camilo castelo branco - maria da fonte

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CAMILLO CASTELLO BRANCO MARIA DA ONTE A PROPOSITO DOS APONTAMENTOS PARA A HISTORIA DA REVOLUÇÃO DO MINHO EM 1846 PUBLIC.\DOS RECENTEMENTE PELO REVERENDO ‘PA D1<fr C14SLWI’kO CELEBRADO CHEFE DA JNSUBREfCjO POPULAR PORTO LiVRARIA CIVILISA’CAO DE EDUARDO DA COSTA SANTOS —EDITOR 1 $85

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Apontamentos para a história da revolução do Minho de 1846.

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Page 1: Camilo Castelo Branco - Maria da Fonte

CAMILLO CASTELLO BRANCO

MARIA DA ONTEA PROPOSITO DOS

APONTAMENTOS PARA A HISTORIA DA

REVOLUÇÃO DO MINHO EM 1846

PUBLIC.\DOS RECENTEMENTE PELO REVERENDO

‘PA D1<fr C14SLWI’kOCELEBRADO CHEFE DA JNSUBREfCjO POPULAR

PORTOLiVRARIA CIVILISA’CAO

DE

EDUARDO DA COSTA SANTOS —EDITOR

1 $85

Page 2: Camilo Castelo Branco - Maria da Fonte

Pcrto—Typ. Occidental, rua da Fabrica, 66e. ,~

~ ~UANDO eu abria as paginas

d’este livro sinrular do snr. PA~DRE CASIMIRo, occorreram-me

dois versos de G~tl~e, filtrados• •~~fr4~’

pela glote melhflua do visconde• • +• •-J (_‘ •1I

ue ~astiino.

• a apparecer. entes imaginarias,- que me enchieis outrora os olhos l’iSloflarios. (i)

Sentia-me remoçar; — o sol da juventudea dissolver gêlos sobrepostos de mais de

‘DISCURSO TROEMIAL.

(x) FAUSTO, ‘Prologo do andor.

Page 3: Camilo Castelo Branco - Maria da Fonte

6 MARIA DA FONTE

meio seculo. A primavera dos desenove an

nos a reflorir violetas, redoiças de trepadei

ras e froixeis de folhagem veludosa para osninhos das aves hilariantes. O coração a encher-se-me de cores, de aromas, de musicas, de fórmas e ideaes que eu tinha esque

cido. Uma consolação ineifavel como deveser a do asfixiado que, salve á morte, desubito, sorve, a peito cheio, haustos redemptores de oxigenio. Em fim, a ressurreiçãoda memoria das coisas boas, dos sentimen—tos alegres—memoria apagada no frontalde um craneo vasio como um velho jazigocom as lettras do epitaphio obliteradas.

Esta tafularia de rhetorica só pode apre—cial-a um velho que haja sido môço, quandoa Historia passava por esta nêsga da Euro

pa evolucionando os casos que padre Casimiro José Vieira condensou no seu livro.

E é preciso, de mais a mais, que esse velhoseja infeliz e sinta a saudade atroz, sem desafôgo e sem remedio, da sua mocidade. Por

1MAlHA DA FONTE

~q~ianto, se a revolução do Minho lhe fôr a

--tecord ação horrente de uma epoca sinistra

em que as notas de dez pintos se desconta-• :-yam ominosamente com 15 tostoens ‘/2 de

~p.êrda; as Inscripçoens a 32; a Espanha a-Cem prestar-nos tres milhoens a 43 com com~missão de 2 ~/2 — se elie recorda com mo~*irnentos peristalticos dos seus intestinosbaixos os toques a rebate nas torresenos

• .q~Üarteis, o leva-ai-riba canibalêsco das cazernã~ e das montanhas, os clarins estridulos

-dos esquadroens com as espadas fluas, as• in~asdens do José Passos aos Bancos, os

.000 proletarios do PADRE CAsIMIRo cc de~f~nsor das cinco chagas e general das duas

pr&~’incias~ do norte)) em redor de Braga a~i1~lárem por D Miguel i, a pandega civicad’~s artistas e colarejas ~pelas ruas das cida

• des guinchando a Liiizjnha, os pianos com- - u~n~a dysentheria democràtica patuleando

e:m.-farnilia o hymno do Antas e da Maria da

onte; os matadouros de Valpassos. Agrel—

Page 4: Camilo Castelo Branco - Maria da Fonte

8 )IiIilA UA FONTI:

la, de Braga, de Torres Vedras, do Alto do

Viso,—se estas remeniscencjas assustam asua memoria de capitalista pacato, pondo—lhe no seu interior colicas de futuras crizes

semelhantes, não leia. Ah! não leia este livro o velho que, ha quarenta annos, soifreu

desfalques nas suas notas de moeda, ladroeiras patrioticas nas suas acções bancarias, nas emissoens diabeticas de bonds, aboletamentos das legioens da Junta Suprema,ameaças á natureza do seu pbysico, e talvez

~ posse legitimamente canonica da sua esposa um pouco desviada da ((linha da boaconducta» por suggestoens do batalhão academico ou dos officiaes do Concha, todos

descendentes de D. Juan de Marafia. Ah!não leia.

Para que a MARIA DA FONTE seja uma lagrimosa mira~gem de saudades é preciso tersido o que eu era—não ter possuido no

tas, nem valores bancarios, nem aboleta

aos, nem familia de E/viras sujeitas ao ibe

~Ha cinco annos, pernoitou n’esta casa deS. Miguel de Seide um clerigo de variadissima sciencia, d’um trabalho indefesso no

serviço da religião; e, na flor dos annos, pujante de seiva para luctar, barba por barba,com os athletas do estylo e da zombaria

voltaireana. Era o padre Senna Freitas omeu querido e inesperado hospede.

i~1AaIA DA FONTE 9

.‘ ~r4smo lubrico das hordas castelhanas da qua

• ~rupla alliança. Assim, nestas condiçoens

-. e~p~ciaes, comprehende-se que eu, ao ler oipdice das 458 paginas do extraordinario livró do PADRE CASIMIRO, proferisse a saudaç.ão. de G~the ás reapparecidas imagens dasuâ mocidade:

- Toniai-;ne a apparecer entes, imaginarios,- ‘~. que me ench leis oziti-ora os olhos ~isionariog.

:.,_ J

Page 5: Camilo Castelo Branco - Maria da Fonte

10 MARIA DA FONTE MARIA DA FONTE 11

As antigas e as modernas sciencias—as

novas que vão solapando as velhas pelosalicerces—tudo o que a Inglaterra de Shaftesbury e Toland enxertou na França deBayle e Montesquieu, e a Aliemanha joeirou desde Luthero até Von Hartniann, opadre Senna Freitas sabe tudo isso, hau

riu-o nos rnananciaes torvos e cristalinos,puros e impuros, nas livrarias profanas, noscursos publicos de Londres, de Roma, deParis. Ouviu preleccionar sobre o transformisnio darwinista, Saturou-se de biologia eanthropologia para não desconhecer os fiosmais delgados da urdidura lamarckista, despiu-se da preoccupação da batina para quea luz da sciencia lhe batesse em cheio nopeito de homem, e chegou á conclusão refrigerante de que o leitor benigno não é atransformação organica e psycologica de umanthropopitheco—urna qualquer besta extincta e por isso incognita. Corno naturalista, pois, Senna Freitas está com Wirchou,

um sabiQ dé reputação imminentissima,

como sabem. Cuidavam os senhores, talvez, que eu ia dizer que Senna Freitas estava com os padres Grainha e Marnôco?

• Não’ sei isso, com certeza, quanto ao Sylla

• bus; mas’ o averiguado é que elle estuda e• sabe tudo quanto a Natureza de Lucrecio

destiliada nos alambiques da chimica, e gra• :nulada em miudezas de sciencia pode ensi

nar e phosphorear na massa cerebral. E a- exuberancia do que apprcndeu é tamanha

‘:que o padre Senna Freitas está convencido(deque ha Deus e que a alma é irnmortal.

~E, n’esta persuasão, veio elie do coliegiode Santa Quiteria, onde exercia o niagisterio, a S. Miguel de Seide, seis legoas decor

• r.idas, por que lhe constára que eu adoccára

~eri~osamente. Viera deitar uma delicada

• • són’da’ ás profundezas do meu panthcismodeSpinósa, accender uma lampada deante

• da minha lugubre e chagada esculptura de-Jesih’s Christo crucificado, levantar essa Iam-

Page 6: Camilo Castelo Branco - Maria da Fonte

11 DA PONTE

-~-~----

pada entre a minha alma amaurotica e atreva que me é na vida o preludio da treva

eterna, e mostrar-me, além na penumbra,duas veredas a bifurcarem—se, uma paraDeus, outra para o Diabo— que, afina], seabotôa com 75 por cento, pelo menos, dasalmas das varias christandades; e quanto aoresto da especie humana, que está fóra da

religião verdadeira, é tudo a eito.

• O meu adoravel amigo, com um sincerojubilo por se haver enganado quanto á minha doença mortal — e por me achar a escrever e a grangear a minha immortalidadepor meio da costaneira barata e canéta de

porco—espinho — sentou-se á beira destameza de trabalho.

Palestramos muito. Contei-lhe episodiosda minha mocidade, as minhas predilecçoens politicas aos desenove annos. Disse-lhe que eu tinha sido miguelista e afiveilára

esporas de cavaileiro (umas esporas de correia, de 12 vintens, por signal) na legião

• MADIA DA FONTE 13

formidavelmente estupida do general escos• sez Reinaldo Macdonell. Failando-se em

~vCai-ia da Fonte, não podia esquecer o lendano padre CASIMIRO, general defensor das

• •• cinco chagas.

—Conheço-o muito bem—disse SennaFreitas.

—Conhece, quem? o padre Casimiro?detradicçãoou pessoalmente?

• ~• —Pessoalmente Vio-o ha dois dias.

—Pois elie ainda vive? Está assim vivo~obscuro um homem que acaudilhou trintamil homens e abalou duas vezes o throno!

Q~ue ingratidão a d’ëste paiz que elie arranc~uás garras dos Cabraes! Acaso é elie bispô, patriarcha; ou Commissarjo geral da

• ~1la da sancta cruzada? Foi a Regeneração,filba sacrilega da Maria da Fonte e do con~go Montalverne, que o galardoou? Dig~me tudo o que souber d’esse homem que.e~.juJgava morto, n’um silencio mythico,n’içna~ especie de transfiguração de Çakia

Page 7: Camilo Castelo Branco - Maria da Fonte

11 MAaIA DA FONTE

Muni ou de Apolonio de Tyane, desde que

executou a façanha herculea de limpar de

cabralistas esta cavalhariça de Augias!No meu espanto, parece-me que ainda

fui mais erudito; mas não me lembra o

resto da apostrophe.Não era nada na escala das grandezas ci

vicas, nem na hierarchia sacerdotal, o padre

Casimiro—informou Senna Freitas. Ia pailiando a velhice com o estipendio da suamissa e do ritual das festividades baratas.Não era nada mundanamente faliando!

Assim devia ser n’esta Byzancio do occidente. Na oütra, o general Belizario, depoisde exterminar os godos, vivia de esmolas dopublico. Aqui, o general Casimiro, tendoexpulsado da Lusitania os Cabraes, quintaessencia de godos, vive da esmola da missa.Um seu coliega, outro levita, caudilho tambem de guerrilhas transmontanas escrevia

pamphletos incendiarios no Porto quandoo presbytero minhoto vibrava o bronze dos

D~ FONTE 15

campanarios. Um chegou a conego, a bispo,•a ministro do reino; e o outro, Cincinnato

á força e romano antigo quanto se pode serno concelho de Fe]gueita~, está em Margaride a plantar couves galiegas e a podar asparreiras do seu quintal!

Como elie desceu, n’um enxurro de calarn.idades, desde os penhascos de Vieira, suatèrra natal, até Felgueiras, é isso uma secção

• i~porta.nte dos APONTAMENTOS. A curiosidade.do leitor malograr-seja, se eu apoucasse em breves periodos algidos, sem as

pulsações febris da paixão auto-biograpilicaas muitas paginas que o reverendo sacerd~t~ realça com a odyssea da sua corajosa

desgraça e honrada teimosia de caracter p0-P’ti~o. Pelo transcurso d’este estudo, raras

ve-zes trasladarei o que deve ser apreciadono’ livro que me vae esj~ertando lembran

ç-as~e;:notici~~ aproveitaveis para encher espa,ç-os:vasjos e dignos de serem enviados á

pesteiidade com a plenitude possivel. O

Page 8: Camilo Castelo Branco - Maria da Fonte

16 ~MAHIA DA FONT1~

d’elie e o meu são dois livros que se completam.

Da existencia do manuscripto d’esta obrame faliára o meu amigo Senna Freitas. Pe

di-lhe que incitasse o padre a publical-o, ou,pelo menos, m’o confiasse por alguns dias.Pude obtel-o. Como prefacio á sua obra, osnr. padre Casimiro José Vieira publicou

parte de uma correspondencja que trocamos, respectivamente ao merito das suas

mernorias, escriptas sem desvanecimento,com quanto, urna vez por outra, n’elias

transluza o amor-proprio immodesto deCesar nos Coininentarios, de Chateaubriandnas .9~Ceiizorias, e de Larnartine na Historiada Revolução de 48.

Não achei então que aproveitar na contextura de um romance que eu andava ~sboçando — a ‘Bra~jleira de ‘Prazjns; mas colhi

sensaçoens incomparavelmente mais deleitosas.

Os factos d’aquelia epoca attrahiam-me

- MAR{A DA FONTE 17

péla magia da saudade. Havia um resurgi

~nento de mbrtos, o grupo d~s meus ~anii

a rea~parecer, como visualidades adorad~a~ de G~the, com a vida palpitante de ha

.trinta e oito annos. Tudo me lembra, como

~ a~oz um dormir de Epimenides, acordá~se hoje em 1846. Era eu quem de pé,

~ob~e o balcão do Zé-da-SoIa, ëm VillaReal, um logista de cabedaes de bezerro evacca, muito legitimista, declamava empha

t~icarnente e com os gestos mais violentosas proclamaçoens do padre Casimiro es

.ta~padas no Periodico dos ‘Pobres, e a carta,r.ica de. conselhos em arte de reinar, dignos

d~Fénelon, enviada pelo correio á senhora]~. Maria u. Era uma carta convulcionada

deprophecias tragicas, ás quaes eu dava toada~ ft~nereas, expediçoens gutturaes comodiz Renan, valha a verdade, que faziam Eze

c-hieL’e’Habacuc. A turba que me escutava,oda orelhas, trovoava urros de um vanda

lisaio, que sobrepujava as minhas cordas vo

Page 9: Camilo Castelo Branco - Maria da Fonte

18 MARIA DA FONTE

caes. Havia cabeças de granito que chora

v~m como os~penedos biblicos; e velhqs

bachareis formados, antigos juizes de fóra,com o simonte engatilhado aos narizes ,eas mandibulas n’um prolapso de espanto,disiam — Grande homem é o padre! é o2.0 José Agostinho de Macedo!

E eu, i~a qualidade de declamador correcto; prosodico e múitomimico, attribuiame um~quinhão d’aquelias ovaçoens, muitomenos explosivas quando o leitor era Antonio Tiburcio., o méu amigo de infanciaque rhorreu ha muito, depois de ter gover•iiado o districto muitos annos, manten

1o-se, com um grande tino, na media, entrea Republica e o Absolutismo.

Havia senhóras realistas, filhas de capitães-mores, de desembargadores, de briga~eiros e morgados em decomposição, ‘ásquaes eu lia as peças do «General cÍas cincochagas». Em algumas cazas brazdnadas accendiam-se castiçaes com hobeches de pa

MARIA DA FONrE 19

~el.verde nos oratorios de talha dourada, e~fa~iarn-se preces votivas, bastante caras, a~tios sanetos muito anteriores á formaçãodó- regimen parlamentar, e por isso talvez

- ‘~!i~differeij’tes á revolução de 1820 e á politi~a•de Vilia Real. De permeio com as jaculatorias, bebia-se muita geropiga capitosa

por meio da etherisação alcoolièa, dar~a1Ôr aos voadouros .da esperança.

lQue noites de alegria doida n’aquelie inv’erno de 1846!

~ Eutinha~um tio analphabeto a quem opadre~ ‘doutor Candido Rodrigues Alvares de

Figueiredo ~Lima, logar-tenente do snr. D.Miguel x,promettera nomear corregedor dac~1~rca, logo que se desse o gritp em Tras

es-môntes Ah! eu ainda me deliciei a ouvirgiito e o R~ei-chegon; mas os sanctos, do

m~~icos das familias heraldicas, cahiram emum descredito politico que não ha fusão poss~vel que os rehabilite no meu conceito e nod’a~uellas familias bigodeadas e scepticas.

Page 10: Camilo Castelo Branco - Maria da Fonte

Mas que saudades! que relances de olhosmarejados, no discurso da leitura d’estelivro do snr. padre Casimiro, eu lançarei

áqueile horisonte esvaecido para ver a minha sombra perpassar por entre os cyprestaes onde se esfarelam os ossos de tantagente querida que me levou para o seu podredoiro o melhor que eu tive—a minhatão curta mocidade! Ah!

Torna i—me a appa recer, entes imagina rios,

que me enchieis outrora os olhos iisionarios.

S. Miguel de Seide, 21 de Novembro de 1884.

PARTE PRIMEIRA

MARIAS DA FONTE

01 A MARIA DA FONTE a personificação fantastica de uma coliectividade de amazonas de tamancos, ou realmente existiu,em corpo e fouce roçadou~a~urna virago revolucionaria comaqueile nome e appellido?

E o que vamos esmiuçar.

Mas, em parenthesis: achoque faltam condiçoens epicas n’este periodoque acabei de immortalisar e exhibirá posteridade. Ao tratar das heroinas darevolução

MARIA DA PONTE

Page 11: Camilo Castelo Branco - Maria da Fonte

MARÍA DA FONTE MARIA DA FONTE 23

naciànal de i~46, o meu estylo é lapantanamente grutesco. De mais a m~.is, confunde-me a presença de uni brinde impresso,proferido então pelo maior orador que deuPortugal, João Bap’tista de’ A~ Garrett, empm jantar offerecido aos proscriptos, repa~triados pela porta que as fouces das mulhe- -

res de Lanhoso e’Vieira estilhaçaram. Garrett exclamava: cc. . . Muitas nações grandese populosas terão de morrer sem deixar herdeiro do seu nome, nem legatario das suasobrigaçoens. na terra. Mas nós i~ão pode-mos morrer; não devemos morrer, emquanto, entre nós houver homens como ha’ ‘~

pouco se manifestaram; muito menos ainda•em quanto entre nós houver mulherescomo’ agora as vimos, (Muitos appoiados)como’ essas que ha pouco surgiram no nortede Portugal, renovando todas as glorias quepareciam fabuladas, de Aljubarrota, de Diu

e de Chaul. Senhores, ‘nós acabamos depresencear uma grande revolução, uma re

‘~1ução que tem (perdoe-se-me repisal-o)‘q~le;.tem’, além de todos os outros caracte-r~es,bri1hantes, o magnifico, o transcendente~cter de ser verdadeiramente popular,

• ‘~o,,r que começou pelas mulheres. (Apoiadç~).’ Quasi que’ ainda não houve uma re

~v.ol~ição verdadeiramente grande, verdadç~i~?arnente nacional que assim não come

•~~se, desde expulsão dos Tarquinios atéh@j~. ..» (i)

eu assistisse ao civico banquete—ondepi:esença das senhoras, como diz Gomes’

d~Arnorim, explicava ~ frição que deu o poeta á~ii~te,’~do seu discurso—applaudiria a gritos

~aj~na essas phrases eruditas e encomiastic-as~das mulheres viris do Minho, até para

en~v~rgonhar os homens afeminados de Lisbøa;porém, todo meu enthusiasmo esfriarian’um~ sorriso zombeteiro das grandes mu

-~e~ e dos grandes oradores, quando vi,

‘~‘>GARRETT: Memorias biographicas por Fran—ciscd Goh’~es de Amorim, tomo III, pag. 200 e segg.

Page 12: Camilo Castelo Branco - Maria da Fonte

.~

)

/

21 MAMA DA FONTE

em junho de 1$49, o snr. conde de Thomar no ministerjo e os obreiros dinheiro

sos da revolução do Minho compeilidos,em 1851, a comprar sargentos e soldadosdo i8 de infanterja. Os vencedores eram oscrusados novos d’alguns burguezes da cidade heroica, distribuidos por SalvadorFrança no quartel de Santo Ovidio, ondeo alliciador penetrára com chaves falsas for

jadas por Victorino Damasio na fabrica doBulhão. O exterminio do cabraljsmo nãopromanou da revolução do povo; foi da indisciplina militar. As balas que prostraramcadaver o coronel Cardoso pesaram maisna balança da politica portugueza que os setenta e sete milhoens desfalcados no capitaldo paiz com a guerra civil de 46 e 4~. De

pois, bem sabem, a espada do Saldanhatambem pesava mais que a de Brenno,quando o ouro se levantava na outra concha da balança. O conde de Thomar ne

goceara-o indirectamente em 46 para a em-

MAmA DA PONTE 25

bbscad~i de 6 de outubro, e vae elie depoisprn 1851... Ora esta! cuidei que estava

~agora a compor iSm artigo para um jornal

‘~‘~ctico de ha trinta annos!... Está fe7ehado o parenthesis.

*

~Sobre a personalidade unica, singular e~1istjncta de Maria da Fonte entre as mu.1heres amotinadas no concelho de Vieira,ø depoimento do snr. padre Casimiro deve

~ser:o primeiro n’este processo de investi.~ação :•

Refere o minucioso historiador que um~p~teiro de Simães, da freguezia de FonteArc~da, o avisára de que lhe maquinavam a

~rte; e, na mesma occasião, se mostráraeeëosô de que lhe matassem sua irman

M~a”Angelina, a quem chamavam ~Cariada ~oii~e; e fôra processada e pronunciada

n~s tumultos da Povoa de Lanhoso. Per-.

Page 13: Camilo Castelo Branco - Maria da Fonte

26 • MARIA DA FONTE

guntou-lhe padre Casimiro o que fizera diapara ganhar tal nome.—Nada, respondeu

o sapateiro; apenas acompanhára as outras

mulheres que arrombaram a cadeia da Povoa para soltar as pr~zas que primeiramentese levantaram contra a Junta de Saude. Insistiu o padre em querer saber a causa por

que a distinguiam das Outras. Explicou oartista que Maria Angelina se estremava das

mais por estar vestida de vermelho; e, porisso, o empregado, que fizera a lista das

amotinadas, a pozêra na cabeça do rol, comtal nome, por não lh’o querer dizer alguemque elIe interrogára. Perguntou o padre Casimiro se havia alguma jante á beira da casade Maria. Que não. Chamavam-lhe da Fontepor ser da freguezia de Fonte Arcada. O in

terrogador ficou satisfeito, acreditou e felicitou o sapateiro por sua irman ter conse

guido nomeada tão distincta.E, passados mezes, indo ver a Maria da

Fonte, encontrou urna mulher trigueira, de

• MARIA DA FONTE • 27

~làtura mediana, desembaraçada, robusta,• e’n~re vinte e trinta annos.

~D’ahi a poucb, terminada a revolução

• j~i~movida pelos setembristas, urna do~iPa~ de Valbom, nas visinhanças de Lan1hb~o, andava pelas feiras e romarias incul

c-~do-se a ~Caria da Fonte. Padre Casimiro,e~t:ranhando naturalmente o duplicado, ped~& informaçoens ao abbade de 5. Gens de

@al:vos, parocho e visinho da doceira. O~h~ade confirmou ser elia a celebre Mariada~Fonte. Não obstante, o nosso auctor,sem apoucar os serviços da doceira—pelo

~ntrario, os encarece—entende que a verdadeira é a de Simães, por ser de Fonte Ar~da é.não a outra, visto que o nome lhenãb foi dado por ter prestado maiores servi~ aliás de direito lhe pertenceria. Acres

centa ~ó monographo da revolução de 46que Maiia Angelina ou da Fonte, morrera,an’nos depois, em Vilia Nova de Famalicão

ou.po~.ali perto.

Page 14: Camilo Castelo Branco - Maria da Fonte

28 . MARIA DA FONTE

Quanto ao obito de Maria Angelina foio snr. padre Casimiro incorrectamente in

formado. E’ certo ter vivido e morrido em

Farnalicão uma endiabrada mulher, voIte~rae espancadora a quem chamaram .9vCaria daFonte por analogia de bravura com a façanbosa revolucionaria do Alto Minho. Emdiferentes terras do paiz se chamaram an

thononiastjcamente ~vCarias da Fonte as mulheres valentes e decididas.

*

Outro testemunho importante de umcoevo e visinho das mulheres iniciadorasda revolução. Quem depõe é José Joaquimde Ferreira de Meilo e Andrade, senhor da

casa da Agra, na Povoa de Lanhoso, failecido em novembro de i88i, com idade ex

cedente a oitenta annos. Desde 1874 queconservo com muita estimação as notas veridicas que recebi directamente d’aqueile

• ~IABI~ DA FONTÉ 29

rpêit~ivel fidalgo. É textualm~nte s~a a re~dá~ão circumspecta e redondamente ~phra~

dà da biographia da mu1h~r de infima~oi~d~ção cujo nome ficou perpetuado n’umlevantamento nacional, e s~ leu estampadoc~oi~Í assombro nos periodicos do velho enovo mundo. Na exposlçao que vae ler-se

h~&n~éndres que não expungi. Quem o~‘r~i~ta. desapaixonadamente assistiu á irrisovia iniciativa da revolução, e os jornaes da

é-poca desconheceramos

MARIA DA FONTE

(1846);i

k~a~adrugada de 24 de junho de 1882,

Je~fã Antunes que morava em uma casi

nha~s~brancejra á fonte do Vido (i) no lo

) ~H~via junto á fonte um antigo vidoeiro (Bel uliaalva •i~ um raio espedacou no meado cio seculo XVIII,d’onie de~va o nome[

Page 15: Camilo Castelo Branco - Maria da Fonte

1~-

ques.Ao aproximar-se, ficou surprendida, ven

do á beira da fonte um embrulho de ba~tassobre uma pedra. Pegou no embrulho; e,parecendo-lhe que encerrava cousa viva,voltou com elie para casa; e, passando aexaminal-o, achou uma menina recem-nascida e muito vividoura. Applicou’lhe logoos peitos (por que lhe tinha niorrido, dia~antes, uma criança); a menina mamou eadormeceu.

Sem lhe lembrar mais a agua milag~osa,preparou-se e partiu com a menina para aPovoa. Apresentou-se ao rodeiro, e este,depois de a examinar, disse-lhe que seriabom leval-a á egreja para receber o sacra

mento do baptismo, para o que se offereccu

MARIA DA F’ONTE

•1-J~osefa Antunes. O rodeiro então, lançando

i~ãb do capote, e mais a ama, marcharam

•~on-i a menina para a egreja de Font’arcada.

ao preparar a criança, para receber o sacnari~1ento, acharam-lhe, cosido na fralda da~ah-iisinha, um bilhete que continha a se~ copia:

Eis-me exposta junto d lymphaque aqui fiara deste monte.

Serei delia a clara nympha,

Serei ~iam ia da Fonte.

O parocho riu-se muito, riram todos, e acriança baptisou-se com o nome de ~Cai-iadw Fonte; e, depois de lavrado assim o termo, voltaram ambos. para a Povoa.

‘Facil foi a Josefa Antunes obter aqueliac~~sta para creação; por isso depois do ro

~de~r.o fazer o assento do estio, por-lhe o~ui~nero ~io pescoço, e dia receber d’elie o

oval do costume, voltou para a Fontedo~.Vido, muito satisfeita por tao depressa

30 MARIA DA FONTF

~il

gar do Barreiro, da freguezia de Font’arcada,levantou-se da cama, vestiu-se e correupressurosa á fonte para colher agúa de S.

João, antes do sol nado, por que, dizia, eraagua de muito prestimo para todos os acha-

31

£. L

Page 16: Camilo Castelo Branco - Maria da Fonte

32 11 UUA D~. FONTE

MARIA DA FONTE33achar um unitivo que lhe mitigava as sau

dades do seu menino que pouco antes

havia perdido. Nenhuma ama houve quemaior affeição creasse á sua pupilia, poisqueria-lhe tanto como ao proprio filho;mas este excessivo amor foi a perdição d’a-~queila rapariga.

Já o tempo da lactação tinha passado ea criança medrava a olhos vista, sempre sadia, rubicunda e travêssa. A ama a quemelia chamava mãe olhava-a com a maiorcomplacencia como se n’dia se lhe encerrassem todas as riquezas do mundo; masdescurava totalmente de a educar.

Em 1828, quando se consummara a uzurpação, cantava já a fanfarra do Rei-Chegoucom taes arrebiques que attrahia a attençãodos ouvintes; e não faltava quem por isso

lhe dava alguns cobres que imrnediatamentcia gastar em vinho nas vendas do Cruzeiro,

recolhendo-se sempre embriagada. A amasabia tudo, mas não se dava por achada.

• ~ Êm 1830 áinda ignorava a doutrina chris

t~iiE~ e não sabia pegar na roca; mas profe~ia palavras obscenas; luctava com os ra

p~~s da Sua idade, e, quando ós levava debdixo, a mãe adoptiva ria que se conso

e, se lhe trazia alguma fructa ou le.nhà das propriedades dos visinhos, limi

ta~a-se a perguntar4~~ se lá ficou aindamai~;

Em 1840 havia chegado ao seu perfeito

d~s~n~vo1vjmento Não era baixa, mas refeii~, madeixa comprida e bem povoada de

~ab~1los’ pretos olhos, sobrancelhas e pestai~ms negros; mas estas arcadas e salientes;‘ar~i~ direito de azas folgadas; bocca breve

e sèrn riso; rosto afogueado e redondo;

vistà fir~e; voz algum tanto varonil, fdrtee San~ temperamemito irascivel; trato grosseiro; teimosa e rispida nas respostas. Sup

punMj-se invulneravel, e~. assim afugentavaos admiradores e lisongeiros; mas uma re

veré~dá niejjurja venceu todos esses redu

3

Page 17: Camilo Castelo Branco - Maria da Fonte

34 MARIA DA FONTE

ctos, e, no fim de nove mezes, a roda dosexpostos deu mais uma volta.

Por este tempo Josefa Antunes, sendoatacada de uma febre escarlatina, em menosde treze dias rendeu a alma aô Creador; eMaria da Fonte, ou por conselho alheio oupor deliberação propria, alugou uma pe~quena caza na mesma freguezia, sita no logar de Vai-Bom e transferiu-se para eliacom todos os haveres que lhe ficaram dasua mãe adoptiva que a levou para a sepultura, como se costuma dizer em taes casos,~atravessada no coração: tanto era o amor

que lhe tinha (i)

N’esse tempo foi que os missionarios(prosegue o meu informador), como se:.estiveramos nos sertoens da America, ou

não houvesse parochos nem confessores,

(i) No manuscripto de Ferreira de Meilo segue a noticia do fingido D. Miguel 1, preso na residencia do abbad~

de S. Gens. Este episodio faz parte do romance intituladoA BRAZILEIRA DE PRAZINS.

MARIA DA FONTE. 35

- pr.incipiaram a cruzar por estes sitios, quaesandorinhas em maio, sobre os verdes linha-

• ~ ao avisinhar-se a trovoada. Maria da• Fonte começou a seguil-os por toda a parte,

e~,a roda dos expostos deu mais duas voltas.. .. apezar de elia se vestir de roxo e

preto, despojar-se dos seus beilos cabeilos,

‘~4eixando a classica marrafa, cortada hori—~onta1mente duas linhas acima das suasarqueadas sobrancelhas. Era este o decantado uniforme da milicia d’aquelies senhores que por aqui recrutaram a mãos largas,

distinguindo-se assim dos mais fieis, principalmente dentro das egrejas, onde se as-estavam sobre as sepulturas, com as testas

pousadas nos taburnos e as garupas alçadaspara o ar... como obuzes; ou agrupando-se

arrebanhadas no cucuruto da egreja, soltando uma ou outra, de quando em ~juando,em voz irrtelligivel e de cabeça torta, o terno

gemido: ai meu Jesi~s! Tudo isto se presen.ciava e Maria da Fonte sobresabja a toda~.

Page 18: Camilo Castelo Branco - Maria da Fonte

36 MARIA DA PONTE

Os confessionarjos não creavam têas d’aranha, nem ferrugem as chaves dos sacrariás.

Versinhos e jaculatorias não faltavam: tudosantidades e um ceo coberto.

Começára o anno de 1846 docemente reclinado nos fagueiros braços da maisbonançosa~ paz. A agricultura prosperava, o commercio desenvo1via-~e, as artes floresciam, o

credito publico augmentava, a viação começava os seus primeiros ensaios e as con

tribuições não escaldavam. Mas o surdo mugir do touro do Minho, com quanto mal

percebido, ouvia-se por toda a parte sem sesaber da sua guarida: é que o incommodavam sonhadas visoens no antro do seu re

pouso. O prurido da desconfiança principiava a inquietal-o; e o ha]ito corrosivo,

manando clandestinamente dos bons dosministros da paz para os ouvidos das filhasde Sião, estas infecciónavarn o ar que otouro, niugindo, aspirava. Por isso, viu-seem março na freguezia de Garfe onde tinha

MARIA DA FONTE? -...

‘ ~stado o apostolo de Leiria, (i) uma nuVe~ de baccha~tes, todas de marrafa como

à~dbs leigos da ordem benedictina, arrepa

um esquife e Çonduzji-o á egreja dando~lhe sepultura entre risadas e motejos, na

p~s~nça do Deus vivo, alli sacr~imentado!A~uthorjdade deu logo parte do sacrilegio,

~ pediu providencias, pediu for~a armada;

(x) Quem fosse este ~ apostojo de Leiria » illucjdaem~outra pagina das suas notas Ferreira de Meilo e An—

4~ade, ao.dar noticia do D. d7~1igue1 1 que enganou o abbaae de Calvos, (Bra~ife ira de Pra~insJ e prosegue

:cNáo tardou muito que apparecesse na freguezia de Gar—•fe;~do concelho de Lanhoso, Outro individuo desconhecido

apparentando quarenta e tantos annos de idade, com seu~cãpote de panno azul forrado de vermelho, fard~ta, calça

ç colête dd mesma côi~ e fazenda, chap~o grosso de copa,altã’e larga, butes de attanado, cabelios pretos um tanto:grisalhos, rosto trigueiro e oval, barba feita, nariz regulare s~mb1ante abeatado. Não era baixo nem alto; failava

e pauzado; mas sempre com reticencias e myste—ri6~A1jj se recolheu na casa de um lavrador, onde per—

- ~~neceu encerrado alguns dias occupancj~se na leitura- de livros mysticos, e de noite, em cathequisar, a seu modo,

a f~nilÏa em volta da lareira. E declarou que mais onze

Page 19: Camilo Castelo Branco - Maria da Fonte

38 MARJA DA FONTE MARIA DA FONTE 39

mas nem resposta obteve. Era a repetiçãode que pouco antes se havia praticado na

freguezia Travassós, no concelhb de Guirnarães, com os enterramentos. Nos primeiros dias de abril repetiu-se egual profanaçãona freguezia de Font’arcada; mas debaldea authoridade participou ~ao governador ci-

como elle tinham partido de Leiria, sua patria, e se espalharam por outras partes, para annunciar a palavra deJesus Christo. Que lhe não convinha mostrar-se, por quese arriscava a ser martyrisado, embora o desejasse; masque ainda não era chegada a sua hora. De tal sorte sefez acreditar perante aquella gente boçal que já o tinhamem conta de grande ~ancto, pois por onde passava deixava tudo fanatisado. Assim discorria pelas melhores casas; até que, tendo noticia d’isto a authoridade administrativa, o mandou vir prezo á sua presença, onde deuidenticas respostas, acrescentando que vinha em nome deDeus cumprir sua missão, e que para elie as prisoensabriam suas portas de par em par; pelo que, nada receava.

Mandou-o o administrador para o governo civil, mas ahifoi posto em liberdade; e, passados poucos dias, voltou aGarfe, e de lá passou a outras freguezias, continuandosempre as mesmas praticas, até que sahiu a campo o tumulto dos enterros, e então desappareceu.»

vil. Quasi no fim d’este mez, no logar de

.Simães, frèguezia onde o halito da corru..;~ção mais tinha penetrado, e a dourada

• .~nuvem de Londres havia assombrado um‘pouco, estreou-se nova companhia de bac

~ ~ihantes, como se vae ver com pormeno•‘..jres.’ (i)

: Àchava-se depositada na capelia do logarem ataúde fechado sobre eça enluctada de

~ãrepes urna defunta de familia honesta.Chegou a hora de ser transferida para a~greja parochial com acompanhamento depessoas que alli tinham concorrido tantopara desanojar os doridos como para acom

• p~tnhar á ultima morada os restos mortaesd’aquella finada. Já o parocho se achava

• paramentado, já responsava a defunta e

(x) c4 dourada nuvem de Londres é a herança de aI—

~‘ gumas centenas de contos que levantaram á opulencia ai—guris jornaleiros, resvalados depois á miseria e ao latroci—no. O romance ‘Demonjo do ouro foi urdido com os

- apontamentos de Ferreira de Meilo.

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40 I~1ARIA DA FONTE

levantava o memento, já ondeavam as alvejantes sobrepelises, repartiam-se as tochas

accesas, e hasteava-se á porta da capeila acruz da redempção, qqando, de repente,

apparecem quatro bacchantes, de cabelioscortados e amarrafados na testa debaixo delenços brancos atados na nuca, em mangasde camisa, saias pelos joelhos, presas nas

cinturas e descalças. Entram na capelia, arrebatam o ataúde, põem-no aos hombros ecaminham a passo dobrado para a egreja,indo á frente a Maria da Fonte com a cruz

alçada, e uma hórda de Amazonas rodean

.do o caixão, umas de chuços, outras de ferrélhas e pás de infornar, muitas com choupas e sacholas, algumas com forcados e

espétos, e até uma com uma colher de ferTO amassada, formando duas pontas com

que ameaçava arrancar os olhos de quemse lhe pozesse deante.

Apoz d’este prestito burlesco, foi-se abalando em seguida o parocho, o clero, e no

MARIA DA FONTE 41

• •couce d’este os concorrentes, muitos semsurpreza d’esta novidade, que até parecia á

~rnaior. parte d’elies muito honesta e impor-

• ~ante e para bem de todos, por que já o ha~ito pestifero lhes tinha eivadas as cabeças.

i No meio do transito, as bacchantes levan•‘tararn vivas, e seguiram até entrarem na

~egreja da parochia. Elias mesmas enxotaramdo interior sem excepção o sexo masculino,

• pondo guardas ás portas armadas de chou•pas e forcados; e, depois de coliocarem o

ataude sobre a eça, levantaram o taburno deuma sepultura, despejaram-a, extrahindo osiestós das ossadas com a terra, desceram

nõvamente o ataude ao fundo d’aquelia se~ul~ura, reenchendo-a de novo com a mes

.materra e fragmentos humanos; e, depoisd~i1he assentarem o taburno, bateram paI

~ deram vivas á religião e ás leis velhas,~norras ás leis novas, levantaram as guardasckrain-se ei~bora.

Ninguem aIIi foi testemunha d’isto senão

Page 21: Camilo Castelo Branco - Maria da Fonte

42 MARIA DA FONTE

o Sacramento e as~sagradas imagens dos altares, e mesmo uns olhos que ficaram es

condidos por detraz.da tribuna do altar-mór,

que desgraçadQs seriam, se fossem lobriga4os p.elos’olhos que se aninhavam de1~aixodas marrafas’ beatas d’aquelia sucia. S~ então é que entraram, na egreja o’ parocho, oclero e os seculares em” lirnitadb numero,por que o mais d’elies tinha retirado. Se

guiu-se.a missa e o officio do corpo pi-~scnte,posto que o corpo já estivesse sumido seispãlmos debaixo da terra. E, .a final, recebendo o clero a’.colação e a esmola costumada, tambem retirou.

‘A authoridade .administrativa deu logó’parte de tudo por expresso ao governo civil pedindo pela terceira vez alguma força;mas nada de novo. Limitou-se então a rnai’idar prender Maria da.F,onte e algumás ou-’tras Amazonas que se tornaram salient~s’,:Todasforatn prezas excepto Maria da Forttesque se escóndeu. .0 juiz de direito retir,á~

MARIA DA FOr~TE , ‘43

~a~”par’a ‘sua casa’a~é vêr ho que paravam~s, modas. O ordinario, que n esse tempo

“e’r~;séü substituto nato, resolveu ir á egi~eja

l~vant~r auto do facto, ‘procedendo á exhum~çãó do cadaver. Na sexta-feira proxima

• en~.que havia confessores% para desobriga,

• • d~rigiu-se pará lá com o delegado e escrivão• ‘•. c~asemana, official de diligencias, e mais

ad~.jun’ctos; porém, lo~o’qu’e aJli chegaram

e~se~oube o seu intento, f6i comose estoui~s~é “uma bomba no’ meio da egreja. DeI~e~entë, as Amazonas pozeram-se todas ema6ço. Umas foram tocar os sinos ‘a rebate,~‘utras espalharam-se amotinando gente;muitas procu ra~vam os da JilstiQa, corno’ ella’s&zi~t’m’; perguntávam pelo dos oculos~ o dele

outras déram’ sobre o juiz’com’ ~rnapá db forno e’aindit lhe desca~rega.ram”.u~ma

pai~da :nas costa~’; Ôutras perseguiam oeseri~ã~ qUe’ p’oi ‘mu’ito gõi~do cuidou de’ab~fa~qüando fugia. Os officiaes de diligen-’c-ias nir~guem mais ~ ‘ . .

Page 22: Camilo Castelo Branco - Maria da Fonte

41 MARIA DA FONTE

Continuavam os sinos a tocar a rebaten’esta e n’outras freguezias em roda. Já o

adro e avenidas estavam cobertas de mulheres e outras vinham chegando. Foi então

que appareceu a Maria da Fonte de clavinaempunhada e duas pistolas no cinturão, (i)

gritando: Vamos d cadeia tu-ar as prezg~s! Vivao snr. ‘D. .5’vCiguel! E, sendo enthusiastica

mente correspondida por toda a multidão,

principiou esta a desfilar pelo caminho daPovoa até ao largo do Cruzeiro, onde fizeram alto para se juntarem todas em numerotalvez de 1:200 mulheres! Seguiram pelaestrada occupando a sua largura e extensãode meio kilornetro, e assim foram caminhando já guardadas pelos lados, sobre oscampos, por homens armados.

Chegadas á Povoa, Maria da Fonte, lançando mão de um machado, arrombou asportas da cadeia e os alçapoens, e tirou

(x) Era dadiva de padre. Nota de Ferreii-a de dMeIlo.

MARIA DA FONTE 45

as prezas entre vivas ao snr. D. Miguel e

á santa religião, voltando corri dias em

triumpho pelo mesmo caminho. A authoridade participou logo por expresso aogoverno civil; mas já sem lhe pedir nemforças nem providencias Eram ~ horas datarde.

N’esse mesmo dia, ao pôr do sol, umdestacamento de 50 praças do regimento 8,estacionado em Braga, commandado pelotenente Taborda, entrou na Povoa.

Mas para que tão diminuta força, noestado a que as cousas tinham chegado?...e que cominandante! Inteiramente des

memoriado e t~o pusilanime que não descançou, emquanto não foi mudado para afreguezia de Gallcgos, que, dizia elie, era umbelio ponto para urna retirada sobre o Sanctuario do Bom Jesus e d’ahi para Braga!...Pørétn, como o fóco da reacção era todode l~p.do Nascente, tornou-se indispensav~l remover aqueile destacarnento para a

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46 MARIA DA FONTE

MARIA DA ITONTE

freguezia d’Oliveira. (i) Eis que se dá outro enterro tumultuoso na freguezia de Gal

legos, onde appareceu Maria da Fonte esuas Amazonas! O enterro fez-se, como nasmais partes, com a diferença do clero estarfunccionando dentro da egreja. Foram prezos depois, pela policia um homem e uma

mulher que mais se distinguiram n’aqueilemotim e logo enviados para Braga; mas, aopassarem na serra do Carvalho, lá vão tirai-os á escolta os moradores das proximasfreguezias de Ferreiros e Geraz. Estava vistoque o vulcão se ia espraiando, e suifocal-ocom pequenas forças—já era tarde. Mariada Fonte tornou a esconder-se.

Em consequencia de tudo isto, n’uma manhã, ainda que tardiamente, chegou á Povoa outra força de 250 baionetas do regimento 8 commandadas pelo major Malhei

i Taborda, aboletado na rezidencia, obrigou o Parocho a mandar abrir, na taipa, uma porta, para umasentineila lhe rondar a cama, em quanto elie dormia!

qual fazendo junção com a do pri~ei~itó destac~mento, ficaram ás ordens

d’aqueila patente superior. Foram aboletadasna~ freguezia, d’Oliveira e parte OHenta1 dade .~nt’arcada, onde se con~ervàram pou

eosdias~ até que vindo’dó administradordo ~oncélho de Vieira uma lamerifosa requisiç-ão~ po’r se ter alli suh1e~ado o povo,t~aichou para lá toda a força. Ab me~motemp~, ~‘oi novamente occupada ~i fregueziaoe Gallegos por Outro destacamentõ, do re

gi’mento n~° 9, composto de cin~oenta praças,-ei~jo commaiidanfe não só fraternisava~~ povo, senão mostrava as confiden

cïae~,~iie recebia!.., por isso, foi d’alli trans-,fe-rid~”para Guimarã~s, onde o povo das

fre-g~i~ do ‘norte, conduzido pelo padreJosê das Caldas, no dia i ~ d’abril, tentbu entrarQ [~iou~ie tiroteio entre elle e a tropa, fi

can~d®. com um quarto quebrado por uma

bahIa aq:uelle commandãnte.N@ rn~smo dia os povos de Prado, depois

Page 24: Camilo Castelo Branco - Maria da Fonte

48 MARIA DA FONTE

de, queimarem o archivo da administração

do seu concelho, capitaneados por outro

padre, avançaram a Braga e atacaram de surpreza os quarteis do regimento 8... Foram,porém, repeilidos e perseguidos até ao rioCavado, deixando bastantes mortos e feridos: pelo que foi mandado recolher o majorMalheiro com toda a força do seu com-.mando que se achava em Vieira.

Tambem, n’esse mesmo dia, os povos dafreguezia de Souto, Donim e Briteiros, doconcelho de Guimarães, homens e mulheres, invadindo o concelho da Povoa de Lanhoso, pela freguezia de Santo Emilião

entraram em 5. Martinho do Campo, atravessaram Villela e foram pernoitar nos lo-gares de Ouintella e Porto d’Ave, na freguezia de Tbaide, obrigando a seguil-os

todas as pessoas que encontravam. Aqui selhes uniu Maria da Fonte com as suas pistolas e clavina.

• MARIA DA FONTE 49

~ -sinos a rebate, era pavoroso vêr, ao som

d’~lles~ como se abalava aquelia mol~ de

p~o,’a qual subiu, com toda a lentidão ásf~egúezjas de Travaços, Brunhaes e Espearf~ desceu a Oliveira, baixou a Font’ar-.

eada, deixando queimados nas regédorjas

tod~’bs papeis, e, fazendo juncção com os

pQs de Gal.legos e Lanhozo. Outro tanto~a~cou no archivo da administração semse i.lnportar dos prejui~os que n’isto iam.E~a triste vér, em roda, tudo alastrado depapeis rasgados e queimado5. uns redo

moi~hando com o vento e oufros servindoee •j~guete, nas mãos dos rapazes, que os

aDalhavam âs rebatinhas

A~noite veio pôr termo a ~ste vandalismo ~ë ~vit’ou igual catastrophe nos cartorios, dos escrlvaes de direito, e mesmo no

archiS,o municipal, que só por esta razão

En~ão Maria da Fonte, julgando terminada.a sua missão, recolheuse á choup~~

Ao outro dia, i6 d’abril, tocando todos4

Page 25: Camilo Castelo Branco - Maria da Fonte

—— —

50 MARIA DA FONTE

de Valbom—já sem receio de ser preza,porque a auctoridade administrátiva ces~oii

de funccionar;~até que, no outono seguinte,voltando de Vieira o conde d~s Antas, coma sua divisão de 3:ooO homehs, onde fôratentar ~um convenio com o padre Casimiro, (!), e, pernoitando em Font’a,rcada,Maria da Fonte affeiçoou-se a um tambor;

e, acomp~ftihando-o na divisão, de’sappareceu, sem quê mai:s se soubesse ~noticiasd’elia.

Tal foi a carreira e fim da clara iVympha

da fonte... Que a terra lhe peze n’alma.))

*

Conjecturo ser esta a lidima e authen

tica heroina com suas intermittencias deborrachona e malandra. Tambem me querparecer que o snr. padre Casimiro JoséVieira não conheceu exactamente aqueliaMaria da Fonte, a garantida, ou pelo menos

• MARIA DA FONTE 51

i~norou a sua fecundidade e outras coStu_m~ras pouco austeras,~

•blicanjente a Judit/j Portuguez~a. Acertou me1Ihoi~ çhamando Holofernes ao snr. conde de

Thom ar, cuja cabeça, — rhetorj cámen te, gra•~as aos ceus! — andou pendurada nas roçadourds:das matronas e das don~elias do Minho. (i)

Quanto a don~elids, o snr. pãdre Casimiroi~ão. precisa ser mais rigorosarnentec1~~~j~0e technico que mestre Camões para quem

Ignez de Castro, mãe de alguns filhos, era a

«pailida donçella.»

Elias eram, pelos modos, como as don~e!/as virilmente experimentadas de Horacio,na Ode 14 do Livro III:

Ç•~.UT,~.

Et pueila’Ja,n Viru,n expert~~’.

Apontameng~S .. pag. x8x.