky com sua consciência. Na tela vemos uma representação dos eventos do filme capitaneada pelos desenhos e ilustrações do cartunista britânico Ge-rald Scarfe. Na letra, o advogado de acusação o ridicula-riza por ter sentimentos de uma natureza “quase humana”.

Desafetos como seu velho professor da escola primária e a ex-mulher atiram pedras no indefeso Pinky, caracterizado na forma de um boneco de pano com feições infantis. So-mente sua mãe não o condena pelo passado de erros e equí-vocos. As mães, sempre elas (e somente elas) para compre-enderem seus rebentos. Freud explica.

Na letra de Roger Waters, além da sensação de desamparo, ele decreta:

“Macacos me mordam! Eu estou louco. Fui fisgado. Deviam ter tomado minhas bolinhas de gude”.

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No final, Pinky é condenado. O juiz justifica que aque-le homem causou dor a própria mãe, destruiu um casamento e também arquitetou supostos tormentos ao ex-professor. Como sentença será exposto diante de seus semelhantes numa espécie de exemplo da desgraça humana.

Da mesma forma que aconteceu no show de Waters em março de 2012, o muro também despencou em cima de você. É assim que se sente: - culpado por ser uma besta quadrada sensível que não consegue enxergar o mundo de uma forma prática. É como se o seu corpo fosse preso a balões que não permitem que os pés desse ser avoado (sim, você mesmo!) toquem o solo. Enfim, diga-me como é morar no ar? E quando o dedo em riste é apontado para seu rosto, da mesma forma que Pinky, uma voz interior lhe assopra:

“Louco. Além do arco-íris ele está louco”.

Yeah, my dear Dorothy (man)! O que fazer com esse maldito sentimento de culpa? Eu te digo meu caro: nada! Apenas re-laxe. Agora é só esperar a Bruxa do Oeste surgir do nada. E alguma coisa me diz que você não contará com a ajuda de nenhum Espantalho, Leão ou Homem de lata. Ah, e tome a devida distância dos tijolos amarelos.

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Apenas o tempo

Não adianta nem tentar: ele não consegue parar de olhar para o relógio. É estranho como o movimento entediante dos segundeiros o deixa relaxado. Tranquilo. Como um médico avaliando um paciente, ele aproxima o pulso do ouvido e assim consegue ouvir os batimentos cardíacos da máquina. 60 batidas por segundo. Além disso, ele gosta de escutar o bip dos 15, 30, 45 minutos e, principalmente, o sinal da hora cheia. É como se o bip tivesse a capacidade de mantê-lo alerta, em estado de prontidão. Mesmo que pareça contraditória a sua atitude, aquele plantonista em tempo integral consegue relaxar, ele apenas não cogita a hipó-tese de tirar os olhos do relógio. Acredita que a inofen-siva mania seja impossível de importunar alguém. Quem o conhece até já se acostumou a vê-lo com os olhos vidrados no relógio de pulso. De tempo em tempo, acaricia o vidro embaçando-o com o dedo indicador, para logo depois desem-baçá-lo em sua camisa.

Fica pensando no inexorável efeito do tempo na vida de cada um e o quanto tudo pode mudar em apenas uma volta do ponteiro pelas 12 marcas – em negrito – no relógio. A cada novo movimento, aquele homem pode renascer, morrer, sobreviver, discordar, perder e ganhar, naufragar em ilu-sões, realizar sonhos, discorrer em erros crassos ou co-memorar acertos. A cada novo minuto, uma decepção novinha em folha o acorda para o futuro, uma recordação aleatória o lembra de um tempo passado que não sai de sua memória. E não irá sair.

Cenas intermitentes projetadas dentro de si. Basta fechar os olhos e lá, dentro de sua cabeça, rola um longa-metra-gem em widescreen, uma seleção dos melhores momentos ao lado de quem ele ama. Um top 10 dos hits que embalaram sua passagem pelo planeta até aqui, afinal, quem não gosta de um bom flashback? E, apesar de todo esse rol de sensações e sentimentos cruzados, o relógio não para. Na felicida-de e na tristeza – o tempo não para. Encosta novamente o

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pulso no ouvido esquerdo e abre a contagem. 60 batidas por segundo. Ah, se tudo fosse tão rigoroso e certeiro como os movimentos sincopados desses ponteiros. Ele recorda o tique-taque do relógio de parede na casa da avó: era como se o pêndulo equalizasse o ritmo da própria família a cada badalada.

Em uma situação difícil, quando somos colocados à prova, quando as paredes vêm abaixo, após um baque violento, de-pois do grande estrondo, ele olha para o relógio e relem-bra: de uma forma ou outra, o mundo continuará a girar. Quer queiramos ou não. É só olhar para seu pulso. Os pon-teiros da engrenagem não param de contar o tempo. Mesmo esfolado pela dor, ele descobrirá um novo ritmo. Por isso, precisamos sacudir a poeira e retornar ao fluxo. Como as marés, o ciclo lunar e tantos outros movimentos.

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Linda

Gosto de ouvir vozes femininas no toca-discos lá de casa. Bate uma sensação de conforto. Em muitas noites já tive a companhia de Shelby, Emmylou, Nicolette e outras meninas da música. Algumas vezes, tentei elucidar os mistérios dessa relação platônica com minhas garotas. Sou fissura-do em música country. Aí chegamos a Linda Ronstadt, can-tora norte-americana que, graças à internet, redescobri nos últimos dias. Vi na íntegra um show que Linda fez na Alemanha, em 1976, logo depois de lançar Hasten Down the Wind, um de seus melhores LPs.

No vídeo, além de uma presença de palco estupenda, Linda mostra uma variação de repertório que pode passear por gêneros diversos. Basta falar de uma canção do set para definir o poder dessa pequena. Ela abre a apresentação com Lose Again, música composta pela cantora/compositora Karla Bonnof, que desde já está no (meu) top 10 das melho-res canções de todos os tempos. O tema começa como um pop romântico, apenas o piano e sua voz que parece desafiar a melodia, ora suave, às vezes acentuando o tom de despedida na letra:

“Save me / free me from my heart this time / the train’s gone down the track and I’ve stayed behind”.

Linda pedindo para ser salva, falando de um trem partindo com seu provável amor que a deixou pra trás. Depois surge violão, baixo e bateria. Então, ela diz que ninguém pode-rá libertá-la da sensação de estar presa aos grilhões e correntes dessa paixão. E aí a banda emerge em sua pleni-tude triste e bonita. O som vira um country maiúsculo, com direito a vocal de apoio, solo de guitarra e todo aquele clima típico de um clássico. Raios! Quem ficou preso fui eu. Faz duas semanas que não consigo parar de ouvir Lose Again. Comprei o álbum original da canção em LP e cá estou eu escrevendo sobre isso. E como ela era bonita em 1976,

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aos 30 anos. Linda e seus olhos castanhos escuros deline-ados. Ela e sua blusa branca de babados. Linda e sua calça de tergal azul colada ao corpo. O pulso direito com pul-seiras de miçangas e a pele branca realçada por um colar de prata. Duas rosas vermelhas nos cabelos negros, igual uma dançarina de saloon em uma fronteira qualquer com o México imaginário nos filmes de faroeste.

Mais de três décadas depois, a artista permanece como um dos maiores talentos de sua época. Já os tempos de glória fazem parte do passado. A cantora, que nunca se casou, atualmente vive semi-reclusa em sua cidade natal, Tucson, no Arizona. Mas sabe o que é estranho? Pelo menos pra mim, aquele vídeo é o momento definitivo dela. Nunca alguém cantou tanto em apenas uma música. Sob o sal das luzes, poucas vezes uma mulher pareceu tão bonita e verdadeira. Senhorita Ronstadt será perfeita para todo o sempre nessa noite de 16 de novembro de 1976, no Rockpalast, em Of-fenbach, na Alemanha.

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A barraca iglu

Não sei de onde surgem certas coisas. Acontece que resolvi comprar uma barraca iglu. Estou falando daquelas peque-nas, que cabem duas pessoas e custam cerca de R$ 50. Aí você me pergunta: “Tá, então tu vais acampar em algum lu-gar?”. Resposta: “Não. Sem planos de me internar no mato”. Na verdade, instalei-a no fundo do meu pátio. É que acabei de cortar a grama do meu quintal e, como estamos em época de calor, nada melhor do que recorrer a modos alternativos de adormecer em boas condições. Sim, isso mesmo! Estou dormindo na minha barraca iglu novinha em folha. Inclusive preciso usar um cobertor mais quente. Essa nova casa de poliéster e polietileno, com varetas de fibra de vidro, é predominantemente da cor azul, com detalhes em branco e acabamento em amarelo, tem cerca de 2 metros quadrados e, por enquanto, atende minhas expectativas. Está sendo bacana vê-la por lá.

Um amigo meu disse o seguinte: “Acho que tu cansastes de ti mesmo e te expulsou de casa”. Boa. Eis, talvez, uma boa maneira de dar um tempo no computador e no conforto do lar. Parece que encontrei um novo jeito de passar as horas de uma forma interessante. Na verdade, preciso dar um tempo em alguns ciclos viciosos que se instauraram em minha rotina e, dessa forma, talvez absurdamente nonsense para alguns, quem sabe eu possa descobrir novos e pequenos prazeres. Por exemplo: a leitura flui dentro da barraca. No próximo domingo, inclusive, eu vou tirar uma sies-ta nela. Alguns podem chegar à conclusão de que preciso de internação. Como uma simples barraca iglu pode deflagrar mudanças – radicais ou não – no cotidiano de alguém? Seria ela mais confortável que minha cama? Claro que não.

Sério, essa jogada de ficar enfiado dentro de casa, en-vergando em frente ao PC, está me aporrinhando o saco! Preciso voltar a interagir com o que acontece além das paredes da sala e do quarto. É aí que entra a barraquinha azul, amarela e branca, lá no fundo do pátio. Como moro

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numa área limite entre a cidade e o fim dela, posso dor-mir sentindo o cheiro do mato vazar pela tela no teto da barraca; é uma delícia saborear o cri-cri dos grilos e o coaxar dos sapos e rãs. Que sensação agradável é olhar para o alto e ver o céu como um mar de lumes.

Enfim, é bom demais curtir o combo de aromas misturados à noite e à madrugada e, por fim, despertar com o barulho dos pássaros empurrando o sol para o alto. Tirando um pe-queno desconforto nas costas, a minha estada por lá está sendo perfeita. Daqui uns dias, eu volto a fazer rodízio com minha cama, no entanto, um fato está consumado: a barraca não ficará amarrotada dentro do saco de guardar. Lá pelos primeiros meses de frio, pretendo repetir a ex-periência e quero vê-la coberta de geada. É sério! Alguém conhece um bom psicólogo?

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O ermitão

Um amigo me pediu, faz algum tempo, um texto para a orelha de um livro sobre cinema que a Faculdade de Comunicação Social da UFSM estava preparando. Mandei o material, mas não sei se o tal livro saiu. No entanto, o tema colocou minha cuca para funcionar. Certas vezes você se pega pen-sando em um filme ou outro. Isso acontece com frequência. Na verdade, existem cenas que estão tatuadas definitiva-mente na memória.

E tem cada figura. Um take: o final trágico e pontuado de humor de Butch Cassidy & Sundance Kid. Outra: a dança do casal apaixonado que não pode materializar o romance em O Encantador de Cavalos, ao som de Soft Place To Fall, de Allison Moorer. E personagens: “Dude” Lebowski de Jeff Bridges é uma lenda. E Jeremiah Johnson em Mais Forte Que A Vingança, faroeste de Sidney Pollack, uma espécie de caçador solitário que dialoga com os escritos de Thoreau.

Vez ou outra você não se pega imitando atores e sequências que conhece de cor? A vida imita a arte ou apenas as len-das ganhando mais importância que a realidade? Na real, tudo se mistura, e essa sua doença não tem cura. Bukowski já dizia:

“Ficção é a vida melhorada”.

Então, nada como dar play e começar uma nova viagem.

Você cresceu vendo filmes com dublagens terríveis na TV aberta, gostava de ouvir o barulho da fita VHS ser engo-lida pelo vídeo-cassete, virava a noite revendo clássicos em preto-e-branco na TV a cabo e cansou de ficar seduzido pela tecnologia mentirosamente eterna dos DVDs. Você está careca de saber que, depois do Blu-ray, o mundo capita-lista vai inventar um novo formato para rapar os trocos da sua carteira e fazê-lo comprar o mesmo filme três ou quatro vezes!

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No fim das contas, você baixa todas as semanas gigas e mais gigas de filmes. Dramas, comédias, suspenses, roman-ces, aventuras e sabe-se lá mais o quê! E ainda tem os livros. Livros sobre atores, cineastas, enfim, essa é sua danação, para o bem ou para o mal. Poucos programas supe-ram aquilo que você faz há tempos: sentar em frente à TV e ver um bom filme. Geralmente sozinho, às vezes acompa-nhado, mas por favor – que não que não lhe convidem para um churrasco com amigos chatos e todo o velho repertório de piadas sem graça, regado com todo aquele papo de “quem comeu quem”.

Fiquei sabendo que você até comprou um sofá novo, só pra poder curtir ainda mais o seu hobby. O que lhe interes-sa – é o som, a imagem e a palavra escrita capturada. Um ermitão – é isso que você vai virar meu caro! Um pouco de vida real lhe faria bem, sabia? Quem sabe podemos conver-sar um pouco sobre isso, o que acha?

Tá bom, eu espero o filme acabar...

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Calor dos diabos

Tenho uma teoria: o frio nivela as pessoas por aquilo que elas têm de melhor. Já o calor expõe tudo o que há de mais nocivo nelas. Fico pensando naqueles que gostam do verão. Como apreciar o sol agindo como um maçarico e disparando um calor insuportável que nos faz suar como nascentes de água morna? Há solução para amenizar esse desconforto? Ao menos se pudéssemos ficar sepultados durante três ou quatro meses dentro de uma sala ou quarto, com ar-condi-cionado bufando, impregnados pela sensação de prazer que esse equipamento nos proporciona. Buenas, aí seria outra história! Não tenho ar-condicionado em casa. Preciso com-prar um. No trabalho, por atuar dentro de um estúdio de rádio, onde o ambiente é climatizado, não tenho do que reclamar. O problema é quando coloco o pé para fora da em-presa. É como se o diabo e seu tridente disparassem chamas vindas do inferno direto para a minha cabeça. 36°. Deus do céu! E lá vou eu rumo a Chácara das Flores, encarar um ônibus que raramente passa no horário, e que nos deixa com a sensação de que somos dúzias de sardinhas navegando numa grande panela de pressão prestes a explodir. Quem passa por dilema semelhante, sabe do que falo.

Voltando a falar no Criador, eu fico pensando nos porquês, de nessa vida, ter nascido em um país tropical. Gosto do frio e da sensação que ele me proporciona. O inverso me inspira, em todos os aspectos. Meus ancestrais não devem ter passado por isso! 36°. Deve ser carma. De toda a for-ma, cá estou eu, no final da primavera, percebendo o fogo do verão se aproximando como o apocalipse.

Como não há o que fazer, além de estar munido de boné e óculos escuros, eu pretendo comprar um novo par de sandá-lias, quem sabe encontrar algumas camisas novas com teci-do leve e retirar do armário minhas bermudas ridículas. Depois vou respirar fundo e encarar os dias do porvir. Providências a serem tomadas antes de dormir: pouquíssima roupa, ventilador de teto ligado na velocidade máxima e

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outro aparelho semelhante turbinado direto na minha cara. Isso sem dúvida irá minimizar o Efeito Estufa dentro do meu quarto. Gosto de ouvir o barulho das hélices e a sen-sação que nos toma o corpo de madrugada, quando a tempera-tura chega ao seu ponto mais agradável. Certas vezes até dá pra puxar um lençol e se cobrir.

Só espero que o verão e todo esse calor dos diabos passe o mais rápido possível. Deixo aqui meu pedido aos céus para que positivamente consiga superar grande parte daquilo que a próxima estação trás em seus anexos. Como sou um so-fredor por antecipação, antes de terminar a primavera, eu decreto: - que venha o verão! E antes de o verão começar, eu imploro: - que o inverno chegue o mais rápido possível.

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Rádio de pilha

Fico pensando nessa gurizada de hoje que cresce e passa seus dias em frente a um PC. Nada de livros e gibis ou brincadeiras de verdade. Nesse universo de jogos online e de descobertas em apenas um clique, a imaginação parece ter sido soterrada de vez, o lúdico inexiste. Claro que esses joguinhos de computador são bacanas e sedutores, no entanto, creio que vivemos numa época em que as crianças e os adolescentes não mais são instigados a imaginar. Lembro-me de um tempo distante, quando eu tinha uns 13 ou 14 anos, vivia pra lá e pra cá lendo minhas revistas da Marvel e de faroeste, gastava os fins de tarde brincando de trabuco, carrinho de rolimã ou jogando bafo. Gostava de me instalar no fundo do quintal de casa com um modelo Motorádio do meu velho, ouvindo as paradas de sucesso da época. Pelo mesmo rádio, meu pai ouvia os noticiários da manhã e minha mãe cozinhava ao som de tangos e boleros.

Ainda é muito presente a lembrança dos domingos, quando voltávamos da casa de minha avó ou retornávamos dos bal-neários de Itaara, e meu velho ficava atento ao rádio do carro, geralmente acompanhando transmissões de jogos de futebol. Em casa, gostava de acompanhar as jornadas es-portivas com o rádio ligado e a TV sem volume. Naquele tempo, eu detestava aquilo. Hoje, para desespero de meu filho, adotei uma prática semelhante. E até mesmo durante o trabalho, na oficina mecânica que meu pai administrava, havia sempre um rádio espalhando música e informação pelo ar. Talvez em decorrência disso tudo, eu tenha adquirido o hábito de sempre ter um rádio (de pilha) comigo.

Eu acordo e ligo o rádio. Acompanho a previsão do tempo, alimento minhas gatas, compartilho o café com minha mãe, tomo banho, me visto e até mesmo enquanto rumo em direção ao trabalho, aí já munido dos meus fones de ouvido, lá está o rádio, o tempo todo sussurrando informação e mú-sica. Será que dá para imaginar algum garoto de hoje tro-cando seu notebook, iPhone ou computador pelo rádio? Acho

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difícil. Quando o assunto é livro, então, nós adentra-mos no território do (quase) inimaginável. Tanto o rádio quanto a literatura atuam em um terreno em extinção. Essa gurizada saca tudo de atalhos no teclado e de tecnologia, mas quando pedimos que escrevam apenas duas linhas sobre o que aconteceu há apenas 15 minutos, travam.

Gosto muito de uma frase do escritor Reinaldo Moraes:

“A imaginação é uma droga pesada”.

Eu fico pensando na minha infância e adolescência e, mui-tas vezes, divago: “Como seria meus 13, 14 anos se eu tivesse um PC em casa?”. Não tenho dúvida, completamente diferente. E lá ficava eu, imaginando...

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Enchente de São Miguel

Antes de abrir os olhos, cai na piscina. Quando as pálpe-bras se movem, captura o último facho de luz refletido na superfície. É muito fácil ser arrastado para o fundo sem um colete salva-vidas. Gostou de ouvir o barulho dele se chocando contra a água. Rapidamente, as roupas ficam en-charcadas. Lentamente o corpo foi descendo. Elmo não sabe nadar. Enquanto afunda, um filminho em “fast-forward” passa pelo seu cérebro. Quarenta anos em quatro segundos. Uma canção de despedida? Pode ser aquele som do ultimo álbum de Gram Parsons.

“In my hour of darkness / in my time of need / Oh Lord, grant me vision / Oh, Lord, grant me speed”

Isso mesmo, Gram! Não parece uma prece? Escuridão, neces-sidade de ajuda, visão e velocidade para superar os obs-táculos. Finalmente o corpo chega ao destino. Lá está ele, bem no fundo da piscina. Permanece impávido, imóvel igual Ben Braddock em A Primeira Noite de um Homem. Só que ele está sem equipamento de mergulho. A água começa a adentrar os pulmões. Em pouco tempo, estará morto. Não se debate, não resiste, ele não tenta intervir contra o destino.

Kábrummm! Um trovão rompe a madrugada, e Elmo desperta de sobressalto. Corpo suado, coração pulsando um pouco mais forte... no entanto, acorda tranquilo. Lembra-se do acontecimento recente no Mundo dos Sonhos e conclui que o suor, provavelmente, não passa de um resquício do pesadelo. Cinco dias de chuvarada, e São Pedro continua mandando água lá de cima. Afinal, quando se está bem abri-gado, ainda mais confortável e debaixo dos cobertores, o barulho da chuva fica bem mais agradável de ouvir. Elmo, particularmente, gosta do tiquetaquear das gotas que es-coam do telhado e chamuscam a veneziana. Os antigos chamam essa época do ano, que marca a transição do inverno para a primavera, de Enchente de São Miguel. Setembro é, his-toricamente, um mês castigado por intensas precipitações

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no Rio Grande do Sul a ponto de, no vocabulário popular, ter sido criada essa expressão, em alusão ao dia 29 de setembro, que marca este arcanjo.

Levanta da cama, vai até a cozinha, e toma um copo d’água. Lá fora, com certeza, por ter ouvido movimentação vinda de dentro da casa, a gata mia reclamando algo. Abre a porta dos fundos, e o bichano entra e se acomoda num canto da cozinha. A chuva não dá trégua. Volta para a cama e pensa sobre o sonho. Alguns acreditam que sonhos funcionam como espécies de presságios. Quem sabe seja alguém de outra dimensão nos soprando recados? Elmo nunca gostou de ficar encasquetando. Apenas fecha os olhos e torce imensamente para que o sono chegue o mais breve possível. Só assim, um novo sonho (ou pesadelo) o arrastará para outro cenário. Enquanto isso a Enchente de São Miguel continua lavando os pecados do mundo.

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Só as mães são felizes

Como de costume, antes de eu sair de casa, minha mãe pre-parou um almoço simples e saboroso. Carne frita, polenta, lentilha, arroz e salada de couve crua com talos de alfa-ce. Servi um cálice de vinho. Durante a refeição, ela fi-cou se desculpando por não ter feito algo mais aprimorado. Deus! Mães são assim, espontaneamente cheias de amor no coração. Preparam-se todos os dias para oferecer o melhor. De modo que, na cabeça delas, seremos para sempre seus protegidos. A última lá de casa é que mamãe está guardando minhas crônicas do jornal. O objetivo é muito claro. “Sa-be-se lá onde essas páginas vão parar?!”, disse ela. “Não quero ver tua foto jogada em qualquer lugar”, concluiu.

Logo depois, no ônibus a caminho do trabalho, retomei a leitura de uma biografia de Jack Kerouac escrita por Barry Miles. Na página 44, o autor narra que, certa noite, quan-do o escritor tinha 12 anos, recusou-se a dormir sozinho e visitou a cama da mãe. Ele conta que Jack passou horas confortáveis aconchegado nas costas quentes de sua proge-nitora. Com os olhos abertos, ele observava as sombras das árvores na parede, sentindo que nada podia lhe fazer mal. O menino concluiu que algum monstro só poderia levá-lo se levasse sua mãe junto, e já que ela não tinha medo das sombras, ele estaria a salvo.

Chegando ao meu destino, fechei o livro, levantei-me e puxei a campainha. Antes de chegar à porta, vi uma jovem senhora com o seio de fora amamentando seu bebê, ali mes-mo, dentro do ônibus, e sem demonstrar a mínima preocupa-ção com tudo que acontecia a sua volta. Eu sempre fiquei impressionado com uma cena dessas. Só as mães conseguem ser assim, despreocupadas com o mundo exterior, apenas pensando no bem estar dos seus.

Enquanto sussurrava palavras de carinho, aquela mulher alimentava o filho com extrema afeição e cuidado. O reben-to estava grudado no seio esquerdo dela. No banco ao lado,

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um garoto de cerca de uns 7 ou 8 anos, que devia ser seu filho, se recusava a admirar aquele quadro. Com o rosto colado na janela, o jovenzinho parecia envergonhado. Lem-brei que, quando meu irmão caçula nasceu, eu tinha apenas 5 anos e, na época, também fechava os olhos ou virava o rosto quando minha mãe amamentava meu irmãozinho. Eu me vi naquele garoto.

Sob a ótica masculina, é difícil entender tamanha entrega que as mulheres despendem aos filhos. Tenho certeza que grande parte das mães que conheço trocaria a própria fe-licidade pelo júbilo e realização de sua prole. Voltando aquela citação da biografia de Jack, lembro que, quando era pequeno, também recorria aos lençóis da minha mãe para espantar os fantasmas. E eles sempre desapareciam quando eu chegava perto dela. E, apesar dos protestos de meu pai, eu ficava por lá até o amanhecer.

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Leviandade

Foi totalmente ao acaso que assisti aquela cena. Voltava do mercado com minha sacola de compras rumo à parada de ônibus quando me deparei com um casal discutindo em uma esquina qualquer. E o clima estava quente. Aquele homem olhava para a garota com apreensão. Já ela sugeria uma imagem de decepção. Em certo momento, a garota proclamou a frase: “Tu és um leviano!”. Logo depois, com lágrimas nos olhos partiu em disparate atravessando a rua sem a mínima precaução. Biiiiiiiiiiip! Quase foi atropelada. Ele ficou parado como uma estátua da Avenida Rio Branco. Olhando para o sujeito de canto de olho, me peguei pen-sando na frase que ouvi. A palavra – leviano - me remeteu a uma imagem de criança: Gostava de soltar barquinho de papel pelas sarjetas próximas ao meio fio da rua em que morava - isso quando tinha meus sete ou oito anos. Nada poderia ser mais leviana do que aquela imagem de um bar-quinho navegando leve pelo rio imaginário promovido pela falta de saneamento básico. “Leve / Como leve pluma mui-to leve, leve, pousa”, outra leviana lembrança promovida pelo poema de João Apolinário, na voz de Ney Matogrosso à frente dos Secos & Molhados me deixou cantando baixinho.

Chegando em casa, de cara consultei meus alfarrábios. Foi quando então a imagem poética ainda seria ampliada. É claro que não desconhecia o real significado da palavra, na verdade apenas estava em busca de outros desdobramen-tos. Segundo o dicionário, “leviano” pode ser utilizado como adjetivo. Uma pessoa leviana é alguém que julga ou procede irrefletidamente; esse sujeito não passaria de um inconsiderado, imprudente, um cara sem seriedade, um pre-cipitado. De característica ou de procedimento inconsis-tente. E assim, esse homem (ou mulher) teria o carimbo da leviandade. No brasileirismo antigo, usamos leviano para designar algo leve (como meu barquinho, pensei). A palavra também pode ser utilizada como adjetivo: Inconsequente, imprudente, insensato, precipitado. Como sinônimo, pode-mos dizer que o ser leviano é alguém aéreo.

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Fiquei pensando em diferentes faces (e fases) da levianda-de. Por exemplo, esse troço de “proceder irrefletidamen-te” é a minha cara. Sou impulsivo pra caramba. E impulsi-vamente posso dizer que assim como grande parte das coisas na vida, e no caso desse episódio do casal que presenciei, sem dúvida há dois lados na história. Eu apenas peguei o trem atrasado e dei uma conferida em alguns “suspeitos” segundos da trama. E da janela do vagão pude constatar que nenhum dos dois estava feliz com o rumo dos aconteci-mentos. Seria um ato de leviandade tirar alguma conclusão precisa daquela discussão. No entanto, posso profetizar que aquele romance parece ter ido a pique. Igual ao bar-quinho de papel da minha infância.

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O banho fica pra depois

Elmo chega cansado em casa. Alimenta os gatos e deixa o banho pra depois. No frigir dos ovos, o banho sempre fica para depois. Antes precisa cozinhar algo pra enganar o es-tômago. Procura no congelador uma carne ou algo parecido. Acaba separando uma espécie de pequeno iceberg que imagi-na ser frango congelado. “Arroz com galinha”, pensa. Eis o cardápio da noite definido em uma fração de segundos. Joga aquela coisa dentro de uma panela com água e coloca no fogão. Demora a encontrar o isqueiro. Isqueiros desapa-recem da cozinha quando precisamos deles. Sempre pensa em bips eletrônicos e localizadores numa hora dessas. Acha a porcaria! Acende a boca com a chama mais alta e vai para a internet dar uma sacada nos acontecimentos.

Nada de novo no front. Várias mortes no trânsito, greves e mais greves, piquetes, julgamento e corrupções de polí-ticos em todos os sites e insonsas manchetes de futebol. Passados alguns minutos, ele dá um bico no fogão e desco-bre que aquilo que julgava ser frango não passa de porco. Uma carne suína perdida há meses dentro do congelador. Pestaneja no ato.

Está decepcionado com seu engano. Mesmo assim, deixa cozi-nhar mais alguns minutos. Alteração de plano de voo. Tira o porco da panela. Puxa a tábua de carne e pica a janta em pedacinhos. Um misto de raiva e atitude. Dá uma cafun-gada de perto e chega à conclusão que o resultado final não transformaria a comida em algo apetitoso. O estômago ronca em protesto, avisando-o: “Elmo, você precisa salvar a nossa noite!”. Isso exige medidas imediatas!

Coloca arroz para cozinhar, corta uma cebola e meio pi-mentão. Pega uma panela de ferro e lança a carne de porco picada lá dentro. Com o azeite salpicando suas mãos e o chão da cozinha, aos poucos adiciona sal e outros ingre-dientes. Termina o set pulverizando pimenta e pingando

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gotas de limão em cima de tudo. Definitivamente, o resul-tado final daquilo tudo não cheirava nada bem. Desliga o arroz e resolve provar a refeição. Ficou horrível. Culpa da ação do tempo sobre uma carne de segunda preterida faz tempo ou culpa da Era Glacial “fake” promovida por uma geladeira de última geração.

Fica pensando nas mensagens implícitas desse aconteci-mento culinário. “Que saudades da comida da mamãe”, Elmo pensa em voz alta! Depois, conclui que existem outras ‘coisas’ congeladas por um tempo em sua vida e que, em algum recanto obscuro, permanecem adormecidas. Depois de um tempo, não adianta colocá-las no forno micro-ondas. E no final das contas, temos gato por lebre ou porco por frango! Algumas coisas deveriam ficar para todo o sempre no fundo do congelador.

Elmo vai dormir. Congela o banho pra manhã seguinte

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Não é “Kêiti, é “Kif” Richards

Às vezes me pego pensando em que tipo de pai eu sou. Por exemplo, no último fim de semana, comecei a comemorar o Dia dos Pais no sábado. Para isso, resolvi levar o meu fi-lho num famoso boteco da cidade. Muitos com certeza levam suas crianças a shopping centers, dão uma volta pela ci-dade em busca de um sorvete com cobertura de chocolate, ou acompanham os rebentos ao cinema. Eu levei Guilherme, meu filho, para um barzinho. O plano era ficar por lá apenas por cerca de uma hora, ou pouco mais que isso, apenas para fazer um “happy hour” inusitado com o garoto. Mas que pai levaria um filho de apenas 12 anos para uma passagem de som de uma banda? A expressão “politicamente incorreto” cai como uma luva para essa cena.

Ao chegarmos por lá, de cara ele pediu um guaraná. Olhando atentamente o cardápio, entre nomes sugestivos e petiscos duvidosos, apostamos no clássico: - tábua de coraçõezinhos de galinha e a básica porção de fritas. Guilherme sorriu em júbilo, numa expressão beatífica. Aquela felicidade do tipo “gato que engoliu um passarinho”. 461 Ocean Boule-vard, célebre LP de Eric Clapton vazava pelas caixas de som do bar. Em nossa mesa, juntou-se a nós no bate papo o dono do bar, mais outro amigo. Na conversa, entre uma zoação e outra, falamos da banda que se apresentaria na-quela noite em tributo a Elvis Presley, da possível vinda de Robert Plant ao estado em outubro e da esperada nova turnê dos Rolling Stones. Guilherme quer assistir os Sto-nes ao vivo. Foi aí que em determinada frase, meu amigo pronunciou o nome do guitarrista dos Stones – “Keith (Kê-iti) Richards”. Então, sem a mínima elegância, e nenhum traço de indulgência, meu filho corrigiu o cara. “Não é “Kêith”, é “Kif” Richards!” E ele estava certo. Meu amigo prontamente retomou o seu raciocínio retificando o nome do músico inglês. Claro que fiquei orgulhoso do guri.

Contei pra ele essa história da pronúncia certa do guitar-

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rista dos Stones enquanto lia Vida, biografia de Richards. O próprio “Kif” nos ensina. Guilherme não esqueceu a li-ção. Sempre usei a música como um canal de estreitamento entre nossa relação pai/filho. Tem uma coisa que aprendi com as crianças. Elas têm seu próprio tempo. E não adian-ta forçar a barra e tentar impor nossas preferências como sendo as mesmas que movem o interesse delas. No entanto, um dia, quando menos se espera a ficha cai. No caso de Guilherme, ele descobriu Beatles, Stones, Kings of Leon e outras bandas e artistas que até não me orgulho tanto.

Falando de música e uma boa história entre pai e filho, tem um som que me ganha quando esse tema vem à baila: Be-atiful Boy, de John Lennon. Sempre me lembro do meu ga-rotinho com medo do escuro. E lá estava eu espantando os monstros com uma canção.

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Quem vai apertar o botão?

Um homem morando sozinho pode ser visto como uma bomba--relógio pronta pra explodir a qualquer momento. Lá vai ele, tropeçando nas próprias pernas, meio caminho entre a cozinha e o quarto vazio cheio de livros pelo chão e folhas de jornal espalhadas pelo assoalho sujo. Umidade. Não bastasse isso, o sujeito mantém pechas e pendengas que persistem em fazer barulho dentro da sua cabeça, como uma mescla de sonhos e pesadelos que, invariavelmente, sobre-voam o travesseiro daquele pobre homem todas as noites. Fica aquela sensação de ter perdido uma peça fundamental do quebra-cabeça e, por isso, será impossível decifrar o enigma por completo. Sempre que para pra pensar, Elmo percebe que o melhor seria encontrar uma espécie de platô, ou redoma de vidro à prova de tudo aquilo que ele teme. Um lugar onde pudesse desfrutar da ausência de qualquer tipo de pensamento. Mas ele tinha plena consciência da impossibilidade disso acontecer. Zero! Portanto, uma nova garrafa de vinho teria sua rolha desobstruída em instan-tes. Quando o líquido lentamente desaba sobre a taça, se-gundos antes de ele tomar o primeiro gole, a dor já parece reconhecer o seu adversário de maior respeito, até então.

Quanto à rotina e cuidados com uma casa, um homem sozinho acaba tendo de lidar com uma série de pequenas atividades que podem derrubá-lo, fácil, fácil. Elmo tem uma máquina de lavar de última geração, mas não sabe usá-la. A roupa suja está espalhada pelo banheiro e num dos quartos. A louça começa a acumular na pia. Ele até gosta de cozinhar, no entanto, ultimamente não consegue nem aprontar uma da-quelas lasanhas pré-prontas. A última que colocou no forno ficou uma droga. Ele ainda queimou a boca. Algo pode estar ao mesmo tempo, muito quente e cru?

Voltando a garrafa de vinho, Elmo vai afogando suas do-res em doses cavalares. Só que tem um detalhe: sim, a dor

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evanesce. Só que ela dá lugar à melancolia. Trágico, não? Em poucos minutos o líquido se esgota. Vai até a cozinha, joga a garrafa vazia no lixo e cuidadosamente deposita a rolha num pote onde outras duzentas e tantas rolhas estão pegando poeira faz tempo. “Por que tantas rolhas?”, um amigo certa vez perguntou. “É para fazer uma cortina de rolhas”. Alguém que guarda rolhas para fazer uma cortina merece crédito de alguém? Claro que não.

Elmo lembra-se de Solitary Man, canção de Neil Diamond, só que na versão de Johnny Cash. Na letra o protagonista se queixa que talvez nunca encontre alguém pra dividir as coisas, e que no frigir dos ovos, só lhe resta aceitar que irá acabar sozinho. O volume no talo faz os vidros da sala tremerem. Não satisfeito ele aperta no botão do “loudness” e, assim, acentua os graves. Enquanto curte o som, ele se pergunta: “Quem irá apertar o botão da máquina de lavar?” Quem será a boa alma?

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Kototama

Segundo os japoneses, há um significado implícito em cada pequeno fragmento de vida, ou seja, estamos passando re-cados e nos comunicando até mesmo quando não percebemos. Isso acontece quando escolhemos cores, números, palavras, pessoas, músicas etc. Eu gosto desse lance, acho que defi-nitivamente existe mágica, inclusive nas pequenas coisas do cotidiano. Somos aquilo que escolhemos ser, e queiramos ou não, pagamos o preço por nossas mancadas, como também saboreamos os acertos. E por isso, não devemos reclamar uma vírgula quando inevitavelmente nadamos contra a cor-renteza. É por nossa conta e risco.

Voltando a falar dos orientais, dá pra compreender essa morfologia com um único exemplo. A palavra “Kotota-ma”. Koto - palavra; Tama – espírito. Espírito da palavra. Reza a cartilha que, se você tem o costume de pronunciar maledicências, palavrões e xingamentos de forma gratuita, por exemplo, irá atrair o lado negativo da força para o seu lado. Já o contrário, palavras positivas o aproximam da face ensolarada, como uma janela aberta em uma manhã de sol.

Apesar da simpatia com o tema, eu via essa jogada de forma dissonante. Algumas coisas da minha vida sempre estiveram linkadas ao viés nefasto da existência. Como descartar um sujeito como Charles Bukowski e toda sua errática filo-sofia? Buk sempre foi um dos meus favoritos na literatu-ra. Detesto escritores extremamente assépticos. Falando da lama, como não curtir um bluesman como Robert Johnson e o dilema entre o bem e o mal que permeou sua existên-cia? Crossroads Blues, canção em que o músico relata um suposto encontro com o diabo é um bom exemplo disso. Reza a lenda que Johnson teria vendido sua alma ao capeta para obter talento como músico. Os nebulosos “kototamas” im-plícitos na letra da música não a impediram de tornar-se um dos maiores clássicos de todos os tempos. Mas vale lembrar que poucos meses depois, Johnson bateu as botas

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com apenas 27 anos, derrubado por uma garrafa de bourbon diabolicamente batizada por um marido ciumento.

Na verdade, no meu ponto de vista, um bom artista, não necessariamente precisa ser alguém ajustado com o siste-ma. Bem pelo contrário. “A Falta de compostura é a marca do herói”, como diria Jean Cocteau. Artistas são seres humanos perturbados, assombrados pela tríade kerouaquiana - “Aimer, Travailler et Souffrir”, ou seja, esses caras geralmente estão encardidos (e potencializados) pelos sa-colejos do amor, trabalho e percalços da vida. Antenas da raça. Voltando a Robert Johnson, lembro-me de Love in Vain, uma das mais belas canções de despedida de todos os tempos. Um homem de coração partido com uma mala na mão. Ele ruma até uma pequena estação de trem, destroçado pelo fim de um relacionamento. Para bem e para o mal, uma can-ção sendo proferida pela boca de um cantor sempre será um poderoso “kototama”.

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Vida e correção ortográfica

Esta semana eu comecei a ler Waging Heavy Peace, autobio-grafia de Neil Young. Dando uma olhada no livro, de cara, deparei com uma frase fabulosa:

“Não existe revisão ortográfica para a vida”.

Será? Só sei que vamos vivendo sem prescrição médica e, muitas vezes, seguimos em frente apenas guiados pelo nosso próprio faro. Afinal, não dá para fazer revisão de estilo a 200 por hora. Lembrei também de uma entrevista que as-sisti há muito tempo na TV, com o ator italiano Vittorio Gassman, quando ele disse algo mais ou menos assim:

“Nós deveríamos ter duas vidas. Uma delas seria utili-zada apenas para ensaiarmos, e outra, para atuarmos. No entanto, infelizmente, ensaiamos atuando”.

Estou cansado de ouvir aquela lorota de “nunca me arrepen-di de nada na vida”. Conversa fiada! Quem nunca tropeçou em seus próprios enganos? Se pudesse voltar atrás, conser-taria algumas coisas... Mas, voltando ao livro de Young, o artista confessou em entrevista que, pela primeira vez em muitos anos, está sóbrio. E, segundo ele, já se mantém assim há um ano. Young ainda justificou que a mudança na maneira como leva a vida foi promovida com o processo de escrever suas memórias. A maconha, principalmente, era tão presente na vida de Young como o cigarro de tabaco. O fato de estar limpo ainda faz com que o músico se espante com as reações do seu corpo.

“Quanto mais limpo, mais alerta eu fico, menos eu me co-nheço e mais difícil é me reconhecer”,

filosofou o cantor. A droga parece ter editado sua memó-ria.

Descobri a música de Neil Young quando tinha 15 ou 16

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anos. Um amigo me apresentou um LP chamado Comes A Time, de 1978, disco que promoveu uma revolução na minha cabeça. Sempre o encarei como uma espécie de tio distante. Des-de então, sua música faz parte da trilha sonora dos meus dias e noites. Neil, com certeza, ensaiou atuando durante décadas. Trocou de camisa, de mulheres, de som, de casa, de estilo de vida, e hoje é reconhecido não só pela músi-ca, mas também pela sua atuação como filantropo, ativista político e ambientalista. Dá pra reconhecer que o velho é gente boa.

Fiquei pensando nesse lance de como editamos as coisas. Meias-verdades nascem assim. Pequenos takes da vida que ganham photoshop e cores mais bonitas. Essas manipulações fazem com que a verdade flerte com a ficção. É a vida, só que com correção ortográfica. Tente teclar um texto qualquer sem cometer um erro apenas. Impossível, não é? Errar faz parte do jogo. E, apesar da frase de Neil ser muito boa, concordo em partes. No entanto, estou em busca da ausência de revisão ortográfica. Pelo menos já sabemos que não dá para reescrever os parágrafos de ontem e não dá pra olhar para trás o tempo todo.

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Quarenta e oito segundos

Eu sou uma criatura estranha. Além de não ser abençoa-do com uma grande memória, sou cheio de manias e costumo acreditar na repetição e na sistematização da minha roti-na. Isso me conforta. Dessa forma consigo executar várias atividades diárias comuns a cada um de nós, no entanto um agente complicador foi deflagrado há duas semanas. Apo-sentei minha bolsa de lona por um simples motivo: ela se esfarrapou e ficou impraticável o seu uso. Ao constatar o estado deplorável dela, Mamãe simplesmente a confiscou.

Como consequência minha vida virou uma bagunça. Em suma – algumas sistematizações e repetições foram pro saco. Por exemplo, perdi meu molho de chaves e minha carteira de identidade. Resolvi não carregar mais nada comigo enquan-to não comprar um modelo similar a minha extinta bag. E o pior é que não estou encontrando. A verdade é que estou angustiado com essa procura.

Na última quarta-feira de manhã, fui até um chaveiro na Avenida Rio Branco e providenciei uma cópia de uma de minhas chaves. Fiquei impressionado com a rapidez do pro-fissional. Ele me entregou a cópia em menos de um minuto. Quarenta e oito segundos, segundo o chaveiro. Fiquei pen-sando, se todas as aflições que nos assolam pudessem ser dissipadas em apenas 48 segundos. Deus... Quem sabe nossa passagem pelo Planeta Terra fosse menos dolorosa. A minha bolsa, por exemplo, já se passaram duas semanas e lá vai pedrada e nada, nada de encontrar um modelo que atenda minhas necessidades. Fiquei refletindo nesse lance dos quarenta e oito segundos. Quantas coisas na vida poderiam ser solucionadas nessa fração de minuto? O que podemos ganhar e o que podemos perder? Na mesma manhã, logo depois encontrei um amigo no Calçadão e comentei com ele essa minha constatação, de como resolvi um problema em menos de um minuto. Aí o sujeito me alertou:

“E vai que não funciona?”

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Mas funcionou, perfeitamente, inclusive posso afirmar que nunca assestei uma chave numa fechadura com tamanha con-vicção.

No entanto, a paranóia da segundagem continuou noite aden-tro. Levei muito mais do que quarenta e oito segundos pra decidir qual LP iria colocar no toca-discos. Demorei um bom tempo pra decidir o que iria descongelar para acabar com minha fome. O chuveiro levou vários minutos para ser ajustado na temperatura exata para o banho. Ou seja, nada se compara a eficiência do chaveiro da Rio Branco. Ainda mais quando demorei algumas horas fritando na cama me de-batendo contra a insônia. Deve ser a maldição dos quarenta e oito segundos.

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O Tratador de cavalos

Entre um mate e outro, Gaudêncio começa a arrumar suas coisas. Por sete anos ele tratou dos animais daquela Ca-banha. Nunca houve distinção no seu trabalho com o bicha-redo, mas no correr dos anos, desenvolveu uma predileção por Vento Norte, um cavalo crioulo negro. Naquela manhã de despedidas, o sol ressurge brilhante, o céu se abre límpido num azul envernizado, resplandecente. Ao ver a cardoa pendurada na entrada da cocheira, larga a mala e resolve dar um último trato no animal preferido. Um adeus cheio de mimos.

Abre a cancela e adentra a morada do reprodutor. Ele pron-tamente responde com murmúrios (relinchos) de aprovação. Com a escova na mão, Gaudêncio começa a acariciar o pelo do cavalo. Inicia pelas crinas, penteando madeixa por ma-deixa. Também utiliza os dedos em busca de diminutos nó-dulos. Não encontra. Sabe que sempre fez um bom trabalho. Passa as mãos pelo restante do corpo de Vento Norte, e procura lesões ou alguma anomalia mínima. Nada. Pega uma escova mais macia e parte para as orelhas e focinho, mas não localiza secreções nas bordas das fuças e no restante. O olhar do cavalo diz tudo – há cumplicidade e confiança com o tratador. Complementando a lida, Gaudêncio passa uma esponja úmida junto aos olhos e narinas, e por último higieniza o couto da cauda.

Tem mais. Depois, desliza a mão por uma das patas do ca-valo e aperta ligeiramente a zona do tendão na parte in-ferior da perna, flexionando o membro. Limpa os cascos, retira uma quantidade mínima de sujeira alojada na sola e junto à ferradura. O casco tem um aspecto saudável e como na maior parte do tempo que esteve por ali, não há sinais de infecção ou rachas.

Com raro zelo, avança lentamente por cada centímetro da pelagem que possa ter sido esquecido. Com um pano de algo-dão macio, retira insignificantes vestígios de sujidade.

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Ele, agora como um expatriado de sua condição, sabe que vai sentir falta daquela rotina. Beija o focinho do cavalo e abraça seu pescoço. As lágrimas escorrem. O homem reco-lhe o material utilizado – guardando-o na bancada, para só então, fechar a cancela. Sai dali sem olhar para trás.

Mesmo fora da ativa, Gaudêncio sempre será um tratador de cavalos. Está no sangue daquele homem. Apesar da aparente tristeza em forçadamente abandonar o que não gostaria de deixar de lado, ele não está preocupado. Bem pelo contrá-rio, sabe que tanto os movimentos de vida, quanto o siste-mático ritmo do tempo, precisam encontrar novas direções. Vidraça limpa na janela, folhas verdejantes nas árvores. Renovação. Algo morre no tempo correto, para logo depois renascer em outra estação adequada. Quando compreendemos o significado do nosso mate, tudo fica mais claro.

Ao roncar da bomba, mete o chapéu na cabeça e segurando firme sua mala, o velho tratador cruza a porteira rumo à estrada do dia seguinte. A imagem de Vento Norte continua pinoteando dentro dele.

Tal como o Gaudêncio do poema, ele sabe:

“Não vai ficar pra semente / quem nasceu pra ventania”.

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Publicado em dezembro de 2013

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