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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS COMPARADOS DE LITERATURAS DE LÍNGUA PORTUGUESA ALEXANDRE GOMES NEVES Câmara Cascudo e Oscar Ribas: diálogos no Atlântico São Paulo 2008

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS COMPARADOS DE

    LITERATURAS DE LNGUA PORTUGUESA

    ALEXANDRE GOMES NEVES

    Cmara Cascudo e Oscar Ribas: dilogos no Atlntico

    So Paulo 2008

  • 2

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS COMPARADOS DE

    LITERATURAS DE LNGUA PORTUGUESA

    Cmara Cascudo e Oscar Ribas: dilogos no Atlntico

    Alexandre Gomes Neves Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Estudos Comparados de Literaturas de Lngua Portuguesa do Departamento de Letras Clssicas e Vernculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Mestre em Letras. Orientador: Profa. Dra. Rita Chaves

    So Paulo 2008

  • 3

    Para Vera

  • 4

    AGRADECIMENTOS

    CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior, pela

    bolsa concedida.

    Rita Chaves, por me fazer conhecer as Literaturas Africanas de Lngua

    Portuguesa e por me orientar neste trabalho.

    Aos Professores Vagner Gonalves Silva e Tnia Celestino de Macedo, pelas

    crticas e sugestes decisivas.

    Ao amigo Antonio Pereira, pelo apoio e primeiras leituras de cada etapa desta

    dissertao.

    Camila Zanon, pela amizade e generosidade nos muitos auxlios que me ofereceu.

    Juliana Florentino, pela amizade e pela reviso do texto.

    Aos colegas do Programa de Ps-graduao em Estudos Comparados de Literaturas

    de Lngua Portuguesa, pelo dilogo sempre rico e afetuoso.

  • 5

    RESUMO

    NEVES, Alexandre Gomes. Cmara Cascudo e Oscar Ribas: dilogos no

    Atlntico. 2008. Dissertao (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias

    Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2008.

    O presente trabalho tem por objetivo propor aproximaes entre os autores Cmara

    Cascudo e Oscar Ribas. O primeiro pertencente ao sistema literrio brasileiro e o segundo

    ao angolano. Buscamos a comparao entre ambos, considerando as semelhanas entre seus

    percursos. Ao longo de suas carreiras, os autores dividiram-se entre a produo literria e a

    pesquisa folclrica. A proposta que executamos apropria-se do conceito de macrossistema

    literrio defendido por Benjamin Abdala Jnior. Em sua perspectiva, macrossistema

    definido pelos contatos que podem ser estabelecidos entre os sistemas literrios nacionais

    no contexto das literaturas de lngua portuguesa. Nosso estudo centra-se sobre dois

    romances: Canto de muro (1959) de Cmara Cascudo e Uanga (feitio) (1951) de Oscar

    Ribas. A anlise destas obras nos permite apreciar textos fracionados entre o fazer literrio

    e o compromisso com a divulgao de dados de pesquisa. A dualidade nas carreiras dos

    intelectuais espelhada na composio de seus romances. Realizamos tambm uma leitura

    do livro de ensaios Made in frica (1965) de Cmara Cascudo, no qual nos deparamos com

    um Cascudo leitor de Oscar Ribas e preocupado com os matizes africanos da cultura

    brasileira.

    Palavras-chave: Cmara Cascudo; Oscar Ribas; macrossistema literrio.

  • 6

    ABSTRACT

    NEVES, Alexandre Gomes. Cmara Cascudo e Oscar Ribas: dilogos no

    Atlntico. 2008. Dissertao (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias

    Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2008.

    The present work aims to propose some relations between the writers Cmara

    Cascudo and Oscar Ribas considering the similarity in their literary journey, the former

    belonging to the Brazilian literary system and the latter to the Angolan literary system.

    During their careers, those writers dedicated themselves to the literary production as well as

    the research on folklore. The study approach is the concept of literary macrosystem

    defended by Benjamin Abdala Jnior, which is defined by the contacts that can be

    established among the national literary systems in the context of Portuguese-language

    literatures. It focuses on two novels, Cmara Cascudo's Canto de muro (1959) and Oscar

    Ribas's Uanga (feitio) (1951). The analysis of both works allows us to appreciate texts

    parceled into the literary making and the commitment to publishing their researches. That

    dualism in both intellectual careers is reflected in the composition of their novels. The

    reading of Cmara Cascudo's essay book, Made in frica (1965), has allowed us to see

    Cmara Cascudo as a reader of Oscar Ribas's works and a writer concerned about the

    African hue of Brazilian culture.

    Keywords: Camara Cascudo; Oscar Ribas; literary macrosystem.

  • 7

    SUMRIO

    Introduo........................................................................................................ 9

    Captulo 1

    Canto de muro e Uanga (feitio): o entrecruzar de estilos discursivos. .....15

    1.1 Entre personagens e objetos de pesquisa:

    nos aproximando de Canto de muro...........................................................16

    1.2 Dilogo com um narrador-autor naturalista..............................................22

    1.3 Os tons da voz do professor........................................................................26

    1.4 Ribas: entre a narrao de uma trama e a documentao de tradies....28

    1.5 Uanga (feitio): dilogo com um narrador-autor etngrafo......................32

    Captulo 2

    Colecionadores, arquivistas ...........................................................................38

    2.1 Cultura popular: algumas notas..................................................................38

    2.2 Canto de muro no conjunto da obra de Cmara Cascudo..........................47

    2.3 Oscar Ribas: primeiros arquivos.................................................................57

    Captulo 3

    Literatos ...........................................................................................................64

    3.1 A recepo crtica de Oscar Ribas...............................................................64

    3.2 Um breve passeio pela obra de Oscar Ribas................................................67

    3.3 A recepo crtica de Cmara Cascudo........................................................72

    3.4 Outro breve passeio: algumas obras de Cmara Cascudo...........................75

    3.5 Cmara Cascudo e Oscar Ribas: literatos....................................................78

    Captulo 4

    Canto de muro e Uanga (feitio): contradies ...............................................86

    4.1 O conservadorismo em Canto de muro..........................................................86

    4.2 Uanga (feitio)...............................................................................................95

    4.3 Gentes ignaras x Erudio popular......................................................99

  • 8

    Captulo 5

    Cmara Cascudo e Oscar Ribas: dilogos no Atlntico................................105

    5.1 A intertextualidade de Made in frica......................................................... 107

    5.2 Relaes frica Brasil: notcia de alguns estudos.....................................119

    Concluses .........................................................................................................123

    Bibliografia dos autores....................................................................................127

    Bibliografia utilizada.........................................................................................138

  • 9

    Introduo

    Vamos chamar o vento Vamos chamar o vento Vento que d na vela Vela que leva o barco Barco que leva a gente (O vento, Dorival Caymmi)

    Estes belos versos de O vento de Dorival Caymmi, sem dvida um poeta ainda

    por ser examinado para alm da fora da cano, nos embalam como msica de fundo nas

    travessias que realizaremos em busca da outra margem do Atlntico. Em busca de um autor

    que dedicou a sua vida para registrar os movimentos da cultura popular de Angola. A obra

    de Oscar Ribas um arquivo de memrias no qual podemos desvendar os ritmos e os

    gestos das danas populares; os repertrios narrativos e poticos que preenchem as noites

    no entorno da fogueira; os rituais de nascimento e morte; toda a sorte de imaginrios

    pertencentes s identidades dos homens de sua terra natal. De volta s margens do nosso

    territrio, com os ventos e as velas do mesmo barco regressamos ao encontro de Cmara

    Cascudo, autor que igual e exaustivamente empenhou-se, ao longo de sua vida, em nos

    fornecer arquivos nos quais podemos nos embrenhar para o conhecimento das culturas

    populares brasileiras. Religio, alimentao, objetos do cotidiano, gestuais, narrativas orais,

    nada esteve fora do foco deste que considerado nosso folclorista maior.

    Estes nossos pesquisadores em cultura popular assemelham-se tambm por terem

    realizado incurses no gnero romance. Referimo-nos ao Canto de muro (1959), de Cmara

    Cascudo e Uanga (feitio) (1951), de Oscar Ribas. Nosso trabalho apresenta-se como

    crtica literria a estas obras que constituem peas nicas no conjunto da produo dos

    autores. Relacion-las contribui para a apreciao de cada obra em particular, e nos permite

    contemplar semelhanas entre dois autores pertencentes a distintos e entrelaados sistemas

    literrios, o brasileiro e o angolano, nos inserindo na proposio terica de Benjamin

    Abdala (2007).

  • 10

    O conceito de macrossistema literrio proposto por Abdala, parte do conceito de

    sistema definido por Antonio Candido em Formao da literatura brasileira: momentos

    decisivos. Nada melhor do que trazer as palavras do mestre:

    Para compreender em que sentido tomada a palavra formao, e porque se qualificam de decisivos os momentos estudados, convm principiar distinguindo manifestaes literrias, de literatura propriamente dita, considerada aqui um sistema de obras ligadas por denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas dominantes duma fase. Estes denominadores so, alm das caractersticas internas, (lngua, temas, imagens), certos elementos de natureza social e psquica, embora literariamente organizados, que se manifestam historicamente e fazem da literatura aspecto orgnico da civilizao. Entre eles se distinguem: a existncia de um conjunto de produtores literrios, mais ou menos conscientes do seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de pblico, sem os quais a obra no vive; um mecanismo transmissor, (de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns a outros. (CANDIDO, 1959, p.17)

    Segundo Antonio Candido, o conjunto destes trs elementos, autor, pblico e a

    linguagem que liga os autores forma o sistema literrio. Um sistema de comunicao inter-

    humana em que os homens representam e interpretam suas realidades. A estes elementos o

    professor acrescenta a importncia da tradio. preciso que os conjuntos de autores de um

    determinado tempo se conecte a outros conjuntos de tempos anteriores, para aceit-los ou

    rejeit-los. Isto garante a continuidade literria.

    As manifestaes literrias referem-se s obras que, ainda que grandiosas,

    permanecem isoladas, fora das articulaes definidas pela idia de sistema. So obras

    plenamente vinculadas inspirao de um indivduo ou ao contato com literaturas

    estrangeiras, mas cujos autores no esto integrados entre si e nem a um pblico leitor.

    Como nos diz Abdala, ao iniciarmos o estudo das literaturas de lngua portuguesa

    nos damos conta de uma histria comum marcada pela colonizao. Temos assim, entre

    Portugal, Brasil e os pases africanos de colonizao portuguesa, uma aproximao

    estabelecida pelo uso do mesmo cdigo lingstico. dentro dessa dinmica da

    comunicao em portugus que Abdala propor a existncia de um macrossistema

  • 11

    marcado como um campo comum de contatos entre os sistemas literrios nacionais.

    (ABDALA, 2007, p.35)

    Nas literaturas africanas de lngua portuguesa encontraremos conjuntos de autores

    conectados entre si e j possuidores de um repertrio nacional que lhes fornece uma

    tradio. Alm disso, tambm se conectam com conjuntos de autores brasileiros e

    portugueses e aos pblicos j existentes fora de seus territrios nacionais. Ao construrem

    uma literatura em lngua portuguesa, angolanos, moambicanos e cabo-verdianos, contam

    com um repertrio em portugus de Portugal e Brasil. E contam tambm com os pblicos

    destes pases aproximados pela lngua.

    Tal fato nos leva a aproximar os trabalhos de Cmara Cascudo e Oscar Ribas tendo

    em vista similaridades contextuais: ambos iniciam suas carreiras na literatura e ambos se

    dividem entre a literatura e a pesquisa em cultura popular.

    A proposio terica de Abdala privilegia autores considerados engajados. Ou seja,

    autores cuja produo literria busca a ruptura com a dominao exercida pela metrpole

    portuguesa. Neste sentido so textos que buscam os fundamentos para a construo de uma

    identidade nacional. Nas palavras do professor:

    O processo de aculturao do colonialismo portugus visava a desculturao dos outros povos. Se Portugal imps seus padres, tambm foi marcado, por sua vez, pelo sistema que estabeleceu, ao voltar-se obsessivamente para o sonho do ultramar. Desprendeu-se em parte da Europa e tambm foi envolvido pela veiculao de patterns literrios que circulavam em lngua portuguesa. Temos hoje sistemas nacionais que no se conformam a hegemonias neocoloniais ou, mesmo, imperialismos, quando consideramos suas produes engajadas. (ABDALA, 2007, p. 37)

    Segundo o pesquisador, podemos verificar as trocas entre os sistemas literrios de

    lngua portuguesa, que incluem tambm a antiga metrpole, tratando-as com igual

    interesse, afastando-nos de qualquer idia ligada superioridade e dependncia. Assim,

    Abdala por num mesmo plano autores africanos posicionados contra o regime colonial

    portugus, autores portugueses contrrios ditadura salazarista e autores brasileiros cujas

    produes mostram-se afinadas com os nossos conflitos sociais, representando, em relao

    a estes conflitos, sempre uma possibilidade a mais de reflexo.

  • 12

    Neste estudo no contemplamos autores engajados no sentido trabalhado por

    Abdala. Veremos que Cmara Cascudo e Oscar Ribas so intelectuais imersos em

    profundas contradies. A representao de imagens da cultura popular em suas obras,

    muitas vezes, fazem do universo humano descrito algo de primitivo e extico.

    No entanto, a anlise dos romances nos permitir nuanar esta idia. Cmara

    Cascudo, ao coadunar vozes populares com vozes eruditas registra a possibilidade de

    ambas constiturem saberes dignos de citao. Oscar Ribas, a partir do encontro com

    saberes populares e tradicionais do seu contexto, registra formas de cultura que a violncia

    do governo colonial tentara rasurar.

    Veremos que os autores executam movimentos opostos. Podem tanto dignificar o

    popular quanto coloc-lo na esfera do primitivo e do extico. A apreciao crtica destes

    autores permitir compreender melhor a posio que ocupam em cada sistema literrio.

    Permitir tambm a introduo de um tema a ser perseguido para a compreenso do

    macrossistema, ou seja, a cultura popular, seus significados, suas possibilidades, suas

    interpretaes pelos intelectuais de cada sistema nacional.

    Nosso trabalho est dividido em cinco captulos. No primeiro, Canto de muro e

    Uanga (feitio): o entrecruzar de estilos discursivos, nos debruamos sobre a estrutura

    destes livros que se encontram divididos entre o traado ficcional e divulgao de dados de

    pesquisa.

    No segundo captulo, Colecionadores, arquivistas, buscamos, num primeiro

    momento, algumas notas sobre o conceito de cultura popular, de modo que possamos

    compreender melhor o quadro intelectual em que nossos pesquisadores se inserem; e, num

    segundo momento, promovemos uma articulao entre os romances e o conjunto de suas

    obras.

    No terceiro captulo, Literatos, o interesse que nos move dirige-se para as

    carreiras de Cmara Cascudo e Oscar Ribas, de modo a compreender que o fazer literrio

    sempre esteve presente em suas publicaes, ainda que numa viso de conjunto as obras

    dedicadas investigao em cultura popular sejam mais numerosas e mais significativas.

    No quarto, Canto de muro e Uanga (feitio): algumas contradies, os livros so

    vistos em conjunto nos seus pontos conservadores. Canto de muro ao se propor como

    crtica ao homem moderno, evoca em seu ltimo captulo valores tradicionais vinculados

  • 13

    religio e fora moral vista na famlia. Uanga (feitio), ao pr as culturas europias em

    alta conta, prende o homem angolano nos grilhes do primitivismo, indo de encontro a

    perspectivas de obras contemporneas suas que colocavam o homem angolano como

    sujeito histrico, repleto de paixes e ideais. No entanto, consideramos que possvel

    nuanar estes aspectos conservadores.

    No quinto e ltimo captulo, deixamos as relaes entre os romances de lado para

    efetuarmos uma leitura crtica de Made in Africa de Cmara Cascudo. Este ttulo irnico de

    Cascudo que nos sugere um universo ps Segunda Guerra Mundial, em que os

    estadunidenses se insurgiram num novo imperialismo e boa parte dos bens simblicos e

    materiais passaram a ser made in USA, nos prope que muitas importaes nossas vm do

    continente africano. Assim, Made in Africa buscar as relaes culturais entre Brasil e

    frica, principalmente entre Brasil e Angola.

    Neste livro, encontraremos um Cmara Cascudo leitor de Oscar Ribas e um caso de

    intertextualidade a ser explorado e refletido na histria das nossas relaes histricas e

    literrias com Angola. Apenas apontamos para a importncia deste livro, merecedor de

    trabalhos que o investiguem mais a fundo.

    Julgamos pertinente acrescentar a esta introduo algumas notas que esclarecem o

    percurso de chegada aos autores e proposta do trabalho.

    Desde o segundo ano do curso de Letras interessamo-nos pelas Literaturas

    Africanas passando a ler alguns autores e a freqentar os cursos oferecidos nesta rea.

    Pensamos ser fundamental voltarmo-nos, j no mbito da graduao, para os estudos

    africanos. Considerando as relaes histricas entre frica e Brasil e a necessidade de

    levarmos conhecimentos sobre frica para o ensino de formao bsica, urgente que

    assumamos a responsabilidade de levar adiante tais estudos, sobretudo se considerarmos o

    quanto ainda so escassos ou pouco divulgados.

    No curso de Introduo aos Estudos Comparados de Literaturas de Lngua

    Portuguesa, oferecido pelo professor Benjamim Abdala, foi que nasceu o desejo de

    trabalhar com o tipo de comparatismo proposto neste curso. Um comparatismo

    fundamentado nas relaes histrico-culturais entre os pases de lngua portuguesa e que se

    propunha tambm como articulao poltica num mundo dominado por fortes blocos

    econmicos que continuam estendendo suas influncias no plano cultural.

  • 14

    O interesse pela obra de Oscar Ribas nasceu com a leitura de Formao do romance

    angolano, de Rita Chaves, em que as contradies deste autor nos so apresentadas pela

    pesquisadora. Foi a contradio entre propor um jogo prprio e fazer o jogo do outro (o do

    colonizador) que chamou a nossa ateno para este escritor. A aproximao com Cmara

    Cascudo foi uma sugesto do professor Carlos Serrano, numa conversa informal no Centro

    de Estudos Africanos USP. Nesta conversa fez-nos saber das relaes entre Cmara

    Cascudo e Oscar Ribas e do contato entre ambos numa viagem que Cascudo fizera frica

    em 1963 e que resultara no livro Made in Africa; livro que traz texto de Ribas sobre o

    cafun. De fato, o folclorista angolano uma presena constante nos ensaios deste livro, o

    que nos permite ir ao encontro de um Cascudo leitor de Ribas.

  • 15

    Captulo 1

    Canto de Muro e Uanga (feitio): o entrecruzar de estilos discursivos.

    No difcil e instigante ensaio de Anatol Rosenfeld, Literatura e Personagem, o

    intelectual inicia suas consideraes tericas lembrando-nos que a literatura, numa acepo

    lata, tudo o que aparece fixado por meio de letras. (ROSENFELD, 2007, p. 11) Porm,

    dentro deste vastssimo campo que se abre, encontramos o que podemos chamar de belas

    letras. Segundo o autor, bem menos caracterizada pela beleza das letras do que pelo seu

    carter ficcional e imaginrio. Carter este no suficiente para determinar o campo literrio,

    j que podemos nos ver diante de textos no ficcionais, cuja beleza tecida pelo costurar dos

    elementos estilsticos nos faz al-los categoria de obras de arte. Caso emblemtico na

    literatura brasileira so Os Sertes, de Euclydes da Cunha. Do cenrio angolano mais

    recente, podemos indicar uma obra como Vou l visitar pastores de Ruy Duarte de

    Carvalho.

    A despeito da distncia no tempo - Os Sertes fora publicado em 1902 e Vou l

    visitar pastores um livro de 1999 - e da diferena de contextos histricos, possvel

    apontar certa convergncia entre estas obras: em ambas figuram autores que, mergulhando

    nas cincias do social, no dispensam o apuro esttico ao entrelaarem uma certa

    diversidade de saberes cientficos. Esses dois ensaios, a um tempo s, sociolgico,

    histrico, geogrfico, jornalstico, etc, constituem narrativas excepcionais, cuja

    classificao impe dificuldades, pois nem sempre sabemos onde encaix-las com

    perfeio, se entre as obras de referncia, se entre as literrias.

    A breve referncia a Euclydes da Cunha e a Ruy Duarte de Carvalho nos serve de

    motivo (no sentido musical) e de inspirao para executarmos a nossa composio.

    Seguindo as consideraes do ensaio de Anatol Rosenfeld (2007, p.17), nos

    deparamos com a seguinte idia de base:

    Uma das diferenas entre texto ficcional e outros textos reside no fato de, no primeiro, as oraes projetarem contextos objectuais e, atravs destes, seres e mundos puramente intencionais, que no se referem, a no ser de modo indireto, a seres tambm intencionais (onticamente

  • 16

    autnomos), ou seja, a objetos determinados que independem do texto. Na obra de fico, o raio da inteno detm-se nestes seres puramente intencionais, somente se referindo de um modo indireto e isso nem em todos os casos a qualquer tipo de realidade extraliterria. J nas oraes de outros escritos, por exemplo, de um historiador, qumico, reprter, etc., as objectualidades puramente intencionais no costumam ter por si s nenhum (ou pouco) peso ou densidade, uma vez que, na sua abstrao ou esquematizao maior ou menor, no tendem a conter em geral esquemas especialmente preparados de aspectos que solicitam o preenchimento concretizador.

    Por contextos objectuais devemos entender a caracterizao dos seres e dos objetos

    presentes num texto. Tal caracterizao nos leva composio de um dado universo, seja

    ele imaginrio ou concreto. Numa obra cientfica os signos remetero a uma realidade

    emprica ou passvel de comprovao atravs de mtodos criados no mbito da prpria

    cincia; numa obra literria, cujo princpio fundador reside na criao, na imaginao livre,

    os seres e objetos a representados pelo signo prescindem da averiguao, pois existem de

    um modo puramente intencional referindo-se apenas de modo indireto a uma realidade

    extraliterria, como diz o autor.

    Os textos selecionados para este estudo, Canto de Muro de Cmara Cascudo e

    Uanga (feitio) de Oscar Ribas, nos colocam diante de um problema de forma, pois so

    textos que se valem de estratgias ficcionais objetivando o conhecimento de realidades

    extraliterrias. Cmara Cascudo e Oscar Ribas so autores com uma interessante produo

    no campo das cincias do social que ao produzirem textos ficcionais tecem um cruzamento

    de procedimentos de campos distintos da escrita, promovendo articulao entre os dados

    provenientes da observao cientfica (portanto os dados da experincia concreta) e o

    projeto literrio.

    1.1 Entre personagens e objetos de pesquisa: nos aproximando de Canto de muro

    No canto do muro tijolos quebrados, cobertos pelos cacos de telhas ruiva, aprumam-se numa breve pirmide de que restos de papel, pano e palha disfaram as entradas negras da habitao coletiva desde o trreo, domnio dual de Titius, o escorpio, e de

  • 17

    Licosa, aranha orgulhosa, at o ltimo andar onde mora um grilo solitrio e tenor. (...)

    No meio do quintal a mangueira estende a galharia robusta, derramando sombra e agasalho. uma rvore bem velha, alta e copada mas de frutos azedos e reduzidos. Aquela imponncia ornamental basta para justificar a presena poderosa. Os frutos carecem de importncia para ela. No deseja reproduzir a dinastia de porte lindo ou demasiado confia na solidariedade famlica dos pssaros e dos morcegos. Bem no centro h um oco, janelo ogival que a porta nobre de Sfia, a coruja noturna, misteriosa e venerada.

    H do lado um sapotizeiro denso e baixo onde ainda resiste ao redor do tronco um crculo carcomido de folha-de-flandres, posto ali h muitos anos, impedindo as subidas vorazes de Musi, proprietria de uma famlia de ratos insaciveis.

    Depois do sapotizeiro h uma goiabeira esqueltica e que teima, como fmea obstinada na fecundao, em cobrir-se de goiabas amarelas de polpa rubra e doce.

    No fim, hirto, senhorial, importante, o mamoeiro sacode o estirado caule bem alto, com uma coroa de folhas imveis, guardando o bando de mames compridos e desejados pela lonjura.

    Mamoeiro, sapotizeiro e goiabeira esto registrados nos livros graves como Carica papaya, L., mas o fruto lembrando uma grande mama conservou o aumentativo. Achras sapota, L., e Psidium guayava, Raddi, fecham a relao sisuda e definitiva.

    Ao p do sapotizeiro h um montezinho de pedras e a instalou seu escritrio o Cavalo-do-co que ainda no tomou conhecimento de pertencer aos Himenpteros pompildeos, raa guerreira e milenar. (CASCUDO, 1959, p.3-4)

    Canto de Muro possui vinte e cinco captulos, dos quais vinte e quatro so voltados

    para a apresentao e descrio dos hbitos dos personagens eleitos para este romance de

    costumes composto por Cascudo. No vigsimo quinto captulo o autor nos esclarece

    quanto ao que podemos apontar como uma inteno principal da obra, que criticar o que

    v de desrazo no progresso tcnico cientfico. Acompanhamos ao longo do texto as vidas

    de morcegos, ratos, corujas, galinhas, urubus, guaxinins, titius, canrios, corujas, aranhas,

    grilos, cobras, xexus, tapiucabas, entre outras espcies. A linguagem de Cascudo traada

    entre o potico e as asseres factuais do pesquisador. Ora nos convida a lidar com as

    referncias bibliogrficas e os termos cientficos resultantes de sua pesquisa - e expressivos

    da sua vastssima erudio -, ora nos delicia com imagens lricas baseadas em universos

  • 18

    desconhecidos para a maioria de ns, sempre nos fazendo repensar sobre os destinos da

    espcie humana, o que confere obra um indelvel carter filosfico.

    No trecho citado anteriormente, retirado do primeiro captulo, Canto de muro e

    seus moradores, a descrio das rvores e dos objetos que configuram o espao ainda que

    ornamentada com adjetivos que buscam o pictrico e por que no dizer pitoresco, no deixa

    de ser tambm a representao de um habitat natural cuidadosamente projetado pelo

    naturalista para que possa descrever os hbitos das espcies que pretende observar. Alis,

    este mesmo o ponto de vista do narrador. A linguagem potica que pinta o ambiente com

    cores quentes disfara o desejo de remeter o leitor a espcies concretas onde a natureza dos

    pssaros famlicos e das mangueiras que agasalham so fatos a serem retidos fora das

    configuraes simblicas que a linguagem literria normalmente possui. A introduo dos

    nomes cientficos das rvores no final do trecho nos confirma a anlise.

    Contudo, de modo algum queremos sugerir que no haja nenhum nvel de

    interveno criativa. O espao projetado pelo autor no a reproduo direta de um meio

    particular e existente de fato. O que queremos sugerir que o autor opera numa dialtica

    entre o imaginado e o observado, dotando a matria narrada de um carter sensvel sem

    retirar-lhe de todo a referncia extraliterria. De um lado temos um espao fictcio que,

    segundo o autor, o remontar de memrias da infncia e adjetivaes dotadas de tom

    irnico que conduzem a narrativa para o plano de uma prosa potica. De outro lado temos

    nas palavras de Tel Ancona Porto Lopes (2003, p.24) um romance que fixa elementos da

    fauna e da flora, uma geografia regional e explora ditos, sabenas e prticas do nordeste

    brasileiro. Tal movimento dialtico torna-se o principal matiz do texto podendo ser

    observado num dos nveis concretos da composio que so os usos vocabulares.

    Retomemos o ltimo pargrafo do trecho citado: Ao p do sapotizeiro h um

    montezinho de pedras e a instalou seu escritrio o Cavalo-do-co que ainda no tomou

    conhecimento de pertencer aos Himenpteros pompildeos, raa guerreira e milenar. Se

    por um lado temos a composio de metforas que emprestam ao Cavalo-do-co

    caractersticas humanas, por outro lado sua pertena mesmo ao ramo dos Himenpteros

    pompildeos. O processo de antropomorfizao no completamente realizado, de modo

    que o animal um misto de personagem e objeto de uma escrita que no dispensa o

    compromisso com a informao e o conhecimento didatizado. quase como se

  • 19

    estivssemos diante de um professor a nos dourar um conhecimento factvel para que este

    se nos torne mais vivo na memria.

    Anatol Rosenfeld (2007, p.20) nos dir que:

    Ainda que a obra no se distinga pela energia expressiva da linguagem ou por qualquer valor especfico, notar-se- o esforo de particularizar, concretizar e individualizar os contextos objectuais, mediante a preparao de aspectos esquematizados e uma multiplicidade de pormenores circunstanciais, que visam a dar aparncia real situao imaginria. paradoxalmente esta intensa aparncia de realidade que revela a inteno ficcional ou mimtica. Graas ao vigor dos detalhes, veracidade de dados insignificantes, coerncia interna, lgica das motivaes, causalidade dos eventos etc., tende a constituir-se a verossimilhana do mundo imaginrio. Mesmo sem alguns destes elementos o texto pode alcanar tamanha fora de convico que at estrias fantsticas se impem como quase reais.

    No texto de Cmara Cascudo reparamos que as operaes estilsticas se do em dois

    sentidos: o autor particulariza e universaliza os seres num mesmo plano. Ao mesmo tempo

    em que os nomeia, atribuindo-lhes aes e caractersticas humanas, transforma-os em

    exemplar de um conjunto cujos atributos j esto dados e fazem parte de outras instncias

    do conhecimento.

    Antonio Candido ao refletir sobre a gnese da personagem do romance nos

    informar que so trs os elementos primordiais do gnero: o enredo, a personagem e as

    idias. Por idias devemos entender os valores e os significados construdos no texto.

    Para o professor, dentre estes elementos avulta a personagem, que representa a

    possibilidade de adeso afetiva e intelectual do leitor, pelos mecanismos de identificaes,

    projeo, transferncia, etc. (CANDIDO, 2007, p.54) a personagem quem torna vivos o

    enredo e as idias.

    Considerando o processo de construo das personagens de Canto de Muro,

    podemos sugerir que a adeso do leitor no se d em relao ao personagem em particular,

    mas a uma certa perspectiva adotada pelo narrador naturalista, que nos leva a observar

    junto a ele cenas e seres normalmente ignorados pela mdia das pessoas. Utilizamos a

    expresso narrador naturalista, no sentido de observador de espcies da natureza. Como os

    seres descritos constituem amostras, exemplares que representam a espcie; o envolvimento

  • 20

    do leitor com o texto poder ser efetivado mais facilmente tendo em vista o conhecimento

    produzido pelo narrador.

    Acompanhemos o trecho seguinte retirado do segundo captulo do livro, Caada

    noturna.

    Toda a gente sabe que a plumagem das corujas macia e mole e por isso o seu vo silencioso. Inexplicavelmente as penas reais de Sfia so rijas e o seu vo perfeitamente audvel, percebendo-se o rangido, o atrito das asas fortes, denunciando aproximao da caadora.

    Sfia uma coruja no esplendor da fora, quatro anos de experincia de golpes e recursos individuais. Sabe calcular os terrenos onde a caa passar porque sendo de boa raa preadora no come carne morta. Precisa de bicho vivo, palpitante de sangue, estrebuchante sob suas garras que o imobilizam para fcil alvo s bicadas, golpeantes e certeiras.

    Sobrevoou o quintal vizinho, reconhecido pelo perfil do moinho de vento quebrado. Depois h o pomar que o esquadro de Quir elegeu para o assalto. Voou manso at o ltimo cajueiro e pousou, leve, no galho sombrio. Abriu a frincha das pupilas telescpicas, absorvendo a luz difusa, identificando o local em todas as minudncias. (...)

    Os morcegos foram descobertos pelo rudo de guiso ao longe. E tambm pela virada curva para descer, pertinho dos frutos escuros e ali ficar, parados, sugando a polpa depois de abrir, com impecvel roedura, o sulco reumador do sumo adocicado. (...)

    Quir roou o galho onde Sfia o espreitava, imvel. Rpida a coruja lanou-se no vo da caa, cortando o crculo descrito pelo morcego. Contava encontr-lo no ar num esbarro funesto. (CASCUDO, 1959, p.10)

    Ainda que no presente trecho, Sfia se distinga das outras corujas, pois possui

    penas rijas e vo audvel, enquanto o normal da espcie so penas macias e vo silencioso,

    a narrativa nos encaminha para hbitos comuns espcie, como a caada noturna que ser

    descrita ao longo do captulo. Somos postos diante de uma linguagem que utiliza recursos

    estilsticos do texto ficcional para encenar a realidade. A caada noturna de Sfia, a coruja,

    se por um lado recebe transfigurao pica, por outro no deixa de representar o prosaico

    do evento natural.

  • 21

    Para Tel Ancona Porto Lopes (2003, p.25) Canto de Muro trabalha com xito a

    intertextualidade em sua estrutura; alia a fico a dados absolutamente corretos da zoologia,

    da botnica, da histria, da mitologia, da geografia, permeados pelo folclore, e recolhe

    citaes de poetas amenizadoras do escopo didtico que disfaradamente se instala.

    O romance de Cmara Cascudo, no limite entre a fico e a no fico, constitui um

    tipo de narrativa que encontra seu sentido no conjunto da obra do escritor. Cada captulo

    em que descreve os animais que elege como personagens atravessado por dados de

    histria, geografia, biologia, etc, alm de aluses sabedoria popular. O autor circula o

    objeto em busca do maior nmero de faces. Em cada captulo registra-se o movimento

    ensastico dotado de perspectiva enciclopdica, bem ao gosto da escrita de Cascudo.

    Em relao sua escrita multiforme Vnia Gico (1998, p. 106) nos afirma que o

    conjunto da obra cascudiana, constitui um mosaico temtico que se aproxima do itinerrio

    de um bricoleur da cultura. A idia de um bricoleur contm uma grave fora

    interpretativa, na medida em que pode ser transferida do conjunto da obra para cada texto

    em si. Sobre o processo criativo de Cmara, Vnia Gico (1998, p.16) afirma:

    Seu processo de criao, exigia, sempre, o silncio da noite. Passava o dia pesquisando, recebendo visitas, fazendo pesquisa de campo. Escrevia de uma nica vez. No fazia borres, nem remontava textos. (...) No guardava consigo rascunhos nem originais. s vezes, quando os destinatrios ou mensageiros perdiam seus escritos, fazia outro texto, se estivesse inspirado. Caso contrrio, desistia e denunciava a perda nas correspondncias aos amigos.

    Cmara Cascudo utilizava tanto fontes orais quanto documentos escritos, alm de

    valer-se muito de informaes recolhidas atravs de correspondncias que enviava para

    amigos e outros pesquisadores. Em Canto de muro nos surpreendemos com a articulao

    das fontes diversas que faz unir numa mesma prosa, ditos populares com descries

    biolgicas, notas e citaes eruditas do campo da histria, da literatura, da filologia, etc,

    misturadas a locues populares. Mrio de Andrade (1991), em correspondncia ao autor,

    datada de 26 de novembro de 1925, refere-se fala de Cascudo nas cartas como

    serelepe. Muito embora o juzo ntimo de Mrio de Andrade diga respeito s cartas de

  • 22

    Cascudo, a penetrante sensibilidade do autor de Macunama destaca a escrita do intelectual

    potiguar que, irriquieta, percorre os mais diferentes saberes, conjuga as mais distintas

    fontes, numa espcie de ensasmo enciclopdico.

    1.2 Dilogo com um narrador-autor naturalista

    As consideraes que fizemos acerca da linguagem e da construo de personagens

    nos encaminham para apreciao do foco narrativo. O compromisso que o narrador possui

    com o conhecimento de uma realidade extraliterria ultrapassa o fazer ficcional dotando o

    texto de um certo carter didtico, instalado de modo disfarado, para retomar a formulao

    de Tel Ancona. A perspectiva professoral do narrador nos permite entrever marcas do

    prprio autor.

    No sempre iluminador manual de Wolfgang Kayser (1970), Anlise e Interpretao

    da obra literria, aprendemos a considerar a distncia entre narrador e autor. Para Kayser

    (1970, p.310) o autor oculta-se atrs de um outro narrador na boca do qual pe a

    narrao. O narrador , portanto, uma mscara do autor, mais um elemento dentro da

    narrativa a exigir anlise e interpretao.

    Segundo Maria Lcia Dal Farra (1978), Wayne Booth vai um pouco alm

    estabelecendo a categoria de autor-implcito. Este conceito nos parece bastante adequado

    para compreendermos o foco narrativo de Canto de muro, na medida em que as intruses

    do narrador e o prprio estilo da narrativa nos remetem a uma faceta do professor Cmara

    Cascudo, dramatizada na narrativa. Como observa Dal Farra (1978, p.20):

    Manejador de disfarces, o autor, camuflado e encoberto pela fico, no consegue fazer submergir somente uma sua caracterstica sem dvida a mais expressiva a apreciao. Para alm da obra, na prpria escolha do ttulo, ele se trai, e mesmo no interior dela, a complexa eleio dos signos, a preferncia por determinado narrador, a opo favorvel por esta personagem, a distribuio da matria e dos captulos, a prpria pontuao, denunciam a sua marca e a sua avaliao.

    Para a ensasta, entre o autor e o narrador de Kayser, Booth faz figurar o autor-

    implcito, conferindo-lhe a responsabilidade pelo universo erigido. (DAL FARRA, 1978,

  • 23

    p.21) No se trata de identificar o autor em carne e osso mas de se encontrar uma possvel

    face sua atravs dos elementos que ele pe em movimento na obra.

    No final de Canto de muro lemos um posfcio intitulado Depoimento no qual nos

    deparamos com alguns esclarecimentos:

    Para muito leitor parecer estranha esta atividade inesperada num velho professor provinciano, convertido seduo da Histria Natural e aos encantos divulgativos de leituras recentes. Canto de muro, entretanto, um livro de poucos meses vivido em muito mais de quarenta anos.

    Muito antes de 1918, segundanista de Medicina no Rio de Janeiro, andava eu colecionando insetos, criando escorpies (chamados no Nordeste lacraus), aranhas caranguejeiras e formigas savas, na grande chcara que meu Pai possua no bairro do Tirol, na cidade do Natal. (...)

    Minha curiosidade fez muitas vtimas para a lupa e o microscpio, com corantes e fixadores inauditos. Os cadernos se foram enchendo de notas mas nunca delas me aproveitei. Quase todos os episdios ocorreram na saudosa Vila Cascudo, paraso perdido em 1932. (CASCUDO, 1959, p. 263-264)

    O depoimento de Cascudo nos auxilia na compreenso de alguns aspectos da obra.

    Uma obra que, segundo seu autor, tivera como ponto de partida as anotaes de um

    estudante curioso para obter como resultado uma narrativa onde se entrelaam diferentes

    saberes filtrados por um professor j bastante experimentado.

    Em Canto de muro e seus moradores, primeiro captulo de Canto de muro, nosso

    bricoleur nos fornecer uma narrao em terceira pessoa, na qual o narrador naturalista vai

    aos poucos nos dando a conhecer o espao de Canto de muro e os seres que o habitam. No

    segundo captulo, Caada noturna, saberemos dos animais que tm por hbito caar e se

    alimentar no correr da noite. Neste captulo, ser traado uma espcie de painel dos animais

    de vida noturna. Tambm escrito em terceira pessoa, revela bem o escopo didtico da obra.

    No terceiro captulo, O mundo de Quir, vemos pela primeira vez a introduo do

    discurso em primeira pessoa.

    Quir est com as unhas dos ps fincadas numa salincia da parede, voltado para ela, e com a cabea para baixo, dormindo.

  • 24

    No sei de outro vivente que durma desta maneira. Dorme todo o dia e detesta a luz e mesmo as cores garridas e atraentes. Usa perptuo fardo escuro tirante a negro ou cinzento-sujo, avermelhado com mistura de cinza. Ao contrrio chamaria ateno e poderia causar embarao a quem ama sossego diurno e tarefa noturna. (CASCUDO, 1959, p. 21)

    Neste captulo em que nos apresenta e descreve Quir, um morcego, o narrador

    alternar entre primeira e terceira pessoas. Esta fluidez no ponto de vista acompanhar a

    narrativa deste ponto em diante. Na anlise dos livros Locues tradicionais no Brasil e

    Coisas que o povo diz (os dois livros foram reunidos em edio de 1986), Diana Luz Pessoa

    de Barros (2003, p. 162) nos expe um mtodo argumentativo de Cascudo presente nestes

    livros:

    A narrao de fatos vividos, com datas, lugares e pessoas que o leitor reconhece, um dos procedimentos muito usados para fazer o outro acreditar na verdade das concluses gerais extradas dos casos particulares, ou seja, na realidade ou veracidade da locuo usada.

    Outro recurso utilizado pelo autor na mesma direo o das pessoas gramaticais. Os textos empregam as duas projees de pessoa possveis: em terceira e primeira pessoa. Os discursos em terceira pessoa produzem os efeitos de sentido de objetividade, de distanciamento e de neutralidade e os em primeira pessoa, de subjetividade. O autor alterna os dois empregos, mas no ao acaso: a primeira empregada quando se trata de discordar de outros autores ou de com ele polemizar (...)

    Em Canto de muro tambm apreciamos este mtodo argumentativo. A narrao

    iniciada em terceira pessoa vai aos poucos se colorindo com a primeira. No romance h a

    projeo de um eu que ora emite comentrios despretensiosos e, em geral, de humor

    irnico; ora completa informaes e faz declaraes que tenham como referncia suas

    observaes e leituras; ora narra algum episdio.

    Consideramos que este eu que marca a narrativa instaura a autoridade do

    observador-pesquisador. A presena da subjetividade no oblitera a confiana nos dados

    fornecidos, ao contrrio, a subjetividade refora a confiana no narrado, pois estamos

    diante de um narrador que demonstra ter uma experincia facilmente associvel ao autor.

  • 25

    H uma fenda na mscara do narrador que nos permite encurtar a distncia entre narrador e

    autor.

    No quarto captulo, Proezas de Go, sobre as aventuras de um rato, o narrador nos

    revelar um de seus espaos de observao: Assisti na granja de meu Pai a um combate

    singular entre Go e uma galinha de pintos. (CASCUDO, 1959, p. 38) Esta frase do

    narrador nos remete diretamente ao Depoimento em que o autor revela que colecionava

    insetos, criava escorpies e aranhas na grande chcara de seu Pai no bairro do Tirol, em

    Natal. Observe-se que tanto no Depoimento quanto no trecho do quarto captulo, a

    palavra pai grafada com letra maiscula.

    Segundo Vnia Gico (1998), Francisco Justino de Oliveira, o Pai de Cascudo, foi

    um homem importante em Natal. Rico comerciante, tornou-se o primeiro representante da

    Ford Motor.

    A memria do que Cmara viveu na propriedade da famlia parece ter sido

    fundamental para a sua vida. No Tirol completou os seus primeiros anos de formao e teve

    os seus primeiros contatos com artistas, polticos, professores, etc. No por acaso o

    itinerrio deste pensador, na viso de Vnia Gico, remonta aos anos passados nesta chcara,

    em que era conhecido como o Prncipe do Tirol.

    Um outro trecho do Depoimento publicado em Canto de muro nos d a medida

    desta memria:

    Em fins de dezembro de 1956 meu filho adoeceu gravemente no Recife. Dahlia e Ana Maria, mulher e filha, foram para junto dele. Fiquei sozinho e desesperado de angstia. Inexplicavelmente pensei nos meus bichos de outrora e no convvio inesquecido da longnqua chcara do Tirol. Escrevi o primeiro captulo. (...) Na ansiedade em que vivia, o esforo foi uma derivao sublimadora e o livro nasceu com violncia. Revi o material, atualizando documentao e verificaes. Num clima de inquietao e susto Canto de muro se ergueu, pgina a pgina. (CASCUDO, 1959, p. 265)

    Num momento de angstia, a memria do Tirol se impe, levando-o infncia e

    primeira juventude de modo que pudesse superar a tristeza. Mais uma vez, neste trecho,

    encontramos dois vocbulos, documentao e verificaes, que do a medida da obra.

    A volta de uma memria inexplicvel traz tona tambm as notas e observaes de cunho

  • 26

    cientfico ou exploratrio. A perspectiva do narrador ao unir memria e dados observados e

    recolhidos em fontes orais e escritas, numa prosa que no dispensa o potico, nos revela o

    autor, nos coloca em dilogo com as estratgias utilizadas pelo professor Cmara Cascudo

    em obras no ficcionais.

    1.3 Os tons da voz do professor

    Tendo feito algumas observaes sobre o narrador, passaremos para as

    consideraes sobre o modo como esse professor nos fala.

    Se a tristeza abrira as portas da memria para a composio desta narrativa,

    percebemos uma modulao nos tons da voz deste narrador-autor que vai de um humor

    irnico a um tom de gravidade e melancolia. Numa variao entre estes tons, Cascudo ir

    nos descrever seus objetos, nos ensinar suas lies, e, porque no dizer, nos revelar um

    pouco de si mesmo. A modulao da voz do narrador indica uma busca pela proximidade

    com o leitor. Estamos diante de um professor que deseja nos falar de perto e de um modo

    significativamente humanizado, sem a impessoalidade que um discurso didtico pode

    atingir. A prevalncia do tom irnico, apenas no ltimo captulo, Majestati naturae par

    ingenium, veremos o domnio da melancolia.

    No sexto captulo, A estria de Vnia, aprenderemos um pouco sobre a rotina da

    lagartixa.

    Vnia desceu no muro por entre os ramos enlaados da trepadeira. (...)

    uma soberba lagartixa de quarenta meses bem vividos, robusta, audaciosa, slida no curto pescoo e nas patas fortes e flexveis, corredora olmpica, saltadora esplndida, caadora admirvel. (CASCUDO, 1959, p. 52)

    Todo o texto matizado por este tom irnico que vemos acima. O escopo didtico

    deste narrador-professor incontidamente galhofeiro. Os vocbulos que utiliza para

    descrever Vnia, uma lagartixa, soberba, robusta, audaciosa, corredora olmpica,

    saltadora esplndida, nos revelam as intenes sarcsticas. Em toda obra o narrador

    utiliza atributos humanos para a qualificao de animais, normalmente, considerados

  • 27

    vulgares e at repugnantes, como o caso da lagartixa. Deste modo, constri uma operao

    ardilosa em que a espcie animal valorizada ao mesmo tempo em que a espcie humana

    rebaixada.

    Beth Brait (1996) argumenta que a ironia pode ser compreendida como um processo

    interdiscursivo em que um enunciador, atravs das mais diferentes formas de exposio do

    j-dito (repetio, citao, parfrase, pardia, aluso, trocadilho, etc.), promove o

    cruzamento de discursos pertencentes a universos distintos. Observa a lingista que essas

    formas de recuperao do j-dito com objetivo irnico so formas de contestao da

    autoridade, de subverso de valores estabelecidos que pela interdiscursividade instauram e

    qualificam o sujeito da enunciao, ao mesmo tempo em que desqualificam determinados

    elementos. (BRAIT,1996, p.107)

    Estabelece-se, portanto, uma relao de cumplicidade entre produtor e destinatrio

    do texto irnico. E o efeito de humor criado quando o destinatrio compreende a

    contradio que h entre os discursos acionados pelo enunciador.

    o que vemos acontecer em Canto de muro. O narrador ao utilizar qualificativos

    normalmente atribudos aos homens para descrever animais, promove uma contradio

    entre o universo dos seres descritos e o universo ao qual pertence o discurso utilizado para

    caracteriz-los, gerando humor e crtica ao mesmo tempo. Este humor irnico constitui uma

    das marcas mais fortes deste romance de Cascudo.

    Num plano imediato e mais superficial podemos pensar que estamos lendo apenas

    descries de animais que, em geral, no convidamos para o convvio domstico, para

    lembrar a oposio traada por Clarice Lispector no seu A mulher que matou os peixes.

    Clarice diz que bichos naturais so aqueles que a gente no convidou nem comprou.

    (LISPECTOR, 1983, p. 10) Eles simplesmente surgem no espao domstico, como

    lagartixas e baratas. O paralelo parece-nos interessante, pois, em Clarice, tambm

    encontramos descries de animais em seu estado de natureza. No entanto, esses animais

    levaro o sujeito observador a refletir sobre a condio humana. Certamente h uma busca

    pela desautomatizao do olhar, um desejo de ver o insignificante, o que a poucos dado

    ver, mas onde se manifesta a vida.

    Ainda no sexto captulo, A estria de Vnia, um outro trecho nos revelar o tom

    melanclico:

  • 28

    Tudo quanto nasceu depois e transformou-se nos cultos litrgicos da vaidade, decorao, enfeite atraente, as mudanas de Jpiter, as batalhas pelo ouro, poder e glria, provm da necessidade poderosa da propagao, da conquista da fmea, faz-la portadora do ovo que a espcie no tempo sem fim. O ovo dos rpteis, o primeiro ovo nascido na noite distante de milhares e milhares de sculos, ia criar todo este cortejo, onmodo e deslumbrante que nos entontece e arrebata.

    O ovinho da lagartixa simbolizava, legitimamente, a inicial. Era um ovo de rptil no canto do muro, guardando a eternidade. (CASCUDO, 1959, p. 61)

    Lemos neste trecho uma meditao em que as ironias do texto so atenuadas para

    dar vazo a uma postura mais reflexiva em que o olhar desautomatizado pode contemplar a

    vida em formas ignoradas, como o ovinho de uma lagartixa.

    H no trecho um sentimento de distncia de algo primordial. O cortejo do mundo,

    feito de vaidades, batalhas, poder e glria, tudo isto que nos entontece e arrebata, deixou

    para trs o estado primevo, de pura natureza. O narrador enaltece este estado perdido e

    deseja resgat-lo no lampejo contemplativo do ovinho ignorado no canto do muro, mas

    guardando a eternidade.

    1.4 Ribas: entre a narrao de uma trama e a documentao de tradies

    Passamos agora para a outra margem do Atlntico, ao encontro do angolano Oscar

    Ribas que, a lguas de distncia, parece ter caminhado ao lado do nosso Cmara Cascudo.

    Romance publicado pela primeira vez em 1951, Uanga (feitio), ainda que possua

    uma intriga frgil, pode nos interessar pela enorme quantidade de dados etnogrficos que

    traz acerca da cultura popular da Angola do tempo de Ribas. A forma do romance divide-se

    entre a seqncia de uma trama amorosa e a descrio de uma srie de rituais populares.

    O romance dividido em 12 partes que por sua vez so seqenciadas em captulos.

    Antes de iniciar a trama o autor nos prope uma abertura com o ttulo de Antigamente em

    que podemos ler algumas notas sobre a cidade de Luanda. Leiamos a reproduo de um

    trecho:

  • 29

    Ano de 1882. Luanda ainda no possua vivendas elegantes. A modesta

    capital de ento, circunscrita a uma rea pequena, estava cheia de barrocas, onde a figueira-da-ndia e a caoneira, vegetando compactamente, emprestavam ar silvestre. Casas grosseiras, quase semeadas a esmo, constituam a maioria das habitaes. A cidade de Novais, em plena infncia, ainda no adquirira personalidade prpria: como as crianas, gozava a vida rstica e despretensiosa. A pressa no a inquietava. O tempo dar-lhe-ia vigor, os campos circunjacentes segredavam-lhe venturas. Confiante no futuro, deixava-se ficar na rusticidade. (...)

    E a mata traioeira, imperialmente postada nos flancos e cabeas dos morros, obrigava a cidade a morrer onde aquela nascia. Salvo a poente, o casario europeu trepava graciosamente pelas elevaes, e, naquela banda, evidenciava-se a histrica Fortaleza de S. Miguel baluarte fundado pelo capito-general Francisco Vasconcelos da Cunha, em 1638, em substituio da igreja de S. Sebastio, edificada por Paulo Dias de Novais, em 1575.

    Em oposio ao bairro da gente civilizada, as moradias dos indgenas disseminavam-se pelas faldas, subindo umas pelo Cazuno, e outras, onde criaram fundos alicerces, pela encosta das Ingombotas. (RIBAS, 1985, p. 23-24)

    Na segunda parte, Festa de Npcias, somos apresentados aos protagonistas da

    trama, Joaquim e Catarina, os amantes que sofrero os desencontros a que todo par

    romntico ficcional est fadado. Os protagonistas se conhecero durante uma massemba e

    se casaro depois de cumpridos todos os ritos necessrios antes e aps o enlace. Na terceira

    parte, A Carta, Joaquim vai a Cabri para trabalhar, deixando Catarina em Luanda. Neste

    ponto comea a srie de intrigas, Joaquim manda a Catarina uma carta com notcias atravs

    de seu amigo, Antonio Sebastio. Este por no saber ler, diz a Catarina que ela deve chorar

    e vai embora com a carta. Catarina entende que o marido morrera e comea a chorar,

    realizando depois todos os rituais de luto. Manuel e Tio Joo, amigos da famlia,

    interessados em saber o teor da carta, procuraro Antonio Sebastio conseguindo desfazer o

    equvoco. Na quinta parte, Vingana, Antonio Sebastio, desmoralizado porque todos

    descobriram que no sabia ler, resolve procurar Joaquim em Cabri, para dizer que Catarina

    possui um amante e assim vingar-se por ter servido de chacota a todos. Na seqncia da

    trama Catarina e Joaquim brigaro e se reconciliaro novamente. Na ltima parte, Uanga,

    acompanharemos a doena e morte da protagonista.

  • 30

    Toda a trama atravessada por extensas descries de rituais: ritual para o

    casamento, para o luto, para descobrir a causa morte, para se recepcionar o nascimento dos

    gmeos de Catarina, para se descobrir a causa de uma doena, enfim, o autor mostra-se

    muito mais interessado em relatar ao leitor elementos da cultura popular da Angola de seu

    tempo do que em comprometer-se com a trama romanesca. Alm dos rituais citados

    veremos descries de festas populares, com suas danas e cdigos especficos, cantigas,

    ditos e narrativas populares.

    O ponto crucial a ser focado, tendo em vista crticas j realizadas ao trabalho do

    autor, como as de Russel Hamilton (1975) e Rita Chaves (1999), que apontam para a

    conscincia dilacerada do autor, justamente a questo da forma. As descries

    provenientes de uma observao de tipo cientfico projetam uma recepo que pode no

    ultrapassar o documental. Vejamos um trecho do incio da segunda parte, intitulada Festa

    de npcias:

    Nesse remoto ano de 1882, numa cubata situada no Cazuno, morava Joaquim, pedreiro dos seus vinte e cinco anos. A casa compunha-se, como quase todas em que vivem os indgenas, de dois quartos e um corredor. O mobilirio era escasso. Num dos quartos havia uma cama, uma mesa servindo de banca de cabeceira, uma mala e, sobre um caixote, uma bacia de barro; no outro, alm de uma cama e uma sanga, pouco mais existia; e na ltima diviso a sala de jantar figurava uma mesa, uma cadeira com as pernas desconjuntadas e alguns mochos. Pelas paredes de barro encarnado, sobressaam estampas recortadas de ilustraes. (RIBAS, 1985, p. 31)

    Na primeira frase somos apresentados ao personagem Joaquim, como se este fosse

    um indivduo particular sobre o qual veremos ser contada uma histria particular. No

    entanto na frase seguinte Joaquim transformado em categoria observvel, o indgena. E a

    narrativa parece querer pertencer muito mais ao gnero cientfico chamado etnografia do

    que ao romance, gnero ficcional pretendido pelo autor. Um elemento chave do que

    estamos sugerindo a utilizao do vocbulo indgena no trecho acima e que ser

    evocado em outras partes ao longo do romance. As personagens so afiguradas no texto

    como exemplares dos filhos da terra, dos nativos que se quer observar. Portanto, ser

    preciso descrev-los e ao seu contexto scio cultural.

  • 31

    O romance de Oscar Ribas opera na sua estrutura uma espcie de suspenso dos

    elementos narrativos para nos informar acerca dos aspectos culturais que constituem a

    sociedade por ele observada, instaurando a perspectiva do etngrafo. Leiamos o trecho

    seguinte que destaca o momento em que os amantes se conheceram:

    Conheceram-se numa massemba. Este bailado, rico de fogosidade e elegncia, proveio do

    caduque, dana de Ambaca. Como afinidade, persistiu a caracterstica fundamental a semba ou umbigada. O caduque executava-se ao ar livre, sob a toada de goma, dicanza e uma lata, vibrada com duas baquetas grosseiras. Com o aparecimento da harmnica, nasceu ento a massemba: substitui-se o tambor e a lata por aquele instrumento, pela sala se trocou o ambiente campestre.

    Ultimamente, o instrumental associou o pandeiro, os ferrinhos e a garrafa, funcionando esta como aparelho de sopro. O fogope voz de comando para a semba passou a determinar-se pelo ritmo da msica, circunstncia que releva a melodia. A indumentria tambm se requintou: as damas chegam a trajar de igual, pompeando at, num sarau duas mudas; e os cavalheiros, embora menos rigorosos, j se apresentam com a mesma uniformidade, inclusivamente de smoking. (RIBAS, 1985, p. 44)

    O trecho em questo acompanhado por algumas notas explicativas, assim temos a

    explicao de goma - tambor comprido -, e de dicanza - chocalho de bordo. Podemos ver

    atravs do trecho selecionado que os amantes so esquecidos para que se possa descrever

    um dado da cultura de modo bem detalhado, ou seja, a massemba. como se houvesse uma

    suspenso da ao e do prprio enredo para que uma notao explicativa venha tona. As

    notas de rodap utilizadas pelo autor s reforam o carter informativo do texto que todo

    matizado por esta dialtica entre o imaginado e o observado.

    No se trata apenas de compor o universo por onde circulam as personagens. O

    traado do texto nos revela um carter dual: temos de um lado a trama amorosa com as

    intrigas que levam ao desenlace dos amantes e, de outro lado, a descrio de dados da

    cultura que podem ser interpretados muito mais como interveno etnogrfica do que como

    dado que corrobora para a coeso interna da fico.

    Na quinta parte, Noite de luar, a presena de gneros orais total. Vemos

    descarrilar uma srie de adivinhas, cantigas e narrativas contadas pela me de Catarina.

    quase como se estivssemos diante de uma reunio de dados coletados numa pesquisa

  • 32

    etnogrfica, que ao invs de serem catalogados e sistematizados por gneros ou funes,

    como costumam ser, foram integrados num romance de trama frgil, cujo objetivo, como o

    prprio autor revela no prefcio, muito mais dar a conhecer as gentes de Angola. A

    consulta a obras ensasticas do autor como, por exemplo, Temas da vida angolana e suas

    incidncias (2002) ou Usos e costumes angolanos (1964), ir nos revelar o mesmo tipo de

    dados utilizados na composio do texto de Uanga (feitio), o que nos indica que o

    compromisso primordial da obra mesmo com a descrio de elementos da cultura

    popular.

    Sobre o romance em questo escrevera Rita Chaves (1999, p. 145): A finalidade

    em evidncia da obra revela que sua natureza ser de fato definida para alm das fronteiras

    do terreno literrio. Para a autora podemos entender este romance como um texto imbudo

    da necessidade de se recobrir reas como a histria, a sociologia, a antropologia, etc, reas

    a que o pensamento letrado ainda no recobriu. De fato, a obra caminha numa linha

    divisria entre a fico e a observao cientfica.

    1.5 Uanga (feitio): dilogo com um narrador-autor etngrafo

    Wolfgang Kayser (1970) nos ensina no captulo VII, Pressupostos filolgicos, a

    acompanhar as palavras do autor como possibilidade interpretativa para a obra. Num

    prefcio o autor comunica diretamente com o leitor e descobre-lhe o segredo da gnese do

    livro. (KAYSER, 1970, p. 7) Os textos do autor que dizem respeito obra, sobretudo

    quando integrados a ela nas formas de prefcio ou posfcio, podem ser considerados em

    conjunto com a mesma na medida em que revelam opes estticas e ideolgicas do autor.

    Tendo este ponto em vista, seguimos o Depoimento de Cmara Cascudo nas

    consideraes sobre o foco narrativo. O mesmo procedimento ser adotado para a

    considerao do foco narrativo em Uanga (feitio). Leiamos algumas indicaes que Oscar

    Ribas escrevera para seu texto:

    Para que no vos decepcioneis, Leitores, desde j declaramos que o presente volume no constitui um romance de sala, mas um documentrio da sociedade negra inculta. Em resultado, respirareis outra atmosfera psicolgica, vivereis num mundo de costumes estranhos, volta dos quais predomina o

  • 33

    feiticismo. (...) Com o intuito de revelar a muitos o grau imaginoso da raa, desenrolamos uma enfiada de adivinhas, algumas histrias e diversos provrbios, pois, segundo Cndido Figueiredo, os anexins, ditados, aforismos e brocardos constituem o tesoiro da sabedoria das naes, e as suas origens escapam, na sua maioria, investigao dos curiosos (...)

    Se esta modesta obra no satisfizer ao recreio espiritual, sirva, ao menos, de repositrio etnogrfico aos curiosos: j nos contentamos com semelhante recompensa. (RIBAS, 1985, p. 19-20)

    O dilogo com o leitor no prefcio intitulado Porqu nos indica as intenes da

    obra. Menos para satisfazer o recreio espiritual do leitor e bem mais para ser

    recepcionada como documentrio da sociedade negra inculta ou repositrio

    etnogrfico. Nestas formulaes do prprio autor, ilustra-se bem a sua conscincia

    problemtica, dividido que est entre a paixo pela sua terra e a dificuldade de adeso

    completa, pois v na mesma as figuraes do inculto, do ignaro. Nas palavras de Rita

    Chaves (1999, p. 133), Oscar Ribas encontra-se imprensado entre a vontade de erguer os

    chamados valores de raiz e o amargo complexo de inferioridade a que se vem condenados

    aqueles que se formam na esfera de padres estrangeiros ao seu meio (...)

    O movimento do narrador, entre aproximaes e afastamentos da matria narrada,

    nos indicar, ora os dados de sua observao, ora os seus prprios limites ideolgicos.

    De todo modo, no deixamos de confiar e de aprender com este narrador que no

    Porqu do romance nos enuncia o seu trabalho investigativo que, inclusive, contara com

    informantes privilegiados. Como diz: se no fora a preciosa coadjuvao de familiares,

    tambm esbarraramos no indecifrvel, por nos faltar a verdadeira intimidade com o seu

    meio, no obstante termos nascido em frica. (RIBAS, 1985, p. 20)

    Ainda que o autor tenha se distanciado daqueles cuja cultura descrever, fornece ao

    leitor elementos para compor sua autoridade: o autor nascera em frica (dado relevante

    ainda que se situe como estrangeiro social), efetuara investigaes e contara com

    informaes fornecidas pelos seus familiares, africanos nativos da cultura local a ser

    examinada.

    Na primeira parte, Antigamente, anterior ao incio da trama narrativa, mas

    servindo de prembulo para localizar a cidade de Luanda, onde se passa a trama e onde se

  • 34

    encontram os dados registrados pelo autor, encontramos um tipo de argumentao que pode

    ser interpretada como signo da autoridade do narrador.

    A incurso por notas histricas sobre a cidade de Luanda, as avaliaes sobre o

    espao fsico e sobre a sociedade constituem uma prosa argumentativa e ensastica que,

    mais do que apresentar o espao da narrativa, nos revela que estamos diante de um narrador

    culto, um narrador que conhece a histria de sua cidade e possui capacidade crtica para

    avaliar os acertos e os equvocos do processo de modernizao.

    Por uma herana remota, quase toda a populao indgena feminina usava o caracterstico traje: panos que envolvem o corpo, das axilas ao tornozelo. Rara era a mulher que se vestia europia. Mesmo a blusa, ultimamente exibida com os mais variados modelos, no participava da indumentria. Cabe a Maria Bento Faria, me do autor, a primazia de usar esta pea de roupa, o que, como sucede a todas as novidades, originou comentrios. Mas a moda, superior a preconceitos, venceu a relutncia, e, num rpido triunfo, o seu uso generalizou-se. No governo do general Norton de Matos, por medidas daquele alto-comissrio, que se vulgarizou o vesturio europeu. (RIBAS, 1985, p. 26)

    Hoje, Luanda, liberta de insdias, ufana de seu aparato,

    diligencia colocar-se a par doutras cidades modernas, e, movida pela vaidade, trabalha no sentido de suplant-las. Para se expandir, com que fria atacou a mata perigosa! Para se alindar, com que repulso elimina as casas inestticas!

    O que foste, o que s, o que sers, Luanda de Novais! Somente para tua magnificncia, urge remediar uma insensatez: a desarborizao. (RIBAS, 1985, p. 27)

    No primeiro trecho vemos um enaltecimento modernizao, simbolizada pelo

    ingresso na moda europia. A referncia a Maria Bento Faria, me do autor, nos leva a

    pensar, como na obra de Cmara Cascudo, na tessitura de uma narrao que no mascara a

    autoria. No segundo trecho, mantendo o tom de triunfo presente no primeiro, o autor

    assinala o crescimento da cidade e acusa a sua desarborizao.

    Antigamente inicia-se com uma frase que localiza o tempo da narrativa : Ano de

    1882. (RIBAS, 1985, p. 23) Em Festa de npcias, no captulo um, lemos: Nesse remoto

    ano de 1882, numa cubata situada no Cazuno, morava Joaquim, pedreiro dos seus vinte e

  • 35

    cinco anos. (RIBAS, 1985, p. 31) O demonstrativo anafrico, nesse, nos faz localizar a

    narrativa num tempo e, sobretudo, num espao extraliterrios, j apresentados pelo autor.

    Vemos, desde o incio, o autor operando uma oposio entre dois registros. Em

    Antigamente, monta-nos um quadro de argumentao ensastica em que o espao nos

    aparece na sua dimenso histrica e social. Em seguida, em Festa de npcias, captulo

    um, localiza a narrativa neste quadro de argumentaes ensasticas e fora do eixo ficcional.

    O narrador culto que vemos aparecer em Antigamente no oculta o autor e

    dominar a narrativa com notas sobre cultura popular e comparaes entre culturas.

    No captulo 9, ainda da primeira parte, Festa de npcias, aps a comprovao

    pelas velhas vav Tita e vav Tataxa de que Catarina conservara-se virgem, o narrador far

    o seguinte juzo:

    Como os costumes tm pontos de tangncia! No obstante a barreira ocenica, a ausncia de paralelismo social, os povos confundem-se em seu primitivismo: o que atualmente se observa nas gentes ignaras, j foi usado pelos povos considerados estrelas de primeira grandeza. De extraordinrio, afinal, nada existe. Os homens semelham-se estruturalmente, portanto procederam da mesma infncia. A diferena cifra-se apenas nisto: uns, pelo mais rpido desenvolvimento, libertaram-se mais cedo da hediondez inicial; outros, pela morosidade do crescimento, ainda se servem de ridculas heranas. (RIBAS, 1985, p. 94)

    O narrador mostra-se um douto, descreve os rituais da terra em que nascera e

    capaz de compar-los com rituais de outras terras e de outras gentes. A referncia a idias

    como paralelismo social, primitivismo e estrutura revelam a perspectiva ensastica da

    obra. O narrador-autor desloca o olhar de suas personagens e da trama que as envolve para

    a reproduo de juzos de ordem antropolgica.

    Se em Cmara Cascudo percebramos modulao no tom e variao no foco

    narrativo, em Ribas notamos a manuteno de um tom elevado e impoluto. E uma narrao

    em terceira pessoa que prima pela objetividade do discurso.

    Em alguns trechos podemos notar a presena de um plural impessoal do tipo:

    Voguemos atravs da antiguidade. Que faziam os gregos pela ocasio em que a mulher,

    rasgado o horizonte sexual, penetrava nos domnios fecundantes do amor? Invocavam

    Himeneu e em sua honra entoavam cnticos. (RIBAS, 1985, p. 94) O plural impessoal

    ajusta-se terceira pessoa, mantendo a projeo de um discurso objetivo, como forma de

  • 36

    garantia de que estamos diante de um narrador com autoridade para a produo do

    documentrio da sociedade negra inculta.

    O tom impoluto de um douto ajusta-se perfeitamente perspectiva do narrador. A

    objetividade do discurso e a linguagem formal marcam o afastamento do narrador de seus

    personagens. O narrador-autor coloca-se na posio de intermedirio entre o leitor e as

    gentes ignaras de sua terra. Como revela Ribas no prefcio, muito embora tenha nascido

    na terra, j no possui intimidade com a mesma.

    Em Ilundo, divindades e ritos angolanos, Oscar Ribas numa parte destinada aos

    Ministros do culto, nos dir que so quatro as classes que constituem os ministros do

    culto: quimbanda, quilamba, molji e macua-bamba. (RIBAS, 1958, p. 45) Ao descrever o

    quimbanda dir:

    O quimbanda trata as enfermidades, diagnosticando por adivinhao; debela os azares; restabelece a harmonia conjugal ou provoca a inimizade; d poderes para o domnio no amor ou para a anulao de demandas. Embora no seja o seu verdadeiro mister, tambm pode causar a morte. Conforme j explicamos em Uanga, este ministrio exercido por espontaneidade ou por transmisso de alma. (RIBAS, 1958, p. 45)

    O trecho nos d uma boa indicao do plano em que a obra pode ser recepcionada.

    Para o prprio autor, Uanga (feitio) tratado como fonte a se recorrer para se obter

    esclarecimentos.

    Ilundo, divindades e ritos angolanos fizera repercutir os juzos de intelectuais

    portugueses e brasileiros acerca das obras Uanga (feitio) e Ecos da minha terra. Em todas

    as apreciaes, os livros so recepcionados como excelentes compndios da vida cultural

    angolana. Reproduziremos, a seguir, a nota enviada por Cmara Cascudo:

    Apesar de acamado e proibido de esforo, no resisti ao prazer de ler Uanga e Ecos da minha terra que teve a bondade de enviar para mim. A resposta oficial o envio, incluso, de diploma provisrio nomeando-o Titular da nossa Sociedade Brasileira de Folk Lore, a mais antiga do Brasil, homenagem natural ao seu esforo, inteligncia e dedicao na pesquisa e comunicao fiel da informao etnogrfica angolense nos seus livros, claros e sugestivos.

    Bem sabe da simpatia e curiosidade brasileira, especialmente aqui pelo Nordeste do Brasil, pelo nome mgico de

  • 37

    Luanda. Aqui se fixaram os escravos dessa regio e a nossa Literatura Oral est cheia de recordaes vivas, constituindo uma presena espiritual, Pai Angola, Negro de Angola, Velho Angola. No Recife, nas festas do Maracatu (desfiles de negros pelo carnaval) ainda cantam, como estribilho: - Luanda! Luanda!

    E ignoramos muito e muito de Angola. Tenho as publicaes excelentes da Guin, Moambique, Timor, Cabo Verde, etc. Mas Angola nos falta, justamente a querida Angola, reino fantstico que os nossos negros falam como do Paraso perdido. Dos contos tenho apenas o velho Heli Chaterlain, de 1894, os Folk-Tales of Angola, contos populares de Angola, em quimbundo e ingls. Sim, e a gramtica do Quinto que deram em Lisboa.

    Seus livros so encantadores de verismo, movimentao, colorido, intensidade dramtica, sugestiva fora psicolgica. Acima de tudo e antes de tudo, naturalidade, fidelismo, honestidade de fixao, compreenso, ternura pelos motivos humanos que o cercam. A luz de seus olhos est na sualma, irradiando a doce claridade comunicativa e enternecedora de afeto, interesse e bondade.

    Do Prof. Dr. Lus da Cmara Cascudo Natal, 13-5-954. (RIBAS, 1958, p. 23)

    Neste captulo, esforamo-nos em demonstrar a aliana que, nos romances, os

    autores realizam entre fico e pesquisa. As duas obras devem ser lidas considerando-se o

    compromisso que possuem com a veiculao de informaes que ultrapassam o traado

    ficcional.

    A comparao entre Cmara Cascudo e Oscar Ribas nos revela uma gama

    extraordinria de similitudes capazes de reiluminar as obras de ambos. Muito embora este

    estudo privilegie os romances Canto de muro e Uanga (feitio), deveremos ultrapassar um

    pouco os limites que nos impusemos para alcanar os autores em outras dimenses. A

    anlise de Made in Africa, por exemplo, nos revelar um Cmara Cascudo leitor de Oscar

    Ribas. O mesmo conjunto de ensaios tambm nos coloca em contato com uma interessante

    perspectiva de Cmara Cascudo, em que no s a frica vista do lado de c, como

    tambm o Brasil visto do lado de l do Atlntico. Se tal perspectiva no fora precursora,

    certamente deve ser entendida como marcante na histria das nossas relaes com frica e,

    particularmente com Angola, pas extremamente presente nas observaes de Cascudo.

  • 38

    Captulo 2 Colecionadores, arquivistas 2.1 Cultura popular: algumas notas Os objetos sobre os quais se debruaram Cmara Cascudo e Oscar Ribas, ao longo

    de suas carreiras, nos levam a consider-los como pertencentes ao campo dos estudos sobre

    folclore. Muito embora, em artigos e ensaios sobre os autores bem como em seus prprios

    trabalhos, possamos encontrar a indicao de etngrafos para os autores e de etnografia

    para alguns textos, o folclore fora o campo privilegiado da atuao destes intelectuais.

    Em ambos encontramos trabalhos voltados para a compilao de textos orais, como

    canes, poesias e contos, objetos considerados clssicos da pesquisa folclrica. De Oscar

    Ribas, dentre as obras que versam sobre a literatura oral, podemos citar, Missosso, obra

    publicada em trs volumes (1961, 1962 e 1964), considerada uma das mais importantes do

    autor; tambm temos Sunguilando, contos tradicionais angolanos (1967) e Ecos da minha

    terra - dramas angolanos (1952), obra que mereceu republicao na coleo Biblioteca de

    Literatura Angolana das Edies Maianga em 2004, fazendo com que o nome de Oscar

    Ribas figurasse entre grandes nomes da literatura angolana como Agostinho Neto, Castro

    Soromenho e Luandino Vieira, entre outros. De Cmara Cascudo, cuja obra extensa,

    podemos citar Contos tradicionais do Brasil (1946), Cinco livros do povo (1953),

    Literatura Oral (1952) e o Dicionrio do Folclore Brasileiro (1956), talvez, a sua obra

    mais conhecida.

    Oscar Ribas identificava-se como folclorista em seus trabalhos, inclusive, fazendo

    sempre questo de mencionar entre as suas insgnias ou honorificncias - designativos

    utilizados pelo autor - a de Membro Titular da Sociedade Brasileira de Folk Lore, a

    Medalha literria Gonalves Dias, concedida pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, e

    o ttulo de Membro Correspondente da Sociedade Matogrossense de Folclore.

    Como vimos na carta enviada ao pesquisador angolano em 1954, fora a leitura

    mesma de Uanga (feitio) em conjunto com Ecos da minha terra dramas angolanos, que

    fizera Cascudo destinar a Ribas o diploma provisrio nomeando-o Titular da Sociedade

    Brasileira de Folk Lore. Segundo Cmara Cascudo tratava-se de uma homenagem natural

    ao esforo, dedicao e inteligncia de Oscar Ribas na pesquisa e comunicao fiel da

  • 39

    informao etnogrfica angolense. (RIBAS, 1958, p.23) Vale ressaltar, uma outra vez, que

    a indicao de informao etnogrfica no dever ser associada tradio criada no

    interior das cincias sociais, mas matizada pelas tenses entre este campo e o dos estudos

    de folclore. Renato Ortiz (1992), aponta como caracterstica dos estudos de cultura popular,

    o fato de florescerem fora das universidades e dos centros urbanos, o que no raro, gera

    conflitos entre os folcloristas e campos do saber legitimados pela Academia1.

    Cmara Cascudo tido como um dos mais importantes estudiosos da cultura

    popular do sculo XX. (Silva, M. 2003, p.XIII) Como destaca Vnia Gico (1998), dentre

    todos os rtulos que foram atribudos ao pesquisador, certamente o que lhe garantiu

    reconhecimento nacional e internacional foi o de estudioso do folclore. De acordo com o

    registro no Dicionrio do Folclore Brasileiro, folclore a cultura do popular, tornada

    normativa pela tradio. (CASCUDO, 1972, p.400) Cascudo nos revela no prefcio que,

    aps a publicao de Vaqueiros e Cantadores, em 1939, comeara lentamente a pr em

    ordem um temrio do Folclore Brasileiro para simplificar as consultas pessoais.

    (CASCUDO, 1972, p.9) Assim nascera a idia de produzir um dicionrio. Um excelente

    panorama dos estudos de folclore efetuados pelo autor poder ser lido na tese de Vnia

    Gico (1998).

    Para compreendermos melhor nossos autores, recorreremos a algumas notas

    histricas que do conta do surgimento dos folcloristas e do seu campo de interesse. O

    objetivo apenas traar uma tela de fundo, em que as obras dos nossos folcloristas podero

    ser recepcionadas, refletidas ou questionadas. Obviamente no esgotaremos o assunto, to

    somente chamaremos a ateno para os pontos que considerarmos fundamentais.

    Procuraremos articular dois importantes textos sobre o assunto: Cultura popular:

    romnticos e folcloristas, de Renato Ortiz; obra que reconstri a trajetria histrica da

    noo de cultura popular discutindo uma extensa bibliografia europia sobre o tema, e

    Cultura popular na idade moderna, de Peter Burke, apontado pelo prprio Ortiz como um

    importante livro, por ser um dos poucos a traar uma perspectiva histrica sobre o tema.

    Renato Ortiz, na apresentao de seu livro, inicia dizendo que a discusso sobre a

    cultura popular um tema permanente entre ns. (ORTIZ, 1992, p.5) Um longo debate

    1 Para uma melhor compreenso destas tenses na constituio do pensamento social brasileiro ver Vilhena (1997) e Silva, V. (2002).

  • 40

    que vem, pelo menos desde o sculo XIX, sendo matizado pelas diferentes conjunturas

    scio-polticas e por diferentes interesses. Ortiz considera que o debate oscila entre dois

    pontos fundamentais: de um lado o popular diz respeito cultura dos grupos subalternos

    em oposio a uma cultura de elite (ou cultura letrada ou mesmo cultura erudita); de um

    outro temos o popular como sinnimo de povo (ORTIZ, 1992, p.5), sendo que povo ser

    compreendido como uma totalidade indistinta.

    Para compreender os termos do debate, Ortiz volta-se para uma espcie de

    arqueologia do conceito, conforme ele prprio indica.

    O interesse pelos costumes populares inicia-se no sculo XVI, porm, neste

    momento contm ainda uma perspectiva normativa e reformista. Segundo Ortiz, boa parte

    desta literatura fora produzida por sacerdotes2. A finalidade era apontar os equvocos vistos

    nas crendices populares. Aos poucos a curiosidade pela coleta das prticas e narrativas se

    intensifica, dando origem a um novo tipo de intelectual: o antiqurio. (ORTIZ, 1992, p.12)

    Estes intelectuais, num primeiro momento, executaram trabalhos solitrios que, num

    segundo, faro florescer a organizao de sociedades.

    Na Inglaterra, no incio do sculo XIX, florescem vrios clubes de antiqurios, onde se renem membros da classe mdia para discutir e publicar, livros e revistas sobre as antiquidades populares. William John Thoms, criador da palavra folclore, fellow da Sociedade dos Antiqurios (1838), e na revista Athenaeum, funda uma seo dedicada cultura popular, na qual comenta a correspondncia enviada pelos leitores editoria. Ele edita ainda sua prpria revista, Notes and Queries, para depois se engajar na formao da Folklore Society, a qual vai presidir at 1885, ano de sua morte. (ORTIZ, 1992, p.12)

    H dois traos fundamentais na perspectiva do antiqurio: o primeiro o

    colecionismo. Dentro da denominao antiguidades populares encontrvamos uma

    diversidade grande de assuntos como costumes, festas, monumentos celtas, histria local,

    etc. O segundo trao diz respeito ao amor s antiguidades, o que de forma alguma quer

    dizer amor ao povo.

    2 Renato Ortiz cita obras como: Tratado das supersties, de Jean-Baptiste Thiers (1679), Antiquitates vulgares, escrito pelo clrigo Henry Bourne (1725), Histria crtica das prticas supersticiosas que seduziram o povo e intrigaram os sbios, do padre Le Brun (1702).

  • 41

    O perodo romntico que emerge no final do sculo XVIII o segundo momento

    apontado por Ortiz como definidor da idia de cultura popular. No perodo romntico dilui-

    se a predisposio negativa que havia ainda em relao ao popular. A espontaneidade vista

    nas criaes populares estar no foco dos romnticos. Alguns aspectos relevantes do

    romantismo, como a oposio ao Iluminismo, o historicismo, o gosto pelo bizarro e pelo

    exotismo (ORTIZ, 1992, p.18), tambm apontados por Peter Burke (1995), vo integrar o

    lxico do perodo. Segundo Ortiz, estes elementos j estavam presentes nas prticas do

    antiqurio. justamente nesta virada de sculo, no bojo do movimento romntico, que as

    pesquisas dos intelectuais sobre cultura popular se tornaro uma prtica ampla e constante.

    De acordo com Peter Burke, foi nesse perodo, entre o final do sculo XVIII e incio

    do XIX, que ocorreu a descoberta do povo, para retomar um ttulo do autor. O povo (o

    folk) se converteu num tema de interesse para os intelectuais europeus. (BURKE, 1995,

    p.31)

    Num primeiro momento h uma busca pelas canes populares. J. G. Herder deu o

    nome de Volkslieder aos conjuntos de canes que compilou entre 1774 e 1778, partindo do

    termo Volkslied, que significa cano popular. Diz-nos Burke que para Herder, apenas a

    cano popular conserva a eficcia moral da antiga poesia, visto que circula oralmente,

    acompanhada de msica e desempenha funes prticas, ao passo que a poesia das pessoas

    cultas uma poesia para a viso, separada da msica, mais frvola do que funcional.

    (BURKE, 1995, p.32) H uma idia de que a poesia popular portaria a essncia de uma

    poesia mais rente vida, uma poesia com funes prticas, como, por exemplo, direcionar

    moralmente a vida dos homens.

    Tais idias tambm estiveram presentes nos trabalhos dos irmos Grimm. Segundo

    Burke, as idias de Herder e dos Grimm tiveram uma grande influncia; aps os seus

    trabalhos surgiram coletneas de canes populares nacionais em vrias partes da Europa.

    No se tratou apenas da descoberta da literatura tradicional, descobriram-se tambm a

    religio popular, a festa popular, a msica popular, enfim, tratou-se de um movimento onde

    se descobria a existncia do prprio povo.

    Assim como Burke, Ortiz tambm atribui um valor decisivo aos trabalhos do

    filsofo alemo Herder e dos irmos Grimm.

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    Para Herder, as canes e as poesias populares representariam a essncia de um

    povo, expresso espontnea da alma nacional. O filsofo introduz ainda uma diferena

    entre poesia de natureza e poesia de cultura. A primeira reflete um conhecimento

    intuitivo, a segunda possui a marca do racional. Naturalmente, a primeira sobrepe-se

    segunda, na medida em que ela contm as potencialidades do povo, compreendido por

    Herder como um organismo que conteria em si o seu prprio destino.

    Na avaliao de Ortiz, a importncia dos irmos Grimm diz respeito, sobretudo, ao

    emprego de novas metodologias.

    A edio do livro de contos (primeiro volume em 1812, o segundo em 1814), e de lendas (1816), inclui, pela primeira vez, elementos retirados de uma verso popular. Diferenciando-se das publicaes anteriores, que continham verses arranjadas pelos autores, os Grimm tm a iniciativa de procurar colet-las diretamente da boca dos camponeses. Seus primeiros livros so impessoais, e indicam detalhadamente o local onde cada histria foi ouvida; esta metodologia de trabalho abre a possibilidade de se realizar um estudo mais sistemtico das tradies populares. (ORTIZ, 1992, p. 24)

    Peter Burke aponta trs ordens de razes para o intrigante interesse pelo povo

    naquele momento da histria: as razes estticas, as razes intelectuais e as razes polticas.

    A principal razo esttica o que pode ser chamado de revolta contra a arte. (BURKE,

    1995, p.37) O momento histrico caracterizado por uma busca do antigo, do popular e do

    distante. O polido passa a ser contestado ou deixado de lado, em nome do considerado

    selvagem ou primitivo. Entre as razes intelectuais, Burke refere-se a uma reao

    contra o Iluminismo.

    O Iluminismo no era apreciado em certas regies, como, por exemplo, na Alemanha e na Espanha, por ser estrangeiro e constituir mais uma mostra de predomnio francs. Na Espanha o gosto pela cultura popular em fins do sculo XVIII era um modo de expressar oposio Frana. A descoberta da cultura popular estava intimamente associada ascenso do nacionalismo. (BURKE, 1995, p.39)

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    Vemos no trecho acima que a principal razo intelectual apontada no se separa da

    questo poltica. O momento tambm marcado por movimentos nativistas, em que a

    descoberta da cultura popular significava o reforo de um certo sentimento de

    nacionalidade em sociedades sob domnio estrangeiro. (BURKE, 1995, p.40)

    Ainda nos dir Peter Burke que uma constante que aparece nos textos de vrios

    intelectuais justamente a idia de que preciso coletar as canes e narrativas populares

    antes que elas desapaream. Desde os primeiros momentos, a cultura popular algo em

    permanente risco, a depender da benevolncia de um intelectual para efetuar-lhe o