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O Destino de Coraline Smith Família Flint #3 Camille Robertson 1

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O Destino de Coraline Smith Família Flint #3

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"Quando alguém morre, podemos ter a certeza de que voltou para seu lar, ao lado de Deus. Esse também será nosso lugar, ao que teremos que retornar um dia." Madre Teresa de Calcuta Em lembrança de Pia e Antonio Santos - o anjo de Sevilha - que nos deixaram este ano para voltar para seu lar.

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O Destino de Coraline Smith Família Flint #3

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Sinopse:

Inglaterra, 1884.

Coraline Smith decidiu que quer estudar em Oxford. Sempre lhe interessaram os livros, o saber, mas também o

esporte, em especial o incipiente futebol. O único pequeno problema é que uma mulher não pode estudar nessa

universidade, não pode ter haver com o masculino ambiente futbolístico. Então, faz o que qualquer garota faria;

corta o cabelo, usa umas costeletas falsas, consegue um trabalho de cronista esportivo, ingressa na universidade sob o

nome falso do Corl Smith. Tudo vai bem até que se topa, literalmente, com David Flint, um professor e capitão do

novíssimo selecionado inglês.

Davis Flint é um dos professores mais destacados de Oxford, reconhecido por seus pares e entusiasta treinador e

jogador da seleção inglesa de futebol. Sua vida gira em torno dos livros e ao campeonato que se disputa entre a

Inglaterra, Irlanda, Gales e Escócia. Nenhuma mulher o afastou jamais desse universo que construiu. Então, não

entende os sentimentos que começa a desenvolver por esse moço um tanto feminino, que estuda em Oxford, que vai

aos treinamentos, que bebe cerveja com eles, que se faz chamar Corl Smith.

Sabia que ela não era desse tipo de mulher. Não. Ela somente se disfarçava de homem. Coraline era uma mulher

que lutava por seus sonhos e pelo que acreditava justo. Uma mulher valente, capaz de confrontar as consequências

que podia lhe conduzir a aventura de estar juntos.

Com humor, enredos e uma trama que apanha ao leitor desde a primeira linha, Camillle Robertson, nesta terceira

novela da família Flint, indaga as relações entre homens e mulheres, os róis fixos que a sociedade lhes atribui e a

magnitude de um amor que faz que um homem abandone a possibilidade de jogar a final de um campeonato de

futebol.

Tradução: Pé da Letra Envio: Cler(Pink) Revisão: Roze F.

Formatação: Roze F.

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"Há gente que pensa que o futebol é uma questão de vida ou morte, eu não gosto dessa postura. É muito mais que isso."

Bill Shankly, treinador de futebol, Liverpool F.C

Capítulo 1 “Desastre irlandês 26 de janeiro passado deu inicio a atual edição da British Home Championship, torneio de futebol no que participam as seleções nacionais da Inglaterra, Escócia, Irlanda e Gales. A primeira partida do campeonato teve lugar no Ulster Cricket Ground do Belfast. Enfrentaram-se as equipes da Irlanda e Escócia. Apesar de jogar em casa, frente a seu público, Irlanda não pôde levar a iniciativa do jogo, mas sim se viu superada em todo momento por uma excelente seleção escocesa, que assinou um grande início de campeonato. Devido às intensas chuvas de dias anteriores, o estado do campo não era o mais idôneo. Com tudo e depois do chute inicial, Escócia interceptou a bola e desfrutou do jogo ao longo dos noventa minutos, ante a inoperancia rival. Brilhou graças a uma técnica depurada e um toque de bola rápido e preciso. O primeiro gol se produziu no minuto dezessete, depois de uma jogada embaralhada dentro da área local. John Gouide conseguiu abrir o marcador e encarrilhar a partida depois de um golpe certeiro com a perna direita, com o que bateu ao goleiro irlandês. Sobre tudo, terá que destacar as atuações dos dianteiros James Gossland e William Harrower que, com dois gols cada um, conseguiram um resultado final para sua equipe de cinco gols a zero. Cabe mencionar ao J. C. Miller, o melhor interior escocês que, apesar de não marcar, foi dos mais destacados do encontro. Recém começando o campeonato, ainda é cedo para dizer quem será o vencedor, mas sim posso assegurar que, se a Irlanda não trocar de atitude e de tática de jogo, podemos apostar seguramente a que será o último no campeonato.

C.S. The Manchester Guardian,

segunda-feira, 28 de janeiro de 1884.”

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— Maldição! —exclamou Coraline quando ouviu o gongo do relógio— Está se fazendo tarde. —Fechou o periódico e o deixou em cima da mesa, de uma vez que apurava sua taça de chá— Tenho que ir, avó. —Empurrou a cadeira para trás, com um ruído. A senhora Atkinson observou com horror como se levantava sua neta da mesa. — Coraline, não seja mal educada! Essa não é forma de tomar um chá. —Deu um sorvo delicado de sua própria taça — Nem de levantar-se de uma mesa — acrescentou enquanto a olhava por cima dos óculos. — Sim sei — concordou resignada a jovem — perdoa. —Deu-lhe um beijo na têmpora, sem lhe dar mais importância — Tentarei melhorar, prometo-lhe isso. — P... mas o que é que tem posto? — exclamou a senhora Atkinson, escandalizada. — Agora não tenho tempo — gritou Coraline da porta — lhe explicarei isso tudo mais tarde. Quero-te, avózinha. Adeus! A honorável senhora Atkinson não ficou mais remédio que manter sob controle seu estupor, se queria evitar as fofocas do serviço. Alguém tinha que guardar o decoro na família, assim que o melhor que podia fazer era terminar seu agradável café da manhã da forma mais elegante possível. Já teria tempo de descobrir o que trazia entre mãos sua neta. — Ah! — suspirou a mulher em voz alta — Essa menina saiu igualzinha ao escocês de seu pai. Não possui uma só gota do sangue inglês de minha querida filha. Susan deveria ter vigiado mais à menina. Pobre da minha filha, o que estará padecendo entre tantos selvagens. Coraline não escutou nem um só lamento do que dizia sua querida avó, mas podia imaginá-los. Mantinha toda sua atenção em subir os degraus de dois em dois, sem matar-se. Fazia seis meses que tinha elaborado o plano e, por fim, tinha chegado o grande dia. Tinha conseguido que seus pais a enviassem a casa de sua avó, Annabel Atkinson, e a deixassem sob sua tutela. Sua mãe, ao princípio, tinha estado em desacordo por ter que separar-se de sua preciosa filha, mas, depois de refletir mais ou menos durante três minutos, tinha concluído que era a melhor opção. Sobre tudo ao ter em conta o estranho comportamento que Coraline tinha tido os últimos meses. Decidiu que não lhe viria nada mal a influência de sua avó, uma inglesa de alta berço. Além disso, elas se adoravam e passavam pouco tempo juntas por certas circunstâncias familiares. Entretanto, custou-lhes um tremendo esforço convencer ao pai

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do Coraline, devido a duas razões: a primeira era que o senhor Douglas Smith, o melhor pai que Coraline podia imaginar, não suportava a sua sogra, quem, segundo o senhor Smith, não era nada mais que uma estirada inglesa que quase lhe tinha feito perder ao amor de sua vida, porque tinha ameaçado com suicidar-se se sua filha Susan se casava com um selvagem escocês como ele. Ameaça que tinha conseguido atrasar as bodas, mas, por sorte, não anulá-la. Após, o pai do Coraline sempre dizia que os ingleses não tinham palavra. Ele pensava que o que se dizia de coração teria que cumpri-lo, sim ou sim. A este pequeno detalhe teria que lhe somar o fato de que Douglas Smith, que era mais escocês que os quadros de seu kilt, não entendia por que demônios sua filha tinha que educar-se na Inglaterra, se tinha idade suficiente para casar-se e ela nunca se casaria com um inglês, nem viveria em um país cujos habitantes nem sequer sabiam lhe dar patadas a uma bola. Por fortuna para Coraline, seu pai se deixava persuadir por sua mãe de uma maneira quase vergonhosa, assim, depois de grunhir vários dias, ao final cedeu. Susan não pensava que sua filha fosse tão selvagem como dizia a avó, mas sim que precisava reforçar alguns ponto necessários para qualquer dama. Esse era o motivo que a tinha impulsionado à casa de sua avó: a educação. Embora Coraline tivesse vinte e dois anos e já estava formada nas questões que a sociedade acreditava convenientes, ela não pensava instruir-se em casa de Annabel, a não ser em Oxford, uma das universidades mais importantes do mundo e que, é obvio, não aceitava mulheres. Ainda não entendia como a tinham admitido. Para falar a verdade, tinha maquiado alguns aspectos importantes de sua vida ao matricular-se, como o pequeno detalhe de pertencer ao sexo oposto. Custeou os gastos com os artigos esportivos que vendia ao periódico The Manchester Guardian. Graças a Deus, só tinha tido que reunir-se uma vez com o diretor e tinha conseguido enganá-lo. O resto das transações se fazia por correio. Para semelhante farsa não lhe tinha ficado mais remédio que cortar o cabelo. Tinha sido capaz de sacrificar sua sedosa juba da cor do bom uísque, conforme a descrevia seu pai, por Oxford, mas havia valido a pena. Tinha obtido o trabalho e por fim o dinheiro que necessitava para seus planos. Ainda recordava o dia que chegou a sua casa, com seu novo corte. Teve que segurar a sua mãe e lhe fechar a boca desencaixada. — Seu cabelo! Mas o que tem feito? — exclamou, com o dedo indicador levantado em forma acusadora. — Cortei-o um pouquinho. Você gosta? — perguntou e girou sobre si mesmo para mostrar o corte. — Mas está quase calva!

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— OH, mãe! Não exagere! Coraline lhe tinha dado as costas a sua mãe e tinha subido correndo ao quarto para chorar. Porque, embora lhe tinham deixado um corte bonito e favorecedor, para ela também tinha sido uma desgraça desfazer-se de sua juba. Em umas semanas, todos lhe haviam dito que estaria muito atrativa com o novo aspecto e que era provável que imporia uma nova moda entre as jovens. Para dizer a verdade, uma vez que se acostumou a ver-se, pareceu-lhe que aquela juba curta que lhe deixava o pescoço à vista e se deslizava por diante do rosto até as comissuras da boca resultava do mais sensual. O melhor era que só tinha que o recolher quando ia a algum evento importante. Embora tinha resultado difícil para sua criada, tinha conseguido lhe fazer um recolhido aceitável. Além disso, economizava as intermináveis escovadas antes de deitar-se. O pior era que, apesar de tê-lo cortado, suas feições eram muito doces, assim decidiu pentear com fixador para trás para parecer um moço, colocar umas costeletas não muito largas para que não resultassem muito artificiais e usar lentes que disfarçassem um pouco seus enormes olhos cor mel. A entrevista que teve com o diretor do periódico foi a prova de fogo. Comprou um par de trajes, colocou uma faixa para esconder o peito e arrumou o cabelo o melhor que pôde. Usou os óculos mais feios que encontrou, para deslocar a atenção para eles em lugar do resto da cara. Disse que era Corl Smith, um moço de dezessete anos, uma idade que podia justificar a doçura de sua cara e a ausência de pêlo. Fez-se passar por um jovem a quem lhe apaixonava o futebol, mas que, por desgraça, não tinha o físico para jogar em uma equipe. Assim, que se dedicava a escrever sobre os encontros disputados e vendê-los, com o fim de ir a Oxford e obter um título. O senhor John Edward Taylor se surpreendeu em forma grata ao conhecer um moço tão jovem, que escrevia com tanta maturidade e precisão. Apontou que demonstrava ter muito sentido comum ao querer ingressar na melhor universidade do mundo. Coraline se inteirou, depois de sua entrevista, de que o próprio sobrinho do diretor, um tal C.P. Scott, tinha estudado no Corpus Christi College. Nesses momentos, o senhor Scott trabalhava para seu tio e, por isso se rumorava, tinha um grande potencial. Esse foi um ponto a favor para meter ao senhor Taylor no bolso. Não obstante, não lhe supunha um problema convencer às pessoas, tinha um dom especial para isso. Um passo mais para Oxford. E, por fim, tinha chegado o dia. Estava tão nervosa que quase lhe caiu a caixa do fixador em cima da jaqueta nova. — Oxalá tudo saia bem! — disse e se olhou por última vez ao espelho — Não pareço uma garota, mas tampouco um menino. —

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desiludiu-se um pouco. Parecia um desses anjos que sua avó tinha pendurados por toda a casa — Maldição! Te anime, Coraline. —ajustou-se a gravata — A gente vê o que espera ver; ninguém pensará que é uma mulher. Nenhuma mulher estaria tão louca para fazer o que ela se propunha. Mais lhe valia que ninguém a descobrisse, jogava muito e não só em sua própria vida. Estava expondo a sua família a um grande escândalo. Embora eles vivessem na Escócia, a notícia de que uma mulher, fazendo-se passar por homem, tinha ingressado em Oxford, daria a volta ao mundo. Entretanto, tinha que tentar. Era o que mais desejava. Não pensava que era egoísta, não era um simples capricho. Queria estudar e obter um título. E não o conseguiria se não estudava em uma universidade para homens. Porque, eis aqui a injustiça, podia ter ingressado em uma universidade de mulheres, mas ali não davam opção de titulação, e, é obvio, não podia estudar as matérias que lhe interessavam, como Economia. Coraline desconhecia a razão dessa tolice, mas era um fato. Um fato que, com toda segurança, tinham opinado alguns homens. Ela não ia se desalentar por uma trivialidade como essa. Abriu a porta de sua habitação com cuidado e saiu nas pontas dos pés pelo corredor, até chegar ao corrimão da escada. Olhou para baixo: não havia ninguém. Tinha que conseguir chegar à porta traseira da casa sem que ninguém a visse. Não tinha tempo para explicações. Uma vez que conseguiu, subiu à bicicleta que tinha deixado, na tarde anterior, preparada e pôs rumo ao High Street, onde se localizava o All Souls College. Certamente, tinha posto as miras altas, mas, uma vez metida na medula, já pouco importava. Era uma bênção que sua avó vivesse tão perto. Tinha chegado a pensar que era obra do destino. Se não fosse pelo ar fresco que golpeava sua cara, chegaria toda empapada em suor. Ia a muita velocidade, mas não lhe importava; estava tão ansiosa que suas pernas se moviam sozinhas, acima e abaixo, acima e abaixo, descansava e se deixava levar pelo impulso. ajeitou a boina um par de vezes para que não voasse. Ao fim chegou. Era grandioso. Uma harmoniosa construção de edifícios dourados e enclausurados colégios. Uma antiguíssima arquitetura que se ajustava com aprimoramento a um estilo mais novo. Coraline tragou o nó que lhe formou na garganta ao observar toda aquela magnificência. Sempre lhe acontecia o mesmo quando ia a Oxford, toda a cidade era como um conto. A cidade das agulhas de sonho, como a definiu Matthew Arnold, era a frase que a descrevia à perfeição. Obrigou-se a sair do estupor. Atou a bicicleta a uma grade que

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cercava um precioso jardim, proporcionado e de um intenso verde. Apressou-se pelos paralelepípedos com os livros na mão. Subiu os óculos que lhe escorregavam pelo pequeno nariz. Não tinham muita graduação, mas a suficiente para desestabilizá-la quando olhava de longe. Tirou o relógio de bolso de seu avô. — OH, Deus! As nove e dez. — Pôs-se a correr. Estava a ponto de entrar quando notou que enfiava o pé entre dois paralelepípedos. — Não! — gritou, enquanto seus livros saíam disparados para o teto e seu corpo caía para frente. Fechou os olhos. "Vou dar uma pancada", pensou justo antes de desabar sobre algo duro, embora, para sua surpresa, confortável. Escutou um ruído estrangulado que não procedia de sua garganta. Tomou uns segundos, se não minutos, para certificar-se de que estava bem; melhor que bem, estava intacta.

Antes de abrir os olhos e com a cara ainda enterrada, apalpou aquilo que a tinha recebido. Era tal como o tinha julgado ao cair, mas trocou o adjetivo de duro por forte e o de confortável por prazeroso. Foi tocando para cima e... Não, não, não! Acabava de tocar o peito de um homem! Não, não podia ser. Mas, certamente, o de uma mulher não era. Além disso, subia e baixava o que, por sorte, significava que estava vivo. Subiu suas mãos, sentiu um pescoço estilizado e fibroso. Queria chorar. Era vergonhoso o que lhe estava ocorrendo. O primeiro dia, seu dia sonhado, e lhe acontecia isso: catastrófico. E em vez de levantar-se imediatamente, estava aí, tombada sobre um senhor bastante grande e brincado com o tato. Não podia olhar. “Mas que tonta sou”, se disse. Só foi a queda de um jovem sobre um tipo muito forte. Seguro que não era a primeira vez que passava na história de Oxford, embora o fato de tocá-lo com tanto parada não fora um pouco muito normal. “Não passa nada. Sou um menino", recordou. Armou-se de valor e levantou a vista. Sua mão ainda descansava na cara do homem, uma cara recém-barbeada e que cheirava de maravilha. Ficou perplexa observando um queixo decidido, um queixo enérgico e uma boca que não pôde deixar de admirar. De repente sentiu um pequeno palpitar em seu estômago e começou a notar algo que antes não estava aí. Entretanto, sabia que não procedia de nenhum de seus músculos. O homem se retorceu com violência, proferiu maldições e a fez cair de novo. — Bestas imundas do inferno! Afasta-se de mim, girino.

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— Per... perdão — sussurrou Coraline ainda sentada no chão, mais assustada por aquele gigante que pela queda — Não era minha intenção cair sobre você. — Não? — duvidou ele — Qualquer diria o contrário. Em que demônios estava pensando? — Não pensava em nada. — ficou em pé. — Não faz falta que o jure — disse depreciativo— Deveria graduar bem essas horríveis lentes. — Assinalou os óculos atirados perto de onde tinham caído. Coraline abriu a boca para voltar a desculpar-se, mas se deteve, porque sentiu que a fúria a invadia. Não soube se era pelos nervos do primeiro dia, o medo que a descobrissem, o susto pela queda ou da raiva que lhe dava que um homem tão bonito fora tão cretino. Já tinha se desculpado e o grosseiro não fazia mais que repreendê-la. Ia explodir. — E você deveria aprender maneiras — espetou Coraline desprezada— Já lhe pedi desculpas, pelo menos poderia perguntar se me machuquei. — Desafiou ao homem com o olhar, sem acovardar-se. Tentou dar meia volta para procurar seus livros, esparramados pelo chão, mas ele a sujeitou pelo braço para encará-la de novo. — E eu, acaso me perguntou se tinha me prejudicado? —inquiriu zangado. Ela duvidou um momento em que sopesou a possibilidade antes de responder: — Está claro que se encontra em ótimas condições. —Desprezou o sentimento de culpa que tentava infiltrar. — Isso vai a simples vista ou se certificou enquanto me manuseava? — disse em um tom mais baixo, mas igual de recriminatório. Coraline não pôde evitar ruborizar-se. Tinha-o feito muito bem até esse momento, mas lhe resultou impossível não acalorar-se ao recordar como o havia tocado e sentido, tão somente um minuto antes. Ela nunca havia tocado a um homem, muito menos naquela postura. Assim, levada por uma força desconhecida e sua curiosidade inata, não tinha podido reprimir o impulso de acariciá-lo. Parecia bastante depravado até o momento em que sentiu um pequeno movimento em seu estômago, como se tivesse algo vivo dentro da calça. Pelo visto o que lhe tinha incomodado era que o tocasse além do necessário, mas ela não sabia onde estava o limite: tratava-se de seu primeiro dia como homem. Assim que o que o tinha incomodado era que o manuseasse. Bem, teria que anotar isso. Aos homens não gostam que os toquem.

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Um pouco mais acalmada, respondeu: — Volto-lhe a pedir desculpas. — mordeu a língua e tentou parecer arrependida, embora a essas alturas o que mais lhe importava era livrar-se desse senhor tão grosseiro e ir correndo a sua primeira classe, que já teria começado — Por favor, aceite minhas desculpas e me deixe em paz — acrescentou, quando viu que não lhe soltava o braço. Ele apertou um pouco mais seus dedos; ela sentiu uma pequena dor, mas não se deixou amedrontar. O homem aproximou a cara a de Coraline, com a intenção de assustá-la até mais; ela pôde cheirar outra vez essa fragrância a limpo que lhe encheu os pulmões. Lutou nervosa por recuperar seu braço, até que ele a deixasse ir. — Mantenha-se afastado de mim — advertiu o tipo. — Evitarei-o como à peste — assegurou ela. Deu as costas murmurando algo ininteligível, mas de seguro obsceno. Não fazia falta que a advertissem, teria que estar louca para não evitar a um valentão como aquele. Começou a recolher suas coisas e se deu conta de que já não havia ninguém pelos corredores. Apressou-se a colocar os óculos e pentear um pouco o cabelo. Menos mal que o fixador o mantinha em seu lugar. — Acredito que isto é teu. — Ouviu uma voz amável a suas costas e girou com rapidez. — Sim, obrigado — disse e tomou o livro que lhe oferecia um jovem. — Meu nome é Tom Flint. É novo? — Sim sou Cora... — esclareceu a garganta— Corl Smith. —Ofereceu-lhe a mão — Prazer em conhecê-lo e obrigado outra vez. —antes de ir perguntou ao jovem tão encantador — Perdoa, poderia me indicar onde está a classe de Economia? — Claro. Não tem mais que seguir aquele cavalheiro — assinalou com o dedo ao vulgar valentão com o que se chocou— É David Flint, o professor dessa classe e agora se dirige a ela. Se te der pressa pode lhe adiantar. Tom observou a expressão de horror que punha o menino e lhe esclareceu: — Não tem do que preocupar-se. O senhor Flint sempre está de bom humor, é muito estranho que repreenda a alguém por atrasar-se um pouco e menos em seu primeiro dia. — Deu-lhe uma palmada nas costas que a tirou de seu estupor — Adiante. Ela viu como se ia o jovem encantador e se centrou no escuro corredor pelo que se foi seu professor de Economia, o valentão. Sua carreira em Oxford tinha sido curta, mas pelo menos tinha conseguido transpassar as portas. De um grande salto, isso sim.

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Capítulo 2 Supunha-se que esse ia ser o dia mais feliz de sua vida e tinha acabado sendo um pesadelo. Deu um tapa sobre a água para eliminar a frustração que sentia. Tinha chegado a casa fazia uma hora e quão único tinha querido tinha sido tomar um banho com a intenção de afogar-se. — Tudo por culpa de um tropeção, fui torpe. — Espremeu a esponja — Mas o que digo? Tudo por culpa de um mal educado, intransigente, déspota! Soltou um bufido desmoralizado, recostou-se na banheira e se cobriu os olhos com o braço. — Um déspota que resulta ser meu professor de Economia —se lamentou em voz alta — O senhor David Flint, professor de Matemática, Economia e não sei quantas coisas mais. Membro respeitado da universidade. Número um de sua graduação e um dos melhores esportistas do momento. Propulsor do primeiro torneio de seleções de futebol no mundo: o British Home Championship. Minha mãe, a situação era pior do que acreditava. "Deveria deixá-lo", pensou entristecida. Mas não, não podia abandonar. Tinha chegado muito longe, tinha conseguido o mais difícil: entrar em Oxford. Tinha lutado para chegar até ali. Cortou o cabelo! Claro que não ia renunciar! Obteria seu propósito, apesar de David Flint. Era tão simples como transformar-se em um fantasma para ele. Evitaria-o na medida do possível. Seguro que se esqueceria logo do incidente e não recordaria nem seu nome. Por seu cabelo que o conseguiria!

*** David estava sentado no pub, mas nem sequer o ambiente puramente masculino, nem o aroma misturado de tabaco e a cerveja, nem o entusiasmo que os jovens punham para contar piadas conseguiam lhe tirar aquele horrível momento da cabeça. Ao princípio, quando tinha visto aquele moço correr, tinha-lhe feito graça. Fixou-se nele desde que tinha largado, de maneira descuidada, a bicicleta à grade do jardim. A imagem que apresentava o jovem avoado ao olhar o relógio e apressar-se ao precaver-se de que chegava tarde, recordou-lhe seus primeiros anos de estudante.

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Reviveu os nervos que o tinham acompanhado ao início do curso, as altas expectativas postas nos professores, as ânsias de começar. O menino o fez sorrir, até que viu como colocava o pé em um pequeno oco que havia entre dois paralelepípedos e perdia o equilíbrio. Teria que ter deixado que caísse de bruços, em vez disso se aproximou para ajudá-lo e o muito idiota caiu em cima dele. Não é que estivesse zangado pelo golpe: não se tinha feito nenhum dano e, graças a ele, o moço tampouco. Ficou um momento convexo sobre o chão para que o jovem se incorporasse, mas o muito cretino começou a lhe apalpar o peito, foi subindo pelo pescoço até chegar à cara. Para David foi um instante de verdadeiro desconcerto, porque aquelas mãos pequenas, até poderia dizer-se delicadas, não o estavam apalpando, estavam-no acariciando. Então foi impossível não dar-se conta de sua suavidade e daquele agradável aroma que desprendiam. "Chifres!", amaldiçoou para seus botões, mas cheirava como uma mulher. Quando supôs que era sua imaginação, o menino levantou a cara e o olhou com os olhos mais doces que tinha visto em sua vida. Uns preciosos olhos de distintas tonalidades de mel, rodeados por um montão de pestanas larguíssimas, emoldurados por umas sobrancelhas delineadas de forma perfeita, curvadas para parecerem insolentes, mas sem lhes subtrair doçura. Observavam-no com uma mescla de íntima confusão e perigosa curiosidade. Foi nesse preciso momento quando aconteceu o mais espantoso que podia ocorrer a um homem. Seu corpo ou melhor dizendo uma parte muito delicada de sua anatomia, decidiu ficar em estado rígido. Assim que se precaveu, incorporou-se entre maldições e se desfez daquele jovenzinho inoportuno. Nunca em sua vida lhe tinha passado algo assim. Nunca. Ele era um homem que gostava das mulheres, única e exclusivamente mulheres. Ao David era indiferente como fossem: altas, baixas, loiras, morenas, ricas ou pobres. Inclusive com as que lhe resultavam insofríveis poderia ter um deslize, mas havia uma regra inquebrável: tinham que ser mulheres, nada de jovens que pareciam querubins chegados do céu. Não, isso estava fora de toda dúvida. "Não, não e não", repetia-se uma e outra vez. Tinha sido nada mais que uma reação física ao tato de umas mãos. Tinha-o confundido o aroma de coco e flores que desprendia o jovem, que, além disso, era muito pequeno. Somente seu corpo estava equivocado, mas, graças ao Céu, sua cabeça não albergava dúvidas. Não gostava dos homens, não. Além disso, de anjinho tinha pouco, porque o miserável era um autêntico desbocado. Assim "o evitaria como à peste" tinha assegurado o ingrato. Oxalá tivesse sido assim. Segundos mais tarde, voltou a encontra-lo pego a seus

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calcanhares, com a cabeça encurvada, escondido entre os livros, passando por diante dele para penetrar em sua classe. De novo, apreciou aquela exótica fragrância e o mau humor, que tinha se instalado no peito, aumentou. Ministrou a pior aula de seus dias como professor. Nunca tinha estado tão alterado, nem tão zangado. Era uma sala de aula grande, em forma semicircular, onde cada fila estava um degrau mais elevada que a anterior, de maneira que todos os alunos pudessem ver com claridade ao orador. Ao David pareceu que esse dia os alunos se viam mais observadores do habitual, como se estivessem esperando que cometesse um engano para burlar-se dele. Conhecia a maioria dos alunos, alguns pertenciam a sua equipe, tinham treinado, tinham rido e chorado; tinha compartilhado bons momentos com muitos deles, mas isso não lhe tirava os nervos que tinha. Tudo por culpa de um serafim, mal educado e insolente, que o estava olhando como se fosse um cordeiro a ponto de ser sacrificado. Esclareceu a garganta antes de começar o discurso, olhou o quadro imenso que tinha a suas costas e se colocou atrás do suporte de livro que havia no centro, que, de repente, pareceu-lhe muito pequeno. Passou-se toda a hora escondido atrás do suporte de livro, exceto quando tinha que escrever algo no quadro e dava as costas à audiência. Tinha um medo atroz a que seu corpo se rebelasse outra vez contra ele e seu público se desse conta. Na classe havia mais de cinquenta jovens. Entretanto, cada vez que levantava a cabeça só via uma cara escondida, atrás de uns horríveis óculos. Mas nem sequer com eles se via feio o condenado. Sabia que os alunos estavam estranhando, ouvia os cochichos a suas costas. Perguntavam-se que inseto lhe teria picado. Ele nunca se zangava, nem demonstrava mau humor. Sempre mantinha a calma, era um homem otimista e positivo. Inclusive nos momentos trágicos que tinha vivido tinha mantido a têmpera. Em seus trinta anos de vida, ninguém o tinha posto de tão mau humor. De sua família, ele era o que possuía melhor humor. Seu irmão mais velho, Matthew, era o exaltado. E sua irmã Connie era a impetuosa. Lhe correspondia manter o bom humor nos momentos críticos. Ele era o simpático. Assim, nesse momento, além de zangado, estava desconcertado.

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Quando acabou a classe, seu sobrinho Tom o tinha ido procurar para reunir-se no pub, com o propósito de comentar o início do campeonato e acordar a nova tática de jogo. Segundo os resultados da primeira partida, Escócia ia ser difícil, mas nada que não pudessem resolver. Esmagariam à equipe escocesa, embora tivessem que deixar a pele no campo de jogo. — Mas o que te passa? — perguntou Tom e lhe deu uma cotovelada — Deixa de franzir o cenho. Desde que te vi está assim. — Ah! Perdoa, Tom. — David se obrigou a sair de sua absorção — O que me dizia? — quis saber, girou a cara e emprestou atenção ao periódico que lhe mostrava seu sobrinho. — Estava tentando te mostrar o artigo que saiu hoje, publicado no The Manchester Guardian. Segundo o tal C.S., Escócia começou em forma muito prometedora, este ano são muito fortes. — Bobagens! — exclamou David e deu um tapa ao ar para lhe subtrair importância — Esses sujos escoceses não sabem o que é um balão. — Não são tolices, senhor Flint — interrompeu Percy Walters — Os vi jogar. E lhe asseguro que o periódico não exagera: 5-0 é um resultado a ter em conta. David ficou pensativo, resultava evidente que esse não era seu dia. Primeiro o querubim e agora os escoceses. Tom Flint, dianteiro, Percy Walters, defesa e, ele mesmo, David Flint, meio campista, eram os únicos membros da seleção inglesa que provinham de Oxford. O resto da equipe inglesa se formava com os melhores jogadores de toda a Inglaterra chegados de Cambridge e de clubes como Blackburn Rovers, Blackburn Olympic, Notts County, Oid Westminster, Swifts, Bolton Wanderers, Upton Park e Nottingham Forest. Ao David pareceu absurdo discutir nesse momento o tema dos escoceses. Em primeiro lugar, não estava de humor, um pouco habitual, mas assim era. Em segundo lugar, faltava o resto da equipe, assim teriam que esperar. — O melhor será mandar um aviso para reunimos com o resto. Temos que treinar e concretizar o jogo que vamos seguir — disse David e olhou a Percy. — Você tem que fazer uma redação com todos os detalhes da partida. — Que? — exclamou Percy, perplexo — Não acredito que recorde todos e cada um dos detalhes. — Bem — respirou fundo, elevou o periódico e leu — Então teremos que encontrar a este tal C.S. e que nos conte tudo o que ocorreu em 26 de janeiro no Ulster Cricket Ground. — Tomou sua cerveja e se levantou com um bufo. —Tio David — disse Tom, com cara de preocupação antes de que partisse — Como vamos encontrar ao C.S.?

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David o observou durante uns segundos antes de responder. Deu-se conta de quão jovens eram seus acompanhantes: Tom tinha vinte e dois anos; Percy ainda não tinha completo os vinte e um. Sem dúvida, por isso deveria sentir-se maior, entretanto era feliz de poder compartilhar sua paixão pelo futebol com aqueles moços tão comprometidos e entusiastas. O futebol e as classes eram tudo o que lhe importava, além de sua numerosa família, que adorava. E, apesar de seus trinta anos, sentia-se em forma para seguir jogando. Era um homem afortunado. Esse pensamento conseguiu lhe tirar seu mau humor. De repente lhe pareceu absurdo seu aborrecimento. Tinha tudo na vida para ser feliz. — É tão fácil como escrever uma carta ao periódico e pedir o endereço desse homem. — Fez uma pausa — Mas não terá que ser muito explícito, tão somente diga que gostou muito do artigo e que deseja firmar uma carta felicitando ao jornalista por seu grande trabalho. Quando os jovens assentiram, sem mais pergunta, David partiu tranquilo. Não era boa ideia que deixassem a descoberto suas intenções. Não sabia nada do C.S., embora o periódico fosse inglês, o senhor C.S. poderia ser um escocês e estar no outro bando. Então, poderia dar o caso de que facilitasse a informação não verdadeira sobre os jogadores. E David precisava fazer um esquema claro do jogo da Escócia, se queria ganhar o campeonato.

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Capítulo 3 As semanas seguintes foram muito duras para Coraline. O senhor Flint se converteu em seu mal menor. Estudar em uma universidade não era tão fácil como tinha imaginado. Tinha muitas disciplinas: Filosofia, História, Matemática e, é óbvio, sua adorada Economia, pelo menos tinha sido adorada até antes de sua topada com o senhor Flint. Necessitava uma energia considerável para adaptar-se ao ritmo de trabalho de outros alunos mais veteranos. Em algum momento, duvidou de se isso lhe ocorria por ser mulher, mas em seguida desprezou a estúpida ideia: ela tinha capacidade para isso e mais. Tinha conhecido a um jovem chamado Paul, que tinha ingressado o trimestre anterior e estava tendo os mesmos problemas que ela para habituar-se ao nível de exigência. Entretanto, Paul não tinha que enfrentar-se aos contínuos ataques de mau humor do senhor Flint. Nem tinha que sair escondido de sua casa, posto que podia residir na mesma universidade. Nem tinha que ocultar os livros quando chegava a seu lar. Não tinha que ocultar seus estudos a uma avó que parecia agente do Scotland Yard. E, o mais importante de tudo, não tinha por que enfaixar os peitos. Ela sempre tinha pensado que eram bem pequenos comparados com os de sua mãe, mas estava trocando de opinião, porque ocupava muito tempo em dissimulá-los. Chegava a casa às cinco para aproveitar que era a hora em que sua avó tomava o chá, entrava pela porta de serviço tentando não fazer nenhum ruído. Subia depressa a sua habitação, trocava-se, escovava-se o cabelo e colocava uma diadema com algum detalhe floral e voltava a baixar correndo, para tomar o chá pontual. E, apesar de chegar faminta, não podia tomar mais que um bolinho e um minúsculo sanduiche, já que ingerir mais disso resultava inadequado. Em umas poucas semanas tinha emagrecido uns dois quilos. Logo voltava a subir e se encerrava em seu quarto a estudar, até a hora do jantar. Esse era o momento do dia que mais gozava: encerrada com seus livros. Evitava na medida do possível o contato com seus companheiros de classe. Quanto menos falasse com eles, menos possibilidades de que a descobrissem ou de colocar a pata. Mas ela era de caráter extrovertido e gostava muitíssimo relacionar-se com as pessoas, assim não pôde evitar fazer-se amiga de Paul, outro novato que, por sorte, tentava protegê-la de qualquer brincadeira, quase

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todas mal intencionadas, que tentavam passar os alunos mais antigos. Também falava frequentemente com Tom Flint, embora com ele somente coincidia em História e Filosofia. Tom não tinha nada que ver com seu tio. Era um jovem bonito e encantador, mas não de uma forma demolidora como seu tio - quem chegava a intimidar - mas sim de uma maneira amável e doce. David Flint era simplesmente devastador em todos os sentidos, mas, ao parecer, disso somente se precavia ela, o resto da humanidade o via como um homem educado, risonho, inclusive simpático. Coraline se perguntava se o senhor Flint tinha algum tipo de transtorno da personalidade que aflorava sozinho quando estava diante dela.

*** — Senhor Smith - chamou David exasperado. Como não obteve resposta e o jovem Smith seguia com o olhar perdido, pigarreou um pouco para ver se baixava à terra — Senhor Smith! —gritou ao fim. — Ai! — exclamou Coraline, quando Paul lhe deu uma cotovelada no braço sobre o qual tinha o queixo apoiado e fez que lhe caísse — O que foi? — inquiriu a seu amigo. — O senhor Flint leva dez minutos te chamando — sussurrou Paul. Coraline olhou para baixo e viu o senhor Flint com o mesmo semblante amargurado de sempre. — Senhor Smith — insistiu David. — Sim? — perguntou Coraline temerosa. — Parece-lhe aborrecido o que estou dizendo? — Não senhor, é obvio que não. — Pelo menos isso acreditava, porque não tinha ouvido nenhuma palavra desde que tinha começado a classe, fazia meia hora. — Então, qual é sua opinião a respeito? — inquiriu David malicioso, que sabia que o jovem não tinha prestado nenhuma atenção. — Minha opinião? — Coraline, nervosa, tratava de ganhar um pouco de tempo enquanto pensava uma resposta, mas a que?— Bom, eu... né... — Não tenho todo o dia, senhor Smith. — David levantou uma de suas sobrancelhas negras, o que a Coraline provocou algo estranho no estômago, mas seguro que era medo, disse-se — Quer me dizer o que pensa ou temos que dar por feito que não pensa absolutamente nada, porque não tem nem ideia do que estou falando?

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Coraline ficou um segundo observando-o. Ali de pé, diante de todos esses alunos, todos homens vestidos com cores escuras, nenhum deveria se sobressair do resto, entretanto ele o fazia. Destacava de entre todos eles de uma maneira chamativa. Ela não sabia se era pela elegância ou pelo entusiasmo que punha quando repartia suas classes. Escutá-lo falar devia ser comparável para ouvir o mesmo Paganini tocar com algum de seus Stradivarius. Era tal a paixão que demonstrava ao explicar seus conhecimentos que Coraline, às vezes, se perdia nessa mesma exaltação e descartava por completo o argumento de que tratavam. Paul teve piedade dela, voltou a lhe dar uma cotovelada, esta vez mais sutil e lhe assinalou o papel que tinha na mesa, onde tinha escrito uma pequena anotação: "Ensaio sobre o princípio da população". Paul não pôs nada mais porque tinha a certeza de que Corl, seu pequeno companheiro, sabia tudo relacionado com o título que lhe indicava. Cada dia se assombrava mais da inteligência vivaz do Corl Smith e sabia que não era o único que o tinha notado, alguns estudantes pareciam molestos porque um dos novatos fosse tão brilhante. Tinha tomado grande carinho a Corl nesse tempo, tinha demonstrado ser bom companheiro, honrado, bondoso e, sobre tudo, o fazia rir com seus comentários inocentes e seus contínuos rubores, por isso tinha decidido converter-se em uma espécie de protetor para Corl, porque, além de ser mais novo que ele, era muito inocente e seu corpo muito miúdo, com o qual era o branco perfeito para as bravatas dos mais velhos. Coraline pôs os olhos em branco quando leu anotação do Paul e se dispôs a responder: — Sei com exatidão do que está falando, senhor Flint. — antes de continuar se fixou na cara de ceticismo que punha o professor. Deu um bufo e acrescentou — Verá, segundo o Ensaio sobre o princípio da população que Thomas Robert Malthus publicou em 1798, a chamada "Lei Malthus" afirmava que a população se duplicaria a cada vinte e cinco anos, quer dizer, cresceria em progressão geométrica, apresentando um crescimento exponencial. Para isso se apoiou nos dados de crescimento de população nos Estados Unidos durante o século XVIII. Por outra parte, Malthus supôs que os meios de subsistência, no melhor dos casos, aumentariam em progressão aritmética, quer dizer, apresentariam um crescimento linear. — Fez uma pausa para tomar ar—. E se quer saber minha opinião a respeito, direi-lhe que me parece uma tolice. Esta afirmação tão ousada provocou uma explosão de sinais de assombro junto com falações e algum que outro risinho. Coraline ignorou a todas e prosseguiu seu discurso: — Não sei por que se assombram — disse em referência a

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seus companheiros — O senhor Flint perguntou o que pensava a respeito e eu sozinho hei dito minha humilde opinião. E não posso estar de acordo com um homem que dizia coisas como: "Em vez de lhes recomendar limpeza aos pobres, temos que lhes aconselhar o contrário, faremos mais estreitas as ruas, colocaremos mais gente nas casas e trataremos de provocar o reaparecimento de alguma epidemia". Além disso, a história demonstrou o errôneo da teoria. — É que, você é mais que o senhor Mathus? — inquiriu depreciativo Curtis Seymour seguido pelas risadas de seus seguidores — Por favor, Smith, quanta arrogância guarda um corpo tão pequeno? Coraline girou para lhe fazer frente e o olhou com o cenho franzido. Estava farta daquele menino. Sempre se metia com ela porque obtinha melhores notas que ele, apesar de que levava dois anos menos na universidade. Era o típico fanfarrão que se engrandecia sozinho porque tinha um título e seguidores que riam de todas suas estupidezes. — Claro que não — acrescentou com evidentes sinais de aborrecimento — Só hei dito minha humilde opinião sobre uma das muitas teorias que tinha o senhor Malthus. Ao contrário de você, eu sim posso discutir sobre seus artigos. — Em vez de deter-se, e sabendo de que logo se arrependeria, adicionou — Para ti seria algo impossível, já que nem sequer sabe pronunciar seu nome. Não é Mathus, a não ser Malthus. A classe quase ao completo começou a rir. Coraline viu com satisfação como Curtis ficava mais vermelho à medida que as risadas aumentavam. — Bem, agora deverá sair correndo quando acabar a classe — murmurou Paul — Sabe que lhe fará pagar isso. — E o que queria que fizesse? — perguntou em voz baixa, desgostosa — Tenho que deixar que me critique, só porque sou mais preparado que ele? — Não, claro que não, pelo menos não sempre — continuou Paul em voz baixa - mas algumas vezes, como agora, é melhor tragar o orgulho. Coraline não lhe respondeu, cruzou de braços e olhou para o professor, quem a observava com o que parecia uma certa curiosidade. Não era a primeira vez que descobria que a olhava assim, com uma expressão entre o assombro e a suspicácia e o fazia pôr uma cara que resultava do mais interessante, com os olhos um pouco entreabertos, a sobrancelha esquerda elevada e uma das comissuras de sua boca para cima. O ventre lhe fez outra vez essa coisa estranha, só que essa vez foi subindo pelo peito. Levou a mão à garganta e colocou um dos dedos no pescoço de sua camisa para tentar respirar melhor, sempre

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com cuidado de não desabotoar nenhum só dos botões, para que ninguém notasse a ausência do pômo de Adão. Colocou-se melhor na cadeira e tentou desfazer-se do desconforto que sentia. — Basta — interrompeu o senhor Flint — Basta de risadas —deu a ordem com uma calma que a Coraline resultou anormal, já que sempre que se dirigia o fazia de uma forma mais alarmante. Embora em suas classes estivesse acostumado parecer um homem cordato e sensato, ela tinha vislumbrado seu lado selvagem. OH, sim, inclusive poderia dizer que o tinha notado. — Está bem? — perguntou-lhe Paul. — Sim, por quê? — quis saber Coraline sentindo estranheza. — Está vermelho como um tomate. — Não é nada — afirmou nervosa. Ajustou-se os óculos e apagou as imagens que evocava sua mente sobre o corpo do senhor Flint debaixo dela — Já sabe que eu não gosto de ter este tipo de enfrentamentos com ninguém. — Parece não te gostar, mas o faz muito frequentemente —sentenciou seu amigo. — Bem, se tiverem acabado de divagar — os interrompeu David — posso seguir com a classe? — Nenhum respondeu — Por certo, senhor Smith, fez uma boa apreciação sobre o tema. Bem feito. —Tossiu um pouco como se lhe tivesse incomodado reconhecer esse insignificante mérito. Enquanto David prosseguia com sua classe, Coraline teve que colocar a cabeça entre seus livros para que ninguém visse que seu aquecimento tinha chegado até o nariz. Tentou concentrar-se, mas foi complicado ter sob controle aquela transbordante alegria que se deu procuração dela. Por que se tinha posto tão contente? Ela já sabia que era uma boa apreciação, mas que ele o dissesse teve um forte efeito, e não porque o houvesse dito diante de todos, pois a ela bem pouco interessava o que pensassem os outros. Entretanto lhe importava, e muito, a opinião de seu professor. "Bom", disse-se a si mesmo, "como não me vai importar? Ao fim e ao cabo é meu professor, um dos melhores de Oxford, um homem brilhante em términos acadêmicos. É razoável que me importe o que pense, não?" David se entreteve uns minutos em revisar algumas notas e recolher o material, enquanto os alunos partiam em forma ordenada. Foi o último em sair do salão. Quando a sala de aula por fim esteve vazia, soltou o ar que tinha retido. Esse moço o pertubava e não sabia muito bem a razão. A topada tinha tido muito que ver, mas uma vez superado o mau gole que lhe tinha ocorrido não tinha sentido seguir assim. Corl Smith era um bom estudante, aplicado, entusiasta.

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Recordava a ele mesmo em seus começos. Também tinha notado, não porque se fixasse mais nele que em outros, que era bom companheiro, gostava de dar uma mão a quem fosse. Além disso, para o girino que era, demonstrava muito valor ao enfrentar-se desse modo a tipos como Curtis Seymour, sobrinho do mesmo conde Spencer, um fanfarrão que desfrutava quando ridicularizava a outros. Sorriu ao recordar o resolvido que se mostrou ante sua pergunta. Não o tinha enganado em nenhum momento que Smith não tinha ouvido nenhuma palavra da classe, apesar disso tinha respondido de forma correta e tinha demonstrado não só que tinha estudado, mas sim que tinha forjado uma opinião própria a respeito. Isso significava que compreendia e assimilava à perfeição o que estudava, não o fazia de cor, mas sim analisava e discernia cada tema. Tinha demonstrado perspicácia e rapidez mental ao responder a Curtis. Sim, aquele moço gostava, mas da forma mais casta e honrada possível, como um aluno mais de que tirar um homem de proveito. Para David, seu papel de professor era de vital importância, não esquecia nunca que seu dever era moldar mentes, educar pessoas para forjar o futuro de um país. Seria muito mau professor se não se desse conta de que Corl Smith tinha a matéria necessária para converter-se em um homem que deixaria rastro na história. Tomou sua maleta e abandonou a sala de aula. — Por Deus! — exclamou David quando o girino do Smith se jogou, de novo, em cima — Se há proposto a me matar — o acusou, enquanto se alisava a jaqueta. — OH! Per... Perdoe... eu — Coraline gaguejava, sem poder acreditar o que havia tornado a ocorrer. Isso lhe passava por tola. Em vez de ir-se diretamente a sua casa, como teria que ter feito, tinha dado meia volta só para lhe agradecer seu comentário, algo ridículo, posto que para o senhor Flint não tinha nenhuma relevância, mas para ela sim. Esse comentário tinha sido o primeiro estímulo positivo que tinha recebido desde sua chegada à universidade. Embora não se queixava do sacrifício que lhe custava toda aquela aventura, era muito consciente do que arriscava e de tudo o que deixava atrás. Contra todo prognóstico, o senhor Flint tinha sido o primeiro em lhe dar um necessário tapinha nas costas. Ela só tinha querido agradecer o gesto. — Eu só queria lhe agradecer seu comentário — disse e se separou dele. Baixou o olhar para não ver a cara de surpresa que punha e que a fazia sentir mais tola. — Por quê? — perguntou confundido. — Bom... — Voltou a olhar em seus olhos, porque não gostava de acovardar-se ante a pessoa — Já sei que para você não significa

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nada, mas para mim foi um gesto importante. Sabe o que me está custando me adaptar a tudo isto? Sou o mais novo, o mais jovem e acredito que o mais pequeno, quanto ao físico me refiro, de todos meus companheiros. Se por acaso isso fosse pouco ganhei a antipatia do senhor Seymour e seus amigos. — Fez uma pausa, subiu mais as lentes — Além da sua. — Terminou em um sussurro. David observou ao senhor Smith com atenção. Tinha notado que sempre se recolocava os óculos quando estava nervoso. Começou a se sentir um pouco culpado por lhe haver feito tão difícil essas semanas. O menino não tinha a culpa de ter esse aspecto; ao contrário, com segurança, ele o sofria como um lastro. Em uns anos, tudo lhe seria mais fácil, assim que seu corpo começasse a desenvolver-se e seus músculos, embora escassos, reforçassem-se um pouco mais. "Quando lhe aparecer barba, já não parecerá um querubim", disse-se David. "A vida lhe resultará mais suportável." A imagem do jovem com a cara repleta de cabelo o fez sorrir e pensou que era a primeira vez que se relaxava em presença do Corl Smith. Tinha sido tonto por sentir-se intimidado por um moço imberbe. O fato de pensar em Corl como o homem que seria e não o anjinho que tinha diante, tinha posto fim ao capítulo mais perturbador de sua vida. Entraram-lhe vontades de rir. Por fim, havia retornado o verdadeiro David. Coraline olhava ao seu professor boquiaberta, acaso estava rindo dela? "Certamente, não tem a mínima educação, nem consideração, nem nada que lhe pareça", pensou zangada. — Sabe o quê? — disse com um bufo — Deixe-o. — Girou sobre seus passos, mas antes que pudesse partir notou uma mão no ombro. — Não tão depressa — disse David para interromper a fuga do senhor Smith — Não se ofenda tão rápido, não estava rindo de você. É somente que me recordou nosso primeiro tropeção e acabo de encontrar a graça. Coraline deu um coice pelo contato de sua mão. Era grande, mas não a agarrava com brutalidade, a não ser com firmeza. Notou o aroma de seu perfume. — Vá. — arranhou-se a cabeça—. Por ser um homem ilustre, é você um pouco lento. Essa vez, David rio com vontade e assim desprezou toda a tensão que tinha acumulado durante os últimos dias. — Sabe uma coisa, senhor Smith? Em seu caso, pode que seja verdade que tenha estado um pouco espesso. — David ignorou a expressão de pasmo — Venha comigo, tomaremos uma cerveja e nos apresentaremos como é devido entre cavalheiros. — Mas... não... — Venha, senhor Smith. Para o seu bem, é melhor que

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comecemos de zero. Eu gosto de conhecer meus alunos; além disso, aproveitaremos para lhe apresentar a outros companheiros. — Deu-lhe um pequeno empurrão para que se dirigisse por volta do corredor — Não pode depender sempre do amparo de seu amigo Paul Winston; precisa fazer mais amigos para manter a distancia a todos os adversários que se está criando. — Assim que você também notou isso — disse envergonhada. — Eu me dou conta de tudo o que acontece com meus alunos. E você tem desenhado um alvo na frente. — David teve piedade dele e lhe explicou — Você é um jovem sagaz e com uma personalidade marcante, para seus dezessete anos. Por isso chama a atenção, tanto para o bom como para o mau. — encolheu-se de ombros e subtraiu importância ao assunto — É desse tipo de pessoas que não deixam indiferentes a ninguém, portanto é normal que tenha caluniadores e partidários. Quão único tem que fazer é nivelar o número de cada equipe para que sua vida seja mais prazerosa. — Voltou a sorrir e Coraline pôde ver como lhe chegava o sorriso até os olhos. Secou-lhe a boca. — Parece que sabe do que fala — disse ela e se esforçou em tragar. — Assim é. Eu também tive meu primeiro dia aqui. — Fez uma pausa e o olhou de esguelha — Embora lhe asseguro que não foi tão desastroso como o seu. Coraline centrou sua atenção no chão e deu um passo atrás do outro em silêncio, para ocultar o rubor. O senhor Flint era diferente de como tinha imaginado. Parecia um homem próximo e alegre. Sabia que não era boa ideia ir tomar uma cerveja com seu professor e muitos menos que apresentasse a mais alunos, mas essa nova faceta dele a apanhava, queria conhecê-lo melhor e a possibilidade de ter amigos ali, pessoas nas quais confiar e com as que pudesse discutir ou rir, o fazia deliciosa.

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Capítulo 4 — Meu deus! — exclamou a senhora Atkinson — O que foi esse ruído tão espantoso? — Interrompeu o sorvo de chá e depositou a taça na mesa que tinha diante. Estirou o pescoço para poder ver pela janela e espionar a rua — É como se tivesse estalado uma bomba. — Procurou com o olhar ao mordomo, viu-o situado ao lado da porta, colocado de maneira apropriada, reto e estirado, com as mãos nas costas e a vista à frente — Senhor Sórenson, faça o favor de ir ver o que ocorreu, não quero que se forme nenhum bulício na porta de minha casa. — Girou de novo para sua convidada — Já tive suficiente escândalo quando minha filha decidiu casar-se com um escocês. — Elevou o queixo para beber um pequeno sorvo de chá — A meus anos, não acredito que suporte mais tribulações. Não lhe parece, minha estimada senhora Hamilton? — Nem que o diga, senhora Atkinson. —A senhora Hamilton pôs as mãos sobre seus joelhos de maneira recatada e se inclinou um pouco para diante para acrescentar — Certamente, é você uma mulher admirável. Eu, em seu caso, não sei se teria suportado ver como minha única filha, a portadora de um legado de gerações e gerações do mais puro sangue inglês, vê-se mesclada com um escocês — suspirou —, embora seja um homem rico e de aspecto formidável. — Senhora Hamikon! — recriminou Annabel Atkinson—. Está você falando de meu genro, não pode pensar nele nesses términos. — Vamos, não se ofenda — pediu a senhora Hamilton, sem lhe dar muita importância. Tomou um doce de um precioso prato de porcelana branca com motivos florais em azul e um cós dourado pelo bordo — Com setenta anos, ganhei-me o direito a pensar no que queira e como quero. Se quero pensar em um homem, o farei como me agrada. — Deu uma dentada — Mm! Estes doces são deliciosos, tem que me dizer onde os compra. — Tragou o que tinha ingerido—. Onde está sua neta? É muito estranho que não tenha chegado ainda. Ela nunca perde a hora do chá. Não estará doente, verdade? —Suspirou — O outro dia, lady Newman nos contava que tinha padecido de um resfriado tremendo, tinha tossido tanto que lhe haviam arroxeado até as costelas. — meteu-se na boca o que ficava de doce e assentiu com a cabeça para lhe dar mais ênfase ao que acabava de contar. A senhora Hamilton tinha o costume de trocar de conversação com ligeireza, algo que a Annabel a desorientava, posto que nunca

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sabia do que estavam falando. Piscou confundida e ignorou a sua amiga para emprestar atenção ao que ocorria na rua. Não se via nada. O senhor Sórenson não tinha retornado e lhe preocupava que se produzisse alguma briga mais séria do que tinha imaginado. Seu mordomo era um homem de idade avançada, próxima à senhora Atkinson, de procedência sueca. Ainda era robusto e, sobre tudo, lúcido, coisa que agradecia Annabel porque lhe facilitava muito a tarefa de administrar o lar e organizar ao resto da servidão. Não se atrasaria tanto sabendo que sua senhora estava esperando uma resposta. Algo tinha acontecido. Removeu-se inquieta em seu assento, uma poltrona que parecia feito a propósito para que fizesse jogo com a baixela. Toda a sala do chá tinha um vínculo de cor e estilo. Um conjunto de duas poltronas individuais que estavam frente a frente, separados por outro um pouco maior para duas pessoas, mas que tinham a mesma tapeçaria a raias verticais, uma bege e outra azul, com um cenário floral, similar ao dos pratos. Os respaldos eram como medalhões, emoldurados em uma preciosa talha que desenhava graciosos cós pintados em dourado. Em meio deles havia uma pequena mesa redonda, para a qual a senhora Hamilton não parava de se inclinar para encher a boca com os saborosos doces. Annabel estava escandalizada pela pouca elegância que fazia sua amiga ao comer com tanta avidez. Encolheu-se de ombros e voltou a olhar para a porta, se por acaso via aparecer a seu mordomo. Deixou passar dez minutos em que viu a senhora Hamilton mover a boca para comer ou para dizer algumas de suas tolices, até que se fartou e fez soar a campainha para avisar ao serviço. Demoraram um pouco em aparecer, mas, quando o fizeram, não foi o senhor Sórenson quem se apresentou, a não ser uma das criadas. Annabel pôs cara de aborrecimento e despediu a criada. — Desculpe-me, senhora Hamilton — disse levantando-se — vou ver o que acontece. — Sem esperar consentimento se retirou de seu lugar. A senhora Hamilton tomou outro doce da mesa e foi detrás de sua amiga.

*** — Está segura de que se encontra bem, senhorita Coraline? — indagou Sórenson preocupado. Ao sair à rua pela porta principal, viu a senhorita Smith estampada contra uma luz. Deu-se um bom golpe na frente e o guidão da bicicleta estava destroçado. Acompanhou-a até sua

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habitação tentando fazer o menor ruído possível, para que a senhora Atkinson não se inteirasse do acontecido. — Sim, não se preocupe. — afirmou Coraline e tirou importância ao golpe que se deu — Já lhe hei dito que apenas me inteirei, vê? — tocou-se a frente em busca do galo—. Nem sequer sei onde me dei isso. Foi má sorte, havia um buraco no meio-fio e não o vi. — Não me estranha — murmurou Sórenson e abriu a porta para deixá-la passar — Stinker av alkohol. — Como diz? — exclamou Coraline assombrada pelo atrevimento. Entrou em seu dormitório com um olhar de suspeita para o mordomo. Tinha muita apreço ao senhor Sórenson, já que ele era o que sempre a encobria, mas em todo esse tempo nunca lhe havia dito nada recriminatório por sua conduta. A avó não permitia tomar-se essas liberdades aos serventes. Estava claro que naquela casa ninguém tomava a sério; não obstante, tampouco podia culpá-los. Desde que tinha chegado a Oxford, atuava como uma louca. Era muito provável que todos na casa já soubessem de seu disfarce e de suas escapadas pela manhã; por fortuna, sua avó ainda não se inteirou. — Entendi-lhe — disse entre dentes— E não é verdade que cheire a álcool. Coraline se tinha familiarizado com as falações que pronunciava o senhor Sórenson em sua língua materna quando acreditava que ninguém o ouvia. Algumas palavras eram similares ao inglês. — Bom, possivelmente cheire, mas não estou bêbada. —afirmou com rotunda. — Naturligtvis. — Não se faça de condescendente comigo — ordenou ela — e menos em sueco; é de muito mal gosto. Sórenson lhe sorriu e ela deixou de lhe franzir o cenho. Era seu único apoio na casa, melhor dizendo em toda a Inglaterra e parte de Escócia. Possivelmente fora porque ainda não entendia muito o idioma e os costumes ingleses ou talvez lhe tinha lástima porque acreditava uma pobre louca. Fosse pelo que fosse, os dois tinham combinado até fazer-se cúmplices. — Estive em um pub, não me olhe assim, já sei que uma senhorita como eu não deveria, mas não ficou mais remédio. Meu professor me há convidado. — Fez uma pausa — Mas bem me obrigou a ir. — acrescentou pensativa — Pediu umas cervejas e me vi no compromisso de aceitar. Sórenson elevou as sobrancelhas ante a afirmação, mas Coraline não o deixou intervir.

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— O que queria que fizesse? Tinha que beber, a maioria já pensa que sou muito delicado. — Talvez seja porque é uma mulher — disse irônico. Coraline fez uma careta com a boca como resposta. Isso deu pé ao Sórenson para continuar. — Tem que deixar isto. É muito perigoso para você. O que ocorrerá se a descobrem? Ela pareceu meditar um momento, pôs cara de preocupação e sopesou a idéia, mas não podia deixar que ninguém a fizesse duvidar. Tinha um objetivo e o cumpriria. Renunciar não entrava em seus planos. Além disso, cada vez gostava mais de sua vida como homem, tinha mais liberdade da que jamais tivesse sonhado. Podia falar do que quisesse, sem temor a que ninguém a considerasse estranha por ter ideias políticas. Podia ler qualquer livro, periódico ou revista. Podia entrar em muitos mais lugares, inclusive nos pubs. Tinha bebido cerveja com um montão de companheiros, enquanto eles falavam de futebol e mulheres. Em alguma ocasião, ruborizou-se, em especial quando um jovem chamado Brian lhe insinuou, com muito pouco tato, que com sua carinha de anjo seguro que tinha conseguido a mais de uma. Menos mal que o comentário fez ao mesmo tempo em que a golpeava um murro no ombro com tanto ímpeto, que a atirou da banqueta que ocupava. Assim pôde evitar responder, porque Brian se mostrou tão preocupado ao ver que quase o derrubou que se esqueceu de tudo. Quando comprovou que não estava ferida de morte, sacudiu a cabeça e começou a rir, por nervos, vergonha e de autêntico humor e contagiou ao resto de seus companheiros. Passou uma tarde muito divertida. E, sim, era verdade que tinha bebido um pouco de cerveja, mas não o suficiente para embriagar-se. Não era tão tonta para jogá-lo tudo pela amurada. Além disso, não era a primeira vez que bebia. Era escocesa, seu pai lhe tinha dado a provar um bom uísque escocês assim que tinha completado os quinze anos. Sua mãe tinha tentado impedi-lo, mas seu pai havia dito que, se já tinha idade para casar-se, também tinha idade para provar o melhor uísque do mundo. O senhor Sórenson não sabia o que lhe estava pedindo. Não podia deixar os estudos, tinha que terminar o que tinha começado. — Não penso abandonar, senhor Sórenson — declarou terminante. Entretanto, ao ver a cara de desassossego que punha o mordomo, acrescentou — Não se preocupe, tomarei cuidado. — Apertou-lhe o braço ao ancião — Sabe? Isto não faço somente por mim, faço-o por todas as mulheres. — Viu a cara de ceticismo do homem — Não me olhe assim. Digo-o a sério: acredito que chegou a

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hora de poder escolher o que queremos ser e deixar de receber ordens. — cruzou-se de braços para reforçar sua imagem de teimosa. — Não sabe o que diz. — afirmou Sórenson, rabugento. Coraline bufou e lhe ordenou que a deixasse sozinha para trocar-se de roupa e descansar. Até o mordomo se acreditava com direito a lhe dizer como atuar. Isso demonstrava que a presunção dos homens não distinguia classes sociais. Era ilimitado, com independência da classe social a que pertencessem homens e mulheres. — Está claro que este distanciamento entre homens e mulheres vem desde o começo dos tempos — disse em voz alta para lhe dar vida a suas ideias — Pergunto quem induziu Adão a pensar que era mais que Eva, pelo fato de ser homem. — divagou enquanto se desabotoava a camisa — Adão deve ter culpado a Eva da expulsão do paraíso e decidiu não voltar a lhe acreditar nem lhe dar importância a suas opiniões. — tirou as calças — Sem dúvida, isso fez que desenvolvêssemos uma imperiosa necessidade de nos fazer ouvir. — Lutou com uma das pernas das calças que resistia a sair — Isso nos levou a ter uma mente muito mais ágil e rápida, capaz de enganar e superar o enorme ego masculino. — desabou sobre a cama, rindo a gargalhadas. Depois de tudo, ao melhor sim que tinha bebido um pouquinho mais da conta, se não, de onde tinha tirada aquela irracional teoria? "Que grande dia tive hoje!" disse feliz.

*** Annabel Atkinson se encontrou com o mordomo quando descendia pelas escadas. — Ocorreu algo, senhor Sórenson? — Não, senhora. — Inclinou a cabeça quando chegou até ela, em sinal de respeito — Nada do que deva preocupar-se. — Mas, aquele ruído... — O ruído provinha da rua. Um menino que ía de bicicleta tropeçou e colidiu com a luz que há justo diante da porta principal. Desculpe que não tenha ido explicar imediatamente, não lhe dava nenhuma importância. — Não, não tem importância. — o tranquilizou Annabel — É que cheguei a pensar que tinha acontecido algo a Coraline. Não a tornei ver desde o café da manhã e ela nunca falta ao chá das cinco. — Agora mesmo acabo de subir para ver como se encontrava. No meio da amanhã, disse a sua criada que se sentia indisposta. Quis comprovar em pessoa como seguia — afirmou muito sério. — É você muito amável, mas, me diga o que acontece com

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minha neta? — perguntou em um tom de inquietação que desgostou ao Sórenson. — Não é nada, deve ter comido algo em mal estado — disse e subtraiu toda a gravidade possível ao assunto. — Essa menina. —Tamborilou o pé — Como não vai se pôr mal? Sempre anda daqui para lá, nunca almoça em casa: se não tem algum convite, é porque tem alguma atividade social. Ao final, adoecerá e seu horrendo pai não a deixará vir mais. — Recolheu a saia para seguir subindo, mas Sórenson a bloqueou. — Vou vê-la — esclareceu senhora Atkinson, dado que pensou que o mordomo não tinha adivinhado sua intenção. - Senhora, se me permite, — continuou Sórenson sem mover um centímetro — acredito que é melhor que a deixe descansar. Acaba de tomar um chá e se dispunha a dormir um momento antes do jantar. Ouviu-se uma gargalhada que provinha do dormitório do Coraline. Annabel interrogou com o olhar a Sórenson, quem se deu por aludido e respondeu: — Estava lendo um livro quando a deixei, deve ser muito entretido — se desculpou como um tonto e fez um pequeno gesto com as sobrancelhas, algo insignificante em qualquer outro rosto, mas muito chamativo no Sórenson, que sempre era tão estático como se fosse de mármore. O que terminou de alarmar Annabel foi ver escorregar uma pequena gota de suor pela têmpora do mordomo. Ele nunca perdia os nervos, nem suava, nem ria, nem gesticulava com a cara como acabava de fazer, pelo menos não o fazia diante dela. Teve piedade dele. Algo estava acontecendo em sua casa e ia averiguar o que era. De momento, o único importante era saber que sua neta estava bem e, pela risada, parecia ser assim. Deixou que o senhor Sórenson acreditasse que a tinha convencido de que tudo estava bem. Não desejava inquietá-lo mais. Era um mordomo excelente, um bom homem e, como dizia sua amiga, a senhora Hamilton, alegrava-lhe a vista. Deu-lhe as costas para baixar e evitar que visse o rubor em suas bochechas. "Certamente a senhora Hamilton resulta uma má influência", pensou acalorada. Seguiram a descida em escrupuloso silêncio. A senhora Atkinson tinha visita; Sórenson deu graças ao céu por isso. Não lhe agradava absolutamente mentir a uma dama tão encantadora, mas sua travessa neta lhe tinha chegado ao coração desde que a tinha visto pela primeira vez, fazia já uns anos e sentia a necessidade de protegê-la, embora não pensava que fosse capaz de proteger a de suas próprias ideias descabeladas. Sorriu às costas da senhora Atkinson ao pensar na ousadia e determinação da pequena.

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Sem dúvida alguma, características herdadas de sua avó. — Senhor Sórenson, — chamou a senhora Hamilton desde o começo da escada — pôde averiguar o que inquieta a minha querida amiga? Quando o mordomo pisou no último degrau, a senhora Hamilton se aproximou a ele como se fosse sua segunda pele. O homem se esticou, olhou para baixo e viu uns olhinhos azuis, rodeados de rugas, que piscavam em forma constante sobre sua jaqueta negra. Tragou com dificuldade. Seria possível que a senhora Hamilton paquerasse com ele? Ou eram suas imaginações provocadas pelo caos lhe reinava naquela honorável casa? — Senhora Hamilton! — alarmou-se Annabel. Tirou do braço a sus amiga e a levou o mais longe possível do Sórenson. Não podia acreditar o que estava vendo. A mulher estava flertando com seu mordomo em sua própria casa. Não havia dúvidas de que estava chegando o limite de seus dias, porque estava convencida de que isso era quão último tinha que ver em sua vida. Se alguém tinha que flertar com o Sórenson, seria ela; ao fim e ao cabo, era seu mordomo. Mas o que estava pensando? Nenhuma dama respeitável deveria flertar com o serviço, menos a sua idade. Tinha que retirar-se a descansar, estava indo a cabeça. Sórenson observou confundido às duas mulheres, enquanto partiam. Desde sua chegada a Londres, fazia já quinze anos, precaveu-se da rigidez nas condutas sociais que se opunham às paixões que permaneciam ocultas. Essa ocultação se voltava mais forte nas mulheres.

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Capítulo 5 Era um bonito dia, fazia frio, mas o sol brilhava. Ainda não tinham chegado as nuvens que o vento, com seu passo, prometia trazer. Coraline não se importou de ir a pé até a universidade. Sua bicicleta tinha ficado danificada; o senhor Sórenson lhe tinha prometido que esse mesmo dia a levaria para arrumar. Inspirou fundo e encheu os pulmões do ar gélido e reconfortante de fevereiro. Sentia-se feliz. A tarde que tinha passado no pub tinha sido uma das melhores de sua vida. Como a tinha desfrutado! E não só por fazer coisas que para uma mulher eram impensáveis, mas sim porque as tinha compartilhado com David Flint, o homem que mais admirava. Mostrou-se tão agradável: tinham conversado, brincado, rido, inclusive lhe tinha revolto o cabelo como se ela fosse um moço travesso. Tinha umas mãos tão fortes e cheirava tão bem que Coraline se ruborizou, mas, por sorte, ninguém tinha se dado conta. Sabia que todos esses gestos não significavam nada para ele; entretanto, cada vez que ele a olhava ou sorria a Coraline subia um formigamento do ventre à garganta que a deixava com o pulso acelerado. Era uma sacudida emocionante e nova. O pior era que se converteu em uma espécie de viciada nessa sensação. Com cada passo que dava para dentro do campus, o nó que tinha no estômago se fechava ainda mais e isso, por estranho que fosse, gostava. Quando chegou ao Cate Street, a entrada do Hertford College, achou a Tom Flint, que lia apoiado na parede do edifício. Ela não pensava entrar por essa porta, já que o All Souls College estava situado um pouco mais para o norte, no High Street, mas ao vê-lo se deteve para saudá-lo. — Bom dia, Tom, o que lê? —perguntou Coraline, intrigada pelo que retinha a atenção de seu companheiro. — Olá Corl. Um artigo do The Manchester Guardian. —Levantou a vista do periódico — Este C.S. é muito detalhista — disse meditativo. Coraline ficou tensa ao escutar as iniciais — É estranho —continuou Tom. — O que é estranho? — quis saber e tentou parecer despreocupada apesar de ter o coração na garganta. — Seu estilo é correto, mas tem um ar, não sei, diferente. —ficou pensativo — Ora! Já averiguarei o que é. De momento, quão único tenho que fazer é encontrá-lo antes da próxima partida.

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— Como? — exclamou Coraline, esta vez sem dissimular — Quero dizer, para que? — corrigiu-se ao ver a cara de estranheza do Tom. — Meu tio David acredita que nos será de utilidade para a próxima partida contra Irlanda. — Mas como vai ser de utilidade um jornalista? A não ser, claro, que saiba jogar. — Este artigo é da primeira partido da Championship, entre Escócia e Irlanda. — E? — insistiu Coraline, para ver aonde queria chegar. — David quer saber todos os detalhes do jogo que faz cada equipe. — Para que? — Como para que? —Tom elevou a voz e a olhou como se, tivessem-lhe saído escamas — Para ganhar! — esclareceu-lhe, embora pensava que não fazia falta nenhum tipo de explicação. - Mas... — Coraline se deu uma bofetada mental. De momento, não queria descobrir sua identidade como o autor dos artigos, mas tampouco queria parecer idiota, tendo popularidade de efeminado já lhe bastava. Para arrumar a situação, acrescentou — Se tiver lido o artigo, terá dado conta de que não se necessita muita ajuda, do tipo que seja, para ganhar da Irlanda. — Não é somente a Irlanda — afirmou Tom, um pouco mais relaxado. Assustou-se ante a possibilidade de que alguém entendesse tão pouco de futebol — David quer saber tudo, de todas as equipes, em especial de Escócia. Esse homem esteve ali, viu tudo, e o mais seguro é que, pela forma de escrever tem multidão de detalhes que a qualquer outra pessoa lhe escapariam. O que queremos é estabelecer uma estratégia de ataque e defesa, e se conhecêssemos os pontos débeis e fortes dos adversários, seria mais simples. Coraline se mordeu o lábio inferior nervosa, enquanto refletia sobre a possibilidade de delatar-se ou deixá-los que se voltassem loucos procurando-a. Tinha que sopesar os prós e os contra nesse mesmo momento, posto que mais tarde já não seria válida uma declaração voluntária. Era verdade que tinha feito amizade com algum dos jogadores da seleção inglesa, entre eles Tom, mas não podia esquecer que ela era escocesa e seu pai levaria um desgosto tremendo se ganhassem os ingleses, muito mais se se inteirava de que sua garotinha tinha tido algo que ver. Não, não podia dizer nada. Embora, por outro lado, estava ele. Só de pensar em passar mais momentos a seu lado, arrepiou o pelo da nuca. Quis ganhar tempo para pensar um pouco mais, assim perguntou: — Seu tio, o senhor Flint, está muito envolto com a equipe. — Envolto? — repetiu Tom — É sua vida — sentenciou — Tem

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feito do futebol sua paixão, para ele não há nada mais. Exceto os livros, é obvio. Coraline levou a mão ao peito e se arranhou como se a tivesse picado um inseto. De maneira que era tão importante para ele. Recordou a paixão que sentia seu pai por aquele esporte; entretanto, não a incomodou tanto como a que David Flint parecia sentir. Evocou de novo sua imagem, alto e atrativo. Nessas semanas tinha passado de ser um autêntico incômodo para ser um professor atento e risonho. Sim, sorria muito, o sorriso lhe chegava até o olhar, inclusive tinha umas ruguinhas muito pequenas ao redor dos olhos rasgados. Gostava. Outra vez sentiu as cócegas no estômago. As classes se tornaram muito mais relaxadas, aprendia mais rápido, com menos esforço, porque ele fazia que essas horas fossem mágicas. Ouvi-lo falar de cálculo, demografia ou qualquer outra coisa, inclusive de futebol, era uma delícia. Coraline estava ávida por absorver informação, queria aprender mais e mais, mas em especial queria saber dele. Estava muito longínquo aquele primeiro dia. Tinha-lhe parecido um bruto; entretanto, era justamente o contrário. Era amável, simpático e tratava a seus alunos de forma paternal, embora para seu desgosto não eram estas características as que mais a impactavam. Sabia que se tratava de algo superficial, mas tinha que reconhecer que o mais notável era seu aspecto: dizer que ele era arrumado, bonito ou atrativo era insuficiente. David Flint seria o sonho de qualquer mulher. Bonito, forte, amável e inteligente. Tinha visto um David Flint muito diferente de que tinha acreditado ver em um princípio e a mudança a tinha tomado por surpresa. Em um par de semanas, tinha começado a suspirar por ele como uma garota. Às vezes o notava um pouco tenso com ela, mas só durante uns minutos, ao momento voltava para um estado mais relaxado; não obstante, ela sabia que ele fazia um esforço para relaxar-se. Desconhecia a origem dessa tensão, mas não lhe dava muita importância, porque não pensava que fosse ela o motivo. Deu-se conta de que tinha a boca aberta e a fechou de repente. O que devia fazer? Dizer que ela era C.S.? — Tom! — O grito, procedente do outro lado da rua, tirou-a de seus pensamentos. O senhor Flint se aproximava deles com passo enérgico. Coraline se estremeceu muito antes de ver a cara de aborrecimento que tinha. De um golpe, apagou a imagem de um senhor Flint amável e risonho; em seu lugar, voltou a ver o valentão duro e desumano que conheceu o primeiro dia. Assim, nesse mesmo momento, decidiu não

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confessar que ela era C.S. Não era uma ideia sensata que alguém tão ameaçador a crivasse de perguntas, embora fossem de futebol ou em especial porque eram de futebol. Além disso, não podia fazer isso a sua família, por muito bonito que fosse David Flint. No que tinha estado pensando para duvidar? Como podia ter sopesado a ideia de trair dessa maneira a seu pai? Quando David Flint se plantou diante deles, com o cenho fundo de tão franzido, a Coraline faltou a respiração. Era bonito quando estava contente, mas zangado era algo mais que atrativo. Percorreu-a, por debaixo do ventre, um estranho e novo comichão que a deixou agitada. — Onde tinha te metido? — perguntou Flint a seu sobrinho. — Aqui, — respondeu ele, com um encolhimento de ombros — lendo o periódico. — Mostrou-lhe o jornal, mas David o atirou de um tapa, o que fez que Tom se incorporasse e se colocasse tão firme e reto frente a ele como se fora um soldado diante de um comandante. — Deixa de perder o tempo e vá direto ao campo de treinamento — ordenou e assinalou a direção com o dedo indicador se por acaso lhe tinha esquecido. — O que te ocorre? — perguntou Tom, confundido pelo comportamento de seu tio, enquanto recolhia do chão o periódico — Não íamos treinar amanhã? — A partir de agora treinaremos todos os dias. — David tirou um papel do bolso de seu impecável traje e o mostrou. — Bastardos! — cuspiu Tom, de repente tão zangado como seu tio. Atirou o papel ao chão e abandonou o lugar sem nem sequer despedir-se do Coraline. Ela, um pouco alarmada pela aparência que estava tomando a situação, decidiu não fazer nenhum movimento brusco que delatasse sua presença, no caso de terminar como aquele papel enrugado. Não tinha ideia do porquê de todo aquilo, mas o mais prudente era não perguntar e esperar que a deixassem sozinha. David não se foi. Ao princípio não tinha visto o jovem Corl. Ia tão ofuscado com a mente no conteúdo do papel que não via nada mais que a um jogador de sua equipe descansando e conversando com outro aluno. Quando seu sobrinho reagiu tal como ele esperava, foi quando se precaveu do jovem Smith, de sua pequena, quase delicada e imóvel figura. É obvio, não podia ser outro que Corl. Tinha intenção de lhe pedir desculpas por não o saudar de modo correto, mas, quando o olhou aos olhos e comprovou a expressão deslumbrada que luziam, o aborrecimento que levava se converteu em algo muito mais intenso. Tinha pensado que se acabou aquela estranha e incômoda sensação que lhe provocava o menino, mas de repente viu que se equivocou. Somente tinha conseguido dominá-la, não extingui-la. E

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agora estava aí, como um idiota, observando sua boca entreaberta e uns enormes olhos assustados, com as pupilas muito grandes. Odiava-se por precaver-se desses detalhes, mas não podia evitá-lo, via-os, era incontrolável. — Por favor, senhor Smith! — exclamou indignado — Algumas vezes chega a roçar o ridículo. — David derrubou em seu interlocutor a ira que sentia contra si mesmo. — Co... Como diz? — gaguejou desconcertada. Olhou-o, piscou umas quantas vezes e se perguntou o que teria feito algo para provoca-lo dessa maneira. David fez umas caretas com as mãos e assinalou a figura do Coraline. — Estou esperando que, em qualquer momento, saiam-lhe umas asas, com virginais e imaculadas plumas brancas. — Mas o que está você dizendo? — Deu uns passos para trás, porque suspeitou que tinha bebido e era perigoso — Asas? —inquiriu estupefata. — Sim, só lhe faltam umas enormes asas para converter-se em um ridículo querubim — sentenciou grosseiro. Coraline entreabriu o olhar. Com que ele também tinha notado. Ela pensava o mesmo de seu aspecto: apesar das horríveis costeletas que se colocou: sua aparência era a de um formoso querubim. É obvio, alguém tão perspicaz como o senhor Flint se deu conta, mas o que não chegava a entender era por que lhe incomodava tanto. "A não ser...", pensou Coraline, "claro, ele é justamente o contrário!" David era alto e forte, portanto, supôs que os que representavam debilidade, como ela, tiravam-no de seu juízo. Esta dedução não encaixava muito com o que conhecia dele, mas não encontrava outra explicação para as mudanças de humor do professor. Existia uma alternativa, entretanto não queria nem pensá-la e a via pouco remota, porque se ele chegasse a descobrir que era uma mulher, com segurança a denunciaria imediatamente. Coraline se encolheu de ombros, mas não se acovardou. Que culpa tinha ela se não possuía seus músculos? Era injusto e assim o fez saber: — Eu não tenho culpa se não pareço um orangotango como você! — "Coraline te passaste", arreganhou-se — Quero dizer... um antropóide? — Quis arrumá-lo fazendo-a graciosa, mas pela expressão de David comprovou que não o estava fazendo bem. Maldição! Ela somente pretendia indicar que não podia remediar não ser tão atlética como ele, mas lhe tinha saído algo bastante distinto. — Que há dito, senhor Smith? — perguntou David, pertubado pela audácia do jovem . Coraline avermelhou, apertou os lábios com força e repensou durante uns segundos breves, a possibilidade de desculpar-se.

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Entretanto, não pôde fazê-lo. "Nem pensar", disse-se. Dava-lhe igual havê-lo insultado, ele tinha começado. Como se algo se apoderasse de seu corpo, agachou-se veloz, agarrou o papel enrugado do chão e escapou correndo. David pestanejou umas quantas vezes, surpreso pela reação do jovem Smith. Acreditou que ia responder-lhe com seu habitual descaramento, mas tão somente tinha tomado o ditoso papel, origem de seu aborrecimento e se tinha esfumaçado. Viu-o correr enquanto jogava olhadas para trás, se por acaso o alcançava. David não pensava fazer tal coisa. Embora Corl ultrapassou ao chamá-lo orangotango - algo que por outro lado lhe tinha parecido até gracioso - tinha sido ele quem o tinha instigado sem motivo aparente. Se tivesse estado no lugar do jovem, teria disparado o punho, sem lugar a dúvidas. Mas ele sabia que o pequeno Corl não seria capaz de lhe pegar, não por falta de vontades, mas sim por falta de força. Viu como chegava a esquina do edifício e se parava a ler o papel. Escutou a risada do jovem: seu corpo voltou a esticar-se de maneira dolorosa e humilhante. Esse menino lhe caía bem, mas, para sua desgraça, também o confundia. Tinha que fazer algo com ele. Algo que o fizesse menos suave. Ajudá-lo a desenvolver-se de uma vez por todas. Ia converter Corl Smith em um homem, antes de que acabasse com sua prudência. E o ia fazer nesse exato momento. Coraline observou horrorizada que o senhor Flint ficava a correr como um louco, direto para ela. Assustada empreendeu de novo sua fuga. Atravessou a grande velocidade as ruas e deixou atrás os formosos edifícios que compunham a universidade. Passou por debaixo da Ponte dos Suspiros e sem saber muito bem aonde dirigia, e com a única ideia de perder de vista a seu perseguidor, franqueou por uma das portas sem diminuir a corrida, a partir de então, em vez de deixar atrás edificações, ia deixando a seu passo gente atônita e perturbada pelo espetáculo que estava dando. Tinha que sair outra vez fora. Com rapidez se dirigiu para uma porta situada na parte de atrás. Ocorreu que talvez poderia chegar a sua escola através dos pátios interiores. Antes de chegar à porta, olhou outra vez para trás e comprovou que Flint quase estava em cima. Encheu seus pulmões de ar e reatou a corrida. Mas o que tinha feito ela para provocá-lo assim? Não tinha sido por chamá-lo orangotango, posto que não começou a persegui-la até que teve a genial ideia de partir-se de risada para que ele a ouvisse. Poderia haver-se escondido para rir, mas não lhe tinha dado a vontade, em realidade tinha querido desfrutar. Estava tão zangada com ele por estragar tudo daquela maneira tão tola. Não tinha

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pensado nas consequências, só tinha querido humilhá-lo e, quando tinha visto o desenho que continha o papel, não tinha podido conter-se. A caricatura representava uns burros vestidos com as roupas da seleção inglesa de futebol que fugiam apavorados, como ela mesma nesse momento, enquanto uns jovens grandes e fortes, vestidos com a indumentária da seleção escocesa, espancavam-nos para expulsá-los do campo de jogo. Era um bom desenho, não cabia dúvida e tinha dado no alvo, porque o senhor Flint estava enfurecido como nunca antes. De repente, notou as caras perplexas dos poucos estudantes e professores que ficavam no exterior. Não estranhava: deviam estar sofrendo um colapso mental ao ver dois homens correndo como loucos pelo campus. Estavam em uma universidade com multidão de valores morais, entre os que preponderavam o esmero e a retidão. Um lugar onde se apreciava o silêncio e o controle e ela acabava de mandar tudo ao espaço, embora não estava sozinha. Não desejava que nenhum dos presente sofresse uma apoplexia, mas não dependia dela parar a corrida. Sentiu um fôlego detrás e, sem pensá-lo duas vezes, saltou uma grade que lhe chegava pela coxa. Não se deu conta do que tinha feito até que escutou os gritos de alguns companheiros que lhe advertiam que desse marcha atrás. Não obstante, retroceder era impensável. Era a primeira vez, do começo de sua aventura, que tinha medo de verdade. E tudo por um absurdo papel. Ao recordá-lo, lhe deu vontade de rir de novo, mas se conteve quando ouviu o grito de alguém que lhe ordenava que saísse imediatamente de onde estava. Olhou ao seu redor confundida, baixou a vista e sentiu que seus pés esmagavam uma grama simétrica e bem cuidada. Então, reparou nos edifícios que a flanqueavam. Assustou-se. Rezou para que não fosse certo. Não era possível que entrou no Pátio Antigo, mas sim, não podia ser outro. Era o único pátio que tinha grama no meio, e era o edifício onde se localizava a residência do reitor, a capela, a biblioteca e alojava à maioria dos professores, entre eles David Flint. Mas a desgraça não terminava aí: era fevereiro, um mês que correspondia ao trimestre Hilary. O curso se dividia entre três trimestres: Michaelmas, Hilary e Trinity. Durante os dois primeiros destes trimestres, Michaelmas e Hilary, os alunos eram proibidos de pisar nessa grama, enquanto que um professor podia pisá-lo em qualquer época do ano. Coraline bufou e renegou por todas as malditas normas que alagavam sua vida, tanto se era mulher como homem. "É tola", insultou-se. Depois de passar a Ponte dos Suspiros poderia ter entrado no edifico da esquerda, no Pátio Novo, que

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albergava as habitações dos estudantes. Era verdade que tampouco podia permanecer nesse, já que estava destinado aos estudantes maiores que cursavam o quarto ano, mas poderia ter seguido correndo até chegar ao Pátio Holywell, que correspondia aos estudantes de primeiro ano. Ao ser consciente de onde se encontrava, acelerou o passo e saltou de novo a grade. Comprovou com assombro as expressões de alívio de alguns espectadores. Tinha que conseguir chegar ao Pátio Holywell, onde se esconderia até ver o momento de sair sem perigo. Logo retornaria a casa para encerrar-se durante as próximas semanas até que se esquecessem do incidente; se não, teria que assumir as consequências. Como odiava a David Flint por pô-la nessa situação! Sua raiva se evaporou no momento em que se viu elevada uns centímetros do chão. Davd Flint a tinha pego pelo pescoço da jaqueta e a tinha subido sem esforço. Sujeitava-a como se fosse um cachorrinho e a mantinha afastada de seu corpo como se cheirasse mal. Que revoltante! Esperneou, soltou murros no ar para tentar escapar, mas só conseguiu que lhe caíssem os óculos. Flint era muito mais forte, não tinha nada que fazer. Rendeu-se. Quando deixou de lutar, David a depositou no chão sem soltar a jaqueta, se por acaso voltasse a escapar. — fedelho insolente! — acusou David. — Eu? — exclamou ela com voz entrecortada pela corrida. Recuperou o ar e perguntou — Pode me dizer que lhe tenho feito para provocá-lo assim? — O que tem feito? — repetiu ele, enquanto procurava uma resposta coerente. Não a tinha, porque ele tampouco sabia por que aquele pequeno o incitava daquela maneira, quão único sabia era que tinha que fazer algo para evitá-lo – Te riste — disse ao fim. — É obvio que me ri — admitiu sem um pingo de culpabilidade e com meio sorriso — É muito engraçado — afirmou e lhe devolveu o papel. David lhe arrancou o ditoso papel da mão e viu que o moço lutava por conter a vontade de rir as gargalhadas. Tinha encontrado a nota cravada na tábua de madeira do campo de treinamento. Era uma provocação e uma ameaça em toda regra, sabia à perfeição quem era o causador: J.C. Miller. Aquele bastardo escocês o tinha jurado desde que o tinha vencido no ano anterior. Por isso tinha ido feito uma fúria a procurar os membros de sua equipe, com a intenção de reuni-los a todos e treinar ao máximo das forças. Se tinha um objetivo na vida era vencer a esse sujo escocês, mais ainda depois dessa afronta.

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O desenho o tinha enfurecido, uma sensação que podia canalizar no treinamento, mas aquele jovem lhe produzia uma sacudida em todo seu mundo e isso não podia tolerá-lo por mais tempo. Sem pensá-lo duas vezes, disse: — É rápido, moço. — Se acariciou o queixo e o estudou com atenção — Parabéns. — antes de que o menino pudesse falar, aproveitou sua estado de confusão — Acaba de formar parte da seleção inglesa de futebol.

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Capítulo 6 "Impossível, é do todo impossível" repetia-se uma e outra vez Coraline enquanto caminhava atrás do senhor Flint a tropicões. Assim que chegou ao campo de treinamento, lhe caiu a alma aos pés. Aquilo era um lamaçal, um caos, um lugar para dar rédea solta à brutalidade. Um pântano onde se derrubavam porcos. Nesse caso, eram dez homens que brigavam por uma bola e para consegui-la se iam de empurrões e golpes, sem nenhum tipo de vergonha ou dissimulação, temperados com uma grande quantidade de palavrões. Ela não podia meter-se aí no meio. No melhor dos casos, matariam-na e no pior, alguém a descobriria. Podia acabar com a roupa rasgada ou as costeletas quebradas, ou alguém poderia dar-se conta de que levava bandagem para esconder os seios. Coraline se enjoou ante este último pensamento. Não podia fazer o que o senhor Flint pretendia, ela não podia jogar futebol. Para ser sincera podia, porque conhecia a perfeição o jogo, que consistia em chutar a bola até o arco contrário e tentar colocá-la, mas, para isso, terei que esquivar a defensores, meio campistas e um goleiro que parecia um muro de tijolos. Nunca poderia fazer entre homens. Isso estava fora de toda discussão. O senhor Flint não conseguiria obrigá-la. David se esqueceu durante um momento de seu pequeno acompanhante e observou com orgulho a seus moços. Lutavam com arrojo, como se estivessem disputando uma partida oficial, em vez de estar em um simples treinamento. Não tinha podido reunir a toda a equipe completa, era difícil pelas distintas e variadas procedências, em especial porque alguns pertenciam a Cambridge. Entretanto, já tinha mandado aviso e solicitada permissão para que os estudantes pertencentes à seleção inglesa pudessem viajar de volta de Oxford, com o fim de preparar a seguinte partida que se disputaria o próximo 23 de fevereiro, contra a Irlanda. Antes, em 9 de fevereiro, enfrentariam-se Gales e Irlanda e, embora não teria por que assistir, já tinha planejado com seu sobrinho continuar ao Racecourse Ground, no Wrexham, e tentar, com um pouco de sorte, pescar ao tal C.S. Tinha pensado lhe fazer uma boa oferta para que trabalhasse para eles, além de seu periódico. Coraline observava a matança com o olhar horrorizado sem dar crédito ao que via. Havia visto numerosos jogos de futebol, mas nenhum tão sanguinário como esse treinamento. Escondeu a cara entre as mãos, quando Percy recebeu uma cotovelada que o fez sangrar.

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— Meu deus! Que barbárie é esta? — Como era lógico, não obteve resposta, então levantou a vista para David e o viu sorrir satisfeito — Está você louco? — Assinalou a Percy, que se deteve um momento para comprovar se tinha quebrado o nariz — Tem que tirá-lo daí — acrescentou, perplexa porque alguém necessitava mais desculpa para parar o jogo. David a olhou confundido, sem entender do que tagarelava o jovem. — De que fala? — Acaso não viu o que ocorreu a Percy? Tem que terminar o treinamento imediatamente. — Por um arranhão? — Olhou-a estranhando — Não se pode deter o jogo por uma tolice. — Tolice? — Elevou as mãos em vez da voz — Mas há quebrado o nariz! — Vai desmaiar? — Coraline piscou e não chegou a responder — Se pôs um pouco verde — continuou David — Te enjoa a visão do sangue? Coraline quis dizer que não, mas pensou melhor. — Sim, — confessou e se levou a mão ao ventre — é uma coisa estranha que me acontece desde pequeno, quando vejo uma gota de sangue me desmaio. — Gesticulou como se fora a passar nesse mesmo momento. David fez ameaça de sustentá-lo se por acaso caía, mas, quando deu um passo para diante, o aroma de coco que desprendia o moço o assaltou e lhe alagou as fossas nasais, sua irritação ressuscitou. Agarrou-o pelo braço com tanta força que ela deixou escapar um gemido, mas David não afrouxou. Começou a caminhar para o campo de treinamento mais decidido que nunca. A Coraline lhe contraiu o estômago de medo. Deixou de caminhar com a esperança de que ele a imitasse, mas David nem sequer notou a resistência que punha. Atirava dela como se fosse uma folha pega a seu sapato. Ia morrer e o pior era que parecia que ia doer muitíssimo. Ocorreu-lhe que, se desmaiasse com a desculpa do sangue, não poderia obrigá-la a jogar. Assim que desabou, deixou seu corpo mole, mas como já tinha deixado de caminhar, ele continuou sem notar seu peso morto, em consequência foi arrastada pelo barro como se fosse um farrapo. David não percebeu que levava de arrasto a seu acompanhante, o que notou foi que algo lhe golpeava a panturrilha e quando jogou uma olhada para trás teve que baixar a vista bastante, mais do que era habitual quando falava com o jovem Smith. A cabeça do moço era o que chocava contra sua perna e ele era tão bruto que não se deu conta de que o pobre desmaiou. O menino lhe tinha

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avisado que se enjoava com o sangue, mas ele não tinha querido escutar. Deteve-se de maneira tão abrupta que a cabeça de Coraline colidiu com sua perna pela última vez. Agachou-se para comprovar seu estado; ela permaneceu tombada no chão, impávida ante a exploração de suas mãos, enquanto, por dentro, rezava para que não notasse nada. Deu-lhe uns golpezinhos na cara, mas ela interpretou à perfeição seu papel e não despertou. — Senhor Smith — insistiu David preocupado. Nada, seguia inconsciente. Voltou a lhe esbofetear a cara. Ouviu-se um doloroso alarido do campo que fez que apartasse a vista do moço. Viu que Henry se dobrava de dor sobre a terra agarrando a perna esquerda. Isso conseguiu monopolizar toda sua atenção. Henry era um estupendo goleador com essa perna; David era capaz de matar a qualquer um que o maltratasse. Não era que Percy lhe importasse menos, tão somente o tinham golpeado em outro lugar. — Pode-se saber a que é este jogo? — aproximou-se deles desafiante. — Futebol, senhor — responderam todos em uníssono. Coraline ficou boquiaberta por ouvir aquilo. Pareceu-lhe estar no exército, em vez de na universidade. Já lhe tinha estranhado o comportamento de Tom Flint, quando se tinha enfrentado a seu tio, mas que uma equipe estivesse treinada até para responder escapava de toda lógica e não concordava com o estudioso David Flint. Onde estava seu professor doce e risonho? Tinha sido engolido por um homem horrível, um doente, um obcecado pelo futebol. — Não, não jogam futebol — sentenciou severo — Estão jogando rugby e faz muitos anos que deixou de ser o mesmo jogo. —Deu outro passo para diante — Se querem golpear algo, façam-no entre as pernas, não nelas. —Tomou ar e se ergueu— Alguém sabe um pouco de futebol? — Sim, senhor! — ouviram-se suas vozes conjuntas. Ao escutar de novo isso, Coraline se incorporou e comprovou com os olhos o que suspeitava. Todos estavam em fila, firmes e com as mãos nas costas, espectadores sob o olhar escrutinador do líder. Acaso este homem se tomava um simples jogo como se fora de vida ou morte, tão a sério para ter um exército treinado, disposto a executar em vez de jogar? — James. — situou-se diante do James Ward, um dos melhores defensores procedente da equipe inglês Blackburn Olympic — Quais são as regras pelas que nos regemos? — inquiriu aos gritos, desafiando-o a que lhe respondesse. — Senhor, regra Sheffield, senhor. David assentiu e seguiu o reconhecimento de sua artilharia,

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até que chegou a Henry Moore, o jovem que tinha recebido o golpe na perna, outro bom jogador procedente do Notts County. — Como vai, senhor Moore? — Bem, senhor! — exclamou em voz alta Henry. — Seguro? — David deixou de lado o sargento que levava dentro e se preocupou, de coração, por seu companheiro de equipe — Me pesaria não contar contigo em algum partido, mas o principal é sua saúde — afirmou em um tom muito mais sereno, inclusive doce. — Estou bem, David — assegurou Henry. Coraline olhou maravilhada como esses dois homens, tão grandes e rudes, sorriam-se com os olhos, quase com carinho e ao segundo seguinte foi testemunha da mudança que se produziu no David Flint quando voltou a estar possuído pelo espírito do Wellington. — O próximo que golpeie por debaixo da entreperna, se verá comigo. Entendido? — Senhor, sim, senhor. Sem prévio aviso, girou para Coraline e tomou por surpresa, posto que ela esperava que continuasse com sua diatribe. Estava meio incorporada quando viu como se dava volta para ela. Deixou-se cair de novo como um morto, tão rápida como foi capaz. Não foi suficiente. Ao princípio, David não se deu conta do embuste, mas, enquanto lecionava a seus moços, tinha visto pela extremidade do olho que algo se movia detrás dele. O pequeno patife os estava observando e, antes de lhe dar tempo a seguir com o teatro, quis surpreendê-lo flagrante, mas aquele sem vergonha persistia no engano. O muito mentiroso não se enjoou pelo sangue. “Melhor” pensou David, "assim quando receber seu primeiro golpe não desmaiará como uma menina". Com grande rapidez chegou até ela, agarrou-a pela cintura da calça e a levantou como se fosse uma pluma. Em seguida, ela tentou ficar reta, sem fazer movimentos muito bruscos, para guardar a dignidade que ficava e para evitar que, se David baixasse a mão, se desse conta de que lhe faltava algo importante no corpo. Aguentou de pé quanto pôde, mas, em um momento, viu-se estirada no chão e quando se deu a volta para apoiar-se nas mãos e levantar-se, nada mais fez um indício, escutou um grito: — Cuidado! Coraline viu o esférico voando para ela: um bonito balão de umas vinte e oito polegadas de circunferência, feito de velho couro marrom, costurado com cordas bem robustas, duro como uma pedra e que devia pesar umas quinze gramas, que se aproximava dela a uma velocidade que calculou mal, porque antes de que pudesse esquivá-la, a bola se estrelou em sua preciosa carinha de anjo. Foi

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então, e não antes, quando sua cara se desabou sobre o barro. David se assustou. O lançamento tinha feito Clement Mitchell, atacante, que vinha da equipe inglês Upton Park e possuía uma habilidade especial para marcar. Por desgraça, esse dia parecia que andava um pouco errado no tiro. Tinha que lhe haver doído bastante. agachou-se, outra vez, para ver como se encontrava o jovem Smith. Sentiu um pouco de lástima pelo menino. Não tinha imaginado que o dia fosse desenvolver-se dessa maneira, mas o fazia por seu bem, justificou-se David. Agarrou-o pelo cabelo e lhe levantou a cabeça sem delicadeza. Viu com satisfação que tinha toda a cara manchada, assim não se apreciavam suas finas feições, nem sua pele suave. Era a primeira vez que tinha aspecto de homem, melhor dizendo de moço: para ser um homem, fazia-lhe falta muito mais e nisso estavam. — Vai deixar de esconder-se de uma vez? — perguntou David, com uma nota de humor na voz. — É uma brincadeira? — Cuspiu um pouco de barro que lhe tinha entrado na boca — Me acabam de agredir, não estava me escondendo — se defendeu. — Receber uma bolada não se considera agressão. — Deixou de lhe sujeitar a cabeça— Não, se for um jogador de futebol. — Mas eu não sou jogador. — ficou de pé e se sacudiu, sem resultado, o barro que a cobria da cabeça aos pés. — Equivoca-se, senhor Smith, você agora forma parte da seleção inglesa. — Abriu os braços e a convidou a pisar pela primeira vez no campo. Coraline olhou aos jogadores. Tinham detido o jogo depois da bolada, interessados em seu estado, mas ao comprovar que estava bem, relaxaram-se enquanto esperavam para ver o que fazia, se entrava no jogo ou não. — Não pode me obrigar a jogar — disse cética. — Não, mas posso fazer que sua estadia em Oxford seja algo mais difícil. — David não se sentia orgulhoso por seu comportamento; entretanto, não pôde controlar o impulso de amedrontar ao jovem. — Não se atreverá — sussurrou. Como tinha chegado a complicar-se tanto a vida? Ela não fazia nada excepcional para chamar a atenção. Tinha sido tonta ao acreditar que podia ser um mais. Não deveria ter tentado fazer amigos, teria que ter centrado nas classes. Ir à classe e voltar para casa sem mais. Não tinha que fazer amigos e muito menos tentar estreitar relação com um professor como ele. Olhou ao redor, observou a cara dos jogadores atentos, alguns como Tom inclusive preocupado. Sentiu uma pequena sacudida de carinho, posto que, em umas semanas, familiarizou-se com quase todos eles. E a maioria a tinham acolhido como a um mais.

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"Está bem", disse-se Coraline, "quanto antes acabe com isto, antes poderei ir a casa". Além disso, não fazia graça ficar como um covarde diante dos que tinha começado a chamar de amigos. Havia visto muitas vezes jogar futebol, seu pai e seus primos jogavam todas as horas. Tinha que dar chutes à bola até chegar ao arco contrário e tentar colocar um gol. Resignada e sem saída, deu um passo para diante. — Tio David — interveio Tom em voz baixa e se aproximou onde estavam eles — Não acredito que seja boa ideia. David olhou a seu sobrinho. Tinha-o chamado "tio". Tom nunca o chamava assim quando estavam em Oxford, somente o fazia quando precisava chamar a atenção e sempre em voz baixa, para que não o ouvisse ninguém. Embora todos sabiam que eram família, gostavam de guardar as distâncias na universidade, principalmente pelo Tom, para que sua relação com outros alunos fosse mais fluída, e o tinham obtido. Tom tinha feito um lugar em Oxford por si mesmo, não por seu tio. A primeira vez que o tinha chamado "tio" tinha sido logo que tinha ingressado em Oxford. Tom se tinha visto rodeado por um grupo de jovens que lhe estava dando-lhe uma surra por ser novo e haver-se negado a participar de uma de suas brincadeiras pesadas. Quando David os surpreendeu encurralando a seu sobrinho, mandou as normas a passeio e ficou dando murros a mão direita e esquerda. Tom, surpreso pela ferocidade que mostrava David, a princípio não pôde articular palavras. Apesar de ter acordado entre os dois não chamar-se "tio" ou "sobrinho", Tom entendeu que nesse momento necessitava algo que devolvesse a David à realidade, que visse que seu querido sobrinho estava bem e se bastava por si só, assim deu um passo para ele, pôs uma mão no ombro e o chamou "tio", com uma voz que refletia toda a gratidão e a confiança que tinha nele. David se deteve um momento, assim que viu que Tom estava em perfeito estado e, sem mais, desapareceu dali deixando-o solucionar seus problemas, algo que Tom fez muito bem. Desde aquele primeiro incidente Tom só tinha usado os laços familiares para que seu tio David entrasse em razão, em especial quando se disputava alguma partida. Era o único que o fazia perder a cabeça, até esse momento. David Flint parecia absorto de tudo exceto daquele pequeno moço a quem Tom acreditava que tratava com muita dureza. Corl não queria jogar e ele não pensava que pudesse fazê-lo: parecia frágil, mas seu novo companheiro o surpreendeu. — Não se preocupe, Tom — o interrompeu Coraline — Vou jogar. — Entrou no campo de jogo — Prepararem-se, porque vou chutar algumas bundas. — jogou-se o cabelo para trás que ficou mais preso pelo barro que pelo fixador.

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Todos estalaram em gargalhadas, incluído David, ante a audácia do jovem. E com essa simples frase, ganhou ao resto da equipe. Coraline lhes devolveu o sorriso. — Em que posição quer que jogue, senhor Flint? — perguntou desafiante. — Não pensei. — tocou-se o queixo, elevou uma sobrancelha e a comissura esquerda de sua boca subiu de maneira provocadora, o que a Coraline fizesse cócegas ao estômago — Pode ser na defesa. — David, o mataremos — advertiu Norman Bailey, meio defensivo — seu corpo não aguentará os ataques. — Sim, pode que tenha razão — conveio David. — Lateral, — disse ela — serei um bom lateral. — Não sabia se seria boa, mas era o mais seguro para ela. Para ocupar essa posição teria que correr rápido, coisa que sabia fazer e, dessa maneira, não estaria entre os defensores, que eram os que recebiam mais golpes ou os atacantes, que se enfrentavam de maneira direta aos defensores. — Não sei... — disse David. Coraline soprou exasperada. — Jogarei de lateral ou não jogarei — ameaçou ela, porque pensou que já tinha aceitado o bastante. David admirou sua coragem e decisão. Havia boa matéria para convertê-lo em todo um homem, por desgraça seu físico não o acompanhava. — Está bem, joguemos então. David se tirou a gravata e a jaqueta, arregaçou a camisa e depois fez o mesmo com as pernas das calças até que as teve subidas pelas panturrilhas. Coraline suspirou. Sem jaqueta e arregaçado, podia admirá-lo muito melhor, sabia que ele jogava, mas não acreditou que fosse fazer esse dia, com ela presente. Notou o olhar estranho de seus companheiros, mas não se deu conta do que observavam até que Percy lhe fez um gesto para que se tirasse a jaqueta. Tinha que tirar. Em realidade deveriam trocar-se e ficar com o traje que levavam outros, mas nem David lhe daria tempo e tampouco encontraria nada de seu tamanho. Com todo seu pesar e com um nó na garganta se tirou a jaqueta que pesava mais do normal. Com aliviou viu que sua camisa estava tão manchada como o resto da roupa, ao menos a parte dianteira da camisa, a que mais lhe importava, porque as mangas estavam ainda brancas, embora não fossem durar assim muito tempo. Não pensava arregaçar, para correr não fazia falta mostrar seus delicados braços. Colocaram-se todos em suas posições e Coraline se foi ao lugar que lhe indicou Tom. Fizeram duas equipes, ela jogava na de Tom e David no

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contrário, algo do que se alegrou Coraline: se chegavam a marcar seria uma pequena satisfação. Alguém gritou, a bola começou a rodar. E Coraline a possuiu um novo espírito.

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Capítulo 7 Percy e Tom a levavam meio penduranda, cada um de um braço. Ambos os companheiros estavam assombrados de sua resistência e do jogo, como que tinha lutado pelo balão. Pensavam que era uma lástima que tivesse acabado assim. — Cre que se recuperará logo? — perguntou Percy a Tom. — Não sei — admitiu Tom, cabisbaixo— David não deveria havê-lo obrigado a jogar, ou pelo menos não conosco. Teria que jogar com crianças, Corl ainda não se desenvolveu o suficiente para fazer frente a homens como nós. — Elevou-a um pouco mais da cintura porque lhe estava escorrendo — Deveria ter esperado um ano ou dois para colocá-lo na equipe. Não entendo sua pressa. Ele nunca atua de maneira tão impulsiva. — ficou pensativo — E mais, por isso pude ver, Corl nem sequer queria jogar, ele é mais do tipo intelectual. — Isso é uma tolice. — afirmou Percy — Um homem pode ser igual de bom com os livros que com o esporte. Tem o exemplo em casa, seu tio David sente a mesma paixão por ambos. — Sim, mas não é o normal. O habitual é que te incline por algo. David não saberia viver sem nenhuma dessas duas coisas. — E nós? Todos estudamos e jogamos. — Sim, mas sabemos que nosso futuro está nos livros. —assegurou Tom — Se nos dessem a escolher, a maioria de nós ficaria com os livros. — A maioria, não todos — disse Percy e olhou a cabeça que pendurava em meio dos dois. — Pobrezinho. Corl sem dúvida escolheria os livros. O seu não é o futebol. Ouviram um gemido de queixa e riram. — Está bem, moço — conveio Tom que soube por que se queixava Coraline — não é um ás do futebol, mas tem guelra, isso não vai lhe tirar ninguém. — Não, certamente, não são todos os dias que se deixa dobrado de dor ao Herby. — Herby Arthur era goleiro titular da seleção inglesa. Depois de ter defendido equipes menores no condado do Lancashire, tinha chegado ao Blackburn Rovers e daí à seleção. Era um homem imponente, sua presença bastava para intimidar ao dianteiro. E Coraline o tinha deixado derrotado no campo. — Sim, — afirmou Tom — pensei que lhe ia incendiar o bigode de um momento a outro. — começou-se a rir - Ficou tão vermelho... — Mas se até ficou sem fala — terminou Percy por ele. Os dois riram a gargalhadas ao recordar como Corl tinha

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golpeado, com sua própria cabeça, a entreperna do goleiro. Coraline ia por sua lateral correndo como um galgo e escapando de todos os jogadores contrários. Quando esteve perto do arco, recebeu um passe de James. Assim que viu que tinha a bola entre os pés, entusiasmou-se, mas não contava com que David correria para ela como se fosse a enrolá-la. A ponto de atirar, já frente ao arco, Coraline se precaveu de um movimento por seu lado direito. Teve reflexos suficientes para passar a bola a Tom, que viu aparecer detrás de David, adiantando-se a sua posição. O senhor Flint lhe pôs a rasteira e lhe deu um ligeiro empurrão, ao menos a Coraline tinha parecido um empurrão bastante suave, comparado com os que se golpeava o resto da equipe. Terminou no chão, como esperava, sentada no barro e justo diante do Herby e seu bigode. Sem pensar nada, aproveitou o momento para lhe dar vantagem a sua equipe. Levou a cabeça para trás e, tal como tinha ordenado o senhor Flint, golpeou com todas suas forças por cima das pernas. Herby recebeu a cabaçada de Coraline justo na entreperna. Agarrou-se com força a zona golpeada e caiu de joelhos ao mesmo tempo que, com a outra mão, deu de presente a Coraline um murro no olho. Não obstante, conseguiram marcar. Ficou aturdida pelo murro, mas mais ainda pela reação do senhor Flint. David caiu em cima de Herby e lhe partiu o lábio sem que lhe tremesse a mão. — A próxima vez que o golpeie assim, te matarei — sussurrou David a Herby enquanto o mantinha obstinado pelo pescoço. — Deu-me em todo meu orgulho. — se defendeu Herby ainda retorcido de dor — Se não queria que se machucasse não o tivesse obrigado a jogar. Se for pertencer à equipe, algo que não vejo claro, deverá fortalecer-se — asseverou, enquanto ficava em pé. David lhe ofereceu a mão para ajudá-lo a incorporar-se, a modo de desculpa. — Foi você quem o atirou primeiro — o acusou Tom, que não entendia as incoerências de seu tio. — Medi minha força contra ele. —Tinha-o feito para evitar que se enfrentasse a Herby, entretanto não tinha servido para nada porque o menino tinha decidido atuar por sua conta — É a metade que qualquer um de nós — explicou o óbvio. — Mas outras equipes não terão isso em conta. Embora nós tomemos cuidado de não golpeá-lo muito forte, outros não andarão com delicadezas. — Olhe, David, o menino poderia jogar bem, é rápido e hábil, mas não podemos tratá-lo como se fosse de porcelana — interveio Herby com a voz recuperada — Se decidir que jogue o aceitaremos como a qualquer outro, se não, é melhor que se esqueça de seu capricho.

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— Não é meu capricho — disse David com os dentes apertados e se conteve de lhe pegar de novo. Herby lhe caía bem, mas acabava de transpassar um limite. Ele não tinha caprichos respeito a outros homens. — Está bem — mediu Percy— Senhor Flint, acredito que deveríamos nos esquecer de que Corl pertença à equipe. — Assinalou o montículo de barro que formava o corpo do Coraline. David sorriu com um pingo de pesar. O menino tinha jogado bem, com valor. Não tinha imaginado que fosse hábil; com seu aspecto tinha imaginado a um jovem torpe e assustadiço, mas tinha encontrado algo muito distinto, algo que podia admirar, embora, de momento, o que lhe inspirava era lástima. Quão único ficava do pobre senhor Smith era um montão de barro, arroxeado e dolorido. Isso sim, graças a seu passe, tinha conseguido um gol para os seus . Era uma pena que não pudesse estar na equipe, mas não podia ser. Já era bastante ruim sofrê-lo em classe, se o metia na equipe estaria muito preocupado por sua segurança para desfrutar, ele mesmo, do jogo. Teria que eliminar de outra maneira essa estranha sensação de comichão que lhe provocava o jovem, convertê-lo em um homem através do futebol ficava descartado. Possivelmente outro esporte, como o golfe ou algum outro que não implicasse choque de corpos, nem que fosse um risco para o menino. — Percy, Tom, que chegue a sua casa. David deu a ordem sem voltar a olhar a Corl. O que desejava em realidade era ir e comprovar que estava bem, mas devia lutar com o embaraçoso impulso de protegê-lo. Uma necessidade que não sabia de onde tinha aparecido, nem por que.

*** Coraline resmungou outra vez ao sair da inconsciência, embora tivesse preferido voltar a perder o conhecimento assim que sentiu a dor aguda no olho e na cabeça. Nunca na vida se havia sentido tão mal, nem quando tinha estado com febre se havia sentido tão dolorida. Ia enganchada de dois homens, seus braços passavam pelos pescoços do Tom e Percy, sua cabeça pendurava entretanto e não era capaz de levantá-la para ver aonde se dirigiam. Sentia o corpo inteiro machucado, doíam-lhe os pulmões pelo que tinha tido que correr, estava cheia de barro e com um olho arroxeado. E tudo porque riu do senhor Flint, um inglês rancoroso e mal nascido, embora bonito. Cada vez entendia mais a seu pai. — Tom. — Tentou olhá-lo, mas sentia o peso da pálpebra e a pressão da cabeça — Onde me leva? — conseguiu perguntar.

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— A sua casa. — O quê? — inquiriu Coraline, com um fio de voz — Não, não posso chegar assim — confessou angustiada ante a possibilidade de que a visse sua avó em semelhante estado. Poderia lhe dar uma síncope ali mesmo, por não mencionar as altas probabilidades de que a descobrissem. —Não se preocupe; nós explicaremos a sua família que foi jogando futebol — a tranqüilizou Tom — Como certo, de maneira muito honrosa. — Não — negou Coraline com as poucas forças que ficavam — Não posso. — Tentou resistir e escapar deles, que nem o notaram, assim que se deixou levar, mas balbuciou — Por favor, vamos pela porta de atrás, terá que perguntar pelo senhor Sórenson. — O que acontece Smith, sua mami não suportará ver essa linda cara arroxeada? — burlou-se Percy, sem malícia. Tom sorriu. — Não vivo com minha mãe — disse Coraline molesta pela mofa — Vivo com minha avó e é um tanto reticente aos escândalos. — Escândalos? — perguntou surpreso Tom — Sua avó considera um escândalo que chegue um pouco arroxeado? — quis saber, surpreso pela possibilidade. — Ficaria aniquilado pelas coisas que minha avó considera escandalosas — confessou Coraline — O outro dia me estatelei com um poste e o senhor Sórenson teve que me encobrir para que a pobre mulher não se desmaiasse e não me caísse uma boa reprimenda. Os dois voltaram a rir. — Vá! — prorrompeu Tom — Se sua avó conhecesse minha família, com segurança deixaria de pensar que essas coisas estúpidas são escandalosas. — Seriamente? — quis saber ela intrigada — São muito...? —Não soube que palavra estava procurando. Dos Flint que conhecia, tanto David como Tom, eram dois homens honoráveis e respeitados, mas era certo que não conhecia nem suas origens, nem sua história. — Não te assuste, pequeno. — Rio Tom — Somos boa gente — afirmou com orgulho ao recordar a sua numerosa família. — Sim —assegurou Percy — Os Flint são uma família maravilhosa. São incomuns, mas todos e cada um deles são extraordinários. Tom olhou a seu amigo com gratidão e carinho por essas palavras que guardavam tanta verdade. Sua família era única e especial, sobre tudo seus pais, Matthew e Betsy Flint, que o tinham acolhido a ele e a outros quatro meninos da rua como se fossem filhos naturais e tinham formado uma família mais que numerosa. Sua mãe estava grávida de seu quinto filho, portanto já seriam dez irmãos: cinco nascidos e cinco dados de presente por Deus, como dizia ela. Também estava sua tia Connie, a viscondessa de Torrington, casada com o visconde Benjamin Lodge, um homem admirável e apaixonado

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por sua esposa de uma forma que seu amigo Corl denominaria como escandalosa. Sua tia Connie estava por sua sexta gravidez e, contra toda norma social, encerrava-se no campo onde viviam quase todo o ano, muito perto de seu irmão mais velho Matthew e sua querida amiga Betsy. Entre todos eles voltavam loucos de preocupação a um casal de avós, Martha e John, quem tampouco tinha laços sanguíneos, mas pertenciam à família desde antes que os mesmos Flint e não deixavam de ir de um lado a outro, arrumando as ofensas que se produziam de maneira constante na família. É obvio, estava seu tio, David Flint, um referente em sua vida depois de seu pai, ao que queria mais como um irmão que como a um tio, já que a diferença de idade era pequena (apenas oito anos) e com o que compartilhava muitas coisas. Entre todos, tinham formado uma das famílias mais peculiares e invejáveis da sociedade inglesa. Coraline ficou com vontade de perguntar mais sobre os Flint. Sem propor o sentia uma curiosidade imprópria por eles, em concreto por um alto, moreno e cruel. — Você também é um tipo diferente, Corl, — assegurou Percy e tirou Coraline de seus pensamentos — mas me cai bem. Ela tentou sorrir, mas ao mover qualquer músculo da cara o olho lhe ardia, assim deixou cair a cabeça outra vez. — Certamente, é quase tão peculiar como nós — disse Tom — Não compreendo por que meu tio te tem tanta antipatia. — Apertou-lhe a mão que pendurava ao lado de sua cara em sinal de apoio — Ele, melhor que ninguém, deveria te compreender. — Fez um gesto de recriminação com a boca — Já entrará em razão, Corl, lhe dê tempo. Coraline suspirou. Assim que todo mundo tinha notado o rechaço que lhe provocava. "É vergonhoso", pensou ela. Não obstante, obrigou-se a não desmoralizar-se por isso. Não era sua culpa cair mal a alguém e não podia lhe parecer simpática a todo mundo. "Assim, que faça você o seu lugar", animou-se a si mesmo. O que lhe resultava patético era suspirar por um homem que a detestava e que tinha estado a ponto de matá-la por obrigá-la a jogar com aqueles homens grandes. Coraline deixou de pensar em algo que não podia solucionar, se centrou em seu maior problema nesse momento. Tinha inconvenientes mais sérios, como evitar a uma avó histérica e chegar a sua habitação antes de que avisassem a seu pai de que algum pestilento inglês tinha atacado a sua garotinha. "Meu Deus!", disse-se Coraline, "meu pai seria capaz de proclamar guerra à Inglaterra se se inteirasse disto". Chegaram à porta de trás graças às indicações de Coraline que, com a preocupação que tinha, não pôde apreciar as palavras de

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admiração que lhe davam de presente seus amigos sobre a residência de sua avó. Era uma casa muito bonita de três pisos, mais a planta inferior que era pela que se acessava à cozinha e às habitações de serviço, construída com grandes blocos de pedra branca e telhado de piçarra negra. A porta principal era feita de madeira nobre escura, tinha aldravas de cabeça de leão e um trinco, todas as peças banhadas em ouro e, para acessar a ela, teria que subir três degraus do mesmo mármore branco que as colunas que presidiam a entrada. A cada lado da porta havia duas grandes janelas. Os pisos superiores também tinham janelas, mas um pouco mais pequenas que as da planta baixa. A porta traseira pela que tinham que entrar era estreita, estava ao final de uma escada descendente também estreita, com um cristal quadrado no centro, separado do interior com uma cortina para evitar as olhadas curiosas. — Segure-o você — indicou Tom — Não cabemos por aí os três. — Eu posso ir sozinho — disse Coraline. — Sozinho? — interveio Percy e carregou todo o peso do Coraline sobre seu quadril — Te deixaste algo mais no campo de jogo? — brincou. — Quero dizer, — balbuciou ela nervosa — que eu posso entrar sozinho pela porta. — separou-se de Percy para apoiar-se no corrimão de ferro — Não seja tão gracioso, ainda ficam forças para te demonstrar que não me deixei nada mais no campo — imitou o tom fanfarrão que tinha ouvido durante o treinamento. Tom rio a gargalhadas. — Deixa o orgulho a um lado — aconselhou e lhe revolveu o cabelo — Não pode nem caminhar sozinho. Tome um bom banho, tome uma taça e te ponha uma parte de carne fresca no olho. —Baixou detrás deles — Manhã estará como novo. Preparado para treinar. Coraline levantou a cabeça com brutalidade sem lhe importar o zumbido que sentia. Percy e Tom voltaram a rir. — Sabe? — Coraline entrecerro o olho são — Me alegro muito de causar tanta graça. Vejo que não foi um dia perdido, te dei de presente um gol e ainda por cima te ponho um sorriso na cara. — Fez uma careta de dor — Eu, em troca, o que levo? Um olho arroxeado e o corpo cheio de machucados — inquiriu ferida mais no orgulho que no corpo. — Não ponha assim — interveio Percy e a ajudou a baixar últimos degraus — Só tentamos que se esqueça de seu mal-estar. — Não é a dor o que me preocupa — segurou frente à porta e se desprendeu de Percy — Prefiro estar sozinho — disse — Não podemos te deixar aqui — afirmou Tom — Subiremos a

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sua habitação. — Não! — soltou assustada. — Mas... — Percy tentou convencê-la. — Por favor — o interrompeu ela — Já foi o bastante, obrigado. — ficou diante da porta para que não pudessem abri-la — Se minha avó me vê, terei que deixar a universidade. — Era a primeira verdade que lhes dizia. — Que tolices está dizendo? — quis saber Tom — Por que diabos iria deixar a universidade, por um olho arroxeado? — Não é um olho arroxeado, nem os machucados, é... Já o hei dito, minha avó não suporta os escândalos. Minha mãe lhe deu um bom desgosto quando se casou e não aguentará nenhum mais. —encolheu-se de ombros, consciente de que o que dizia não tinha muito sentido, já que jogar futebol não poderia considerar-se escandaloso, mas eles não podiam entender suas razões e tampouco podia as explicar. Para convencê-los, acrescentou — É muito exagerada com tudo, para ela que seu neto chegue meio carregado por dois moços, como se fora um bêbado, já é um desastre. — Viu pelas caras que já estavam convencidos pela metade — Por favor, chamarei o senhor Sórenson, ele sempre me ajuda. Tom soprou. Não sabia se fazia bem em deixar ao menino nesse estado, mas, pensando-o melhor, tampouco estava tão mal e, além disso, tinham-no acompanhado até a porta de sua casa. — Está bem — claudicou — Vamos Percy, não quero colocá-lo em mais problemas. — Sorriu a Coraline e ela notou que, embora era muito arrumado, não tinha nenhum parecido com seu tio David. Tom não fazia ferver o sangue como o senhor Flint — Se necessitar algo, nos avise. Subiu as escadas. — Sim — disse Percy — embora não vás jogar, ganhaste um lugar na equipe. — Seguiu-oTom. — De um modo ou outro, já é parte de nós — acrescentou Tom do alto. Coraline não disse nada e viu como desapareciam seus amigos. Ficou um minuto calada, com uma estranha sensação pelas palavras que havia dito Tom. Era uma ideia tola, mas soaram a premonição. Entrou-lhe um calafrio, entretanto não soube se era por medo ao desconhecido ou ao que a esperava dentro de casa. Abriu a porta muito devagar. Apareceu a cabeça. — Av vikinga, gudarna! — exclamou o senhor Sórenson ao vê-la e deixou cair os candelabros que carregava. Coraline se levou um dedo à boca e falou para que deixasse de gritar. — Deixe a seus deuses vikings em paz e faça o favor de me ajudar — pediu Coraline enquanto entrava com cuidado, se por acaso

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havia alguém mais. — Mas o que lhe ocorreu? — quis saber o mordomo cheio de preocupação e apurando em socorrê-la. — Nada. — Nada? Esse olho e sua claudicação dizem que esse "nada" lhe deu uma boa surra. — Não me deram nenhuma surra — se defendeu ao tempo que se apoiava no enorme corpo de Sórenson — Para sua informação, fui eu quem deu uma surra. — Você? — O homem elevou a sobrancelha incrédulo — Permita-me que o duvide. — Deixou-a descansando contra a parede — Espere aqui — pediu enquanto aparecia ao corredor para comprovar que não vinha ninguém— Venha, agarre-se a mim. — Sim, dei uma surra a toda uma seleção inglesa de futebol. — Avançaram pelo pequeno corredor que dava a umas escadas. Coraline viu o gesto cético de Sórenson e claudicou — De acordo, pode que não tenha sido uma surra. — Não me diga? — inquiriu desdenhoso o mordomo. Coraline bufou. — De acordo, tampouco foi a toda uma seleção. — Suspirou — Mas ajudei a marcar um gol em nada menos que Herby Arthur. —Levantou o olhar para ver o rosto do Sórenson e encontrou justo o que esperava: surpresa e incredulidade porque uma jovem tivesse vencido ao goleiro da seleção — Agora lhe estou dizendo toda a verdade, graças a mim pudemos marcar um gol. Estou orgulhosa de mim mesma e meu pai também o estaria. — Subiu os degraus — O asseguro — disse convencida. — Senhorita, com todos meus respeitos — interrompeu ele—você se ouve? Não se dá conta da quantidade de loucuras que está fazendo? — Viu que a jovem ia replicar e seguiu — Tem que deixá-lo já. O outro dia chegou bêbada e se estatelou com uma luz e hoje... —Suspirou — Não sei como vamos ocultar isto, senhorita Smith. Sua avó vai sofrer muito se se inteira de tudo; quanto a seu pai, posso-lhe assegurar que nem sequer ter metido um gol ao grande Herby lhe fará esquecer esta humilhação. A meterá em um convento de clausura. — Não exagere, Sórenson. — Chegaram ao piso superior, e ela deixou que ele se adiantasse para dar uma olhada — De todas formas, estaria bem que pedisse ajuda a todos esses deuses vikings dos que falava antes — disse a suas costas. Sórenson tomou ar resignado. Não havia ninguém, o caminho estava espaçoso para ir à habitação da senhorita. Não sabia por que continuava encobrindo-a, não queria ouvir o resto da história, estava louca e conseguiria voltá-lo louco ou que o despedissem. O mau era que parecia ter sido um dia interessante e sabia que ao final a ajudaria as vezes que fizesse falta. Queria à pequena e, embora fosse

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feio reconhecê-lo, sentia uma grande curiosidade por saber como tinha terminado o dia jogando com uma grande equipe de futebol. Que longínquo ficava aquele dia em que tinha decidido trocar sua bela Suécia por esses excêntricos ingleses.

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Capítulo 8 Coraline conseguiu chegar a sua habitação sem que a visse sua avó, mas Sórenson disse que não poderia continuar muito tempo assim, já que o resto do serviço se deu conta de suas aventuras, de suas idas e vindas vestida de menino e, é obvio, suspeitavam que andava com algo gordo entre mãos. Coraline se sentiu um pouco culpada, porque Sórenson lhe fez ver que muitos deles estavam arriscando o posto de trabalho por guardar silêncio. Ela tentou tranquilizá-lo e afirmou que sua avó nunca culparia a ninguém mais que a ela, de seus atos. Annabel Atkinson era uma mulher justa e razoável, exceto com os escoceses. O mordomo pareceu estar de acordo, mesmo assim Coraline viu que ficava intranquilo e lhe disse que iria falar com todo o pessoal da casa para lhes explicar a situação — na medida do possível, claro está, posto que não lhes ia dizer que estava estudando em Oxford — e lhes assegurar que seu trabalho estava seguro, que ela respondia por todos e cada um deles. Para surpresa de Coraline, a metade do serviço resultou estar bastante emocionado com seus planos, em especial as duas criadas jovens, que a viam como uma espécie de heroína. A cozinheira e o jardineiro, que junto com Sórenson eram os de mais idade, mostraram-se reticentes, mas consentiram em fazer-se de tontos pelo carinho que lhe tinham. Quanto ao lacaio, que era um jovem de uns quinze anos, começou a olhá-la como se fosse lady Godiva, o que resultava um pouco incômodo, mas suportável, já que não era nada comparado com os olhares de receio que lhe dedicavam na universidade quando se perguntavam se era um efeminado ou não. Estava convencida de que os cochichos trocariam a partir do ocorrido no dia do treinamento porque, como havia dito Tom Flint, ela tinha passado a formar parte da equipe, e ninguém se metia com os integrantes: algo quase preso com a morte. O esporte era sagrado, quase tanto como o exército. Pelo menos para David Flint o era. O bate-papo com o serviço foi bem a tempo. Ao dia seguinte de ter falado com todos, tranquilizar a Sórenson e convencer de que somente seria por um tempo - ao menos até que terminasse esse curso, embora isso não o disse, é obvio - tiveram uma visita inesperada, além da senhora Hamilton, querida amiga de sua avó e recente admiradora do Sórenson. Uma visita que requeria de toda a ajuda possível para Coraline. Dois dias tinham passado do treinamento, dois dias em que

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ela não tinha podido sair muito da habitação, para que sua avó não se desse conta de que tinha um olho um tanto diferente ao outro. Em consequência, tinha perdido dois dias de classe, algo que a chateava, mas o bom do Sórenson lhe tinha levado uma nota a seu amigo Paul em que explicava que se encontrava um pouco doente e lhe pedia que lhe informasse do transcurso das classes. Nisso estavam, quando o jovem lacaio de olhar apaixonado chegou apressado a salinha do piso de acima, onde estava falando com o Sórenson, e informou que havia na entrada um senhor de muito bom porte, que procurava o senhor C.S. O menino se encolheu de ombros como se não entendesse nada e lhe deu o cartão ao mordomo. — Já lhe hei dito que aqui não vive nenhum C.S, mas o senhor insiste em que esta é a direção que lhe deram — indicou o moço. Coraline e Sórenson se olharam cúmplices. Sórenson era o único que sabia quem era C.S., mas se o lacaio tivesse sido mais esperto, teria se dado conta de que as siglas correspondiam ao Coraline Smith. Sórenson olhou ao céu e pensou que aquele jovem tinha muito que aprender: era muito inocente, por não dizer outra coisa, se não somava dois mais dois. A senhorita Smith lhes acabava de confessar no dia anterior que se disfarçava de varão porque estava realizando uma espécie de experimento social, para fazer um artigo para uma revista de mulheres, e aquele lacaio nem sequer caía na conta de que as iniciais da senhorita e as que o visitante procurava eram as mesmas. A Coraline lhe deteve o coração, quando leu o nome no cartão: "senhor David Flint". Pelo menos, o menino tinha tido o tino de deixá-lo na rua esperando, embora, se se inteirava a avó dessa descortesia, o pobre lacaio ia passar mal. — Ocorre-lhe algo, senhorita? — indagou Sórenson e a sustentou do braço. — Não... não, é... — Olhou-o com olhos atemorizados e o mordomo soprou — OH!, senhor Sórenson, estou perdida — se lamentou. — Quer que o mande embora, senhorita Smith? — perguntou o lacaio. — Sim — disse com rapidez—. Não, não serviria de nada— negou ao momento seguinte, decaída, posto que era consciente de que David não desistiria até dar com o jornalista que procurava. Ele pensava que seria bom para sua técnica de jogo e tinha deixado bem claro que a equipe era tudo. Seria capaz de acampar na porta da casa — Já tem feito bastante moço deixando-o na porta. — É que não me deu bom espinho — se defendeu o jovem envergonhado. — Senhorita Smith — disse Sórenson muito sério — Você é a única pessoa que faz renascer em mim o desejo de voltar para meu

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país natal. — Girou para o lacaio e, com gesto circunspeto, indicou-lhe que os deixasse sozinhos. — OH, é você muito amável, senhor Sórenson. — Coraline se levou as mãos ao coração emocionada. — Mas não acredito que seja o momento de que me dedique elogios, embora sejam merecidos. — Correu para as janelas para ver se podia divisar a David. — Não é uma adulação. Saí fugindo da Suécia — afirmou taciturno. Coraline o olhou surpreendida e fez caso omisso da ofensa, porque sabia que tinha sido feita com o mais absoluto carinho. — O que lhe ocorreu? — quis saber ela e se esqueceu por um momento de seu problema. — Não acredito que tenha tempo para ouvir a minha história — assegurou Sórenson e ficou ao seu lado na janela para ver o cavalheiro que teriam que fazer frente. Coraline voltou para a realidade. —Tem razão — disse angustiada — Bem, o que vamos fazer? —- Olhou-o com olhos esperançados, mas o velho mordomo não se deixou enganar. — Eu vou servir o chá a sua avó e à senhora Hamilton — afirmou formal. — O chá? — exclamou, presa do pânico — Não pode fazer isso. — Sim que posso. — Olhou o relógio de bolso que levava — São quase cinco. — Mas isso é uma abominação! — cuspiu sem saber o que dizer para fazê-lo reagir. — Se a ouvisse sua avó: o chá é um ritual, senhorita Smith —a repreendeu Sórenson. Suspirou resignado e foi para a porta, o que fez que Coraline ficasse mais nervosa. — Por favor, por favor. — Lhe interpôs no caminho — Me ajude, — rogou — será a última vez que lhe peço algo. — Pestanejou dessa forma doce que só sabia ela, como fazia sempre que queria conseguir algo. Sórenson a conhecia desde menina e não se deixou abrandar, entretanto, insinuou: — Senhorita Coraline... — Sim, me diga — interrompeu ela, complacente — Sou toda ouvidos. — Vou servir o chá — continuou ele, decisivo— E você deveria aproveitar que sua avó está ocupada para despachar a sua visita. —Lhe piscou os olhos um olho e ia seguir caminhando, quando Coraline lhe pendurou do pescoço e lhe deu um beijo na bochecha. — Sabia que me ajudaria — disse ela e saiu disparada a trocar-se de roupa.

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O senhor Sórenson se esfregou a bochecha e se tomou uns segundos para recompor o gesto sério que mostrava sempre. Tinha que atender a duas damas e não podia ir como um sentimental ancião, o comeriam vivo se se davam conta de que ele também tinha coração.

*** David, cansado de esperar na rua, estava a ponto de chamar de novo, mas justo nesse momento se abriu a porta. — O que faz você aqui? — inquiriu quase ofendido pela presença do jovem Smith. Coraline saiu da casa de maneira atropelada e, imediatamente, fechou a porta a suas costas para evitar que olhasse dentro da casa ou que alguém mais o visse, em concreto qualquer das damas que estavam tomando o chá. Se a senhora Hamilton pusesse os olhos sobre o senhor Flint, tão arrumado como era, não a poderia separar nem com água quente. Parecia-lhe mentira que uma mulher de sua idade mostrasse um interesse tão impudico pelos homens: era uma descarada. — Vivo aqui — disse sem zangar-se por seu tom impertinente. Adiantou-se a ele e baixou os degraus até chegar à rua com a esperança de que a seguisse e assim afastar-se da casa. — Não! — exclamou David ao cair na conta. Corl Smith era C.S., seu pior pesadelo feito realidade. Depois do treinamento tinha decidido afastá-lo mais possível do moço, já que tinha entendido que era impossível acelerar seu crescimento e que tampouco podia controlar esse mal-estar que lhe instalava no estômago quando estava perto dele. E, de repente, brincadeira do destino, tinha quase a obrigação de passar mais tempo junto a aquele pequeno aporrinho. — Como que não? — Coraline continuou com esse tonto dialogo, simulando não saber a que se referia o senhor Flint. — Você é C.S. — David a seguiu pela rua enquanto a assinalava com o dedo indicador como se fora um vulgar ladrão. — Quer deixá-lo já. — deteve-se em forma abrupta quando comprovou que estava fora do alcance dos olhares curiosos que pudessem sair de sua casa — Deixe de me assinalar e de me tratar como a um emprestável. Estou farto — declarou muito zangada pela atitude ofensiva de David. Era ele que tinha vindo a procurá-la. Era ele, que necessitava sua ajuda; em cima a tratava como se fosse uma moléstia. — Por que não me disse isso? — acusou David. — Lhe dizer o que? Que sou C.S., quer dizer Corl Smith? — Volteou o olhar e lhe deu as costas — Por favor, não terá que ser um gênio para unir dois pontos em linha reta — ironizou.

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— Deixe de jogar comigo, senhor Smith — ameaçou David. — Você deixe de me chatear, senhor Flint — o encarou ela. Ficaram os dois olhando-se frente a frente. David tinha que agachar o olhar e ela elevá-lo bastante; entretanto, não se deixou intimidar. "Há algo distinto neste jovem", pensou David. Sentia uma estranha conexão com ele e não podia imaginar a origem. O mais irritante, mais do que o fato de que fosse tão bonito, era que resultava quase feminino. David se removeu incômodo. Mas não apartou a vista de sua cara. Franziu o cenho. Coraline notou as distintas expressões que manifestava aquele rosto. Pôde ver como se dilatavam as pupilas desses olhos, obscurecendo-os mais e como se esticava essa mandíbula quando apertou com ferocidade os dentes. Fixou-se no cenho franzido e se precaveu da retidão das sobrancelhas e de quão espessas tinha as pestanas. Esses olhos eram tão rasgados que em algumas ocasione lhe davam um aspecto misterioso se estava zangado e em outras parecia peralta, se estava sorrindo. Tinha que reconhecer para si mesmo que gostava daquele homem, - e a quem não? - mas uma coisa era que fosse bonito e outra muito distinta que ela fosse idiota, tanto como para esquecer tudo o que estava em jogo. Além disso, que possibilidades teria se ele soubesse que era uma mulher? Nenhuma, porque se se inteirasse, o mais provável era que a denunciasse e a odiasse pela mentira. Parecia que já a odiava sendo um homem, assim era melhor deixar de pensar estupidezes. Ele estava mais fora de seu alcance que Oxford. — Tem que fazer isso? — perguntou David sem mover-se nem um centímetro. — Não sei a que se refere, senhor Flint — respondeu ela fixa no lugar. — Deixe de morder a bochecha. — ordenou com aversão, mas sem apartar o olhar — O faz parecer uma garota — esclareceu. Coraline bufou e deixou de morder a bochecha. O fazia sempre que estava nervosa. Tentou olhá-lo como o faria um homem zangado, mas o único que conseguiu foi que ele olhasse ao céu e murmurasse palavrões. — Está bem — disse David, tirou-a do braço e a levou rua abaixo — Se formos fazer isto, terá que seguir umas normas. — Mas o que diz, tornou-se louco? Me solte. — Conseguiu escapar de sua mão e se deteve — Não vamos fazer nada juntos — O olhou assustada. — Senhor Smith, vamos trabalhar juntos queira ou não -— Pôs os braços cruzados — Você sabe quão importante é para mim a equipe e a equipe é muito importante para a universidade, a universidade para você. Necessito que me ajude em tudo o que

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possa. — E me pede isso deste modo. — Pôs as palmas de suas mãos para cima — Ordenando-me isso quem acredita que é? — Seu professor. — Sim, mas não meu dono. Não me deixarei intimidar por você nem por ninguém. Estudar é o que mais desejo, mas não consentirei que ninguém me obrigue a fazer o que não queira fazer. —Esperou sua objeção. David estudou ao menino uns minutos. Sentia por ele certa admiração por essa coragem e essa personalidade. Era um jovem com caráter, não se deixava influir, tinha ideias próprias e, apesar de ser pequeno, se fazia respeitar pelos outros. O tinha demonstrado todos os dias em classe. No treinamento se resistiu a jogar, mas, quando aceitou, porque não ficava mais remédio, fez como se tivesse tido a possibilidade de negar-se, com orgulho. Seria-lhe fácil trabalhar com ele, inclusive poderia chegar a ser seu amigo, se não se sentisse... Sacudiu a cabeça para evitar pôr nome ao que fosse que despertava aquele moço. — Está bem — claudicou— Negociarei com você. — Como? — Ela entrecerrou os olhos, suspicaz. — Podemos fazer que o trabalho que realiza como jornalista lhe valha em suas notas finais de Literatura e... — O olhou — Farei que forme parte da equipe sem que tenha que jogar, nem treinar, só terá que acudir quando o chamar. Passará informação detalhada de todos os encontros que assistir ou treinamentos das outras equipes. Em troca, gozará dos privilégios que lhe dará o amparo dos jogadores. — Olhou-o à cara, ainda receoso — Vamos, já se ganhou na equipe, apreciam-no. E não me negará que sua vida será mais fácil em Oxford se não tem que aguentar os abusos de outros estudantes. Além disso, sabe que a opinião de outros professores melhoraria. Coraline sopesou a ideia. Tinha que admitir que uma parte de sua vida seria muito melhor se aceitava o que lhe propunha o senhor Flint. Havia dois inconvenientes: o primeiro, que passaria mais tempo com ele e o segundo era sua família. Se a descobrissem, e esse trato aumentava as possibilidades de que ocorresse, matariam-na. Além disso, teria que andar com cuidado de que não descobrissem que era uma garota na universidade e de que ninguém se inteirasse – nunca - de que tinha ajudado à seleção inglesa de futebol. Em lugar de facilitar a existência, ia complicar-se mais, mas contra toda lógica, estava expectante e ansiosa. — De acordo — estendeu a mão para fechar o trato. David duvidou, mas ao fim, estreitou-lhe a mão com força. Um engano, sem dúvida, porque voltou a percorrê-lo aquele estremecimento que tinha sofrido o primeiro dia quando chocaram.

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Era a coisa mais estranha que lhe tinha passado na vida. Algo semelhante a um impulso frenético que lhe nascia no centro do peito e viajava por todo o corpo até lhe provocar um comichão em pés e mãos. Retirou-se com brutalidade, olhou-a confundido. Coraline se agarrou a mão, sem precaver-se do que fazia, e se acariciou ali onde ele a havia meio machucado. Quando suas mãos entraram em contato, Coraline notou uma queimação na palma que se estendeu pelo braço, passou por seu peito, chegou-lhe à garganta e com toda probabilidade às bochechas, porque se sentia arder. Parecia que ele também o havia sentido. Estava-a olhando com cara de interrogação, como se esperasse uma resposta. Estava tão perdido como ela. — Você também o notou? — atreveu-se a perguntar ela, inocente. David sacudiu a cabeça em forma negativa. — Não sei a que se refere — grunhiu. Afastou-se do senhor Smith para evitar seu olhar curioso. — Sim, claro, imagino que não sabe — murmurou ela— Então, vamos trabalhar juntos ou não? — Já lhe hei dito que sim — disse mal-humorado. — Bem, então terá que deixar de me tratar dessa maneira — aproveitou Coraline. — De que maneira? — perguntou, como se não soubesse do que falava. — Grosseiro e tirano — o acusou ela. — Eu não... — Queria defender-se, mas sabia que não tinha desculpa, era verdade que o tinha tratado mal e o pobre não o merecia — Está bem — claudicou — Tentarei me comportar de forma mais agradável — consentiu vexado. — Me dê uma oportunidade, sou um bom tipo. — "Ha!", pensou Coraline, soava como um homem de verdade. David observou Corl. Tinha-lhe feito graça, ele já sabia que era um bom menino, era somente que fazia cambalear todo seu mundo. Uma vida, que até o dia em que se cruzou com ele, tinha controlada. — Está bem, mas, em primeiro lugar, deixará de usar o perfume ou o que seja que leva — ordenou David. — Não levo perfume. — encolheu-se de ombros. — Pois cheira doce, como a coco? — indagou David. — Coco? — Coraline caiu na conta — Ah! É o creme do cabelo, acredito que é feito de azeite de coco, palma e flores. É que não gosta? — Se eu não gosto? — David a olhou estupefato, claro que gostava. O problema era que cheirava de maravilha e o fazia pensar em coisas que não deveria relacionar com um homem. — Essa não é a questão.

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— E qual é a questão? — quis saber ela, perdida. — A questão é que é um homem não deve cheirar assim — asseverou David. — Já entendo — disse ela não muito segura — E como se supõe que devo cheirar? — A homem. — Elevou as mãos ao céu— A loção de barbear, a cavalo, a suor, ao que seja que não se pareça com as flores ou que dê vontade de saborear. "Saborear?", repetiu Coraline em sua mente. O que queria dizer o senhor Flint com "saborear"? — Não entendo aonde nos leva esta conversação — confessou ela aturdida. — Leva-nos a que deixará de usar creme de cabelo — opinou David. — Bem, se for o que quer, acredito que posso fazê-lo, se consigo que assim seja mais amável. E em segundo lugar? Porque há um segundo ponto, verdade? — Sim, tem que deixar de fazer essas caretas com a boca e o nariz. — Que caretas? É você absurdo. — Deu-lhe as costas, exasperada pelas tolices que estava pedindo. — Essas! Justo essas. — Assinalou acusador — São de mulher. — Mas são meus gestos — Se defendeu ela — Não posso trocá-los da noite para o dia. —Terá que fazê-lo, se quiser que trabalhemos bem juntos. —Pôs as mãos nas costas enquanto caminhava — É mais por seu bem que pelo meu, o asseguro. Não entendo como sobreviveu estas semanas na universidade com esse aspecto de menina. — Você também o notou — soprou ela— É isso o que lhe incômoda? — indagou preocupada. — Em parte — manifestou meditativo. — Asseguro-lhe que mesmo que tenha aspecto de garota não me converte em uma. Sou todo um homem — disse e tirou do peito para demonstrá-lo, mas por desgraça isso fez que David, sem querer, fixasse a vista em seu torso. Coraline se ruborizou, quando David retirou a vista de seu peito com rapidez, com uma careta de desagrado. Desejou não ter revelado nada. Disfarçou-se tão rápido que não tinha tido tempo de colocar a bandagem ao redor do peito. Rogou que não se deu conta de suas curvas, embora não acreditava possível, já que levava a jaqueta escura fechada. Outra vez tinha jogado tudo pela amurada, sem querer. Tinha-lhe recordado que era pouco masculino; isso, sem dúvida, punha-o de muito mau humor. Ele não aceitava debilidades de nenhum tipo e, segundo alguns homens, ser uma mulher era a pior de

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todas. Coraline sentiu uma espetada de desilusão ao pensar que David pudesse ser desse tipo de homens, tinha acreditado que era mais inteligente. David pigarreou para tirar o nó que tinha na garganta. Cornos! Acabava de ficar embevecido olhando o peito de um homem; o mais grave era que sua mente lhe tinha passado uma má jogada. Tinha visualizado um relance de peitos femininos, mas estava claro que sua mente o tinha imaginado. Não podia ser. Os dois estiveram andando em silêncio. Cada um tentava resolver o problema: como estar menos tempo um com o outro, quando acabavam de fechar um trato para trabalhar juntos.

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Capítulo 9 “Gales bate a Irlanda por 6 gols a zero. A seleção galesa se levou os dois pontos depois de seu encontro com a Irlanda, na segunda jornada do British Home Championship, graças aos gols do William Pierce Owen, Edward Shaw, Arthur Eyton-Jones e Robert Albert Jones, e ao maior impulso e exatidão que evidenciou ante uma Irlanda muito imprecisa. Com novas incorporações em suas filas, Gales e Irlanda se apresentaram ante um reduzido público em uma fria manhã de inverno e com o campo do Racecourse Ground do Wrexham gelado e escorregadio. Ambas as equipes apostaram por alinhamentos ofensivos, embora a pressão galesa foi muito mais insistente e angustiosa para uma Irlanda que esperava no meio do campo a seu rival. A seleção galesa se movia com vitalidade, deste modo provaram ter sorte alguns jogadores que, entretanto, não encontraram o arco antes de cumprir os vinte minutos de partida, em que nenhuma das duas equipes conseguiu fazer-se com o domínio do couro. Não havia pausa nem precisão por parte de nenhum selecionado. Ambos tentaram alcançar as imediações da área contrária com transições precipitadas nas que Gales, movido pelo ritmo que marcava William Pierce, começou a levar a voz cantante. Precisamente Eyton-Jones inventou uma grande assistência para que William Pierce Owen abrisse o marcador. Dez minutos mais tarde Edward Shaw conseguia cruzar o esférico ante a cerca rival. A primeira parte da partida acabou com 4 gols para Gales - dois de William Pierce Owen e dois de Edward Shaw - e 0 para a Irlanda. Depois do descanso não mudaram muito as coisas. Gales continuou com o controle do balão, o que o levou a marcar outros 2 gols, com assombrosas intervenções de Eyton-Jones e Robert Albert Jones. C.S. The Manchester Guardian, sábado, 9 de fevereiro de 1884.” — Poderia ter explorado mais sua veia sarcástica — disse David com um sorriso. — Acredito que não lhe dei permissão para falar assim, senhor Flint — respondeu Coraline com ironia — E eu não uso o sarcasmo

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em meus artigos, tento ser objetivo — acrescentou indignada. Do passeio do outro dia, instalou-se entre eles uma grata camaradagem. Coraline tinha entrado no pub, no que se estava acostumado a reunir a equipe, imediatamente a tinha invadido o aroma de cerveja, tabaco, madeira molhada e couro e havia se sentido agitada. Encontrou David imerso na leitura; antes de chegar até ele, já sabia o nome do periódico que sustentava entre as mãos. David não tinha podido assistir ao encontro porque tinha uma reunião prevista com o reitor, mas tinha ficado muito tranquilo porque sabia que C.S. teria que ir e tinha feito que alguns de seus jogadores o acompanhassem por vários motivos. Não demorou para lhe dar ordens precisas sobre os aspectos em que queria que se fixasse e tomasse nota; até se permitiu o luxo de lhe indicar que, para fazer seu artigo, não precisava que fosse muito detalhista, mas ela não se deixou enganar, advertiu que pretendia evitar que desse muita informação a outros. Coraline foi à partida com alguns membros da equipe e passou bastante bem enquanto eles cuspiam, amaldiçoavam e inclusive animavam em algumas ocasiões. Herby, o goleiro, não se separou dela em nenhum momento e confessou que tinha prometido a David que cuidaria dele. — Por que acredita o senhor Flint que necessito um guardião? — quis saber ela molesta — Não vejo que nenhum outro tenha vigilância. — Não te zangue, pequeno. — Revolveu-lhe o cabelo — David se preocupa com todos seus meninos. É somente que te vê um pouco frágil. — Ela franziu o cenho — Não ponha essa cara, deveria estar agradecido. — Eu não gosto que me tratem de maneira diferente. — Dirigiu a vista à partida e seguiu tomando notas — Além disso, sei me cuidar sozinho. E não sou fraco — assegurou ela. — Não, não é. Sei melhor que ninguém — afirmou e se tocou a entreperna de maneira grosseira. Coraline o olhou chocada, primeiro no ponto onde sua mão se esfregava e se uniam suas pernas e logo aos olhos. Ruborizou-se, piscou e estalou em gargalhadas. — Sinto por isso — disse quando se acalmou. — Eu também o sinto — afirmou Herby e assinalou o olho dela — Não deveria te haver pego, menos quando quão único tentava era conseguir um gol. O que fez foi admirável — Lhe sorriu — Não são muitos que têm o valor de me golpear, asseguro-lhe isso. Coraline jogou outra olhada a Herby e teve que lhe dar a razão em que não são muitos que se atreveriam a enfrentar-se a ele. A jornada transcorreu rápida e, para surpresa de Coraline, começou a sentir como um mais. Desfrutava com eles, sentia-se

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cômoda e, embora tinha preferido que David não fosse com eles, para ser sincera consigo mesma, também teria gostado de compartilhar esse momento com ele e ser testemunha de como deixava a um lado a fachada agradável, simpática e tranquila para converter-se no homem apaixonado que tinha visto dias atrás, no campo de jogo. A transformação que tinha sofrido diante da bola a tinha cativado. David era um bom jogador, tomava uma postura decisiva sobre o terreno, controlava o esférico enquanto corria, sem apenas esforço, era ágil quando evitava ao competidor, estudava com sagacidade a situação das equipes e avaliava a melhor jogada a seguir e repartia as ordens em silêncio, como um bom líder. Coraline se sentou frente a David, inclinou-se sobre a mesa de madeira maciça que os separava e lhe tirou o periódico das mãos com absoluta confiança. Nesse instante, também pôde apreciar o aroma, já familiar, dele. David sorriu, quando o jovem Smith assinalou que se tomou a liberdade de falar-lhe. Ele falava com todos os jogadores, não assim com todos os alunos, mas o jogo os unia muito. Todos se comprometiam com a equipe. Assim que se vestiam de branco com o brasão do Ricardo I, Coração de Leão, no lado direito da camiseta, convertiam-se em um, ao igual aos três leões que figuravam no escudo. Corl não jogava com eles, mas, como os estava ajudando a desenhar uma técnica de jogo, fez-se um lugar na equipe. Aos outros pareciam lhes gostar e a David... Ainda não sabia o que pensar. Ficou olhando, enquanto lia o artigo que ele mesmo tinha escrito. Estava com o cenho franzido e se mordia a unha do dedo mindinho. Que homem fazia isso? Os homens cuspiam, amaldiçoavam, arrotavam depois de um bom gole de cerveja. Os homens não se mordiam as unhas e menos a do mindinho, em todo caso a do dedão. Os homens não lhe pareciam bonitos, nem lhe faziam graça e, é obvio, não sentia a obrigação de proteger a nenhum homem, como lhe passava com Corl. Algo não encaixava, mas o que? Algo, na equação de sua vida, tinha falhado. Seria o pouco tempo que dedicava às mulheres ou simplesmente era seu relógio biológico que lhe estava avisando de que era hora de formar uma família. Seus dois irmãos tinham formado famílias numerosas e ele não deixava de desejar o mesmo. Até esse momento lhe tinha bastado os livros e o futebol. Não é que não tivesse tido alguma aventura, mas nada que durasse mais de dois meses. Não tinha encontrado a nenhuma mulher que retivesse sua atenção mais desse tempo, nem nenhuma que merecesse que implicasse seu coração. Tampouco gostava da ideia do prazer sem compromisso, portanto lhe resultava difícil encontrar companhia feminina; encontrava-se melhor encerrado entre os livros e a energia que lhe sobrava tentava soltá-la no campo de jogo.

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Tinha a estranha ideia de que, quando chegasse a mulher de sua vida saberia imediatamente, tal como tinha passado a seus irmãos e tal como tinha passado a seus pais. No mesmo instante de vê-la, de cheirá-la, saberia que seria a destinada a compartilhar sua vida. Isso era o que acontecia com os Flint, mas algo em seus cálculos tinha falhado, porque o mais perto que tinha estado desse tipo de sentimento tinha sido com o jovem Smith e, é obvio, tal possibilidade estava fora de toda discussão. Gostava das mulheres, e possivelmente um pouco Corl Smith, mas somente porque recordava a uma mulher, uma inteligente e com personalidade. Brincadeiras gasta a natureza! — O que te passou na cabeça? — perguntou de forma abrupta David e rompeu o fio de seus pensamentos. Coraline levantou a vista do periódico, olhou a David confundida e, logo, girou a vista, pois imaginou que falava com outra pessoa. — É para mim? — quis saber ela e se colocou os óculos em um gesto que fazia a modo de amparo. — Sim, por que tem esse aspecto? — David começou a zangar-se — Você e eu fizemos um trato e está faltando a sua palavra. — Custa-me segui-lo — confessou e os olhos se o entrecerraram, esperava algo dele. — Não terá que ter um talento especial para cumpri-lo - o imitou David. Coraline soprou e volteou o olhar, dobrou o periódico e contou até dez para reunir a paciência que ia abandonando pouco a pouco. Começava a acostumar-se aos ataques de extravagância temporária de David, era como se tratasse com dois homens distintos: um amável e compressivo, o outro desconfiado e maníaco. Olhou-o de frente. — Se for tão amável, pode-me esclarecer o que é o que tenho feito agora? — indagou ela. — Como se não soubesse — acusou David, uma vez que chamava o garçom com a mão e pedia duas cervejas — Tem feito isso na cabeça porque sabe que me incomoda. — O que é isso tão horrível? — gritou ela — Quão único fiz foi trocar o azeite de macassar pelo de urso, mas não segura igual. — estirou-se o cabelo que lhe caía pela frente e lhe chegava quase à comissura da boca. Ela sabia que não estava igual de impecável usando um azeite que durava menos, mas, como lhe tinha prometido deixar de usar esse que cheirava a flores e coco, tinha acreditado que não lhe importaria que seu aspecto fosse mais descuidado. — Efetivamente, já não cheira a coco, coisa que se agradece,

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mas resulta inútil. — Mas o que quer dizer? — inquiriu exasperada e revolveu o resto do cabelo. — Que segue parecendo uma garota — sussurrou ele com as mandíbulas apertadas. — OH! Coraline não soube que responder, mas pôs uma cara de pena que a David causou um grande mal-estar e o fez sentir mal na verdade. — Sinto-o — murmurou e a olhou de esguelha — Já sei que não tem a culpa do aspecto que tem, mas me contraria um pouco. — Um pouco? — Sim, às vezes estou contigo como com outro da equipe, mas logo te observo e vejo gestos tão femininos que me ponho à defensiva. — É que odeia às mulheres? — perguntou Coraline assustada. — Não! Claro que não, — assegurou com cara de indignado — mas eu não gosto da ideia de tê-las ao redor do meu mundo particular. — Já vejo, — disse Coraline — gosta das mulheres e se sente cômodo com elas, mas fora de seu mundo de homens, quer dizer: elas em casa e os homens fazendo o que mais lhes agrade. —Começou-lhe a pulsar a veia na têmpora. — Soa algo feio como diz. É que agora mesmo estamos em um lugar exclusivo para homens; quando penso em mulheres, desestabiliza minha tranquilidade aqui. — Pensa muito nelas? — perguntou Coraline, sem meditar. — O normal. — encolheu-se de ombros, pôs uma cerveja diante do menino — Mas, quando o faço, não me imagino aqui, a não ser em um ambiente mais depravado, feminino. — Na cama — cuspiu ela furiosa. David bebeu um bom gole de cerveja e evitou responder. Perguntou-se por que esse menino o punha tão nervoso. Se fosse outro homem, já estaria brincando sobre o tema, mas ele nunca tinha sido desrespeitoso com as mulheres, nem sequer quando estava somente entre homens. — Não! — exclamou David — Tem uma mente febril, moço. — Põem-no nervoso as mulheres? — Bom — gaguejou David. Não sabia por que lhe custava tanto explicar-se com o menino — Como a qualquer homem, já me entende. A verdade era que ela não entendia nada. Entretanto, estava raivosa, porque acabava tomando consciência de duas coisas: primeiro, David não aceitaria a uma mulher em seu mundo

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perfeitamente masculino, o que deixava a ela em um lugar muito ruim; segundo, pensava em mulheres de uma maneira carnal, algo normal, mas que não gostava nada, nada. "Claro que pensa assim, estúpida", recriminou-se ela com dureza. "É um homem, como todos, e as únicas fêmeas que lhe merecem respeito são as de sua família", disse-se entristecida. — Deveria envergonhar-se de pensar assim das mulheres —acusou ela. Estava tão zangada que deu um gole enorme de cerveja para afogar sua fúria em álcool. O líquido passou pela faringe, produziu-lhe uma agradável sensação e lhe deixou no lábio superior um delicioso comichão. Limpou-se a boca com o dorso da mão, depois de o haver lambindo, um gesto que fez a David lhe formar um nó na garganta. — De que demônios falamos? — perguntou ele e pediu outras duas cervejas. — De sua conduta imoral com as mulheres — apontou ela e tomou a outra cerveja antes inclusive de que a deixassem na mesa. — De meu o que? — proferiu David atônito. Esvaziou seu copo de um grande gole e adotou uma atitude espectador. David estava perdido. Como tinha chegado a conversação a esse ponto? Um momento antes, estavam falando do adorável e de uma vez intolerável aspecto que luzia aquele jovem, e, ao momento seguinte, era admoestado por conduta imoral para as mulheres. Precisamente, ele que as respeitava e adorava como nenhum outro. Não só a sua irmã Connie e a sua cunhada Betsy. Respeitava a todas as mulheres, pensava que a sociedade era muito dura com elas, acreditava que eram algo mais que objetos bonitos de decoração. Nos últimos dez anos, desde a chegada a Londres, tinha visto a luta de muitas delas por encontrar uma igualdade e reduzir as injustiças de que eram vítimas. Às vezes, inclusive, tinha assistido a suas reuniões e as tinha apoiado. Por que aquele pequeno lhe estava recriminando isso e o que importava a ele? E o mais importante, como tinha obtido aquele patife dar volta na conversação e situá-lo como um canalha? Naquela discussão tinha começado sendo ele o que repreendia não o repreendido. Só conhecia três pessoas capazes de conseguir algo assim e nenhuma levava calças. Coraline imitou a David e esvaziou seu copo de um gole. Ficou um pouco verde, mas aguentou e lhe demonstrou que era um homem de verdade. — Sabe uma coisa, senhor Flint? — espetou Coraline com um ligeira estrabismo — Eu me criei com mulheres, rosas inglesas —apontou — E lhe posso assegurar que não são débeis e mais, são as que levam as rédeas da família. Sabe o caráter que se necessita para dirigir uma casa inteira e que pareça que o faz o homem? Obteve uma gargalhada do David como resposta. Não soube o

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que dizer a isso, assim sorriu e bebeu da seguinte cerveja que tinham deixado diante dela. — Sei, moço, me acredite que sei — disse David de melhor humor — Deve ser por isso que parece tão delicado. As rosas inglesas conseguiram que seja muito fino. — Estudou-o com malícia — Quem sabe é hora de que comece a te polir um pouco. Atreve-te? Coraline o olhou com suspeita, mas encorajada pelos efeitos do álcool aceitou sem pensá-lo duas vezes. Puseram diante dela dois copos, uma enorme jarra de cerveja e outro copo mais pequeno, com uma bebida que, estava segura, era uísque. — Comecemos — ordenou David. "Estou morta", pensou ela. Embora aguentasse quase como homem de verdade o álcool, sabia que David podia tombá-la. Pesava o dobro que ela e Coraline já tinha feito a prova com seu primo uma vez. Naquela ocasião, tinham terminado os dois atirados pelo chão. Possivelmente com o senhor Flint fosse diferente, ao fim e ao cabo ele era um débil inglês, como diria seu pai, embora não o aparentasse e ela tinha sangue escocês. Não podia ser mais difícil que com seu primo. Ao recordar a seu primo, sentiu que a tripa lhe revolvia, mas não de saudade. Ele era o grande jogador de futebol John Smith, membro da seleção escocesa, que jogava com o pseudônimo J.C. Miller, o melhor interior escocês, ao que o senhor Flint odiava de forma especial. Entretanto, não era uma antipatia tão especial como a que seu querido primo professava ao senhor Flint, jogador da seleção inglesa de futebol e agora professor de sua prima. Quem, por certo, estava muito empenhado em convertê-la em todo um homem, um fato que seu querido primo não iria gostar absolutamente. Meu deus! Como tinha podido embaralhar sua vida a tal ponto? A única resposta que sua cabeça podia lhe dar era que era idiota e como tal bebeu de um golpe o uísque, que ajudou a baixar com a cerveja.

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Capítulo 10 — Hei-te dito que arrote — ordenou David cambaleante. — Não penso fazê-lo — respondeu ela e se apoiou nele para não cair — É asqueroso. —Tem que fazê-lo. — David lhe passou o braço pelos ombros, porque o chão se movia de maneira suspeita — Te suspenderei —vaiou — Te juro isso. — Não o fará. — deteve-se um momento para centrar-se — Não lhe passarei informação sobre Escócia e, acredite, nem se imagina os detalhes que possuo. — mordeu-se a língua. Estava bastante bêbada e lhe estava indo a língua. Menos mal que ele ia igual ou pior. Saíram do pub depois de cinco rodadas. Era a terceira vez em sua vida que bebia tanto e não o voltaria a fazer nunca mais. Sentia-se muito enjoada, o terreno estava instável e o céu lhe parecia muito mais perto do normal. O dono do pub teve a cortesia de convidá-los a ir-se, quando David cruzou umas palavras com uns escoceses. Em realidade, David cuspiu umas palavras e os outros se limitaram a lhe romper a cara. Flint e ela bebiam em sua mesa e falavam, como era normal, de futebol, quando um grupo de homens os ouviram. Melhor dizendo, ouviram David dizer, enquanto ela tentava centrar seu campo de visão, que a seleção escocesa era um rebanho de vacas, que o único para o que valiam era para que um bom touro os..., mas não pôde terminar a frase. Um murro, saído de um nada, fez-lhe girar a cara quase 180 graus. David, aturdido, bêbado e com o lábio partido, saltou por cima da mesa e, com a sorte que acompanhava a Coraline nos últimos tempos, caiu em cima dela. De novo, viram-se tombados no chão, um em cima do outro, só que agora ela estava debaixo, os dois bêbados. Recordou como era o corpo desse homem, o quente e forte que se sentia, embora notou algumas diferenças: no pub não cheirava a fresco nem a loção de barbear, mas bem fedia. A pesar do aroma de tabaco e álcool, Coraline reconheceu em seu corpo as emoções novas que só ele provocava. Já conhecia melhor ao homem que tinha em cima. O professor entregue ao trabalho e aos alunos. O jogador comprometido com seu país e seus companheiros de equipe. O homem que, às escondidas, encarregava-se de que ela estivesse bem e protegida, embora tivesse que fazer um esforço por ser agradável com ela. Alagou-a uma sensação tão cálida que a fez ficar durante um breve instante apanhada em sua cercania, paralisada,

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enquanto o observava embevecida até que ele, rompendo o mágico momento, apoiou-se sem nenhum olhar em um de seus peitos, já de por si esmagados pela bandagem que levava, com o qual lhe fez ver as estrelas e parte do universo. Ela gemeu de dor e ele a olhou com uma expressão estranha. Coraline apreciou que, antes que alguém o pegasse pela jaqueta e o levantasse com muito mau jeito, David se olhou a mão e fechou o punho, voltou a fixar-se nos olhos dela e ia dizer algo, mas não teve tempo porque o jogaram pelos ares. Caiu sobre uma mesa e atirou tudo o que havia em cima. Foi então, quando o dono do pub os convidou com amabilidade a que saíssem do lugar. Se tivesse estado sóbrio, seguro que teria sido uma boa briga, pelo menos um pouco mais equilibrada. Saíram ao exterior, apoiando um no outro, um mais bêbado que o outro. — Está bem, tem razão, anão — David se tocou o lábio que sangrava — Não te suspenderei, mas só porque sou um homem honesto. — Não me chame "anão" — grunhiu ela. —"Anão" é melhor que "querubim" — apontou David e se deteve para descansar contra a parede de um velho edifício de tijolo vermelho — Tudo me dá voltas. — E por que ia me chamar "querubim", meu nome é Cora... Corl. —"estiveste perto, tola", disse-se. "O melhor é dar por terminada a noite e ir correndo a casa". — Porque tem a cara de um anjo — disse com voz rouca e pigarreou para tirar essa emoção em sua voz — Quero dizer que seu aspecto é bastante ridículo, assim, se não quer que te chame nem "anão" nem "querubim", terá que arrotar — acrescentou zangado. — Hei-lhe dito que não penso fazê-lo — repetiu ela exasperada. — Terá que cuspir ou fazer outra coisa que te identifique como hom... — David não terminou a frase porque algo no rosto de Coraline lhe chamou a atenção. Entrecerro os olhos. Inclinou-se sobre ela de maneira perigosa — Ouça, você esta tarde não tinha bigode. —esfregou-se os olhos — Nem esta tarde, nem estes dias, mas se nem sequer tinha pelo na cara! Como chegou isto até sua boca? —Tirou-lhe o bigode pouco a pouco. Coraline se levou a mão, rápido que pôde dado seu estado, para suas costeletas. Uma estava mais ou menos colocada sobre sua orelha e a outra tinha desaparecido. Com toda probabilidade era o que segurava David, com dois dedos afastados de seu corpo e com cara de horror. — Que cornos é isto? — interrogou a Coraline com os olhos — É nauseabundo. Coraline lhe tirou das mãos a falsa costeleta e a guardou no

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bolso. — Esses escoceses são uns bastardos, têm umas brincadeiras — disse ofendida, com a pretensão de desviar a atenção e insinuar que tinham sido eles os que lhe tinham colocado sobre o lábio essa coisa repugnante. Ficaram uns segundos avaliando a situação. David ruminava que demônios passava com aquele moço e Coraline como demônios ia sair de todo aquilo. De repente, ouviram um grito. — De maneira que bastardos, né? A eles! — Os quatro escoceses do pub arrancaram a correr diretos para eles, ainda mais bêbados que no pub. — Meu deus! — Coraline olhou aterrorizada a David, mas ele seguia observando-a, sustentado contra a parede, como se estivesse a ponto de resolver uma equação impossível. Tomou pela camisa e o sacudiu desesperada — Reage, David, nos vão matar! — Assinalou para os quatro gigantes que corriam para eles. David seguiu a direção de seu dedo e sacudiu a cabeça para limpá-la o mais possível. Voltou o olhar ao anjo que tinha diante e comprovou o medo que cobria seu bonito rosto. Tirou-a da mão e pôs-se a correr entre as casas com a esperança de perdê-los entre essas ruas, que ele conhecia tão bem. Correram um bom momento até que deixaram de ouvir gritos e pegadas detrás deles. Chegaram a uma zona residencial sem nenhum pub ou botequim, meteram-se em um estreito beco onde não havia quase luz e esperaram que passasse um tempo prudente para poder voltar para casa. — Não posso mais — confessou Coraline com a respiração entrecortada — Vou vomitar. Isso valeria mais que arrotar ou cuspir, verdade? David riu, conduziu-a até o mais escuro da rua, até encontrar um lugar seguro para sentar um momento e recuperar o fôlego. Ainda a levava presa pela mão, algo que deveria ser estranho, mas que o fazia sentir cômodo, inclusive lhe parecia normal. — Estivemos perto — continuou Coraline. David seguiu sem falar, não podia. Massageou a pequena mão que encerrava a sua. Tinha as unhas bem polidas, não muito curtas nem muito largas, pele suave, dedos delgados e um pulso fino. E, sem dar-se conta, essa pequena mão lhe estava respondendo às carícias. Sentaram-se na escuridão. David tentou limpar sua mente, mas estava por completo banhada em álcool e lhe custava vislumbrar todos os sinais contraditórios que lhe enviava aquele jovem. Por um lado tinha vários feitos irrefutáveis: Smith estudava em Oxford, portanto era um menino, isso era pura lógica. Sabia mais que qualquer estudante veterano, era preparado e vivaz, trabalhava para

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um periódico na seção de esportes. Sabia de futebol quase tanto como ele, embora não o praticasse. Tinha sido capaz de dar uma cabeçada no meio das pernas de Herby e receber seu punho com a maior das dignidades. E essa mesma tarde lhe tinha tomado o pulso com a bebida e não o via mais afetado que ele mesmo. Essas, sem lugar a dúvidas, eram coisas que só faria um homem, embora não tinha arrotado porque lhe parecia asqueroso. Por outro lado, tinha seu aroma, seu tato, seu bonito rosto, uns olhos espetaculares que falavam sozinhos, a sensação de sufoco que lhe produzia e o desejo desesperado de que fora uma mulher. Além disso, essa noite não era a primeira vez que acreditava ter visto peitos femininos sob sua roupa, suas costeletas eram falsas e os óculos eram tão grandes e antiquados que duvidava de que fossem dele ou dela. — David — Coraline chamou pela quinta vez, mas ele seguia longe. Ajoelhou-se diante dele, tocou-lhe o ombro para fazê-lo sair de seu encantamento. O parou em seco seus pensamentos que o enjoavam mais que o próprio álcool e levou sua mão até as lentes de Smith. Tirou-as pouco a pouco. Estudou sua cara: era delicada, com um queixo pequeno, mas bem definido, mesmo seu nariz pequeno, mas desafiante; as maçãs do rosto, antes camufladas pelo marco dos óculos, eram dolorosamente arredondadas. Logo estavam aqueles olhos da cor do bom uísque, quentes e doces, tão doces que dava vontade de saboreá-los. Essas lagoas douradas poderiam pedir a lua a qualquer um e o conseguiriam. Ia tão bêbado ou era real? Subiu a mão até seu cabelo e o revolveu. Coraline deixou fazer porque no mesmo momento em que seus olhares se encontraram soube que estava perdida. Ele deixou cair seu cabelo: chegava-lhe até o queixo e emoldurava o rosto de maneira tal que acentuava as feições delicadas e a boca de lábios carnudos. Como não se deu conta? Em realidade, seu corpo sim tinha reconhecido à mulher, mas a lógica que usava sempre lhe impedia de acreditar que uma mulher cometesse aquela loucura. Uma ira como nunca antes havia sentido lhe alagou a mente. Uma fúria irracional, inevitável. Tinha-lhe mentido. Ela. Tinha passado todos esses dias, desde sua topada, pensando que era diferente, sofrendo por algo que não entendia, nem aceitava. De repente resultava que ele era ela. Era preciosa. E ele um idiota. Apartou suas mãos de Coraline e esfregou a cara para tentar acalmar-se, mas tinha muito uísque no corpo e muitas semanas de frustração.

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Olhou-a outra vez, soprou, pôs as mãos no chão para dar-se impulso e poder levantar-se. Ela o seguiu. Ficaram cara a cara, estudando-se, em metade da noite. Coraline não sabia se corria ou tentava lhe explicar. Sabia que tinha descoberto tudo. Esses olhos o haviam dito, tinha visto o aborrecimento e o que deduzia como alívio, mas possivelmente só fora seu próprio alívio o que havia sentido, porque no fundo sentia um alívio ao expor-se diante dele como a mulher que era, inclusive se nesse instante não mostrasse bom aspecto. Já não teria que fingir mais diante dele. Era o que tinha desejado no primeiro momento, que ele soubesse que era uma mulher. Uma dama que, em qualquer outra circunstância, poderia chegar a desejar. De momento contava com toda sua atenção, embora somente fosse porque queria matá-la. "Não está mal", disse-se ela. David tapou a cara de Coraline com só uma mão, encheu-se os pulmões de ar e se manteve assim enquanto contava até cento e sessenta, que foram os segundos necessários para apaziguar-se. Não podia continuar olhando essa cara e não fazer nada. Coraline teve a prudência de não mover nem um músculo para evitar provocá-lo. — Vamos, levo a sua casa. — Sem esperar resposta David voltou a tomar a mão com autoridade e começou a andar com ela detrás. — É melhor que vá sozinha. — Coraline tentou resistir por medo ao que ele faria quando chegassem. — E me diga Corl, — pronunciou seu nome com sarcasmo — o que fará se encontrar aos escoceses? — Posso me defender sozinha — assegurou orgulhosa. — Sim, já vejo, mas não poderá dar quatro cabeçadas. — Fez uma pausa para que sua voz não tremesse — Ao primeiro golpe estará morta. Coraline fechou a boca de repente, quando ele girou e lhe mostrou a expressão de sua cara e não a voltou a abrir até chegar a sua casa. David se afogou de angustia ao recordar tudo o que tinham feito com ela semanas atrás, em especial o murro que lhe tinha dado Herby. Não obstante, o que quase conseguiu tombá-lo de pânico foi imaginar as atrocidades que poderia sofrer se a descobriam esses escoceses. Inclusive na universidade não tinha estado segura. E não só pelo fato de ser uma mulher bonita rodeada de homens, mas sim porque se a descobriam teria que fugir da Inglaterra. Seria o escândalo do século. Por que tinha feito algo assim? O que queria conseguir ou provar? David não podia compreender o que a tinha levado a cometer essa loucura, mas o averiguaria, embora fosse a última coisa que

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fizesse. Disso estava seguro. Coraline lhe assinalou, como tinha feito com o Tom e Percy semanas antes, por onde ir para evitar que sua avó se inteirasse de suas aventuras. Desceram em fila a estreita escada até chegar à porta de serviço. Quase sem espaço, Coraline se deu a meia volta antes de abrir a porta para despedir-se dele. Desejava que se fora e pudesse entrar com tranquilidade. Como era de esperar, David não se foi tão rápido como ela pretendia. — Bem, já pode ir-se — disse Coraline olhando para cima. David se aproximou tanto a ela que a obrigou jogar a cabeça para trás, pôs as mãos na porta e a encerrou entre seus braços. — Como te chama? — perguntou ele em um tom baixo. — Cor... — Não te atreva a me mentir mais — ameaçou David. — Coraline — sussurrou ela com voz estrangulada. Debaixo do aroma de álcool pôde distinguir sua loção de barbear, embora a barba já cobria sua bonita cara. — Caroline — repetiu ele. — Não, é Coraline — apontou ela com certo encolhimento. Tinham que falar de muitas coisas, mas não era o momento. Ela deveria estar em casa, a salvo, em vez de na rua exposta a receber uma surra por parte de uns sujos escoceses. — Não pode seguir com esta farsa — acrescentou ele. — Vai delatar-me? — indagou preocupada. David ia replicar, mas a necessidade de beijá-la estava eclipsando a vontade de saber seus propósitos e planos. — Entra — ordenou severo. Coraline se agachou para sair da prisão que supunham seus braços, girou o trinco e abriu devagar. Deu-se volta para ver o rosto de David. Ele seguia em seu lugar, quieto, e a olhava como se fosse a equipe a bater. Bom, já não podia fazer nada respeito a isso, pelo menos até a manhã seguinte. O que devia lhe preocupar nesse momento era como chegar a sua habitação sem que ninguém a visse, nem sequer Sórenson, o viking. David ficou ali plantado. Atônito, viu-a desaparecer. O que se supunha que tinha que fazer com ela? Não obstante, essa não era a questão, a pergunta correta era o que ia fazer com Coraline, porque uma coisa era o que devia fazer e outra, muito distinta, o que queria.

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Capítulo 11 Coraline esteve uma semana sem ir à classe. Sua aventura universitária não fazia mais que encontrar obstáculos que lhe ocasionavam um número excessivo de ausências. Se não era por sua avó, era por um olho arroxeado ou, no último caso, por uma bebedeira, embora, para ser sincera, não era esse o motivo. A ressaca lhe tinha passado ao dia seguinte, durante o qual ficou de cama com panos de água fria sobre a cabeça e pôs muito cuidado em não ver sua avó nem ao viking que tinha por mordomo, para que não lhe esquentassem mais o pobre cérebro. A causa de que os seguintes quatro dias continuasse sem ir, era David. Tinha descoberto sua mentira. Estava assustada. Tinha-lhe perguntado se a ia delatar, mas ele se negou a responder. Se fazia um nó na garganta, cada vez que recordava o momento de tensão na porta traseira de sua casa. Por sua expressão insondável, não podia adivinhar o que ia fazer. Todo seu plano tinha se arruinado, todas suas ilusões, e por quê? Porque, como vinha suspeitando há um tempo, era uma idiota. Porque, em vez de manter as distâncias que era justo o que havia dito que faria, fazia justamente o contrário. Aproximou-se dele mais e mais, tinha comentado as classes, perguntado, falado das partidas, bebido com ele, escutado sua risada maravilhosa, visto esses olhos travessos, pavoneou-se. E agora sua vida estava acabada, não só a universitária, a não ser sua vida como pessoa. Quando David a expuser ante o reitor e o comitê universitário, todo seu mundo, tal qual o conhecia, teria se terminado. Seu pai se inteiraria, sua família cairia em desgraça e, se não a metiam na prisão, a encerrariam em um convento. Quanto a sua avó o mais provável era que morresse do desgosto. Mas o que tinha feito? No que pensava quando tinha ideado essa loucura? O que lhe tinha feito acreditar que ela poderia ser uma das poucas mulheres que o conseguisse? Ela não era Elizabeth Garrett, a mulher que mais admirava depois de sua mãe e de sua avó. Ela não contava com o apoio de seu pai, nem de um marido, como a senhora Garrett, embora era óbvio que, ao não ter marido, era difícil contar com seu apoio. Soprou, resignada, furiosa consigo mesma por pensar tolices em vez de procurar uma saída. E raivosa com David, por ser a causa de sua desgraça. Foi para o escritório de seu quarto e tirou da primeira gaveta uma carta que guardava como o maior de seus tesouros. Sentou-se

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na cadeira de balanço branca que havia junto à janela e a leu. Depois de um momento de reler uma e outra vez aquele papel, já amarelado pelo tempo e o uso, acalmou-se. Sempre que estava decaída ou a embargava a desesperança lia aquela carta. Uma carta escrita a Elizabeth Garrett por parte de seus companheiros de classe, que dizia: Nós, os estudantes abaixo assinantes, consideramos que os resultados da mescla de sexos na mesma classe podem ser muitos desagradáveis. É muito provável que os professores se sintam coibidos ante a presença de mulheres e não possam referir-se a certos feitos necessários de forma explícita e clara. A presença de mulheres jovens, como espectadoras da sala de operações, é uma ofensa aos nossos instintos e sentimentos naturais e está destinada a destituir esses sentimentos de respeito e admiração que todo homem, em seu são julgamento, sente para o outro sexo. Esses sentimentos são sinais da civilização e o refinamento. Tinha conhecido Elizabeth Garrett em Londres anos atrás, quando estava de visita com sua mãe em casa de uns amigos. Coraline foi expressamente ao hospital para conhecê-la e ficou maravilhada com aquela mulher. Tinha ouvido falar dela. Muitos periódicos se ecoaram de suas desventuras de estudante assim como de sua fortaleza. Quando lhe contou os sonhos que tinha, a senhora Garrett afirmou que era um caminho tortuoso, mas que, se era o que de verdade queria, não seria feliz de nenhuma outra maneira. Disse-lhe que em sua vida se encontrou com muitos oponentes, em sua maioria homens, mas que tinha achado também gente estupenda que a tinha ajudado a conseguir seu objetivo. Então lhe deu aquela carta como amostra das dificuldades com as que tropeçaria. Também lhe mostrou uma nota que escreveram outros companheiros, alunos que a apoiavam e que se desculpavam pelo comportamento dos estudantes que não a aceitavam. A doutora Garrett lhe disse que era um caminho muito duro para percorrê-lo sozinha, necessitava-se apoio. Elizabeth Garrett era a primeira doutora cirurgiã na Inglaterra, tinha conseguido licenciar-se depois de superar numerosos obstáculos. Essa carta era uma das primeiras travas que lhe tinham posto ao começar sua preparação como enfermeira, na sala de dissecação, do hospital Middlessex, mas ela não abandonou, continuou com sua luta, porque o que desejava por cima de tudo era ser médico. Logo depois de seguir com seus estudos no hospital pediu para ser examinada e, embora conseguiu menção em todas as matérias, foi rechaçada porque não era bem visto que uma mulher tivesse mais conhecimentos que os alunos homens. Mesmo assim

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não se deteve. Solicitou ser admitida em todas as universidades, tanto na Inglaterra como em Escócia, mas nenhuma a aceitou. Entretanto, graças a sua inteligência e à ajuda de seus familiares, conseguiu que a Sociedade de Farmacêuticos, ao não ter proibição explícita, examinasse-a. Elizabeth conseguiu entrar no registro médico de Grã-Bretanha em 1866. Esse mesmo ano fundou um dispensário para atender a mulheres e meninos na zona mais pobre de Londres. Um dispensário que não só continuava aberto, mas que estava ampliando. E tudo o tinha conseguido uma mulher com trabalho, perseverança e convicção. O que mais desejava Coraline era trabalhar junto a ela, é obvio não como médico, nem enfermeira, mas sim na administração do centro. Ela era boa em muitas matérias, mas em especial com a matemática, queria licenciar-se em Economia e estava segura de que se contribuía seu grão de areia, poderiam criar muitos mais hospitais. Estava cheia de ideias e de sonhos: desejava com ardor ajudar a outros. Respirou fundo. Não se deixaria vencer. Estudaria, conseguiria licenciar-se. Coraline tinha decidido dar esse passo porque conhecia a história da senhora Garrett, assim como a de muitas outras líderes que tinham tentado estudar carreiras consideradas para homens. Ela não era a primeira, nem seria a última, por fortuna, mas também queria mudar o mundo. Talvez tivesse que ter optado por não mentir, apresentar-se como a mulher que era e chamar de porta em porta em busca de uma universidade que a aceitasse. Entretanto, como sabia que a senhora Garrett, ao final, em 1870, tinha tido que viajar à Universidade de Medicina de Sorbona, na França, para licenciar-se, tinha preferido ir pela via mais rápida que era, sem lugar a dúvidas, a mais comprometida. Coraline estava decidida a não render-se, aceitaria as consequências de seus atos e começaria de novo sua luta. Se tivesse que ir-se da Grã-Bretanha, iria. Recostou a cabeça na cadeira de balanço e se deixou acalmar pelo suave balanço. Olhou pela janela. O sol, de uma cor laranja gritante, ocultava-se depois dos ramos nus das árvores. Era um momento que gostava, quando o dia se ia acabando e se encerrava no quarto com os livros. Quase tinha chegado a hora de jantar. Encheu seus pulmões de ar, por fim relaxada de tudo, baixou a vista e observou às pessoas que ainda andavam pela rua. Havia uma jovem dama que agarrava sua bolsinha com força, como se lutasse por não golpear ao cavalheiro com o que discutia. Um pouco mais adiante, uma senhora com touca levava pela orelha a um menino de uns dez anos, que mostrava a dor no rosto. Havia duas jovenzinhas que cochichavam e

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riam. Senhores de um lado a outro da rua. Quase todos se retiravam a descansar. Passou uma carruagem. Escorreu o papel das mãos ao mesmo tempo em que ficou sem respiração. Dava igual desde onde olhasse, ela o reconheceria a qualquer distância. Essa maneira de andar decidida, enérgica e, entretanto elegante, não podia ser outro que ele. David se aproximava de sua casa. Não via seu rosto porque tinha posto um chapéu, mas suas maneiras lhe demonstraram que seguia zangado e que vinha a procurá-la. Levantou-se de um salto e a cadeira de balanço se balançou sozinha. Recolheu o papel do chão; apertou-o contra o peito. Sem saber que força a empurrou, viu-se diante da penteadeira para recompor seu aspecto e beliscando as bochechas. Era patético, mas não podia evitar estar um pouco nervosa ante a ideia de que a visse vestida de mulher. Já que sua vida ia acabar essa noite, queria estar imponente. Lançou-se para o armário e procurou como uma louca. O que devia usar? O vestido rosa com babados? Pôs cara de repulsão. Não, esse não, muito empertigado. Se David a via com isso, não a reconheceria; não depois de havê-la visto com calça e bigode. OH, que vergonha! As barbaridades que tinha cometido com ele. Atirou alguns vestidos mais, até que deu com um que lhe pareceu acertado. Um azul escuro com decote arredondado, não muito baixo, embora tampouco alto e mangas curtas, que deixavam expostos os braços. Esse vestido lhe fazia estreita a cintura e graças ao espartilho, viam-se mais arredondados seus quadris. Tinha uma queda ligeira, vaporosa. Não era muito recarregado e insinuava como ela pretendia. Além disso, ia perfeito com seu tom de pele. — Sim, este é perfeito. — Separou-o para observá-lo melhor e assentiu com a cabeça — Embora, possivelmente, deveria procurar algo negro — se disse em voz alta e um pouco triste — Quando minha avó ouça o que tem que dizer. Deixou de pensar em velórios e começou trocar-se para sua visita. Ia fazer lhe frente com valentia.

*** Queria matá-la. Uma semana. Tinham passado cinco dias e ainda não se apaziguou. A manhã seguinte de seu descobrimento tinha esperado vê-la em classe, mas a garota tinha tido a prudência de não ir. "Melhor", pensou ele, porque estava ainda muito alterado. Passaram dois dias mais sem que ela aparecesse. Ele deu classe com normalidade. Imaginou que teria decidido abandonar a farsa. Ante esta ideia, que deveria lhe haver parecido o melhor, sentiu um repentino abatimento. Tentou manter a mente ocupada. Além de suas

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classes, estava próxima a partida com a Irlanda, tinha que concentrar-se. Deveria haver-se alegrado de não ter que suportar sua presença, se queria esquecer tudo o que lhe tinha feito sentir, mas não era assim e se enfurecia mais. Quando lhe tinha dado o privilégio de ocupar sua mente? Que ele recordasse, nunca. Ninguém tinha tido o privilégio, à exceção de seus seres queridos, de lhe roubar nem um minuto de seu pensamento que ele não queria dar, mas aquela garota lhe tinha metido na cabeça como se fosse uma teoria matemática. Entretanto, Coraline não era uma teoria, era um fato prático e por isso mesmo não sabia o que fazer com ela. O quinto dia sua cabeça estalou. Essa mesma sexta-feira tinha deixado cair, em metade de uma exposição de álgebra, que terei que limpar "a Coraline" em vez da "incógnita x". Foi nesse momento que deu por finalizada a classe e saiu em busca de seu problema.

*** Chegou à porta, chamou com decisão. Enquanto esperava, atirou da jaqueta, tocou-se o chapéu e se tirou uma bolinha de pó imaginária do ombro. Estava nervoso. Não, não podia mentir, estava ansioso por vê-la. Queria comprovar com a mente limpa se tudo o que havia sentido era real ou o tinha imaginado. Abriu a porta um homem de idade avançada, quase tão alto como ele e bastante corpulento. Sua cara parecia cinzelada, tinha o cabelo branco penteado com esmero para trás e uns olhos cinza como o gelo. David se deixou examinar por quem supunha que era o mordomo, ao igual a ele inspecionava a situação. O que teria feito ela? Teria confessado já? Ou continuaria esperando a que ele atuasse? — Bom dia, cavalheiro — saudou Sórenson. — Bom dia, sou o senhor Flint, professor da Universidade de Oxford, vim a visitar a senhorita... — David sabia o nome, mas não o sobrenome e se não o dizia bem, aquele muito gigante o despediria com educação, mas cortante. — Smith? — terminou Sórenson. Não desejava colocar à senhorita Smith em problemas. Entretanto, estava claro que aquele homem sabia algo sobre as idas e vindas da jovem. Melhor era descobrir que intenções tinha, antes que se inteirasse a senhora Atkinson. — Sim! —exclamou David aliviado. Sórenson não respondeu e avaliou a situação. O senhor Flint parecia um cavalheiro, nada o fazia pensar que provocaria bulício. Retirou-se a um lado para deixá-lo passar. David sentiu um júbilo

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impróprio. Superado o primeiro inconveniente para vê-la, continuaria ver se o recebia ou se escondia como uma avestruz, embora teria que reconhecer que era uma mulher valente. Ou possivelmente só estava louca. — Se fizer o favor de esperar um momento, avisarei à senhorita. — Sórenson lhe indicou uma cadeira do hall se por acaso queria esperar mais cômodo, mas não tomou nem o chapéu, nem o casaco. — Obrigado — respondeu David e ficou de pé. O mordomo fez uma ligeira inclinação de cabeça e deu meia volta para ir em busca de Coraline. Antes de começar a subir ouviram umas pegadas no piso superior. Alguém tinha pressa e Sórenson sabia quem era. Suspirou. David não podia imaginar-se que era ela, portanto, quando a viu descender pela escada, ficou sem fôlego. Ela era um autêntico anjo e ele estava metido em uma boa confusão. Como não se deu conta antes? Embora todos os sinais lhe demonstrassem que era um menino, essa cara não podia esconder-se detrás de umas lentes, umas costeletas e uns quantos livros. Ao vê-la essa noite descer por aquela escada de madeira, com a iluminação das lâmpadas de óleo que penduravam da parede e esse vestido azul que se agarrava à seu corpo como uma luva, Pensou que estava no céu. Adornou-se o cabelo com uma pequena forquilha que tinha duas florzinhas brancas. Nada mais levava de ornamentos, somente suas bochechas rosadas e uns lábios que agora podia descrever, sem medo a voltar-se louco, como se mereciam. Admirou seu cabelo, sem essa graxa que usava para dominá-lo. Brilhava, parecia sedoso, e ele morria por revolver-lhe como a outra noite. Antes que se desse conta, chegou até onde estava ele. — Boa noite, senhor Flint — Coraline lhe ofereceu a mão com um sorriso forçado; ele tomou, de forma mecânica para saudá-la — A que devo a honra de sua visita? — pigarreou em um intento por provocar uma reação em David, que se ficou como uma estátua. Ele pestanejou. Não podia articular palavras, tinha ido decidido a... não sabia muito bem a que, mas com o propósito de fazer algo, sem dúvida. Agora que a tinha diante, a uns centímetros de distância, não sabia como atuar. Observava-a uma e outra vez, à espera de uma elucidação, um sinal. Era tão pequena, a via tão delicada. Se estendia o braço um pouco mais, poderia lhe rodear a cintura com só uma mão. Seus olhos, em todas essas semanas, nunca os tinham visto brilhar dessa maneira: olhavam-no como se não existisse ninguém mais no mundo, como se estivessem sozinhos nessa habitação. Sórenson tossiu para recordar sua presença. Esses dois jovens se estavam pondo em evidência, se aparecia sua senhora e

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presenciava isso, a senhorita Smith ia ter que explicar mais de uma coisa. — Senhorita Smith — interveio o mordomo — Se me permite — disse isso e baixou o olhar — Possivelmente deseje atender a sua visita na biblioteca — assinalou para a esquerda do hall onde estava situada a estadia. — OH! — Coraline retirou sua mão de entre as de David — Sim, é obvio. — Olhou ao mordomo —.Obrigado, senhor Sórenson —disse Coraline com verdadeira gratidão. O pobre homem a estava ajudando de novo, para evitar que sua avó se inteirasse da visita antes que ela averiguasse o que pretendia. Foram entrar na biblioteca quando escutaram a porta da salinha do chá. David voltou a vista atrás, viu sair a uma senhora mais velha com touca, vestida em tons escuros, mas tão polida que parecia uma árvore de Natal calcinado. A senhora observou a todos os pressente. David inclinou a cabeça a modo de saudação e lhe ofereceu um amável sorriso. A senhora Hamilton devolveu o gesto a aquele homem tão atrativo. Depois de jogar uma olhada a Sórenson, girou sobre os talões para voltar para o quartinho do chá, onde estava reunida com sua boa amiga, a senhora Atkinson. Sórenson se fixou em Coraline, ambos cruzaram um olhar. A ideia de que a visita fora secreta se acabava de ir ao brejo; os dois sabiam. Quanto antes terminasse a conversação com o senhor Flint, melhor. Coraline ainda não estava preparada para dar explicações a sua honorável avó. David ficou surpreso de que o mordomo os apressasse para entrar e de que evitasse o fato de que ela o tinha agarrado da mão, de uma maneira imprópria, além de com urgência, para que a seguisse. Parecia nervosa depois da saída dessa senhora. Não acreditou que fora a avó do Coraline, posto que, se fosse a senhora da casa, quereria saber quem era o cavalheiro desconhecido que devia ver a sua neta, pelo menos isso era o que ele desejava pensar. A ideia de que Coraline estivesse tão desatendida, que não tivesse a ninguém que se preocupasse com ela, contraía-lhe o estômago. — Bem. — Coraline o empurrou para dentro da biblioteca e fechou a porta — A que veio? — quis saber nervosa. — E você me pergunta isso? — David a olhou admirado por seu descaramento. Interrogava-o como se não tivesse feito nada absolutamente. Como se ele fosse um estranho, mas ele não pensava tratar a de você. Depois de ter bebido com ele e lhe chutar o traseiro, ganhou-se o direito a repreendê-la — Quero que me dê explicações. — Olhou-a carrancudo — Antes que desentupa seu engano. —acrescentou malicioso. — Então, vai delatar-me? — Coraline tragou saliva. No mais

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fundo de seu coração, guardava a esperança de que ele esquecesse todo aquele assunto — Depois de tudo o que compartilhamos —continuou trágica. David entrecerrou os olhos com suspeita, embora teve que morder a bochecha para não sorrir. A trapaceira tinha guelra e picardia. Tinha-o impregnado muito bem essas semanas. Coraline sabia que ele se sentia muito unido a seus companheiros de equipe, do qual ela formava parte e tentava usar isso em sua defesa. — Não me trate de você, Coraline. — Como gostava de dizer seu nome, tinha-o repetido durante estes cinco dias, até não poder mais, tanto que lhe tinha escapado em classe esse mesmo dia — Sabe que me chamo David. — Recordou-lhe com as mandíbulas apertadas. Ela o olhou de esguelha e jogou uma olhada pela habitação se por acaso havia alguém, como se fora a cometer um delito. Um ato que David considerou absurdo, já que sabia com certeza que estavam sozinhos, mas que lhe resultou enternecedor. — David. — O nome saiu de sua boca sem ar, porque era a primeira vez que o chamava assim sendo ela mesma. Essa tolice a Coraline pareceu um acontecimento muito íntimo. A solidão da biblioteca, o fogo crepitando as suas costas, o aroma de livros, a couro e a cercania dos corpos ajudavam a criar um ambiente intenso. Coraline tinha passado de estar angustiada pela incerteza de seu destino a sentir-se flutuando, sem que lhe importasse nada mais que o que estava ocorrendo nessa habitação, neste momento, junto ao homem mais bonito que tinha tido a desgraça de conhecer. Sem prévio aviso, mais do que o olhar desesperado para ele, viu-se envolta entre seus braços. David não tinha podido resistir por mais tempo. Já lhe tinha sido um triunfo não fazê-lo diante do mordomo, mas, ao tê-la assim, como uma autêntica fantasia para ele somente, não pôde dominar-se mais e a rodeou com os braços. Antes de lhe dar tempo a replicar, cobriu com seus lábios aquela maravilhosa boca que tinha conhecido como se o estivesse saboreando. Não houve tempo para pensar se devia fazê-lo com delicadeza. Tinha tanta urgência, tanta necessidade dela, que se limitou a arrasá-la. David não se surpreendeu, quando lhe devolveu o beijo. Mordeu com suavidade seu lábio inferior para que o deixasse entrar. Coraline se deixou levar, o forte desejo que sentia por ele supriu a inexperiência. Devoraram-se, tirando o chapéu. David chegou a pensar que se estavam recordando, como se em sua mente já existisse uma evocação dela e o sabor de sua boca a trouxesse para o presente. Entretanto, sabia que não era assim, se a tivesse conhecido antes...

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Coraline subiu as mãos até seu pescoço, pegou-se a ele, e David estreitou com força sua cintura e a apertou como se não queria deixá-la ir. Segundos, minutos, horas, não tivessem podido dizer o tempo que estiveram fundidos. Por desgraça, ou por sorte, David ouviu que a porta se abria e teve os reflexos de separá-la justamente para que a situação não fora de tudo comprometida. A Coraline não deu tempo de reagir, nem de processar tudo o que tinha passado. Deixou-se apartar por ele. Viu, como se fosse uma mera espectadora no teatro, como ele se movia com a rapidez de um raio, recolhia o chapéu esmagado no chão e se situava a uma distância prudente dela, enquanto mostrava um cativante sorriso e saudava sua avó com calma frieza.

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Capítulo 12 — AVÓ! —chiou Coraline com a mão no coração. Acabava de entrar em contato com a realidade. Sua avó ali, David ali, ela o beijava e... "vou desmaiar", pensou. Sua vista viajava de sua avó a David compulsivamente, em busca de uma reação igual de nervosa. Entretanto, ele se mostrava sereno, tanto que a Coraline incomodou um pouco, já que ela estava tremendo. Todo seu mundo se derrubou, em sua boca. Agora o que ia fazer. Quanto a sua avó, estava tão serena como sempre. Para ser fiél à realidade, seria mais correto dizer que estava calma como era habitual. Tampouco tinha motivos para estar tão histérica como ela. Não, de momento. Quando David abrisse essa fascinante boca e explicasse o motivo de sua visita, cairia fulminada no ato. Teve piedade do gesto entre aturdido e horrorizado de Coraline e lhe deu uma mão para sair do apuro. — Boa noite, senhora. — aproximou-se da senhora Atkinson para saudá-la como devia. Tomou a mão de Annabel e a aproximou de sua boca, sem chegar a roçá-la com os lábios. Sua reverencia foi tão exagerada que Coraline não pôde evitar soprar — Permita-me apresentar. — Sem esperar resposta continuou — Sou David Flint, professor na universidade de Oxford. A senhora Atkinson retirou sua mão com majestosidade e examinou ao cavalheiro. Um fato que não era necessário, já que sua querida amiga, a senhora Hamilton lhe tinha devotado todo detalhe. Annabel ficou perplexa ao comprovar que os dados que lhe tinha dado sua amiga coincidiam com a realidade. Aquele jovem era, na verdade, muito arrumado. Cabelo escuro bem recortado atrás, um pouco mais comprido na frente, mas muito bem penteado. Segundo a senhora Hamilton, o sorriso era cativante, mas ela o qualificaria de travesso; em qualquer caso, arrebatadora. Media aproximadamente um metro oitenta e cinco, posto que Sórenson media um metro e oitenta, e era uns centímetros mais alto que ele. Levava um traje muito caro, feito a medida. Tinha notado que suas mãos não eram tão suaves como as que deveria ter um cavalheiro, mas, sem dúvida, tratava-se de um homem com dinheiro e inteligente, dado que era professor e em Oxford nada menos. Não obstante, o que a cativou foram seus olhos. Eram rasgados e muito escuros. Seu físico era o de todo um homem, de aspecto inclusive que se poderia dizer bruto, mas seus olhos transmitiam uma mescla de travesso e nobreza, pouco comum nos adultos.

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Tudo isto tinha distinguido a senhora Hamilton em apenas uns instantes. Annabel ficou um pouco surpreendida, quando viu retroceder a sua amiga com um sorisinho nos lábios, uma vez que se despediu. — OH, senhora Atkinson — lhe disse a senhora Hamilton enquanto fechava a porta — Que homem! — Senhora Hamilton — a repreendeu Annabel — Hei-lhe dito mil vezes que não fale assim do senhor Sórenson — soltou zangada — ele é meu. — ruborizou-se — Quero dizer que é meu mordomo —se corrigiu com rapidez. — Não refiro a ele — continuou a senhora Hamilton ignorando o descuido de sua querida amiga. Aproximou-se dela para sussurrar— Há um homem imponente em seu hall e veio visitar a sua neta. —Soltou um risinho. E enquanto a senhora Atkinson avaliava como abordar a situação, a senhora Hamilton foi dando detalhes de como exatamente aquele jovem. Devia reconhecer que tinha um grande poder de observação. Annabel se preocupou, posto que não tinha nenhum registro de que sua neta tivesse conhecido a um homem. Não era de estranhar que não estivesse a par desse fato: aquela menina ia e vinha sem nenhum controle. Era hora de averiguar o que tramava essa menina. Assim, entrou pronta a interromper a pequena reunião que mantinham na biblioteca, apesar da suspeita que lhe supôs Sórenson. — Me permita avó — interveio Coraline recordando os maneiras que a dama adorava — Senhor Flint, apresento a minha avó, a honorável senhora Atkinson — disse gaguejando. Coraline não podia acreditar que estivesse acontecendo aquilo. David voltou a realizar a reverência com esmero. Annabel sorriu. Alguém pigarreou a suas costas. — OH, desculpe-me, senhora Hamilton — se desculpou Coraline agradecida pela primeira vez de que a mulher estivesse ali, fazia o ambiente menos tenso — Senhor Flint, apresento-lhe à senhora Hamilton. David repetiu a cortesia, a convidada se ruborizou, como uma virginal moça, sob o atônito olhar de Coraline. — A viúva senhora Hamilton — esclareceu a aludida. — Lamento-o — disse David. — Que coisa? — perguntou a mulher embevecida. — Sua perda — afirmou ele. — Não perdi nada, mas obrigada — asseguro a senhora Hamilton enquanto pensava que era um jovem muito agradável. — Referia-me à perda de seu marido — insistiu ele confundido.

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— Ah! É que o conhecia? — perguntou a anciã estranhando ante a possibilidade. — Não — afirmou David piscando: sacudia a cabeça como se o tivessem golpeado. — Já o imaginava, se o tivesse conhecido, não lamentaria sua perda. David tentou não rir muito abertamente. Ele estava habituado a discussões ilógicas em sua família, mas aquela senhora lhe havia chocado até o inigualável. — Senhora Hamilton! — exclamou Annabel — Comporte-se —lhe ordenou com os lábios apertados. Não podia confessar diante de sua neta que as barbaridades que dizia sua querida amiga, a senhora Hamilton, faziam-lhe muitíssima graça. — Bem — interrompeu Coraline envergonhada — O senhor Flint já se ia, só veio a...— olhou-o pedindo auxílio, mas David estava ainda sob os efeitos da senhora Hamilton — A me saudar. — OH, que lástima — se lamentou a avó. Tinha a obrigação de inteirar-se quem era esse jovem e de onde conhecia sua neta. Já tinha cometido um engano com sua filha: por não ter estado com os olhos bem abertos, casou-se com um escocês — É você é inglês senhor Flint? — perguntou abruptamente. — Sim — assentiu David. — Isso é magnífico! — exclamou a senhora Atkinson com uma alegria desmedida. — Me alegro que assim lhe pareça. — David não soube que mais dizer porque não entendia nada do que estavam falando. Mesmo assim, pareceu muito divertido que a senhora Atkinson ficasse tão eufórica por que fora inglês. — É você encantador — assegurou a senhora Atkinson ficando em movimento — Por favor, fique para jantar conosco. — É... — David contemplou a Coraline. Tinha ainda a boca ruborizada pelo beijo e seus olhos brilhavam. Morria por estar com ela, assim, por que não aproveitar. Além disso, ainda tinha muitas coisas que esclarecer — Está bem, muito obrigado. — Mas não pode — saltou Coraline — Tem que preparar suas classes e... e... — Tolices — disse ele, fazendo um gesto com as mãos — Amanhã é sábado, não há classe. — Treinar! — rompeu ela se desesperada, o que provocou o olhar impressionado da senhora Hamilton — Tem que treinar —assegurou. — OH! — exclamou Annabel um tanto deslocada — Assim que também é esportista. E me diga jovem que esporte pratica? — Futebol, senhora — afirmou com orgulho. — Vá — murmurou a senhora Atkinson — E é inglês — repetiu

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olhando a seu amiga. A senhora Hamilton aumentou os olhos e se tampou a boca com delicadeza. Coraline não sabia onde colocar a cabeça, para não ver ninguém. David não entendia o extraordinário desses fatos. Tendo em conta que a Inglaterra era o berço desse jovem esporte, denominado "soccer" como muitos, cada vez era mais habitual ser inglês e jogar futebol. Embora a senhora Atkinson e sua querida amiga, a senhora Hamilton, tinham idade suficiente para ter ouvido falar dele. Que David recordasse, o futebol como tal tinha nascido em 1863, já tinham transcorrido mais de vinte anos. — Não me diga que não conhece esse maravilhoso esporte? — indagou David. A senhora Hamilton soltou uma risadinha suspeita e à senhora Atkinson lhe escapou um gemido afogado. Essa reação, a David, despistou-o ainda mais; ia perguntar quando Coraline se adiantou. — Foi muito amável vir para ver-me. —Tirou-o do cotovelo brandamente, enquanto, com a outra mão estendida para a porta, mostrava-lhe a saída se por acaso a tinha esquecido. — Não tenho que treinar — asseverou David contundente, mas com uma voz tão sugestiva que fez com que Coraline lhe pusesse o cabelo em pé. — Então, já está tudo acertado — decretou a senhora Atkinson. Girou para o Sórenson que aguardava fora — Prepare um talher a mais, por favor. — Que sejam dois — acrescentou a senhora Hamilton, detrás da anfitriã que se encolheu de ombros. Annabel a repreendeu com o olhar pela intromissão tão descarada. — Que sejam dois, Sórenson, por favor — acessou soprando. — Mas... mas... Coraline tentou deter sua avó, que já se abria passo graças ao gesto cavalheiresco de David, que as convidava a abandonar a estadia. Coraline elevou os olhos para o céu: pelo visto, terminou-se a conversação, sem contar com sua opinião. Não podia acreditar o que estava ocorrendo. Tudo lhe estava indo das mãos, tinha que recuperar o controle. Demorou meio minuto reagir. Precaveu-se de que David continuava quieto esperando como um cavalheiro a que ela saísse, assim, sem nada mais que dizer, seguiu aos outros que já tinham desaparecido. Antes de pôr um pé fora da biblioteca, David a apanhou pela nuca e a puxou, até que cobriu de novo sua boca. Ela, tomada por surpresa, não opôs muita resistência, e mais, se agarrou às lapelas da jaqueta e ficou nas pontas dos pés, pegando-se mais a ele. Assim que suas línguas se uniram, Coraline voltou a perder a noção de

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tempo e espaço. Era tão bom sentir-se assim, pensou. Parecia como se realmente não houvesse além desse instante e lugar. Sentia-se acalorada. Seu corpo era dominado por uma insólita frouxidão, algo que a deixava sem forças, exceto para beijá-lo. Sua mente estava nublada, até tal ponto que lhe dava igual se sua avó os surpreendesse. Ante este pensamento, Coraline tentou separar-se, mas ele não a deixou, seguia retendo-a pelo pescoço com uma delicadeza que a fazia borbulhar. David sabia que tinha que parar, devia deixá-la ir, mas não podia, só um segundo mais, dizia-se. Tinha um gosto tão bom! Nunca tinha experimentado um sentimento igual. Quando sua cabeça descobriu o que seu corpo já sabia, que era ela e não ele deixou escapar semanas de frustração. Apropriou-se dele um desespero, como nunca antes havia sentido, por vê-la, por estar com ela, por beijá-la. Agora não tinha nem ideia de como reconduzir tudo o que lhe estava acontecendo. Ainda ficavam muitas coisas que conhecer de Coraline Smith, de fato queria sabê-lo tudo. Pôs fim ao beijo, mas não a soltou. — Coraline — sussurrou sobre sua boca. Apoiou sua frente na dela. — David — suspirou ela enquanto acariciava as mãos que a seguravam agora pela mandíbula. — O que vamos fazer com tudo isto? — David perguntou mais para si mesmo que para ela. — Não tenho nem ideia. — Coraline se elevou e foi ela quem roçou os lábios dele. Olharam-se aos olhos. David lhe acariciou a mandíbula com seus polegares, enquanto sua mente lutava por esclarecer aquele caos. Chegou a uma conclusão: o único que sabia com certeza era o que não ia fazer. Não pensava separar-se dela, jamais. Coraline percebeu a determinação em seus olhos. Fechou os seus e aspirou fundo. Não soube o que lhe responder porque tampouco estava segura do que significava aquele olhar. Entretanto, deu-se conta de que no momento que suas bocas se tocaram, de uma maneira ou outra, seus destinos tinham ficado unidos. Coraline se deixou abraçar antes de sair da biblioteca. David a reteve um minuto mais; enquanto a rodeava com os braços e apoiava a bochecha na cabeça do Coraline, sussurrou: — Segue cheirando a coco e a flores. Aspirou esse aroma. Ela não disse nada. Sorriu. Desfrutou desse pequeno instante de felicidade, dessa nova sensação prazeirosa e confortável, antes de voltar para a realidade e confrontar a confusão que supunha sua vida. Sem girar para lhe ver a cara de desilusão foi soltando seus braços. Tomou a mão, deu-lhe um pequeno apertão para que a seguisse. — Bem, temos um jantar por diante — disse desanimada

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porque sabia o que lhes esperava no jantar: um interminável interrogatório por parte de dois agentes secretos da Scotland Yard. Olhou por cima do ombro — Recorda que te colocaste você sozinho em tudo isto — lhe advertiu risonha. David admirou de novo sua boca. Voltou a depositar um beijo antes de sair pela porta. Era louco, uma vez que a tinha provado não podia parar. Obrigou-se a dominar-se, ficou reto e, muito a seu pesar, soltou a mão que o agarrava. — Vamos, — disse David — não tem que ser para tanto.

*** Meia hora mais tarde, sentado à mesa com um maravilhoso jantar diante, não tinha podido provar um bocado. Não por culpa da beleza e doçura de Coraline que o tinha totalmente apanhado, mas sim porque aquelas encantadoras senhoras não lhe tinham dado trégua. Enquanto uma comia, a outra se encarregava de perguntar, assim foram acontecendo de uma a outra para aturdir ao adversário. David pensou que era uma técnica muito efetiva essa de aturdir ao adversário até a agonia. Porque era como se encontrava ele: agônico. Começaram perguntando inocentemente por seu alfaiate, admirando o traje que levava. David, agradado de que o elogiassem, respondeu alegre. Continuaram lhe rogando que lhes falasse de como um cavalheiro de sua posição tinha escolhido o ensino como meio de vida, ao que ele respondeu que sentia verdadeira paixão pelos livros, mas que, além disso, tinha negócios com seu irmão, Matthew Flint. Ao nomear a um de seus irmãos, aproveitaram para indagar sobre sua família. Ele não teve nenhum problema em responder, amava aos seus e estava orgulhoso de toda sua família. A senhora Atkinson parecia cada vez mais agradada com as respostas que David dava, mas o máximo para a senhora Atkinson foi quando se inteirou de que a irmã mais velha de David, Connie Flint, era a viscondessa de Torrington. David se levantou de um salto quando acreditou que a avó de Coraline ia afogar se. — Encontra-se bem? — quis saber, preocupado. — Sim... sim — respondeu a senhora Atkinson, maravilhada de que um homem assim existisse e estivesse jantando em sua casa. Era muito bom para ser verdade. Inteligente, endinheirado, esportista, arrumado, de excelente família e, lhe esquecia algo... Ah sim: inglês! Annabel riu para seus botões. Meu genro o odiará, pensou. Sabia que tinha que perguntar de onde conhecia sua neta, e o faria, embora já pouco importava porque, a não ser que averiguasse algo realmente espantoso dele, esse homem ia casar-se com sua neta. — E, me diga senhor Flint, — continuou Annabel uma vez

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recuperada a respiração — há dito que sua irmã está casada e tem seis filhos. — Jogou um olhar à senhora Hamilton que começou a contar com os dedos— E que seu irmão, o senhor Matthew Flint, está casado e tem... Quantos há dito? Dez? — quis saber surpreendida. — Você tem quinze sobrinhos? — exclamou a senhora Hamilton, que ficou sem dedos. — Dezesseis, embora os cinco maiores de meu irmão são adotados, mas essa é uma história muito larga. — OH, bom, nos pode contar isso amanhã à hora do chá. — A senhora Atkinson não deixou escapar a oportunidade —- Às cinco em ponto, não o esqueça. — Avó! — queixou-se Coraline, envergonhada do espetáculo que estavam oferecendo a senhora Hamilton e sua avó — Acredito que já está bem — censurou. Olhou a David implorando perdão. Ele não só lhe fez saber que não lhe importava, mas sim a contemplou como se fora a única pessoa que lhe interessasse nesse mundo. Coraline não pôde evitar ruborizar-se, assim, depois de ficar embevecida com seu sorriso, decidiu baixar a vista ao prato, para que não se precavessem do efeito que tinha David sobre ela. Podia parecer estranho ficar deslumbrada por um homem que a recém conhecia; claro que ela não podia lhe explicar a sua avó que o conhecia desde fazia um mês e que, nessas semanas, mostrou-se tal e como era, já que não sabia que era uma mulher. Tinha resultado ser um homem que admiravam, pelos valores que tinha, pelo carinho que punha em tudo o que fazia, pelo respeito que mostrava por cada um de seus alunos e pelo compromisso que sentia pelo que ele considerava como dele. David era um homem maravilhoso, sua avó o tinha descoberto em dez minutos. Sabia o que estava tramando e, embora lhe agradasse a ideia, não podia ser. Seu pai nunca o permitiria. Não com ele. Sua avó e a senhora Hamilton seguiram com sua tortura. Ela não pôde deixar de apreciar o educado e atento que se mostrava ao responder a todas as indiscrições que lhe perguntavam. Viu uma troca de olhares entre a senhora Hamilton e sua avó, suspeitou algo, mas muito tarde para esquivar o dardo. — Está casado, senhor Flint? — Senhora Hamilton! — gritou Coraline sobressaltada — Avó, tem que parar isto — disse entre dentes. Para o assombro e regozijo das damas, David se riu. — Não, senhora Hamilton. — Fixou sua vista em Coraline — De momento, não estou casado. Coraline tragou saliva. As duas senhoras observaram aos jovens intercambiar olhadas. A senhora Atkinson não se equivocou em

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sua dedução: esses meninos se adoravam. — Mas papai — murmurou Coraline a sua avó em um intento por lhe dizer o que ela já sabia: que seu pai nunca aceitaria a David. Ele prestou atenção, porque lhe interessava muitíssimo saber algo dela. Era consciente de que, ao aparecer um homem como uma visita repentina de sua neta, a senhor Atkinson tinha a obrigação de saber tudo dele e não lhe importou absolutamente responder ao questionário, mas agora queria saber de Coraline. — OH, sim é uma pena que ele não esteja conosco — soluçou Annabel. A Coraline aquela afirmação soou inverossímil. Ao princípio, não reparou no que tentava dar a entender sua avó, até que David disse: — Lamento-o. Eu perdi a meus pais faz já quinze anos. Coraline gesticulou surpresa. — Não! — exclamou — Meu pai... — tentou lhe explicar. — Coraline — repreendeu sua avó, com gesto sério — Deixa de interromper ao senhor Flint. Te comporte. — ordenou. Sob o atento olhar de Coraline, David ia caindo no tecido de aranha que essas duas anciãzinhas estavam tecendo. Sua avó se passou do limite, tinha matado a seu pai em uma simples frase. E seguia tão fria aí sentada, escutando ao senhor Flint como se nada. Agora teria que explicar não só sua mentira, a não ser a de sua avó. Genial, disse-se Coraline: David ia pensar que eram mentirosas compulsivas. "Depois desta noite e assim que descubra a verdade, não quererá voltar para ver-me jamais. Nem a mim, nem ao Corl."

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Capítulo 13 David tinha se equivocado por completo. Acreditou que seria possível, entretanto, levavam uma semana tentando-o e ele não podia mais. Vê-la todos os dias, todas as horas, tão pequena, tão frágil, metida nesse horrível traje, - que agora sabia o que escondia - rodeada de homens estava conseguindo adoecê-lo. Não concebia como se deixou enredar dessa maneira. Ao dia seguinte, depois do jantar interrogatório, David foi tomar o chá com a avó de Coraline e sua querida amiga, a senhora Hamilton. Ao terminar com a cerimônia do chá, a senhora Atkinson deu permissão a Coraline para que mostrasse a David uns livros que tinha adquirido recentemente. Coraline, é obvio, não tinha livros novos que mostrar, mas aproveitou o momento a sós para explicar a David por que tinha cometido essa loucura. E de passagem assegurar-se de que não dissesse nada. Embora a ousadia de Coraline não terminava aí. Ela precisava lhe fazer entender que devia seguir com a farsa. Ao menos queria finalizar o curso. Tinha que passar os exames. Por esse motivo, Coraline lhe contou tudo sobre sua vida, desde que tinha uso de razão. Falou durante horas de sua infância e de quão feliz tinha sido quando rondava pelo escritório de seu pai, enquanto ele trabalhava, de como o imitava sentando em sua pequena carteira, fazendo contas e cálculos. Recordou quando sua mãe de noite lhe lia os livros de aventuras de lugares maravilhosos e longínquos, aonde sempre havia umas protagonistas fortes e decididas. Seus pais alimentaram uma curiosidade inata nela e mais tarde, dedicou-se a descobri-la por sua conta. Encerrava-se horas e horas na biblioteca até que seu primo mais velho a obrigava a sair dali e tomar ar, embora, a maioria das vezes, tinha que vê-lo dar chutes ao balão com seu pai. — Perdoa — interrompeu David ao ouvir a palavra "balão"—. Há dito que seu primo dava chutes a um balão? Imagino que por isso sabe tanto de futebol. — De tudo o que te contei só ouviste isso? — Coraline piscou confundida e indignada. — Não, claro que não. — David se tocou a nuca, olhou para baixo envergonhado — Somente estou tentando atar as pontas. Há coisas que minha cabeça ainda não admite. Disfarça-te de homem, sabe coisas que a maioria das mulheres desconhece e ainda por cima entende de futebol. — aproximou-se um passo mais a ela — Acredito

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que me ganhei o direito a fazer alguma pergunta, por não te delatar, — sussurrou perto dela — mas continua por favor, não te interromperei mais. Coraline aceitou as desculpas. Foi para a janela de sua habitação, para recuperar o clima formal, mas, desde que se tinham beijado a noite passada, era virtualmente impossível. Aturdida ainda por sua proximidade, seguiu falando de sua vida. Houve dias nos que sua mãe tinha que procurá-la por todo o imóvel para que comesse; ao final, encontrava-a sentada em qualquer lado e de qualquer maneira, mas sempre com a cabeça metida em algum livro. Falou-lhe de sua admiração pela Elizabeth Garrett, do hospital e do sofrimento que padeceu até que obteve o título de médico. David procurou centrar sua atenção no que lhe dizia: estava assombrado que chegavam a parecer-se em muitos aspectos; ele também sentia essa fome de saber. Contemplá-la enquanto falava tão apaixonadamente de seus objetivos, de como queria conseguir ser alguém na vida, do muito que gostava de estudar; ser testemunha de uma determinação tão semelhante a que ele mesmo tinha, o deixou extasiado. Em alguma frase se perdeu, observando-a como um tonto e pensando se era real aquela extraordinária mulher. Depois de anos perguntando-se se haveria alguém especial para ele, tão especial como as que tinham encontrado seus irmãos, a resposta tinha diante dos olhos. Tinha chegado a ele como tinha que ser, de repente: assim que chocaram soube que era a pessoa reservada para ele. Tal como acontecia com os Flint, reconhecer seu destino e aceitá-lo levava uns trinta segundos. David tinha demorado um pouco mais porque vinha camuflado, mas ela era perfeita, salvo por um pequeno inconveniente: gostava de vestir-se de homem. E não beijava homens, ao menos antes era assim. Entretanto, quando Coraline lhe perguntou aquela tarde se a ajudaria, ele, ou o idiota que vinha sendo, consentiu. Em sua defesa, tinha que dizer que vê-la em sua habitação rodeada dessas coisas tão femininas, perfilada com a luz que entrava pela venda, aturdiu-o. Tentou convence-la de que abandonasse, que tarde ou cedo a descobririam, igual tinha feito ele, que então estaria perdida, que nem todos seriam tão compreensivos e, por sorte, nem todos perderiam a cabeça por ela como tinha ocorrido a ele. Entretanto, ela o ignorou, seguiu lhe falando sem parar de seus sonhos. Enquanto o fazia se aproximou dele e o olhou com esses maravilhosos olhos, que lhe imploravam que não a descobrisse ao resto. David fez um esforço por ficar sério, mas ela movia a boca sem cessar. Em um momento de pura loucura, ordenou-lhe que se calasse e a beijou. — Então, me ajudará? — murmurou ela lhe roçando os lábios. — É uma desavergonhada — acusou David, que a estreitava

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em um abraço — Te está aproveitando da debilidade que sinto por ti. — Eu? me aproveitar? — ficou nas pontas dos pés e voltou a beijá-lo — De verdade sente debilidade por mim? — ronronou. — Desde que te jogou em cima de mim e até acreditando que fosse um jovenzinho, notei algo em ti que me fascinou — confessou David, com voz grave e o olhar cravado nela. —Tropecei-me, não me joguei em cima a propósito — se defendeu Coraline. — Seguro? — perguntou ele, malicioso — Não seria que me viu e ficou deslumbrada? — Acariciou-lhe o nariz com o seu. — Tropecei-me, — reafirmou ela digna — embora possa que ficasse um pouco atordoada ao ver-te. — Fez uma pequena pausa para tomar ar — Mas voltemos por volta de que sou debilidade para ti — acrescentou tímida. — Como se não soubesse — afirmou David, resignado — Não é disso do que estamos falando? — Eu não gosto como o diz. — Coraline se removeu entre seus braços, incômoda pelo que estava insinuando — É verdade que quero que me ajude, mas nunca me deixaria beijar para conseguir nada — asseverou séria. David a deixou apartar-se um pouco. Não queria ofendê-la. Sabia que ela não era desse tipo de mulher. Não. Ela somente se disfarçava de homem. Coraline era uma mulher que lutava por seus sonhos e pelo que acreditava justo. Uma mulher valente, capaz de confrontar as consequências que poderia lhe conduzir essa aventura. Ela não o necessitava para nada. Entretanto, seria-lhe muito útil que ele estivesse de sua parte e decidisse ajudá-la. Não fazia falta que usasse suas armas femininas para persuadi-lo, já estava convencido antes que abrisse a boca. Soube que estaria ao seu lado na noite que descobriu que era mulher. Passasse o que acontecesse. Inclusive quando acreditava que era um homem, sentia uma estranha necessidade de protegê-la, muito mais agora. Não obstante, ele pensou que, agora que se conheceram e estavam começando algo que parecia maravilhoso, ela abandonaria seus planos descabelados. Evidentemente, não era assim. Não ficava mais remédio que colaborar, pelo menos até que terminasse o curso e tivesse mais claro o que ia fazer com ela. Ninguém melhor que ele entendia a Coraline, inclusive se apartava o que sentia por ela. Seria injusto se não estivesse de seu lado. Um bom professor nunca apagaria uma mente tão brilhante como a de Coraline Smith. Assim foi como se viu envolto em tudo aquilo. Por uns olhos como sol e uns lábios que conseguiam paralisar o cérebro. Desde que descobriu o segredo de Coraline, passava o dia procurando um lugar onde ninguém os visse, para poder beijá-la como se tivessem quinze anos. O que implicava um problema, já que

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sua discrição cada vez se via mais diminuída e punha aos dois em grande risco. Sua vida estava trocando a passos forçados. Antes desfrutava quando dava suas classes, agora lhe supunha um suplício concentrar-se, enquanto ela o olhava com esse gesto de êxtase. Pôs fim à classe e deixou sair aos moços, enquanto ele recolhia sua carteira. Viu-a ir-se com seus livros sob o braço e seu amigo Paul. Falando e rindo. Isso era outra das mudanças que estava sofrendo. O ciúmes o corroía por dentro. Se fosse objetivo, e raciocinava, dava-se conta de que era bom que Coraline contasse com a amizade de Paul, que o fazia de escudo com outros jovens da classe; além disso, era um bom homem. Não obstante, quando os observava e via a cumplicidade que existia entre eles, a razão era esmagada pela laje da insensatez. Com ela deixava fluir seus sentimentos sem nenhum controle, algo delicado para ele e perigoso para outros. Mal-humorado consigo mesmo, saiu da classe, atropeladamente. Coraline notou a mudança de humor que tinha sofrido David desde que decidiu ajudá-la. Embora com ela, desde que se conheceram, comportou-se como se tivesse duas personalidades, com outros alunos sempre era agradável. Era consciente de que David não suportava a ideia de ser grosseiro com os meninos e de que tê-la ali o punha nervoso. Antes lhe tirava do sério por outros motivos, segundo ele pela atração que sentia por ela sem saber que era mulher. E agora porque sabia. Sentiu-se afundada. Estava sendo injusta com ele, punha-o em uma situação comprometida, até o ponto de que podia lhe fazer perder seu posto de trabalho. Entretanto, para espanto de Coraline, não era isso o que mais lhe importava. O que mais lhe importava era perder o afeto que parecia que tinha começado a sentir por ela. De repente, havia algo mais em seu mundo que estudar: agora estava ele. — Corl, — chamou Paul — passa-te algo? Está mais calado do normal. — Não, — respondeu Coraline — não é nada; só estava pensando no senhor Flint. Não o nota um pouco mais áspero que de costume? — Sim, mas não terá que lhe dar maior importância, terá-lhe acontecido algo — disse Paul com um encolhimento de ombros — A mim, o que me parece estranho é que te ignore dessa forma — acrescentou pensativo. — O que quer dizer? — perguntou sobressaltada. — O normal é que o senhor Flint esteja sério contigo. — Paul se arranhou a cabeça— Leva uns dias que se zanga com todo mundo, exceto contigo; te ignora ou se esforça em fazê-lo.

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— De verdade Paul, — Coraline franziu o cenho— às vezes diz umas tolices. Ele não faz isso. — Sim que o faz, mas acredito que é porque não quer inimizar-se contigo — assegurou Paul. — E por que faria ele algo assim? — quis saber, intrigada pelas conclusões às que tinha chegado seu amigo. — Está claro que está preocupado pela partida que disputarão o próximo 23 de fevereiro, daí seu mau humor. — Fez uma pausa em que olhou a Corl esperando que compreendesse — Contigo tem que tomar cuidado porque, conforme me contaste, está os ajudando para elaborar táticas de jogo — Ah! — exclamou relaxada. Era uma sorte que seu amigo se respondesse sozinho, já que ela não podia lhe dizer o que suspeitava que acontecia a David - é uma explicação bastante lógica — admitiu, sem vontades de seguir falando dele. Deprimia-a pensar que ele a estivesse ignorando ou que a estivesse usando para solicitar informação sobre futebol. Qualquer das duas opções era odiosa. Era mais agradável acreditar que tudo o estava fazendo por estima ou pelo menos por amizade. Despediu-se de Paul, que ficou falando com outros companheiros e continuou sozinha pelos corredores. Não tinha vontade de estar com gente. O que havia dito Paul lhe tinha feito pensar se, no caminho que se riscou em sua vida, não estaria perdendo algo mais. Ia tão ensimesmada que quase para o coração quando uma mão, saída de um nada, agarrou-a da jaqueta, arrastando-a até encerrá-la depois de uma porta, onde tudo estava às escuras. Abriu a boca para gritar, mas sua queixa se perdeu dentro da boca de David. Porque, embora não pôde ver nada ao princípio entre o susto, os nervos e a escuridão, não lhe coube dúvida de que esses lábios eram os de David. Ninguém mais a tinha beijado assim. E ninguém lhe tinha provocado nunca umas sensações tão fortes e contraditórias. Bastava um roce dele para que seu corpo afrouxasse e sua alma se visse invadida pela euforia. David a abraçou com desespero para afogar nela os ciúmes e a raiva que sentia por não poder tê-la sempre, por ver-se obrigado a roubar esses pequenos e insuficientes momentos. — Ai! — exclamou ele ao soltá-la. Tocou-se a cabeça onde algo lhe tinha golpeado — Maldição! — Agarrou o recolhedor de ferro que lhe tinha batido e o soltou, zangado, no suporte que estava. — Tem-te feito mal? — preocupou-se Coraline risonha e em voz baixa. Tinha passado um mau momento pensando que ele estava ignorando-a, mas não era verdade. Sentia a mesma necessidade que ela. Isso lhe alegrava e a tranquilizava por partes iguais. — Sim, e por sua culpa — a acusou David.

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— Por minha culpa? — perguntou inocente. — Sim. Se não tivesse empenhada em seguir com esta farsa, não teria que procurar quartinhos da limpeza para te apanhar despreparada — confessou molesto. Coraline soltou uma risadinha que a David pareceu muito sensual. — Faz-te graça? — Não... —Tentou ficar séria, mas foi impossível. Era adorável que se zangasse desse modo por perder o controle com ela. — Sim — admitiu. Voltou a silenciá-la com um beijo. Até que sentiu que se perdia de novo na paixão. Depois de uns minutos, obrigou-se a separar-se -tudo o que aquele quarto lhe permitia - dela. —Temos que sair daqui — asseverou David, embora suas mãos seguiam retendo-a pela cintura — Se alguém nos descobrir, se armará uma boa. — Sinto-o — suspirou ela— Te agradeço muito o que está fazendo por mim. — Olhou-o entre as sombras escuras do quarto — Sabia que me entenderia. — Sim, compreendo-te melhor que ninguém. Entretanto, se me apanham beijando a um jovenzinho, não só estará em jogo o trabalho. — Sei — admitiu afligida — David, pensei muito e, embora eu goste muito que me beije, acredito que já tem bastante me encobrindo. Sou consciente de que te pedi um grande favor. Não é justo que te arrisque tanto por mim. Deveria evitar estes encontros tão agradáveis — disse Coraline esperando por ver que respondia ele. — Agradáveis? — perguntou David irônico. Ela recuperou o humor. Ele sempre conseguia lhe tirar um sorriso. De todas as coisas pelas que devia mostrar preocupação, só lhe importava que tivesse qualificado seus encontros fortuitos como "agradáveis". Estava se apaixonando como uma tonta dele. — Interessantes? — provocou-o ela. Ele bufou. — Eu diria mais bem...excitantes. — Atirou de sua cintura para aproximá-la até ele. — Podem ser — concedeu ela altiva separando a cara para não deixar-se capturar. Deu-lhe um ligeiro beijo que a David pareceu diminuto — Intrigantes — acrescentou. —Não, não — David negou zombador. — Mordeu-lhe o lábio inferior — Extraordinários — asseverou ele que pressionou um pouco mais os quadris para que se rendesse. — Apaixonantes? — propôs Coraline, sem dar seu braço a torcer. David se fartou. Investiu-a com seus lábios, disposto a ganhar

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essa batalha. Acariciou-a com sua língua até lhe causar calafrios. Passou suas mãos por seu corpo lentamente, com uma suavidade que a Coraline quase a matou, porque desejou com todas as forças que arremetesse sem controle. Entretanto, ele continuou saboreando-a com delicadeza até que ela gemeu. — Como os chamaria Coraline? — perguntou sobre sua boca, com uma voz grave. — Maravilhosos — murmurou ela sem fôlego—. Absolutamente maravilhosos e perfeitos — repetiu vencida, mas feliz. David rio contendo-se. Ficou reto e a ajudou a arrumar-se. Colocou-lhe o traje, fez-lhe bem o nó da gravata e limpou seus óculos que estavam embaçados. Quando acreditou que estava apresentável. Fez o mesmo com ele. — Bem vamos. — Pô-la detrás dele para protegê-la se por acaso havia alguém fora. Jogou uma olhada — Todo espaçoso, vá —lhe ordenou. — E você? — quis saber preocupada. — Eu terei que ficar uns minutos mais até que me relaxe de tudo. — Deu-lhe uma palmada no traseiro e insistiu que saísse — Está noite janto em sua casa. Avisa a sua avó que me há convidado. — Não! — exclamou Coraline — Por que passar por tudo isso outra vez? — Porque sim. — Fechou um pouco a porta se por acaso passava alguém — Temos que falar da próxima partida — se desculpou ele. — Podemos fazer isso no pub, com o resto da equipe, como sempre — disse ela nervosa. Não queria tentar à sorte e juntar a sua avó com o David outra vez. Era arriscar muito. — Não penso deixar que volte ali. Está cheio de homens cheios de álcool, que falam de coisas inadequadas para ti. Além disso, eu gosto de sua avó. — Foi o último que disse antes de empurrá-la fora e fechar. Coraline afogou um grito de surpresa. Piscou confundida. Sentiu o ar fresco. Tocou-se a cara, estava acalorada; logo levou seus dedos para os lábios: comprovou que ainda faziam cócegas. Olhou ao redor. Para alívio dela, não havia ninguém perto, porque o mais alarmante era que estava sorrindo como uma tonta apaixonada. Ver como confrontava outra noite com sua avó e com ele. O que pretendia David?

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Capítulo 14 Coraline apanhou a sórenson na cozinha, cercou-o sem piedade. — Pode me explicar como é possível que se inteirou? Coraline observava com apreensão como Sórenson seguia com seu trabalho, impassível, enquanto ela, exasperada, tentava obter uma resposta. — Deve ter a alguém dentro da casa que lhe faz de espião —se dignou a responder ele, uma vez revisado o faqueiro. — OH, vamos! — Coraline se levou as mãos à cintura de seu bonito vestido rosa pálido — Espião? — repetiu pasmada—. Sórenson, seja sério, por favor — soprou — Perdão — acrescentou, quando o mordomo a admoestou com seu olhar frio — Quero dizer que você não acreditará nessas coisas. Há espiões no governo, não em uma casa. — Ou tem alguém na casa que lhe conta todos os momentos que fazemos ou é uma bruxa. — Sórenson sentiu um calafrio — Qualquer opção é possível no que se refere à senhora Hamilton, mas eu prefiro pensar que alguém do serviço mexerica mais do devido —assegurou cortante. Pensar que a senhora Hamilton tivesse poderes sobrenaturais e que os pudesse usar lhe punha os cabelos em pé, embora fosse uma senhora muito amável, tinha certa tendência libidinosa que o deslocava. — Bom e o que vamos fazer? — inquiriu ela. Sórenson levantou uma sobrancelha. — Eu servirei o jantar — declarou o mordomo, ultimando detalhes — E você deve ir receber a seu convidado. — Mas será um desastre como o outro dia — choramingou ela — O senhor Flint pensará que o quero pescar. Graças a minha avó e a sua querida amiga, a senhora Hamilton, que se encarregarão de lhe deixar claro que é um candidato excelente para ser meu marido. Se o outro dia se dedicaram a interrogá-lo, esta noite é perfeita para adular a Coraline. Passarão a noite enumerando minhas virtudes; as que não possua, as inventarão. Eu morrerei de vergonha. Sórenson a contemplou como se não conhecesse quão jovem tinha diante. — Morrerá de vergonha porque sua avó lhe dê de presente elogios, para que um bom cavalheiro a considere como uma possível esposa? — perguntou incrédulo — De que mundo vem você

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senhorita? Deveria estar feliz que sua avó aprove ao único homem que parece interessar a você. Que, além disso, por isso intuo, está à par de suas correrias e, por algum estranho capricho do destino, parece entendê-la; inclusive se poderia dizer que é participante de suas loucuras. — Diz-o como se fora insólito. — Coraline entrecerrou seus olhos, com suspeita. — Não. — Sórenson alargou sua negação lhe dando um tom irônico — É do mais normal. Ser uma dama que se disfarça de homem para entrar em uma universidade, rodear-se de homens, visitar bares e botequins, beber como um cossaco, trabalhar a distancia para um periódico sob pseudônimo e, me esqueço de algo…—Se deu golpezinhos no queixo — Ah, sim, jogar futebol como se fora em realidade outro mais da equipe. Todo isso é muito normal, senhorita Smith. — Sórenson ignorou a cara mal-humorada do Coraline e acrescentou — O que vejo um pouco, mas só um pouco chocante, é que um homem em sua honradez aceite todo isso — disse zangado. — David não é estranho — o defendeu ela. — Claro que não! — Sórenson elevou a voz e Coraline se assustou, porque era a primeira vez que lhe ouvia assim — A estranha é você — afirmou fora de si — Se por acaso não se deu conta, estava sendo irônico. Quanto a esse moço — lhe cavaram as aletas do nariz, Coraline segurou a respiração — ele não é estranho: simplesmente se apaixonou. — Deu-lhe as costas, deixando-a incapaz de replicar. "Meu deus!", pensou Coraline impressionada. "Será verdade?" Sentiu como o estômago lhe contraía. Seria maravilhoso, fantástico, um sonho, mas não podia iludir-se: David não tinha falado de unir-se a ela. Entretanto, se fosse certo que estivesse apaixonado, o mais lógico seria pensar que... Não, disse de repente, seria... horrível. Uma tragédia. Seu pai nunca permitiria essa união, não com o maior rival. Ela permitiu que ocorresse. Não pôs impedimento algum, até sabendo aonde os levava esse caminho. Ela sabia aonde conduziam seus encontros, o que significava compartilhar segredos com ele, mas não lhe importou, não o pôde evitar. Tinham chegado a um ponto de não retorno. "Não obstante, disse-se com certo pesar, pode que Sórenson esteja equivocado". Ao melhor, David não sentia amor; esse era um sentimento muito grande e intenso. Possivelmente só estivesse desfrutando de sua companhia. Claro que não podia evitar os beijos. Seus beijos eram tão passionais. Teria que renunciar a eles se não queria sofrer mais, nem fazer dano a ele. Não o merecia, depois de tudo o que estava fazendo por ela. Um golpe na porta a tirou de sua concentração. Recolheu a saia para sair correndo. Chegou à porta quase sem respiração e com

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o coração pulsando a mil, nem tanto pela carreira, mas sim pela visita. Aguardou com aparente serenidade até que a donzela abriu. Aí estava ele. Coraline notou o frio que envolvia a David. Entrou enérgico na casa, tirou-se o casaco junto às luvas e os ofereceu com delicadeza à empregada que lhe tinha aberto a porta. Não a olhou até que a criada se foi com suas coisas. Foi então, quando a uma distância prudencial e sem sequer tocá-la, devorou-a com os olhos. — Boa noite — disse ele com voz profunda. — Boa noite — respondeu Coraline, morta de calor pelo exame a que estava sendo submetida. Aproximou-se dele um pouco mais — Deixa de me olhar assim — murmurou ruborizada — Vai levantar suspeita. David rio abertamente, sem poder conter-se. Por ser uma mulher tão audaz resultava um pouco ingênua, se acreditava que ninguém percebeu do que existia entre eles. Coraline falou colocando o dedo indicador em seus lábios para lhe dar mais ênfase. — Não seja tão ruidoso. — Deu-lhe um pequeno empurrão no braço — Scotland Yard está perto. — Fez uma inclinação com a cabeça para assinalar o salão do jantar. — O que diz, Coraline? — quis saber David, perdido. — Minha avó e a senhora Hamilton nos estão esperando para o jantar. — Ah, a senhora Hamilton também nos vai honrar com sua presença — disse David, risonho. — Não sei se a palavra é honrar ou inquietar — opinou Coraline. Esperou que David deixasse de rir de novo — Estou preocupada — assegurou circunspeta. — E por quê? — David divertido observou a ver por onde saía sua adorável Coraline. — O caso é que, a senhora Hamilton se inteirou de que devias jantar aqui antes que eu o dissesse a minha avó. — Então? — inquiriu ele. — David, isso não é normal. Veio faz uma hora alegando que sua cozinheira tinha adoecido e que, até sem prévio aviso, via-se forçada a lhe pedir a sua querida amiga, minha avó, a senhora Atkinson, que a acolhesse por esta noite. David sacudiu a cabeça, confundido. — Está claro que essas duas velhinhas tramam algo —esclareceu ela entre sussurros. — Coraline, tem uma imaginação muito viva. — Aproximou-a dele — O que vão tramar duas adoráveis anciãs contra nós? — David, você não as conhece. São capazes de liquidar alguém com tão somente uma frase. Riu outra vez pelo caráter teatral de Coraline. Ia encaixar à

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perfeição em sua família. Iam adorar! — Há dito liquidar? — indagou em um fingido tom prepotente — Esse tipo de expressões não são as que ensinamos em Oxford, senhor Smith. — Quer te calar? — ordenou olhando de um lado a outro —Vão ouvir. Por certo, falando de liquidar, tenho que te explicar... Houve um ruído as suas costas e David desviou sua atenção dela para ver quem se aproximava. — Senhor Flint! — exclamou a senhora Atkinson — Boa noite, espero que não tenha agarrado frio esta noite. Muito obrigado por sua visita. — Graças a você por seu convite. — David se afastou um mínimo de Coraline e fez uma perfeita inclinação de cabeça — Pode vir sempre que o deseje. É você bem-vindo — disse Annabel. Ele sorriu e girou para a senhora Hamilton, que chegava junto ao mordomo. No momento, custou-lhe articular palavra. A visão que tinha diante superava qualquer imagem que uma mente perturbada pudesse recrear. A senhora Hamilton aparecia embelezada com um magnífico e estrambótico vestido de veludo vermelho, com bordados florais em negro, que faziam jogo com as franjas que penduravam de abaixo de suas mangas. Um vermelho igual de intenso que o carmim de seus lábios. David afogou o sorriso para não ferir a sensibilidade daquela encantadora velhinha; por outro lado, parecia-lhe fantástico que fizesse e vestisse como mais gostasse, certamente o teria ganho. Graças ao beliscão que o deu Coraline, pôde saudar a muito querida amiga da senhora Atkinson. — Boa noite, senhora Hamilton — repetiu a inclinação de cabeça. — Boa noite, jovem — respondeu a senhora Hamilton com uma risadinha — Senhor, me permita lhe dizer que, cada vez que o vejo, parece-me mais arrumado. — Senhora Hamilton! — exclamaram de uma vez Coraline e sua avó. A mulher as ignorou e se enganchou do braço de David para que presidisse a marcha até o salão do jantar. Ele ofereceu o outro braço à senhora Atkinson e, piscando um olho a Coraline, avançou. Coraline os seguiu, mas, antes de atravessar a grandiosa porta de madeira de folha dupla acristalada, algo lhe chamou atenção. O senhor Sórenson se estava secando uma gota de suor da frente, com seu impoluto lenço branco. Coraline ficou tão pasmada que se parou no ato. Aproximou-se com os olhos entrecerrados... — Pelas barbas de Odín! — proferiu Coraline estupefata—- Tem a camisa suja — acusou com o dedo. Em toda sua vida tinha visto o senhor Sórenson suar e, nem que dizer, com uma mancha.

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— Senhorita Smith! — repreendeu Sórenson com dureza—. Não nomeie aos antigos deuses. Cada dia é mais vulgar. — Tem a camisa cheia de carmim — o culpou Coraline, evitando a recriminação de Sórenson com total disfarçatez. O mordomo se endireitou. — Não dirá nada, verdade? — inquiriu ameaçador. — Não, claro que não, — respondeu Coraline — mas é que não posso me explicar... — balbuciou. — OH, senhorita Coraline, — Sórenson se relaxou — foi o momento mais estranho e irreal de toda minha vida. E acredite que vivi muito. — Conte, por favor — insistiu ela preocupada. — Agora não posso. — Olhou para o salão— A esperam para jantar, mas lhe asseguro que não tive nada que ver. — Olhou-a sóbrio — A senhora Hamilton me pôs uma armadilha. — Me valha o céu! Essa mulher está para que a encerrem. — Coraline franziu o cenho — O disse e não me quis ajudar. — Fez uma careta com a boca — Agora tenho que lutar eu sozinha com isso. —Assinalou ao salão onde a esperavam — Mais lhe vale ir trocar a camisa, se minha avó se der conta, — e se dará conta — correrão rios de sangue. — amassou-se a frente e deixou Sórenson só com suas tribulações. Se a tivesse ajudado assim que foi falar com ele, possivelmente teriam podido encontrar uma desculpa para anular o jantar, por isso nem Sórenson nem ela estariam nesse apuro. Agora não tinha mais remédio que combater essa batalha, onde voariam sermões encobertos, indiretas sobre o matrimônio, olhadas luxuriosas e um Sórenson ao que, pela primeira vez, acreditava capaz de derramar a sopa. Coraline pensou que, se por um milagre, seu pai aceitasse a que ela se casasse com David, ele não a aceitaria sob nenhuma circunstância depois de conhecer sua família e amigos por completo. Estava muito seguro de que os Flint deviam ser umas pessoas razoáveis, amáveis e sobre tudo normais, muito normais. Em nenhum caso, poderiam unir-se a uma família tão excêntrica como a sua. O jantar foi para Coraline melhor do que esperava, excetuando alguns momentos isolados, como quando a senhora Hamilton beliscou a coxa de Sórenson e este pobre ao final, não derramou a sopa, mas atirou uma couve ao chão, tal como tinha previsto a moça. Coraline foi testemunha direta do beliscão e suspeitava que David também, porque o pobre tinha a cabeça encurvada; além disso, viu claramente que lhe tremia a mão no percurso da colher do prato à boca. Olhavam atônitos como a anciã paquerava com o pobre mordomo, esse descaramento provocou a ira de sua avó, quem com um estrondoso "mãos acima" deixou a todos os pressente

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paralisados. O que a senhora Atkinson não prévio era que Sórenson carregava com a bandeja cheia de comida, além das couves, que saiu voando, quando o mordomo obedeceu a sua senhora e levantou as mãos. O salão ficou como um campo de semeia, repleto de couves, aspargos e cogumelos, que combinavam à perfeição com as paredes empapeladas em tons verde escuro. A Coraline deu muita pena de Sórenson; o jantar para ela não foi tão horrível, mas o pobre homem ficou doente. Teve que desculpar-se com a avó de Coraline e se retirou, não sem antes organizar ao serviço para que terminassem de oferecer o jantar. Não foi muito tempo depois que puderam estar a sós, porque sua avó e sua amiga pareciam que não fossem dormir na vida. Por fortuna, a senhora Hamilton, preocupadíssima, insistiu em ir ver como se encontrava o senhor Sórenson e a proprietária da casa não permitiu que fora sozinha, assim que as duas inocentes anciãs partiram em busca do mordomo. Coraline duvidou se deveria ir ao resgate de Sórenson — sua consciência lhe dizia que estava em dívida com ele e que deveria ir ajudar a escapar das garras dessas duas intrigantes mulheres — ou aproveitar seu tempo a sós com David. Ficavam temas pendentes, como o dos beijos. Esse tema tinha que resolvê-lo logo se não queria que fosse mais à frente sua relação. Decepcionou-se um pouco, quando ele começou a falar sobre a partida do dia 23. Fez-lhe recordar cada detalhe do último encontro entre Gales e Irlanda. — David — disse ela cansada — Te repeti cinco vezes o alinhamento — soprou — Confia em mim? — quis saber ela. — Sim — admitiu, estranhando que fosse verdade. Em questões de futebol só confiava em sua equipe; entretanto, tudo o que tinha visto lhe levava a acreditar que era uma verdadeira entendida. Seus artigos sobre o campeonato eram os de qualquer jornalista de elite. O fato de que fora capaz de elaborar complicadas táticas e memorizar todos os alinhamentos resultavam-lhe intimidante. Por isso mesmo confiava em seu critério. — Me faça caso, ganhará com os olhos fechados. Este ano a Irlanda não tem um jogo definido, andam perdidos pelo campo. David respirou tranquilo. Eram justas as palavras que precisava ouvir. Levava muito a sério esse campeonato e por nada do mundo queria perder. — Acredito que Gales e Irlanda não supõem ser um problema — continuou Coraline alegre. — Sim e a Escócia? — indagou ele. — Escócia? — repetiu ela nervosa — Escócia é diferente —Viu como David franzia o cenho e se aproximava dela ameaçador.

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— O que significa diferente? — perguntou quase zangado. — É mais forte — afirmou com rapidez e se afastou um passo dele. — Forte. — David voltou a cortar distâncias — Quer dizer, melhor. — Bom... — Coraline se fez despistada — Eu não diria "melhor". — Se deu conta de que cada vez estava mais perto e, embora estivessem sozinhos na salinha do chá, na casa ainda perambulavam duas alcoviteras intrigantes — Não me olhe assim, por favor, põe-me nervosa. — Como te olho, Coraline? — sussurrou ele com voz rouca. — Dessa maneira, que parece que vais beijar-me — balbuciou ela — E falando de beijos... Não lhe deu tempo. David se jogou em cima. Em um segundo se fundiram um no outro. A capacidade de raciocinar ou falar dela se deteve. Deixou-se levar pelo beijo, aferrou-se a ele e desfrutou do roce de seus lábios, do tato de sua bochecha e do calor de sua respiração. David a deixou tão rápido como a tinha tomado. Coraline ficou um tanto atordoada, pela rapidez com que tinha acontecido tudo. Ela não controlava tanto nem seu corpo, nem suas emoções, como aparentava David. Se em um momento estava derretendo-se em seus braços ao seguinte não podia estar fria como o gelo. — OH — suspirou ela. Sacudiu a cabeça — Tem que deixar de fazer isso, atordoa-me os sentidos — confessou, sem nenhuma vergonha. — Não conte com isso — disse pretensioso. Rio ao ver a cara de resignação que punha ela. — Temos que falar, David — disse decidida a esclarecer todo isso dos beijos e falar de uma vez por todas de seu pai e seu primo. Era melhor dizer-lhe já do que se inteirasse de outro modo. Possivelmente era melhor começar pelo tema de sua família, o dos beijos ficaria resolvido quando soubesse quem era seu pai. — Não há nada que falar Coraline, amanhã vamos a Irlanda uns quantos da equipe, os que pudermos obter permissões em nossas obrigações. Verei-te na volta. — Deu-lhe um beijo na frente, ela deixou como a coisa mais natural do mundo. Piscou confundida, primeiro pela contrariedade de não vê-lo durante dias e segundo pelo que assegurava David. Acaso não sabia que ela iria à partida? perguntou-se vacilante. Se por acaso ficava alguma dúvida preferiu esclarecê-lo: — David, nos veremos em 23 de fevereiro, no Belfast. — Não — negou terminante — Não irá. — Estreitou-a a cintura com um braço e falou sobre sua boca — Não poderei me concentrar se estiver ali — assegurou.

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— Bom, esse é seu problema — disse ela zangada, tentando soltar-se. Quem era ele para impedir de ir? — É meu trabalho— particularizou. — Um trabalho que não tem por que exercer — indicou molesto por sua teimosia — Entretanto, eu sim tenho que jogar. — O que?! — exclamou agitada — Acredito que te entendi mal. — Pôs suas mãos em jarra — A coisa é a seguinte: eu não posso realizar meu trabalho porque minha presença te altera, em troca você não te expõe não ir à partida por mim — David a observava circunspeto. - Me deixe que te diga. — Fez uma pausa — Me Deixe que te diga que penso ir a essa partida e a quantas me agrade, porque vou seguir fazendo meu trabalho. Se você não gostar, aguenta-te. — Acredito que depois de jogar o pele por ti, mereço um pouco de cooperação nisto — recalcou indignado. — Ah, agora me joga na cara que me está ajudando — acusou ofendida — Eu não te pedi...Bom, pedi-lhe isso, mas em nenhum caso lhe impus isso, como pretende fazer você — lhe enfrentou. — Coraline, nisto não há discussão. Não vai e ponto. A desafiou que o contradissesse, mas ela já tinha abandonado a sala, deixando-o com a palavra na boca e a lembrança de seus lábios. Uma lembrança que deveria conservar fresco na memória, porque, com o zangada que se foi, não imaginava quando voltaria a saboreá-los. Em sua vida, David jamais tinha sido tão irracional como o estava sendo nesse momento, mas nunca antes se topou com uma situação tão inverossímil como essa. Ela não podia ir ao encontro porque, ao vê-la ali, se distrairia de seu objetivo e não podia arriscar-se. No caso de que algo lhe saísse mal ou se metesse em problemas, um pouco muito provável nela, ele não poderia protegê-la. Se isso passasse, teria que decidir entre o jogo e ela. Ainda não estava preparado para isso.

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Capítulo 15 Irlanda humilhada em casa atrás de seu enfrentamento com a Inglaterra Irlanda se posiciona no último posto do campeonato, com zero pontos e um único gol conseguido por William McWha, tendo recebido 8 gols de uma forte seleção inglesa. Por outro lado, Inglaterra brilhou em seu primeiro encontro, com um jogo estudado e cuidadoso. Destacaram-se: Henry Cursham com 3 gols, Edward Johnson com 2, Charles Bambridge também com 2 e Arthur Bambridge com 1. A Inglaterra ofereceu um magnífico espetáculo, dando exemplo de jogo em equipe. Encontramo-nos no Equador do campeonato e, neste momento, o vencedor está entre Escócia, Gales e Inglaterra.

John Edward Taylor. The Manchester Guardian,

Sábado, 23 fevereiro, 1884. Tom lia o Manchester procurando uma pista. Tal como tinha suspeitado, C.S não assinava o último artigo do campeonato. John Edward Taylor era o diretor do Manchester Guardian. O que o levava a reafirmar sua teoria. Tinham desaparecido seu tio e Corl, mas por que. Algo grave tinha acontecido, os dois se esfumaram sem mais. Durante o encontro no Belfast, tudo foi bem. David estava concentrado e a partida se desenvolvia segundo o previsto. A equipe estava empenhada, não havia muito público, algo normal com o tempo gélido de fevereiro, uns quantos entusiastas irlandeses e cinco jornalistas, entre os que se encontrava Corl Smith. Foram 7 a 0, o ânimo da equipe não podia estar mais alto: tinham a Irlanda contra as cordas. Além disso, tinham superado a goleada de Gales e Escócia, o que ajudava a pensar que contavam com um ataque mais efetivo que seus rivais. Algo grave aconteceu em um segundo, para que seu tio David saísse da partida e começasse a distribuir murros de mão direita e a esquerda. Tom, nesse momento, dispunha-se a lhe passar o balão, mas o tiro não chegou a seu destino porque David não estava em seu lugar. O balão o interceptou William McWha, o que deu lugar ao único gol que marcou a Irlanda, em todo o campeonato. Henry, o goleiro inglês, culpou-se do gol, mas Tom lhe assegurou que era compreensível que, se seu capitão estava brigando com os poucos assistentes ao encontro, ele se despistasse durante uns segundos. O gol tinha sido culpa de David e de ninguém

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mais. Tampouco passava nada, tinham uma vantagem de sete gols e faltavam dez minutos. O árbitro, quando se percebeu da briga, deteve o encontro, embora já era tarde para retificar o gol da Irlanda. Não teve nenhuma intenção de anular o gol. Aproximaram-se todos os jogadores, irlandeses e ingleses. Tom não acreditou que fora tão sério até que chegou. O jovem Smith estava em meio de dois gigantes que lançavam murros um contra o outro, e, embora nenhum ia dirigido a Corl, estava se expondo muito porque queria separá-los. Um deles era David. Tom demorou para identificar o outro, mas, quando o fez, não lhe surpreendeu absolutamente a reação de seu tio. Era J.C Miller, da equipe escocesa, e maior rival de David. Desde que seu tio começou no mundo do futebol, criou-se entre eles uma rivalidade pessoal que não fazia mais que aumentar, com o passar dos anos. Entretanto, existia também um respeito mútuo, embora, naquela ocasião, esse respeito tinha ficado à margem. — Eu vou mata-lo Corl; não tente me deter — gritou David encolerizado. — Basta já! — Coraline se esforçou em elevar a voz. Entretanto, entre os gritos de David, os de seu primo, J.C. Miller, e a multidão que estava ao seu redor animando a que brigassem, era-lhe impossível fazer-se ouvir. — Corl! — exclamou Miller, indignado de que David Flint tratasse dessa maneira a sua prima — Este bastardo chamou Corl? — lançou a mão para agarrar ao David pelo pescoço sem querer tocar a seu priminha Coraline. — John, por favor — Coraline estava perdendo terreno e força. — John? — perguntou David franzindo o cenho — Conhece este descarado? Coraline o olhou com cara inocente, mas David viu claramente sua expressão de culpabilidade: isso o voltou louco de ciúmes. Não sabia de onde se conheciam, mas estava claro que entre eles existia uma familiaridade que ele não podia consentir. Tudo era quase perfeito até que apareceu Miller. A equipe estava jogando como nunca e ele, apesar da preocupação pela discussão que tinha tido com Coraline, estava rendendo ao máximo, até que a viu falando com o J.C. Miller. Passou uns dias com a equipe no Belfast sem ter notícias dela. Deixou-lhe muito claro que não queria que fora à partida: era uma viagem muita comprida para uma dama sozinha, embora fosse disfarçada de menino. Não queria que corresse nenhum risco. Ele poderia lhe haver levado um resumo do encontro, mas ela rechaçou cada proposta e insistiu em realizar seu trabalho ela mesma. Em rigor da verdade, David sentiu admiração pela negativa a deixar-se ajudar.

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Constante e trabalhadora eram qualidades acrescentadas essa semana, à lista de virtudes. Cada dia via algo nela que gostava mais. Sem evitar o fato de que era uma teimosa, muito intrépida e um pouco egoísta, se não se dava conta do que sofria ele por ela. No meio do campo, à espera de receber o passe que seu sobrinho Tom ia fazer lhe, girou a cabeça e os viu. Miller estava falando muito perto dela, quase em cima. David entendeu que a arreganhava por algo. Ela se defendeu tão graciosa como sempre. Então, J.C. Miller a agarrou pelo pulso, o que a imobilizou e a obrigou a lhe fazer frente. Foi quando David escutou um clique em sua mente. Sentiu como se lhe dessem uma forte bofetada que o deixou aturdido; sacudiu a cabeça e, sem saber onde estava nem por que, lançou-se como um demente para eles, sem que lhe importasse se todos seus jogadores ficavam confundidos. — Se isto não terminar, verei-me descoberta — gritou ela, sem resultado — É minha vida a que ficará truncada — gritou. Isso conseguiu paralisá-los imediatamente. Nenhum dos dois queria fazê-la sofrer. De fato, esmeraram-se mais em não machucá-la do que em golpear-se. Observaram-na furiosos, mas espectadores, para ver que explicações dava. Coraline se sentiu um pouco intimidada. Estar entre dois homens enormes e zangados não era o sonho de nenhuma dama. Aventurava-se a dizer que de nenhum cavalheiro tampouco. Colocou-se a jaqueta, subiu os óculos, algo que fazia quando estava nervosa e necessitava tempo para pensar como proceder. Olhou ao redor e viu que todo mundo fazia um grande círculo a seu redor. — Já está bem — clamou Coraline aos pressente — O jogo pode continuar; aqui já terminamos. — Jogou uma olhada a um e outro, se por acaso a contradiziam com seus atos; por sorte, não. Os espectadores, quando comprovaram que era verdade que não havia nada mais que ver, voltaram sua atenção à partida. Coraline aproveitou para levá-los à parte e tentar esclarecer a difícil situação. Resultava irrisório explicar a esses dois homens, que significavam para ela, era mais difícil que viver disfarçada em um mundo de homens. — David apresento ao J.C. Miller — disse ela, sem saber por onde começar. — Coraline, já nos conhecemos. — murmurou Miller entre dentes — O senhor Flint e eu somos velhos inimigos. — Coraline! — exclamou David, agora sim colérico esperando o pior — Sabe quem é? — perguntou baixando o tom de voz. — Claro que sei quem é — interveio Miller — O que não sei é por que vai vestida como um fantoche. — Entrecerrou os olhos — É coisa tua Flint? Não sabe fazer outra coisa para ganhar que recorrer à

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família? David sentiu que se afogava. Ela e Miller eram parentes. — David, apresento ao meu primo John Smith, quem frequentemente joga com o pseudônimo de J.C. Miller. Coraline esperou aterrorizada, de que a abandonasse ali mesmo e para sempre. Viu a expressão que tinha posto, quando seu primo havia dito que eram família, mas se acalmou porque David foi recuperando a cor na cara e voltou a respirar. Flint sentiu como se um raio de luz viesse a resgatá-lo das garras da morte. Acreditou que era sua mulher. Para ouvir a palavra primo, deu-se conta de quão estúpido tinha sido. Se repensava um pouco os fatos passados, era impossível que Coraline tivesse a alguém mais em sua vida: conhecia-a, ela não era assim. Além disso, a avó lhe tinha insinuado em infinitas ocasiões e abertamente que Coraline era uma candidata perfeita para o matrimônio. E é obvio que o era: ela era perfeita para ele. Deixou-se levar pelo medo de perdê-la, pela insegurança que lhe provocava o não poder reclamá-la, mas isso tinha terminado nesse mesmo instante. Ela era dele e o seria para sempre. — David diga algo — suplicou ela. Ele a contemplou como se fosse a primeira vez que a via. Não tinha nada que dizer. Só ficava uma coisa por fazer. — Ele tem que ir-se. E você tem que me explicar que demônios passa aqui — ordenou Miller com dureza. Coraline tentou falar, mas não pôde. — Se volta a falar-lhe assim, te mato — asseverou David que ficou diante dela. — Está bem David. — Ela se enterneceu pelo protetor que se mostrava ele, sem nem sequer notá-lo — É meu primo, quer-me, não me fará mal. David se apartou um pouco, mas se manteve a seu lado, como uma forma de declarar que ela era assunto dele. Miller não quis agravar a situação. Preferiu esperar que Coraline esclarecesse tudo antes de levar-se de volta a Escócia. Tinha atuado de maneira irracional. Sua prima tinha cometido uma de suas loucuras, mas ele a tinha posto em perigo. Não sabia o que podia passar se a descobria ante todos. Tinha que controlar seus nervos e a aversão que sentia por Flint, pelo bem do Coraline. Ela se dedicou, de pé a escassos metros do campo de jogo e morta de frio, a relatar desde o começo aquela aventura em que se embarcou. Miller não parecia muito assombrado, mas bem mortificado. David se perguntou se Coraline teria feito muitas coisas como essa, mas acreditava improvável. Nada superava o que tinha feito esses últimos meses. Entretanto, não podia estar muito zangado porque, graças a isso, tinha-a conhecido.

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Miller escutou, apertando os nódulos, impaciente para que chegasse à parte onde David Flint entrava naquela rocambolesca história. Entretanto, sua prima omitiu esse detalhe. — E ele? — perguntou Miller, que assinalava a David — O que tem que ver em toda esta novela? Coraline olhou desconcertada a seu primo. Elevou a vista ao céu para implorar paciência. — O que importa isso, John? — deu-lhe um pequeno empurrão que Miller nem notou — Te estou contando como consegui realizar meu sonho. A ti só te preocupa o senhor Flint? — David — interveio o espertinho — Chame-me David, como sempre — acrescentou ele, que sabia que isso era uma provocação. Não podia suportar que Coraline pusesse distância entre eles em presença de ninguém, embora fosse um familiar. Ou, precisamente porque era da família, sentiu a necessidade de esclarecer sua relação com ela. Tampouco pôde deixar escapar a oportunidade de chatear a esse escocês. Miller lançou um punho ao ar. David o recebeu, no olho direito. Coraline se interpôs entre eles para que não começassem de novo. Pôs as mãos no peito de cada um. Os dois baixaram o olhar. Ela usou seus olhos, como somente Coraline sabia fazer. Ambos os homens pararam no ato ao ver esses dois enormes lagos âmbar brilharem. Como conseguia fazer que suas pupilas aumentassem tanto e lhes dar esse pequeno tremor, como se fosse chorar, era um mistério para David, que estava desejoso de descobrir. Coraline era capaz de imobilizar a um homem com esse olhar e, embora tinha muitos tipos de olhar, havia um em concreto que o voltava louco. — Miller para — o obrigou a deter-se— David me está ajudando, que é mais do que posso dizer de ti. — Se tivesse ido a mim... — tentou defender-se seu primo. — O que? — insistiu Coraline — Vais dizer-me que teria me ajudado? — Ela viu a negação nos olhos de Miller — Claro que não e te entendo — acrescentou, para não fazê-lo sentir-se culpado. — E o que tem feito Flint? Por que te ajuda? — investigou Miller receoso. — Ele não sabia nada — lhe assegurou ela, sem tirar a mão do peito de David. Sabia que, assim que a apartasse, se lançaria sobre seu primo. Notava seu coração tão forte e rápido. Essa tolice lhe encheu, ao fim, os olhos de lágrimas. Tudo acabaria logo. Agora que seu primo a tinha descoberto, a levaria de novo a Escócia, diria-lhe tudo a seu pai e a encerrariam em um convento. Ao menos, consolou-se Coraline, somente ela carregaria com as consequências. Não o tinha descoberto ninguém mais, portanto não prejudicaria a David — Descobriu, por minha desorientação, que era uma mulher e, mesmo assim, decidiu não me delatar — o defendeu ela.

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— Coraline, não seja inocente — cuspiu seu primo — Quer algo em troca. Agora foi Miller quem recebeu um murro de David, em metade do lábio, que o fez sangrar. — Hei-te dito que não lhe fale assim. — Retirou com cuidado a mão de Coraline e lhe falou — Deixe-me que lhe dê o que merece —murmurou, mas ela negou. — Que insinuas primo? — quis saber ela suspicaz. — OH, Coraline. — Miller elevou as mãos e soprou cansado daquele encontro — Não insinuo nada sobre ti, pequena. Sei que é toda uma dama e que não faria nada que te desonrasse. Quero dizer: nada além de te vestir de homem. — Ela teve a deferência de ruborizar-se — Mas anda um pouco perdida no mundo se acredita que um tipo como este não se aproveitaria de uma jovem encantadora como você. Em um momento, utilizaria o que sabe para te chantagear. Coraline ficou bastante surpreendida de que David não voltasse a atacar a seu primo pelo que havia dito. Flint a observou, esperançado que entendesse, sem necessidade de expressar-se em voz alta. Ela o olhou fixamente aos olhos; ignorou os protestos de seu primo. Respirou fundo para criar um silêncio ao seu redor. Então seus olhos azeviches lhe falaram. Compreendeu que o único que a David importava era o que pensasse ela, que nunca teria usado essa informação, nem nada para prejudicá-la. E que seria capaz de matar a qualquer que o tentasse. Inclusive viu algo mais: uma determinação que lhe acelerou o pulso e lhe arrepiou o pelo. O ar frio os tirou de seu isolamento. David se relaxou porque sabia que ela tinha compreendido, porque com tão somente um olhar tinham sido capazes de dizer-lhe tudo. Tal como acontecia com as almas gêmeas. De repente, tudo cobrou outro sentido. Ouvia as risadas de seus companheiros de equipe, os lamentos e maldições dos irlandeses. Cheirou o campo molhado, notou no ar o suor dos jogadores, o tabaco dos espectadores. Nada disso o inquietou como antes. Somente sentiu emoção quando lhe tocou o peito. Vibrou quando ela o olhou. E sentiu uma necessidade que o asfixiava por levar-lhe dali e perder-se com ela para sempre. — Bem, termina o que tenha que fazer aqui, moça — interveio Miller, o que arrancou David de seus pensamentos — Despeça-te deste zangão e veem me buscar à hospedaria do Arnie. — Não vai a nenhum lugar contigo — assegurou David cortante. — David — Coraline tentou falar. — Não! — exclamou David zangado — Não vai com ele. Voltará comigo para Oxford. — É idiota? Não vê que não pode seguir com esta farsa; tem

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que voltar para sua casa. — E isso fará — afirmou David — Vou leva-la a sua avó, a senhora Atkinson. — O que tem que fazer é voltar com... — Alto! — interrompeu Coraline — John, vá para a hospedaria, prometo-lhe que me reunirei contigo mais tarde e conversaremos. — Empurrou-o para que partisse e deixasse de discutir — E você, David, te tranquilize — ordenou. — Não faz honra a esse nome Miller — gritou Flint à costas de seu inimigo. lembrou-se de John e de Martha, seus avós. Sentiu uma forte saudade por seu lar. David respirou ao ver que Miller tinha cedido à petição do Coraline e se largou. — Por que não me disse isso Coraline? — inqueriu um pouco ferido. — O quê? — instigou ela — Que meu primo é seu maior rival? Bom. — Golpeou-lhe o ombro, com seu pequeno punho — Pensava fazê-lo, mas sempre que abria a boca aproveitava para me beijar, impudicamente. Ao David não ficou mais remédio que rir. Ela tinha razão: os últimos dias só falavam em presença de mais gente, quando estavam a sós usava seu tempo para beijá-la. — Bem, isso já não tem importância — assegurou ele — O que queria saber é o que estava fazendo aqui. — Não te importa que eu seja família de Miller? — repetiu surpreendida, sem esperar resposta — Estava fazendo o mesmo que você: estudando a seu rival. David entrecerrou seus olhos. Não tinha caído na conta de que os escoceses pudessem fazer o mesmo que ele. E Coraline, que papel jogava em tudo isto? Porque ela sabia desde o princípio quem era ele. Teria usado a informação que tinha de sua equipe para beneficiar aos escoceses? Deu-se uma palmada na frente para tirar essas estupidezes. Ela não faria isso. Além disso, seu primo estava tão surpreso de vê-la ali com essa pinta como ela de vê-lo. Observou-a de novo, metida no traje escuro, com os óculos e essas repugnantes costeletas, teve que segurar-se para não beijá-la ali mesmo. Essa mulher removia nele até o inimaginável. Poderia aceitar que fosse escocesa, mas não que o tivesse estado enganando. Entretanto, tinha que admitir que era uma boa embusteira. Tinha burlado a todo mundo para conseguir seu sonho, o que era compreensível. Ela não tinha querido mentir, muito menos o faria para tirar benefício se isso implicava fazer mal a terceiros. Não, repetiu-se, Coraline era honesta, apesar das circunstâncias. — David — chamou ela — A partida terminou. — Ele olhou para o campo. Todos estavam partindo — Vá te trocar. Eu tenho que ir

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falar com meu primo. — Não. — Não seja teimoso. Entende-o — pediu ela pormenorizada. — Então, irá comigo — bufou Flint— Não te vais separar de mim. — David, não seja irracional. — Ela recolheu os utensílios lápis e caderneta, caídos ao chão pela briga — Vá te embebedar com os companheiros. Nos veremos mais tarde. — Olhou de esguelha — Me hospedei no mesmo hotel que o resto da equipe — sussurrou com voz travessa. E se afastou. A David palpitou o coração tão forte que lhe entrou um calafrio. Essa mulher o ia matar. Sentia-se velho para tantas emoções. O que necessitava com urgência era sentar a cabeça e levar uma vida tranquila. Ele era um tipo afável e risonho, o simpático da família, mas, desde que a conheceu, estava mais tempo mal-humorado que cordial. Duvidava muito de que com Coraline conseguisse a vida tranquila que se merecia, embora tampouco importava. A decisão estava tomada.

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Capítulo 16 Tudo passou tão rápido que David acreditou que era um sonho. Não teve intenção de fazê-lo assim, mas não havia volta atrás. Tal como lhe pediu Coraline, depois da partida se foi ao hotel onde se alojava a equipe. Seus companheiros se embebedaram assim que baixaram para jantar. Ele se asseou, trocou-se de roupa e se reuniu com outros, mas se manteve acordado e sem uma gota de álcool porque estava preocupado por ela. O Arnie's não ficava muito longe de onde estava ele, por isso a deixou ir ao encontro com o Miller; também compreendia que tivesse que lhe dar explicações. Não esperava menos de Miller; embora fossem rivais, sabia que o escocês era um homem como devia ser e viu que realmente se preocupava com Coraline. A ideia de que tivesse outro membro da família, além de sua avó, que se ocupasse dela, agradou-lhe. Entretanto, havia algo que lhe rondava pela cabeça e o deixava intranquilo. Se ele fosse Miller e Coraline estivesse junto a seu inimigo número um, faria o que fora para evitar que se reunissem de novo. Esse pensamento o esteve carcomendo por dentro toda a tarde, até que o relógio deu as onze da noite e ela seguia sem aparecer. Deu-se conta de que Coraline já não chegaria. Levantou-se de forma abrupta da poltrona brincalhona que ocupava frente a lareira. Contemplou o crepitar do fogo durante uns instantes mais, enquanto lutava contra a ira que o invadia. As veias lhe queimavam mais que as chamas que consumiam aqueles troncos. Deu-se volta, com grande rapidez e chegou à porta que dava ao exterior. Saiu do salão; abandonou a sua equipe e a seu sobrinho para entrar na fria noite, sem ter muito claro o que ia fazer. Tom o viu desaparecer e, embora lhe resultou estranho esse comportamento, não lhe deu muita importância. As últimas semanas tinha mostrado uma conduta imprópria dele. Estava taciturno, não desfrutava de seus amigos nem de suas classes. Só o futebol tinha tirado o verdadeiro David. Entretanto, essa noite nem sequer o esporte tinha conseguido dissolver o que lhe preocupava. Tom tentou ir detrás de seu tio, mas alguém o agarrou pelo ombro e lhe pôs outra cerveja na mão. Somando os litros que tinha ingerido até esse momento, foi impossível mover-se daquele salão tão acolhedor, cheio de madeira, com um fogo que lhe esquentava os pés, uma cerveja que lhe temperava o estômago, amigos que o faziam rir. E o melhor: uma garçonete que o fazia arder. Tom se perdeu na celebração, algo de que se arrependeria ao

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dia seguinte quando comprovou que David e Coraline tinham desaparecido. Com todo seu pesar, sentindo-se culpado, soube que o que tinha que fazer era ir procurar ajuda. Não havia ninguém melhor para isso que seu pai, Matthew Flint.

*** David andou pelas ruas desertas até chegar ao Arnie'S. Ia golpear a porta, mas pensou melhor. Não sabia o que passava aí dentro. Era preferível olhar antes de atuar. Ele era tipo razoável, lógico, nunca se deixava levar por impulsos. Tinha que recuperar o controle da situação. O lugar parecia mais uma parada de postas que um hotel. Entrou enérgico, mas controlando os nervos que tinha para não alarmar a ninguém. A primeira estadia era como um botequim, com um bar frente à entrada e umas poucas mesas repartidas pela habitação. À esquerda, havia uma escada que levava às habitações e, à direita, um salãozinho com uma chaminé e umas poltronas onde podiam descansar os viajantes. David inspecionou o lugar, com o cenho franzido, sem turvar-se pelo estudo ao que o submetiam os presentes. Havia pouca gente: um par de camponeses sentados no bar; duas viúvas tampadas até a cara, que tomavam o chá em uma das mesas. Em outra, mais escondida, um casal se fazia carinhos. Nenhuma dessas pessoas era quem procurava David. Jogou uma olhada ao redor e viu o livro de visitas justo ao lado da escada. Aproximou-se; leu as últimas entradas e saídas. John Smith tinha chegado fazia dois dias; sua saída estava registrada fazia meia hora. Sem dizer nem boa noite deu meia volta e saiu. Chocou-se com um senhor que ia entrar nesse momento. Não tinha tempo que perder, mas se obrigou a desculpar-se. — Me perdoe, cavalheiro — se desculpou David sem olhá-lo. — Não se preocupe. O homem se afastou para lhe deixar passar. Houve algo na voz daquele homem que lhe soou familiar. Olhou-lhe à cara, mas entre o chapéu que levava bem impregnado até os olhos e o cachecol, não pôde identificá-lo. Alguém atirou um copo. David e o senhor da porta olharam para a habitação; o taberneiro se aproximou das viúvas para recolher uma taça quebrada. David perdeu o interesse naquele cavalheiro e o que acontecia na estadia. Não tinha tempo para nada, tinha que encontrar Coraline antes que a levassem a Deus sabia onde. De repente, caiu na conta de que não conhecia tudo dela. Coraline nunca lhe havia dito o nome de seu progenitor, tinha evitado habilmente tudo relacionado com seu

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pai. Agora imaginava o motivo. O que não entendia era por que sua mãe, Susan, da que tanto falava a senhora Atkinson, não vivia com elas em Oxford. Tinha estado mais interessado em beijar seus lábios que no que ela tinha que lhe contar. Começou a correr desesperado pelas ruas para ao porto. Esperava não equivocar-se em suas conclusões. Se ele fosse Miller e ela sua prima, a levaria com ele ao seu lar, a casa de sua mãe. A Escócia. Deu-lhe um tombo o estômago. Teria que ir a Escócia por ela, uma terra cheia do que mais o aborrecia: escoceses. Por que ela teria ido com ele?

*** Coraline lutava por soltar-se. O animal de seu primo a tinha atado pelos pés e mãos; além disso, tinha-a amordaçado. Assim a carregou em um carro que a esperava fora do posto e a levou ao porto, onde os aguardava o último navio da semana com destino ao Dumfries, Escócia. — Olhe como é bruto — disse Coraline quando lhe tirou a mordaça. Massageou-se a mandíbula — Por quê? — perguntou, sentando-se bem na rede onde a tinha deixado — Te contei tudo. Não pode entendê-lo? — perguntou zangada — Não! — exclamou Miller — Não posso entendê-lo. Como quer que veja tudo isto como algo bom? — Deu-lhe as costas e apareceu à amurada do navio observando como se afastavam da Irlanda — Ninguém em seu são julgamento aceitaria algo assim. Puseste em perigo a ti e a sua família — acusou rude — Quer converter a seus pais e a sua avó no bobo de toda a Inglaterra? —Olhou-a com severidade — A gente pensará que é uma sufragista ou algo pior. — A gente pode pensar o que quiser — assegurou depreciativa —- Me diga por que tenho que me conformar. — levantou-se da rede e foi para ele. Observou o movimento do mar. A lua se refletia sobre ele como em um espelho — Por que não posso ter outros sonhos diferentes aos que se supõe devo ter? Sou inteligente, John. — Girou para ele; obrigou-o a lhe fazer frente — Sei que posso fazer grandes coisas e outros também acreditam. Só que nasci com o corpo equivocado — disse com pesar. Seu primo teve piedade dela. Reconhecia que tinha razão. Ela era muito inteligente e, se tivesse sido um homem, poderia ter chegado aonde tivesse querido, mas era uma mulher. Além disso, ele não ditava as normas. — Compreendo-te, Coraline. — Tomou o queixo — Mas não

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posso fazer nada. — Não, não me entende! — exclamou furiosa — Você é o que quer ser. É médico. Pode imaginar como seria sua vida se lhe obrigassem a ser qualquer outra coisa, se não pudesse jogar futebol ou se lhe exigissem te casar e te encerrar em uma casa para toda a vida? Sabe? Se ser sufragista significa lutar pelo que acredito justo, então o sou. — ergueu a cabeça desafiante. — Vamos Coraline, não seja exagerada. — Quis lhe subtrair importância, mas estava perdendo terreno. Nunca se tinha posto no lugar de sua prima, nem de nenhuma mulher. Para ser sincero consigo mesmo, não parecia algo muito estimulante. — Deixa-o! — soprou cansada — Ele sim me entende — sussurrou enquanto olhava a orla cada vez mais pequena — Mas me arrebataste até isso. — Ele? — perguntou seu primo desdenhoso — David Flint: o que tem com ele? — Ele me apóia, compreende-me, ajuda-me. É meu professor e meu companheiro — Lhe rompeu a voz. — Me diga que não é verdade — indagou Miller, que suspeitava a razão dessas lágrimas. — Não sei a que te refere. — Coraline se limpou as bochechas. — Não me tome por tolo. Apaixonaste-te pelo Flint? —perguntou enquanto se revolvia o cabelo e desejava que o negasse. — Agora já não importa. — As palavras de Coraline se perderam na noite. Miller não quis pressioná-la mais. Possivelmente tinha obrado precipitadamente. Não teve em conta seus sentimentos. Já não tinha remédio: levaria-a a sua casa, mas antes teriam que parar para comprar roupa e inventar uma história acreditável. Depois do que tinha escutado essa noite, não pensava delatá-la, mas tampouco podia ajudá-la a seguir com essa farsa.

*** David estava escondido debaixo das escadas que levava até a ponte de mando, agarrando-se às cordas que penduravam a parede para não saltar sobre Miller. Tinha-a levado a força e agora a fazia chorar. Ia matar a esse verme. Conseguiu subir a bordo, quando estavam retirando a passarela. Alegrou-se de ter levado sua carteira e seu casaco. Se, ao grumete que o ajudou a embarcar, resultou-lhe estranho que chegasse tão tarde e sem bagagem, foi o bastante prudente para não dizê-lo.

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Rompeu-lhe o coração vê-la tão triste. Não podia ouvir do que falavam, mas intuía que Miller não tinha sido tão pormenorizado como ele. Ia ter problemas com Coraline, porque queria assassinar ao Miller por acabar com seus sonhos, mas duvidava de que lhe agradasse a ideia, embora seu primo a tivesse obrigado a abandonar tudo, incluindo a ele. Miller lhe passou o braço pelos ombros e a conduziu para o interior do navio, onde estavam os camarotes. David se escondeu entre as sombras, aguentando a vontade de arrebatar-lhe e estreitá-la entre seus braços. Não queria que o vissem, não era necessário. Tinham umas largas horas por diante. Descansaria e pensaria bem o que ia fazer. No momento, podia voltar a respirar: tinha-a encontrado. Todo o resto não importava nada. Sem ela lhe faltava o ar. Pensar em não vê-la, embora fosse por pouco tempo, punha-o doente. O trajeto não era muito comprido, não tinha que complicar-se, Mas se desatou uma tormenta e, com a agitação do navio, David sentiu que uma mão o agarrava das tripas e as punha de reverso. Para quando chegaram ao porto do Cainryan já estava quase recuperado. Terminou de se recuperar ao ver que Miller guiava a Coraline pela cintura. Era seu primo, mas o parentesco não lhe dava direito de tocá-la assim. Tinham conseguido roupa para ela, não de última moda, mas servia. Era discreta, um traje marrom, com camisa branca, e inclusive levava um chapeuzinho do mais ridículo, mas que lhe sentava como se levasse uma coroa de princesa. Justo o que necessitavam para não chamar a atenção. Viu seu perfil quando descia pela passarela, ainda seguia triste. Apertou os punhos. Inclusive no queria fazer nada. Tinha idealizado um plano que lhe parecia melhor cada segundo que acontecia. Não podia pô-lo em risco por muito que lhe doesse vê-la assim. Antes de descer do navio foi correndo até o camarote que tinha ocupado Coraline. Viu a roupa de homem atirada pelo chão, envolveu-a em um lençol e a carregou como se fosse sua única bagagem. E, a verdade, pensou David, não o fazia falta nada mais em sua vida que Coraline. Desceu do navio do mesmo modo que tinha subido: de um salto e correndo. Esperou a que se fora todo mundo para que não o visse ninguém. Pôde comprar por umas quantas libras um cavalo; via-se um pouco velho, Flint rezou para que aguentasse a viagem. Desconhecia por completo o destino de Miller, o pouco que sabia dele era que tinha nascido no Mauchline, pelo visto não ia para ali, porque ficava mais ao norte. A David não importou, ele tinha muito claro o final de seu caminho. Com um pouco de sorte, Miller se distrairia logo. Seria o momento que aproveitaria ele para arrebatar-lhe. Seguiu a

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carruagem a uma distancia sempre prudente. Tinha que evitar que o vissem. O cavalo não era um puro sangue, mas era forte e resistente, quem sabe até mais que ele. Doía o traseiro de cavalgar e estavam adormecendo as pernas. Miller tinha pressa por chegar aonde fosse que se dirigisse, já que apenas se deteve só o necessário. Foram poucas as ocasiões que viu Coraline; melhor, assim não o distraía. Incitou ao cavalo para que acelerasse o passo. Não via o momento de tê-la entre seus braços, de beijá-la, de amá-la. . Chegaram a um povoado chamado Castle Douglas, um lugar aprazível, rodeado de vales verdes. Casas baixas com chaminés fumegantes se estendiam ao redor da igreja. Um lugar acolhedor e tranquilo. Atravessaram a rua principal até chegar os subúrbios, onde se levantava uma moradia de dois piso, de um tamanho normal, com um jardim que encerrava um robusto abeto. David teve a prudência de ficar umas quantas casas mais atrás. Deixou o cavalo pastando em um dos campos verdes e se escondeu na parte traseira da casa em que tinham entrado Miller e Coraline. Esperou durante horas apoiado em um rincão. Primeiro acenderam as luzes da planta baixa, ao cabo de um momento se iluminaram duas habitações de acima. David continuou aguardando. Por fim, a paciência obteve sua recompensa. Em uma das habitações alguém se aproximou da janela, apartou a cortina e a viu. Coraline olhou pelo cristal, ele percebeu de que seguia triste, lhe revolveram as tripas. Por Deus, ia matar a esse canalha! O único que ela queria era estudar. Podia tentar procurar uma solução em vez de opor-se a ela dessa maneira tão radical. Miller tinha estudos, sabia a satisfação e o orgulho que significava conseguir, depois de anos de preparação, um título que validasse as horas de esforço investidas e saber-se preparado para exercer uma profissão com a que se sonhou durante anos. A luz da habitação contigua se apagou. Miller ia dormir. David aguentou a vontade de gritar seu nome. Queria leva-la, mas não tinha a certeza de que se iria com ele pelas boas: não devia esquecer que Miller era seu primo e que quão único queria era levá-la a sua mãe. A luz de Coraline também se apagou. Uma hora mais calculou David, que era o que fazia falta para assegurar-se de que ninguém despertasse. Quando se decidiu subir pela parede, estava duro pelo frio. Não era muita altura, mas se complicava pela ausência de salientes onde agarrar-se, escorregou um par de vezes, nas que acreditou que Miller apareceria pela janela, mas não foi assim. Sustentado com uma mão, com muita dificuldade, golpeou ligeiramente a janela com a outra. Não houve resposta. Repetiu a chamada um pouco mais forte. Nada. Pelo que parecia, Coraline tinha bom dormir. Farto já de passar frio e penúrias chamou com força e

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rezou para que Miller tivesse o mesmo tipo de sono que ela. Coraline se revolveu na cama. A pesar do desgosto e dos nervos que tinha passado as últimas horas, o cansaço lhe pegou. Ficou dormida pensando nele. Somente nele. E tudo o que tinha deixado atrás. Não devia levar muito tempo adormecida porque, quando escutou ruídos, seus olhos não queriam abrir-se. Tentou despertar, mas se sentia perdida entre o mundo real e o dos sonhos. Nesse momento, estava melhor no dos sonhos, onde voltava a reencontrar-se com David. Um golpe brusco a arrancou de seu descanso. Incorporou-se na cama. Quando se assegurou de que o coração não lhe ia sair do peito, levantou-se, foi para a janela e, ao correr a cortina e ver ali pendurado a David, arroxeado de frio e tremendo, a dois metros do chão, soube que estava ainda em um sonho. Deu meia volta e foi se deitar de novo. — Abre, Maldição! — sussurrou zangado desde fora. Coraline piscou. Esfregou-se os olhos. Voltou para a janela de um salto e abriu. — Minha mãe! — exclamou ela, tirando os braços fora para lhe ajudar a entrar — Mas o que faz aqui? — perguntou quase histérica. Não sabia se ria ou chorava. Tinha ido procura-la, apesar de tudo o que lhe tinha feito passar, aí estava ele. Seu coração queria uivar — Como me encontraste? David conseguiu entrar na habitação, fechou a janela. esfregou-se os braços para entrar em calor e aliviar as cãibras. Estava zangado, muito zangado. Levava quase dois dias sem comer e sem dormir. Entretanto, apesar das duras circunstâncias, seu corpo estava excitado contemplando-a, primeiro na cama dormida placidamente e agora aí de pé frente a ele, com uma muito fina camisola branca que insinuava suas deliciosas formas. O cabelo alvoroçado, jogado sobre a cara e essa expressão de "me beije, por favor" que punha. Tirou-a dos ombros, aproximou-a de seu corpo com rudeza e a beijou até que sentiu que ela se derretia em seus braços. Arrasou-a com suas mãos e sua língua, agitou mais seu cabelo. Coraline gemeu. David se obrigou a deter-se, já haveria tempo para todo aquilo, agora o que tinham que fazer era sair dali quanto antes. — Recolhe suas coisas, vamos — ordenou David sem deixar vislumbrar os nervos que tinha, se por acaso se negava. — Aonde? — perguntou ela aturdida — Meu primo está na habitação do lado. Se te encontrar aqui... — levou-se uma mão à frente como se se acabasse de cair na conta da situação tão comprometedora em que se achava. Ela em camisola e David ali que a comia com os olhos. armaria-se uma boa confusão se despertava Miller — Não posso escapar — sussurrou — Já tenho feito o bastante, estou complicando a vida a muitas pessoas — disse de

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causar pena. — Te vais render agora? — indagou, tomando seu queixo para que levantasse a vista. Essa não era sua Coraline, ela não se sentiria culpada por lutar por seus sonhos. Sua Coraline era audaz, embora também, carinhosa. Preocupava-se com seus familiares e amigos, mas também era tenaz: não se renderia tão facilmente. Tinha obtido o que nenhuma mulher conseguiu e o tinha feito tentando proteger aos seus, tinha-o feito do anonimato. Sabia que não poderiam seguir com a farsa durante muito mais tempo, mas a ajudaria a terminar o trimestre e, mais adiante, estaria ao seu lado para seguir com sua luta. Para isso tinham que sair dali e seguir o plano esboçado — Coraline, me olhe — pediu ele com voz sedosa. Ela levantou a vista. Seus olhos mostravam esse brilho especial que sempre tinham, de esperança, de ilusão, misturado essa noite com o cansaço do que se jogou ao ombro. David lhe roçou os lábios — Recolhe suas coisas e te veste. Vamos — insistiu suave. Ela assentiu com a cabeça e fez o que lhe pedia David sem perguntar. Não se imaginava aonde iriam, nem tampouco a razão de por que ele se incomodava tanto por ela. Ficou atrás do biombo para vestir-se, com um ar melancólico. Meditou sobre o que lhe estava ocorrendo. Por um lado, estava eufórica porque ele tinha ido procura-la, mas, por outro, pesava-lhe uma grande pena, porque, com a decisão que estava tomando, afastava-se um pouco mais de seus pais. Foram até o povo tentando que não os vissem muito. A David custou encontrar um carro que os levasse a essas horas da noite, mas no botequim lhe indicaram o homem que estaria disposto a fazê-lo em troca de um bom dinheiro. — Voltamos para Oxford? — perguntou Coraline aconchegada sobre o peito do David. — Faremo-lo, — assegurou ele, que a envolvia em um abraço — antes temos que parar em um lugar. — Beijou o cocuruto da moça — Descansa, esperam-nos uns dias agitados. Ela ficou adormecida antes que David terminasse sua frase. Ele respirou profundamente. Tê-la assim lhe dava uma sensação de plenitude que nunca antes tinha experimentado com nada. Nem com o futebol, nem com os livros. Nada o enchiam como ela. Ele tinha construído um mundo em que se movia com comodidade: números, livros e balões. Entretanto, desde que tinha se chocado com ela, sua vida se converteu em uma voragem de sentimentos. Amava-a tanto que se sentia perdido.

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Capítulo 17 David tinha um pequeno remorso. Estava roubando à mãe de Coraline e a sua avó um dos momentos mais importantes de sua vida. No caso da senhora Atkinson, possivelmente o mais importante. Não obstante, não podia esperar mais, por muitas razões, mas a principal era que não queria dar outra oportunidade a Miller ou a qualquer parente que se apresentasse, de que a arrebatassem. A única maneira era que ela fora sua de uma vez por todas. Coraline foi quase todo o trajeto adormecida e, quando despertava, mantinha-se calada, sem se separar dele. Pensava em tudo o que tinha passado e o que teria que fazer, a partir desse momento. Em princípio, renunciar à universidade e voltar para Escócia. Deixaria que David a levasse de volta com sua avó e, em uns dias, retornaria definitivamente a sua casa. Já não podia continuar assim. Entretanto, encontraria a maneira de seguir estudando. O que lhe partia a alma era que não sabia como ia reter a ele. Como a ia querer a seu lado com o que tinha enredado sua vida? E, embora, por um milagre, decidisse que sim a queria, assim que se inteirasse de que tinha um pai escocês, que odiava aos ingleses, a deixaria. Se não a abandonava por isso, faria-o por ter sido capaz de insinuar que seu pai estava morto. Ainda lhe davam sufocos pensando nessa noite; não se explicava por que não tinha sido capaz de emendar as maluquices de sua avó e sua querida amiga, a senhora Hamilton. Era uma filha horrível e ingrata, por deixar que sua avó dissesse semelhante falsidade. O carro se deteve. Coraline se incorporou, estirou a jaqueta, alisou-se a saia e se arrumou o cabelo com as mãos. Um simples gesto cotidiano que a David o extasiou. De repente qualquer dúvida que tivesse se esfumou: estava fazendo o correto. Queria, não, precisava ver esses gestos todos os dias. Ver como se vestia, como tomava o chá, como ria, como se zangava ou como se surpreendia. Desejava vê-lo tudo dela durante todos os dias pelo resto de sua vida. Com essa determinação desceu do carro. Não esperou a que ela descesse, pegou-a da cintura e a tirou ele. — David! — Rio ela pelo impulso. — Vamos nos casar — sentenciou, sem lhe soltar a cintura e colocando-a diante dele. — O que... o que...? — balbuciou Coraline tragando saliva. — Vamos nos casar — repetiu ele, que a olhava fixamente como se, dessa maneira, não pudesse negar-se.

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— David, não podemos. — Descansou suas mãos nos ombros do David — Por quê? — perguntou, sem saber o que mas dizer, já que tampouco desejava negar-se energicamente, quando em realidade desejava essas bodas mais que qualquer outra coisa na vida. — Como "por que"? — David soou nervoso e a Coraline pareceu enternecedor — De verdade me tem isso que perguntar? Endureceu seu olhar. Estava-o pondo em um compromisso: uma coisa era amá-la com loucura em sua interior e outra muito distinta, dizê-lo em voz alta. Ela tamborilou os dedos em seu ombro, subiu uma sobrancelha, desafio a que lhe dissesse a verdade. O que ela desejava que fora verdade, mas ele não disse nada. Ficou observando-a com o cenho franzido até que Coraline trocou a expressão de seu rosto. David não pôde suportar mais seu olhar de angústia. Beijou-a. Tentou lhe dizer com esse beijo o que sentia por ela. Abraçou-a com força, pegando-a a seu corpo, lhe fazendo saber a necessidade que tinha. Coraline não pensava protestar: deixou-se beijar e, inclusive, ajudou separando seus lábios e lhe permitindo entrar. Ela era consciente de que aquele não era um bom lugar para dar rédea solta a suas emoções; estavam no meio de um povoado, e, embora fosse uma hora muito cedo, não era decente. Entretanto, parecia-lhe inevitável porque, cada vez que ele a tocava com esses lábios dominantes e sensuais, ela perdia a cabeça. Subiu as mãos até o pescoço e fechou o abraço. Aderiu-se mais, se cabia, a ele. Ficou nas pontas dos pés, tratando fundir-se com David. Notava as respirações de ambas agitadas e isso não fazia a não ser turvá-la mais. Foi David, como sempre, que pôs fim ao beijo. — Acredito que com isto lhe hei dito tudo — disse entre ofegos. Coraline observou com satisfação quão alterado estava, embora não era suficiente para casar-se. — David, não me há dito nada — assinalou bobamente. — Coraline, por favor — soprou zangado — Levo três dias sem dormir, nem me assear e sem comer. — Deixou-a a um lado enquanto carregava o pacote que levava com a roupa que ela usava de menino e que tinha tirado do navio — Abandonei a minha equipe e a meu sobrinho; desapareci sem dizer aonde ia. — Agarrou-a pela mão. Começou a caminhar com grandes passos, de modo que a levava detrás de si enquanto seguia falando — Meu sobrinho estará histérico imaginando todo tipo de coisas horríveis que me tenham podido ocorrer — Fez uma pausa — Sabe uma coisa? — perguntou olhando para trás para ver como ia ela, mas sem intenção de deter-se — Eu sou um tipo pacífico, simpático. — Elevou a voz — Um homem

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tranquilo com uma vida normal e previsível. Em minha família, cuidamo-nos uns aos outros — disse sem que tivesse que ver com o que vinha dizendo — Acredite-me, se desaparecesse um deles, eu removeria céu e terra até encontrá-lo. Mas aqui estou eu: abandonei uma partida pela metade e fugi depois que uma mulher que gosta de disfarçar-se de jovenzinho e que se acredita muito esperta para surrupiar, a um homem como eu, uma confissão. — David se deteve na porta de um pequeno hotel e a encarou. Coraline pensou que o tinha levado ao limite. Não tinha tido em conta os últimos dias passados, o cansaço, a preocupação. Não era momento de discutir, mas não podia evitar, nem queria, o que tinha afirmado fazia uns segundos. Se fosse casar se, tinha que saber a razão e a causa para fazê-lo tão depressa. Um incômodo costume que tinha de compreendê-lo tudo. — Abandonei uma partida pela metade — repetiu David como se isso o explicasse tudo. Coraline não abriu a boca, olhou-o com os olhos entrecerrados conjecturando o que diria a seguir. Entretanto ele não acrescentou nada mais. Contemplavam-se o um ao outro esperando que cada um fosse o primeiro em falar. — Bem, David — começou ela — Sei que abandonou a partida porque acreditaste que meu primo estava me incomodando. E lhe agradeço isso. — Tomou ar, jogou uma olhada ao redor procurando algo que lhe indicasse onde estavam — Mas isso não explica por que nos encontramos em... — ao fim viu um pôster na loja de em frente — Gretna Green? — terminou estupefata. — Sim estamos em Gretna Green — assegurou molesto. —Trouxeste-me para Gretna Green — insistiu, emocionada — É tão romântico... — suspirou. David pôs os olhos em branco. A conversação dançava rápido que nem ele mesmo era capaz de segui-la. Um momento atrás, acreditou que ela ia se negar e agora se estava derretendo na porta do hotel. — Agradeça a seu querido primo — bufou sem saber já que pensar. — OH, David! — Suspirou ela enquanto tornava em seus braços. Elevou-se e lhe devolveu o beijo. David não compreendia suas reflexões, mas sim entendia à perfeição o que era tê-la entre seus braços. — Quando vi seu primo tocando seu pulso, enlouqueci. Pensei que podia te afastar de mim — confessou ele sobre seus lábios — Quando a outra noite não apareceu, não tive nenhuma dúvida em sair atrás de ti, sem importar aonde tivesse que ir para te recuperar. —Uniu seus lábios de novo — Agradeça-me que trouxe minha carteira porque, do contrário, não teríamos tantas comodidades. — Sorriu —

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Te casará comigo? — Sim, — disse ela feliz — mas antes temos que falar. — Ela queria lhe explicar tudo sobre sua família. Cedo ou tarde, teria que conhecer seu pai. — Não — negou David terminante — O primeiro que faremos é nos casar. Falaremos mais tarde. — Sabe, não tenho por que me casar aqui — assinalou ela enquanto entravam para registrar-se no hotel. — Sei. É maior de idade e não necessita consentimento; poderíamos nos haver casado em qualquer lado, mas me pareceu apropriado fazê-lo na Escócia, de onde é e Gretna é romântico e rápido. É o lugar mais rápido para se casar. A cidade onde fogem todos os apaixonados para unir-se até a morte. — Coraline se ruborizou por várias razões, entre elas que ele já tinha caído na conta de que era escocesa e não a odiava. Ao contrário, não lhe dava muita importância — Quão único precisamos é a vontade de ambos. —Apertou sua mão; ela voltou a lhe dar seu consentimento com os olhos — E isso temos — assegurou pletórico. David não queria ouvir nada mais. Um "sim, aceito" era tudo o que precisava escutar até a manhã seguinte. Ela, em troca, ficou com vontade de lhe contar tudo e de entender por que fazia tanta insistência no fato de deixar uma partida pela metade. Coraline não pôde ficar mais vermelha do que estava, quando escutou que ele assinava como senhor e senhora Flint. Nesse instante, estava consciente do que foram fazer. Tremiam-lhe as pernas e o coração e martelava o peito. Sentia-se débil, duvidava de que se poderia levá-lo a cabo. David percebeu sua inquietação e quis tranquilizá-la. Aguardou até que estivessem na habitação e se despediram do jovem que os guiou até ali. Era um hotel precioso, pequeno e tranquilo, com poucas habitações. A sua tinha o chão de madeira, recoberto com um belo tapete cor verde escura, similar a do hall. As paredes empapeladas com folhas em tom dourado. Uma pequena chaminé esquentava a estadia, que continham móveis. Um escritório, uma penteadeira, um biombo e uma grande cama, com travesseiros, uns lençóis tão brancos como a neve e uma colcha aos pés com dois cisnes bordados, que faziam jogo com as almofadas que adornavam o leito. Coraline sentiu um leve enjoo. Isso ia a sério. iam se casar. Logo... Logo teriam que... Ela o desejava, mas duvidava se estava preparada. David foi para ela assim que fechou a porta ao moço. — Está bem? — Sustentou-a pela cintura. — Sim, é só que... — Ela o olhou e se sentiu envergonhada. — Não me dirá que tem medo, verdade? — Acariciou-lhe a bochecha — Não saberia como tomar isso — disse zombador —

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Foste capaz de viver em um mundo de homens e agora te assusta de mim? — beijou sua frente. Ela suspirou. — Não estou assustada de ti — assegurou com doçura — Mas é que eu nunca tinha feito nada igual. — E me alegro, lhe asseguro — afirmou isso enquanto a elevava em braços. — David, baixa me! — exclamou Coraline entre risadas. Deixou-a na cama e se tombou em cima dela. Sustentava-se com os antebraços para não esmagá-la. Beijou-a com paixão contida, posto que ainda não era o momento. Ela se relaxou sob seu peso e se deixou amar. Antes que a situação se fosse das mãos, lhe perguntou: — Coraline. —Tocou o nariz com o seu — Está segura disto? Sei que me pus um pouco rude antes, mas, se quiser, podemos esperar, avisaremos a sua família. — Faremos agora — afirmou ela, emocionada por sua consideração. Agarrou-lhe o pescoço e o obrigou a selar seus lábios de novo. Ia dar um desgosto tremendo a seus pais e o lamentava na alma, mas David tinha razão: deviam casar-se nesse momento ou possivelmente logo encontrariam muitos impedimentos. Coraline era uma mulher que se caracterizava por lutar por seus sonhos. Esse era o mais maravilhoso de todos. Não o deixaria escapar. David gemeu desesperado e ela rio. — Pensou na possibilidade de que te dissesse que não? — quis saber maliciosa. — Sim, — murmurou fundindo-se nela — mas tinha um plano B preparado. — Ah sim? E qual é? Se se pode saber — indagou ela de uma vez que mordiscava o lábio inferior de David. — Adormecê-la — confessou ele enquanto arremetia contra a boca do Coraline em um ponto perigoso de excitação. — Ia drogar me?! — exclamou aniquilada. — A meu irmão funcionou — Rio ele. — Deus bendito! Seu irmão drogou a sua mulher para casar-se com ela? — perguntou, sem dar crédito ao que ouvia. David não respondeu, arrasou-a com sua boca para que se calasse de uma vez. Revolveram-se na cama, pegando seus corpos de maneira totalmente indecorosa, até que ficou debaixo dela. Coraline separou seus lábios dele. — OH David! Não sabe o que me alegra que seu irmão drogou a sua cunhada — soltou ela e, sem mais, atirou-se a ele de novo. — Alegra-te? — repetiu confundido. Apertou o abraço e inspirou seu aroma, que seguia sendo de coco.

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— Sim, — continuou ela — mais do que te possa imaginar. Tem que me contar tudo sobre sua família — rogou entusiasmada pela ideia de que fossem quase tão excêntricos como eles. — Contarei-te tudo o que queira e mais, espero que os conheça dentro de pouco, mas hoje não. Hoje só estamos você e eu. — Recorda? — quis saber Coraline — Faz uns meses estávamos igual a agora. — Ela nunca esqueceria o momento em que seu corpo aterrissou em cima de David. — Igual não era. — David acariciou as costas do Coraline — Você estava vestida de menino e levava essas espantosas costeletas. — Sim, e você estava muito zangado. — Muito — reconheceu ele, deleitando-se em suas curvas. — Agora entendo por que. — ela se rio a gargalhadas. — Por quê? — inquiriu receoso. Não acreditava que ela soubesse o que o tinha incomodado então. — Porque seu corpo se esticou igual a agora — brincou ela. David a fez girar de novo, de forma tão repentina que lhe escapou um grito. Riram os dois juntos. — É uma metida, Coraline Smith. E pensar que faz um instante quase me fez acreditar que tinha medo de nossa união. — Bom, — sussurrou ela com certo acanhamento — um pouco nervosa sim, estou. — Vamos. — incorporou-se, embora o sentia muito — Temos que nos preparar. — Puxou dela para pô-la em pé. — Não podemos esperar? — resmungou Coraline. — Não. Vou dar aviso para que lhe preparem um banho. Enquanto termina, irei fazer umas compras. Já que te arrebato um dos momentos com o que toda jovem sonha, não permitirei que te case de qualquer maneira. — David, não tem por que. — agarrou-se por suas lapelas— Faço isto porque o desejo de coração, sabe, verdade? — fixou seus olhos nos dele. — Sei, pequena. — Deu-lhe um beijo. — E você, David, está totalmente seguro? — indagou ela preocupada. — Coraline, por favor! — bufou ofendido pela dúvida — Deixei uma partida pela metade. Coraline viu estupefata como tomava seu casaco e se ia; tinha-a deixado ali plantada. Em um momento estavam ardendo, e, ao segundo, o frio se instaurou na habitação. Volteou o olhar e se dirigiu ao quarto de banho. Casando ou não, necessitava um bom banho para relaxar-se. Supunha-se que a afirmação do David, sobre a partida, devia ter sentido para ela, mas não era assim.

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Capítulo 18 Quando Coraline entrou no salãozinho de chá, que o hotel possuía em exclusiva para seus clientes, acreditou que estava sonhando. O traje que encontrou em cima da cama, ao sair de seu banho, era precioso, de uma cor nata com cós em âmbar. Um decote quadrado e as mangas lhe chegavam por debaixo do cotovelo. Não tinha anquinhas, o que resultava muito agradável: recolhia-se o babado atrás imitando a forma, mas sem ter que levar um arnês tão incômodo. De fato, não levava nem espartilho, já que tiveram que sair da Irlanda e da casa de Miller correndo. Só bastava usá-lo, o que Coraline agradecia, porque, acostumada a ir a maior parte do tempo com roupa de homem, agora lhe custava meter-se outra vez nas insofríveis roupas de mulher, embora não podia deixar de apreciar o vestido que lhe tinha agradado David. Dele não soube nada até esse momento. Justo quando entrou no salãozinho, cheio de flores brancas espalhadas por todo o quarto, iluminado pelo sol da manhã, e o viu ali de pé com um traje negro, tão elegante como sempre, esperando-a. A ela. Coraline sentiu uma felicidade entristecedora. Acreditou que lhe faltava o ar, inspirou umas quantas vezes para certificar-se de que não era assim. David se via poderoso; apesar de ser um homem grande, era estilizado. Deteve-se contemplando-o, deleitando-se. Tão alto e moreno, preenchia a habitação com sua presença. Seus olhos escuros lhe resultavam mais pícaros do habitual, sorriam-lhe sem elevar a comissura de sua boca e lhe provocaram um comichão que lhe percorreu o corpo inteiro. Ela percebeu, pela forma de estirar a manga da jaqueta, que sob sua aparente serenidade, estava um pouco nervoso. Isso a animou posto que não era ela a única que tinha um pingo de medo. Iam dar um passo importante em suas vidas. Embora estivesse segura de que era ele o único homem com quem queria passar o resto de seus dias, não podia evitar sentir um pequeno temor. O melhor, se tivesse estado sua família apoiando-a, não teria nenhuma insegurança sobre o que estava fazendo. David não pôde esperar mais, via-a temerosa; por nada do mundo queria que se voltasse atrás, mas tampouco desejava obrigá-la. Ele estava virtualmente seguro de que ela o amava, embora não o houvesse verbalizado. E, no caso de que estivesse equivocado, sabia que podia conseguir que o amasse. Porque ele faria todo o necessário para que assim fosse.

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Estava tão formosa. A cor bege do vestido, com tons âmbar combinava à perfeição com seu cabelo e seus olhos. Lavou o cabelo e o tinha adornado com uma simples diadema, que tinha comprado junto com o vestido. Esse corte deixava exposto seu pescoço, tão gracioso, que David o único que podia pensar era em acariciá-lo com sua boca, até que caísse rendida a ele. Antes que colocasse aos dois em um apuro diante do sacerdote, que tinha conseguido para levar a cabo a cerimônia, aproximou-se e lhe ofereceu o braço. Coraline se enganchou dele, para deixar-se guiar até o religioso. Ouviram um estrepitoso ruído no hall do hotel. — Senhora, faça o favor de apartar sua mão de mim... ! — O homem que gritava não terminou a frase. Ouviram-se umas risadas mescladas com mais gritos de recriminação. O timbre do hall não parava de soar, algo que bem poderia ser uma mala caindo ao chão. — Não se alarme jovem — disse uma voz de senhora que a Coraline era familiar — Só queria me agarrar a algo para não cair. — E não encontrou outra coisa que meu traseiro? — gritou a voz do mesmo homem. — Por favor, tenhamos paz — pediu outra voz de senhora que a Coraline fez tremer. David e ela se olharam. Não podia ser. Sua avó estava em Oxford. David pensou o mesmo que Coraline. Era impossível. Tirados da mão, encaminharam-se para o hall, mas, antes de chegar, souberam que não havia engano. — Hóg! — proferiu um senhor em sueco. — O quê? — exclamou o homem a quem lhe haviam atacado o traseiro — O que há dito este gigante? — perguntou referindo-se ao Sórenson — Acaba de imitar a um porco? — gritou — O porco é você! — Quis lhe dar um murro, mas Sórenson em um ágil movimento o esquivou e lhe pôs uma rasteira que conseguiu que o homem aterrissasse no chão. — Vê! — interveio a senhora Hamilton, acusadora — A mim não me importava que se apoiasse, ligeiramente, ao final de minhas costas, para evitar que caísse dessa maneira tão vulgar. Certamente, é você um homem muito grosseiro. — Deu-lhe um chute — Nesta vida terá que ser mais caridoso. — Senhora você não se apoiou em minhas costas — disse o homem enquanto ficava em pé — Me beliscou a bunda. — a culpou insolentemente. — Senhor, retire agora mesmo essa barbaridade! — exigiu a senhora Atkinson, situada diante de Sórenson que se dispunha a atacar aquele pobre cavalheiro. — Frescuras! — disse a senhora Hamilton — Que mais dará que me sustente de um braço que de uma nádega? Se a gente tiver

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um bom traseiro, então se compartilha e já está. — Estão todos loucos! — chiou o homem. — Dóda honom! — Sórenson pensava matá-lo ali mesmo. — O que ocorre aqui? — inquiriu o que parecia dono do hotel. Olhou ao recepcionista procurando uma resposta, mas se encolheu de ombros. Não se atreveu a abrir a boca. — Este homem tem o traseiro flácido — assegurou a senhora Hamilton, como resposta lógica ao que acontecia ali, enquanto assinalava ao comprometido, que decidiu escapar correndo — Não corra filho, dessa forma é mais evidente sua flacidez! David e Coraline observaram paralisados, entre a consternação e o surrealismo, aquela estrambótica cena. Coraline viu estupefata como sua avó se dobrava de risada com sua querida amiga, a senhora Hamilton. O que a levou a pensar que, sua honorável avó, não fazia mais que interpretar um papel diante dela. David lhe apertou a mão, observando-a lhe devolveu o olhar. Comprovou que estava no mesmo estado de congelamento. Estavam em branco, como em transe. Uma vez que se recuperou a calma no hall, a senhora Atkinson se voltou para o recepcionista e perguntou com deliciosa educação: — Poderia me dizer se se hospedarem aqui um casal jovem. Ele é muito alto e arrumado; ela é... — Lhe fez um nó na garganta — Como um anjo — concluiu emocionada. O recepcionista olhou o livro de registro, sabia a quem se referia a senhora. Não poderia esquecer uma cara como a dessa jovem na vida. Na verdade recordou a um anjo, posto que tinha uma doçura especial. — O senhor e a senhora Flint — afirmou o menino — Chegaram esta manhã ao amanhecer. — Chegamos tarde — murmurou a senhora Atkinson, com um fio de voz. David saiu de sua paralisia para ouvir seu nome e o que seria de sua mulher. Seguiam obstinados da mão; percebeu a preocupação de Coraline. — Avó! — exclamou a moça. Não podia vê-la sofrer dessa maneira por sua culpa. Separou-se de David e foi consolar à mulher. — Coraline! — exclamou a senhora Atkinson que lhe devolveu o abraço a sua neta — Carinho! — Sinto-o avó, eu... — começou a desculpar-se, mas David o impediu. Apertou com força as mandíbulas. Quando Coraline soltou sua mão, sentiu que se afundava em um profundo abismo. Entretanto, não podia reprovar. Ela não permitiria que sua família sofresse dessa

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forma. E ele a amava mais por isso. Sentiu-se envergonhado pelo que esteve a ponto de fazer. Um cavalheiro nunca teria feito assim. Teria que havê-la cortejado, ter pedido sua mão a sua mãe. Como podia dizer que a amava se não respeitava a sua família, se não a tinha em conta? Eles quereriam estar no dia de suas bodas junto a ela. Fazer participar a seus amigos e conhecidos. Celebrar uma grande bodas, e não uma fuga romântica como se tivessem que ocultar algo escandaloso, se deixavam de lado, claro, a dupla vida de sua prometida. — Não! — proferiu David. Ficou ao lado do Coraline — Não é culpa dela. Foi todo minha responsabilidade. Um muito grave engano. Obriguei-a — confessou envergonhado, mas sem apartar o olhar da senhora Atkinson. — Não, avó, não o escute. — Ela o defendeu com ímpeto — Fui eu. Tudo isto é minha culpa. Ele somente queria me ajudar. — Fez uma pausa para recuperar forças — Avó, fiz coisas horríveis. Se soubesse... David só ia casar comigo porque... — Deixa de dizer tolices — interrompeu David abrupto. Estava se zangando com Coraline por ser tão dura consigo mesma — A culpa é minha e ponto. Eu te arranquei dos braços de seu primo e te trouxe até aqui com a intenção de nos casar. — Tomou pelos ombros e a girou para ele — Nem sequer te permiti pensá-lo. Não tenho desculpa. Lamento-o. — Ela negou com a cabeça— Felizmente para ti, não é muito tarde. — Terminou a frase quase em um sufoco. Estava-o partindo em dois ter que deixá-la ir, embora não ia se render. Isso só era uma retirada, não uma derrota definitiva. Nem pensar. — Um momento! — interveio a senhora Atkinson que mostrou as palmas das mãos — Há dito que não te casou? Os dois assentiram sem emitir nem um ruído. — Isso é maravilhoso! — chiou a senhora Atkinson. David franziu o cenho. Não gostou de nada como soou essa exclamação. — Senhora. — ficou muito sério— Ao melhor não expliquei com claridade. Hei dito que não nos casamos ainda. — Quer dizer que as bodas segue em pé? — quis saber a senhora Hamilton, que se mantinha prudentemente junto a Sórenson sem dizer nada. — Sim — assegurou cortante. Logo jogou uma olhada a Coraline se por acaso tinha trocado de opinião, mas ela assentiu enérgica: subiu um calor pelo corpo que lhe avivou o sangue. — Isso é ainda mais maravilhoso! — declarou a senhora Atkinson, rachando sua compostura. Então, David e Coraline ficaram por completo deslocados. Tinha perdido a cabeça a senhora Atkinson? Ou eram eles os que não compreendiam nada? Sua avó ignorou o desconcerto que mostravam os jovens e foi

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unir-se a sua querida amiga, a senhora Hamilton. — OH, senhora Hamilton! — Uniu suas mãos com as de sua amiga — Chegamos a tempo. Poderemos estrear esses fantásticos vestidos que nos trouxeram de Londres. — Sim! — assentiu iludida a senhora Hamilton — E toda graças a Sórenson. — voltou-se para o mordomo ao que lhe fez olinhos. — Tem razão — concordou a senhora Atkinson. aproximou-se, muito séria, ao senhor Sórenson — Faça o favor de aproximar-se —pediu com autoridade. Sórenson com a vista à frente, seu habitual rosto cinzelado e sem mover nenhuma pestana, inclinou-se para sua senhora. Sob um atento olhar dos pressente e um olhar aturdido de Coraline, a senhora Atkinson depositou um efêmero beijo na bochecha de Sórenson. O mordomo, ao notar uns finos lábios em sua bochecha, aumentou os olhos. Sem mover nenhuma pestana e com a mesma dignidade de sempre, recuperou sua postura firme e o olhar à frente. Coraline viu que um leve rubor lhe cobria as maçãs do rosto. A situação a superou, cambaleou um pouco e David a sustentou do braço. Ela se apoiou no peito firme dele, elevou a vista, viu um sorriso em seus olhos. Isso lhe deu forças. Não entendia nada do que estava acontecendo, mas ele estava com ela, dando a cara por ela, protegendo-a, encobrindo-a e era o único que importava. Se sua avó se tornou louca, não tinha relevância, cuidaria dela até o fim de seus dias. Sabia que David também a apoiaria nisso. Estava mais decidida que antes a casar-se com ele. A senhora Atkinson teve piedade do casal e decidiu explicar. — Carinho, estamos seguindo-os faz bastante. — Passou por cima a cara de decomposta de sua neta — Estivemos na Irlanda e vimos como seu primo te tirava a força. — Mas do que está falando avó? — interrompeu Coraline no limite do histerismo — Acredito que a senhora Hamilton não é uma boa influência para ti. — Olhou à mulher com pena — Desculpe-me senhora, não pretendo ofendê-la, mas é que minha avó antes não era assim — disse compungida e com sinceridade. — Não se preocupe querida — Rio a aludida — Não há dúvida de que sua avó agora é muito mais divertida. Coraline não teve mais remedio que lhe dar a razão. Ainda assim era preocupante a situação. Ela queria casar-se com David, mas agora teria que levar a sua avó a casa de seu pai para que cuidassem dela. Não podia deixá-la nesse estado por aí, solta. E o pior de voltar para sua casa era que teria que lhe confessar a seu pai que se apaixonou pelo David Flint; ele se oporia furioso, sua mãe se desgostaria e ela morreria. Pelo menos suas correrias universitárias não tinham que sair à luz.

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— Coraline te concentre! — repreendeu-a a avó com seu aspecto mais sério — Deixa que te conte tudo. — Era melhor começar desde o começo — Já faz tempo que seu comportamento me fazia suspeitar. Sempre foi um pouco extravagante, um pouco muito compreensível tendo o pai que tem. — Fez uma careta de desgosto, que Coraline admoestou com o olhar — Mas ultimamente estava estranha e temia por seu futuro. Foi quando pusemos alguém sobre seus passos. — Uniu suas mãos no regaço - Foi recomendação da senhora Hamilton e o agradeço. — Fez uma inclinação a sua amiga, que a devolveu com amabilidade — Nos inteiramos de suas aventuras pela universidade, vestida de homem, algo que falaremos mais adiante. — Fez uma breve pausa — Soubemos da relação tão estreita que mantinha com o senhor Flint e como ele te protegia. — Passou seus olhos agradecida pelo David e o viu com a boca aberta. Continuou, evitando distrações — Logo, apareceu um dia para jantar, ao ver-te junto a ele compreendemos no ato que ambos foram feitos um para o outro. — Coraline se ruborizou até as orelhas — Quando avisou que ia visitar seus pais durante uma semana, não te acreditei, sobre tudo porque nosso informante já nos tinha comunicado suas verdadeiras intenções de ir a Irlanda para realizar a reportagem. —Percebeu a cara de incredulidade de sua neta — Sim querida, também sei do periódico — esclareceu sem mais. Decidiu saltar-se alguns dados para agilizar o relato — Minha intenção não era outra a não ser a de me assegurar seu bem-estar, mas Miller pôs em perigo tudo. Vimos que seu primo pensava te levar com seus pais e nos alarmamos, porque David parecia não chegar nunca. Quando chegou ao Arnie's e não te encontrou, se voltou louco. — Pôs cara de devaneio — OH, Coraline, foi tão romântico! Então, saiu feito uma fúria em sua busca, chocou-se com o Sórenson na porta, mas, por fortuna, não o reconheceu e seguiu em sua busca. Nós conseguimos alugar uma carruagem pequena que partiu o dia seguinte. Chegamos a casa de Miller, que nos atendeu fabulosamente, por ser escocês, claro. Estava fora de si porque tinha escapado. — Fez outra careta com a boca — Lhe assegurei que deixasse tudo em minhas mãos, que eu me ocuparia de ti, que estava inteirada de tudo e que ia dar uma lição que aprenderia para toda a vida. — Sim, fez uma atuação fantástica — interveio a senhora Hamilton, orgulhosa — Até o Miller lhe rogou que não fora muito dura contigo. Disse-lhe que deixava tudo em suas mãos. — Sim — sorriu a senhora Atkinson — Conseguimos dar contigo e com o David, graças ao Sórenson. — Baixou a voz e se aproximou de sua neta — Este homem é uma surpresa atrás de outra. É capaz de pôr uma mesa à perfeição como de capitanear um navio ou de fazer de espião. Acredito que há muito dele que não conhecemos. E me fascina.

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— Avó! — gritou ao fim Coraline - Isto é muito. Não... Não posso... — gaguejou, tocou-se a frente se por acaso tinha febre e estava delirando. Não existia capacidade em sua cabeça para isso. Sua avó se converteu em um agente secreto! — Não dramatize Coraline, é de muito má educação — a arreganhou a senhora Atkinson. Coraline piscou. Agarrou-se mais forte ao David, que continuava calado. Não dizia nem fazia nada, somente o viu sacudir a cabeça umas quantas vezes. Estaria tentando limpar sua mente, imaginou ela. A ia deixar. Sairia correndo como o senhor do traseiro flácido, não sentiria saudades absolutamente. Estavam todos loucos. David a surpreendeu quando rompeu a rir. — Senhora — disse quando a risada lhe permitiu falar — É você incrível. — Executou uma reverência que demonstrava seus respeitos — Me alegra muitíssimo sua decisão de preservar a sua neta dessa maneira tão feroz. Nem minha família o teria feito melhor, e lhe asseguro que isto é um minúcia comparado com nossas façanhas. Coraline o escutou maravilhada. Não a ia abandonar por excêntrica. Então, que seu irmão drogasse a sua cunhada para casar-se com ela não era o pior que tinha ocorrido na família dele. Esse dado a fez meditar. Talvez fosse muito unir-se a um homem que lhe igualava em excentricidade. Seus filhos seriam uma espécie de cientistas loucos. Sorriu embevecida, imaginando o futuro junto a ele. — Bem — interveio Coraline cabisbaixa — E agora o que fazemos? — observou a sua avó esperando instruções. Depois de tudo, tinha que obedecê-la de momento. — Acredito que temos umas bodas que celebrar — insinuou a senhora Atkinson com um sorrisinho contido. Coraline e David se olharam sobressaltados, ao segundo puseram os olhos sobre a avó, como se não tivessem escutado bem. — Está segura? — gaguejou Coraline. — Claro que estou segura! — Possivelmente não seja boa ideia seguir com isto. — David soou abatido, já que o que menos desejava era atrasar as bodas, mas compreendia que sua obrigação era contar com a aprovação de sua família — A mãe de Coraline gostaria de estar presente em um dia tão especial. — Tolices! — proferiu a senhora Atkinson—. Minha filha o entenderá melhor que ninguém. Ela fez virtualmente o mesmo quando se casou com esse escocês. — Viu a cara triste de Coraline e se conteve de seguir falando —. A sério: minha filha o verá tudo tão romântico como eu. — Sentiu um pequeno beliscão de remorso. Entretanto, todo o fazia por sua neta. Ele era um estupendo partido e estava muito claro que se amavam com loucura.

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— Avó, mas papai... — Seu pai estará presente, de onde se encontre, enquanto o mantenhamos na memória. E eu o tenho sempre na minha — disse a senhora Atkinson com pesadumbre. Tinha insinuado de novo que o pai de Coraline não se contava entre os vivos. Coraline abriu os olhos assustada do atrevimento de sua avó. Havia tornado a fazer! — Não, avó. Ele tem que saber... — Menina! — gritou a senhora Atkinson farta — Quer te casar com ele ou não? — Sim, claro que quero. — Então, me faça caso. Acredite, carinho, que não vais ter outra oportunidade como esta — sentenciou a avó. Logo, deu o tema por resolvido — Terá que avisar a alguém que possa oficiar a cerimônia — indicou com o tom autoritário recuperado. — Avó! — exclamou crispada — Te juro que não te reconheço. — Cruzou os braços sobre o peito e lhe retirou o olhar, ofendida. David ia protestar, mas se deteve. Avaliou o cenário observando a neta e avó. Coraline se debatia entre a culpa e a indignação. Annabel tinha recuperado as maneiras régias e tinha tomado o mando da situação. A atitude de ambas o fazia suspeitar que algo estranho passava. "Essas duas ocultavam algo, sem dúvida." David tinha duas opções: podia esperar e ir em busca da mãe de Coraline, como era correto, lhe pedir a mão e casar-se; certamente, assim que chegassem a casa dos Smith descobriria que demônios passava. Ou se casava nesse mesmo momento com a bênção da senhora Atkinson e, mais tarde, já se inteiraria do que ocultavam. David conhecia Coraline fazia uns meses, entretanto, sabia tudo ou quase tudo dela. E a amava com tanto desespero que não acreditava possível que houvesse algo tão horrível que lhe fizesse duvidar dela. Tomou a mão de Coraline com tanto ímpeto que ela se assustou. Não o esperava. Seguia zangada com sua avó: primeiro, por interromper as bodas e, segundo, por seguir com a farsa do pai defunto. Sabia muito bem por que o fazia: Annabel não suportava a seu pai e queria vingar-se pelas bodas que levou a cabo com sua mãe. A avó sempre dizia que lhe tinha arrebatado a sua filha de uma forma vil como só faria um escocês. — O que decide? — David cravou seus profundos olhos nela com o coração galopando. Ela o olhou, paralisada pelos sentimentos que lhe provocava com tão somente um olhar. Sabia que era o momento. — Eu...— duvidou Coraline— Nos casamos — sentenciou firme, para deixar de lado os temores e as incertezas. Sentiu-se feliz,

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liberada. Rio ao ver a cara de alívio que punha ele. — Tenho a um sacerdote esperando naquela sala. — Indicou a todos a direção e os convidou a entrar. — Um homem de recursos — apontou a senhora Hamilton — Um inglês. — David lhe piscou um olho à senhora Atkinson. — Menino preparado — disse a avó de Coraline, orgulhosa dele. Ao celebrar as bodas na Escócia, se lhes casava um sacerdote inglês, teriam menos problemas com as leis inglesas para fazer válido o matrimônio. — Sei que me está utilizando para te vingar de papai — lhe murmurou Coraline a sua avó, enquanto caminhavam para o interior da sala. — Equivoca-te, carinho. — A avó a olhou com ternura — Você me tem feito compreender o que seu pai sentia por minha Susan. — A mulher baixou o olhar e, com ar de tristeza, confessou — Lhes fiz a vida impossível. Não queria que se casasse com um bruto escocês. Importava-me mais o que diriam e a pureza do sangue inglês do que a felicidade de minha filha. — Avó. — Coraline a abraçou — Não diga isso. Não é verdade. Sei muito bem como é papai, imagino o teimoso que ficou quando decidiu casar-se com mamãe. — Nem lhe imagina, — disse sua avó — mas ele a ama de verdade. Arrependo-me de quão mal atuei com eles. Só quero evitar que ocorra a ti o mesmo, porque seu pai se parece mais a mim do que ele acredita. Coraline assentiu: tinha razão. Seu pai era muito rústico e duvidava de que gostasse de David como marido para sua única filha. Essa era uma das razões pelas que continuava adiante. Uma vez casados, não teria mais remédio que aceitá-lo. A outra era que, sem o David, morreria.

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Capítulo 19 A cerimônia tinha sido bonita. Coraline sentiu falta de seus pais, mas sabia que sua avó tinha razão. Entendê-la-iam, eles tinham se apaixonado tão desesperadamente como ela. E, a igual que ela, tinham tido que batalhar com a oposição de seus progenitores: só necessitava que o recordassem. Sacudiu seus pensamentos para concentrar-se no momento que estava vivendo. Depois das bodas, sua avó, a senhora Hamilton e inclusive Sórenson, se trocaram de roupa e foram comer todos juntos. Foi quase igual a um casamento normal. Coraline estava feliz de ter ali a parte de sua família. Desfrutou muito durante todo o dia da companhia. David se mostrou atento com todos. Às vezes, acariciava lhe a mão por debaixo do guardanapo, para que ninguém se desse conta, o que produzia um comichão que lhe percorria todo o braço e arrepiava o pelo da nuca. Outras, inclinava-se sobre ela para lhe sussurrar palavras de carinho no ouvido; então, subia-lhe a temperatura corporal até sentir-se sufocada. Passearam durante a tarde, visitaram o povo e fizeram algumas compra das que se encarregou a avó, como presente. Ao entardecer, o tempo começou a trocar, se preparava uma tormenta, por isso se retiraram todos ao hotel. Era hora de descansar; à manhã seguinte, já veriam o que fariam. Esse dia, ninguém queria turvar o momento de felicidade que vivia o casal. Deixaram-nos sozinhos. Eles subiram a sua habitação como marido e mulher. David a tomou em seus braços, abriu a porta de uma patada e transpassou a soleira com ela em braços. Ela rio sobre seu pescoço, emocionada e nervosa. — David! Não tinha por quê. — É obvio que sim — afirmou com falsa seriedade. Aproximou-se da cama em um par de pernadas e a deixou de pé com suavidade. Sorriram-se uns segundos mais, até que os olhares de desejo substituíram aos sorrisos. David soube que a estava contemplando com excessiva intensidade porque notava seu pulso acelerado. Pensou que se afastaria nervosa, mas não o fez. Ela não se retirou, ficou frente a ele, olhando-o aos olhos. Baixou suas mãos lentamente pelo peito do David e se deteve aí, entretida nas lapelas da jaqueta. Passou suas mãos de acima a abaixo. Acariciou-o: primeiro, sobre a jaqueta e, depois, debaixo dela. Ele respirou com

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força, supôs que Coraline desconhecia o efeito que estava provocando nele. David, sem poder estar quieto por mais tempo, emoldurou-lhe a cara com suas mãos. Ela pensou que a beijaria, mas não foi assim. Observou sua cara, encantado, estudando seu rosto, seu cabelo, seus gestos. Roçou com seus polegares a pele branca, se alagou no suave tato. Passou os dedos pelas larguíssimas pestanas, que perfilavam esses enormes olhos da cor do bom uísque escocês. Lhe fizeram cócegas os nós dos dedos. Uma de suas comissuras se elevou. Coraline estava fascinada. Supunha-se que devia sentir-se alterada; entretanto, não o estava. Sentia-se desejosa e, por nada do mundo, teria querido estar em outro lugar. David a olhava maravilhado e ela o agradeceu em silêncio. Nunca se iludiu com que ele a admirasse por essa maneira; a fez sentir-se ousada. Lhe dedicou um meio sorriso, que lhe provocou um tremor por dentro. Um formigamento viajou do estômago até a garganta e lhe fez soltar um gemido. — David — ofegou ela. Ele se inclinou; sem dizer nada, beijou-a. Ela se elevou sobre as pontas de seus pés, pegando-se mais a ele. Ele a içou sobre seu corpo. Saboreou sua boca, mimou aqueles deliciosos lábios. Tentou perder-se nela. Pareceu-lhe um sonho todo o acontecido até esse momento. O único real era ela, quão único tinha sentido em sua vida era ela; de uma maneira tão intensa que o assustou. Fechou mais seu abraço sobre a estreita cintura, era como se tivesse medo de que lhe escapasse de entre os dedos. Como um sonho que se dilui ao despertar. De repente e com brutalidade, separou-se dela e a manteve com os pés suspensos. Voltou a olhá-la com fixidez. — Não me deixará alguma vez, verdade? — quis saber com o cenho franzido. Não lhe deu nenhuma vergonha o que ela pudesse acreditar. Para sua surpresa, deu-se conta de que confiava nela até o ponto de lhe abrir passo para seus temores. Ela rio. Devolveu-lhe o beijo de forma tão descarada como lhe tinha ensinado. — Nunca te deixarei — disse em um sussurro — Sempre e quando me obedecer em tudo. — Rio de novo com picardia. David arrasou sua boca. Adorava esse atrevimento dela. Desfrutou dela uns minutos mais, sem cansar-se de saboreá-la. Sem prévio aviso e com o ímpeto do momento, deixou-se cair com ela na cama. O ruído que provocou a cama quando cederam seus pés foi o suficientemente grande como para que se ouvisse no exterior. David e Coraline se observaram em silencio durante uns minutos. Ela se tampou a boca com a mão, ele colocou um dedo nos lábios lhe

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indicando que não fizesse mais ruído. Com um pouco de sorte, ninguém chamaria a sua porta para ver o que tinha ocorrido. David não pensava interromper esse momento por um tão insignificante, como uma cama quebrada. Quando viram que ninguém os incomodava para comprovar se estava tudo bem, David se relaxou e ela estalou em gargalhadas. — Espero que isto não seja sempre assim — disse Coraline em um intento por dominar a risada — Não teremos camas suficientes. — O que vamos fazer — fez uma pausa para lhe morder o lóbulo da orelha — não tem que ser sempre em uma cama. David conseguiu que ficasse séria de repente: arrancou-lhe um rubor por fim. Então, foi ele que rio. Ignorou a cama no chão e recuperou o desejo. Ficou em cima dela e se propôs a ruborizar cada parte de seu corpo. Ajudou-a despir-se, sem pressa. Estava ansioso, mas gozou, de forma irreverente, de cada botão que desabotoou e de cada laço que desfez. Deixou-a com uma muito fina camisa interior, porque acreditava que estaria mais cômoda com o objeto que completamente nua. Não queria que se reprimisse por nada. Uma vez que esteve preparada, foi ela quem o ajudo a desfazer-se de sua roupa. David observou satisfeito o interesse que ela mostrava e o pouco que se dava conta ao vê-lo nu. Era consciente que nem a todas damas agradava a visão de um corpo masculino, menos se estava tão trabalhado como o seu. O esporte tinha conseguido que desenvolvesse um físico que podia ser intimidante para uma mulher tão pequena como Coraline. Não era o caso: ela se mostrou perturbada, sim, mas não assustada. Ele se dedicou durante o tempo que precisava para lhe dar a confiança que necessitava. A lhe mostrar como seus corpos estavam feitos para unir-se, para formar um só. Coraline relaxou com suas carícias, com seus beijos. Sentia-o por todo o corpo. Houve momentos que não podia distinguir onde começava seu corpo e onde o de David. Começou a lhe incomodar inclusive a fina camisa que a cobria, que, de repente, pareceu-lhe ridícula. O que precisava era sentir sua pele. No ardor do momento, quis tirar a camisa interior, mas se enredou com suas pernas. David tomou o mando para ajudá-la: foi subindo devagar pelas pernas, percorrendo seu flanco, acariciando a cintura, deixando, a propósito, a um lado seu peito, ansioso por carícias. Ela o insistiu a que se apressasse. Seu tato a queimava lá por onde passava e o único que queria era que o resto de seu corpo ardesse igual às zonas que ele roçava. Ao fim, seus corpos nus se tocaram. Foi a sensação mais deliciosa que Coraline tinha experimentado em sua vida. Lhe fazia cócegas tudo: dos pés até a cabeça; nada era suficiente para fundir-

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se com ele. David viu que era o momento. Ela estava preparada. Pouco a pouco foi interpondo sua perna entre as dela, separando-a com suavidade. Continha-se como podia, com movimentos delicados e com todo o amor que era capaz de sentir e expressar. Pouco a pouco, foi entrando nela. Deteve-se quando ela aumentou os olhos em um aviso de que a intrusão a atemorizava mais do que tinha demonstrado. David ficou quieto. E a beijou com tanta ternura que Coraline se esqueceu de todo o resto. Voltou a tentá-lo quando notou que ela se relaxava de novo e, de própria iniciativa, facilitava-lhe o acesso. David seguiu sua intromissão com lentidão, beijando seus lábios, seus olhos, recolhendo os pequenos gemidos em sua boca. Completou sua união. Coraline apenas sentiu uma dor. Durante um momento, David se moveu devagar dentro dela. Coraline sentiu um amor tão grande que lhe estalou o coração. Sem saber muito bem o que fazia, em resposta a uma necessidade tão básica como respirar, começou a mover-se debaixo dele, incitando-o para que aumentasse o ritmo. David soube interpretar os sinais e, a gosto, acelerou os movimentos. Levantou a cabeça para vê-la: o que contemplou lhe deixou embriagado. Era tão bonita e era sua para sempre, em corpo e alma. Com esse pensamento se deixou ir. Logo sentiu a explosão de Coraline, suas mãos agarradas a ele com desespero, perdida em algo novo para ela, David não pôde controlar-se por mais tempo: com um último impulso, encheu-a por dentro. Sentiram os dois que essa união os convertia em um só corpo. — Amo-te — confessou ela, ainda sob os efeitos do que acabavam de compartilhar. David a aproximou de seu corpo e a abraçou com força. Cobriu-os a ambos com a manta, pois tinha baixado a temperatura grandemente. Ela descansou a cabeça em seu ombro e se deixou agasalhar. — Não me negará que isto é melhor que o futebol. — Coraline quis encher o silêncio, que se prolongava muito em um intento por fazê-lo rir. Estava muito calado. Não se atrevia a olhá-lo aos olhos. Sentia-se satisfeita e amada, mas não podia evitar ter um pingo de vergonha. O silêncio de David não a ajudava a acalmar a insegurança. Ao fim, esse mutismo a obrigou lhe fazer frente. Levantou a vista e comprovou que a observava com profundidade. Seus olhos negros revelavam sentimentos de uma magnitude que a Coraline a estremeceu. Relaxou-se. Depositou um beijo no queixo e ele, ainda mudo, apertou-a com mais força. A Coraline já não fazia falta as palavras. — Nunca tinha sido melhor que o futebol até agora —

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murmurou com a voz quebrada sobre o cocuruto de Coraline. Ela sabia que a estava adulando. Sorriu no pescoço de David. Tinha que aprender a interpretar as palavras de carinho de seu marido. No momento, a frase de deixar a partida pela metade começava a cobrar sentido. Não dormiram muito mal por terem ficado a noite no chão. Fiéis à realidade, fecharam os olhos somente para suspirar. Dedicaram toda a noite a amar-se, a conhecer-se. Chegaram a um nível de entendimento um do outro que nunca sonharam alcançar. Eram muitas as coisas que compartilhavam, mesmos interesses, mesmos sonhos. E o mais importante: um amor tão grande como seus próprios corações. Coraline resmungou pela manhã. negava-se a abandonar o leito tão acolhedor que tinham criado. David rio. Enchia-lhe o coração de alegria vê-la tão feliz. Durante toda a noite, dedicou-se a lhe ensinar, a mimá-la. Adorava seu corpo, sua risada, sua voz. Tudo. Ela era o que lhe faltava em sua vida, e agora a tinha. A David tampouco agradava terminar com esse momento tão delicioso, assim chamou o serviço de quarto e deu ordens para que lhes preparassem tudo para passar o dia ali. Enviou uma nota à senhora Atkinson em que pedia desculpas e lhe explicava que Coraline estava esgotada, que ficariam descansando todo o dia até o jantar. Ela o agradeceu imensamente, porque na verdade estava muito cansada. Tal como prometeram, depois de umas horas tentando recuperar-se sem resultado, saíram para jantar. Teria sido uma falta de consideração para a honorável avó e sua querida amiga, se não faziam ato de presença. Além disso, o gerente do hotel, com tato, rogou-lhes que deixassem um tempo a habitação para arrumar o desastre da cama. Coraline se fez desentendida quando se cruzaram com ele, no salão do jantar, como se não se explicasse aquele destroço; entretanto, suas bochechas rosadas a delataram. David se interpôs entre sua esposa e o olhar discreto do gerente, para evitar que ela se sentisse pior. Esse pequeno detalhe a Coraline mexeu por dentro. Era tão atento e se preocupava tanto por seu bem-estar que se sentiu um pouco envergonhada pelo atrevimento egoísta com que tinha levado toda sua aventura. Ela sempre olhava para diante, para seu objetivo, sem lhe importar nada mais. Não queria que nada se interpusesse em seu caminho e agora estava ele, que enchia tudo de uma maneira perfeita. — Há-te posto vermelha — sussurrou David, enquanto a guiava pelas mesas do salão até onde estava sua avó — Não deve preocupar-se pelo que pensem — disse insinuando que sua agitação era pelo sucesso da cama. — Não. — Coraline se tocou as bochechas para tentar aplacar o calor que lhe tinha subido de repente — Não é nada, foi o fogo da

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lareira. — Esquivou seu olhar e procurou a sua avó. Ainda não se movia muito segura com os sentimentos que David despertava. Às vezes, chegava a lhe faltar o ar. Se, além disso, olhava-a como o estava fazendo nesse momento, sentia-se desfalecer. — Se preferir, podemos jantar no quarto — murmurou David com voz melosa quando tomou o pulso para depositar um ligeiro beijo. — David, pára de uma vez! — exclamou ela entre dentes—. Agora sim que me estou acalorando. — Se abanou com as mãos. Ele rio satisfeito. Coraline entrecerrou os olhos em uma fingida recriminação com o olhar, mas teve que morder a bochecha para não sorrir. A fazia imensamente feliz fazê-lo rir, embora se rira dela, como era o caso. — Boa noite — saudou a senhora Atkinson — Está melhor, querida? — perguntou ao Coraline preocupada. — Sim, avó — assegurou ela como uma menina boa; aguardou que David separasse a cadeira para poder sentar-se — Só estava cansada pela viagem, os nervos... — Ah — exclamou a senhora Hamilton — Agora o chamam assim? — Soltou uma risadinha que a Coraline pareceu bastante molesta — Quando eu era jovem, chamavam-no noite de bodas —disse enquanto piscava um olho a Sórenson, que centrou sua visão no prato que tinha diante. — Senhora Hamilton! — repreendeu-a a senhora Atkinson — Por favor, comporte-se — suplicou, enquanto tomava a colher — É exaustivo repreendê-la constantemente ou me fazer a indignada cada vez que solta alguma das suas. — Avó! Como é isso de "lhe fazer a indignada"? — interveio Coraline aniquilada — Acaso não te escandaliza de verdade? — Olhou à outra anciã — Desculpe, senhora Hamilton, mas terá que reconhecer que, em ocasiões, lança autênticas temeridades. — Voltou a atenção a sua avó — Não estará interpretando um papel diante de mim? — Claro que... sim — reconheceu a avó com falsa pena — Carinho. — Aplaudiu a mão de sua neta — Me criei pensando que o único importante eram as aparências. Levo quase sessenta anos interpretando um papel. — Percorreu a mesa com o olhar — E já estou cansada — confessou com um sorriso relaxado — P...mas... — gaguejou Coraline. Um de seus pilares se estava cambaleando. Sua avó, a honorável senhora Atkinson, emblema da boa conduta e saber, estava mandando a passeio sua educação. — Coraline, — interveio David — comece jantar ou te esfriará a comida — aconselhou com carinho. — Mas... minha avó...

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Ela queria explicar ao David que sua avó não era assim. Ela era estirada e fria, não se divertia e nuca a teria ajudado a casar-se como o tinha feito. Os remorsos voltaram a atormentá-la. Tinha estado tão metida em si mesmo e no que queria que tinha ignorado a saúde mental de sua adorada avó. — Sua avó está perfeita — continuou David seguro de si mesmo — Me atreveria a dizer que melhor que nunca. — Jogou uma olhada à senhora Atkinson e a viu assentir entusiasmada — Não há nada melhor que a família, Coraline. — Agarrou sua mão e com um pequeno apertão insistiu para que comesse — Come — ordenou — Tem que recuperar forças. Nós também temos que começar a pensar em formar nossa própria família — acrescentou com voz rouca. Coraline se ruborizou. Todos estalaram em risadas, inclusive Sórenson elevou a comissura de sua boca. E ela se morreu de calor até os dedos dos pés. — Senhora Flint — disse Sórenson risonho — Soa muito bem. Se pudesse vê-la seu pai... David levantou uma sobrancelha, desconfiado pela reação de seus companheiros de mesa depois do comentário de Sórenson. As senhoras tentavam não rir. À senhora Hamilton lhe escapou o vinho pelo nariz, algo que não fez a não ser aumentar o estado de tensão. Coraline se engasgou com a sopa. Quanto a Sórenson, não pôde decifrar sua cara esculpida, mas teve o detalhe de acrescentar: — Senhor Flint, estou de acordo com você. — No que? — quis saber David confundido. — Não há nada melhor que a família. — Sórenson o olhou aos olhos — Pelo menos, nada mais divertido. Então, sem ninguém esperá-lo, o sueco rompeu em gargalhadas. A David, esse som lhe arrepiou o pêlo e não lhe augurou nada bom.

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Capítulo 20 — Estamos de acordo? — inquiriu David, enternecido pela carinha que punha Coraline com essa adorável boquinha — Por favor, não ponha essa cara. — aproximou-se dela e com dois dedos elevou seu queixo para obrigá-la a olhar. - Nos veremos em uns dias. Sua avó está certa. Acredita que é melhor assim. Desta maneira sua mãe não se impressionará tanto. — Mas podemos voltar juntos depois da partida. — Coraline jogou os braços ao pescoço e pôs sua melhor cara de pena — Quero ir contigo. Depois da partida contra Escócia, iremos a minha casa a anunciar nossas bodas. O dano já está feito, que mais dá se o dizemos umas semanas mais adiante. David a elevou pela cintura e deu um beijo. — Coraline, não estou orgulhoso de como tenho feito as coisas, embora tampouco definiria nosso matrimônio como um dano. — ficou sério — Sua mãe não merecia ter sido excluída desta maneira de um dia tão importante. Envergonho-me de minha conduta. — Sorriu quando Coraline franziu o cenho — Não obstante, voltaria-o a fazer. — Voltou a beijá-la, essa vez com mais paixão. Ela o acolheu em sua boca, sorrindo, feliz — Não sei o que é exatamente o que me ocorre contigo. Senti uma necessidade tão imperiosa de estarmos unidos, que suponho que me voltei louco pensando que te podia perder. — Então, deixe ir contigo — insistiu ela zangada. — Já falamos disto. Sabe que o melhor é que volte para sua casa junto com sua avó e lhe conte tudo a sua mãe. — Girou para terminar de fazer a pouca bagagem que tinha — Assim que dispute o último partida da Inglaterra na Championship, irei te buscar. Nestas semanas, sua mãe se acostumará à ideia de que tem um genro. —Olhou-a outra vez, com picardia — Tem que lhe falar bem de mim. —Tornou de novo para a cama onde seguia esparso um pouco de roupa — Não sei como vou agradecer a sua avó tudo o que nos está ajudando. — Posso te assegurar que está desfrutando com isto — murmurou entre dentes; imaginava a cara que ia pôr seu pai quando a avó lhe contasse tudo. David ignorou o comentário, acreditava que Coraline estava molesta com a senhora Atkinson por haver ficado de acordo com ele. Permitiram-se o luxo de passar mais de uma semana na Gretna Green, como lua de mel. Tinham passado uns dias

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maravilhosos. Ele tinha desfrutado de seu flamejante esposa e de sua original família. Mas já era hora de retornar. Os Flint não sabiam nada dele fazia semanas. Ficavam, além disso, poucos dias para o próximo encontro que se celebraria em 15 de março, contra a Escócia. A partida mais importante para ele, de todo o campeonato. Tinha que preparar-se. Por sorte, encontrava-se muito perto de onde ia se disputar. Cathkin Park estava ao norte da Gretna. Teria que viajar para Glasgow. Iriam juntos até chegar ao Dumfries, onde vivia a mãe de Coraline. Ali se separariam, e ele continuaria o trajeto com toda a dor de seu coração, porque o faria sem ela. De todos os modos, era necessário. Estava mais inquieto do normal: ia enfrentar-se com a Escócia, que era sempre um grande rival e, além disso, contava com um jogador fundamental, que agora era de sua família, John Smith ou J.C. Miller. David se sentou na cama, apoiou as mãos na colcha e se deteve para observá-la. Estava ali, de pé frente a ele. Simulava ser uma dama desprotegida e sem recursos. Era perfeita, tão pequena e delicada, com seus enormes e vivazes olhos que lhe falavam constantemente, com uma mente brilhante. Tampouco o fazia nenhuma graça separar-se dela, embora fosse por uns poucos dias. Entretanto, acreditava que era a melhor opção: ele poderia concentrar-se no campeonato e ela teria tempo para falar com sua mãe e prepará-la. Deixava-a ir porque a acompanhavam sua avó, a senhora Hamilton e, é obvio, Sórenson. Se não fosse assim, a teria levado com ele. Entretanto, ela tinha que descansar: os dias que tinham passado, embora maravilhosos, tinham sido exaustivos, inclusive para ele. A ela começava a ver sem forças; entretanto, sempre levava um sorriso na cara. Sempre tentava que outros estivessem contentes; não permitia que se preocupassem com ela. Admirava a sua mulher, estava orgulhoso dela. Não: estava apaixonado. Tanto que o sentimento o abrasava por dentro. O pensamento passou fulminante por sua cabeça, como um raio quando alcança a alguém. Surpreso, deu-se conta de que era a primeira vez em sua vida que amava algo com mais força e intensidade que ganhar a Championship. Sim, era verdade que ele adorava a sua família, mas nunca lhe tinha importado que o futebol lhe roubasse tempo de estar junto a eles. Agora era diferente. Queria terminar o campeonato antes possível para voltar a estar com ela. Levantou-se de um salto e a envolveu com ímpeto. Aspirou o aroma de seu cabelo, seguia desprendendo um ligeiro toque a coco. Subiu a mão para lhe acariciar o cabelo, um gesto que não podia evitar. Do momento em que a conheceu, quis lhe revolver o cabelo como se fora um menino travesso. Ela grunhiu se fazendo zangada e escondeu a cara no peito dele. — Tenho um mau pressentimento — disse ela, esconde entre

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seus braços. Ele se separou um pouco para lhe ver o rosto. — Por que diz isso? — quis saber, estranhando — Não vai passar nada, se for por seu primo... — Não, não é por ele. — Coraline foi para a janela; distraída, passou a mão pelas cortinas — É que não te hei dito que... — Coraline — a interrompeu enquanto se aproximava dela — Não diga tolices. Não há nada no mundo que possa nos separar; estamos casados ante Deus. — Rodeou-a por trás com seus braços e olhou pela janela, para o céu azul que se estendia ante eles — Só tem que lhe rogar ao céu por minha saúde. — Sorriu sobre sua cabeça — O único pode me separar de ti é a morte e rezaremos para que seja o mais tarde possível. — David. — Girou sobre si mesmo e jogou os braços ao pescoço — Não quero que vá sem mim — voltou a repetir, embora tinha divulgado um pouco infantil. Coraline estava assustada porque tinha que lhe fazer frente a seu pai. Sabia que a queriam mais que a nada e que ia dar um desgosto tremendo, quando se inteirassem de que se casou como se estivesse desonrada. Felizmente, sua avó tinha sido muito ardilosa: com sua presença nas bodas, testemunhava que não era assim. Entretanto, a ira de seu pai não seria tão fácil de aplacar. Casou-se com David Flint. Seu pai o odiava, não só pelo fato de que era inglês, mas sim porque era um jogador excepcional. Agora o odiaria ainda mais por lhe arrebatar a sua filha, sem seu consentimento. Sua mãe seria mais razoável, por várias razões, entre elas porque a união tinha contado com a bênção de sua avó. Estava segura de que, assim que conhecesse David, a mulher se daria conta de que sua filha se casou bem. Era um homem maravilhoso, de boa família e com futuro. Não obstante, isso a seu pai não importaria muito. Abraçada a seu marido, quão único queria era atrasar o momento angustiante que lhe vinha em cima. Tinha que ter dito a David que seu pai estava vivo e que ele não era do agrado paterno: teriam feito frente à situação juntos. Entretanto, sua avó se empenhou em que não o fizesse, aconselhou-lhe que o deixasse ir jogar. David tinha que cumprir um compromisso com a equipe e com seu país. Seu pai aceitaria melhor as bodas se o dizia sua querida filha, sozinha. Ela não queria ser mais egoísta. Não lhe podia pedir mais ao David. O pai do Coraline necessitaria tempo para aceitar à ideia do casamento e ela teria que preparar o terreno a seu marido, para que fosse aceito. Embora já não houvesse marcha atrás, tinha a obrigação moral de ir confessar a situação a sua família e aceitar com a cabeça encurvada o aborrecimento. Esperava não ter que aumentar a irritação com o relato de sua aventura em Oxford. A senhora Atkinson lhe tinha prometido não dizer nada se abandonava a ideia de seguir estudando

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como se fora um menino. Ela aceitou. Casada com David não poderiam continuar com a farsa. Tinham estado falando muito sobre seus planos na universidade e lhe tinha assegurado que faria todo o possível para que continuasse, mas como o que era, como mulher. Entre os dois encontrariam a maneira. E ela confiava nele plenamente. Estava tão apaixonada por ele que não queria se separar nem para respirar. Entretanto, tinha que deixá-lo ir. Muito a seu pesar se retirou dele. — Está bem — soprou — Estou me comportando como uma tonta. Ele atirou de sua mão e a arrastou outra vez até seu peito. — Está te comportando como uma apaixonada — Rio ele, vaidoso. — OH! — bufou ela — Sabe quão presunçoso sonhas? —acusou-o com os olhos em branco enquanto resistia a seu abraço. — Diga-me isso Coraline — sussurrou sobre seus lábios — Diga isso outra vez — rogou. Ela manteve seu olhar um instante. — Amo-te — sorriu. Ele cobriu sua boca, emocionado. Beijou-a com intensidade porque desejava lhe demonstrar quanto ia sentir falta dele. Queria lhe dizer que a amava, mas não sabia como. Tinha medo de que suas palavras não lhe fizessem justiça ao sentimento que o embargava. Alguém bateu na porta. David a deixou ir, irritado, como de costume quando algo assim ocorria. O primeiro que faria ao chegar a Oxford seria comprar uma casa enorme e encerrar-se durante um comprido tempo com sua esposa para evitar as interrupções. — Bom dia, Sórenson — saudou Coraline quando abriu a porta. — Bom dia, senhora Flint. — Inclinou a cabeça com sobriedade. — Entre, por favor — o convidou David. — Não se preocupe, senhor. — O mordomo passou o suficiente para poder fechar a porta — Só queria lhes avisar de que a carruagem espera fora. — Obrigada — disse Coraline queixosa. Tomou o casaco do cabide. Enquanto se ajustava o chapéu com habilidade, inclinando-o graciosamente para o lado direito, David observou maravilhado o bem que ficava a roupa feminina. Era curioso que não o tivesse pensado até então. Deu-se conta do bem que se ajustavam os vestidos e saias, mas não lhe tinha dado importância. Gostava inclusive vestida de homem. Entretanto, aquele pequeno detalhe do chapéu lhe deixou embevecido. Meu deus, Coraline o tinha perdido de tudo. Ou começava sua vida com ela ou do contrário teria que deixar de dar classes, porque se teria convertido em um inútil

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mental. Nesse preciso momento, compreendeu à perfeição a seu irmão e seu cunhado. — Minha avó e sua querida amiga já estão preparadas? —Coraline o resgatou de seus pensamentos. — Sim. Estão ultimando uns detalhes com o gerente do hotel. Coraline viu um brilho de preocupação nos olhos do mordomo. — Outra vez? — perguntou horrorizada. — Desculpe? — indagou Sórenson, que se fazia de tonto. — Não me dirá que estão outra vez atormentando a esse pobre homem. — Coraline passou a um lado e abriu a porta, não sem antes depositar um pequeno beijo na bochecha de seu marido que estava tentado averiguar a que se referia sua mulher. Coraline saiu resolvida da habitação. Deixou que Sórenson e David se ocupassem dos poucos pertences que levaria na viagem. David interrogou ao mordomo com o olhar. O aludido se limitou a um encolher de ombros. Ao sueco lhe resultava acidentado lhe contar a um senhor tão distinto como o senhor Flint, como essas duas mulheres tentavam voltar louco a um pobre tipo que o único engano que tinha cometido tinha sido acolher em seu hotel a duas loucas. David foi o penúltimo em baixar. Dava-lhe um pouco de pena abandonar a habitação onde tinham acontecido os dias mais extraordinários de sua vida. Não pôde desfrutar-se na sensação de nostalgia, porque os gritos do diretor do hotel se escutavam da escada. — Não penso voltar a me agachar para recolher o lenço, senhora — sentenciou o diretor do hotel ofendido. — OH! — suspirou a senhora Hamilton — Em meus tempos, qualquer cavalheiro que se prezasse, teria se agachado as vezes que tivessem sido necessárias. Não é verdade, senhora Atkinson? Annabel ficou em silêncio. Não teria podido abrir a boca, embora tivesse querido. Parecia-lhe incrível que sua querida amiga pudesse surpreendê-la ainda. Tinha deixado cair o lenço nada menos que sete vezes, sempre de forma que o pobre diretor do hotel se expusera de maneira indecorosa. Mas o que tinha dado a sua amiga? A senhora Atkinson olhou a um e outra. O diretor a observava: exigia com seu olhar uma reprimenda para a senhora Hamilton, mas a avó de Coraline não podia fazer nada. Estava, contra todo prognóstico, impactada contemplando esse bigode mover-se de um lado a outro sob as abas inchadas de seu aquilino nariz. Por fortuna, seu neto recém adquirido, liberou-a da comprometida situação. — Senhoras — saudou David com energia — Senhor. —Inclinou a cabeça em busca de uma expressão no rosto do diretor que não fora de assassino — ocorreu algo? — Devo dizer que sim — estalou o diretor — Agora que o

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pergunta, tenho que me queixar do trato recebido por esta mulher. —Assinalou à senhora Hamilton de maneira grosseira e com a cara zangada — É uma... — Desculpe-me senhor — interrompeu David com rapidez — Tenho que lhe rogar que pense com atenção o que vai dizer. —estirou-se e com voz ameaçadora acrescentou — Do contrário, terá que me repetir isso fora. — Isto é o cúmulo! — prorrompeu o diretor. — Este homem é muito desagradável — interveio a senhora Hamilton, que conseguiu que seus olinhos azuis se aguassem — Não tem feito mais que lhe chiar a uma pobre anciã que não tem nem forças para sujeitar um lenço. — Sacudiu o trapinho em seus dedos estendidos e se limpou o nariz com ele. — Desagradável? — gritou o aludido — Senhora Atkinson —exigiu o homem olhando inquisitivo à avó de Coraline — você o viu, foi testemunha do que esta dama tem feito. — Eu? — despertou a senhora Atkinson aturdida. A outra vez, quando chegaram ao hotel, não tinha visto como sua querida amiga beliscava o traseiro daquele homem. Em troca, agora tinha visto tudo. Como a senhora Hamilton deixava cair o lenço uma e outra vez para poder contemplar ao senhor diretor. E como ela ria cada vez que ele se agachava e se incorporava com a cara vermelha como um tomate, do esforço. Até que o pobre descobriu que a senhora Hamilton estava observando suas nádegas. Então, sua cara se tornou escarlate de ira. Tinha-lhe tirado o sarro uma anciã e, pelo visto não lhe tinha sentado muito bem, mas ela seguia sem poder dizer nada. O atrevimento de sua amiga a tinha deixado sem palavras. — Não sei o que posso dizer — confessou. — Não sabe? Então está você tão mal da cabeça como ela. — Man dód — se ouviu da escada. Sórenson baixava ameaçador, tanto que a David chamou a atenção como alguém dessa idade podia intimidar assim. — O que há dito? — quis saber o diretor. — Acredito que há dito "homem morto" — disse Coraline que entrou no hotel e consigo o afresco da manhã. Tinha saído um momento a comprovar se a carruagem poderia levá-los a todos com comodidade e assim era. Nesse breve espaço de tempo, sua avó e a senhora Hamilton já se colocaram em outra confusão. David se esfregou a frente com seus dedos, índice e polegar, soprou e fez um enorme esforço por tomar o mando da situação sem ver-se obrigado a inteirar-se muito do ocorrido ali. — Está bem — resolveu terminante — Volto a repetir — disse, dirigindo-se ao diretor — Há algum problema pelo que devamos atrasar a partida? — inquiriu ardiloso.

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Ao pobre diretor lhe aumentaram tanto os olhos que David pensou que lhes sairiam das órbitas. — Não, claro que não — gaguejou o diretor, apavorado ante a possibilidade de que prolongassem sua estadia um minuto mais. Se tinha que renunciar a seu orgulho, assim o faria. David pagou a conta do hotel sob o atento olhar de todos. Ninguém disse nenhuma palavra, ninguém emitiu um ruído. Coraline estava encantada de como seu marido tinha resolvido o assunto sem que Sórenson matasse ao pobre homem, mas antes de que pudesse dizer, viu que se escorria algo da mão da senhora Hamilton. — OH, que torpe sou! — desculpou-se a mulher — David, importaria-lhe? Ele, sem lhe dar nenhuma importância, agachou-se a recolher o lenço. Coraline a princípio não se percebeu de nada, nem sequer sabia por que tinham discutido com o diretor do hotel. O único que tinha claro era que havia um lenço pelo meio. Entretanto, quando viu a maneira em que David se inclinava, expondo sua perfeitas nádegas e escutou a risadinha da senhora Hamilton, explodiu: — Kvinna dód — sussurrou Coraline. Sórenson a interceptou antes que caisse em cima da pobre e tarada senhora Hamilton. — É você — tentou dizer Coraline. — Coraline, — a chamou paciente, David — deixemos o tema já. — Mas ela te olhou o... — Coraline ficou vermelha: não podia dizê-lo, era muito vergonhoso. — OH, vamos querida! — exclamou a senhora Hamilton—. Não seja assim. — Assim? Eu? — Sim, você — afirmou. Aplaudiu-lhe o braço enquanto saía do hotel — O tem para ti inteiro, que mais dá que nos deleitemos um pouco a vista com ele. É magnífico — assegurou enquanto colocava as luvas. — Avó! — esperneou Coraline. —Vamos, vamos. — A senhora Atkinson seguiu a sua amiga para a rua — Faz caso a seu marido: deixemos o tema. — Não sabia que fosse tão ciumenta — disse David com sorrisinho, enquanto a aproximava dele pela cintura. Ela não respondeu, franziu o cenho e foi atrás de sua avó, zangada porque nem sequer David lhe dava importância às maldades dessa mulher. — Estão todos loucos — assegurou o diretor do hotel uma vez que tinham saído. — Senhor diretor. — Um jovenzinho mordomo interrompeu seu roteiro — Tenho algo que lhe dizer.

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— Me diga jovem. — Terá que voltar a levar uma cama nova à habitação onde se hospedavam os senhores Flint — afirmou muito sério — Já é má sorte que haja lhes tornado a passar, não cre? O senhor diretor olhou muito sério a seu empregado. Não, não pensava que fora má sorte; simplesmente, tratava-se de uns selvagens. De uma boa se livrou. "Tomara que não os volte a ver nunca", pensou o diretor.

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Capítulo 21 Tom Flint não podia controlar os nervos e não era pela partida que iriam disputar. A preocupação por seu tio o tinha consumido. Depois do desaparecimento de David na Irlanda, decidiu ir procurar a seu pai, mas, ao retornar a Oxford, enquanto preparava a viagem para Ashford, seu lar, chegou uma carta de David para ele. Dizia-lhe que não se inquietasse, que uns assuntos de máxima importância o tinham obrigado a sair de maneira tão repentina da Irlanda, mas que já estava tudo solucionado e que se reuniria com ele, junto com o resto da equipe, em Glasgow. Portanto, não fez falta incomodar a seu pai, algo do que se alegrava. Em teoria, David Flint deveria estar já ali. Entretanto, não podiam sabê-lo. Talvez, o clima tenha complicado as coisas. Era um 10 de março invernal, viajavam de trem e, depois dos guichês, percebia-se que o clima na Escócia não dava trégua, sem dúvida, uma desvantagem para eles. Os escoceses jogavam em sua casa, estavam mais acostumados a essas temperaturas. Não obstante, o mais importante para ele nesse momento era encontrar-se com seu tio. — Quer deixar de mover a perna? — pediu Percy, desesperado — Leva uma hora como se te tivesse entrado um inseto na calça. — Cruzou os braços sobre o peito — Já é suficiente com a agitação do trem para não nos deixar dormir sequer. Está me pondo nervoso. — Sinto-o — disse Tom de mau humor. — Olhe, menino, entendemos que esteja preocupado, —interveio Henry, o goleiro inglês — mas seu tio estará bem. É um homem, sabe cuidar-se de si mesmo. — tocou-se o queixo, quando recordou o murro que lhe tinha dado no dia do treinamento com o pequeno do Smith e sorriu — Se te prometeu que estará ali, o fará. É um homem de palavra. Deixa de preocupar-se já. — Está bem — claudicou Tom — É que nunca tinha desaparecido assim, sem deixar rastro, nem um aviso. Todos sabemos como é formal, divertido, mas formal. — A mim o que me parece curioso é que se esfumassem, de uma vez, o pequeno e ele — assinalou Arthur Brambridge, entre bocejos. — Acredita que estão relacionados os desaparecimentos de ambos? — perguntou Tom angustiado. — Não sei — respondeu Henry, em troca, encolhendo de

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ombros — Alguém foi a casa do Smith perguntar por ele? Porque, segundo Percy, não assistiu às aulas. — Sim — admitiu mencionado — Eu me aproximei, mas não havia ninguém. Pode que tenha sido uma coincidência que desaparecessem os dois. Ao parecer, o pequeno do Smith e sua avó tiveram que viajar por temas familiares, conforme me disse uma criada. — Em qualquer caso, é muita coincidência — refletiu Tom cabisbaixo. — Deixa-o já — aconselhou Henry — Em umas horas, estaremos em Glasgow e averiguará o que passou. — Elevou uma sobrancelha para ouvir o bufo de Tom — Seu tio estará bem —acrescentou. O moço não insistiu mais. Não lhe serviria de nada alterar à equipe, mas bem o contrário era o melhor: tinham que manter-se serenos e concentrados na partida. Ficava pouco tempo para chegar à estação de Glasgow. Cruzou os dedos para que seu tio estivesse ali. Seu vagão era dos últimos, por isso demorou um pouco mais do desejado em ter uma visão completa da plataforma. A princípio, invadiu-o o pânico, mas, em um minuto, apareceu ante ele a figura elegante e despreocupada de seu tio. O alívio que lhe invadiu por não ter que dar o alarme na família foi semelhante à alegria por vê-lo em bom estado. Não agarrou nem seus bens. Pôs-se a correr pelo estreito corredor do trem até dar com uma porta de saída. Baixou depressa, sorteou a uns quantos viajantes até chegar ao David e lhe deu um forte abraço. — Olá, Tom! — saudou-o contente pela amostra de carinho de seu sobrinho mais velho, devolveu-lhe o abraço — Vejo que te tive preocupado — assinalou, enquanto tentava soltar-se de seus braços. — Preocupado? — Tom se separou de seu tio com gesto enfurecido — Passei por um inferno. Desaparece em plena noite, em um lugar longe de nossa casa e não deixa nenhuma triste nota. —Deu-lhe um murro no estômago que, a David, obrigou-o a dobrar-se — "Preocupado" não é a palavra. — Bom, o sinto — disse incorporando-se — Tem razão, mas nem eu sabia que teria que sair assim da Irlanda. — E se pode saber o que era isso tão importante? — indagou Tom muito zangado, deixando escapar os nervos de vários dias. — Contarei-lhe isso tudo mais adiante. — Começou a caminhar para reunir-se com o resto da equipe — Agora o mais importante é a partida. — Sim, claro — bufou Tom enquanto seguia David — Pensar que estive a ponto de avisar a meu pai.

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— Não o terá feito. — David girou de repente, alterado. A ideia de que seu irmão deixasse a Betsy com sua gravidez quase finalizada não lhe agradou, menos se era por sua causa. — Não — cedeu Tom, depois de uns segundos demorando o tempo de resposta — Não o tenho feito, mas por muito pouco —confessou — Sua carta chegou quando ia partir para Ashford. — Tom, não pode assustar a seus pais dessa maneira, menos com Betsy a ponto de dar a luz — repreendeu David com carinho. — E o que queria que fizesse? — perguntou ofendido por sua recriminação — Que seguisse com minha vida como se nada? Não tinha nem ideia do que te tinha ocorrido. Não sabia se estava vivo ou morto. Tio, cheguei a pensar barbaridades. — É muito exagerado. Tom, tem que temperar seus nervos. — Meus nervos? — rompeu Tom — Agora resulta que não aconteceu nada, que sou eu o que se comporta como se fora uma mulher histérica. — Não diga sandices. — David olhou a seu sobrinho com dureza — Não fale assim das mulheres. Qualquer delas nos daria uma lição. Me acredite. Começando por sua mãe. — O afeto retornou a seus olhos — Recorde-o, menino, digo-o por seu bem — Lhe piscou um olho. — Tem razão, perdoa — admitiu compungido — Não deveria ter feito uma comparação tão estúpida, mas insisto — disse com o brio recuperado — O que queria que fizesse? Que evitasse sua ausência? E, se quando chegasse o momento de ir a casa, você não aparecia, diria a meus pais que te perdi, assim, sem mais. —Gesticulou com as mãos desesperado pela atitude relaxada de seu tio — Imagina o que teria feito meu pai? — Uf. — David retorceu o corpo como se lhe entrassem calafrios — Sim que imagino. Removeria céu e terra até me encontrar — admitiu com um sorriso. — Efetivamente, — concordou o moço — mas antes me tivesse matado por não lhe dizer nada. — Tom, seu pai daria a vida por ti — disse David que levantava a mão para saudar os moços que se aproximavam — Como muito te teria levado uma reprimenda e te teria posto a trabalhar em qualquer de suas fábricas sem te pagar um centavo — assegurou entre risadas. — Vejo que te faz muita graça minha preocupação. — cruzou-se de braços — Mas, me diga uma coisa, se tivesse sido eu o que faltava, o que teria feito? — Ajudar a seu pai a remover céu e terra até te encontrar —assegurou com um brilho de picardia em seus olhos — Não te ocorra desaparecer — ameaçou mais rude. Tom bufou: seu tio lhe estava tirando o sarro. Pelo visto, David

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podia fazer o que lhe viesse em vontade e ele não se devia inquietar o mais mínimo; em troca, ele tinha obrigação de dar parte de todos seus movimentos. — Não está sendo lógico e sabe — acusou Tom. — Não sei o que quer dizer. — David se fez de tonto. — Te passa algo e algo gordo, porque leva semanas muito estranho. — Está fazendo uma avaliação muito subjetiva Tom. — Não tente me embrulhar com términos acadêmico tio David. Que não se esqueça que eu também estou estudando. — Define "estranho" — convidou David. — Estiveste estas semanas com um humor cambiante inclusive poderia dizer-se que arisco, quando todo mundo sabe que é um dos professores mais simpático de Oxford. Passeaste pelos corredores da universidade, em ocasiões como se fosses matar a alguém e em outras como se te acabasse de beber uma garrafa de conhaque. Deixaste de ir ao pub. Mas o mais estranho que tem feito foi... — Deixar uma partida pela metade! — cantaram todos os moços da equipe. David olhou atônito a toda a equipe reunida. Ao parecer, seu sobrinho Tom não tinha sido o único que tinha estado preocupado, embora sim o único que o tinha demonstrado, algo compreensível. — Estivemos procurando por todos os lugares, temos escrito a todas as universidades, perguntado nos navios, estações de trem, carros de linha — disse Henry molesto. — Vá, pensei que não se deram conta — murmurou Tom boquiaberto. — Desaparece nosso capitão e não nos vamos inteirar? —disse Arthur — Sabe que somos uma família. — Sim, mas faz um momento, todos me tratavam como se estivesse louco. Diziam-me que David estaria bem, que eu estava preocupado em excesso. — Comportaste-te como um lunático. Não necessitava que lhe alterássemos mais — assegurou Henry — Fizemos indagações por nossa conta para evitar que te intranquilizasse mais se não achávamos resultados, como foi o caso. Quando vimos que não havia rastro de seu tio, pensamos que seria boa ideia deixar ir em busca de seu pai, por isso não lhe tiramos a ideia da cabeça. — Obrigado meninos — disse Tom, emocionado. — Mas em que se converteu minha equipe? Em um bando de babás? — soltou David. Entretanto, notou um nó na garganta, turbado pelo sentimento tenro que o invadiu ao comprovar a preocupação que tinha provocado em todos eles e como tinham tentado encontrá-lo, sem alterar mais ao

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Tom. Houve um minuto de silêncio, no que todos os homens se olharam sem dizer uma palavra. Estavam tentando controlar as emoções. Eles não se abraçavam, nem se emocionavam por um reencontro. Os homens não choravam de preocupação, nem se queixavam. Esses homens eram a elite de Oxford: jogavam futebol, beijavam a mulheres bonitas, bebiam e arrotavam. Só havia uma forma de demonstrar o afeto e a união que sentiam os uns aos outros. — Vamos tomar uma cerveja — rompeu David quando lhe baixou o nó de emoção. — Sim! — uivaram todos com a voz elevada. Deixaram que o ar levasse seus lamentos. Saíram da estação de trem como uma autêntica manada. A imagem de quinze homens, altos, fortes e bem vestidos fez que alguma que outra dama suspirasse. David se deu conta de que seu sobrinho ficava um pouco atrasado; esperou-o. — Está bem? — perguntou-lhe intranquilo ao ver que andava cabisbaixo — Sinto se tenho te feito passar mal estes dias, mas quando lhe explicar isso, o entenderá. — David lhe agarrou pela nuca carinhosamente, aplaudiu seu ombro para ver se lhe animava — Tom, me vais perdoar ou não? — Não é isso, tio — disse Tom. Levou-se a mão aos olhos e se limpou umas lágrimas — É que me emocionei — confessou envergonhado. David rompeu a rir. Colocou a cabeça de seu sobrinho em seu ombro e disse: —Todos nos emocionamos Tom, por isso vamos nos embebedar. O moço rio com seu tio e se separou dele antes de que outros vissem como o abraçava.

*** Depois da ressaca do dia anterior, a seleção inglesa de futebol estava preparada para amassar aos escoceses, a pesar do campo gelado e das inclemências do tempo. Faltavam dois dias para a partida, já estava tudo preparado. As equipes tanto de Escócia como da Inglaterra tentavam não encontrar-se, para evitar enfrentamentos. David estava tranquilo, tanto que a ele mesmo surpreendia. Embora sabia a razão: o motivo era que não estava pensando na partida como deveria. Estava pensando em sua mulher. Cada vez que lhe vinha à cabeça a imagem de Coraline, seu coração palpitava como se tivesse quinze anos. Não suspeitou nem por um momento que pudesse sentir tantas saudades.

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Desejava que terminasse o encontro com a Escócia para poder ir a seu encontro. Tinham acordado que iria procura-la quando finalizasse a Championship, mas isso não seria possível, porque o campeonato duraria duas semanas mais e ele estava desesperado por tê-la de novo entre seus braços. Inclusive, quando estava treinando, imaginava que ela estava ali, vendo-o jogar, animando-o e esperando a que acabasse para reunir-se com ela. Tinha conseguido não ver o Miller nesses dias. Não saberia que lhe dizer, nem o que o outro faria. Além disso, ainda não se teria informado das bodas. Imaginou que Coraline gostaria de dizer-lhe em pessoa. Acabava de dar um banho. Preparado para ir jantar, olhou-se uma vez mais ao espelho. Passou a mão pelo cabelo para acomodar alguma mecha rebelde. Essa noite comeriam ligeiro e sem uma gota de álcool. Abriu a porta com entusiasmo. Um entusiasmo que baixou aos pés quando viu Sórenson ali plantado, com seu rosto cinzelado e a mão pronta para chamar. — Sórenson! — exclamou — O que faz aqui? Ocorreu algo? E Coraline? — interrogou alterado. — Senhor Flint — disse abatido — A senhorita, perdão, — corrigiu com rapidez — sua esposa, a senhora Flint foi retida contra sua vontade — afirmou do patamar da porta. — Como?! — os olhos de David se abriram quase tanto como suas vísceras. Em seguida começou a sentir uma fúria angustiosa como nunca antes havia sentido — Diga-me agora mesmo o que ocorreu — ordenou enquanto o deixava passar ao interior da estadia. Sórenson entrou, tão digno como sempre. Não o notava cansado, apesar de ter viajado sem descanso até dar com o senhor Flint, tal como lhe tinha ordenado sua honorável senhora Atkinson. David estava dominado pelo desassossego, mas se obrigou a ser amável com o mordomo. Indicou-lhe que se sentasse frente à chaminé e lhe ofereceu um copo de uísque. O recém-chegado observou com admiração como o senhor Flint era capaz de conter a explosão de ira e medo que tinha visto em seus olhos. Não quis alargar seu estado de ansiedade e se dispôs a falar, mas, antes de que dissesse uma palavra, David, apoiado na chaminé e olhando-o fixamente com o cenho franzido quis saber: — Foi sua mãe? — Não. — Sórenson deu um gole. — Me diga a quem tenho que matar — disse David ameaçador. — Ao pai da senhora Flint — sentenciou terminante. — O morto? — gritou David com um galo na voz, da impressão que lhe tinha causado tal afirmação.

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— Não está morto. Está vivo e furioso com vocês dois por haver-se casado dessa maneira — esclareceu Sórenson—. Há dito que anulará o matrimônio e que a encerrará durante um ano e um dia. Tudo, antes de vê-la casada com você. — É um corno! — exclamou David — Recolha suas coisas; vamos — mandou. O sueco pôs os olhos em branco. Terminou-se o uísque e se levantou. David se deu conta do esforço que tinha feito o pobre homem por ir avisar-lhe, teve um leve remorso: não podia lhe exigir que retornasse com ele. Era um homem forte, mas já tinha muitos anos. — Perdoe, Sórenson. Não era minha intenção ser grosseiro com você. Me dê as direções, irei eu sozinho. Você pode ficar com minha habitação o tempo que necessite, depois pode retornar a Oxford, nos reuniremos ali com você. — Nem pensar — asseverou o mordomo — Eu vou com você. Não o deixarei sozinho ante o perigo. — David sorriu ligeiramente — É você o melhor que passou a minha menina — confessou com uma ternura desconhecida até o momento — Sua avó também se deu conta. Não deixaremos que os separe a teimosia de seu pai. — Seguro que não está morto? — perguntou aniquilado David. — Isso o terá que explicar sua esposa quando chegarmos. Vamos — insistiu Sórenson — Tenho tudo preparado para a viagem. — Obrigado. Recompensarei-o, prometo. — David tomou seu casaco e colocou algumas coisas na mala. —Temos que nos dar pressa. Não quero nem pensar no que vamos encontrar quando chegarmos. — É tão horrível o pai de Coraline? — quis saber Flint enquanto saía a toda pressa. — OH, não é por ele. Dá-me medo o que a senhora Hamilton possa ter influenciado nessa casa. — Ignorou a cara de aturdido do David — Está causando estragos.

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Capítulo 22 — Não pode ser! — gritava Tom, passeando de um lado a outro da habitação — Outra vez, não. É impossível — negava com a cabeça. — Te acalme — aconselhou Percy — Tem que haver uma explicação — tentou aparentar tranquilidade. — Uma explicação? — repetiu Tom no limite do histerismo — Meu tio desaparece justo antes da partida contra Escócia. E acredita que há uma elucidação? — Fez um gesto com a mão, como se Percy tivesse perdido a cabeça. — O menino tem razão — disse Henry com séria preocupação — David não nos abandonaria um dia antes da partida, sem uma explicação lógica. Inclusive sem uma que não fora lógica. Haveria-nos dito algo. — Efetivamente! — soltou Tom. Removeu o cabelo, precisava pensar com claridade — O que vamos fazer? — perguntou desesperado. —Temos que encontrá-lo. — Henry deu uma imersão larga a seu charuto; meditando, acrescentou — Deveríamos perguntar por aqui se por acaso alguém o viu sair. Possivelmente algum desses escoceses saiba algo. — Sim! — exclamou Tom — Seguro que eles sabem algo. Deixo-o em suas mãos — decretou — Eu irei a minha casa. Tenho que contar-lhe tudo a meu pai. — Vai viajar para Ashford? — interveio Percy — Se levar muito tempo perderá a partida — assegurou inquieto. — Sei — admitiu Tom aflito — O sinto, mas não posso fazer outra coisa. Meu tio faria o mesmo por mim. Meu pai tem que inteirar-se. Ao David acontece algo já há um tempo, esperemos que não seja muito tarde. — Se for o que tem que fazer. — Henry se levantou da cadeira que ocupava — Adiante. Nós averiguaremos tudo o que possamos aqui. Jogaremos a partida e ganharemos. Pelo David, por ti e pela Inglaterra. — Olhou-os com seriedade. — Pela Inglaterra! — uivaram Tom e Percy, de uma vez.

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David, alheio ao caos que tinha deixado atrás, concentrava-se em não chiar a cada pessoa que se interpunha em seu caminho. Parecia-lhe que aquela viagem estava durando uma eternidade. Dumfries, uma pequena cidade próspera, assentada no limite de Galloway, era o centro de controle para o sudoeste da Escócia. Tinha o rio Nith a ambos os lados, solitárias colinas que baixavam até as pradarias e escuros bosques que davam passo a terras ricas de cultivo. Entretanto, apesar dos tesouros naturais, a maior atividade da cidade era o comércio. A conheciam como "A Rainha do Sul", tal como a tinha renomado o poeta local David Dunbar. Ao David chamaram a atenção as cores que tinham algumas das casas. Entretanto, para ele, tudo tinha um estado sombrio similar a seu humor. — Onde cornos vive minha esposa? — rompeu David. —Têm uma casa aos subúrbios da cidade. — Sórenson açoitou aos cavalos para que corressem mais — São gente do campo, senhor Flint, mais que da cidade. — Gente do campo, gente do campo — repetiu entre dentes — Meu sogro não é gente do campo. — Olhou a Sórenson furioso — Eu sou gente do campo. — destacou-se o peito, como se queria gravar-lhe. - Ele é um cavernícola. — Estaria bem que se guardasse suas opiniões, senhor. Tenha em conta que é o pai de sua esposa. E ela o adora. — Adora-o? — perguntou frenético — Se o adora, por que não me disse que seu pai estava vivo? Por que me deixou acreditar que tinha morrido? Que tipo de mente retorcida inventaria algo assim? —Deixou cair a cabeça entre suas mãos — Coraline não é assim, ela é doce e, embora haja dito alguma que outra mentirinha, não me enganaria com algo como isto. Sórenson soprou. — Não quero me misturar, mais do que já tenho feito. — Tomou ar — Entretanto, foram a senhora Atkinson e a senhora Hamilton quem lhe fez acreditar isso. Coraline simplesmente se deixou levar, em vez de desmentir, porque acreditou que era a melhor ideia. Sórenson se esforçou em lhe narrar a David toda a história da família. Pôs especial interesse nas bodas dos pais de Coraline. Contou-lhe a luta que tinham mantido o pai de Coraline, Douglas Smith, e sua avó, que se opôs com ferocidade, inclusive chegou a ameaçá-los tirando a vida. Assinalou que o senhor Smith levou a mãe de Coraline a Escócia, onde se casaram e estabeleceram seu lar. Algo que nunca pôde esquecer a senhora Atkinson. Com o nascimento de Coraline, tudo se relaxou. Dado que neta e avó se adoravam, pelo bem familiar, o pai de Coraline e Annabel tiveram que esforçar-se por levar-se bem ou, pelo menos, por não brigar.

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— Está me dizendo que fomos utilizados como vingança? —quis saber David, atônito. — Não — negou terminante Sórenson — A senhora Atkinson compreendeu, quando os viu juntos, que estavam apaixonados. Portanto, teria sido muito estúpido não ajudar a sua neta a que estivesse a seu lado, senhor Flint. Ela, melhor que ninguém, sabia o que opinaria Douglas Smith de suas bodas. O principal objetivo da senhora Atkinson era ajudar a sua neta. — Por que se negaria o pai de Coraline a que me casasse com ela? — indagou David. Tinha recuperado o aborrecimento que quase chegou a esquecer com semelhante historia — Sou o que se diz um bom partido — disse sem modéstia. — Porque você é David Flint, inglês e jogador excepcional da seleção da Inglaterra. O pai de Coraline é um apaixonado do futebol, tanto que pode chegar a passar por cima dos sentimentos de sua filha. — Ah! Já entendo — admitiu, porque sabia exatamente o que podia sentir o senhor Smith. Sórenson o olhou de soslaio. — Compreende agora o que a senhora Atkinson pretendia? — Sim... vingar-se — assegurou David. O mordomo ia replicar para defender a sua senhora, mas trocou de opinião. — Algo de verdade há nisso — confessou Sórenson. — Dão-me igual as razões que tenha tido para me ajudar. Coraline é o único que me importa. Vou procurá-la e me levarei isso. — Elevou a vista ao céu — Se é que chegamos alguma vez. — Bem, mas tente não ferir seus sentimentos — aconselhou Sórenson, circunspeto. David não acrescentou nada mais. É obvio que não queria ferir os sentimentos de Coraline, adorava-a, embora, se tinha que dizer umas quantas coisas a seu pai, o faria. Era sua esposa, legalmente podia fazer com ela o que quisesse. Esperava não ter que chegar a reclamar assim a sua mulher. — Chegamos — anunciou o mordomo, solene. David se tomou uns segundos para descer do carro. Nesse breve espaço de tempo, admirou a casa de sua esposa. Era bonita e agradável. Tão branca como a da senhora Atkinson. Tinha em geral um aspecto muito similar, mas essa casa era muito maior, estendia-se mais ao largo e fazia uma "L" na parte frontal, muito perto da porta de entrada. De fora, via-se uma janela vidrada que saia e voltava a entrar. Imaginou que seria o salão principal. Conforme lhe havia dito Sórenson, além de gente do campo, a família de Coraline se dedicava ao comércio desde fazia muitas gerações. Por isso pôde observar David, tinha-lhes ido muito bem.

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Possuíam todas as terras que se estendiam com o passar do vale, muitas das quais eram de cultivo. Tinham chegado a uma hora cedo. Embora o sul da Escócia era algo mais quente que o norte, não deixava de ser março um mês que podia gelar. Ajustou-se bem o chapéu, com passo decidido, começou a caminhar para a porta. Não lhe deu tempo chamar duas vezes. Antes que a aldraba golpeasse a porta, uns gritos estalaram dentro da casa. Ele não se moveu nem um centímetro, embora sim agradeceu que Sórenson se colocasse a seu lado. Ouviram um disparo. — Possivelmente deveríamos nos pôr a cobrir — sugeriu o mordomo, sem que lhe tremesse um músculo da cara. — Coraline! Coraline! — gritava David sem fazer caso ao sueco — Está bem? — perguntou ao ar, angustiado — Coraline! Me responda — ordenou enquanto chamava como um demente à porta. Ninguém abria, ninguém lhes dizia nada. Somente se escutavam gritos e exclamações, que vinham do interior. — Deixe essa arma — disse uma voz de mulher adulta que David não reconheceu, mas que se imaginou que seria a mãe de Coraline — Mamãe, faz algo — rogou. — O melhor seria abrir a porta — assinalou a senhora Atkinson com uma estranha tranquilidade. — Sim, sim, abram a porta — gritava desesperado David desde fora. Tinha identificado à senhora Atkinson, mas e Coraline? Onde estava? — Coraline! — chiou de novo. Farto de que não lhe ouvissem, começou a rodear a casa, se por acaso havia alguma outra maneira de entrar. Não viu nada acessível, assim insistiu com a porta. Como seguiam ignorando suas chamadas, começou a chutá-la. Enquanto isso, Sórenson tinha abandonado sua postura militar. Levou os cavalos à parte de atrás, onde estava a cavalariça e a porta de serviço. Tinham que atender a esses pobres animais que tinham se deslocado como campeões. David fora de si, olhou ao redor, viu uma pedra de um tamanho considerável, aproximou-se correndo. Agarrou a pedra. Tomou impulso para lançá-la contra os cristais do salão. — David! — a voz do Coraline o paralisou no ato. Estava em um dos balcões como se fora a mesma Julieta do Shakespeare. Ao David entraram vontades de ficar ali mesmo a cantar baladas de amor, mas, certamente, não era o momento. — Coraline! — suspirou ao vê-la em perfeito estado — Onde te tinha metido? E que cornos passa aí dentro? — quis saber tremendo e zangado — Abre a porta agora mesmo. Ela se assustou quando acreditou que David ia lançar a pedra,

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mas ao vê-lo de frente, com essa expressão de desolação e afogado de preocupação, o único que quis foi correr para ele e beijá-lo até morrer. — Não posso abrir. A senhora Hamilton está no salão —afirmou como se isso explicasse algo. Ficou pensativa. — E? — animou-a David, com a cabeça arremessada atrás para poder vê-la. — OH, meu Deus. — Coraline se levou a mão ao coração—. Está muito bonito. Se soubesse como senti tua falta. — Eu também, meu amor — disse David um pouco incômodo por ter que estar olhando para cima — Quando vi Sórenson na porta de minha habitação, foi como se se abrisse a terra sob meus pés e me tragasse. Disse-me que seu pai, o defunto, tinha te retida e que queria dissolver o matrimônio. — jogou-se um passo atrás — Não o vou permitir, ouve-me? — chiou com todas suas forças — Não o vou permitir. É minha esposa, que se vão fazendo à ideia, porque hoje mesmo vem comigo. — Que romântico! — suspirou olhando para baixo — OH David, quero-te tanto! Tenho que te explicar tantas coisas... — Não estará chorando. — David fez ameaça de escalar — Coraline não chore — ordenou furioso — Não tem que me explicar nada, sei tudo e te entendo. — Como ela seguia chorando, acrescentou — Vou matar a seu pai. Coraline estalou em um pranto incontrolável, para deixar escapar tudo de mau que tinha passado. Sentia-se fatal pelo desgosto que tinha dado a seus pais, mas Douglas, por sua parte, estava sendo irracional. Sua mãe, como havia predito sua avó, tinha-o entendido rapidamente. Entretanto, o senhor Smith disse que preferia estar morto que vê-la casada com esse inglês. Jogou-lhe toda a culpa à avó, quem, por certo, soube muito bem esquivar sua fúria. Entretanto, quando Douglas disse que a encerraria e anularia as bodas, Annabel enviou ao Sórenson em busca do David. Coraline a deixou fazer porque já não podia mais. Tinham que enfrentar essa tormenta os dois juntos. E agora estava aí, feito um pudim por ela, tão tenro. Fazia que se perdesse a Championship, algo que cairia em sua consciência, e tudo para que se matassem os dois homens que mais queria no mundo. As coisas não tinham saído segundo seus planos. Era, mais bem, um grande desastre. — Coraline, me deixe entrar — rompeu ao limite do desespero. Estava-o matando vê-la assim, tão indefesa. O único que desejava era estreitá-la entre seus braços e lhe assegurar que tudo sairia bem. — Não posso — disse entre prantos. — Por quê? — David se removeu o cabelo, espremeu-se a cabeça — Coraline. — Tentou que sua voz soasse apaziguada para

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não alterá-la mais — É minha esposa, legalmente me tem que obedecer. — Sei. — soou-se o nariz — Mas ninguém pode passar pela porta. — Por quê? —Bufou ele. — A senhora Hamilton está apontando com uma escopeta a meu pai. - A David lhe pôs o pelo em pé. Entretanto, o que lhe pareceu mais estranho era que Coraline o dissesse de maneira tão calma. — Tornou-se louca? — exclamou David. — Não te coloque com ela. Estarei-lhe eternamente agradecida. Era a escopeta com a que papai ia te matar. — O quê? — soltou incrédulo. — Saía direto a te disparar assim que soou a porta, mas a senhora Hamilton lhe pôs uma rasteira e lhe arrebatou a arma. Logo se voltou louca e disparou ao teto. Disse que ninguém entraria nem sairia dessa casa até que ela dissesse o que tinha que dizer.

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Capítulo 23 David observou boquiaberto como Coraline se introduzia de novo na casa e o deixava ali plantado. Começou a chamá-la, frenético, porque não queria que se encerrasse com uma anciã fora de seu ju[izo e armada. Entretanto, lhe indicou com a mão que não fizesse ruído e o abandonou. David ia vociferar de novo, mas pensou que era mais sensato procurar uma entrada. Caminhou ao redor da casa como já o tinha feito, essa vez com mais cuidado. Preveniu-se de que Sórenson tinha desaparecido. — Sórenson! — chamou — Onde se colocou? — perguntou com as mãos em torno da boca para que soasse com mais intensidade. — Senhor Flint. — O aludido escutou a voz do mordomo, mas não o chegou a ver — Por aqui — insistiu Sórenson. David por fim visualizou a figura alta: estava ao lado de uma das paredes da casa. Quando se aproximou dele, deu-se conta de que detrás do que parecia uma esquina havia uma porta de acesso. Certamente a entrada de serviço. Não a pôde ver porque estava bastante escondida da vista, além disso, os nervos lhe tinham o cérebro paralisado. — Por que não me havia dito antes que havia outra entrada? — inquiriu furioso. — Estava tão entregue a seu papel de príncipe azul que me deu pena feri-lo em seu orgulho — assegurou Sórenson, sem uma careta. — Mas o que diz homem! Perdemos um tempo precioso. —Esquivou-o e entrou. — Não acredito que tenha perdido o tempo — disse Sórenson que o seguia — À sua esposa pareceu muito romântico vê-lo do balcão, disposto a derrubar o castelo para resgatá-la — afirmou em tom sério. David elevou uma sobrancelha estudando ao mordomo. Era um tipo estranho. Um sueco que em ocasiões atuava de espião, capitão de navio ou trabalhava ao serviço de duas mentes perturbadas como a senhora Atkinson e a senhora Hamilton. Mentes perturbadas a quem David tinha em grande estima, já que, sem elas, não estaria casado com Coraline. Contemplou ao mordomo em um intento por averiguar se estava brincando ou não. Não o fazia muita graça que rissem dele, mas tampouco ia incomodar se assim era,

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depois de tudo que o tinha ajudado. — Está rindo você de mim? — Resolveu de uma vez. — Não — disse Sórenson, mas David viu que lhe tremia um pouco o lábio. — Essas duas senhoras estão fazendo estragos não só na casa — disse Flint vexado — Sua compostura está perdendo muito —o acusou com os olhos entrecerrados. Seguiu adiante, ignorando a brincadeira do mordomo. Deixou atrás as habitações do serviço até que chegou à cozinha. Girou e perguntou ao Sórenson com o olhar. O sueco lhe assinalou a escada que havia uns passos mais adiante. David subiu de dois em dois os degraus. Martelava o coração com muita força, tinha a sensação de que a única que podia acalmá-lo era sua mulher. A escada de serviço percorria toda a mansão sem sair à casa senhorial. Sórenson lhe indicou a porta que dava ao hall, por ali passaram. Jogou uma olhada para avaliar o lugar. Deu-se conta de quão amplo era, mas não pôde estudar nada mais, porque, apoiada em um rincãozinho da porta que dava ao salão principal, estava sua mulher. Uma figura pequena e delicada, que aparecia o nariz tentando ver sem que a descobrissem. Ele não olhou mais à frente. O único que queria fazer nesse momento era estreitá-la entre seus braços. E isso foi o que fez. Aproximou-se dela em silêncio, com movimentos quase felinos. Tapou-lhe a boca com uma mão se por acaso se assustava e o delatava sem querer. Com a outra mão, rodeou-lhe a cintura para aproximá-la a seu peito. David notou o susto de princípio e a entrega que seguiu, assim que se deu conta de que era ele quem a abraçava. Ficaram uns segundos assim. Desfrutavam do contato que se privaram dias atrás. Ela envolveu os braços que a cobriam, apoiou a cabeça em sua bochecha e fechou os olhos. Sentiu os batimentos do coração desse coração amado contra suas costas, a aspereza de sua barba em sua bochecha e lhe doeu o desejo que saía dessa expressão. — David, meu amor, senti tanto sua falta — sussurrou Coraline com voz estrangulada no pescoço dele. Flint soprou. Queria girá-la e beijá-la, mas não era o momento, assim que se conformou retendo-a assim um pouco mais. Refletia sobre o que ela tinha chegado a significar para ele. — Coraline, Coraline — repetiu ele uma e outra vez adoçando a boca com seu nome. Beijou sua têmpora. Logo abriu os olhos e se encontrou com a realidade — O que é que ocorreu para que chegássemos a esta situação? — perguntou David quando conseguiu acalmar-se. — Não sei — confessou ela — Mas o que esperava: toda minha vida é uma confusão — disse com culpabilidade. Recostou-se

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até mais no peito de seu marido, como se assim pudesse compartilhar seu pesar — O que vamos fazer? — perguntou Coraline triste. — Me dê uns segundos. David soprou. Instigou a sua mente a procurar uma solução. O melhor seria entrar ali, esclarecer o assunto com sua família e ir-se com Coraline a começar uma nova vida. Claro que seria imprudente de sua parte se ignorava à senhora Hamilton e sua escopeta. Observou atentamente a cena. A senhora Hamilton se sentou no sofá com a arma apoiada de forma descuidada sobre a perna. David supôs que sua intenção era apontar ao pai de Coraline, que estava sentado frente à anciã em uma poltrona individual e que só via uma parte da abundante cabeleira, que, por certo, era do mesmo tom que a de Coraline. Esse fato surpreendeu ao David. A escopeta devia pesar bastante para umas mãos tão frágeis. Também poderia ser que o pulso da senhora Hamilton não estivesse tão firme como quando era jovem. Então, David soube que tinha um problema: teria que ser cuidadoso e entrar sem alterar à dama. Jogou Coraline a um lado detrás dele. Olhou ao redor e fez um gesto a Sórenson, para que se aproximasse. O sueco ficou na porta que dava às escadas do serviço para lhe dar intimidade ao matrimônio. — Dela cuide — ordenou Flint. — O que vais fazer? — Coraline o agarrou pela camisa — David, não acredito que seja boa ideia que entre aí. É melhor que me deixe... — Nem te ocorra pensar que vais ficar diante de uma arma. —Tomou pelos ombros e a olhou com dureza — Antes quase se me para o coração pensando o que te podia estar ocorrendo aqui dentro. Não vou permitir que se ponha em perigo. Entendeu? — inquiriu rígido. — Mas... — Nada de "mas" — disse cortante. Apertou seus ombros em sinal de ameaça — Coraline, me prometa que ficará detrás desta porta. — Mas eu acredito... — Coraline — insistiu zangado. Ela bufou e se cruzou de braços, resignada. David voltou a respirar, deu-lhe um pequeno beliscão na bochecha, em sinal de carinho, mas ela se apartou molesta. "Em que manual de vida matrimonial diz que o homem se pode jogar a pele, enquanto a esposa permanece a salvo?", perguntou-se furiosa. Não acreditava que a senhora Hamilton fosse disparar ao David nem a ninguém. Não obstante, era evidente que seu estado mental estava muito volúvel por dizê-lo de algum jeito. Flint se tirou o casaco e o chapéu, que tão bem lhe sentavam, e se dispôs a entrar. Jogou uma olhada ao Sórenson, o mordomo

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assentiu com a cabeça confirmando que tinha tudo, em concreto ao Coraline, sob controle. Passou muito rápido, tal como acontecem essas desgraças. Justo quando David dava o bom dia, surpreendendo a todos os pressente, a senhora Hamilton se inclinava sobre a mesa para tomar um sanduíche de um prato que havia ali. A senhora Atkinson falava em sussurros com sua filha Susan atrás da poltrona, onde estava sentada a senhora Hamilton. Nenhuma das duas pôde evitar nada. No mesmo instante em que o pai de Coraline ouviu a voz profunda e aveludada de um homem, soube que era o bandido que lhe tinha arrebatado a sua filhinha de forma vil e cruel. Levantou-se indignado, com vontade de bater ao cretino que se atrevia a ir a sua casa, em busca de sua filha. Ignorou à anciã que tinha em frente, girou em um arranque de ira e lhe deu as costas, o que fez que seu magnífico kilt se elevasse apenas uns centímetros, mas o justo para deixar suas nádegas ao ar, durante uma milésima de segundo. Com tão má sorte que, nesse mesmo milésimo de segundo, a senhora Hamilton que estava saboreando um delicioso sanduíche que tinha tirado do prato, ao ver que, de repente, a cara do senhor Smith se transformava em um atlético traseiro, engasgou-se e começou a tossir de forma convulsiva. Susan e Annabel estavam ainda boquiabertas observando David entrar como um cavalheiro andante, tão alto e bonito, com cara de querer matar a alguém. A senhora Atkinson se deu conta do cansado que se via o moço. Entretanto, não puderam recrear-se muito em David Flint, porque a senhora Hamilton começou a ficar roxa, assim que sua querida amiga, Annabel, golpeou-a com todas suas forças nas costas. E com a mesma sorte negra que os vinha acompanhando, o dedo da senhora Hamilton se agarrou no gatilho: a escopeta se disparou. Houve um silêncio que reinou, depois da explosão, uns cinco segundos, nos que o tempo pareceu deter-se para os Smith. Até que Douglas, o pai do Coraline, com absoluta cara de horror, emitiu tal alarido, que David deu um passo atrás. Logo o caos se apoderou do salão. Coraline saltou para David. Media-o frenética da cabeça aos pés. A senhora Atkinson ficou auxiliando a sua amiga e tentando separá-la da escopeta. Susan foi correndo para seu marido que caiu de cara sobre o sofá que antes ocupava. E Sórenson ficou inabalado, repensando sobre o momento de sua vida em que se equivocou e passou de ser o príncipe dos mares nórdicos a servente de uma família de loucos. Coraline respirou ao comprovar que David estava intacto. Não

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tinha visto bem o que tinha acontecido, porque Sórenson era muito grande. Por ouvir o disparo, desesperou-se, escapou do agarre do mordomo e se jogou para seu marido. Beijou-lhe a cara enlouquecida, afogando as lágrimas que pugnavam por sair. David a sujeitou pelos braços e a apertou contra seu peito, reconfortando-a. Assim se teriam ficado, a não ser porque ouviu sua mãe chorar. — Mamãe! — separou-se de Flint e foi auxiliar a seus pais. Coraline comprovou horrorizada que seu pai estava ferido — Papai! — exclamou com um fio de voz. — Estou bem — disse Douglas em um lamento. — Não chore mamãe. —Tranquilizou a sua mãe — Tudo sairá bem. Olhou a David pedindo ajuda. Ele tomou o mando. Por sorte ou por desgraça, não era a primeira vez que se encontrava em uma situação similar. Parecia que os fatos extraordinários perseguiam à família Flint. Pensou que tinha que ter advertido a sua esposa sobre isso, embora já não havia remédio para ela. Assim que se casou com ele, assinou uma vida repleta de amor e de estrambóticos sucessos. Ao menos, não se aborreceriam. David ordenou a Sórenson que fosse procurar o médico, o mais rápido possível. Aproximou-se do sofá onde estava seu sogro jogado de modo que deixava suas costas à vista e sua cabeça para baixo. — Senhor Douglas — disse inclinado sobre o sofá para que o pudesse ver — Sou David Flint. — Escutou um grunhido de desgosto — Imagino que já saberá quem sou, mas agora não é o momento de falar. O melhor é que me deixe ajudá-lo a levá-lo até sua habitação. Ali esperaremos ao doutor. Assim que se encontre bem, falaremos. — Antes morto. — Douglas quis gritar, mas lhe quebrou a voz pela dor. — Douglas, por favor — interveio Susan muito preocupada—. Deixa que te ajude — rogou. — Não! — chiou — Que se vá! — agarrou-se ao sofá até que os nódulos ficaram brancos — Ai! — Papai! Por favor — pediu Coraline com os olhos chorosos. — Coraline, não chore — exigiu David entre dentes. — Senhora Hamilton! — gritou Douglas — Se não morreu, de-me a escopeta — mandou até com suores frios. — Papai! — Coraline se sentia se desesperada, encurralada entre a preocupação por seu pai e a necessidade de defender a seu marido — David só quer te ajudar. — Me ajudar? — Douglas levantou a vista, deu-se conta dos rostos de pena que tinham sua mulher e sua filha. Por um momento sentiu um beliscão de dúvida, mas se esfumou em seguida — Se quer ajudar, que se largue. — Douglas, deixa de ser tão teimoso! — rogou Susan

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acariciando as costas de seu marido — Deixa que o senhor Flint te ajude. — Prefiro estar morto antes que um inglês ponha as mãos em cima de mim. — Apertou os lábios — Ou de minha família. — Senhora Hamilton, de-me a escopeta, — disse a senhora Atkinson ofendida — vou terminar o que começou. —Não diga tolices mulher — conseguiu dizer a senhora Hamilton depois de recuperar-se — Eu não queria matar a ninguém, só queria lhe dar um susto a esse escocês tão teimoso. Ouviu-se um grunhido proveniente da garganta do Douglas. — Então, não foi você bastante clara, senhora Hamilton —disse Douglas com a mandíbula desencaixada — Se não queria matar a ninguém, não acredita que foi má ideia disparar? — Conforme se olhe — respondeu a senhora Hamilton muito digna, ainda sentada no sofá — Não me negará que lhe acabo de dar uma mão. — O que? Mas que problema tem esta mulher? Dispara-me no traseiro e diz que me deu uma mão. Que alguém tenha a bondade de tirar estes ingleses de minha casa: estão todos loucos. A mais louca, sua mãe, Susan. — Claro que lhe dei uma mão! — exclamou a senhora Hamilton indignada — Acabo de impedir que mate ao marido de sua filha. Se isso não é ajudar, o que é? — assinalou-o com o dedo — Acaso pensa que sua filha ia seguir lhe falando depois de que assassinasse a seu amor? — Agarrou as mãos da senhora Atkinson e disse mordaz — Quanta razão tinha você, querida amiga. Agora sei o que teve que sofrer todo este tempo com semelhante inepto. O senhor Smith voltou a renegar. — Douglas, não acredito que seja o momento de tirar nossas diferenças familiares — reprovou Susan que se secava as lágrimas com delicadeza — Recorda que eu sou inglesa. — Não! — chiou Douglas — No momento em que te casou comigo, converteu-te em escocesa. — Carinho. — Susan apoiou a cabeça nas costas de seu marido e o abraçou — Te quero muito, e te respeito, mas eu sou inglesa, sempre o fui e sempre o serei. E que te empenhe em negá-lo não troca minhas origens. — Aplaudiu-lhe as costas. — Acredito que me estou enjoando — assegurou Douglas, cansado de olhar para baixo. — Já está bem. — David interrompeu a discussão que tinha começado — Senhora Smith. — Olhou à mãe do Coraline com uma determinação nos olhos que Susan não deixou de admirar — Me dá permissão para ajudar a seu marido a minha maneira? Susan duvidou uns instantes. Douglas soltou uma enxurrada de palavrões, o que a fez decidir-se. Com o cenho franzido deu

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consentimento a David para que procurasse uma solução. — Senhor Smith, pode me olhar, por favor? — David se ergueu de modo que obrigou ao Douglas a levantar a cabeça. Soltou-lhe um direito em metade da mandíbula e deixou a seu sogro completamente inconsciente. Escutou o gemido entrecortado das mulheres. Entretanto, nenhuma se atreveu a dizer nada. David colocou Douglas sobre o ombro e pediu a sua esposa que o guiasse até as habitações de seus pais. Ela, apaixonada e pasmada, pela primeira vez, obedeceu. — Sabia que era o homem adequado para minha neta —murmurou a senhora Atkinson a sua querida amiga, presa da emoção. — Certamente, senhora Atkinson. Que bom olho tem. Algum dia me terá que contar como sabia que as coisas foram acontecer tal como foram transcorridas. — Muito fácil, senhora Hamilton. — Tomou um sanduíche do prato — Assim que vi minha neta aquele dia, no café da manhã, com as calças, soube que tinha que intervir. O resto foi um pouco de sorte, somado a mania que têm os jovens de acreditar que nós, os velhos, não nos inteiramos de nada. Lhes escaparam umas risadinhas maliciosas. Assim ficaram as duas anciãs risonhas e satisfeitas, de como tinham conseguido culminar seus planos com êxito.

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Capítulo 24 — ESTÁ seguro de que vamos em boa direção? — perguntou Matthew Flint a seu filho Tom. — Miller me assegurou que os Smith viviam aos subúrbios de Dumfries. — O que têm que ver os Smith com o David? — quis saber Benjamin Lodge, marido de Connie Flint. — Não sei, mas Miller disse que o único lugar onde lhe ocorria que poderíamos achar David, era aqui. — ficou com o olhar perdido, pensando, contemplando pelo guichê da carruagem como se foram transformando as árvores e vales que deixavam atrás em borrões de pintura — Também afirmou que se encontrávamos David aqui, entenderíamos tudo. Matthew Flint franziu o cenho, meditou sobre as palavras de seu filho e tudo o que lhe tinha contado até o momento. Rezou para que assim fora, encontrar David bem e compreender o que estava passando. Dias atrás, seu filho Tom tinha aparecido sem avisar em Ashford, o lugar onde tinham formado uma família com sua esposa, Betsy Tilman. Tinha comprado e reformado uma preciosa casa muito próxima à mansão de sua irmã Connie Flint, viscondessa de Torrington, casada com Benjamim Lodge, quem tinha tido a amabilidade de acompanhá-los nessa viagem. Tampouco lhe tinha ficado opção a negar-se, posto que Connie ameaçou abandonar ao Benjamin se não saía imediatamente em busca de seu irmão menor. A Benjamin não lhe ocorreu brigar com ela, em primeiro lugar porque estava em um estado muito avançado de gravidez de seu sexto filho. Não queria alterá-la, Connie se perturbava muito grávida. E, em segundo lugar, porque não teria servido de nada: ao final, sempre fazia o que ela queria. O mais grave era que o fazia de bom grado. Tom chegou a Ashford em um estado de agitação que alarmou a seus pais. A pobre Betsy, que também estava grávida de oito meses, sofreu umas quantas contrações ao ver seu filho mais velho tão assustado. Assim que lhes contou o desaparecimento de seu tio David, Matthew e Betsy organizaram a busca. Ficou acertado que Connie e seus cinco filhos fossem passar umas semanas em casa de Betsy e seus outros nove filhos. Assim, foi como a casa de Matthew Flint, em Ashford, foi invadida por meninos com idades compreendidas entre os dezenove e os cinco anos, duas mulheres pegaram em armas com suas gravidezes avançadas e os avós,

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Martha e John. Matthew sabia que seus filhos mais velhos cuidariam dos mais pequenos, dessa maneira, as duas grávidas, Betsy e Connie, não se cansariam tanto. Martha e John também se relaxariam se tinham a todos sob o mesmo teto. Matthew e Benjamin partiam com relativa tranquilidade, porque sabiam que estavam todos juntos e que se cuidariam uns aos outros como sempre faziam. Todo isso lhes facilitava a missão. Nesse momento, sua maior preocupação era encontrar David, são e salvo; quanto antes, melhor. Logo que tivesse solucionado esse assunto, retornariam com suas mulheres e seus filhos. Só Deus sabia o que encontrariam a sua volta. Como havia dito Tom, era muito estranho que se evaporou, justo antes de uma partida tão importante para ele. Matthew brigou com Tom por não lhe haver avisado de seu outro desaparecimento, umas semanas antes, justo depois do encontro disputado com a Irlanda, mas teve que admitir que o moço tinha parte de razão em sua defesa. David era já muito maior e não necessitava que seu sobrinho de vinte e dois anos lhe fizesse de babá. Mesmo assim, Matthew pensava que não teria sido demais que lhe mandasse uma carta com suas inquietações. Teria desejado estar atento. Benjamin tentou acalmá-lo, disse-lhe que não era culpa dele, que fazia tempo que tinha deixado de ser responsável por seus irmãos. Suas responsabilidades de cabeça de família estavam agora com sua mulher e seus dez filhos; isso não era pouco. Entretanto, Matthew não podia evitar certa culpabilidade pelo que lhe estivesse acontecendo a David. Dava igual a idade que tivesse: era seu irmão, queria-o como sempre. E, embora Benjamin estava certo, Matthew seguia tendo um forte sentido de amparo para os seus. Sabia que daria a vida por qualquer um deles e que todos seus familiares possuíam o mesmo sentimento de união. Um sentimento que se estendeu a cada um dos membros que se foram somando a grande família que tinham formado e que parecia não parar de crescer. Consciente de que quão único tentava Benjamin era lhe evitar esse pesar de culpa, tinha a certeza, entretanto, de que Benjamin estava igual de preocupado que ele por David. Embora Connie se havia posto histérica e tinha ameaçado abandoná-lo se não encontrava a seu irmãozinho menor, Benjamin não tinha discutido com ela porque não duvidou nem um segundo de que sua obrigação e seu desejo eram encontrar David. — Está seguro de que vamos bem? — Lodge interrompeu os pensamentos de Matthew e de Tom — Devemos estar perto do fim do mundo — disse mal-humorado. — Não — negou Matthew sorridente — O fim do mundo está um pouco além de Glasgow. — O tio David estará bem, verdade? —Tom, aflito e temeroso por seu tio, agachou a cabeça.

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— Não se preocupe filho. — Matthew, que estava sentado a seu lado, apertou-lhe o ombro com carinho para lhe infundir ânimo—. Seu tio é um homem muito inteligente. Se se colocou em algum problema, saberá sair dele. — Respirou fundo — Além disso, tem uma direita que eu gostaria. — Sorriu a seu cunhado Benjamin que estava no assento da frente e ao que via também muito preocupado — Estará bem. — Olhou pelo guichê — Tem que estar. — Sim — interveio Lodge — Se estivesse em perigo ou lhe acontecesse algo grave, esse tal Miller não estaria tão risonho como quando nos disse aonde nos dirigir. — Miller! — bufou Tom — Esse escocês estava feliz. Ganharam de nós por 1 a 0 e tudo porque não tínhamos David, a equipe não estava mentalmente preparada. Todos andavam cabisbaixos pelo desaparecimento do tio. E esse sujo escocês aproveitou para marcar o único gol da Escócia. — Tom elevou a voz — Tenho a suspeita de que tudo isto é culpa dos escoceses, sequestraram ao nosso capitão para poder ganhar. — Tranquilo, moço — o aconselhou seu pai — Não te precipite em suas conclusões. Esse homem parecia todo um cavalheiro; não acredito que fizesse algo assim para ganhar. O via com honra. — Honra? — perguntou cético Tom — Esse tipo não sabe nem o que significa a palavra — soltou um pouco mais alterado. — Está bem, — cortou Benjamin — vamos deixar o tema dos escoceses. Está claro que sofre o mesmo mal que seu tio David. — A que mal te refere? — quis saber o moço com o cenho franzido. —Tem alergia a Escócia e tudo o que provém dali. — Benjamin jogou um olhar cúmplice a seu cunhado Matthew, sorriram porque tinham conseguido que Tom deixasse de estar tão angustiado — E a verdade não entendo por que, faz anos que estamos em boas relações com eles. — Pois olhe sim — admitiu o jovem orgulhoso — E se dizem que estamos em boas relações é que não lhes inteiram de nada do que acontece no mundo. — Com respeito, Tom — o repreendeu severo seu pai — Seu tio Benjamin é um membro respeitado do parlamento; se ele não está informado do que acontece no mundo, não o está ninguém. — Perdoa, tio. — Tom se desculpou — Queria dizer que... — Não se preocupe — o interrompeu Benjamim — Não me ofendeste, compreendo-te perfeitamente. — Sorriu-lhe — Deixa-o tranquilo — disse Benjamin a seu cunhado — Está nervoso. Matthew soprou: conhecia seu filho e sabia quão preocupado estava por seu tio, mas sua obrigação de pai era educá-lo, dava igual se tinha vinte e dois anos ou quarenta. — Estamos chegando. — ouviu-se a voz do chofer.

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Os três homens se ergueram em seu assento, colocaram-se os casacos, preparados para o que pudessem encontrar. Desceram do carro, estiraram as pernas e observaram com atenção a preciosa casa e seus arredores. — Não está nada mal — disse Matthew, estudando o terreno. — Vamos — insistiu Tom ansioso. — Tranquilo — aconselhou Benjamim — Não sabemos nada desta família. O melhor é chamar com intenções pacíficas. — Intenções pacíficas? — repetiu Tom pasmado -— Tio, sei que meu pai vai se zangar comigo por te dizer isto — Jogou uma olhada a seu pai que esperava atento ao que ia dizer — Entretanto, devo dizê-lo: é um pedante quando te sai o visconde que leva dentro — recebeu a cabeçada de Matthew com resignação. — Tem toda a razão — disse Matthew com um sorriso malicioso — Se meu irmão sofreu algum dano aí dentro, — franziu o cenho — pode ir esquecendo das intenções pacifistas e frescuras dessas. — Deu um passo à frente — Penso pisotear a qualquer que haja pego um fio de cabelo de sua cabeça. Benjamim soprou e olhou ao céu implorando paciência. — Pode-se saber para que vim? — perguntou o visconde. — Para nos ajudar — respondeu Tom, como se fosse desnecessário fazê-lo. — Pensei que o melhor seria usar minha influência — insinuou Lodge. — Deixa de tolices — Rio Matthew - Isso é o que disse a Connie e a Betsy. Em realidade, para dar uns quantos murros não nos faz falta seu título. — Aplaudiu as costas de seu cunhado — Não queria preocupar a minha irmã, já sabe como fica quando está grávida. — Segue sendo um cavernícola — assegurou Benjamim afetuosamente. — Minha esposa não para de me dizer isso - confessou Matthew satisfeito — Do que te queixa? Teria vindo inclusive se caso pensou que teríamos problemas. — Não me queixo, mas acredito que seria bom perguntar antes de começar a dar murros — soprou — Tenho a sensação que, desde que me uni aos Flint, não fazemos mais que procurar familiares desaparecidos. — Vá! — exclamou Tom — Tem razão, embora, em meu caso, fui eu quem encontrou aos meus pais. — Sim — concedeu Benjamim — Não me negará que até para ter filhos somos um tanto estranhos. — Não te ocorra chamar a meus filhos estranhos — ameaçou Matthew. — Não digo que meus sobrinhos sejam estranhos. —

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Benjamim pôs os olhos em branco. Depois de mais de dez anos casado com Connie, ainda não se acostumou a esse tipo de conversações nas que se via envolto sem logo que dar-se conta — Só fazia uma observação — afirmou irritado — Vais ter a ousadia de dizer que encontrar a cinco meninos no bosque e adotá-los é o mais normal do mundo? — instigou. — Tem inveja porque tenho mais filhos que você — assegurou Matthew de forma infantil. — Tornaste-te louco? — cuspiu Benjamim aniquilado — Vou ter meu sexto filho — disse orgulhoso — Além disso, não posso te ter inveja: seus filhos estão mais em minha casa que na tua. — Acaso te incomoda? — grunhiu Matthew. — Como me vai incomodar? — Deu um passo à frente com o punho em alto — É idiota! — Elevou as mãos ao céu para não lhe pegar — São meus sobrinhos, adoro-os. Além disso, quando chegam a casa, é o único momento que encontro para estar a sós com minha mulher: meus filhos nos ignoram quando chegam seus primos. — Então, que problema tem? — indagou Matthew. — Nenhum! — bramou Benjamim exasperado — Isto é exaustivo, Matthew. Por favor, deixa de me enredar nestes diálogos absurdos cada vez que a situação te escapa das mãos — rogou desesperado. —Tudo isto é muito bonito, — interveio Tom — mas não sabemos o que pode estar passando ao David neste momento —terminou exasperado. Matthew lhe deu de presente outro cabeçada. — Ai! — queixou-se Tom esfregando a cabeça dolorida — E agora por que me dá? — Hei-te dito que fale com respeito a seu tio — explicou Matthew. — Mas se não lhe hei dito nada — se defendeu Tom zangado. — É certo — interveio Benjamin — Não me ofendeu absolutamente. Em troca, você... — Bom, já está bem — sentenciou Matthew com potência — Vamos de uma vez ao que viemos. — É a primeira coisa equlibrada que diz há meia hora — se burlou o visconde. — Nem que o diga — coincidiu Tom, que teve que sair correndo para esquivar o nódulo de seu pai que ia dar outro toque na cabeça — Faz o favor de não me dar mais na cabeça. Estou tentado estudar — Rio — Recorda? Matthew grunhiu; entretanto, não pôde evitar sorrir. Ao menos durante esse bate-papo estúpido tinha conseguido recuperar o aprumo. Pensar que a seu irmão tinha ocorrido algo, punha-o muito nervoso. E tinha que dar a razão ao Benjamin: não podiam entrar

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nessa casa assim. Primeiro deviam averiguar o que ocorria. Os três homens se aproximaram da porta principal. Matthew chamou enérgico. Escutaram passos que se aproximavam. A porta se abriu e apareceu uma preciosa donzela de cabelos negros. — Bom dia, senhores. — Fez uma leve inclinação — No que posso ajudá-los? — quis saber a jovem serviçal levantando a vista até esses três muito altos cavalheiros. Matthew pigarreou para esclarecer a voz. — Desculpe, é esta a casa dos Smith? — Sim, senhor — afirmou a jovem. — Bem — disse Matthew, sem acrescentar nada mais. A garota ficou à espera de uma explicação. Aquele atrativo homem não dizia nada mais. Levou sua atenção até o bonito amadurecido de olhos cinzas como o gelo: estava ocupado mordendo os nódulos. Então, acreditou que a melhor opção era o jovem encantador que não parava de lhe sorrir. — Bem — acrescentou Tom embevecido pela criatura tão bonita que lhes tinha aberto a porta. — Bem — disse ela envolta na teia de aranha da estupidez. O homem que se mordia os nódulos pigarreou molesto. A donzela piscou para sair de seu atordoamento. — Por favor, se forem tão amáveis, poderiam me dizer o que é que desejam? — conseguiu dizer a garota. — Sim. — Benjamin decidiu atuar. Seu cunhado estava muito nervoso e sabia que estava tentando contar até cem antes de deixar sua fúria solta. Quanto ao Tom, o pobre se ficou atordoado com aquela jovenzinha — Poderíamos ver o senhor Smith? Uma vez descoberto o que queriam, a garota se fez a um lado para deixá-los passar. —Terão que esperar um momento, avisarei à senhora. — Fez uma inclinação para retirar-se, mas, antes de dar um passo, atreveu-se a falar com o cavalheiro, que tinha a cara mais mal-humorada — Desculpe, senhor. — A mim? — quis saber Matthew. — Sim, por acaso não será você familiar do senhor Flint? —indagou a donzela que se ficou assombrada pelo forte parecido. — Sim! Sou seu irmão! — exclamou Matthew e deu um passo para ela — Onde está? Está bem? — insistiu turvo. — OH, já me parecia — disse ela e deu um passo para trás um pouco intimidada, embora não muito, já que estava acostumada ao senhor Smith — O senhor Flint está perfeitamente bem. Teve que sair, mas não acredito que tarde em retornar. — Bem — exalou Matthew. — Bem — disse um sorridente Tom. — Bem — soprou Benjamin.

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— Perdoem, vou avisar à senhora Smith. — A donzela escapou o mais rápido que pôde daquele sinistro trio. Os três homens respiraram tranquilos pela primeira vez do desaparecimento de David. — Por isso se vê, está bem — apontou Tom. — Não o estará, quando lhe puser as mãos em cima, lhe posso assegurar — sentenciou isso Matthew — Se estiver bem, não tem desculpa para não nos haver avisado. — Terá uma explicação — interveio Benjamin, prudente — O mais importante é que não lhe ocorreu nada mal. — Isso ainda não sabemos — assinalou Tom. Matthew e Benjamin se olharam com preocupação. Segundo a donzela, David estava bem, mas algo grave lhe tinha acontecido para desaparecer como o tinha feito. Em que confusão se teria metido para terminar em uma mansão perdida na Escócia?

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Capítulo 25 — Quanta quantidade nos faz falta? — Perguntou a senhora Atkinson, muito interessada. — Annabel! — arreganhou-a a senhora Hamilton. Só a chamava por seu nome quando sua querida amiga conseguia desconcertá-la - Lhe hei dito que não penso fazer semelhante estupidez. — Você? — A senhora Atkinson se levou as mãos ao peito — Mas se é uma incendiária. Me vai dizer agora que pôr um pouquinho de arsênico em uma taça lhe dá medo? — Claro que o digo! — asseverou a senhora Hamilton, impressionada — Eu nunca faria algo assim. — Tomou as mãos de sua amiga — Propõe isto porque está doída com ele. E a entendo: é um teimoso e insolente, mas isso não justifica querer matá-lo. — E isso o diz alguém que lhe disparou?! — bufou a senhora Atkinson, confundida pelas contradições de sua amiga. — Foi um acidente — se defendeu a senhora Hamilton — Se ele não me tivesse mostrado esse magnífico... — Cale-se! — cortou a senhora Atkinson, pálida — Não lhe ocorra seguir falando disso. — Como queira, — concedeu a senhora Hamilton — mas esqueça do arsênico. —Tomou um gole de chá. Aproximou-se de Annabel e lhe disse ao ouvido — Além disso, não saberia de onde tirá-lo. — Isso deixe comigo, Sórenson se encarregará — afirmou a senhora Atkinson esperançada. — Hei-lhe dito — a olhou com determinação — que não a vou ajudar a cometer um assassinato. — Contemplou a cara lastimosa de sua amiga Annabel — Não me vai convencer pondo esses olinhos. — Não quero matá-lo — assegurou a senhora Atkinson — O prometo — acrescentou ao ver o olhar receoso da senhora Hamilton — Só quero lhe causar uma dor de estômago. A senhora Hamilton franziu os lábios. Ficou uns minutos em silêncio, avaliando a situação. — É isso verdade? — investigou. — O prometo — admitiu a senhora Atkinson — Uma boa dor de estômago, algo que lhe produza gases ou algo nauseabundo que lhe seja insuportável. — Como se deu conta de que o havia dito com muita sanha, completou — Só por um dia. É obvio, não lhe desejo nenhum mal eterno a esse pobre infeliz. — Pôs cara de inocente.

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— Então, possivelmente possa ajudá-la um pouco. Conheço umas ervas que vão muito bem para isso. Em alguma ocasião, tive que as usar com meu defunto marido. Não, não se escandalize, meu marido morreu de pneumonia, não envenenado. Utilizava essas ervas para deixá-lo em cama um dia. — encolheu-se de ombros — Às vezes só funcionavam umas horas. — suspirou — Eram as horas mais maravilhosas do dia. — Senhora Hamilton, é você uma cínica — reprovou a senhora Atkinson chateada — Assim que lhe resulta monstruoso que eu ponha um pouquinho de veneno e, em troca, você emprega habitualmente tais práticas. — Eu nunca utilizei veneno, minha querida senhora Atkinson — afirmou — Há uma grande diferencia em pôr umas ervinhas de nada no chá e pôr um veneno mortal — franziu os lábios, indignada. — Está bem — concluiu a senhora Atkinson, resignada a perder a discussão — Deixemos a questão, a verdade é que não sou uma perita nestes temas. Então, me diga o que vamos fazer. Matthew detrás da porta escutava espantado, com a orelha pega à parede, uma mão em seu peito e a outra espremendo à jaqueta de Benjamin. — Pai! — exclamou Tom entre dentes — Ouviu o que hão dito? — sussurrou. — Silêncio — ordenou Matthew em voz baixa — Não quero que nos ouçam, deixa que escute mais. — Me solte a jaqueta. — Benjamin se retirou, estirando o traje — Que mania tem de espremê-lo tudo quando está nervoso — disse molesto. — Mas de que falas? Duas pérfidas bruxas estão planejando o assassinato de meu irmão e você preocupado com sua jaqueta. —Matthew olhou a seu cunhado com os olhos injetados em sangue. — Faz o favor de te acalmar — aconselhou Benjamin, cansado do dramatismo dos Flint. Em sua mulher era algo que se via adorável, mas em seus cunhados, terminava-o esgotando. — Pai, não! — Tom deteve o punho do Matthew que saía direto para Benjamin, que, por sua parte, nem se alterou. Pelo contrário, aproveitou que Tom o tinha retido para lhe pegar ele. — Mato você! — Matthew se desfez de seu filho e saltou sobre o visconde. Benjamim com astúcia se esquivou e colocando um dedo nos lábios, pediu: — Não faça tanto ruído. — sorriu-se — Nos vais delatar. Matthew olhou para o salão. Já não se escutava as damas cochichar, mas não parecia que os tivessem descoberto. Fixou seus olhos em Lodge com expressão de verdugo. — Só pretendia que te tranquilizasse — disse Benjamin, com a

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comissura de sua boca elevada — Mas te confessarei que levava um momento desejando fazê-lo. — Não foi a melhor forma — assegurou Matthew esfregando o queixo. — Se tivesse querido te tombar, te teria dado mais forte —afirmou pretensioso o visconde. — Ha! Não me tombaria nem em sonhos. — O que você diga — concedeu zombador — O único que pretendia era chamar sua atenção. Sua cabeça está entrando em um poço sem fundo. Pensa por um momento, por que quereriam duas anciãs matar a seu irmão? O mais provável é que sejam desconcertos de avós. Aquela moça, — assinalou a direção pela que se foi a donzela — assegurou-nos que David estava perfeitamente bem e que tinha saído. Deixa que primeiro averiguemos o que está ocorrendo nesta casa. Logo exploda se quiser. Nos faça um favor a todos e pensa antes de atuar. Matthew franziu o cenho, tocou-se outra vez o queixo dolorido. Reconheceu que seu cunhado possuía parte de razão. Não era um homem tranquilo; entretanto, tinha que fazer um esforço, por seu irmão. Tampouco gostava que seu filho o visse nesse estado. Desejava ser um bom exemplo para ele. E homem que não pensa antes de atuar não o é. Não pôde responder. Uma mulher muito bonita, já entrada em anos, mas com aspecto fresco e repousado, descia pelas escadas. — Bom dia, cavalheiros — saudou a dama com uma inclinação de cabeça e amplo sorriso, algo que desconcertou ao Matthew — Sou a senhora Smith. — Bom dia, senhora Smith. — Benjamin lhe devolveu a saudação protocolar — Sou o visconde de Torrington. Acompanham-me o irmão de minha mulher, o senhor Matthew Flint e seu filho Tom. — OH, que alegria — interrompeu Susan emocionada — E que honra! Passem, por favor — abriu caminho para o salão. — Muito obrigado — respondeu Benjamin, cortês. Os três homens entraram no salão, no que minutos antes tinham escutado como duas senhoras planejavam um atentado contra um pobre homem. — Mamãe, senhora Hamilton, desculpem, não sabia que estavam aqui. — adiantou-se um passo — Deixe-me que os apresente. — Girou um pouco e foi assinalando conforme dizia os nomes — Estes senhores são: o visconde Torrington, o senhor Matthew Flint e seu filho Tom. — voltou-se para as damas — Minha mãe, a honorável senhora Atkinson e sua querida amiga, a senhora Hamilton. Os cavalheiros saudaram como se esperava deles. A senhora Atkinson não defraudou, sua compostura foi tão reta como sempre.

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Inclusive Benjamin se surpreendeu que uma mulher desprendesse um ar tão respeitável. — Acredito que me vou desmaiar — confessou a senhora Hamilton. — Não lhe ocorra ser tão vulgar — ameaçou Annabel, que já suspeitava o mal que sofria sua amiga. — Mas você viu? — Claro que o vejo e o que esperava. Já conhece o David: sua família não podia ser muito mais feia. — Não, claro que não, mas... — a senhora Hamilton assinalou com a cabeça por volta dos três homens. — Pare de uma vez, você não se detém ante nada? Há um visconde na sala — sussurrou. Matthew olhava a aquelas anciãs com precaução. Tinha ouvido o que tinha ouvido. Não cabia engano: essas duas velhas queriam assassinar a alguém. Tinham que andar com cuidado e sair dali quanto antes. — Bem senhoras, não queremos incomodar mais do necessário — assegurou cortante, com pressa por ir-se. Essas duas damas lhe estavam pondo os cabelos em pé — Vimos em busca de meu irmão, o senhor David Flint. — Sim, o supomos — disse Susan — Sentem-se, tomaremos algo. Temos muito do que falar. — Obrigado — disse Benjamin e tomou assento. — Não temos nada do que falar — interrompeu Matthew que tomou ao Lodge do braço em um intento por levantá-lo do assento — Só nos diga onde encontrar a meu irmão — reclamou. — OH, mas sim que temos assuntos que tratar. Senta-se, por favor — insistiu Susan com doçura. Matthew não pôde negar-se ante tanta amabilidade. Sentou-se muito cerca de Benjamin e atirou do Tom para que ficasse no oco livre a seu lado. Não queria perde-lo de vista. Estava assustado. Era ridículo que um homem de seu tamanho e envergadura tivesse medo de duas anciãs, mas assim era. Essa duas senhoras, sobre tudo a chamada Hamilton, tinham o olhar turvo. Meia hora mais tarde, Tom olhava a seu pai e começou a temer que saltasse ao pescoço de alguma dessas adoráveis idosas. Não tinham cessado de fazer perguntas. Já conheciam o nome de todos os filhos de Matthew e as estranhas circunstâncias nas que se casou, ao que a senhora Atkinson comentou que devia ser coisa familiar. Matthew seguiu pensando que não estavam em seus juízos. Também sabiam todas as propriedades e títulos de Benjamin. E de Tom averiguaram o que estudava, quanto media, o que gostava de comer e se estava solteiro. Entretanto, eles ainda não haviam resolvido o problema que os

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tinha levado ali. Por fortuna, a porta da rua soou, escutaram como se abria a porta e uns passos enérgicos. — Matthew! — exclamou David da porta — O que faz aqui? O coração do mais velhos dos Flint se disparou para ouvir tão bem a seu irmão pequeno. Levantou-se de um salto e, em uma pernada, já estava abraçando ao David. Abraçaram-se durante uns minutos. — Meu deus! Está bem? — Matthew se separou de seu irmão para examiná-lo, lhe aplaudindo o corpo comprovou que estava inteiro — De verdade, está bem? — insistiu. Olhou suas pupilas, a cor branca da esclerótica era normal. Não o via doente, nem envenenado. — Sim, sim. — David deu um passo atrás contemplando a seu irmão sem acreditar que estivesse ali — O que faz aqui? Como me encontraste? Matthew golpeou com rudeza o estômago de David. Enquanto seu irmão se dobrava, jogou uma olhada às damas se por acaso se escandalizaram com suas maneiras, mas não. Nem se alteraram. Seguiam com o bate-papo como se nada. — Ai! — David deixou escapar o ar — Para isto queria saber se estava bem? — Deveria te matar. Sabe o que me tem feito passar? E como estão sua irmã e Betsy, além de grávidas — o repreendeu. Um movimento rápido e inesperado, detrás de David, chamou a atenção de Matthew. Ao segundo, sentiu uma forte dor na perna. Baixou o olhar e observou a cara mais cândida que tinha visto em toda sua vida, excetuando aos bebês, essa jovem possuía tanta doçura e frescor em seu rosto que capturava. Ia repreendê-la, mas ao contemplar aqueles lagos dourados que tinha por olhos, fechou a boca. A jovem o assinalou com o dedo indicador e lhe disse: — Caso toque um fio de cabelo de David, terá que se ver comigo! —ameaçou-o Coraline. Ela baixou a reunir-se com sua mãe, tinham-lhe informado que o irmão de David, junto com seu filho Tom e o visconde Torrington tinham chegado. Estava nervosa, esmerou-se em vestir-se bem e parecer toda uma dama. Queria causar boa impressão a sua nova família. Entretanto, quando ia entrar no salão, viu Matthew Flint golpear sem piedade ao David. Então, não pôde evitar de cair em cima deste. — Coraline! — gritou a senhora Smith — Como te ocorre golpear a um convidado? David rio, tomou a sua mulher da cintura para aproximá-la a ele. Depositou um beijo em seu cocuruto. Matthew ficou boquiaberto. — Lamento-o — se desculpou David. Era consciente de quanto se preocupavam todos quando ocorria algo a qualquer

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membro da família. E ele tinha tido a pouca consideração de desaparecer sem dizer nenhuma palavra. Levou seus olhos até seu sobrinho: pôde ver alívio e irritação em seu rosto — Perdoa, Tom —disse compungido — Tinha que te haver dito algo. — O aludido assentiu com a cabeça — Não o pude evitar. Quando apareceu Sórenson na porta de minha habitação... — Quem é Sórenson? — quis saber Matthew confundido — E quem é esta jovem temerária que leva chumbo nos sapatos? — É Coraline, a filha da senhora Smith — afirmou a senhora Hamilton desde atrás. — Corl? — indagou Tom que se aproximou dela — OH, Meu Deus! Corl Smith. — O que diz, jovem? — Susan se aproximou de Tom, viu a expressão de horror e tentou averiguar por que olhava a sua filha como se fora uma aparição — Ela é Coraline Smith. David pigarreou. Rodeou com seus braços a Coraline. — Ela é agora a senhora Flint — asseverou orgulhoso e feliz. — O que? — perguntou Matthew aniquilado. — Quando? — quis saber Benjamin igual de surpreso. — Como? — balbuciou Tom, totalmente louco. Corl era um menino, muito bonito certo, mas não tinha nada que ver com o ser angélico ao que estava abraçando seu tio. — Estará de acordo, senhor Flint, em que temos muito do que falar. — Susan pegou pelo braço de Matthew e o conduziu até a poltrona — É melhor que nos sentemos e escutemos toda a história. Uma história que eu tampouco conheço. Verdade, Corl? — Susan fulminou a sua filha com o olhar. Já suspeitava que havia parte de sua aventura que não lhe tinham contado, mas nunca se imaginou que sua filha se envolvesse em algo nebuloso como se fazer passar por um homem. Pela expressão de horror que tinha posto Tom Flint, algo gordo tinha feito sua filha, mas por quê? Esperava averiguá-lo esse mesmo dia. Deu graças ao céu que seu marido estivesse impedido na cama. Se Douglas aparecesse e visse sua casa invadida de ingleses, seria capaz de declarar a guerra.

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Capítulo 26 Matthew não sabia se estava mais afetado pelas bodas prófuga de seu irmão ou pela audaciosa noiva. Em sua vida não tinha conhecido a ninguém como Coraline Smith. A jovem se trocou a identidade, conseguiu um trabalho em um periódico de Londres, conseguiu ingressar na universidade de Oxford, nada menos, e todo o tinha feito sozinha. Embora Matthew suspeitava que o mordomo, quem tinha um papel muito importante nessa aventura, tinha-a ajudado em mais de uma ocasião. "Enganou a todo mundo", pensou Matthew admirado de sua ousadia e sua inteligência. Segundo David, quem a defendeu apaixonadamente, como era de esperar, Coraline tinha uma mente vivaz e privilegiada. E, embora fosse desatinado o que tinha feito, David a compreendia à perfeição. Estava claro que esses dois estavam destinados a estar juntos. Os dois igualmente aturdidos a sua maneira. Inteligentes e embevecidos de uma vez. Como era possível que seu irmão David não se deu conta de que era uma mulher? Essa cara de anjo era impossível de dissimular, por muita costeleta e óculos que ficasse. Seu irmão devia estar idiotizado. — Coraline, que desgosto! — arreganhou-a a mãe mais triste que zangada. — Mamãe, perdoa. Eu não queria trazer uma desonra à casa, juro-o. — Coraline se ajoelhou frente a sua mãe, que estava sentada, e, colocando a cabeça em seu regaço, rogou-lhe — Por favor, não me olhe assim, prefiro que te zangue. Mamãe, sinto muito, é que é mais forte que eu. Essas vontades de saber, de me desafiar até ver o que posso chegar a conseguir, essa sensação de injustiça por não poder fazê-lo do mesmo modo que um homem. — A moça suspirou e se afundou na proteção de sua mãe. — Ah! — suspirou Susan. Pôs as mãos na cabeça de sua filha — Está bem, Coraline. Vamos nos esquecer de sua pequena aventura no mundo masculino. — Franziu os lábios — Cada vez que penso o que te podia ter passado. A minha pequena. — Afogou um soluço — Filha, foste tão irresponsável — a admoestou Susan. — Não sofri nenhum dano. David sempre estava me protegendo, apesar de que acreditava que era um moço, sempre estava velando por mim — olhou a seu marido apaixonada. David sentiu uma sacudida de remorso pelas vezes que Coraline tinha estado em perigo. Vieram-lhe à cabeça imagens dela bebendo no pub, a briga dos escoceses, a fuga, o murro de Henry que nem ele pôde evitar. Lhe incendiaram as tripas ao recordar tudo

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isso, mas já não havia volta atrás, tudo tinha ocorrido como estava escrito e só ficava agradecer que não terei que lamentar nada mais. — Senhora Smith, — interveio David, ajudando a levantar sua esposa — tem toda a razão. O que fez Coraline foi muito perigoso, não só pela desonra. — Susan assentiu agradada — A entendo, mas lhe asseguro que não voltará a correr nenhum risco enquanto eu viva. — Notou as mãos de sua mulher envoltas nas suas — Por outro lado, — continuou olhando à mulher que amava aos olhos — vou fazer todo o possível para que obtenha seu sonho. — David! — Coraline, emocionada, abraçou-se a seu pescoço — Obrigada. — Bem, que não se fale mais do assunto, — sentenciou Susan — quanto antes esqueçamos tudo isto, melhor. Peço a todos os presentes que esta história não saia daqui. — Jogou uma olhada ao Matthew, Benjamim e Tom, que seguia com a boca aberta —. Entenderão que é muito delicado o assunto. — Tem nossa palavra - assegurou Benjamim, que falava pelos três. Matthew e Tom assentiram. A Susan não coube dúvida de que guardariam seu segredo. O ambiente se relaxou. David e Coraline contaram suas bodas e como, dias depois, tinha terminado ele no Dumfries, depois de ter abandonado a toda sua seleção no dia mais importante. Coraline se apercebeu que, ao chegar a esse ponto da narração, a cor da cara do David trocava a verde. Era tão injusto que tivesse renunciado a tanto. Tinha renunciado a Championship por ela. O pior era que não teria muito tempo mais para tentá-lo. David tinha trinta anos; os jogadores cada vez eram mais jovens. Apesar de tudo, ele sempre mostrava um sorriso, para que ela não se desse conta de que havia deixado a um lado sua paixão pelo futebol. O bate-papo se prolongou. Conseguiram criar um clima quente e familiar. Inclusive Matthew se atreveu a aproximar-se das velinhas que já não lhe pareciam tão terroríficas. — Senhora Atkinson, me permita que lhe pergunte. — A dama sorriu ao Matthew — Você que vivia com Coraline, não suspeitou de nada? As duas anciãs se olharam cúmplices. — Se não tivesse intervindo neste conto, minha neta seguiria estudando em Oxford, fazendo-se passar por um moço. E seu irmão seguiria perdido em muitas dúvidas. — trocou sua expressão a uma muito mais séria — Só direi uma coisa mais. Quando conheci seu irmão, soube que era perfeito para minha Coraline — sentenciou e calou. Matthew sorriu. Imaginava que aquelas duas damas tinham tido um papel muito relevante nas bodas de David. Não obstante, não tinha nada que objetar.

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Cada um de seus irmãos tinham eleito ao seu par, seguindo um caminho destinado. E ele só podia alegrar-se por eles e compartilhar sua felicidade. O único temor que lhe turvava a mente era imaginar o resultado que se ocasionaria ao juntar à família Smith e aos Flint sob o mesmo teto. À vista estava que os Smith eram tanto ou mais excêntricos que eles mesmos. Ao Matthew tremeram as pernas. David se tinha unido a uma mulher que poderia chegar a deslocá-lo mais que os Flint com todos seus filhos juntos. Isso era muito dizer vendo o entorno familiar que rodeava ao David. — Morri e estou no inferno. — ouviu-se uma voz de além morte, que vinha da porta. — Douglas! —chiou Susan. — Papai! — gritou Coraline, quase histérica. — Sogro — o saudou David, malicioso. — Não sou seu sogro. — Douglas se rompeu em um gemido de dor — Não te ocorra me chamar assim, bastardo — murmurou quando se recuperou. — Ei, você ouça! — Matthew se levantou disposto a defender a seu irmão. — Não interfira — o aconselhou Benjamim, acomodado em seu assento. No transcurso desses anos vivendo com os Flint, tinha aprendido diferenciar quando e como tinha que intervir. Nesse caso, era claro que o privilegiado que deveria participar era David. — Imagino que este indivíduo, com a almofada no traseiro, é o pai do Coraline. — Olhou à senhora Hamilton — Ao que você disparou — assegurou antes de ver o assentimento nos olhinhos azuis da mulher. Aproximou-se da orelha da senhora Atkinson — E ao que você queria envenenar — sussurrou. Annabel teve a decência de ruborizar-se — Bom, agora o entendo tudo. Senhora, estou com você, um pouco mais de cama lhe viria muito bem a este mal-humorado. E de passagem a todos nós. A senhora Atkinson o olhou agradecida de que a compreendesse. Não havia nada como estar entre os seus, entre ingleses.

*** — Papai, por favor, tem que aceitar que me casei com David — gemeu Coraline. — Nunca! — Mais lhe vale aceitá-lo, porque me penso leva-la assim que nos volte a casar um padre escocês, tal como era seu desejo —

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grunhiu David, cansado de Douglas e de sua teimosia. Havia-lhe dito que não daria o matrimônio por válido até que os casasse um sacerdote escocês. Tinha saído essa manhã em busca de um e o tinha encontrado. Essa mesma tarde, poderiam celebrar uma cerimônia íntima na casa dos Smith. Era algo que não só fazia pela teima de seu sogro, mas sim por Susan. Ela merecia ser testemunha das bodas de sua filha. Faria a Coraline feliz, e, tudo o que estivesse ao alcance de sua mão para fazê-la feliz, ele o faria. — Sobre meu cadáver — disse Douglas. — A escopeta! — pediu a gritos a senhora Atkinson. — Mamãe! — admoestou Susan — É meu marido — apontou de maneira desnecessária. — Não seja tão cruel de me recordar - disse isso entre dentes Annabel. — Esse matrimônio é nulo — sentenciou Douglas, rude. — Nulo? — exclamou Coraline desesperada — Mas o amo! —vociferou. David lhe agarrou a mão, olhou-a aos olhos com profundidade, emocionado pela liberdade que sentia ao expressar seus sentimentos por ele, inclusive diante de todos seus familiares. Apertou sua mão para tranquilizá-la. Não ia permitir que ninguém os separasse e queria que Coraline tivesse a mesma segurança que ele. — Você o ama, — disse o pai ferino — mas e ele? Só é um capricho para ele. David se apertou forte os nódulos e se mordeu as bochechas por dentro até fazer-se sangrar. Não lhe podia pegar a seu sogro e menos se estava ferido. Entretanto, não se aplacou até que sentiu o sabor de seu próprio sangue que lhe descia pelo gogó. — Deixei uma partida pela metade, abandonei a Championship e a toda minha seleção, meu país, por vir atrás de sua filha. E isso não é nada com o que poderia chegar a fazer por ela. —Fulminou com o olhar ao Douglas. Ante o olhar atônito de todos os pressente, o senhor Smith sorriu. — Vá, não vais ser o cretino que pensava — disse feliz. David comprovou no olhar de seu sogro que entendia o que significava para ele renunciar ao Championship e a sua equipe. Não obstante, outros na sala, à exceção de Tom, não compreendiam absolutamente nada. Pensavam que entre David e Douglas tinha existido um intercâmbio de palavras ou olhares que eles tinham passado por cima. Porque o que havia dito David não tinha nenhuma relevância comparado com a declaração de amor que tinha feito Coraline. — Alguém pode nos explicar que importância tem a Championship com o matrimônio de minha filha? — indagou Susan.

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— O menino a ama de verdade. Houve um profundo silêncio no que cada um experimentou distintas coisas: desconcerto, as mulheres; entendimento, os homens. Entretanto, a que parecia que ia flutuar era Coraline, que sentia uma opressão no peito como se a estivessem obrigando a não respirar. Elevou os olhos para David. Já sabia que seu marido a queria, por que, se não, não iria passar esses dias sob o mesmo teto que seu pai. Além disso, tinha ido em busca de um padre, só para que seus pais estivessem presentes na cerimônia. Mas o que lhe demonstrou que a amava realmente foi que se apresentou na habitação de seu pai para pedir sua mão. Douglas, convexo de barriga para baixo, oferecia uma imagem desalentadora. Além disso, não tinha feito outra coisa que amaldiçoar a seu marido e tudo o que fosse inglês. Ali David passou a maior humilhação imaginável, mas não lhe importou absolutamente. — David? — perguntou Coraline com um fio de voz. Esperava sua reação muito nervosa. Talvez, ele se tinha fartado da pressão de seu pai ou das loucuras de sua avó. Suspirou. Logo lhe deu de presente o sorriso mais sincero e mais irresistível. — Minha mãe, Coraline! — exclamou com voz aveludada — Estou tão apaixonado por ti que, às vezes, acredito morrer. Não sei em que dia vivo, não me lembro nem de respirar quando está comigo. Não concebo nada mais em minha vida que você. — Emoldurou sua cara entre as mãos — O que quero dizer ao falar do abandono da Championship é: até o mais importante em minha vida é insignificante comparado contigo. Não abandonei meu país, porque eu sozinho pertenço a ti. Acredito que te amei, inclusive, quando pensava que era um jovem irritante. — Dito isso a beijou como se estivessem sozinhos na habitação. Coraline se abandonou a ele. Esqueceu que seus pais e que sua honorável avó estavam observando. As mulheres suspiraram. Os homens fixaram a vista em qualquer lado para evitar cruzar as olhadas. — Isto foi mais ridículo que o meu, verdade? — Matthew perguntou a Benjamim em voz baixa. — Nada foi, nem será tão ridículo como sua declaração de amor a Betsy — afirmou Benjamim no limite da gargalhada. Matthew bufou. — Espero que isto não seja tradição familiar — disse Tom preocupado — Não penso me levar como um tonto quando me apaixonar. — Fará-o! — asseguraram Matthew e Benjamim de uma vez: sabiam muito bem o que diziam. — Então. — Coraline foi para seu pai, agarrou seu braço —

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Tudo arrumado, papai? O único que se preocupava era que ele não me quisesse de verdade? — quis saber iludida. — Sim carinho. — Douglas suspirou de dor. Tinha-lhe sido um esforço sobre-humano baixar até o salão, mas quando se inteirou de que a família do Flint tinha ido buscá-lo e acreditou que se levavam a sua menina, nada lhe impediu de ficar na cama — Imagine meu temor. Apresenta-te um dia em casa com um inglês e diz que é seu marido. Eu não conheço nada deste homem. Como queria que te deixasse ir assim pelas boas? — fixou-se no David — Nestes dias me demonstraste muito, menino. Foste capaz de suportar meu mau humor e minhas humilhações. E tudo por ela. Se por acaso fora pouco, renunciaste ao que mais você gostava na vida por minha filha. Não posso te pôr mais obstáculos. Benzo este matrimônio. — Graças a Deus! — respirou Susan. — Suponho que ser um professor respeitado, bom jogador e, o que se diz, um bom partido não influiu em sua mudança de opinião. — Supõe bem. O que favoreceu a balança para seu lado foram eles. — Assinalou ao Matthew, Benjamim e Tom — Uma família unida que não deixa a seus membros no esquecimento é o que desejo para minha filha. Sei que estará bem cuidada e protegida contigo. — apoiou-se em sua esposa para ficar um pouco mais reto — Tenho que acrescentar que o fato de que queira que cumpra seu sonho diz muito de ti como homem. — Papai, obrigada! — Coraline se abraçou a seu pai e chorou emocionada. Celebraram as bodas assim que apareceu o padre. Comeram, riram. Coraline se despediu de seus pais, visto que ao dia seguinte saíam para Ashford, com uma parada no caminho em Oxford. — Senhora Atkinson. — A senhora Hamilton tomou o braço de sua amiga, enquanto subiam pelas escadas que as levavam a seus dormitórios — E agora, o que faremos? Annabel suspirou. Deveria se fazer de desentendida com sua querida amiga, fazer como se não soubesse ao que se referia, mas o certo era que ela se fez essa mesma pergunta. — Não fica mais remédio que fazer as malas, senhora Hamilton — afirmou com seriedade. — OH, está você segura? Que contrariedade! Eu tinha pensado me retirar a minha humilde casa a descansar. — A senhora Hamilton suspirou. — Sei, sei — disse condescendente — Entretanto, temos que fazer um último esforço. A menina não se deu conta ainda, mas está grávida. — Sério? Como sabe? — Levo vivendo com ela tempo, sei à perfeição quando tinha que lhe vir o período — murmurou a senhora Atkinson.

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— Nesse caso, não podemos fazer outra coisa que ir com eles. Nos vão necessitar. A senhora Atkinson assentiu com a cabeça. — Amam-se com loucura, mas são incapazes de cuidar-se como deveriam — afirmou a senhora Hamilton — Necessitam umas mentes mais sábias, mais limpas, que lhes aplainem o caminho. — Imagina quando se inteirar David? — perguntou com malícia a senhora Atkinson — Se percorreu meio país, quando pensava que minha neta estava com seu pai, não quero nem pensar as tolices que fará quando souber que ele mesmo vai ser pai. — Sim, efetivamente, não nos podemos perder isso. — Fez uma pausa — Virá Sórenson? — quis saber a senhora Hamilton. — É obvio, é indispensável. Imagine a quantidade de confusões que nos colocaremos — assegurou a senhora Atkinson — Isso sim, temos que pôr uma série de normas quanto a meu mordomo. A senhora Hamilton franziu seus lábios enquanto sopesava a ideia. Acessou a contra gosto. Não podia fazer outra coisa: ou aceitava as normas de sua amiga ou se perdia a diversão. As adoráveis anciãs se retiraram a descansar e a planejar a próxima viagem a Ashford. Não podiam imaginar o momento de ver o que lhes esperava ali. Um campo cheio de flores que desfrutar. Enredos que desembaraçar e meadas que enrolar. Teriam muito que fazer entre tantos jovens. Ver David tão apaixonado por sua grávida mulher e rodeado de toda essa família de loucos ia ser uma das coisas mais divertidas que lhes tinha presenteado Deus.