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CÂMARA OBSCURA Renato Roque A partir de Câmara Clara de Rolland Barthes 2008

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Uma reflexão sobre o conhecido livro Câmara Clara de Roland Barthes

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CÂMARA OBSCURA

Renato Roque

A partir de Câmara Clara de Rolland Barthes

2008

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CÂMARA OBSCURA Era uma vez um homem que tinha visto tudo. Tinha visto demais, tinha visto o que não devia ter visto. Foi levado à presença do rei que o condenou a não ver mais nada durante toda a sua vida. O homem seria encarcerado até à morte numa câmara obscura, onde não entrasse pinga de luz. Construíram uma grande câmara, de paredes grossas em pedra, estanques à luz, e encerraram o homem que tinha visto demais dentro dela. Os primeiros dias dentro daquela cela, escura como breu, onde o homem tinha apenas a percepção de um abismo negro à sua frente, sem dimensões e sem limites, onde não conseguia sequer distinguir uma sombra, foram terríveis. O homem pensou que esquecera o que era ver. Até os sonhos eram vazios de luz e de cor, onde apenas as vozes contavam as histórias. Passados muitos, muitos dias, o homem pensou distinguir dentro da câmara, ao longe, um pequeníssimo ponto branco, mais pequeno que a cabeça de um alfinete. Rastejou rente ao chão na direcção desse ponto, que por vezes perdia de vista, por ser tão pequeno e quase invisível, até perceber, pelo tacto, que se arrastara até junto de uma das paredes da câmara. Ergueu-se, agarrado à parede, até conseguir colocar o olho direito junto ao pequeníssimo ponto brilhante que atraíra a sua atenção. O ponto era tão minúsculo que teve dificuldade em perceber que ele era um pequeno orifício na parede, que deixava entrar aquela réstia de luz do exterior. A partir daí, esse ponto de luz foi o foco das atenções do homem que vira demais. Esse ponto de luz permitiu-lhe passar a perceber a passagem do tempo, os dias e as noites, e assim passar a contar os dias, semanas e meses de encarceramento na câmara escura. Passadas algumas semanas pareceu-lhe começar a ver, na parede em frente ao pequeno orifício, manchas ténues de luz e de sombra. A princípio eram tão vagas que não conseguia distinguir nada, para além dessas manchas disformes e quase invisíveis. Mas à medida que passavam os dias, as semanas e os meses distinguia de uma forma progressiva formas conhecidas e cores que supusera ter esquecido. Até que chegou o dia em que via com clareza tudo o que acontecia no exterior da cela. Mas, curiosamente, via tudo de pernas para o ar. Com o tempo habituou-se a reinverter as imagens dentro da sua cabeça e a ver tudo, como vira toda a sua vida. Mas inexplicavelmente via tudo de novo, como se estivesse a ver pela primeira vez. O homem que tudo vira, dentro da câmara obscura via coisas que nunca antes tinha visto.

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1 Como tudo começou 4

2 Classificação das fotografias – studium/punctum 12

3 A questão do referente que adere 14

4 A fotografia e o acaso 21

5 A fotografia ou a(s) fotografia(s) 24

6 A fotografia e outras formas de expressão 26

7 A fotografia e a morte 32

8 Em jeito de conclusão 39

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1 Como tudo começou Desde que nos foi entregue a tarefa de construir um pequeno portfólio fotográfico, que eu fui descodificando um conjunto de sinais, que me pareciam orientar num determinado sentido. Primeiro o desafio para construir associações de imagens a partir da memória. No primeiro exercício, a partir de uma imagem retirada do filme Psico do Hitchcock , um dos objectos que desenterrei do meu baú das memórias foi um livro do fotógrafo americano Duane Michals sobre a casa em que cresceu. Pouco depois, (coincidência?), passei junto à casa dos meus avós, no Passeio das Fontainhas, onde nasci, e onde há tanto tempo não passava. Depois a viagem à Noruega, onde pude regressar aos locais que fotografara em 2006. Por último o próprio tema da tese de dissertação de mestrado que, ao contrário do que eu previra no início, também está relacionado com as teorias da percepção visual e da memória. A memória, sempre a memória. Todos esses sinais pareciam apontar para a missão de fotografar a casa onde viveram os meus avós e onde eu nasci e que nunca mais tinha visitado, desde a morte da minha avó há mais de vinte anos. Pensava ter identificado o portfólio. Por outro lado, o texto paradigmático Câmara Clara de Roland Barthes, foi sugerido como texto de referência. A releitura do texto de Barthes levantou-me uma série de questões e percebi que teria de as procurar reflectir. E a escrita sempre foi a melhor forma que encontrei para tentar esclarecer comigo mesmo as questões que me perturbam.

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Já tinha portanto duas missões: fotografar a casa dos meus avós para o portfólio e escrever um pequeno texto de reflexão a partir do mítico texto de Barthes. Lancei-me com energia na primeira missão. Lembrava-me de que há alguns anos tivera uma enorme dificuldade em identificar a casa dos meus avós. Há muito que lá não passava e as obras realizadas, para a construção da ponte do Infante, tinham obrigado à demolição de uma série de casas e a casa dos meus avós tinha sido a primeira a ser poupada, ou seja, é hoje a primeira da rua. Só o número 18 na pedra em granito, por cima da porta, me permitira ter a certeza de ser aquela a casa que procurava.

A porta no 18

Para o meu pai

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Entrei no sonho por uma porta e tu entraste por outra. Percorri o sonho de alto a baixo e de través. Não sabia se te procurava, se fugia de ti. Sentia a tua presença na casa do sonho. Era como se estivesses por detrás de mim, mas quando olhava já lá não estavas. Chamei por ti. É estranho que nos sonhos te trate sempre por tu. Abri as portadas da varanda, saí, e encostei-me ao gradeamento em ferro, sobre o rio. O chão em granito debaixo dos meus pés parecia tremer. O gradeamento balouçava um pouco. Por detrás de mim, os espelhos reflectiam o fogo de artifício numa noite de S. João. Olhei a rua onde os miúdos jogavam à bola. Era alto. Tão alto como me conseguia lembrar. Senti uma vertigem. Voltei à sala, e sentei-me no sofá onde o meu avô dormia a sesta. Fechei os olhos e entrei noutro sonho. A porta do sonho era uma porta grande em madeira, pintada de vermelho, com um batente em ferro. Tinha o número 18. Bati e o porteiro dos sonhos puxou o cordel que destravou o trinco. Entrei num espaço escuro e frio de onde partiam umas escadas. Subi. De repente fui engolido por um barulho ensurdecedor de música e vozes incompreensíveis. Por vezes parecia distinguir as palavras “...mais uma viagem...”. As escadas foram invadidas por uma luz cintilante que saltava para as paredes onde escorria e permitia ver os desenhos do papel que as forrava. Mais uma vez ouvi distintamente “...mais uma viagem...”. Entrei num barco à vela com o casco colorido rodeado de borracha. Agarrado ao mastro atravessei um lago de águas lisas, escuras e brilhantes. Desembarquei do outro lado num jardim suspenso com vistas sobre o rio. O meu avô espreitava-me ao cimo de uma escadaria em granito, por detrás das portadas. Tinha a certeza de estar no teu sonho. Só tu não estavas lá. De repente percebi que te procurava. Vou ter de abrir mais portas de sonhos até te encontrar. Sentar-me no sofá que foi do meu avô, adormecer e sonhar.

Desta vez bati à porta. O Sr. Francisco, novo morador, abriu e deixou-me entrar. Lá dentro, percebi que aquela casa pouco tinha a ver com a casa onde eu nascera e brincara. Só a escadas me lembravam a casa da minha memória. Mas até o cordel, que permitia abrir a porta de entrada, a partir do 1º e do 2º andar, desaparecera.

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A foto não só nunca é, em essência uma recordação, como também a bloqueia, tornando-se em breve uma contra-recordação.

Roland Barthes

Uma casa de família, com rés-do-chão e dois andares, fora transformada em quatro habitações, ou melhor em três habitações e num gabinete de arquitectura; no rés-do-chão há hoje um café. O jardim, onde festejávamos o S. João e o meu pai lançava fogo de artifício, lá continua, mas estranhamente, foi isolado da casa e até as janelas e portadas para o lado do jardim foram fechadas. Percebi que o proprietário pretendera assegurar a possibilidade de construir outro prédio na área do jardim e, por isso, o roubara à casa. Perante a desilusão, que se quisesse poderia ter antecipado – mas nunca antecipamos, e acreditamos sempre que o passado continua lá para nós o visitarmos – que fazer?

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Aquilo que eu tinha imaginado para o portfólio era confrontar a memória com o exercício da fotografia. Pensei ainda na possibilidade de utilizar nesse portfólio da memória as fotografias de outra casa da minha infância: a casa dos outros avós, que continuo a visitar todos os anos no Verão, em Figueira de Castelo Rodrigo.

O ovo

Para a minha avó

Era uma vez um pequeno ovo de galinha que vivia com os outros ovos, seus primos e irmãos, numa grande cesta de verga por debaixo do móvel da sala de estar, numa casa onde vivia uma velha senhora. À velha senhora só a vira uma vez, quando ela o colocara na cesta, junto dos outros ovos. Desde então tinha apenas espreitado com curiosidade e ansiedade os seus pés, quando ela se movia na sala, através da nesga de espaço entre o móvel e o chão. O ovo só conhecia o canto da capoeira onde tinha sido posto e aquela cesta para onde tinha sido trazido.

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Durante a viagem, da capoeira para a sala, olhara com sofreguidão à sua volta, mas mal tinha acordado e a rapidez da viagem como que o entontecera, e pouco tinha discernido: Apenas uma profusão de formas e cores que não conseguira compreender, mas que fora suficiente para fazer nascer nele aquela sede de viagem, aquela sede de aventura. Cada vez que espreitava os pés da velha senhora sonhava com uma viagem, com a possibilidade de partir à descoberta. Naquele dia fora surpreendido por dois pés que desconhecia. Pareciam uns pés de miúdo. Calçavam sandálias, sem meias e como usava com certeza calções podia observar-lhe as pernas quase até aos joelhos. Ouviu uma conversa entre o miúdo e a velha senhora, mas infelizmente não conseguia perceber a fala dos humanos. Pouco depois viu os pés da velha senhora aproximarem-se do móvel e espantado deu de caras com a cara rugosa da velha senhora que se dobrava e estendia um braço para a cesta dos ovos. Procurou chamar-lhe a atenção chocalhando a gema. Sentiu o calor dos seus dedos e sentiu-se erguer no ar. A senhora levava-o consigo. Olhou à sua volta maravilhado. Sentiu-se embriagado pela riqueza de formas e cores. Olhou a velha senhora nos olhos e foi surpreendido pelo seu olhar firme mas ao mesmo tempo terno, um olhar cavado por rugas profundas de tempo lavrado ao sol e ao vento. Observou a sala. Era pequena. A principal peça de mobiliário era o móvel, por debaixo do qual, a cesta com os ovos estava escondida. Em cima do móvel observou algumas fotografias antigas a preto e branco e uma velha boneca em porcelana que representava uma menina de chapéu que parecia correr com uma cesta no braço. Nas paredes, mais algumas fotografias, e um relógio de pêndulo que marcava sete horas. Era a hora de partir para a viagem. De súbito a velha senhora voltou-se e saiu da sala. O ovo viu um corredor, umas escadas em madeira e entrou numa cozinha escura iluminada pela lareira acesa. A senhora colocou-o em cima da banca e então pôde observar com pormenor as prateleiras onde repousavam objectos metálicos de todas as formas e tamanhos e que o ovo não conseguia identificar. Eram objectos estranhos para um ovo que apesar de instruído, nunca tinha saído da cesta, enfiado debaixo do móvel da saleta do andar térreo. A senhora colocou um dos objectos metálicos na lareira, e sentou-se durante alguns minutos num pequeno banco de madeira. Levantou-se de seguida e caminhou até à banca e pegou de novo no ovo. Levou-o até junto do fogo e bateu com ele no rebordo do objecto metálico que tinha colocado na fogueira alguns minutos atrás. O ovo sentiu a clara e a gema estremecerem. A casca estalou e o ovo assustado sentiu-se escorregar no vazio, mergulhando num líquido quente que parecia estalar. Era uma sensação agradável. O ovo sentiu-se mais firme, mais seguro de si. O medo tinha apenas durado um momento e transformara-se num prazer profundo. Enquanto deitado naquele líquido quente, o ovo observou um profundo túnel negro de que não descortinava o fim que se abria por cima da sua cabeça. Seria um daqueles buracos

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negros de que tinha lido num livro sem no entanto perceber bem do que se tratava? Estava ainda a meditar nesta possibilidade quando a velha senhora levantou o objecto metálico onde se encontrava, o inclinou, e o ovo escorregou para um prato branco de porcelana. No contacto com o frio da porcelana arrepiou-se: a gema intumesceu-lhe. A senhora levantou-se com o prato na mão e a viagem do ovo continuou. Atravessou o corredor no primeiro andar e entrou numa sala bastante maior do que a sala do andar inferior. Era a sala de jantar. A mesa estava posta. O ovo olhou para um miúdo de óculos que estava sentado à mesa. Era com certeza o garoto cujos pés conhecera. O tampo da mesa encobria-lhe os membros inferiores pelo que não pôde confirmar. A senhora colocou o prato com o ovo em cima da mesa e o ovo olhou os olhos do miúdo e ao perceber a gulodice do seu olhar compreendeu que não tinha muito tempo. Mas não se importou pois percebera que o triste não é não ter muito tempo mas sim nunca ter tido tempo. Estava a ficar filósofo. Sentiu-se inchar. A gema quase estalou e se espalhou pelo prato. Ovo-filósofo! Ainda poderia vir a ser famoso como o Ovo de Colombo, cuja fama aliás nunca percebera. O miúdo comeu o ovo sem se aperceber de nada. Só muitos anos mais tarde se lembrou do ovo-filósofo.

A casa continua, como sempre foi, ou deveria talvez dizer como não foi, pois falta a alma da casa, a minha avó. Este foi, colocado na frase de uma forma natural e sem qualquer premeditação, como veremos, pode ser interpretado como primeiro um sinal da pertinência do texto de Barthes. Depois pensei: Barthes, no livro Câmara Clara, conduz a sua pesquisa da essência da fotografia a partir de um pequeno portfólio pessoal de imagens, que ilustram o livro e as ideias que defende.

Resolvi tomar como ponto de partida da minha investigação apenas algumas fotos, aquelas que eu estava certo de existirem para mim (22)

São imagens que o ferem, como ele diz, em particular uma foto, que ele não mostra, da sua mãe ainda criança, que conduz toda a escrita do ensaio.

Decidi então “tirar” toda a fotografia (a sua natureza) da única foto que verdadeiramente existia para mim (104)

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Perante o contratempo, decidi então experimentar o modelo de Barthes: continuar com o exercício, mas transformar as duas missões numa única missão. Manias de engenheiro, de optimização de recursos! Decidi portanto contrapor a experiência da minha fotografia com o texto de Barthes. Para o materializar, escrever um pequeno texto de reflexão pessoal a partir do livrinho Câmara Clara; uma Câmara Obscura para confrontar com a Câmara Clara, utilizando nessa reflexão vários conjuntos de fotografias: as fotografias que fiz daquela que foi a casa dos meus avós nas Fontainhas, algumas fotografias da casa de Figueira, fotografias das duas viagens à Noruega e mais algumas. Outro foi, mais uma vez colocado na frase de uma forma natural e sem qualquer premeditação. Por opção, apesar de referir ao longo do texto o trabalho de vários fotógrafos, utilizo como ilustrações apenas imagens minhas, respeitando assim o primeiro compromisso de reunir, no âmbito deste trabalho, um portfólio pessoal. Os trabalhos dos fotógrafos que refiro são suficientemente conhecidos e divulgados, para serem facilmente descobertos na internet. Mais uma vez a minha fotografia era o pretexto para pôr em cima do branco do papel as minhas reflexões, as minhas dúvidas, as minhas perguntas e porventura também, se as houvesse, algumas respostas. Gostaria para terminar, antes de avançar para este exercício, de sublinhar que se trata apenas de um exercício desgarrado e pessoal de reflexão, tomando sempre como ponto de partida várias afirmações de Barthes no seu texto, afirmações que me suscitam interrogações ou perplexidades. Há muitos aspectos tratados no ensaio que não irão ser objecto de reflexão da minha parte, por não caberem neste exercício. Barthes analisa aspectos sociais, civilizacionais, jurídicos e até psicológicos e psiquiátricos, na forma como a fotografia é encarada na sociedade contemporânea. As minhas reflexões irão focar-se sobretudo na tentativa de Barthes em encontrar a tal essência da fotografia e em perceber o que a diferencia de outros processos, como a pintura, a escrita ou o cinema. Não houve nunca intenção de escrever um ensaio crítico fundamentado sobre o ensaio em questão. Nota: as citações que utilizo neste pequeno exercício, para facilidade dos leitores deste texto, identificam sempre o número da página do livro

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Câmara Clara, de onde foram retiradas, na colecção “Arte & Comunicação” das “Edições 70”, que utilizei.

2 Classificação das fotografias – studium/punctum

Uma das primeiras afirmações de Barthes no seu ensaio é acerca do carácter inclassificável da fotografia.

Desde o primeiro passo, o da classificação (é preciso classificar, agrupar, se quisermos constituir um corpus), a fotografia esquiva-se…Dir-se-ia que a fotografia é inclassificável. (16,17) A fotografia é inclassificável porque não há qualquer razão para marcar esta ou aquela das suas ocorrências (19)

Confesso que esta afirmação peremptória logo nas primeiras páginas do livro me surpreendeu. Tudo é e tudo não é classificável. De facto, tudo se pode classificar desde que o critério da classificação seja definido com clareza, podendo, e assim é de facto, ser em muitos casos um critério subjectivo. Mas, curiosamente, Barthes ocupa grande parte do ensaio a classificar as fotografias em dois grandes grupos. As fotografias unárias, as fotografias com studium como ele diz, e as fotografias com punctum. As fotografias como studium seriam aquelas que nos interessam por qualquer razão. Por exemplo, se nos interessarmos por história do século XX, as fotografias da implantação da República serão studium para nós. As fotografias com punctum são fotografias de que gostamos e gostamos delas porque nos ferem, para utilizar a terminologia de Barthes.

O primeiro é visivelmente uma área que eu reconheço facilmente, em função do meu saber, da minha cultura…a palavra existe em

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latim: é o studium…é pelo studium que me interesso por muitas fotografias (46) O studium é o campo amplo do desejo negligente, do interesse diversificado, do gosto inconsequente: gosto/não gosto… achamos bem (48) Tendo assim inspeccionado os interesses ajuizados que certas fotos despertavam em mim, parecia-me verificar que o studium, desde que não fosse atravessado, chicoteado, raiado por um pormenor, punctum, que me atrai ou me fere, engendrava um tipo de foto muito difundido, a que se poderia chamar a fotografia unária.(64) A fotografia é unária quando transforma enfaticamente a “realidade” sem a desdobrar, sem a fazer vacilar, nenhum duelo, nenhuma indirecta, nenhum distúrbio.(64) Interesso-me por elas, não gosto delas. (65) O segundo elemento vem quebrar (ou escandir) o studium. Desta vez não sou eu que vou procurá-lo, é ele que salta da cena (46) Existe uma palavra em latim para designar essa ferida, essa picada…A este segundo elemento, que vem perturbar o studium, eu chamaria, portanto, punctum (47)

Ou seja, Barthes acaba fazendo curiosamente talvez a classificação mais subjectiva de todas: as fotografias de que gostamos e de que não gostamos e procura identificar a essência desta distinção. E para ilustrar o seu pensamento Barthes apresenta ao longo do ensaio um pequeno portfólio de fotografias que o ferem, fotografias com punctum, em

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particular a tal célebre fotografia da sua mãe ainda criança, de que fala sempre, mas não mostra. E o que o fere são sempre pormenores, que Barthes identifica, fotografia a fotografia: uma boca desdentada numa imagem de William Klein, uns braços cruzados numa fotografia de Savorgan de Brazza, uma grande gola branca e uma ligadura numa fotografia de Lewis H. Hine

Nesse espaço habitualmente unário, por vezes, mas infelizmente raras vezes, um pormenor” chama-me a atenção. Sinto que a sua presença por si só modifica a minha leitura, que é uma nova foto que contemplo, marcada, aos meus olhos, por um valor superior. Este pormenor é o punctum, aquilo que me fere (66)

3 A questão do referente que adere A ideia do referente na fotografia é uma ideia-chave para Barthes ao longo de todo o ensaio.

Uma determinada foto não se distingue nunca do seu referente…uma fotografia traz sempre consigo o seu referente (18, 19) Aquilo que a fotografia reproduz até ao infinito só aconteceu uma vez: ela repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente (17). Nela um cachimbo é sempre um cachimbo (18) Não há foto sem alguma coisa ou alguém (19) Uma foto é sempre invisível: não é a ela que nós vemos. Em suma o referente adere (20)

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A questão do peso da realidade, aliada ao argumento da mecanicidade no processo fotográfico, são questões antigas, colocadas desde a invenção do processo, em meados do século XIX. Estes argumentos foram aliás, porventura talvez, os mais determinantes numa desvalorização da fotografia. Esta desvalorização foi real até às últimas décadas do século XX, quando a fotografia, por razões que não cabem aqui, foi revalorizada no circuito da chamada arte contemporânea. No entanto, também desde quase o princípio que muitos fotógrafos tentaram superar o enquadramento mecânico e tecnológico a que alguns queriam limitar a fotografia. Fizeram-no já no século XIX de duas formas bem distintas. Alguns tentando uma aproximação à pintura, os chamados pictorialistas,

A fotografia foi e é ainda atormentada pelo fantasma da pintura (52)

outros procurando as características intrínsecas do processo fotográfico, por vezes designados como naturalistas. Entre os pictorialistas deve-se destacar a importância de autores como Henry Peach Robinson, que publicou inúmeros artigos sobre o pictorialismo, defendendo as técnicas que desenvolveu, como o positivado, para construir obras de arte pictóricas com a fotografia. Nos segundos sobressai, ainda no século XIX, o nome de Peter Henry Emerson, considerado por Szarkowsky como o Lutero da fotografia., tendo sido fundamental para o que viria a acontecer no início do século XX com Stieglitz e a Photo-Secession nos EUA. São por exemplo muito curiosas as discussões inflamadas durante todo o século XIX, entre os pictorialistas, os artistas plásticos e os naturalistas. No âmbito destas discussões, muitos artistas plásticos pretenderam reduzir a fotografia a um mero processo tecnológico, sem qualquer valor artístico, os pictoralistas procuravam por todos o meios apresentar argumentos que contrariassem essa ideia, procurando muitas vezes acrescentar valores à fotografia, mesmo que vindos de fora da fotografia, enquanto os naturalistas tentavam encontrar a essência do processo fotográfico e assim contrariar as tendências pictorialistas. Muitas dessas polémicas fazem-nos hoje sorrir, pela sua ingenuidade e pelos argumentos inocentes e curiosos que invocam. Havia duas limitações do processo fotográfico, com que todos pareciam estar de acordo no século XIX e que eram utilizados pelos pintores para

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minimizar os resultados da fotografia: a ausência de cor e a carácter mecânico do processo. Esta realidade levou muitos fotógrafos pictorialistas a desenvolver e a defender práticas elaboradas de coloração das fotografias, como uma forma de ultrapassar essas duas limitações e de conseguir dessa forma verdadeiras obras de arte. “ O fotógrafo admite a beleza da cor na pintura e admira-a. O artista admite a veracidade da fotografia e admira a maravilhosa delicadeza dos detalhes, a autenticidade do desenho e a perfeição do claro-escuro. Porque razão então uma arte que combina a verdade de uma com o encanto da outra é assim atacada por artistas e fotógrafos?” Escrevia Alfred H. Wall, um dos coloristas importantes do século XIX, queixando-se da incompreensão que recebia quer de fotógrafos quer de pintores. Aquilo que os pictorialistas e os coloristas do século XIX não compreendiam era que quando procuravam abrir para si as portas do reino fechado das artes plásticas, para lá conseguir entrar, renunciavam ao essencial do processo fotográfico, e conseguiam-no, quando o conseguiam, à custa, até certo ponto, da negação da própria fotografia. Mas regressemos a Barthes. Sem pretender negar o peso da realidade na história da fotografia, ou o do referente, como Barthes lhe prefere chamar

Aquele ou aquilo que é fotografado é o alvo, o referente (23) Chamo referente fotográfico não à coisa facultativamente real para que remete uma imagem ou um signo, mas a coisa necessariamente real que foi colocada diante da objectiva, sem a qual não haveria fotografia. (109) Aquilo que intencionalizo numa foto não é nem a Arte nem a Comunicação, é a Referência, ordem Fundadora a fotografia. (109)

e sem negar o carácter determinante do referente num grande número de trabalhos fotográficos, parece-me que pretender limitar a fotografia a esse espartilho tão apertado, corresponde a uma visão estreita das perspectivas que a fotografia pode oferecer. A não ser assim, poder-se-ia perguntar qual o referente em projectos como “Fauna” ou como “Herbarium” do fotógrafo

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catalão Joan Fontcuberta, ou em projectos como “How photography lost its virginity on the way to the bank”do fotógrafo americano Duane Michals, ou ainda no projecto “Seascapes”, uma série de fotografias de mar do fotógrafo japonês Sugimoto? Seria difícil responder. São todos fotógrafos contemporâneos, é verdade, mas poderíamos recorrer aos surrealistas ou aos modernistas das primeiras décadas do século XX, ou mesmo a um clássico naturalista como Edward Weston. Qual o referente das fotografias do projecto 12pm? O referente está lá: o mar e os fiordes, naquele dia 19 de Junho de 2006, por volta das 12pm, mas isso terá alguma importância?

O referente está lá: o mar naquele dia 19 de Junho de 2006 por volta das 12pm, mas isso terá alguma importância?

Partindo do princípio que a fotografia utiliza uma realidade real – não a realidade – como ponto de partida, e mesmo isso não é necessariamente assim, pois mesmo esta realidade pode ser virtual e é-o em tantos projectos, a fotografia é sempre o resultado de um jogo entre essa realidade e a cabeça do fotógrafo. E acredito que os projectos mais interessantes são aqueles em que a cabeça do fotógrafo predomina. Mas para Barthes a fotografia é referente, contingência e, quando muito, alguma habilidade do fotógrafo.

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A semiologia da fotografia está, pois limitada às execuções admiráveis de alguns retratistas (61)

A fotografia é contingência pura e não pode ser mais do que isso (49) A visão do fotógrafo não consiste em “ver” mas em estar lá (74) Há uma dupla posição conjunta: de realidade e de passado. E, uma vez que esse constrangimento só existe para ela, devemos tomá-la por redução, pela própria essência, o noema da fotografia. (109) O nome do noema da fotografia será então “Isto foi” (109) Ela (a fotografia) pode mentir sobre o sentido da coisa, sendo por natureza tendenciosa, mas nunca sobre a sua existência. Impotente perante a ficção, a sua força é todavia, superior a tudo o que pode conceber o espírito humano para nos garantir a realidade – mas também essa realidade nunca é mais do que uma contingência (122) Toda a fotografia é um certificado de presença (122) O passado é a partir de agora tão seguro quanto o presente, aquilo que se vê no papel é tão real como aquilo que se toca. (124)

É verdade que pretender negar em absoluto esta relação da fotografia com o referente e a sua relação com a realidade do passado (isto foi), como alguns pretendem fazer, em nome da subjectividade inerente ao processo, poderá ser uma luta inglória e mesmo sem sentido. É verdade também que o “isto foi” dominou os primeiros passos da fotografia. Quando a fotografia foi inventada, em meados do século XIX, era essencialmente um processo

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tecnológico, químico e mecânico, para registar a realidade. Daguerre define a fotografia como “um espelho com memória”, ou seja, capaz de transformar o “isto é” do espelho, num mágico e misterioso “isto foi”, misturando, tal como argumenta Barthes, a realidade com o passado. É inegável que a fotografia, quando surge, está mais ligada à tecnologia e aos processos de transformação industrial e tecnológica, do final do século XIX, do que a movimentos artísticos. Constatamos por exemplo que muitos dos pioneiros do processo fotográfico, nomeadamente em Portugal, e em particular no Porto, são homens ligados à ciência e à tecnologia, homens com uma visão transformadora para a sociedade rural portuguesa, tendo como objectivo uma sociedade nova, industrial e capitalista e que por isso se interessam e divulgam essa nova forma de registar a realidade. Ao mesmo tempo a fotografia, quando apareceu, foi encarada por muitos artistas, sobretudo pintores, como um risco, pois era uma técnica que fazia perigar o seu negócio de retratistas, e procuraram, como seria natural, desvalorizá-la e apresentá-la como um processo meramente mecânico, onde a criação e a arte não teriam lugar. Como exemplo apenas, poderíamos citar um manifesto de 28 pintores em França, onde se incluem Ingres e Puvis de Chavane, em que denunciam a competência desleal dos fotógrafos e solicitam das autoridades francesas uma posição oficial clara, declarando que “a fotografia não pode, em nenhum caso, ser assimilada a obras fruto da inteligência e do estudo da arte”. Mas se o “isto foi” caracterizou os primeiros passos da fotografia, há muito que ela se libertou desse espartilho e pode-se mesmo afirmar que os projectos fotográfico mais interessantes no presente não só não vivem debaixo desse referencial, como até, muitas vezes, assumem como linha mestra a sua contraposição. Se olharmos mais uma vez, por exemplo, para os projectos de Joan Fontcuberta, verificamos que o seu noema, para utilizar o termo tão caro a Barthes não é nunca “isto foi” mas quase sempre será “parece que foi mas não foi”, quando assume como linha orientadora a desmistificação das ideias de verdade e de realidade, associadas ao processo fotográfico. Muitos outros fotógrafos e projectos poderiam ser aqui citados, em que o noema curiosamente joga muitas vezes com os tempos do verbo ser: “Isto não foi”, “O que é que isto foi?”, “Isto não é o que foi”, etc. No meu projecto “Corpos de Cidade”, de 2002, eu atrever-me-ia a afirmar que o noema expresso no verbo ser talvez pudesse ser “O que é que isto foi e o que é que vai ser?”

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“O que é que isto foi e o que é que vai ser?” E tenho a imodéstia de ver o projecto 12pm, como se estivesse colocado fora do tempo.

12pm/12am – Noruega 2006-2008

Isto foi? Isto é? Isto será?

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4 A fotografia e o acaso Vimos que Barthes classifica as fotografias em dois grandes grupos. Aquelas de que realmente gosta, que o ferem, as fotografias com punctum, resultado de um pormenor “que é dado por acaso e mais nada”. Para Barthes esse pormenor é portanto fruto do acaso. Inclusive, se tal não acontecer, e se esse tal pormenor for planeado pelo fotógrafo, o pormenor perderá a sua força e já não conseguirá feri-lo…

A foto torna-se surpreendente a partir do momento em que não se sabe porque foi tirada (56) Mas do meu ponto de vista de Spectator, o pormenor é dado por acaso e mais nada: o quadro em nada é “composto”, segundo uma lógica criativa (67) Certos pormenores poderiam ferir-me. Se não o fazem é porque foram lá colocados intencionalmente pelo fotógrafo. (73) Por isso o pormenor que me interessa não é, ou pelo menos não é rigorosamente, intencional e, provavelmente, não deve sê-lo; ele encontra-se no campo da coisa fotografada como um suplemento simultaneamente inevitável e gracioso (74) Imagino que o gesto essencial do Operator é surpreender alguma coisa ou alguém…em revelar o que estava tão bem escondido, que o próprio autor desconhecia ou de que não estava consciente…toda uma gama de surpresas (54)

E foi esse acaso que segundo Barthes possibilitou a existência da foto-fetiche da mãe, a foto que conduz todo o livro

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A sobrevivência desta fotografia ficou a dever-se ao acaso de ter sido tirada por um fotógrafo de província que, mediador indiferente, também ele posteriormente morto, não sabia que aquilo que fixava era a verdade – a verdade para mim (153)

É por isso também que Barthes afirma que não gosta de todas as fotografias de um mesmo fotógrafo. Porque nem sempre esse pormenor, fruto do acaso, acontece. As fotografias de um bom fotógrafo podem todas conter o studium, mas só algumas conterão o tal punctum.

Nunca gostava de todas as fotos do mesmo fotógrafo. A fotografia é uma arte pouco segura (34) Uma determinada foto acontece-me, uma outra não. O princípio de aventura permite-me fazer existir a foto. Não há foto sem aventura (37)

Não pretendendo discutir o acaso, que faz parte da vida, e também com certeza de muitas fotografias, parece-me muito difícil mais uma vez enquadrar neste esquema os projectos mais interessantes de fotografia, desde que a fotografia foi inventada até hoje. Onde está esse acaso na “Fauna” de Fontcuberta, recorrendo uma vez mais a esse fotógrafo catalão, em que a fotografia serve para inventar o personagem Ameisenhaufen e ilustrar todo o trabalho deste imaginado professor alemão, em prol das novas espécies por eles pretensamente descobertas em lugares recônditos. Tudo é pensado, planeado e executado com um rigor e uma perfeição levadas ao limite. Acaso? Onde está o acaso nas fotografias que fiz no Museu de História Natural de Oslo? Onde está o referente? O que importa nestas imagens é a sua relação realidade/falsidade. A somar à falsidade da fotografia há a falsidade do referente, e o que perturba é, apesar disso, as fotografas parecerem algumas vezes mais reais que a própria realidade.

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Onde está o referente quando a fotografia fotografa a referência de um

referente? Onde está o acaso? Para Barthes o objectivo supremo da fotografia é deixar de ser o meio, deixar de ser o signo para passar a ser a própria coisa, que Barthes reconhece numa fotografia, mais uma vez de Kertesz.

Anular-se como médium, deixar de ser um signo, passando a ser a própria coisa? (71)

Uma consequência das “limitações” da fotografia é segundo Barthes a inoperância para a crítica social. Barthes cita mesmo o exemplo de Brecht que não gostaria de fotografia por pensar que não tinha poder crítico.

O olhar social passa aqui necessariamente pelo circuito de uma estética refinada que a torna vã: só é crítico naqueles que já estão aptos para a crítica (59)

Creio que se poderiam usar argumentos mito parecidos para todas as formas de expressão e de arte. A subtileza, a criatividade, a qualidade estética transformam muitas vezes os projectos artísticos de crítica social em projectos mobilizadores apenas para aqueles que já estão aptos para a

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crítica. E no plano histórico creio que terá sido mesmo a fotografia a contribuir para muitos movimentos cívicos e de transformação social. Basta ter em conta, por exemplo, o papel desempenhado por muitos fotojornalistas, que fotografaram a Guera de Espanha, os campos de concentração nazis, ou a guera do Vietname. Concluindo: para Barthes a fotografia é uma técnica presa ao referente, onde podem acontecer por acaso pormenores que nos tocam, nos emocionam. Se forem planeados pelo fotógrafo perdem a sua eficácia. Em minha opinião, a relação com o referente é com certeza especial na fotografia, a sua relação com a realidade e com o passado são diferentes das da pintura ou da literatura, mas tais características têm provado não ser castradoras do processo criativo e podem mesmo ser o ponto de partida para esse processo criativo.

5 A fotografia ou a(s) fotografia(s) É claro para quem lê Câmara Clara que Barthes apenas tem em conta a fotografia documental, jornalística, ou a fotografia de álbum de família. É dessa e só dessa que fala, mesmo quando parece falar de toda a fotografia. Curiosamente, quando compara a fotografia com o cinema, considera sempre e só o cinema de ficção e nunca o cinema documental, de reportagem ou até familiar. Será que Barthes se apercebe de que só está a tratar apenas um tipo muito específico de fotografia, ou não? Há uma passagem curiosa onde diz:

A fotografia para surpreender fotografa o notável; mas em breve por meio de uma reviravolta conhecida, ela decreta que é notável aquilo que fotografa, O “não importa o quê” torna-se então o cúmulo sofisticado do valor (56)

Confesso que me parece que ele se refere à arte contemporânea e talvez em particular à fotografia, “recuperada” por essa arte contemporânea e para o facto, de muitas vezes, nesta valer não aquilo que vale mas aquilo que se diz que vale: “Arte é tudo aquilo que um artista diz que é arte”.

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Mas parece que Barthes teria uma opinião muito crítica relativa a essas aventuras, quaisquer que elas fossem, sem sequer distinguir entre elas. Parece acreditar que a fotografia tem um lugar a ocupar e tem de se limitar a ocupar esse lugar…

No campo da prática fotográfica é o amador, pelo contrário, que é a assunção do profissional: porque é ele que está mais perto do noema da fotografia (138)

Se por vezes parece estar consciente da perspectiva diferente que alguns possam defender, parece não lhes dar muita importância e não perde muito tempo a rebatê-los.

A moda entre os comentadores de fotografia é a da relatividade semântica: não existe real, apenas artificio. … Este debate é inútil: nada pode impedir que a fotografia seja analógica. (124) Os realistas, nos quais eu me incluo, já quando afirmava que a fotografia era uma imagem sem código – mesmo que evidentemente haja códigos que venham influenciar a sua leitura – não tomam a foto por uma cópia do real, mas por uma emanação do real passado: uma magia não uma arte (125)

Por outro lado nos capítulos finais do livro Barthes, onde defende o carácter alucinatório e mesmo a raiar a loucura da essência fotográfica

A fotografia torna-se para mim um médium estranho uma nova forma de alucinação: falsa ao nível da percepção, verdadeira ao nível do tempo (158) Na fotografia o que eu estabeleço não é apenas a ausência do objecto, é também simultaneamente e na mesma medida, que esse

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objecto existiu realmente e esteve lá, onde o vejo. É aqui que reside a loucura (158)

ele afirma: A sociedade empenha-se em tornar a fotografia séria, em temperar a loucura que ameaça constantemente explodir no rosto de quem a contempla. Para tal tem dois meios à sua disposição O primeiro consiste em fazer da fotografia uma arte. A fotografia pode ser efectivamente uma Arte, quando nela já não há loucura, quando o seu noema é esquecido e, portanto, a sua essência já não age sobre mim. (161)

Ou seja para Barthes a tentativa de transformar a fotografia em Arte destrói-lhe a essência.

6 A fotografia e outras formas de expressão

Ao longo do ensaio Barthes faz muitas vezes comparações entre a fotografia e outras formas de expressão. A comparação com a pintura não é de estranhar, pois ela surge quase sempre, quando se pretende caracterizar a fotografia, apresentar as suas virtualidades e as suas limitações. Isto é natural não só porque a fotografia tem alguma analogia com a pintura realista, mas também devido ao contexto histórico da descoberta fotografia e toda a polémica que gerou com os pintores

A fotografia foi e é ainda atormentada pelo fantasma da pintura (52)

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A comparação com o cinema também é natural, pois o cinema é de alguma forma um desenvolvimento da fotografia através da inclusão do movimento e do tempo. A comparação com a escrita embora menos comum também faz todo o sentido, quanto mais não seja para olhar em paralelo para duas formas aparentemente tão distantes e tão diferentes. Pintura A ideia chave para Barthes quando compara a fotografia com a pintura é a de que a pintura, ao contrário da fotografia, não me assegura o referente

Não é no entanto (parece-me), pela pintura que a fotografia participa na arte, é pelo Teatro…através de um circuito singular: a Morte (52, 53) A pintura, essa pode simular a realidade sem a ter visto. O discurso combina signos que têm certamente referentes, mas esses referentes podem ser quimeras. Na fotografia não posso nunca negar que a coisa esteve lá (109) Nenhum retrato pintado, admitindo que me parecesse verdadeiro, podia impor-me a existência real do seu referente. (110) Aqui está uma fotografia de soldados polacos (kertész, 1915). Nada de extraordinário, a não ser esta coisa que nenhuma pintura realista poderia dar-me: a certeza de que eles estavam lá (117)

Na fotografia ao contrário da pintura

O poder da autentificação sobrepõe-se ao poder de representação. (125)

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Na fotografia a presença da coisa (num determinado momento passado) nunca é metafórica (112)

Em abstracto, teríamos com certeza de admitir que, perante um retrato pintado ou uma fotografia de um familiar, por exemplo, o peso do referente seria em princípio maior na fotografia. Em princípio, porque poderão existir factores subjectivos a ter em conta que tornem o peso subjectivo do referente da pintura maior. Mas não é esse o aspecto que agora nos interessa. A discussão deste ponto já foi feita, ao mostrar que muitas fotografias também não asseguram o referente e nem têm como objectivo fazê-lo. Cinema A ideia chave para Barthes quando compara a fotografia com o cinema deriva da continuidade que existe no cinema ao contrário da imobilidade da fotografia que permite fechar os olhos e interiorizá-la.

Será que no cinema eu acrescento à imagem? Penso que não; não tenho tempo; não posso fechar os olhos (82) É aquilo que eu acrescento à foto e que, no entanto, já lá está (82) Fecha os olhos, deixar que o pormenor suba sozinho à consciência afectiva (82) Quando se define a Foto como uma imagem imóvel, isso não significa apenas que as personagens que ela representa não se mexem; significa que não saem de lá (84)

No entanto, o aspecto que mais me chamou a atenção é o facto de Barthes, quando faz estas comparações, considerar sempre e apenas o cinema de ficção.

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Isso explica que o noema da fotografia se altere quando essa fotografia se anima e se torna cinema (111) O cinema (de ficção) mistura duas poses, o “isto foi” do actor e do papel (113) Porque a fotografia tem este poder de me olhar directamente nos olhos (eis de resto uma nova diferença: no filme, ninguém me olha nunca; é proibido – pela Ficção) (154) O cinema participa nesta domesticação da fotografia…Ele é sempre contrário de uma alucinação: é apenas uma ilusão. A sua visão é sonhadora e não ecmnésica (161) A imagem fotográfica é plena carregada: não há lugar vago, não se pode acrescentar-lhe nada. No cinema, cujo material é fotográfico, a foto não tem, no entanto, essa completude (ainda bem para ele). Porque a foto, tirada num relâmpago, é empurrada, atirada incessantemente para outras vistas. Sem dúvida que no cinema há referente fotográfico, mas esse referente desliza, não reivindica a favor da sua realidade, não afirma a sua existência anterior. Tal como o mundo real o mundo fílmico é apoiado pelo pressuposto de “que a experiencia continuara constantemente a desenrolar-se no mesmo estilo constitutivo”. Mas a fotografia esse rompe o estilo constitutivo; ela não tem futuro…ele é apenas normal, como a vida. Imóvel, a fotografia reflui da representação à retenção (126)

Se considerasse, tal como fez com a fotografia, o cinema documental, e em particular o cinema familiar, teria de admitir que grande parte daquilo que afirma para a fotografia continuaria a fazer sentido para o cinema. Como negar o peso do referente ou o noema “isto foi”, perante um pequeno filme

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de 8 mm da minha filha, com cinco anos de idade? Como negar o carácter fantasmagórico de um pequeno filme da minha avó? Escrita A comparação com a escrita é porventura menos frequente, quando se trata de fotografia. No livro Câmara Clara as comparações com a escrita servem sobretudo para reforçar a ideias-chave relativas à fotografia: a ideia do referente, a ideia do acaso e da contingência, a ideia da Realidade versus Ficção

A fotografia é contingência pura e não pode ser mais do que isso (é sempre algumas coisa que é representada) – ao contrário do texto que, pela acção súbita de uma única palavra, pode fazer passar uma fase da descrição à reflexão – ela revela imediatamente esses pormenores (49) Se a fotografia não pode ser aprofundada isso deve-se à sua força de evidência. Na imagem o objecto entrega-se em bloco e o olhar está certo disso – ao contrário do texto ou de outras percepções que me apresentam o objecto de uma forma frouxa, discutível e assim me levam a desconfiar daquilo que julgo ver (148)

Perante uma fotografia sua, Barthes afirma:

Porque se tratava de uma fotografia não podia negar que tinha estado lá (mesmo que não soubesse onde) Esta certeza nenhum texto pode dar-ma… O noema da linguagem é talvez esta impotência, a linguagem é, por natureza, ficcional (121)

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Ao Pouco-Imagem da leitura responde o Tudo-Imagem da Foto. (125)

A escrita é no entanto, curiosamente, aquela com quem eu tenho sentido na fotografia maior afinidade. Poderão alguns argumentar que procuro na escrita o que não encontro na fotografia. Que se não trata portanto de afinidade mas de complementaridade.

Haiku É curioso Barthes, ao comparar a fotografia com a escrita, recorrer ao caso concreto do Haiku. Não da Poesia, mas do Haiku.

Isto aproxima a fotografia (certas fotografias) do Haiku; porque a notação de um Haiku é também irrevelável; tudo é dado sem provocar o desejo nem sequer a possibilidade de uma expansão retórica. (75)

Não pode transformar-se mas apenas repetir-se sob a forma de insistência (do olhar insistente) (75) Nem o Haiku nem a Foto fazem sonhar (75)

E é curioso porque, tendo tido como cúmplice em dois projectos fotográficos o Jorge Sousa Braga, ele escreveu Haikus. E eu sinto uma relação de enorme proximidade entre a fotografia e o Haiku, não pelas razões que Barthes aponta mas pela contenção, pelo ritmo, pela escassez de recursos para conseguir abrir tantos horizontes. Tal como a fotografia, um Haiku pode ser lido de olhos fechados.

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7 A fotografia e a morte

Cedrus falsus, projecto Bosque com Passado, Tom de Festa, Tondela, Julho 2007

A ACERT, com quem mantenho uma cumplicidade de há muitos anos, convidou-me a participar no projecto Bosque com Passado, integrado no Tom de Festa 2007. A ideia era simples e curiosa. A ACERT convidara cada uma das 26 juntas de freguesia do concelho de Tondela a seleccionar uma árvore morta da sua freguesia. Cada uma das 26 árvores seria atribuída a um artista plástico, para nela intervir, construindo assim no jardim da ACERT um bosque com passado e ao mesmo tempo um bosque de árvores mortas com um novo futuro, ainda que efémero como todos os futuros, um futuro até ao fim do verão, pois as árvores do projecto iriam ser mantidas nos jardins da Associação até ao fim de Setembro. Perante aquele convite inesperado, eu hesitei apenas durante alguns segundos, porque, como de costume, bem ou mal, acabei por aceitar esse desafio. Mas não tinha ainda nenhuma ideia de como intervir no projecto com fotografia. A fotografia teve sempre, desde que foi inventada, uma componente muito forte de registo, de memória, e dessa forma esteve sempre, de alguma forma, ligada à ideia de morte. O momento registado é sempre um momento que já passou, um momento que já não existe mais. A fotografia é por isso também sempre uma mentira. Mas apesar de cada fotografia permitir registar uma memória, há contudo também na imagem fotográfica uma enorme efemeridade, inerente à fragilidade do processo. Depois de uma curta reflexão decidi intervir no projecto Bosque com Passado montando um conjunto de tinas cheias de água à volta da minha

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árvore, onde mergulharia fotografias a PB de uma árvore da mesma espécie, recorrendo a uma série de imagens, com impressão variável, desde o branco completamente subexposto ao negro queimado sobreexposto. Ligar o ciclo efémero da vida e da morte ao ciclo efémero do processo fotográfico. Registo, memória, morte, efemeridade. Informaram-me uns dias depois que me tinha sido atribuído por sorteio um cedro da freguesia de Caparrosa. Enviaram-me a fotografia da árvore morta, de pé, como é tradição nas árvores. De acordo com o que planeara, teria portanto de fotografar um cedro. Decidi então aproveitar um fim-de-semana nas terras do Alendouro para encontrar um cedro e fotografá-lo. O problema que se me colocou de imediato foi de identificar, com uma certeza absoluta, um cedro genuíno. Tinha uma ideia do aspecto da árvore, mas receava, na minha ignorância de rapaz da cidade, poder confundi-la com alguma árvore semelhante. Mas pensei que, com a ajuda das gentes do campo, conhecedora das árvores, seria fácil, ultrapassar essa dificuldade. Constatei que afinal não era bem assim. Durante a viagem para Trás-os-Montes, já muito perto de Rebordelo, vislumbrei na beira da estrada, no santuário de Stª Rita, uma árvore, que toda a gente que viajava comigo no carro identificou, com toda a certeza, como um cedro. Decidi, por isso, ir fotografá-lo no dia seguinte. E assim fiz. Já depois de o ter fotografado, perguntei a algumas pessoas da aldeia que tinham aparecido entretanto, movidos certamente pela curiosidade, a saber o que faria eu por ali, se sabiam que árvore era aquela. Estranhamente recebi respostas contraditórias, inclusive de um homem que afirmou ter sido ele a plantá-la. Começou surpreendentemente por afirmar que a árvore era um pinho! Depois de alguma conversa, lá concordou que aquela árvore era de facto o que as pessoas chamavam de cedro. E tinha razão. Mas não era um cedro, como iremos ver. Desconfiado, resolvi consultar um amigo que é engenheiro silvícola. Concluí então, para minha surpresa, que nenhuma das duas árvores é um cedro. A árvore que me atribuíram é um Camecipáris do Oregon, de nome científico Chamaecyparis lawsoniana, ainda que muitas vezes indevidamente chamada de Cedro branco ou de Cedro do Oregon. A árvore que fotografei é afinal um Cupressus sempervirens, do vulgar género cipreste, que curiosamente também é muitas vezes, indevidamente, chamado de cedro. Soube que existem na realidade 3 espécies do género

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Cedrus - Cedrus deodara, Cedrus atlantica e Cedrus libani - e que nenhuma das duas árvores pertencia a qualquer dessas três espécies. Todas estas espécies são recentes em Portugal. Foram introduzidas pelos serviços florestais na década de 50. Daí a confusão, suponho. Ou seja, descobri que as 3 árvores: a árvore morta de Tondela, a árvore que fotografei em Rebordelo e a árvore das fotografias, a boiar dentro das tinas cheias de água, são todas da espécie Cedrus falsus. A ironia do destino, tornara a fotografia ainda mais falsa do que ela sempre é. Photus falsus Cedri falsi. Contei esta história porque a fotografia tem sido desde a sua invenção conotada de muitas formas com a morte. A morte está presente de muitas formas no processo fotográfico. Não será de admirar a importância desta conotação na Câmara Clara de Barthes, se tivermos em conta que o livro é conduzido por um conjunto de fotografias da sua mãe, que teria falecido há pouco, e em particular pela tal fotografia da sua mãe ainda criança no Jardim de Inverno.

No fundo, o que vejo na fotografia que me tiram (a intenção, segundo a qual a olho), é a Morte (32) Não é no entanto (parece-me), pela pintura que a fotografia participa na arte, é pelo Teatro…através de um circuito singular: a Morte (52, 53) Se a fotografia se torna horrível, é porque certifica, por assim dizer, que o cadáver está vivo, enquanto cadáver: é a imagem viva de uma coisa morta. ..Atestando que o objecto foi real, ela leva sub-repticiamente a pensar que ele está vivo, devido a essa armadilha que nos faz atribuir ao Real um valor absolutamente superior, como que eterno. Mas, deslocando esse real para o passado (isto foi) ela sugere que ele está morto.(112)

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Na fotografia a imobilização do tempo só se apresenta de um modo excessivo, monstruoso daí a relação com o Quadro Vivo, cujo protótipo mítico é o adormecimento da Bela Adormecida) (128) Todos esses jovens fotógrafos que se agitam no mundo, dedicando-se à captação da actualidade, não sabem que são agentes da Morte. (129) A Vida|a Morte: o paradigma reduz-se a um simples disparo, aquele que separa a pose inicial do papel final (130) O que vai ser abolido com esta foto que amarelece, empalidece, que se apaga e que um dia será deitada ao lixo… Não apenas a vida (isto foi vivo, posado vivo diante da objectiva) mas também por vezes, como dizer, o amor (132) Sei agora que existe um outro punctum além do “pormenor”. Este novo punctum já não é forma, mas intensidade, é o Tempo, é a ênfase dolorosa do noema “isto foi”, a sua representação pura (133)… o punctum é “ele vai morrer”. A fotografia diz-me a morte no futuro (135) Quer o sujeito tenha ou não morrido toda a fotografia é esta catástrofe (133) Este punctum lê-se nitidamente na fotografia histórica: há sempre nela um esmagamento do Tempo; isto está morto e isto vai morrer. (135)

Há na fotografia esta contradição insolúvel. Perante a ilusão de eternidade que parece prometer, constitui uma prova da nossa efemeridade, um testemunho de que aquele passado existiu mas que desapareceu. De cada vez que vejo fotografias do século XIX ou do princípio do século XX sou

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fustigado por uma ideia perturbadora: toda aquela gente que nos olha, anda, brinca, corre, ri, está morta, já não existe. Sobretudo ao olhar os rostos sorridentes e felizes das crianças… Num nível mais metafórico a fotografia, tal como a morte, é um sequestro de um objecto ou de uma pessoa deste mundo para outro mundo. Tal como a morte a fotografia é imediata e irreversível, uma descontinuidade no tempo, um corte no referente, um espectro. Mas Barthes vai mais longe e defende que a fotografia poderia explicar a atitude da s sociedades contemporâneas perante a morte

Porque, historicamente, a fotografia deve ter alguma relação com a “crise da morte”, que começa na segunda metade do sec. XIX; (129) Porque numa sociedade a Morte tem de estar em qualquer lado; se ela já não está (ou está menos) no religioso, deve estar em qualquer outra parte. Talvez nessa imagem que produz a Morte, pretendendo conservar a vida (130) A fotografia corresponderia talvez à intrusão, na nossa sociedade moderna, de uma morte assimbólica, fora da religião, fora do ritual (130)

Achando interessante esta abordagem, confesso que não me parece que Barthes apresente argumentos que sustentem a hipótese que defende, para além da coincidência temporal. A reflexão em torno da atitude contemporânea perante a morte foi o ponto de partida para um projecto em 1999, chamado “Hora Sua”, que realizei com a cumplicidade da Regina Guimarães, que seleccionou um conjunto de textos poéticos sobre a morte desde a Idade Média até hoje Em 1996 pediram-me para visitar e fotografar o Museu do Instituto de Medicina Legal no Porto, para ilustrar um dos trabalhos que integrava a primeira revista da Gesto, a “Camaleão”, cujo tema era a morte. Ao fotografar aqueles corpos conservados em formol, dentro de frascos de vidro, ao contrário do medo, da repugnância, ou pelo menos da

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incomodidade de que estava à espera, a minha sensação mais forte foi de uma profunda emoção estética, perante a beleza e a harmonia daquelas peças, como se tratasse de esculturas ou objectos de Arte, criações humanas onde o homem pretendesse copiar os Deuses. Confesso que essa sensação apesar de agradável me perturbou de seguida, pois contrariava tudo aquilo que eu esperaria sentir.

Uma profunda emoção estética, perante a beleza e a harmonia daquelas peças

Mas essa não incomodidade levantou outras questões, incomodou-me. Até então pensava que o meu distanciamento da morte e dos seus rituais resultava de uma atitude racional/ materialista/ progressista que se traduzia em recusar as superstições e crendices que lhe estavam associadas. A incomodidade, mesmo medo irracional, que a morte, os seus lugares e instrumentos me provocavam, interpretava-as como resquícios de uma educação e prática católicas da minha infância e adolescência. Foi essa incomodidade e esse medo residuais que me fizeram a princípio recear a sessão fotográfica que me pediram para realizar no museu do Instituto. E foi o facto de não ter sentido nem medo nem incomodidade ao fotografar que me fez, pela primeira vez, reflectir se a minha atitude seria tão racional e

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progressista ou, pelo contrário, um mero reflexo de uma atitude banalizada/generalizada da sociedade contemporânea perante a morte. Muitas vezes temos alguma coisa à nossa frente, mas como sempre lá esteve não nos chama a atenção. Transforma-se numa espécie do fantasma bem-educado do poema da Natália Correia e, curiosamente, só quando essa coisa desaparece conseguimos observá-la e interrogarmo-nos acerca dela, tal como só a noite nos permitiu aproximar do sol e das estrelas e compreender o universo. O livro História da Morte no Ocidente de Philippe Ariés, recomendado por uma amiga, permitiu-me compreender que a atitude do mundo ocidental em relação à morte se modificara muito ao longo do tempo. Desde a Antiguidade até ao nosso século, as modificações processaram-se sempre muito lentamente e, por isso, não temos consciência delas porque ultrapassam a nossa capacidade de memória colectiva. E nos nossos dias apesar de se assistir a modificações profundas e muito mais rápidas temos todavia tendência a aceitar como eternos e indiscutíveis atitudes e comportamentos que são por vezes bastante recentes. Essas transformações na atitude dominante em relação à morte estão associadas, como seria natural, a modificações sociais, culturais, religiosas, económicas e políticas. Desde o início da era cristã até ao fim da Idade média, período que Philippe Ariés no seu estudo designa por período da morte domesticada, a morte era aceite com inteira naturalidade: a morte era familiar, próxima; o homem aceitava-a como uma das grandes leis da espécie e não pensava nem em fugir-lhe nem em a exaltar. Mas desde então até aos nossos dias, em que a morte provoca medo, a ponto de nem nos atrevermos a pronunciar-lhe o nome, muita coisa mudou. No fim da Idade Média a morte adquire um sentido individual que não tinha até então: é o período que no estudo referido Philippe Ariés designa por a morte de si próprio; é então na morte que o homem se descobre e adquire a verdadeira consciência da sua identidade: os túmulos passam a ser identificados, surgem os testamentos como expressão das últimas vontades do moribundo. A partir do século XVIII a atitude modifica-se: a morte é exaltada, dramatizada, impressionante e dominadora. Para os românticos o que conta é sobretudo a morte do outro. Aparecem as tradições de visitas aos cemitérios. Mas no século XX a atitude perante a morte vai alterar-se completamente. A morte, outrora natural e sempre presente, vai desvanecer-se e desaparecer. Torna-se vergonhosa e interdita. Para alguns autores o tabu da morte nos nossos tempos substitui o tabu sexual de outros tempos. O incómodo provocado pela fealdade da morte, perturbando uma vida que tem de ser sempre feliz, ou pelo menos parecê-lo, numa sociedade de consumo, é intolerável. Assim

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a morte acontece de preferência longe dos familiares e dos amigos, as crianças são afastadas; um desgosto demasiado visível já não inspira piedade mas repugnância: é considerado mórbido! Nas palavras de Ariés no estudo referido “o luto solitário e envergonhado é o único recurso, como uma espécie de masturbação...”. Mas, na opinião de Ariés esta nova atitude não resulta de maneira nenhuma de uma indiferença em relação aos mortos, podendo-se mesmo supor que o recalcamento do desgosto que a sociedade hoje impõe torna muito mais difícil a perda do ente querido e tornam muito mais difícil o nosso convívio com a morte. Se os argumentos de Ariés me parecem compreensíveis, tenho alguma dificuldade em perceber o papel que a fotografia poderá ter desempenhado neste processo cultural, tal como Barthes parece defender. Mas se a ideia de morte está presente na fotografia, tal não significa que essa tenha de ser a ideia dominante em todos os projectos fotográficos. Onde tantos vêem o congelamento do tempo, o instante roubado à vida, a fotografia como sinal de morte, pode-se também muitas vezes ver um tempo que flui como uma paisagem vista à janela de um comboio que roda lentamente sobre os carris, um vestígio de algo que se transforma e sempre de alguma coisa que se inicia.

8 Em jeito de conclusão Tenho de confessar que a releitura de Barthes constituiu de certa forma uma desilusão para mim, ao não encontrar respostas para a maioria das questões que hoje se me colocam perante a fotografia, ainda que essa leitura tenha sido importante, ao ter propiciado esta reflexão. As ideias chave para Barthes, quando procura analisar a essência da fotografia, são:

• O conceito de referente e da forma como adere como uma lapa à fotografia

• O “isto foi” como essência da fotografia. A fotografia é realidade e é passado

• O pormenor que fere, o punctum, que permite distinguir as fotografias de que realmente gostamos, como resultado de um mero acaso

• A fotografia como procura da surpresa, ou a descoberta do oculto

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Imagino que o gesto essencial do Operator é surpreender alguma coisa ou alguém…em revelar o que estava tão bem escondido, que o próprio autor desconhecia ou de que não estava consciente…toda uma gama de surpresas (54) O fotógrafo tal como um acrobata deve desafiar as leis do provável ou até do possível (56)

Ao longo do ensaio estas quatro ideias simples são repetidas e repetidas à exaustão, muitas vezes em partes distintas do livro. Mas estas ideias, se relevantes, permitem perceber apenas uma parte da fotografia, talvez a parte quantitativamente mais importante, mas qualitativamente porventura menos interessante. Para além deste aspecto fundamental que caracteriza o livro Câmara Clara – o livro só aborda um conjunto de fotografias, não toda a fotografia – há um outro aspecto que me parece importante realçar. O livro é muitas vezes – talvez quase sempre – um exercício muito pessoal e subjectivo sobre a experiência de Barthes com a fotografia. Mas esse facto, que me parece evidente numa leitura mais atenta, poderá passar despercebido a muitas pessoas, apesar de o próprio Barthes algumas vezes lançar pistas sobre esse facto:

Resolvi tomar como ponto de partida da minha investigação apenas algumas fotos, aquelas que eu estava certo de existirem para mim (22) Não gosto do humor nem na música nem na fotografia (55) Os interesses ajuizados que certas fotos despertavam em mim (64) Decidi então “tirar” toda a fotografia (a sua natureza) da única foto que verdadeiramente existia para mim (104)

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Eu passava para além da irrealidade da coisa representada, entrava loucamente no espectáculo, na imagem, abraçando o que está morto, o que vai morrer (160)

Sendo uma reflexão pessoal sobre a forma como Barthes vê e sente as “suas” fotografias, tem de ser entendido como tal, e parece-me difícil pretender extrapolar grande parte do que ele escreve como verdades absolutas e insofismáveis para a fotografia. Para além das questões polémicas que o livro enuncia, e que tentei colocar no branco do papel nos capítulos anteriores, existem também algumas contradições que porventura revelam mais uma vez o carácter subjectivo do texto. Vejamos apenas algumas dessas contradições. Por um lado para Barthtes a fotografia não pode ser aprofundada, só podemos varrê-la com o olhar, não mostra mais do que lá está

É pois necessário aceitar esta lei: não posso aprofundar, aprender a fotografia. Apenas posso varrê-la com o olhar, como uma superfície tranquila. A fotografia é crua, em todos os sentidos da palavra, eis o que tenho de admitir (147)

Mas, por outro lado, Barthes afirma a determinada altura, a propósito da fotografia de A. Kertetz, explicando a razão por que ela tinha sido proibida no EUA . As fotografias de Kertetz “falavam demasiado, faziam reflectir, sugeriam um sentido – um sentido diferente da palavra. E conclui:

A Fotografa é subversiva não quando assusta, perturba ou estigmatiza, mas quando é pensativa (61)

Ao comparar a fotografia com o cinema afirma peremptoriamente que na fotografia ao contrário do cinema não existe campo cego. Tudo o que a fotografia mostra e sugere está encerrado nas margens da fotografia.

Page 42: Câmara Obscura - sobre livro Câmara Clara de Barthes

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Perante milhares de fotos, mesmo as que possuem um bom studium, eu não sinto qualquer campo cego (83)

Mas noutro ponto do livro, ao descrever as qualidades do punctum, acaba por afirmar

O punctum faz sair a personagem da fotografia (85) A presença desse campo cego é o que distingue a foto erótica da foto pornográfica. (85) O punctum é então uma espécie de fora de campo subtil, como se lançasse o desejo para além daquilo que dá para ver (83, 85)

Ao comparar a fotografia com o Haiku, Barthes afirma preto no branco

Nem o Haiku nem a Foto fazem sonhar (75)

Mas ao descrever a forma de ver uma fotografia refere várias vezes a necessidade de fechar os olhos.

Fechar os olhos, deixar que o pormenor suba sozinho à consciência afectiva (82)

Fechar os olhos para ver com o coração? Para concluir o livro de Barthes é importante ao reflectir sobre a fotografia, ou melhor sobre alguma fotografia, mas deixa em aberto todas as questões sobre a fotografia, fora da fotografia de que se ocupa. Porque a fotografia, tal como a história nos ensina para outras formas de expressão, pode ser transformada em quase tudo, utilizada para múltiplos fins, claro que condicionada à natureza do próprio meio. Basta para tal vontade e imaginação.