camaleão

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MUDANÇAS nas POLÍTICAS PÚBLICAS A valorização da Cultura no Brasil ENTREVISTA: Vinagre fala sobre o cenário bauruense Saiba como funcionam as LEIS DE INCENTIVO Ano 1 - nº1 - 2014. Distribuição gratuita. Proibida a venda completa e parcial.

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Revista produzida para a disciplina de Jornalismo Impresso III, 2013, do curso de Jornalismo da Unesp, câmpus Bauru, sob a orientação do Prof. Dr. Angelo Sottovia Aranha

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Page 1: Camaleão

MUDANÇAS nas POLÍTICAS PÚBLICASA valorização da Cultura no Brasil

ENTREVISTA:Vinagre fala sobre o cenário bauruense

Saiba como funcionam as

LEIS DE INCENTIVO

Ano

1 -

nº1

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Page 2: Camaleão

Editorial+

Expediente

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ReitorJulio Cezar DuriganDiretor da FAACNilson Ghirardello

Coordenador do Curso de JornalismoFrancisco Rolfsen Belda

Chefe do Departamento de Co-municação Social

Juarez Tadeu de Paula XavierProfessores OrientadoresMauro de Souza VenturaTássia Caroline ZaniniFrancisco Rolfsen Belda

EndereçoDepartamento de Comunicação So-cial. Av. Eng. Luiz Edmundo Carrijo Coube, 14-01 Vargem Limpa, Bauru-

SP/(14)3103-6000 Ramal: 6063

Revista produzida pelos alunos do 6º termo do curso de Comunica-ção Social: Jornalismo, do período

noturno da UNESP.Cinthia Quadrado

Gabriel CortezGuilherme Henrique

Jayme RosicaJéssica SumidaMaitê BorgesNatália DárioSolon Neto

Vinicius Vermiglio

ColaboraçãoRafael Valério (logo)

João Macedo (charge)Dennis de Oliveira (artigo)

Cultura, um assunto tão falado, tão exigido, mas tão pouco conhecido em sua essência. Pede-se por opções diversificadas de cultura mas, na maioria das vezes, desconhece-se o que se passa por trás desse setor.

Com a intenção de desmistificar a cultura, a Camaleão traz nas próxi-mas páginas diversas expli-cações e histórias – muito prazerosas de se ler – sobre a cultura em Bauru e região e as políticas públicas que permeiam sua existência.

Cineclubes, leis de in-centivo, faça você mesmo, coletivos culturais, religião, resenhas, ensaio fotográ-fico... são apenas alguns dos assuntos que você vai encontrar aqui. E para compreender tudo o que for dito, trazemos um Glossá-rio com as palavras-chave dessa edição especial.

Boa leitura!

Bauru, cultura,

Camaleão!

Capa - Foto: Jayme RosicaProdução gráfica: Alexandre Sueishi

Page 3: Camaleão

Índice

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Glossário8Leis de incentivo à cultura19Camaleão entrevista: Vinagre27Cultura aos olhos da mídia34A revolução nas políticas culturais50A Tropicália do século XXI61Mar Vermelho63Artigo: Culturas das classes subalternas

6O lado B do cinema

15Do It Yourself!

22Deus é brasileiro?

32A voz e a vez da periferia

42Ensaio Fotográfico

56Chico bento bauruense

62Saída pela loja de presentes

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4 5

Índice Índice

Page 4: Camaleão

Glossáriodimensões: simbólica, cida-dã e econômica. A dimensão simbólica aborda o aspecto da cultura que considera que todos os seres humanos têm a capacidade de criar símbolos que se expressam em práti-cas culturais diversas como idiomas, costumes, culinária, modos de vestir, crenças, cria-

ções tecnológicas e arqui-tetônicas, e também

nas linguagens ar-tísticas: teatro,

música, artes visuais, dan-ça, literatu-ra, circo, etc.

POLÍTI-CA CULTU-

RAL - pode ser entendida

como um con-junto de inicia-

tivas e medidas de apoio institucional sis-

temático desenvolvido pela administração pública ou ins-tituições civis, grupos comu-nitários e empresas privadas na perspectiva de orientar o reconhecimento, a proteção e o estímulo ao desenvolvimento

simbólico material e imaterial de uma determinada sociedade ou grupo social.

Em uma ação do poder pú-blico, uma política cultural se traduz por operações, princí-pios e procedimentos adminis-trativos e orçamentários com características de instruções e diretrizes, tanto de ação di-reta quanto de fomento, assim como de meios regulatórios apropriados ao setor - normas jurídicas que regem as relações entre os sujeitos e os objetos culturais - em modelos e rear-ranjos ideológicos e econômi-cos com vistas à conservação de patrimônio e a democrati-zação da cultura.

PONTO DE CULTURA - Pro-grama que promove o estímu-lo às iniciativas culturais da sociedade civil já existentes, por meio da consecução de convênios celebrados após a realização de chamada pública. A prioridade do programa são os convênios com governos estaduais e municipais para fomento e conformação de re-des de pontos de cultura em seus territórios.

CONTRACULTURA - Surgi-da nos Estados Unidos na dé-cada de 1960, a contracultura pode ser entendida como um movimento de contestação de caráter social e cultural.

Em sua conceituação mais ampla, cultura remete à idéia de uma forma que caracteriza o modo de vida de uma comu-nidade em seu aspecto global, totalizante. Num sentido mais estrito, como anota Raymond Williams, cultura designa o processo de cultivo da mente, nos termos de uma termino-logia moderna e cientificista, ou do espírito, para adotar um ângulo mais tradicional.

INDÚSTRIA CULTURAL - Indústria cultural, é um termo concebido pelos teóricos da escola de Frankfurt, Theodor Adorno e Max Horkheimer. As reflexões acerca desse tema surgiram a partir de uma “cul-tura industrializada” vista no período do nazismo, pois toda

arte produzida era dirigida somente àquele sistema. Já nos Estados Unidos, Adorno vê o sistema da indústria cultural de forma “enrustida” princi-palmente no entreteni-mento, e é através do cinema, por exem-plo, que a indús-tria cultural se faz presente e nos apresen-ta uma co-municação de massa.

MinC - O Ministério da Cultura é um ór-gão da administra-ção pública federal direta que tem como áre-as de competência a política nacional de cultura e a prote-ção do patrimônio histórico e cultural. Por meio das metas do Plano Nacional da Cultura, o MinC trabalha a concepção de cultura articulada em três

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Cineclubes se apresentam como alternativas às salas comerciais, mas apoio público ainda é insuficiente

Gabriel Cortez e Jayme Rosica

O Lado B do Cinema

Os ponteiros do relógio se aproximavam do meio-dia, em uma quinta-feira

de muito calor em Bauru, quan-do três estudantes de jornalis-mo chegaram à porta de um dos shoppings da cidade. Com uma câmera na mão e uma pergunta “no gatilho”, os jovens “dispara-

ram”, inúmeras vezes, uma úni-ca questão: “bom dia, você sabe o que é um cineclube?”. A per-gunta parecia, de fato, “atingir” os entrevistados, apesar do tom de abordagem simpático dos rapazes. Uma senhora arriscou: “cineclube é diversão, é alegria!”, mas, com um sorriso envergo-

nhado, não completou a frase. Desnorteado, um garoto devol-veu, respondendo com outra pe-gunta: “é um clube de cinema?”.

De forma geral, as pessoas se calaram, se desculparam, ou sorriram por não saberem a resposta exata. Não que isso seja algum demérito, afinal, “os cineclubes perderam espaço desde que os filmes foram para a internet, as locadoras e as sa-las de cinema modernas”, garan-te o professor Arlindo Rebbechi Júnior, do Departamento de Ci-ências Humanas da FAAC (Fa-culdade de Arquitetura, Artes e Comunicação), da UNESP/Bau-ru. Arlindo pesquisa o cinema moderno brasileiro e coordena o Ciclo Unesp de Cinema, um projeto de exibição e análise de filmes, que funciona como cine-clube e é aberto aos universitá-rios e à comunidade bauruense.

Mas, afinal, o que é um cineclube?

José Augusto Vinagre, pro-dutor cultural e ex-secretário de cultura de Bauru, é um dos entusiastas da prática e já foi presidente da Federação Pau-

lista de Cineclubes. Desde 2004, ele coordena o Cineclube Aldire Pereira Guedes e expli-ca que, de maneira geral, “um cineclube é uma associação de pessoas da sociedade civil que se juntam com o objetivo de desenvolver a formação cultural do público e garan-tir o acesso de determinada comunidade a uma produção cinematográfica não comer-cial, sendo, normalmente, en-tidades sem fins lucrativos”.

“O cineclubismo merece uma

política pública própria, assim como a leitura

já tem sua política pública”

O provável primeiro caso documentado de organização de um cineclube – com esta-tutos, sessões com debates e produção de filmes – é o do Cinéma du Peuple (Cinema do

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Arlindo RebecchiPesquisador

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Povo), organização criada por militantes e simpatizan-tes anarquistas em Paris, em meados de 1913. Em Bauru, a história dos cineclubes co-meçou nos anos 50, com o Fotocineclube, uma entidade que durou três anos e, de-pois, voltou a funcionar, com o nome Cineclube de Bauru. “Foi um cineclube muito tra-dicional, faziam exibições em universidades e faculdades, na época”, conta Vinagre. O Cineclube de Bauru funcio-nou com atividade ininter-rupta até o final dos anos 80.

“‘Não existe uma política pública es-pecífica para o ci-neclubismo. O que existe são políticas públicas na área de cultura que acabam chegando aos cine-

clubes”

Já nos anos noventa, outras iniciativas de cineclubismo flo-

resceram, como o primeiro ci-neclube da Unesp e o ArtSet Ci-neclube, ambos independentes. Entretanto, foram inciativas de pouca duração. “Esse período, dos anos noventa até a meta-de dos anos 2000, marcou a história do cineclubismo em Bauru como um período de re-tração”, complementa Vinagre.

Hoje, a realidade dos ci-neclubes locais é um pouco melhor, mas continua difí-cil. Problemas para comprar equipamentos, ter acesso aos filmes e encontrar pes-soas interessadas são cons-tantes, bem como a falta de políticas públicas adequadas.

Cine Extinção

No centro da cidade, no an-dar superior de uma loja de discos, livros e roupas, fun-ciona todo sábado a noite o Cine Extinção, um cineclube voltado para a cultura e a ci-nematografia “underground”.

A loja Extinção Discos abri-ga o cineclube desde maio de 2011, explica Aran Carriel, o curador do Cine Extinção: “é uma sala pequena, com capa-

cidade pra quinze pessoas, em média. E foi meio que adaptada pra fazer o cineclube. A gente coloca puffs no chão, sofás, tudo recebido por meio de doação”.

A proposta de Alan é exibir fil-mes excluídos do padrão comer-cial das grandes salas de cinema tradicionais. “O enfoque maior é em produções alternativas, vol-tado mais para o lado artístico e menos comercial. Coisas que você normalmente não vê no circuito

tradicional de cinema”, ressalta.Apesar dos filmes pertence-

rem a um nicho mais específi-co, o público do Cine Extinção varia bastante, dependendo do filme a ser exibido e até de outros eventos organizados pela Extinção Discos que se-jam simultâneos às sessões.

O incentivo de políticas pú-blicas é inexistente. O Cine Ex-tinção já contou com o suporte de alguns colaboradores, no

Reprodução do filme Sleeper, 1973, do diretor Wood Allen, no Cine Extinção

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celo

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José Augusto VinagreProdutor Cultural

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entanto, nenhum diretamente ligado ao governo. “Já tivemos ajuda do coletivo Enxame, aqui de Bauru, por um tempo, e ago-ra temos suporte de uma loja de informática com relação a equipamentos(...). Mas, política pública para o cineclube, nun-ca teve não”, conta o curador.

Amor e Luz

O Cineclube Amor e Luz é outro grupo que movimenta a vida cultural bauruense. A

iniciativa é sustentada por vo-luntários do CEAC (Centro Es-pírita Amor e Caridade - Bau-ru SP) e tem como objetivo “divulgar a cultura através da arte do cinema”, como explica Luís Antônio de Mello, um dos coordenadores do projeto.

De caráter cult, as obras es-colhidas por Luís Antônio são de diversas épocas e naciona-lidades, mas “sempre apre-sentam alguma mensagem cultural e de elevação inte-rior”, lembra ele, com o sorriso

no rosto de quem havia acaba-do de encerrar mais uma ses-são, com três assíduos presen-tes: Dona Jaíza (61), Seu João Carlos (72) e Dona Mirtes (65).

Desde 2007, data de sua fundação, o Cineclube Amor e Luz já exibiu mais de trezentos filmes diferentes. As projeções são semanais, sempre no mes-mo horário, e ocorrem no audi-tório do CEAC. As peças em exi-bição não são necessariamente espíritas e a entrada é gratuita.

Assim como na maior parte dos cineclubes da cidade, não existe o apoio de políticas públi-cas. “O CEAC nos fornece o es-paço para fazer as sessões, mas a aparelhagem mesmo, pro-jetor, tela e filmes, é toda par-ticular”, lembra Luís Antônio.

Ciclo Unesp

A primeira edição do Ciclo Unesp de Cinema, coordena-do pelo professor Arlindo Re-bbechi Júnior, ocorreu entre os meses de março e junho de 2013, com encontros sema-nais, no próprio campus da universidade. Na ocasião, o tema debatido foi “A constru-

ção do olhar dentro do cinema”. A ideia de montar um cine-

clube na universidade surgiu em conversas do professor com seus alunos, que recla-mavam da falta espaço para a difusão e o debate de filmes alternativos na cidade. “E, tam-bém, surgiu olhando um pou-co para as salas de cinema de Bauru. Há uma demanda des-se tipo de evento cultural. Não tem uma sala de cinema com exibições diárias ou semanais de filmes que não estejam nes-se circuito blockbuster e que sejam alternativos, antigos, ou de fora do eixo comercial. A nossa proposta é formar este público para discutir, anali-sar e criticar o que é a lingua-gem cinematográfica”, reforça.

O professor destaca que o cineclubismo é importante porque forma um público pri-vilegiado e leva o espectador a assistir o filme não só de ma-neira inocente e pelo entrete-nimento. “Ele quer discutir o filme de maneira crítica, quer debater a partir de outras cine-matografias e de outras lingua-gens. O cineclubismo tem esse papel na sociedade, de formar

Projetor, notebook e telão: jovens assistem ao documentário “LoudQUI-ETloud”, que conta a história da banda norte-americana Pixies

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públicos que sejam capazes de ver o cinema como um objeto ar-tístico, cultural e crítico”, aponta.

O apoio público

Hoje, o cinelcubismo se apoia em políticas que não lhe são inicialmente dedica-das. “Na verdade, não existe uma política pública específi-ca para o cineclubismo. O que existe são políticas públicas na área de cultura que acabam chegando aos cineclubes, com a doação de equipamentos e até mesmo de recursos, como é o caso do programa dos Pontos de Cultura, do Ministério da Cultura”, explica José Augusto Vinagre. Ele ressalta que “ape-sar de não ser uma política voltada especificamente para a questão cineclubista, os ci-neclubes acabam conseguindo se empoderar desses benefícios e garantir uma programação com maior estrutura, melho-res equipamentos e, até mes-mo, recursos para se manter”.

Vinagre acredita que deve-ria haver uma política pública específica para os cineclubes, “até mesmo para garantir o ci-

neclube em sua forma tradicio-nal, enquanto uma associação de pessoas sem fins lucrativos, visando basicamente a questão da exibição”. Ele afirma que o ideal seria criar uma política pública para garantir a criação de cineclubes, como se fosse uma incubadora. “Existem hoje cineclubistas antigos, não só em Bauru como no estado todo, que poderiam dar esse suporte inicial para que comunidades e, principalmente, grupos de pessoas da periferia, pudessem se organizar de forma local e começar uma programação. Hoje o acesso à mídia e ao equi-pamento é muito mais fácil”.

Arlindo concorda com Vi-nagre e acredita que o cine-clubismo merece uma política pública própria, assim como a leitura já tem sua política pública. Para ele, o Estado deve incorporar essa discus-são, incentivar e patrocinar o cineclubismo, não só na uni-versidade, mas também fora dela: “Bauru não incentiva os cineclubes. A prefeitura de-veria pensar mais nisso como forma de produção de cultura e de reflexão crítica”, finaliza.

Leis de incentivo à Cultura

Como funcionam e quais os entraves da Lei Rouanet

Em 23 de dezembro de 2013, a Lei nº 8.313/91, que posteriormente ficou

conhecida como Lei Rouanet, completou 22 anos. Depois de ser promulgada pelo ex-Presi-dente Fernando Collor de Melo, a lei, que recebe o nome do en-tão secretário da pasta, Sérgio Paulo Rouanet, foi recepcionada como um avanço no setor cul-tural do Brasil, já que ela seria a principal forma de financia-mento da cultura brasileira.

Oriundo da Lei Rouanet, surgiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), que é formado por três mecanismos: o Incentivo Fiscal (Mecenato), o Fundo Nacional de Cultura (FNC) e o Fundo de Investimen-to Cultural Artístico (Ficart). Seu objetivo é arrecadar recur-sos para estimular a produção e a disseminação de bens cul-

turais, além de preservar os pa-trimônios materiais e imateriais e de incentivar a pluralidade da cultura nacional. Os recursos são provenientes do investi-mento feito por pessoas físicas e jurídicas que usam uma por-centagem do seu Imposto de Renda (IR) em ações culturais aprovadas pelo Ministério da Cultura (MinC).

No incentivo fiscal, pessoas físicas e jurídicas podem in-vestir parte do seu Imposto de Renda, com isenções em até 100% do valor do IR, em ações culturais. De acordo com Chico Maia, Secretário de Agricultura em Bauru e consultor na cap-tação de recursos nessa área “a pessoa jurídica pode investir até 4% do Imposto de Renda, en-quanto a pessoa física pode investir até 6%. Em ambos os casos, o investidor deve

Cinthia Quadrado e Guilherme Henrique

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depositar o valor desejado para o patrocínio na conta bancária do projeto, que é aberta e su-pervisionada pelo MinC, até o último dia útil do ano corrente”. Em 2012, foram incentivados três mil projetos com um total de captação de R$ 1,2 bilhão em dedução fiscal.

O processo feito pelas pes-soas interessadas em ter seus projetos financiados pelo Go-

verno demora aproximadamen-te 120 dias. O primeiro passo é a pessoa, física ou jurídica, estar cadastrada no Salic Web, site no qual ele poderá ter acesso a todas as fases de desenvolvi-mento de projeto e busca pelas possíveis empresas investido-ras. Depois disso, a pessoa pode entrar em uma área chamada

Incentivo Fiscal para apresentar seu projeto à Comissão Nacional de Incentivo à Cultura. Segundo Chico Maia, “a partir do momen-to em que o projeto é aprovado, ele é publicado no Diário Oficial da União e o responsável pelo projeto está apto para captar os recursos”. Assim, o projeto tem três anos para fazer a captação.

No momento em que se atinge 20% da captação, os re-cursos podem ser usados. De-pois do desenvolvimento do projeto, “a pessoa deve prestar contas com notas, recibos, auto-rizações e materiais que forem produzidos” afirma Chico Maia. Então, o Ministério da Cultura pode aprovar essa prestação de contas e o indivíduo continuará com a oportunidade de apre-sentar novos projetos ao Minis-tério. “Quanto mais completo for o projeto, mais rápida e fácil será a análise feita no momento final pelo Ministério da Cultura”, alerta Chico Maia.

A Lei Rouanet em Bauru

Alguns projetos culturais locais conseguem usufruir dos recursos provenientes dessa lei. Uma dessas iniciativas é o Nu-triamigos, que visa incentivar uma alimentação saudável em

crianças através de desenhos animados, músicas e material impresso. Coordenado pela nu-tricionista Suzana Franciscato, o projeto já conseguiu arrecadar junto a empresas quase todo o valor de R$1.163.790,00 ao qual foi autorizado, o que possibili-tou a produção de cinco episó-dios de 11 minutos cada, além de confecção e distribuição de material didático para 3 mil es-colas públicas.

Suzana conta que sem os re-cursos levantados via Lei Rou-anet, o Nutriamigos não teria tamanha abrangência: “o incen-tivo da Lei Rouanet foi decisivo para a atualização do Progra-ma Nutriamigos em desenho animado com uma linguagem direta para as crianças”. A nutri-cionista afirma que a principal dificuldade foi na hora de bus-car a verba junto às empresas. “O MinC tem critérios muito bem definidos e tivemos que atender a todas as exigências legais. Mas a grande dificulda-de é conseguir os patrocínios, porque a verba destinada é uma parte do que seria recolhido para o Imposto de Renda e num ano de baixo crescimento eco-nômico nem todas as empresas geram lucro”, disse a idealizado-ra do Nutriamigos.

Embora o projeto de Suza-na tenha sido bem sucedido na captação de recursos, isso não

é comum em cidades fora dos grandes centros, como Bauru. Muito do fato de poucos projetos conseguirem acessar esses recur-sos se deve, segundo Chico Maia, a desinformação de quem coordena projetos dos tramites que cercam o incentivo governamental, para ele “essa informação está num ní-vel muito elitizado. Você percebe que as pessoas que acessam esses recursos são aquelas que sempre tiveram acesso às informações”. Isso faz com que os recursos fi-quem concentrados em projetos que, em teoria, teriam viabilidade comercial para se manter.

Em agosto de 2013, os reno-mados estilistas Pedro Lourenço,

Chico Maia, consultor e Secretário da Agricultura.

Suzana Franciscato, idealizadora do Nutriamigos.

Rep

rodu

ção/

Face

book

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Do It

Your-self!

O que é essa tática e como ela interfere

na vida dos seus praticantes

Natália Dário

Nascido nos anos 50 na In-glaterra do pós-guerra, o conceito de Do It Your-

self (DIY) indica qualquer ativi-dade feita pela própria pessoa interessada, sem a contratação de profissionais. No momento em que surgiu, estava ligado a uma maneira de acelerar o pro-gresso, e foi só nos anos 70 que passou a ser associado à contra-cultura, como protesto contra o modelo capitalista representa-do pela indústria, pregando que todos são capazes de produzir o que consomem. O seu efeito, porém, foi além do esperado: estimulou o espírito inovador da população ganhando espaço ao redor do mundo.

Na cidade de Bauru, há vá-rios exemplos de profissionais que trabalham segundo essa filosofia. Luis Paulo Domingues,

Alexandre Herchcovitch e Ro-naldo Fraga foram autorizados a captar recursos para a elaboração de três desfiles, sendo dois deles no exterior. Lourenço abocanhou R$ 2,8 milhões, Herchcovitch R$ 2,4 milhões e Fraga R$ 2 mi-lhões. A reação foi instantânea. Diversos setores questionaram a alocação de recursos para a alta--costura. O prin-cipal argumento residiu no fato de esses desfiles se voltarem a fins exclusivamente comerciais. O MinC, por sua vez, se defendeu. “O Brasil luta há muito tempo para se intro-duzir e ter uma imagem forte na moda internacio-nal. Essa oportunidade tem como consequência o incremento das confecções e gera empregos”, jus-tificou a ministra da pasta Marta Suplicy. A polêmica envolvendo os estilistas suscita a dúvida de uma suposta concentração de recursos e elitização da Lei Roaunet.

Chico Maia concorda com a tese de que a lei é elitista, mas com ressalvas. “Quem tem mais acesso à informação se apropria. Mas,

esse não é o ponto central. Ela é elitista, por que as pessoas que tem mais acesso à informação se apropriam e vão atrás para obter recursos”, comenta. Chico defende que haja uma maior capacitação para que mais interessados pos-sam participar.

Atualmente, o projeto de lei 6722/2010 tramita no Congresso

e caso seja apro-vado, instituirá o Programa Nacio-nal de Fomento e Incentivo à cultu-ra (Procultura). Outro projeto de lei, o 1139/2007, tem como intuito descentralizar para além do sudeste a distribuição de re-cursos, incentivar a produção de artis-tas negros e elevar

a porcentagem permitida de re-núncia fiscal aos incentivadores culturais. O projeto que cria o Procultura segue seu processo de tramitação e desde agosto aguarda audiência pública. Já o PL1139/2007 foi aprovado em dezembro passado pela Comissão de Finanças e tributação da Câma-ra dos Deputados e agora segue para a Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania.

“Ela é elitista, por que as

pessoas que tem mais acesso à informação se

apropriam e vão atrás para obter

recursos”.

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Chico MaiaSecretário da Agricultura

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integrante da banda Universo Elegante conta que se interessou pela ideia do Faça Você Mesmo por não encontrar outras opções de como desenvolver o seu traba-lho: “com os músicos das bandas que eu toquei aqui em Bauru não dava para contar, pois o pessoal costuma manter várias bandas ao mesmo tempo e não botar fé em um trabalho específico. Ou seja, se eu quisesse mesmo desenvolver o trabalho que eu já fazia aqui, precisaria fazer por mim mesmo”, comenta.

Já Aran Carriel, integrante da banda Autoboneco e do empório contracultural Extinção Discos, Cinema e Artigos Culturais, ex-plica que começou a trabalhar com o DIY para ter o máximo de autonomia fazendo o que gos-ta: “aliar trabalho, consciência e diversão e compartilhar com quem puder, fora da indústria de massa, por uma relação mais pessoal. ‘Tomar a vida pelas pró-prias mãos’ faz sentido assim pra mim”, complementa.

Manter um trabalho seguindo as ideias do Do It Yourself, im-plica em se dedicar ao projeto realizando os mais diversos tipos de atividade. Aran edita e produz

todo o material da Autoboneco e é o principal compositor, além de ajudar a organizar os eventos. “Fiz a Autoboneco em 1993 e até hoje somos uma ‘unidade mutan-te’ que grava discos, faz shows audiovisuais, vídeos, fanzines, etc. Temos 15 CDs disponíveis atualmente e muitos K7s, tudo gravado, reproduzido e distri-buído de modo independente. Sempre trabalhamos de um jeito muito simples e econômico, de uma a cinco pessoas juntas, sem grandes reuniões ou formalida-des”, comenta Aran, que também destaca que a divulgação de to-das as atividades da Autoboneco é feita online, pessoalmente e por meio de cartazes físicos nas ruas. Luis explica que a banda Univer-so Elegante não tem integrantes fixos e que, atualmente, ele tem trabalhado com os músicos que gravaram o CD Mar Vermelho. “Nós fizemos dois shows do disco até agora. Eu fui para São Paulo ensaiar com eles no primeiro show e no segundo eles vieram um dia antes para a gente en-saiar aqui. Nos dois shows nós que corremos atrás de tudo e divulgamos principalmente no Facebook”, aponta Luis.

E muitas vezes o Faça Você Mesmo requer sacrifícios dos seus praticantes. “Para gravar Mar Ver-melho, eu não tentei nenhum contato com gravadoras. Paguei a gravação em São Pau-lo e os músicos foram o dono do estúdio, os dois produtores do disco e um amigo”, comenta Luis, que afirma não receber muito reconheci-mento, por parte do público ouvinte, por bancar a gravação do disco com seu próprio dinheiro. “Criei a loja logo depois de me for-mar em Jornalismo, sem perspectiva com o meio de trabalho, e eu gostava muito de LP’s e a cultura de re-ciclagem. A Extinção foi criada para sobre-vivência financeira, mas ainda é muito di-fícil, por isso também realizo outros traba-lhos”, conta Aran.

Mesmo com todas as dificuldades apre-sentadas pela ideia do DIY, Aran afirma que vale a pena: “Meu estilo de vida desde a adolescência tem essa direção”, aponta. Já Luis diz não saber ao certo se é válido, ape-sar disso lhe fazer bem: “No meu caso, eu sempre tenho a oportunidade de não fazer mais um CD e mergulhar no meu trabalho com minha produtora de cultura e preserva-ção histórica. Mas, assim, eu ficaria tocando sozinho as músicas e isso não tem graça. Gosto de ver a música com os arranjos e com a banda. Não se trata de acreditar ou op-tar. Só tinha essa escolha se quisesse continuar a desen-volver meu trabalho musical”, finaliza.

“Se eu quisesse mesmo desen-

volver o trabalho que eu já fazia

aqui, precisa-ria fazer por mim mesmo”

Luis DominguesUniverso Elegante

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Page 12: Camaleão

Camaleão entrevista:

Vinagre

José Augusto Vinagre, 48 anos, ex-secretário de cultura de Bauru. Vinagre tem papel de destaque na cultura bauruen-se. Durante sua gestão, de 2005 a 2008, trouxe, pela pri-

meira vez para a cidade a Virada Cultural. Foi presidente da Federação Paulista de Cineclubes e delegado pelo Estado de Sao Paulo na I Conferência Nacional de Cultura. É integrante do Instituto Cultural de Artes Cênicas do Estado de São Pau-lo. Atualmente, trabalha como produtor musical e auxilia na elaboração de projetos culturais. Confira em entrevista como a cultura tem sido tratada em Bauru e no Brasil e conheça mais sobre o trabalho de Vinagre:

Maitê Borges e Natália Dário

CAMALEÃO: Como você analisa o cenário cultural hoje em dia no Brasil?VINAGRE: Eu acho que teve uma evolução muito grande na área de cultura do país desde a primeira administração do Lula e do Gilber-to Gil como Ministro da Cultura. É lógico que isso acaba contagiando o resto dos processos nos estados e nos municípios. Então, a gente

teve um crescimento cultural, no qual fala-se mais sobre cultura, discute-se sobre cultura e hoje são mais firmes as políticas cul-turais. Um exemplo é a política de editais. Antigamente, pra você ter acesso a um recurso público na área de cultura, precisava-se de uma política de balcão. Você tinha que pegar seu projeto, se aproximar de algum político e

pedir no balcão da secretaria do município, dos estados, pra você conseguir um recurso. Hoje, o acesso é mais democrático com as políticas de editais: você en-tra, participa do concurso, se o seu projeto for legal você acaba acessando os recursos. Isso é uma evolução também. E a própria criação e institucionalização da cultura começou a crescer.

C: E aqui em Bauru?V: Eu acho que o Edson, que é o Secretário de Cultura, é um fun-cionário de carreira e está na se-cretaria há muitos anos, então ele conhece essa área e acredito que ele tem tocado dentro das possibi-lidades e da forma mais adequada sim. Como eu falo, sempre existe o problema de recursos, nunca ele vai conseguir atender a toda a demanda que se tem. Então, é necessário também que o setor cultural corra sozinho, de forma independente. E hoje a gente tem projetos bons em Bauru como o Enxame Coletivo funcionando como Casa Fora do Eixo Bauru e outros espaços próprios como o pessoal do Protótipo e o Centro Cultural Celina Neves que tam-bém é independente.

C: Quais as principais difi-culdades que você encon-trou na sua gestão, em rela-ção às políticas públicas?V: A maior dificuldade, que a maioria encontra é a questão de grana, que é uma característica da área de cultura. Normalmente a cultura é uma das que tem menor orçamento. Tudo isso dificulta todos os projetos que você tem nessa área.

C: E como você conseguiu reverter essa situação?V: Parcerias, atuação política forte junto ao Ministério da Cultura... Como Secretário Municipal de Cultura, eu trouxe pela primeira vez a Virada Cultural. Os pontos de cultura foi um programa que a gente começou a desenvolver aqui quando eu era secretário. C: Como você vê a divul-gação da cultura na cida-de? Você acha que é bem difundida ou é silenciada pela mídia?V: Tem muita gente que trabalha com cultura na capital, por exem-plo, e não tem acesso à grande im-prensa. Pelo tamanho da cidade e pelas condições dela, em Bauru

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isso não acontece. Vários órgãos de imprensa locais tiram algum espaço para a divulgação de ativi-dades culturais, então tem alguma facilidade de divulgação nesse plano. Ao mesmo tempo, hoje a gente tem uma facilidade que é a internet. Então com facebook, blog, você consegue divulgar bas-tante as atividades culturais. C: Você pensa que a cultu-ra bauruense representa todas as classes sociais e etnias, ou é voltada mais para um tipo de público?V: Eu acho que o grande problema da cultura em Bauru é a falta de descentralização das atividades culturais e dos processos de for-mação da área de cultura. Eu creio que isso é um processo histórico. Bauru não tinha um Centro Cul-tural e o movimento cultural era muito forte. Depois que criou o Centro Cultural, automaticamente acabou centralizando muito as atividades culturais em determi-nado ponto da cidade. Acho que um dos grandes desafios de quem assumir daqui pra frente a área de cultura é fazer com que essa descentralização aconteça. É fazer com que as atividades culturais e

os processos de formação cultural atinjam os bairros da periferia de Bauru.

C: A periferia é defasada em termos de cultura?V: É defasada em termos de opção cultural e em termos de equipamentos. Você tem al-gumas bibliotecas espalhadas pela cidade, mas Bauru cresceu muito e isso acaba não atingin-do a maioria da população que está fora do centro urbano.

C: Em sua opinião, Bauru pode ser considerada uma cidade cultural?V: Eu creio que sim. Até mes-mo pela questão universitária. Isso facilita de alguma forma a produção cultural e a difusão também. Então, eu creio, sim, que Bauru pode ser chamada de “culturalmente bem servida”. C: Qual é o cenário cultu-ral de Bauru atualmente? Se puder comparar com a sua gestão...V: Eu acho que cada ano que passa vai evoluindo mais a cultura em Bauru. Essa atual gestão do Rodri-go Agostinho teve uma evolução

de recursos para a área da cultura, até mesmo por uma situação mais tranquila que a Prefeitura passa. Então é lógico que isso acaba for-talecendo a área de cultura. Ao mesmo tempo, eu vejo que com o surgimento dos coletivos cultu-rais, novos grupos tem surgido, o que também fortalece a manifes-tação cultural independente da questão pública.

C: Você sente que a cida-de tem uma boa procura pela cultura por parte da população?V: A gente tem um problema na área de cultura que é a questão da participação cultural. Hoje, você vai fazer um show de sertanejo e vai lotar. Se eu trago uma or-questra sinfônica, nem sempre você consegue fazer isso. Cada vez mais, você tem que oferecer esse tipo de atividade para que as pessoas possam ter acesso a esse tipo de produção cultural.

C: Destaque um ponto que você considera que se sobressai na questão da cultura em Bauru e um ponto que a cidade ainda precisa evoluir.

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V: Eu acho que um ponto que Bau-ru se sobressai é exatamente essa estrutura que já existe tanto de equipamentos culturais, como na parte de legislação cultural. Então a gente tem uma lei de fomento à cultura, que é o Programa de Estímulo à Cultura e o Conselho Municipal de Cultura funcionan-do. Então a cultura de Bauru está bem estruturada. E o que a gente pode destacar negativa-mente, é que cada vez precisa mais. A gente precisa de mais espaço, a cidade cresceu muito e a gente não está conseguindo acompanhar isso. C: Como é o seu trabalho como produtor cultural?V: Logo que eu saí da Secretaria de Cultura, eu foquei na produção de teatro, então trouxe várias peças pra Bauru. Isso até o final do ano passado. Eram peças mais pesa-das e densas como, por exemplo, “Deus da Carnificina”, com o Paulo Betti e a Debora Evelyn. Agora meu trabalho está mais focado na área de assessoria municipal na área de gestão cultural e ela-boração de projetos para leis de incentivo, então trabalho muito com a Lei Rouanet.

C: E você tem encontra-do alguma dificuldade?V: Com certeza! Vou pegar um exemplo na produção de tea-tro: pego uma peça de peso e trago pra Bauru. O custo dela é muito alto. A gente não tem a cultura de um empresário local apoiar uma atividade desse porte. Você fica depen-dendo quase que unicamente da bilheteria. Não é uma cer-teza se vai ser sucesso de bi-lheteria ou não. É difícil e isso dificulta muito vir uma ativi-dade grande pra cá.

C: O que você levou da sua gestão como secre-tário de cultura para sua profissão atual de produ-tor cultural?V: Experiência. Você acaba lidando com uma média de 15, 20 pessoas por dia com os problemas mais diversos e na maioria das vezes você acaba tendo que dizer não para essa procura por não ter recurso financeiro pra atender todo mundo. Então, você acaba tendo que se segurar muito pra seguir com as coisas e isso acaba te dando uma experiência que eu levo no dia a dia.

Deus é brasileiro?Apesar da maioria cristã, o debate sobre a diversidade religiosa ainda é intenso

O Brasil é marcado por ser um país com uma diversi-dade enorme no aspecto

físico, sócio-econômico e cultu-ral. Foi por meio da miscigena-ção, da troca de ideias e do con-vívio entre pessoas diferentes que o país se enriqueceu cultu-ralmente. Apesar da maioria ca-tólica brasileira, as religiões das minorias, como as de origem africana, fizeram com que as músicas, danças e mitos também influenciassem o cotidiano, bem como a histó-ria dos brasileiros.

Há que se destacar o cres-cimento na variedade das re-ligiões. Ainda que os dados do censo de 2010 do Instituto Bra-

sileiro de Geografia e Estátistica (IBGE) mostrem que existe uma predominância das religiões cristãs, as religiões das mino-rias passaram a ter mais adep-tos. O Candomblé, por exemplo, apresenta 176.363 pessoas que se consideram seguido-ras, a Umbanda aparece com 407.331 praticantes e outras 14.103 pessoas se conside-ram adeptas a outras religi-ões da matriz afrobrasileira.

A discussão sobre esse as-sunto não se limita apenas às crendices da religião, mas vai muito além: trata-se de falar na ferida que ainda existe no Brasil, a qual se refere ao preconceito sobre a cultura do negro.

Cinthia Quadrado e Jéssica Sumida

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feitas na língua yorubá e nada em português”, revela Paulo de Éfon.

Quanto à tradição oral do Can-domblé ressalta-se a importância da linguagem. “Nós temos que ter uma boa noção do yorubá para não falar besteira. Cantigas que eram feitas em 200 anos atrás tinham uma dificuldade maior porque não se passava nada por escrito, e sim, oralmente”, disse o Babalorixá. De acordo com o relato dado por Paulo, o yorubá quase foi extinto devido aos pro-blemas da falta de precisão sobre as palavras das cantigas. Por isso, a casa Axé Olorokê, que também serve como um Ponto de Cultura,

visa o ensinamento para que as cantigas mantenham suas histórias e para que elas con-tinuem fazendo sentido para as outras gerações.

Apesar de receberem o in-centivo do governo, o Ponto de Cultura Olorokê ainda não tem verba o suficiente para fazer todas as suas apresentações, festivais e demais atividades. As pessoas confundem os ensinos sobre a cultura afro com o ensino sobre a religião, mas não é algo sobre a religião em si”, disse Paulo de Éfon. Por meio da Lei 10.639/03 há um incentivo para o ensino da cultura negra, mas ainda sim, o preconceito impede que ou-tras pessoas possam aprender a cultura de origem africana. “Nós somos um país de mistura, então nós não podemos dispensar a cultura negra, comenta.

Instituto Cultural Aruanda

O ICA é um projeto que com-bate a intolerância religiosa e tam-bém é um dos Pontos de Cultura em Bauru. O instituto foi idea-lizado pelo professor e escritor Rodrigo Queiroz e firmou-se ofi-cialmente como associação civil em 2006. De acorco com Rodrigo, “o ICA surgiu da necessidade de um grupo de pessoas que buscam consolidar um ambiente para a prática e estudo da religião, bem como legitimar juridicamente as ações sociais, culturais e assisten-ciais desde grupo”.

Casa Axé Olorokê

O Candomblé nasceu na Áfri-ca e, quando chegou no Brasil, trouxe fortes influências para a cultura local. Para Babalorixá Paulo de Éfon, responsável pela Casa de Candomblé Axé Olo-rokê em Bauru, “nós podemos dizer que o Candomblé no Bra-sil é uma religião afro-brasileira, já que ela tem matriz africana, mas com influências da cultura diversa do brasileiro”. Essa re-ligião se divide em regiões da África de onde vieram deter-minadas etnias de culto, como os ketus, que saíram de regiões como a Nigéria; os bantus, que saíram de regiões da Angola e os Jejes, que moravam na região de Gana e Togo.

Paulo de Éfon conta que a Casa Axé Olorokê “foi fundan-da em outubro de 1979, mas só em 1982 o sacerdote Gilberto, que era responsável pelo lugar, abdicou de seu cargo, fazendo com que Paulo se tornasse o ba-balorixá da casa”. Sobre o papel do sacerdote, Paulo revela que “é algo que já nasce pré-deter-minado nas pessoas, faz parte do Odu, ou seja, o destino que as pessoas recebem antes mesmo de nascer”.

Sobre a música e a dança, Pau-lo explica que a música é muito importante durante as rodas de danças. “Na casa, as danças são mais sincronizadas e diferem um pouco da origem africana e o orixá depende da música para que haja o transe. As cantigas são

“Era difícil no início escancarar a bandeira da causa, mas hoje o ICA se considera muito

respeitado”.

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Festival na Casa de Candomblé Axé Olorokê realizado em janeiro de 2014.

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Rodrigo QueirozFundador do Instituto Cultural Aruanda

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Com o projeto “Amostras e Mostras da Cultura Popular Bra-sileira”, o ICA foi selecionado em um edital da Secretaria Munici-pal de Cultura e tornou-se um ponto de cultura em Bauru.

Rodrigo explica que “o Ins-tituto conta com oficinas de te-atro, artes plásticas, capoeira e exibições de filmes, com cursos presenciais e também por meio da plataforma de ensino à dis-tância”. Além disso, eles também tem um jornal. uma revista, um canal de TV e uma webrádio, o que fez com que o Instituto se tornasse um centro de referên-cia fora do Brasil.

Rodrigo Queiroz acredita que é fundamental o estudo da cultura africana pela influência dela na identidade do país. Em relação à questão da intolerân-cia religiosa, o fundador da ins-tituição comenta que “era difícil

no início escancarar a bandeira da causa, mas hoje o ICA se con-sidera muito respeitado”. Ape-sar de ter enfrentado esse tipo de resistência, com a iniciativa de seus participantes foi pos-sível produzir e fomentar cada vez mais a manuntenção da memória e da identidade afro-brasileira.

Assim, seus integrantes con-seguem promover ainda mais o estudo, a liberdade de crenças, a valorização dos festejos popula-res, além da produção artística da comunidade em Bauru.

Liberdade de direito ao culto

Mesmo em um país em que a diversidade religiosa tem gran-des proporções, a intolerância ainda existe. Não só pelo histó-rico do país, que criminalizou algumas religiões, mas, também pelo fato de que esse assun-to só foi discutido a partir do momento em que as minorias passaram a se manifestar com mais força. como em 1995, com a Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo.

Como afirma Paulo de Éfon, o preconceito já vem do fato de que as pessoas internalizam uma ideia errônea, disseminada pela sociedade. “O preconceito

é o verdadeiro câncer da huma-nidade”. Esse é um ato de “não compreender a visão do outro e às vezes a gente vê absurdos acontecendo ao mesmo tempo com outras religiões”.

Apesar da Casa Axé Olorokê ter sido uma das primeiras cons-truções no bairro Jardim Carolina, certa vez, seguidores de uma igre-ja evangélica jogaram sal grosso na frente da casa, como sinal de que eles queriam expulsar os moradores do local. Paulo disse que “esse foi um dos atos que mais o deixou alegrado, já que, no Candomblé, o sal grosso renova as energias das pessoas fazendo totalmente o contrário do que as outras pessoas esperavam”.

“Hoje em dia ainda há pessoas que comemoram a libertação dos escravos, há quem ainda esteja vivenciando isso”, afirma o Baba-lorixá. A influência dessa cultura é nítida no cenário brasileiro, seja pelo vocabulário ou até mesmo pelos mitos e lendas africanos. “Mas ainda é necessário que se estimule o aprendizado da cul-tura afro-brasileira nas escolas”, salienta Paulo.

Segundo Patrícia Alves, pro-fessora e estudiosa do tema, atu-almente existem projetos e leis que tentam evitar ou amenizar o preconceito religioso, sobretudo

por parte das religiões de origem africanas. “Nós temos algumas iniciativas contra a intolerância religiosa, como a ‘Cor da cultura’.”, afirma Patrícia. O projeto “Cor da Cultura” foi criado em 2004 e está apoiado na Lei 10.639/03. O intuito desta lei é valorizar a cul-tura afro-brasileira por meio da criação de produtos audiovisuais e de ações culturais e coletivas. “Contudo, mesmo que existam incentivos culturais, às vezes não há espaço para recebê-los”, escla-rece Patrícia

A questão da tolerância não se refere às características das religiões em si, mas à convivên-cia entre a diversidade. É preciso que o Estado atue na promoção da diversidade religiosa no país para que o ensino sobre as re-ligiões também seja abordado nas escolas. A lei 10.639/03 é um dos primeiros indícios para que isso aconteça. Mesmo tendo sida instituída em 2003, a lei de incentivo ao estudo da cultura afro-brasileira ainda não se de-senvolveu de forma eficaz. Os brasileiros têm uma nação rica em termos culturais de origens diversas. Por isso, deveria existir uma liberdade de expressão sobre essas culturas para que elas sejam contempladas por incentivos que enriqueçam a história do Brasil.

“Hoje em dia ainda há pessoas que

comemoram a libertação dos

escravos”.

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Patrícia AlvesProfessora e estudiosa do Candomblé

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Cultura aos olhos da mídia

Jéssica Sumida e Maitê Borges

As responsabilidades e deveres do jornalismo na inclusão cultural

Entrevistamos também Mariana Cerigatto, repórter da editoria de cultura do Jornal da Cidade desde 2011.

Camaleão: O veículo que você trabalha dá espaço para re-tratar a cultura da cidade? Você considera suficiente?Mariana: Sim, tem espaço. O foco é retratar os eventos lo-cais relacionados à linha edito-rial. Acho que os assuntos de-veriam ser tratados com mais amplitude, contextualização e reflexão. Estes aspectos não são tão explorados por falta de es-paço e tempo. Poderia ter mais diversidade nestas retratações.

C: Você pensa que a mídia, em geral, representa manifesta-ções culturais de todas as classes sociais e etnias?M: Não, pois os jornalistas que estão dentro de uma redação per-tencem a um grupo, uma classe social. Às vezes acabamos privi-legiando os grupos e classes que estamos inseridos. É um erro, porque o jornalista deveria repre-sentar os interesses das minorias.Temos que parar de classificar e dividir a cultura em alta e baixa,

e valorizar a cultura popular, eru-dita e de massa.

C: Alguns veículos de comuni-cação silenciam ou retratam de forma marginalizada algumas manifestações culturais, como o funk. Como você vê isso?M: Quando somos jornalistas, devemos nos despir dos precon-ceitos.Devemos ter contato com as manifestações, sejam elas de nosso agrado ou não. O funk car-rega um estereótipo relacionado à marginalidade pelo fato de a própria mídia representá-lo as-sim. Mas, a realidade nem sempre é só o que os meios de comuni-cação mostram.

C: As coberturas de eventos culturais são eficientes?M: Nem todos os jornais têm equipe e estrutura para fazer coberturas em eventos. Tudo depende do valor-notícia de um evento. O jornalismo tenta ser democrático, mas a seleção pelas notícias é algo inevitável.

Camaleão: O veículo que você trabalha dá espaço para retratar a cultura da cidade? Você considera suficiente?Denilson: Eu acredito que sim. Pois, quase todos os dias, exi-bimos reportagens mostran-do as tradições e os costumes dos moradores do centro oeste paulista. Também valorizamos as festas tradicionais, além de abrirmos espaço, semanalmen-te, para divulgar outros even-tos culturais na nossa agenda.

C: Você pensa que a mídia, em geral, representa manifesta-

Devido a representatividade que a cultura propõe, o jornalis-mo cultural enfrenta desafios para relatar e cobrir todo esse leque. O papel da mídia é retratar manifestações culturais

que representem todas as classes sociais e etnias, despida de qual-quer preconceito. No entanto, essa responsabilidade dos veículos de comunicação é questionada quanto a sua eficiência.

Para debater o tema, a Camaleão entrevistou Denilson Monaco, chefe de redação da TV Tem.

ções culturais de todas as classes sociais e etnias?D: Penso que sim. Pois a cultura não tem classe social ou de raça. A cultura é universal. Você pode apreciar ou não. Nesse ponto eu vejo que a mídia, no geral, va-loriza todos os tipos de cultura. Cabe ao público escolher o que ele considera a melhor opção.

C: Alguns veículos de comu-nicação silenciam ou retra-tam de forma marginalizada algumas manifestações cul-turais, como o funk. Como você vê isso?

D: Acredito que não. Hoje o funk está presente no nosso cotidiano. Seja na novela; no espaço comercial e nos shows. O estilo já foi marginalizado. Mas hoje, a própria mídia, começou a aprender a separar melhor as coisas.

C: Você acha as coberturas de eventos culturais eficientes? D: Acredito que o espaço até po-deria ser maior, mas a cobertura ficaria segmentada. Algumas re-vistas se especializaram, mas, nos canais abertos, acredito que essa mudança seria inviável.

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Movimentos musicais da periferia, o hip hop e o carnaval crescem no cenário cultural bauruense

Jayme Rosica

A voz e a vez da periferia

Salve quebrada!

“O hip hop é a voz da comu-nidade, assim como o samba ou o funk. Porque se não for pela música da periferia, a gente não tem voz. A mídia e a polícia só chegam lá na quebrada quando

já tem um corpo jogado no chão”, assim, Felipe Tayar, MC conheci-do no cenário do rap bauruense como JotaF, demonstra a impor-tância social que o movimento hip hop exerce nas comunidades de periferia.

Desde quando surgiu nos su-

búrbios de Nova Iorque, a inten-ção e a função maior da cultura hip hop sempre foi essa, a de ser o mediador entre a periferia e a sociedade, denunciando ao mundo a realidade dura vivida no gueto. O movimento chegou ao Brasil, nos anos 80, em especial na periferia de São Paulo, com a mesma finalidade de dar voz ao povo da periferia.

No interior de São Paulo, prin-cipalmente em Bauru, ele cresce a cada dia, tendo na cidade uma participação importante nos de-bates sociais e na inclusão da peri-feria na cultura municipal. “Bauru é referência no movimento hip hop, e não só no rap, mas também os bboys e o grafite”, afirma JotaF. O MC está envolvido no cenário hip hop bauruense há oito anos, e hoje, além de MC, atua como coordenador cultural do ponto de cultura Acesso Hip Hop. Ele analisa que no princípio a luta para se expressar pelo rap era mais complicada : “a luta era bem mais difícil no começo, mudou muita coisa, tanto pelo avanço da tecnologia quanto pelo boom que a cena hip hop teve na mídia, acabamos ganhando espaço, mas ainda é muito difícil viver do rap.”

Apesar de ter conquistado recentemente um destaque nos meios de comunicação, o rap ainda sofre muito com o precon-ceito infiltrado na sociedade. “as pessoas olham pro rap e estig-matizam, o preconceito mudou, mas ainda existe, e vai existir por muito tempo, já é meio enraizado socialmente. O rap vai além de um ritmo musical, é um movimento social, é cidadania. a gente usa as ferramentas que tem pra tentar diminuir o preconceito.”

A mesma opinião de JotaF é compartilhada por Vanderlei de Oliveira, “a sociedade sempre sen-tiu muito preconceito com o HIP HOP. O preconceito sempre existe da gente que mora na periferia, a sociedade não gosta de pobre, de gente que vive em exclusão e risco social”. Vanderlei é inte-grante da ONG Periferia Legal, que atua no núcleo Mary Dota, levando a cultura do hip hop para a comunidade.

Vanderlei explica que a ONG surgiu para divulgar a importân-cia que a cultura hip hop exerce na juventude da periferia de Bauru: “surgimos de uma necessidade de levar para as comunidades a educação, a cultura, o lazer”.

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A ONG trabalha em diversas fren-tes, envolvendo cinema, arte visu-al e música. Vanderlei ressalta que os projetos sociais encabeçados pelo hip hop na cidade transfor-mam a vida dos jovens da peri-feria: “desde quando atuamos já vimos muitos jovens conseguirem uma mudança significativa”.

Desta forma, as comunidades da periferia de Bauru inseriram o hip hop em sua rotina, isso ficou explícito na 4ª semana municipal de hip hop, que contou com o apoio da Secretaria de Cultura. JotaF conta que nessa oportuni-dade o poder público bauruense tomou real conhecimento da di-mensão que o movimento tem na cidade: “no encerramento da semana do hip hop o público do último show foi de 17 mil pessoas

“No encerramento da semana do

hip hop o público foi de 17 mil

pessoas”Felipe Tayar

Coordenador do Acesso Hip Hop

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no Parque Vitória Régia, o que é um recorde na história da cidade. Pra se ter uma noção, o revèillón, teve um público de 4 mil pessoas no parque.”

A semana surgiu como um evento de dentro do movimento, e sem nenhum recurso público, com o crescimento e a consolida-ção do hip hop, este ano o mesmo foi incluído em lei, para ter sua verba garantida, o que mostra a força e a mobilização do Hip Hop . “A primeira edição não tinha verba pública, e essa semana já está instituída como lei. A mo-bilização do movimento hoje é muito estruturada e inteligente.”

Além da semana municipal de hip hop, há outros eventos em que o poder público atua em conjunto com o movimento, como acontece com o Periferia Legal: “atualmen-te o poder público através da Se-cretaria Municipal de Cultura é o maior apoiador e incentivador de nossas ações no movimento Hip Hop, hoje a ONG Periferia Legal é um Ponto de Cultura que atua com o Projeto Hip Hop Legal”.

Já existem eventos na cida-de com o apoio da Secretaria de Cultura, como explica JotaF: “a gente tem dois principais

Page 20: Camaleão

“O carnaval é uma festa em que todos são iguais.

Não importa credo, raça,

classe social.”

O ensaio da escola Grêmio Recreativo Cultural e Escola de Samba Águia de Ouro está para começar, ali na rua mesmo.

Em pouco tempo a vizinhan-ça vai chegando, atraído pelos primeiros esboços do samba da escola. “A escola de samba sempre teve essa função de envolver a comunidade, as pessoas do bairro sempre vem pra somar”, diz Ulis-ses Frazão, membro da escola.

Ele conta que está envolvido com escola de samba na cidade desde 1976, quando assistiu ao desfile daquele ano, contamina-do pelo “vírus” do samba, como ele mesmo define, já procurou imediatamente uma agremiação para poder participar no carnaval do ano seguinte: “vi o desfile, me encantei e escolhi uma escola de samba, a Acadêmicos da Cartola. No mesmo ano procurei a escola,

fui muito bem recebido. Sempre fui envolvido com música, e aí aprendi a tocar os instrumentos. Saí na bateria em 1977, e no pró-ximo ano já fui puxador de samba, que hoje chamam de intérprete.”

A Águia de Ouro, surgiu em 1986 e o ensaio que acompanho é o primeiro para o carnaval de 2014, mesmo assim, a presença dos participantes é grande e efu-siva. Mas o que faz cada pessoa a sair de sua casa numa segunda-feira com ameaça de chuva, para se reunir na rua e participar de um ensaio da escola de samba do bairro? Ulisses consegue resumir o sentimento que move cada um: “o carnaval é uma festa em que todos são iguais. Não importa credo, raça, classe social. O desfile da escola de samba é o dia em que todos se sentem artista, desde mestre sala e porta bandeira até o cara que empurra o carro alegórico.”

Antes mesmo da organização de escolas de samba, já existia um carnaval com samba na cidade realizado por blocos e grupos de batuque: “antigamente tínhamos algumas escolas de samba que eram mais grupos de batucada com fantasias.” , explica Ulisses.

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projetos que já acontecem , o pro-jeto ensaio, onde a gente roda as comunidades trazendo atrações de dentro e de fora, transitando nas quebradas levando som. A aparelhagem, técnico e etc. é for-necido pela Secretaria de Cultura. E tem também o projeto happy hour, que leva as pessoas ao teatro municipal, com música, dança, tudo ligado a cultura de rua”.

Apesar de certa atenção dada pela Prefeitura, a ideia é sempre de conquistar mais espaço na pasta da cultura de Bauru. “Nós sempre queremos mais do poder público. E vai de cada movimento trabalhar pra fazer parcerias e reivindicar melhorias junto ao governo. A gente quer pleitear para a prefeitura um projeto da casa do hip hop, onde oferecem aulas de grafite, dj, instrumentos, além de local pra apresentações” comenta Vanderlei.

Vanderlei, inclusive, informa que o incentivo público ainda é muito centralizado nos grandes eventos, devendo ser mais diver-sificado para alcançar os bair-ros da periferia em si, que são os grandes celeiros da cultura hip hop. “Eu acho que o poder público teria que lançar mais editais para

projetos como o que fazemos no movimento Hip Hop e incentivar mais apoios aos jovens talentos que surgem na periferia e acabam não tendo nenhum apoio, des-centralizar mais a cultura para os bairros na cidade de Bauru, tudo que acontece de evento na cidade é no Vitória Régia isto tem que mudar ou ter outros espaços, ou seja um local onde pode acontecer vários eventos.”

O hip hop bauruense vem to-mando grandes proporções atual-mente, e a tendência é sempre de crescimento, porém o movimento deve olhar para trás e saber quem ele representa, como JotaF lembra ao encerrar: “hoje o rap toca em vários lugares, e é importante. Mas, mais importante é sempre lembrar de onde o rap veio que é a comunidade.”

A Ópera do Povo

É uma noite de segunda-feira, o céu está nublado, com jeito de chuva, e uma praça no Núcleo Pre-sidente Geisel em Bauru começa a reunir pessoas de várias idades. São adultos, crianças, homens, mulheres, todos empunhando um instrumento musical em mãos.

Ulisses FrazãoMenbro da escola Águia de Ouro

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Segundo Ulisses, o ímpeto po-lítico que faltava foi dado pela atual administração que conseguiu libe-rar verba para a volta dos desfiles em 2011, quando foi realizado um desfile único, de todas as agremia-ções. Já em 2012 o carnaval voltou com força, no modelo de disputa. E em 2013, a Águia de Ouro, antes uma escola coadjuvante, conquis-tou o vice-campeonato: “na volta do carnaval em 2011 foi dado cin-co mil reais para o carnaval e já foi feito um desfile bem interessante, em 2012 já foi um carnaval com a disputa e no ano passado a gente foi vice campeão”, comenta Ulisses.

A partir desta volta, o carna-val se tornou uma política pública importante para a Prefeitura, se tornando evento primordial para a cultura da cidade, e, desta forma, voltando a ser uma festa do povo. “Hoje existe política pública dire-cionada pro carnaval, eu vejo que a Prefeitura enxerga o carnaval e sua importância. A secretaria tem bas-tante jogo de cintura para conduzir o evento na cidade. Hoje o carnaval voltou ao gosto da população”.

Apesar deste direcionamen-to, ainda há muito preconceito quanto ao uso de dinheiro na ela-boração da festa: “não entendem que é cultura e a cidade não tem o porte do carnaval de São Paulo ou Rio, onde as escolas conseguem se manter. As pessoas reclamam por que dar dinheiro para as escolas se falta tanta coisa em saúde e educação, mas a verba do car-naval vem da pasta da cultura, que não está vinculada a estas outras áreas”.

Assim, ressurgindo das cinzas, o carnaval bauruense volta a ter importância, instrumentalizado pelas políticas públicas específi-cas e caindo novamente no gosto e na cultura do povo. Um digno teatro musicado a céu aberto.

Nos anos 70 começaram a se organizar as escolas de samba em si, sendo o desfile realizado na Ave-nida Rodrigues Alves, e com uma competição por troféu já regula-mentada entre as agremiações: “as principais escolas eram a Mocida-de Independente e a Camisa 10 do Bela Vista. Essas escolas deram uma cara diferente pro carnaval de bauru, tanto no aspecto visual quanto no samba em si. Já em 76 surgiu a Cartola, que hoje é a escola mais tradicional existente na cidade, depois foram surgin-do outras como a União da Vila Independência, Império da Vila Esperança e Flor da Vila Dutra.”

Na década de 80 o carnaval passou a ser na Avenida Nações Unidas, contando com maior espa-ço e iluminação, além de estrutura para o público assistir. Neste meio tempo surgiram novas escolas, dentre elas a Águia de Ouro. Com a construção do sambódromo nos anos 90 o carnaval bauruense cres-ceu, tomando grande proporção regional, até seu auge no início dos anos 2000.

Em 2002 o carnaval deixou de receber verba, o que mergulhou o mesmo no ostracismo. Conjun-turas e decisões políticas fizeram

com que Bauru passasse quase uma década sem a festa. Não havia força política e interesse dos go-vernantes no retorno do carnaval bauruense: “o carnaval em Bauru ficou parado em torno de 10 anos. Foi uma grande perda. Todo nível de sociedade tem pessoas boas e ruins. Sempre tem gente que quer se aproveitar, tiveram pessoas que usaram o nome de agremiações em benefício próprio e politicamente travaram o carnaval. Além disso havia uma bancada evangélica muito forte na Câmara que não queria bater de frente pra que pudesse acontecer o retorno”.

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Page 22: Camaleão

As mudanças nas políticas culturais

A valorização do papel da Cultura no Brasil

Vinicius Vermiglio

Em 15 de março de 1985 entrou em vigor o decre-to 91.144. Sob a justifica-

tiva de enriquecimento da cul-tura nacional e “considerando que os assuntos ligados à cul-tura nunca puderam ser obje-to de uma política mais consis-tente”, o decreto assinado pelo presidente da república José Sarney criou o Ministério da Cultura (MinC). Antes de 1985, os assuntos ligados à cultura estavam sob a batuta do Mi-nistério da Educação e Cultu-ra. O novo ministério passou a administrar a FUNARTE (Fun-dação Nacional das Artes), a extinta EMBRAFILME, os con-selhos de cultura, secretarias e adjacentes. Reconhecendo que o Brasil é um país grande para prescindir de uma “política na-cional”, o MinC foi criado para ampliar a discussão e a criação de “políticas específicas bem caracterizadas” devido a parti-cularidade de cada região.

A cisão com a ideologia neoliberal dos anos 80/90

Adotando as ideias e me-didas criadas no Consenso de Washington, coerente com a visão neoliberal dos detento-res do poder no Brasil na épo-ca, o Estado cuidaria apenas de questões estratégicas. Encarregado das políticas culturais, o mercado agiu como lhe pareceu natural e investiu nas manifesta-ções culturais que possu-íssem retorno econômico. Privilegiou-se o cinema e a música e deixou-se de lado outras manifestações menos aliadas ao mercado, como a arte rupestre, a cul-tura indígena, afrodescen-dente e quilombola. Segundo o professor de Jornalismo Especializado, Juarez Xavier (Unesp), outro aspecto ne-gativo é que ao mercantilizar as manifestações culturais,

42 43

João

Mac

edo

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houve a alienação do pro-dutor cultural. “Por exem-plo: as mulheres que fazem panela de barro. Todo o co-nhecimento contido no pro-cesso, seja estratégico, de física, de mercado, de cul-tura, tudo se perde. Ela faz o produto e entrega para outro vender”. Além de pro-fessor universitário, Juarez já coordenou uma mesa de debates sobre a produção cultural para além do mer-cado composta por Alfredo Manevy e Juca Ferreira, no auditório da Livraria Cultu-ra, na cidade de São Paulo.

Para o professor, a grande mudança, a partir da gestão de Lula, foi que o governo do petista “elaborou uma polí-tica de prospecção, estudos e ações estratégicas finan-ciada pelo Estado, tirando a prerrogativa do mercado de definir o que é política cultu-ral no Brasil”.

Na Europa, há o predomí-nio da cultura material, como o Coliseu em Roma e as gran-des catedrais da Idade Mé-dia. No caso do Brasil, houve um empenho para recuperar

e preservar os patrimônios imateriais, algo muito pró-prio das culturas africanas e latino americanas. Esses patrimônios são valores cul-turais fundamentais para o povo. “A viola caipira, o aca-rajé, o candomblé, o samba de roda. Todos esses têm for-mas inteligentes de leitura e intervenção cultural num mundo que não possui bens materiais, mas sim bens es-truturantes da nossa identida-de cultural”, comenta Juarez.

A importância da Cultura

A criação do MinC elevou a cultura na hierarquia das preocupações do governo brasileiro. Todo país possui um Ministério da Educação ou da Saúde (ou equivalen-tes), no entanto nem todos possuem um ministério ex-clusivamente para a cultura.

O nível de atenção va-ria de acordo com cada país. Portugal possui uma Secretaria de Esta-do da Cultura, diretamente

dependente do Primeiro-Mi-nistro; nos Estados Unidos há o Departamento de Assuntos Educacionais e Culturais (Bu-reau of Educational and Cul-tural Affairs); a China possui um Ministério da Cultura; no Reino Unido, há o Depar-tamento para Cultura, Mídia e Esportes (Department for Culture, Media and Sport). Ao lado, vemos o investi-mento dos países citados. Segundo o Ministério do Pla-nejamento, desde o início do governo Lula (2002) hou-ve um acréscimo de 900% nos recursos orçamentários e de 748% ao se incluir os projetos incentivados. Esse aumento é fruto da primei-ra grande reestruturação no Ministério feita em 2003.

Mudanças conceituais e estruturais

Assumindo em diversas oca-siões o cargo de Ministro Interi-no da Cultura (nas gestões dos ministros Gilberto Gil, seguido por Juca Ferreira), Alfredo Ma-nevy, doutor em Ciências da Comunicação pela USP, hoje é

o braço direito do Secretário de Cultura Juca Ferreira, em São Paulo. Participando ati-vamente da rotina do Minis-tério na época, Manevy tem propriedade para falar das principais mudanças.

Tanto que em 2010, publi-cou um artigo intitulado “Dez mandamentos do Ministério da Cultura nas gestões Gil e Juca”.

No artigo, Manevy rela-ta brevemente como os go-vernos entre 1980 e 1990 lidaram com a questão da

Investimento em US$(em 2014)

: 260,15 milhões

: 1,576 bilhão : 1 bilhão

: 1,96 bilhão

: 1,29 bilhão

44 45

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cultura no Brasil, chamando o período de “décadas perdi-das” devido a visão dos gover-nos que na época presidiam o país de que o papel do Estado no apoio à cultura deveria ser mínimo e fora delegado ao mercado a gestão cultural.

O primeiro item nos “man-damentos” da gestão dos mi-nistros Gil e Juca é a amplia-ção na definição do conceito de “cultura”. A mudança em como são concebidas as polí-ticas culturais deram um novo status ao MinC.

Retomando a Constituição de 1988, que define a cultura como um “direito social”, o MinC passa a ter um papel universal nas atua-ções, o que faz aumentar, e muito, o investimento no ministério. Em 2003, o orçamento era de 400 milhões de reais. Cerca de dez anos depois, o MinC conta com 5 bilhões de reais – doze vezes maior que o primeiro orçamen-to do governo Lula (ainda sob o plano plurianual elaborado ainda na gestão do governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso).

Uma parceira inédita, ini

ciada em 2003, entre o Minis-tério e o IBGE (Instituto Bra-sileiro de Geografia e Estatís-tica), investiu em pesquisas para conhecer a presença da cultura nas cidades, no or-çamento da família e na ge-ração de emprego formal do país. A partir desses esforços, nasceu a primeira base de da-dos oficias relativos a cultura, o Sistema de Informações e Indicadores Culturais do MinC, um passo decisivo para iden-tificar a melhor maneira de criar as políticas culturais.

Identificando os proble-mas do Brasil nesse setor, o MinC realizou as reformas necessárias. A palavra-chave para as ações do ministé-rio passou a ser ACESSO. O

acesso a cultura começou a ser garantido pelas políticas públicas e através do siste-ma educacional, além das reformas nas leis, principal-mente o aperfeiçoamento da Lei Rouanet que garantiram o dinheiro para produtores culturais através de editais ou isenção fiscal de empre-sas que investem em projetos relativos à cultura.

Outro aspecto da nova for-ma de encarar a cultura no Brasil, tanto na gestão Gilber-to Gil quanto na de Juca Ferrei-ra, é que a cultura brasileira “tornou-se um ingrediente es-sencial e decisivo do novo papel do Brasil no mundo, na medi-da em que ela parece apre-sentar o país pela adesão a

Dez mandamentos

1º. Amplo conceito de cultura.

2º. Cultura como direito fundamental e necessi-

dade básica. 3º. Promoção da diversi-dade cultural brasileira. 4º. Valorização das cul-

turas tradicionais. 5º. Diretrizes para a eco-

nomia da cultura. 6º. Modernização do di-reito autoral brasileiro.

7º. Modernização da política do fomento à

cultura. 8º. A sociedade civil

como conceito da ação estatal.

9º. O papel do Estado na cultura.

10º. Orçamento público para a cultura.

A parceira IBGE & MinC descobriu que:

92% do brasileros nunca frequentaram museus; 13% frequentam cinema alguma vez no ano;

93,4% jamais foram a alguma exposição de arte; 78% nunca assistiram a um espetáculo de dança;

Mais de 90% dos municípios não possuem salas de cinema, teatro ou museus.

46 47

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valores, estilos e atitudes de vida, diferentemente de um movimento estratégico estri-tamente político e orientado economicamente”, nas pala-vras de Manevy.

Plano Nacional de Cultura

Entre outros projetos que coordenou no MinC, Alfredo Manevy ajudou, em 2010, na criação do Plano Nacional de Cultura (PNC), um projeto que visa a implementação de políticas públicas de lon-go prazo, previsto para estar com as 53 metas completa-das até 2020. A proteção e a promoção da diversidade cultural brasileira são as di-retrizes das metas, fruto das pesquisas do IBGE.

Algumas delas ousadas, como o primeiro item do plano: “Sistema Nacional de Cultura institucionalizado e implementado, com 100% das Unidades da Federação (UF) e 60% dos municípios com sistemas de cultura institucionalizados e imple-mentados”. O Sistema divide as atribuições e responsa-

bilidades entre os entes da federação (governos federal, estadual e municipal), repas-ses de recursos e criação de instâncias de controle social. Segundo o site do MinC, em 2010 havia uma unidade da federação (3,7%) e 94 mu-nicípios (1,7%) com acordos de cooperação federativa para o desenvolvimento do Sistema Nacional de Cul-tura publicado. Em 2013, segundo um resumo geral publicado em novembro do ano passado no site do Mi-nistério, há 25 unidades da federação (92,5%) e 2068 municípios (37,4%).

Outra meta ousada é a nú-mero 53: “4,5% de partici-pação do setor cultural bra-sileiro no Produto Interno Bruto”, em valores de 2010, ano em que o PNC foi criado, esse valor corresponderia a 164,7 bilhões de reais. A participação da cultura em 2010 representou 2,6% do PIB - cerca de 95 bilhões de reais. Ou seja, a pretensão é quase dobrar a participação do setor cultural em apenas sete anos.

Um dos projetos de maior destaque, consideran-do todas as medidas elabo-radas pelo MinC é o Ponto de Cultura. Considerada pelo Ministério da Cultu-ra como a ação prioritária do Programa Cultura Viva, dados publicados no ano passado indicam quem no período entre 2004 e 2011, foram criados 3.670 Pontos de Cultura, presentes em to-dos os estados, alcançando quase mil municípios. Pro-dutor e difusor de cultura em cidades e periferias, os Pontos de Cultura revolu-cionaram a relação das co-munidades com a cultura, graças a presença desses espaços. O programa é um estímulo a iniciativas cultu-rais já existentes, o que faci-lita a aceitação das pessoas beneficiadas pelos Pontos.

Teixeira Coelho, atual Curador do MASP (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand) e autor do

“Dicionário Crítico de Polí-ticas Culturais”, escreve so-bre os aspectos sob os quais políticas culturais vem sen-do revisadas. Considerando o rearranjo do mundo, tanto no setor ideológico quanto econômico do mundo, pas-sando pelos processos de globalização através dos meios de comunicação de massa. No verbete políticas culturais lê-se: “não basta que muitos saibam apreciar algumas ou muitas formas culturais: é preciso garantir ao maior número de pesso-as a possibilidade de par-ticipar do processo como criadores - e isto tende a dificultar ou impedir o de-senvolvimento de políticas de procura do sentido ou de enquadramento ideológico”.

O novo papel da cultura no Brasil deve priorizar o acesso e a disseminação da cultura, reconhecendo que cada região compõe a plura-lidade do país.

48 49

Ponto de Cultura: mais perto, mais acesso

Page 26: Camaleão

Domingo no parque

Parque Vitória Régia é exemplo de ocupação popular destinada ao lazer

nos espaços públicos

Fotos: Jayme Rosica

Peça de teatro encenada ao ar livre. Programação pertencente à Mostra Paulo Neves de Teatro.

Page 27: Camaleão

Crianças aproveitam o domingo para se divertir. Confraternizações aos finais de semana sempre ocorrem na grama do parque.

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A prática de esporte como o slackline também é presente no Vitória Régia.

É comum aos domingos ver a população aproveitar o parque para rodas de violão.

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56 57

A Tropicália do século XXI

Organizados de forma colaborativa, coletivos e pontos de cultura despontam como expoen-

tes da produção cultural brasileira

Na última década, o Brasil teve um agente de destaque no cam-

po da cultura: os coletivos culturais, que reúnem jovens empreendedores apaixona-dos por música, dança, artes e cultura em geral. Esses gru-pos se juntam em torno de atividades culturais e pegam onda, sobretudo, nos incen-tivos públicos à cultura, atra-vés de editais e programas do MinC (Ministério da Cultura), como o Programa Cultura Viva e os Pontos de Cultura. O fenômeno possui grande importância no cenário na-cional: os coletivos são um dos acontecimentos de maior relevância para a cultura bra-sileira da última década.

Ao mesmo tempo, estrutu-rando-se em volta das políti-cas públicas federais em cul-tura, outro fenômeno toma conta do campo: os Pontos de Cultura. No período de 2004 a 2011, o Programa Cultura Viva apoiou a instalação de 3.670 Pontos de Cultura, al-cançando cerca de mil mu-nicípios em todos os estados do Brasil. O Cultura Viva pro-move iniciativas culturais já existentes, através de editais abertos pelo MinC. Em mui-tos casos, os coletivos cul-turais acabam se tornando, também, Pontos de Cultura. As redes estaduais do pro-grama abrangem 25 unida-des da federação e o Distrito Federal. Já as redes munici-

pais estão implementadas, ou em estágio de implemen-tação, em 56 municípios.

“Quando se fala em olhar para o que aconteceu no cenário cultural brasileiro durante a última década e meia, não há como escapar do impacto da tecnologia. Ela possibilitou a reorganização dos universos da música, dos filmes e dos livros. Motivou igualmente o surgimento das mídias sociais e das mega-empresas que as gerenciam, além de democratizar e am-pliar a produção em todas as áreas. Nunca se produziu tanto como agora”, explicou Ronaldo Lemos, em texto pu-blicado na edição comemora-tiva de quinze anos da revista

BRAVO!, publicado em outu-bro de 2012, com o título ‘Os 15 Fatos mais Relevantes da Cultura Brasileira nos Últi-mos 15 anos’.

É em meio a toda essa efer-vescência tecnológica que surgem os coletivos no Brasil. Ainda não existe, no entanto, um conceito que defina, com precisão, o que é um coletivo cultural, especialmente por se tratar de um movimento bastante novo. Mas, há quem se arrisque. Aluizio Marino é especialista em Gestão de Projetos Culturais pelo CE-LACC (Centro de Estudos La-tino Americanos sobre Cul-tura e Comunicação), da USP, e publicou, recentemente, um artigo sobre os coletivos

Gabriel Cortez e Solon Neto

Page 30: Camaleão

58 59

culturais. Ele explica que um coletivo é um movimento in-dependente e desierarquiza-do, formado por um grupo de pessoas “na maioria das vezes jovens oriundos de territórios subalternos, que se unem por interesses comuns e desenvol-vem ações de cultura de oposi-ção”.

Para Marino, os coletivos culturais representam as vozes de um segmento das juventudes de nosso país e são importantes porque “trazem a tona, a partir de ações artísticas, demandas historicamente reprimidas”. Ele ressalta que a juventude é uma minoria histórica, no sentido de não possuir voz e pouco poder interferir nas decisões

políticas, “e é ainda mais mi-noritária quando pensamos em juventudes periféricas”. O caso do Fora do Eixo, o primeiro coletivo cultural do qual se tem notícia no Brasil, surgiu em 2002, em Cuiabá (MT). Na época, o jovem Pablo Capilé era estudante de comunica-ção e fazia parte de um grupo interessado em fomentar a cena musical da cidade - es-pecialmente, a produção dos artistas independentes. Por estarem fora do eixo Rio-São Paulo, essas bandas tinham pouco espaço no mercado na-cional de gravadoras e suas músicas eram pouco difun-didas. Para tentar reverter a situação, Capilé e sua turma alugaram uma casa e funda-ram o coletivo Cubo Mágico, a fim de produzir shows, en-saios, discos e até festivais de grupos independentes.

O grande problema do co-letivo eram as finanças. O pre-juízo de um festival era pago com a receita do seguinte, que seria pago com ingresso de outros shows, que seriam pagos com vendas de CDs… e, assim, as contas não fechavam.

Os envolvidos - de músicos a donos de bares - precisavam ser pagos de alguma forma. Foi, então, que Capilé inovou e decidiu rolar o débito entre os próprios artistas, crian-do uma moeda exclusiva do coletivo, o Cubo Card. Com ela, o grupo passou a pagar a maior parte de seus cachês. Em contrapartida, os cards poderiam ser usados pelos artistas para comprar ensaios na sede do Cubo Mágico, re-leases, camisetas da banda e serviços prestados por gente ligada ao coletivo.

O sucesso da iniciativa alimentou sonhos mais am-biciosos. Em 2006, Capilé se uniu a outros três coletivos, de Londrina (PR), Uberlân-dia (MG) e Rio Branco (AC), e fundou o Circuito Fora do Eixo, uma rede de coletivos, or-ganizada de forma totalmente cooperativa, sem hierarquia e sem depender de rádios ou de qualquer coisa que remeta à indústria musical tradicional. Hoje, o grupo produz em média 13 eventos culturais por dia, em 112 cidades de 25 estados brasileiros. No ano de 2010, por

exemplo, foram 5 mil shows.Em Bauru, a Casa Fora do

Eixo Bauru é um dos coletivos que representam o Fora do Eixo no interior do estado de São Paulo. Fundada em 2009, com o nome Enxame Coletivo, a Casa Fora do Eixo Bauru se define como um empreendi-mento solidário de comunica-ção e cultura que atua no cam-po da cultura independente. O coletivo se baseia na lógica do trabalho colaborativo e utiliza ferramentas de internet e con-ceitos de economia criativa para realizar eventos e pro-mover alternativas ao circuito de cultura local.

Para o estudante de Rela-ções Públicas Arthur Falei-ros Neves, um dos moradores mais antigos da casa, o traba-lho e as parcerias do coletivo são um importante espaço de circulação de ideias e pessoas da cidade. A sede do grupo é compartilhada. Lá funcionam o coletivo e um Ponto de Cul-tura, projeto financiado pelo Governo Federal. O ponto de cultura em questão é o Acesso Hip-Hop, que traz ao espaço grande quantidade de artis-

“[os coleti-vos] trazem a

tona, a partir de ações artísticas,

demandas histori-camente reprimi-

das”.Aluizio Marino

Gestor de Projetos Culturais

Page 31: Camaleão

Mar VermelhoConheça a “desordem organizada” da banda

Universo Elegante

O CD Mar Vermelho, da banda Universo Elegan-te, mostra logo de cara

uma gama de influências mui-to grande, mas que, ao mesmo tempo, não deixa de lado sua personalidade própria e seu conteúdo independente.

O álbum é composto por rit-mos diferentes, que vão desde batidas rápidas e letras diver-tidas, que lembram o estilo da banda araraquarense, Os Rélpis, até músicas calmas, um tanto pessimistas, que destacam gui-tarras e suas melodias, ao estilo da banda Cachorro Grande.

Nas primeiras músicas, “A Energia vai na frente” e em “Não para este planeta de rodar”, os rapazes do Universo Elegante trazem uma batida mais viva com letras animadas sobre as adversidades da vida e as futi-lidades do mundo.

Já as músicas como “Caos Contemplativo” e “Sagração da Primavera” têm uma melodia mais tranquila e fazem com que

o público mude sua percepção, para um tom mais sossegado, mas sem perder o bom humor ritmado por suas guitarras.

O destaque do álbum é a mú-sica “Mar Vermelho”, que tem uma composição mais traba-lhada e um tom mais lamentoso por parte do vocalista Luís Paulo Domingues. Sobre sua melodia, os sintetizadores brincam com o ritmo do baixo, lembrando os anos 80, quiçá até mesmo do tom de Lobão em “Essa Noite Não”, música de 1989.

Nessa viagem pelo Univer-so Elegante, as músicas também revelam como o universo está cheio de misturas complexas, em uma “desordem organizada”. Seus temas são diferentes, mas, é nessa distinção que existe um sentido, o qual você só encon-tra após escutar até a última música do CD.

Cinthia Quadrado

Onde encontrar:R$ 15,00

www.pisces.art.br

60 61

pessoas ligadas à produção artística. A casa é utilizada como estúdio de música e es-túdio para projetos online de mídia, como o PósTv, que faz transmissões de discussões e eventos culturais promovidos pelo coletivo e por agentes de cultura da cidade.

Mais cultura, mais diversidade, mais debates.

A explosão dos coletivos e de grupos produtores de cultura por todo o Brasil se liga ao fato de o Ministério da Cultura man-ter um plano de expansão do conhecimento sobre a cultura brasileira. As seguidas ações afirmativas do governo desde o ano de 2002, com a entrada de Gilberto Gil no Ministério da Cultura, sucedido por Juca Ferreira, atual secretário de cultura de São Paulo, colabo-raram para a ampliação das políticas públicas culturais. Ao lado de Alfredo Manevy, secre-tário de políticas públicas das gestões Gil/Ferreira, se idealiza no MinC um plano para tornar a diversidade cultural um ativo para o desenvolvimento do país.

Com isso, o Governo Fede-Governo Fede-ral tenta garantir um acesso democrático à cultura, re-alçando um dos aspectos mais latentes da cultura brasileira, que é sua diversidade de ex-pressões e matrizes culturais. Assegurar o acesso e o de-senvolvimento por meio das políticas públicas, têm sido encarado como forma de ga-rantir a democracia.

Como fenômeno recente que emerge em um contexto de efervescência cultural e tecnológica, resta aos interes-sados pelo campo esperar. Para entender essas mudan-ças na forma de se produzir cultura - encabeçada por coletivos, ONGs, e grupos cada vez mais autônomos e independentes - será pre-ciso um longo debate. Por ora, o que se sabe é que nunca se produziu tanto, e que nunca tantos puderam produzir. Cada vez mais plural, o debate no campo da cultura se intensifica e reserva para os próximos anos questões fundamentais em um momento de afir-mação do Brasil no mundo.

Resenha

Page 32: Camaleão

Quinto livro de Gustavo Duarte, Pavor Espaciar consegue unir de forma

divertida dois universos aparan-temente inconciliáveis: os causos do interior e a ficção científica. Pavor Espaciar conta também com belas ilustrações e diálogos cômicos no mais legítimo “caipi-rês”. A graphic novel faz parte do selo Graphic MSP, onde artistas são convidados para fazer releituras de personagens da Turma da Mônica em homenagem aos 50 anos de carreira de Maurício de Sousa.

Pavor Espaciar conta a história da abdução de Chico Bento, seu primo Zé Lelé, a galinha Griselda e o porco Torresmo, por alieníge-nas. Pela primeira vez, Gustavo trabalha com diálogos em seus quadrinhos, e são justamente eles que dão o tom a história. É difícil não rir com frases do tipo “Mais ocê acha qui eu vô querdita numa história bissurda dessa?”. Difícil

também não ficar folheando o livro a procura das menções à cultura pop e a ficção cientifica.

Formado em design gráfico em 1999 na Unesp de Bauru e noroestino de coração, Gustavo Duarte começou a publicar suas primeiras charges em 1997 no finado Diário de Bauru. Depois de formado, Gustavo passou a trabalhar na Editora Abril e como chargista do Lance!.

A história de Gustavo Duarte faz valer o investimento pois tem a rara capacidade de ser sim-ples o bastante para agradar as crianças e minuciosa na mesma proporção para não deixar os adultos reclamando.

Chico bento

bauruense

Em releitura, Gustavo Duarte junta personagens

caipiras de Maurício de Sousa e ficção científica

Guilherme Henrique

Pavor EspaciarGustavo DuartePanini ComicsR$: 29,9084 páginas

Saída pela loja de presentes

Uma pegadinha de Banksy?

Vinicius Vermiglio

Lançado em 2010, “Saída pela loja de presentes” (Exit Through the Gift

Shop) é a história de um lo-jista francês, Thierry Guetta, que pega uma câmera e parte em busca do paradeiro e da ami-ami-zade de Banksy, um grafiteiro de fama internacional, porém pouquíssimas pessoas conhe-cem seu rosto. O que se sabe é que sua técnica de stêncil e arte polêmica são inconfundíveis. No filme, Banksy inverte a intenção de Guetta e transforma o docu-mentário na história de um cara que filmou o movimento street art sob o ponto-de-vista de seus grandes realizadores: artis-tas como Shepard Fairey, Ron English, Dot Masters, Swoon e vários outros. O filme dá mais uma reviravolta quando Banksy incentiva Guetta a se tornar um artista. Incentivado pelo amigo, Guetta espalha pela cidade de Los Angeles um stêncil de si

mesmo segurando uma filma-dora e atinge o estrelato em Hollywood com uma exposição de 200 obras, onde em pouco tempo consegue arrecadar 1 milhão de dólares vendendo-as. Além de expor sua arte em Nova York, Londres e até Pequim.

O personagem principal do filme é tão caricato que parece ser uma brincadeira muita séria fruto da mente do próprio Banksy, pois em nenhum mo-mento vemos Mr. Brainwash (nome escolhido por Thierry Guetta) criar nada com as próprias mãos.

Mais um questionamento do mundo moderno, agora relativo ao próprio movi-mento da street art: o que faz um artista ser um ar-tista? Fica a pergunta e a divertida discussão sobre o documentário e o que ele quer nos dizer. Ou até se isso é mesmo um documentário!

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ção

ResenhaResenha

Page 33: Camaleão

Há pouco mais de 20 anos, o pensador es-tadunidense Samuel

Huttington pregava que o conflito geopolítico interna-cional após o fim da Guerra Fria deslocar-se-ia do viés ideológico (capitalismo ver-sus comunismo) para o “cho-que de civilizações”, isto é, o conflito de grupos cultu-rais distintos. Por esta razão, Huttington não acreditava na ideia de “fim da história” de-fendido por outro estaduni-dense Francis Fukuyama, em função do fim da Guerra Fria, mas a continuidade dos con-flitos por outras vieses.

É fato que o objetivo desta ideia de Huttington é a defe-sa da manutenção da extra-ordinária máquina bélica dos Estados Unidos, que susten-ta tanto um setor industrial poderoso, responsável pela maior parte das receitas na balança comercial daquele país, como também da ideolo-gia conservadora que neces-sita da existência de um “ini-migo” para justificar ações de opressão e repressão. Entre-tanto, é também evidente que

o fim da Guerra Fria trouxe como novidade a emergência de diversos conflitos – não na perspectiva de Huttington de “choque de civilizações” – em função da diversidade cultu-ral ter sido, durante um certo tempo, obliterada pelo confli-to central da Guerra Fria.

As heranças do período da Guerra Fria, discutidas no tópico anterior, deram os con-tornos da forma que se orga-nizou o mundo nesta globa-lização. A primeira coisa que

Culturas das classes

subalternas: entre a

visibilidade do capital e a

opressão

Dennis de Oliveira

A extraordinária máquina bélica dos

Estados Unidos, que sustenta um setor industrial

poderoso [...] necessita da

existência de um “inimigo” para justificar ações de opressão e

repressão.

65

Page 34: Camaleão

efervesceu foi a explicitação de conflitos internos masca-rados pelo “grande conflito geopolítico mundial” que era a Guerra Fria. Estes conflitos internos explicitaram as in-tolerâncias étnico-culturais, as divisões internas de gru-pos entre outros.

As preocupações com o problema das intolerâncias étnico-culturais contribuíram para um deslocamento dos conflitos do campo ideológico para o das “diferenças cultu-rais”, surgindo, principalmen-te nos EUA, o que se conven-cionou chamar de “esquerda cultural”. No campo acadêmi-co, alguns pensadores passa-ram a tratar o problema das diferenciações culturais como elemento chave para refletir sobre os conflitos contempo-râneos. O pensador português Boaventura Sousa Santos pro-pôs a chamada “hermenêutica diatópica” como uma metodo-logia de compreensão e pac-tuação que articula o direito à diferença e o respeito à digni-dade humana. (SANTOS, 1997)

Este debate chegou ao âm-bito das Nações Unidas, com

a aprovação na Unesco da Convenção de Proteção à Di-versidade Cultural, em 2005 e a publicação do Relatório “Investir no Diálogo Intercul-tural”, em 2009.

Estas ações da Unesco mo-bilizaram pensadores de vá-rios países. A convenção foi assinada por pouco mais de 100 Estados (os EUA não as-sinaram) e trouxe um novo conflito para a arena geopo-lítica: o tratamento dos bens culturais como commodities e, portanto, com sua circu-lação regulada pelos pactos comerciais da OMC (Orga-nização Mundial do Comér-cio) ou como patrimônios sujeitos, portanto, a políti-cas regulatórias soberanas dos países. O debate ganha contornos importantes prin-cipalmente porque atinge os interesses de um dos pilares de sustentação da nova or-dem global, que é a indústria cultural e midiática.

O Relatório de 2009 da Unesco constata que os conta-tos interculturais acontecem objetivamente independente da nossa vontade, em função

de um capital que se globali-za rapidamente e que, na ex-pansão de novos mercados e fronteiras, depara-se com ex-periências culturais distintas. Além disto, o fluxo global de informações que cresce em função do desenvolvimento das tecnologias de informa-ção e comunicação conecta o mundo todo e explicita as di-ferenças culturais.

Diante disto, o Relatório da Unesco defende que os veto-res por onde podem fluir os diálogos interculturais são a educação, a língua, a econo-mia e a comunicação.

Esta perspectiva da “es-querda cultural” é critica-da por Bauman, quando ele afirma que:

A nova indiferença à diferen-ça apresenta-se, em teoria, como uma aprovação do “pluralismo cultural”. A prática política cons-tituída e apoiada por esta teoria é definida pelo termo multicul-turalismo. Ela é, aparentemen-te, inspirada pelo postulado da tolerância liberal e do apoio aos direitos das comunidades à inde-pendência e à aceitação pública das identidades que escolheram (ou herdaram). Na realidade,

A avalanche ideológica

conservadora pasteurizou de tal forma

o debate político que as antigas divisões

ideológicas direita/esquerda ficaram

fragilizadas.

66 67

Page 35: Camaleão

contudo, o multiculturalismo age como uma força socialmente con-servadora. Seu empreendimento é a transformação da desigualda-de social, fenômeno cuja aprova-ção geral é altamente imprová-vel, sob o disfarce da diversidade cultural, ou seja, um fenômeno merecedor do respeito univer-sal e do cultivo cuidadoso. Com esse artifício linguístico, a feiura moral da pobreza se transforma magicamente, como um toque de varinha de condão, no apelo estético da diversidade cultural. (BAUMAN, 2013: P. 46)

Neste debate, há diferen-tes conceituações de cultura. Nos EUA, a chamada esquerda multicultural surge em oposi-ção a direita fundamentalista em que prega que o conflito atual é a Guerra de Civiliza-ções. O Relatório da Unesco cita a obra de Huttington e faz uma crítica de caráter con-ceitual, ao afirmar que o erro dela reside no fato de que con-sidera as culturas como entes fechados, autóctones e que, portanto, não são permeáveis a qualquer tipo de diálogo.

Bauman (idem), porém, chama a atenção para um aspecto importante que é a

transformação de todos os conflitos atuais em dilemas culturais, o que traz o debate político para uma polêmi-ca, ao seu ver incorreta, de mono ou multiculturalismo, de unicidade ou diversidade cultural. Retomando as he-ranças do período da Guerra Fria, o que ficou foi uma assi-metria interna e externa no mundo causada não apenas por diferenças étnicas (em-bora elas possam ser a ex-pressão mais dinâmica disto e funcionam como arcabou-ços ideológicos de legitima-ção das desigualdades), mas por uma brutal concentra-ção de poder e recursos.

Os projetos nacional-desenvol-vimentistas, identificados com a “esquerda socialista” do Terceiro Mundo, no período da Guerra Fria, são substituídos por formas dis-tintas de inserção na nova ordem global. Os Estados Nacionais destes países se enfraquecem e as elites autocráticas, algumas delas identificadas com estes projetos desenvolvimentistas, ou se rendem a esta nova lógica de articulação com as forças de poder globais ou perdem espaço.

Assim, nos períodos ini-ciais do mundo pós-Guerra Fria, a avalanche ideológica conservadora pasteurizou de tal forma o debate político que as antigas divisões ideológi-cas direita/esquerda ficaram fragilizadas. Várias nações da América Latina se democrati-zaram, após anos de vigência de ditaduras militares, mas as esferas públicas recém-cons-tituídas foram tomadas por esta configuração cinzenta do debate político-ideológico.

Um outro aspecto impor-tante que deve se salientar é que a concentração brutal do capital gerou a necessidade deste mesmo capital em abrir novas fronteiras para rein-versões e possibilidades de reprodução. O campo da cul-tura é uma delas. Daí, então, que a cultura não é apenas o terreno dos novos conflitos em função da emergência da visibilidade das diversida-des, mas também o campo de possibilidades de investi-mentos do capital.

As culturas das classes subalternas, em especial nos países da periferia do

Os projetos nacional-desen-volvimentistas, identificados

com a “esquer-da socialista” do Terceiro

Mundo, no pe-ríodo da Guer-

ra Fria, são substituídos

por formas dis-tintas de inser-

ção na nova ordem global.

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capitalismo, ficam assim den-tro de uma situação de esta-rem inseridas em um conflito no qual os mecanismos de in-tolerância e opressão se mani-festam cotidianamente, como também são interpelados pela mercantilização oferecida pelo grande capital interessado em abrir estas novas fronteiras de expansão. É por esta razão que visibilidade de culturas perifé-ricas e repressão a movimen-tos culturais de periferia são dois lados de uma mesma mo-eda, embora aparentemente sejam contraditórios.

Trazer o debate das cul-turas das classes subalternas para o campo da esfera po-lítica é a única forma de im-pedir que tais manifestações fiquem presas a este duplo grilhão opressivo do capitalis-mo: a visibilidade gerenciada pelos interesses do capital ou a opressão do sistema.

Referências:

BAUMAN, Z. A cultura no mun-do líquido-moderno. Rio de Ja-neiro: Jorge Zahar, 2013

HUTTINGTON, S. O choque das civilizações e a recomposição da nova ordem mundial. Rio de janeiro: Objetiva, 1997.

SANTOS, Boaventura de Sou-za. Uma concepção multicul-tural de direitos humanos. Lua Nova,  São Paulo ,  n. 39,   1997.

UNESCO. Investir no diálogo inter-cultural. Brasília: Unesco, 2009

Dennis de Oliveira. Profes-sor da USP Escola de Comuni-cações e Artes (ECA) e Escola de Artes, Ciências e Humani-dades (EACH). Coordenador do CELACC (Centro de Estu-dos Latino Americanos so-bre Cultura e Comunicação)Contato: [email protected]

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