calixto, valdir et al. acre - uma historia em construção (cap. 4 e 5)

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IV UN IDADE

BARRACÕESE BARRACAS:o seringalcomounidadeprodutiva.

A divisãosociale técnicado trabalho

1. Noções Iniciais

Nas Unidades anteriores você estudou que a formação do seringalestá estreitamente vinculada ao arregimentamento da força de trabalhoe ao financiamento, à emigração nordestina e ao aviamento. Agora vocêestudará o seringal em sua estrutura e funcionamento, a divisão social etécnica do trabalho, enfim, o poder do patrão simbolizado na imponên-cia do barracão e a submissão do seringueiro que, morando em toscasbarracas, vivia para se escravizar, no dizer de Euclides da Cunha.

Para abrir um seringal não era preciso muita coisa. Conseguido ofornecimento de mercadorias junto a uma casa aviadora de Belém oufvianaus, o futuro proprietário - o patrão seringalista - recrutava algu-mas dezenas de trabalhadores no Nordeste, ou mesmo em Manaus e Be-lém, e subia com eles os rios Purus ou Juruá à procura de um lugar apro-priado para a fixação da sede de seu seringal. Dava-se preferência aos lu-gares altos, que não fossem atingidos facilmente pelas águas em tempode cheias e em cujas proximidades existisse grande quantidade de árvo-res-seringueiras. Os lugares próximos aos igarapés e lagos eram bastanteprocurados.

Feita a sondagem e verificadas as qualidades do lugar, tratavam deerigir, de imediato, um pequeno casebre com recursos da própria selva-- palha, madeira de pau roliço, paxiúba, etc. .- para a acomodação pro-visória do patrão, dos "seus homens" e das mercadorias, as quais varia-vam do perfume francês ao jabá, do quinino ao rifle 44.

Acomodado o pessoal ~ as mercadorias, dava-se in{cio ao trabalho

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de abertura das estradas, construção das barracas dos seringueiros e dasdependências do barracão.

Para melhor compreender como era organizado e como funcionavao seringal, vamos adiante analisar alguns de seus elementos principais,tendo como ponto de referência, por um lado, o seringalista, o barracãoe os seus componentes, e, por outro, o seringueiro e a colocação.

Por enquanto queremos apenas ressaltar que a unidade produtivaa que chamamos de "seringal" não se resume somente a uma extensaárea de terras, com muitas estradas de seringa, seringueiros e patrão. Oseringal era um todo complexo e sua estrutura refletia, sob certos aspec-tos, as exigências do meio e a necessidade da produção de borracha para'o mercado mundial. Por isso se faz necessário estudar o seu funciona-mento interno e suas relações externas.

Antes de entrarmos no estudo espec{fico da organização e funcio-namento do seringal, gostarramos de ressaltar uma questão fundamen-tal, que você deverá relacionar com o que trata a Primeira Unidade. Re-ferimo-nos ao novo tipo de propriedade estabeíecida com o advento doseringal.

Como você sabe, o silvrcola que habitava essa região não conheciaa propriedade particular da terra e a noção de lucro que lhe era estra.nha.

Pois bem, chegados os primeiros contingentes populacionais e aconseqüente implantação dos seringais, estabeleceu-se a propriedadeparticular da terra, sendo o seringalista (o patrão) o seu proprietário ex-clusivo e1bsoluto, mesmo que fosse apenas de fato, já que não havia,na região, presença jur{dico-administrativa nem da Bolrvia nem doBrasiI.

E certo que não foi implantado nenhum sistema de medidas métri-cas para estabelecer áreas definidas. A extensão da propriedade depen-dia da extensão das estradas de seringas. Portanto, a propriedade de talseringalista constitu ra-se de toda aquela área de terra alcançada pelas es-tradas de seringas que o mesmo mandava abrir. Assim sendo, o patrãotornava-se o dono único e exclusivo daquela área e de tudo que existiasobre ela, de maneira que, se alguém pretendesse agir dentro dela, sejade qual forma fosse: caçar, pescar, cortar madeiras, etc., teria que ter apermissão do seu dono, o seringalista.

Inicialmente, a terra em si não constitu{a fonte de riqueza para oseringalista. O que lhe interessava era a borracha para o comércio e aconseqüente aquisição de lucros. Mas, para tal, fazia-se necessário esta-belecer o seu dom ínio sobre toda aquela região, já que outros elementos

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2. O Barracão: poder, vigilância, circulação da riqueza no seringal

é o armazém. Ao lado, ligado por um trapiche de paxiúba, o escritQ-rio L.,)' Em seguida, estão a casa do ... guarda-livros, a escola, o curral e,por último, a residência do proprietário, um bonito chalé de madeira delei, cercado de varandas."

I'Por trás, beirando o aceiro da mata, sem preocupação de arruma-mento, o engenho, a casa-de-farinha, a barraca do mateiro e algumasoutras de trabalhadores do campo. Mais adiante, já do outro lado doigarapé, o barracão de hospedagem e o paiol de inflamáveis prudente-mente isolado por uma cerca de arame farpado."

Sede do seringal, o barracão situava-se sempre às margens dos riosporque essa foi, desde os primeiros tempos da ocupação, a melhor viade acesso dispon ível na região. Esse condicionamento de ordem natural,além do condicionamento sócio-histórico, fizeram com que os desbra-vadores dos seringais acreanos, tanto no Juruá como no Purus, Iaco eAguiry, montassem seus negócios nas margens e não em zonas centrais,uma vez que a localização ribeirinha Ihes facilitava o recebimento demercadorias diversas e o embarque da borracha ou outros produtos.

Desta maneira, o barracão era, além de sede administrativa e co-mercial do seringal, também a morada do seringalista e sua família, ex-ceç-ão,é claro, para os casos de seringalistas abastados que, no auge dosbons preços na comercialização da borracha, preferiam residir em Ma-naus ou Belém, deixando um gerente como substituto. Tal fenômeno- a ausência do seringalista na propriedade - pode ser observado, tam-bém, no período de declrnio ocorrido em conseqüência da competiçãoda produção gum(fera na 1\1alásia.

Mas o barracão funcionava também como núcleo gerador, estimu-lador e executor de todo um complexo de valores (ideologia), indispen-sáveis para a reprodução do sistema. Lá eram celebradas festas de cará-ter profano-religioso em fins de ano, festas juninas, assim como cerimô-nias de batizado e casamento. Essas últimas aconteceram freqüentemen-te depois de 1920, quando passaram a ser constantes as desobrigas desacerdotes nos seringais.

De simples casarões toscos, feitos de madeira roliça e cobertos depalha, alguns barracões progrediram de tal maneira que, à primeira vista,pareciam pequenos núcleos urbanos. Outros levaram anos e não conse-guiram ter esse aspecto, pois a capacidade de produção e habilidade nocomércio extrativista eram fatores decisivos no desenvolvimento dessassedes.

O patrão precisava ser de confiança para que as Casas Aviadorasnão Ihes deixassepl faltar nada. Além do Novo Andirá, outros Seringais

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da flora - além da seringueira - e da fauna também eram importantespara a manutenção do seringal.

Outro aspecto, não menos importante a ressaltar, refere-se ao sig-nificado mercantil-capitalista atribu(do à borracha. Identificada peloabor(gene sempre como objeto de uso, no momento da formação do se-ringal, a goma elástica passou a ser mercadoria de apreciável valor co-mercial-industrial, razão pela qual se deu a ocupação.

Agora já estamos em condições de examinar um por um os elemen-tos componentes do seringal: o barracão, a colocação, as estradas de se-ringa e a barraca do seringueiro, próximo da qual se localizava o peque-no tapiri, onde se efetuava o processo de coagulação do látex. Examina-remos também as categorias profissionais integrantes do seringal, procu-rando posicioná-Ias quanto à divisão social e técnica do trabalho. Fe-chando a Unidade, estudaremos mais detidamente aquelas que se consti-tu(am na própria razão de ser do seringal enquanto unidade produtivavoltada para o mercado externo: o patrão-seringalista e o trabalhadorextrator-manufatureiro (o seringueiroL

O aumentativo representa símbolo de autoridade, de respeito eobediência aos que nele vivem. Antes, ele foi uma simples habitação(como já nos referimos anteriormente) feita com os próprios recursosda selva, para a comodidade imediata.

Do sucesso da produção dependia a ampliação do barracão. Muitospatrões constru (ram verdadeiros cha/ets, esti 10 su (ço, ornamentadoscom mobrl ia austrfaca, alguns de dois andares, cobertos de telha fran-cesa, com varanda, etc.

Os seringais menos prósperos conservavam o estilo primitivo, cons-tru (am seus barracões com paxiúba, cobrindo-os com palha ou cavaco.Outros, no lugar da paxiúba, usavam tábuas.

O barracão, cujo sinônimo margem contrastava com o centro, a co-locação do seringueiro, não designava apenas a casa do patrão, mas oconjunto de todas as dependências que ativavam o funcionamento doseringal na margem. JOSE POTYGUARA, em Terra Calda, nos descreveum barracão, estilo clássico do início deste século:

"Num campo apertado entre a mata e o rio, a sede do seringal éapenas um embrião de povoado, um arremedo de rua paralela ao barran-co. Perto do porto, o primeiro casarão de madeira, coberto de zinco,.

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3. Colocações, estradas e barracas: onde o seringueiroproduzia e "se escravizava"

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No seringal, a colocação, com suas estradas de seringa e a barracado seringueiro, constitui-se na antftese do barracão. E o centro contras-tando com a margem. E o "mundo" do trabalho, da produção, em con-traposição ao barracão, o "mundo" do capital, controle e circulação dariqueza gerada pelo extrator-gum(fero.

Um seringal divide-se em várias colocações. Cada colocação, porsua vez, compõe-se de várias estradas de seringa, geralmente de 3 a 15.IEntretanto, a abertura de colocações e estradas de seringa não era umato isolado da dinâmica produtiva do seringal, pois o seu número diver-sificava-se de acordo com a mão-de-obra disponível. Um seringal pode-roso possu(a, às vezes, mais de cem colocações. Geralmente havia umseringueiro em cada colocação, dando conta do corte de três estradas deseringa. Todavia, era mais ou menos freqüente o caso em que uma colo-cação que possu ísse nove estradas poderia ser ocupada por três homens,isto é, o ocupante e dois meeiros.

As colocações mais distantes e por isso mais novas, de aberturamais recente, costumavam se chamar zona braba ou zona virgem.

Quanto às estradas, verdadeiros caminhos de trabalho, podem serde margens ou de centro. As primeiras são assim chamadas porque, sain-do por um lado da barraca, o seringueiro, após fazer todo o seu percur-so, sai pelo outro. As segundas precisam de um caminho (de um espi-gão), que, partindo da' barraca do seringueiro, vai se encontrar com aestrada propriamente dita. Portanto, nesse trecho chamado espigão, oseringueiro faz a sua caminhada de ida e volta, o que não acontece noprimeiro caso. Normalmente, as estradas acabarr adquirindo uma formade oito, sendo por isso batizadas de "estrada de oito", ou então tomamforma oval ou circunferencial. Geralmente isso acontece com as estradasde margens, embora sempre tortuosas. Há também as estradas commanga, isto é, aquelas que possuem seringueiras fora da rota, ou cami-nho anteriormente traçado, necessitando-se, assim, fazer um desvio(uma manga) até estas. Acontece, às vezes, de uma estrada ter váriasrr.angas. Não raro ocorre uma estrada ser direta, em forma de estirão,em linha reta, obrigando o seringueiro a fazer seu movimento de ida evolta pelo mesmo caminho, o que leva ao desperd (cio de tempo e aodesgaste Usico.

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O seringal Andirá, na década de 30, tinha a aparência de um pequenonúcleo urbanizado. O seu proprietário, Cel. Sebastião Dantas, tinha cré-dito e prestfgio nas praças de Manaus e Belém.

situados no vale do Acre pareciam pequenas vilas. Eis alguns deles: Ira-cema, Nova Esperança, Porvir Novo, Benfica, Capatará, São Lu(s doRemanso.

Em linhas gerais, o barracão - sede do seringal - pode ser entendi-do como aquele setor do seringal que viabilizava o dom(nio do capitalsobre a força de trabalho, através de mecanismos coercitivos nitidamen-te econômicos (a d(vida no barracão) ou extra-econômicos (regulamen-tos, fiscalizações, castigos, etc.).

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4. O dom ínio do capital: aliam-se capital financeiro privado e Estado

Imponentes e alheias à vida do homem nos seringais, as casas avia-doras monopolizavam a produção diretamente de seus escritórios emManaus e Belém. A maioria dessas casas aviadiras representaram, até oinício da Segunda Grande Guerra Mundial, interesses principalmente docapital europeu: ingleSes, alemães, holandeses, franceses e portugueses.

Essas casas monopolizadoras da manufatura da borracha predomi-naram até à época da edosão da Segunda Grande Guerra Mundial(1939-45). Dali em diante dois órgãos passaram a geri-Ia: a Rubber Re-serve Development Company e o Banco de Crédito da Amazônia. En-cerrou-se, desta forma, a ação direta das casas aviadoras nos seringais eo monopól io passou a ser exclusivo desses órgãos. Agora, pelo novosistema operacional, os seringalistas passaram a receber financiamentobancário, dinheiro vivo, para tocar direto os seus empreendimentos. Re-cebiam financiamento equivalente a 60% da produção pagando juros a7% ao ano. Como nos referimos anteriormente, as Casas Aviadoras fi-nanciavam com mercadorias 100% da produção, pelo sistema de avia-mento, laços não totalmente desfeitos porque os seringalistas continua-ram comprando de seus antigos patrões. Os aviadores procuraram ainda,através das Associações Comerciais, dissuadir o governo brasileiro de talmedida. Foi em vão o esforço.

Em síntese, a exploração creditícia emanada das Casas Aviadoraspara os seringalistas e destes para os seringueiros e, ainda, juntando-se aesse contexto, o permanente contato do homem com a natureza no sen-tido de vencê-Ia e transformá-Ia; a hostilidade eminente nas relações so-ciais decorrentes da situação antagônica em que se encontravam os ho-mens ligados ao extrativismo: patrões-seringalistas e produtores diretos(seringueiros); o endividamento compulsório a que ambos eram subme-tidos, a ausência de dinheiro nas transações comerciais, oisôlamentohumano que tornava a vida sem perspectiva; e, por fim, océi-ceamentodas liberdades do homem preso à produção, eram, em linhas gerais, asmatrizes sustentadoras do sistema de aviamento no extrativismo.

Uma estrada de seringa pode ter 130, 150 e até 200 seringueiras.Cortada uma estrada, ela terá que passar, no mínimo, dois dias em des-C<:mso.Enquanto isso, cortam-se as outras.

A barraca do seringueiro, geralmente localizada às margens de umrio, lago ou igarapé, tem sua armação feita de madeira de "pau roliço",C()berta de palha e assoalhada com paxiúba. As vezes, as paredes tam-b~m são feitas com paxiúba, sem janelas e somente com uma porta.

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Quando o seringueiro não tem família - e este era o caso mais freqüEm-te - sua barraca possuía somente um-compartimento: era toda fechada,deixando um vao em seu interior, ou se fazia, em um de seus cantos,um quarto para dormir e guardar os pertences, deixando em aberto orestante, assoalhado ou não. Ocorria, em casos raríssimos, de a barracanão ter assoalho, ou seja, o assoalho era o próprio chão.

Pouqu íssimas e miseráveis coisas ocupavam o interior da barraca.Os objetos mais freqüentes são: um cântaro (pote de barro para colocarágua de beber), um fogão de lenha, uma rede, uma espingarda ou rifle,latas para guarda de comestíveis, etc. Banco e mesa faziam-se de torascurtas de "pau roliço" tiradas da mata.

Próximo à barraca encontrava-se o tapiri (o defumador), local on- .de se defumava a borracha, geralmente todo fechado de palha e comuma pequena porta na frente.

O tapiri é uma pequena cabana geralmente fechada de palha, comuma única e pequena porta na frente, localizada nas proximidades dabarraca. Ali encontra-se um defumador que, atirando espessos rolos defumaça, propicia a reação química do látex para o estado sólido.

A construção do tapiri e do defumador não exige material ou téc-

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o tapiri.75

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nica avançada: palhas, pau roliço, fibras, barro, encontrados nas proxi-midades da casa do seringueiro. obedecia a um critério preestabelecido nem era única e válida para to- .

dos os seringais ou todas as épocas. Feitas essas ressalvas, poderemos,entâo, prosseguir, examinando, no interior de cada grupo, a posição decada um dentro da unidade produtiva.

No primeiro grupo vamos examinar as funções do gerente, do guar.da-livros, do caixeiro, do noteiro e dos fiscais.

O gerente é a segunda pessoa na hierarquia do seringal. Substitui opatrão quando ausente, mantendo a mesma postura autoritária do serin-galista, na maioria das vezes. Nos casos em que o seringalista preferiamorar nas cidades de Belém ou Manaus, o gerente tornava-se o responsá-vel único e permanente do seringal.

Em seguida vem o guarda-livros. Este era o responsável por toda aescrituração do barracão. Cabia-lhe registrar todas as mercadorias chega-das da casa aviadora e despachadas aos trabalhadores do seringal. Na au-sência do gerente era ele quem o substitu ía. As vezes, quando o barra-cão não tinha gerente, o guarda-livros desempenhava esse papel. A res-ponsabilidade desse elemento era de grande relevância, já que lhe com-petia fazer as anotações falsas ou verdadeiras da conta corrente; era elequem dizia se um seringueiro devia ou tinha saldo, se podia tirar maismercadorias ou não. Entretanto, suas decisões dependiam da liberaçãodo gerente ou do patrão.

Aos caixeiros sobrava-Ihes, ainda, alguns poderes de decisão nobarracão. Eram eles que abasteciam os centros, pesavam as borrachas,cuidavam dos armazéns de víveres e dos depósitos de borracha. O grupode caixeiros constituía o "policiamento" do seringal. Com autorizaçãopara até mesmo torturar infratores, alguns desses homens aproveitavama legação de poderes que Ihes eram atribuídos para humilhar e perseguirseringueiros, cortando-Ihes o fornecimento de mercadorias, destruindoalgumas plantações feitas por eles, proibindo o contato dos seringueiroscom os regatões, etc.

O caixeiro era o homem de confiança do patrão e o segurança doseringal. Geralmente preferiam homens fortes e autoritários. Não eranecessário ter conhecimentos especiais. Bastava-Ihes saber escrever e fa-zer simples operações matemâticas, já que a contabilidade era atividadedo guarda-livros.

Aqui e ali os barracões possu íam "fiscais" que vez ou outra percor-riam as colocações verificando se o seringueiro estava usando métodocorreto no corte da seringueira. Uma série de normas deviam ser cum-pridas, como, por exemplo, o corte na árvore não podia ser desferido demaneira profunda. Mas a fiscalização não se esgotava ar. Investigava-se

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5. Varadouros: "veias abertas" do seringal

Estreitos e tortuosos, lamacentos na época das chuvas, os varadou-ros são pequenas estradas, abertas a machado e terçado. Ligam o barra-cão às colocações, as colocações entre si, um seringal a outro e os serin-gais às sedes municipais.

A distância de uma colocação para outra varia de um, dois, três eaté mais quilômetros. E o varadouro vai passando de colocação a colo-cação. E através do varadouro que caminham os comboios deixando asmercadorias para os seringueiros e trazendo as pélas de borracha para obarracão. Nos casos em que não seja possível a comunicação entre umae outra colocação, o comboio precisa voltar para pegar o varadouroprincipal. Esse trecho que liga o varadouro principal à colocação chama-se manga.

6. A cada um segundo a lógica do sistema: a divisão sociale técnica do trabalho no seringal

Além dos donos dos meios de produção (patrões seringalistas) edos extratores gum íferos (seringueiros), molas-mestras do sistema (vejao próximo tópico), o seringal necessitava ainda de outros trabalhadorespara que o sistema se reproduzisse.

Desta maneira, e para facilitar a compreensão, podemos dividir osque trabalhavam nos diversos setores do seringa! em quatro grupos:1.0 - os que, desde o gerente, guarda-livros, caixeiros, fiscais e noteiros,representavam a autoridade, a fiscalização, o controle e a repressão;2.0 - os que eram encarregados de fazer chegar às colocações tudoaquilo de que os seringueiros precisavam, isto é, os comboieiros; 3.0 -aqueles que, desde o mateiro, o toqueiro (ou piqueiro) e o roceiro, ti-nham a função de descobridores da seringueira e preparo da área ondese daria o trabalho da extração do látex; e 4.0 - os que exerciam ativi-dades ligadas à produção de subsistência ou à execução de tarefas varia-das, como os caçadores, pescadores e trabalhadores do campo. Antes dedescrevermos e analisarmos brevemente em que consistia o trabalhodesses homens, é bom lembrarmos que esta divisão do trabalho não76

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se o seringueiro se ocupava de outra atividade que não o extrativismoou se tinha pélas de borracha suficientes para sanar as d (vidas. Nos casosmais sérios esses homens traziam o seringueiro à presença do patrão pa-ra ser penalizado ou interrogado. A presença desses indiv(duos não segeneralizava em todas as sedes. S6 as mais importantes os possu(am.

Jã os noteiros eram aqueles que, quase sempre chefiando os com-boios, anotavam as merCadorias descarregadas nas colocações, bem co-mo registravam as pélas de borracha que seriam levadas para o barracão.

Do segundo grupo, destacamos o comboieiro, aquele que, cuidan-do do comboio (alguns muares), transportava mercadorias (arma, ali-mentação, medicamentos, etc,), semanal ou mensalmente, para o centrodo seringal, levando para o barracão a borracha produzida. Quandoanalfabeto - e essa era a regra - o comboieiro era acompanhado porum noteiro, cuja função já foi descrita. De qualquer modo, o comboiei-ro constitu(a-se num elo importante na cadeia do aviamento, pois cabiaa ele tornar viável o escoamento da produção.

Vejamos agora o terceiro grupo, constitu(do pelos mateiros, to-queiros ou piqueiros e roceiros.

O trabalho desses três, cada um com função especffica, estava inti-mamente relacionado com a abertura e preparo das estradas de seringapara a produção. Encontrada a primeira seringueira pelo mateiro, o to-queiro faz uma pequena limpeza ao seu redor e senta-se em seu tronco,advindo-Ihe dar sua denominação - toqueiro. O mateiro vai em buscade outra seringueira. Encontrando-a, dá um tiro para o alto. Ouvido otiro e marcado o rumo, o toqueiro começa a abrir uma picada (apenasuma noção do caminho, aparando os galhos de árvores), pois a tarefa demelhorar o caminho até transformã-Io em estrada cabia ao roceiro. Aoperação se repete. E lã vão os dois abrindo a estrada de seringa, de for-ma que a última seringueira da estrada esteja próxima da primeira, pos-sibilitando, portanto, que o ponto de chegada seja o ponto de partida.Desta maneira, observamos o inter-relacionamento destas três ativida-des: o mateiro procura a seringueira, o piqueiro faz o pique, ligandouma seringueira a outra e o roceiro limpa o pique até que este fique emcondições de se caminhar. Após a execução desse trabalho, a estradaestá pronta.

Por fim, o quarto grupo é aquele formado por trabalhadores que sededicavam a atividades relacionadas ao abastecimento suplementar doseringal, assim como a tarefas ligadas à preservação do patrimônio do se-ringalista. São eles os caçadores e pescadores, encarregados de suprir obarracão com alimentação proveniente da própria selva. São os trabalha-

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dores de campo que se dedicam às criações (galinhas, porcos, gado,etc.). Limpam o campo, fazem cerca, etc. Esses últimos - os trabalha-dores de campo - surgiram tempos depois da formação dos primeirosseringais.

De modo geral, todos eles gozavam de privilégios em relação ao se-ringueiro. Só o fato de estarem habitando na margem jã indicava melhorstatus. Notrcias dos núcleos urbanos, das grandes cidades e até mesmonoticiãrio internacional chegavam até eles, apesar do atraso de meses.

Morar na margem era bom, particularmente para caixeiros, guarda--livros e fiscais, pois significava estar pr6ximo do poder e dele esperarrecompensas pelos "bons serviços" prestados.

7. Sua vontade era lei: o poder do seringalista

... "O respeito que impõe, a di-reção que precisa dar aos negó-cios do seringal exige-lhe açãopronta, enérgica, e explica aaspereza. Tem que ser dinâmi-co, rude, talvez tirânico. Qual-quer fraqueza, qualquer inde-cisão pode levar a um desastre.O senhorio que exerce precisaser mantido sem hesitações.Lança mão de recursos bárba-ros, muitas vezes, para poderconter o desenfreio natural noambien te duro, é verdade..."(Arthur Cesar F. Reis,op. cit.,p. 114,)

O seringalista representa a figura central do seringal.E geralmentetrata-se de um "aventureiro" que, tendo conseguidodas casasaviadorasde Belém ou Manausum fornecimento de mercadorias, recrutou algu-mas dezenas de homens - migrantesnordestinos- e veio se estabeleceràs margens de algum rio das bacias do Juruá ou do Purus.

Homens de pouca cultura - a maioria mal sabia ler, escrever ou fa-zer algumas operações contábeis - muitos deles já haviam estado aqui

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como exploradores, quando abriram caminho ao povoamento. Suas ori-gens não remontam a nenhuma tradição de riqueza. São nordestinosque perderam todas as perspectivas de vida abastada em sua terra natal.

A forma bem particular de organização do trabalho no seringaltornou esses homens autoritários, arrogantes e insaciáveis em suas pre-tensões. Desejosos de .enriquecer rápido e facilmente, à custa da explo-ração do trabalho forçado e ininterrupto dos extratores do látex (os se-ringueiros), assumiram uma postura de "ser supremo" do seringal. Con-sideravam-se os árbitros para o estabelecimento do erro ou da verdade.

Castigando com surra, amarrando no "tronco" ou mandando ma-tar os infratores de seus interesses, em certos casos desempenhavam atéo papel de "juiz de paz" daquela região (do seringal), fazendo casamen-tos, registrando nascimentos, mortes, sentenciando pena e dando o per-dão. Eram a cruz e a espada a um só tempo na luta contra a conta-cor-rente da casa aviadora.

A um p'atrão seringalista, na época gloriosa da borracha, não se po-dia contrariar, por mais absurdas que fossem suas deliberações. Muitosadquiriram patentes de coronel, major, capitão e, a exemplo dos coro-néis do Nordeste, tornaram-se classe poderosa. Os "coronéis de barran-co", como eram denominados os seringalistas, mandaram e desmanda-ram, participando muitos deles na pol ítica e administração do Acre-Ter-ritório. Esse era mais um aspecto do poder que detinham. Um outro eraa imagem de nobre que procuravam ostentar. O patrão "nobre", vez ououtra, viajava a Belém, Manaus e até ao exterior, promovendo ou parti-cipando de banquetes ou diversões proibitivas. Mas eles podiam desfru-tar de tudo isso: possuíam crédito nas praças aviadoras e braços para otrabalho nos seringais.

tados" aqueles que não obedecessem a essa norma.Homens arregimentados não só no Ceará, mas em todo o Nordeste

os seringueiros suportavam toda sorte de violências: subordinação po~dívida, isolamento social, além de outras sanções emanadas do barracãoe, ainda por cima, a brusca mudança climática a que eram submetidos.O clima quente e úmido, acrescido de doenças endêmicas e infecciosas,comuns à região, completavam o quadro de sacrifício por que passaramesses trabalhadores.

O seringueiro, pela própria natureza de seu trabalho, tornou-se fi-gura singular na história do trabalhador nacional. Não há nada que o as-semelhe a outros trabalhadores produtivos. Não tinha vínculo emprega-tício do ponto-de-vista legal, mas estava subordinado a um patrão; ocu-pava enormes faixas de terras (as colocações), porém delas não podiafazer uso, isto é, fazer pequenos cultivos agrícolas de subsistência, por-que as normas do barracão o proibiam. A ordem vigente era produzirmais e mais borracha. A jornada de trabalho, então, não se resumia asimples oito horas por dia. Era muito mais. Geralmente o seringueiropunha-se de pé às duas horas da manhã, preparava o café, tomava-o, em-punhava os instrumentos de trabalho (faca ou machadinha) poronga, fa-cão e rifle) e ganhava a mata para cortar madeiras. Por volta das onze,terminando o "corte", comia um pouco de farofa, no mato mesmo, ede posse de um balde ou saco encauchado (impermeável) iniciava a "co-lha" do látex. As quatro da tarde chegava à barraca e dirigindo-se à de-fumaceira iniciava o processo de defumação das "pélas" ou "bolotas"de' borracha. Esse trabalho todo terminava por volta das vinte horas. Aí,então, é que ele podia fazer higiene corporal e comer alguma coisa. Es-tava preparado para o dia seguinte. Deitava-se às onze para levantar-seàs duas.

Outros preferiam o turno da noite. Entravam para o corte às 18horas, só conseguindo ficar livres às onze horas do dia. Dormiam das13 às 17, para às 18 continuarem a rotina. Assim era por toda a safra, jáque a dívida contraída no barracão precisava ser paga. Se adoecessem, ojeito era sarar à custa de quinino ou beberagens do mato. Do contrário,morriam ali mesmo - sozinhos. E foram muitos os que pereceram aco-metidos de impaludismo, beribéri, tifo, pneumonia, picadas de cobras,etc. Nas barracas habitadas por mais de uma pessoa, o quadro tambémnão era menos desagradável, pois ocorria que todos ficavam doentes aomesmo tempo, sem que um pudesse ajudar o outro. Assim mesmo, nofim do mês, o comboio encostava para deixar mercadoria e levar borra-cha. Deixar mercadoria... se tivesse borracha.

8. Cortar seringa, empenhar a vida: o seringueiroe o sistema de aviamento

Nem assalariado, nem escravo, o seringueiro era o suporte de umasuper-exploração começada nas casas aviadoras e prolongada na materia-lização do seu trabalho, isso porque o sistema organizador da produçãoextrativista assim determinava. Manietado por dívida, o seringueiro tam-bém não era trabalhador livre. Seria, se pudesse abandonar um local emque estava trabalhando por outro, o que se tornava impossível tendo emvista que os seringalistas organizados em Associações não permitiamsaídas enquanto as dívidas não estivessem de todo sanadas. Eram "mul-80 81

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Claro que as endemias s6 eram mais comuns naquelas levas recém--chegadas, nos "brabos" chamados. Depois, se aclimatados, cessavam asdoenças. Os sobreviventes, mesmo gozando de relativa saúde, não ti-nham boas perspectivas de vida, pois iam enfrentar d(vidas acumuladasanos ap6s anos. Uma conta infinita. O preço do quilograma de borrachanão compensava os preços dos produtos importados, acima de 100% deseu valor real. E não havia alternativa em procurar mais barato. Primei-ro, porque não ocorria moeda: o seringueiro comprava e pagava em es-pécie; segundo, porque a borracha produzida pertencia ao seringalistaque havia fornecido mercadorias. Aliás, nesse fornecimento podiam serinclu(das até mulheres. Para os seringueiros que tinham saldo, o patrãotrazia companheiras, mas cobravam. Digamos, eram debitadas na contado seringueiro todas as despesas de hotel e passagens feitas de Manausou Belém até o destino da criatura que vinha nessas condições. Não erauma venda da pessoa humana propriamente dita, mas uma violência amais cometida pelo sistema de aviamento. A mulher não era comum nosprimeiros decênios da existência do seringal, por isso o seringalista a im-portava, com a condição de s6 desposá-Ia quem tivesse condições decustear suas despesas. A um trabalhador doente ou que estivesse comdébito elevado isso não era permitido.

Graças a uma conjuntura internacional que manteve, durante algu-mas décadas, um n(velfavorável dos preços, e à imposição de um regimede trabalho que conservava o seringueiro em "cativeiro", isto é, atreladoe subjugado ao barracão pelo saldo quase sempre negativo, o que signifi-cava garantir com razoável regularidade a força de trabalho indispensá-vel, foi possível conseguir níveis elevados de produção e de lucros.

O Acre conseguiu ser, nas primeiras décadas deste século, o tercei-ro maior contribuinte tributário da União, s6 ficando atrás dos Estadosde São Paulo e Minas Gerais. A produção crescera velozmente conformeo planejamento daqueles que comercializavam a borracha. A produçãoda goma elástica na Amazônia, principalmente no Acre, atingiu, no pe-r(odo de 1895 a 1909, a casa das 443.200 toneladas, contra 374.510 domesmo produto produzido na Africa, América Central e Malásia. A he-gemonia brasileira era indiscutível até ar. A concorrência internacional- elemento integrante do capitalismo monopolista - ainda não assusta-ra as firmas aviadoras e os seringalistas.

Os preços do quilograma de borracha, em decorrência da não satu-ração de mercados, evolu íam satisfatoriamente. Por mais de 60 anosnão se verificou estagnação. Observe a tabela:

Ano Preço do quilograma

18251893/41894/51897/81910

220 réis5 $ 2405 $ 720

10 $ 29817 $ 800

A produção amazônicade borrachaatingiu o seu cl(max em 1911, quan-

do chegou a 44.296 toneladas.

A estabilidade dos preços permitiu não s6 a obtenção de lucros porparte dos donos de capitais que investiam nos seringais, mas também ofortalecimento dos seringalistas e a conseqüente permanência dos serin-gueiros frente à produção.

Daí para frente, a produção internacional começou a interfe-rir negativamente nas relações comerciais internas, sujeitando o merca-do externo e o extrativismo à grande crise de 1912. A borracha silvestreperde a cotação, os preços vão por terra e a principal economia regionalcomeça a agonizar. Os envolvidos na produção procuravam alternativas.Os aviadores cortavam o fornecimento pelo meio e aumentavam os pre-ços dos v(veres. O seringalista, por sua vez, usava o mesmo método emrelação ao seringueiro. Patrões que não se encontravam nas sedes envia-vam comunicados patéticos aos seus gerentes: "Confio em você. Nãoafrouxe no balcão: mercadoria s6 para quem tem saldo ou está tirandolenha." (José Potyguara, Terra Caída.)

Diante dessa nova conjuntura econômica, as forças concentradasno barracão vão se deteriorando gradativamente. As normas rígidasafrouxavam. O que era antes proibido, como plantar pequenas roças,agora era permitido. Uma agricultura incipiente surgia. Todos podiamplantar. O barracão dispunha de pouca mercadoria, estocando o essen-cial à sua subsistência enquanto instituição. O trânsito de um para outroseringal passou a ser livre. Começava o grande êxodo, nunca antes cogi-tado. Até 1941, sa(das e entradas em seringais tornaram-se rotina. O go-verno tentou reagir para salvar a economia extrativista, porém esbarravanas regras impostas pelo capital internacional. O Brasil não tinha paraquem vender. Até os regatões, negociantes fluviais, figura outrora detes-tada pelo barracão, passaram a exercer livre comércio. Compravam evendiam abertamente aos seringueiros. O que não se encontrava nas

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lojas dos barracões era certo descobrir no comércio do regatão. O pró-prio seringalista, dependendo da necessidade, recorria a eles. E nesse pe-ríodo de decadência que surgem colônias agr(colas nos arredores das ci-dades acreanas. Como muitos seringueiros vieram para a cidade, os go-vernos do Território promoveram desapropriações dos seringais maispróximos, distribuindo-os em lotes. Dar é que se originaram as primeirascolônias agr(colas de Brasiléia, Xapuri, Rio Branco, Sena Madureira,Feijó, Tarauacá e Cruzeiro do Sul.

Outras crises se sucederam conforme a oscilação da economia in-ternacional, até que houve uma retomada na década de 40. A SegundaGuerra Mundial, com efeito, deu novo impulso à economia extrativista.A borracha passou a ser procurada pelas principais potências e os preçosascenderam de modo razoável, obviamente. O capital norte-americanoem sua fase já imperialista entra decididamente no negócio. Cria-se obanco da borracha, hoje BASA, e o seringalista passa a receber financia-mento direto. A mão-de-obra é buscada novamente no Nordeste, só quedesta vez os trabalhadores eram contratados por empresas recrutadorasque os intitulavam "Soldados da Borracha". A produção tomou novoânimo, mas não demorou a decair. O banco, que monopolizava a produ-ção, sustou o financiamento que vinha operando e os seringais entraramnovamente em colapso. Na década de 1960 alguns resistiram precaria-mente. Em 1970 a resistência acabou. Endividados, a maioria dos tradi-cionais patrões-seringalistas foi esmagada. Alguns retornaram à pobrezaem que viviam antes de explorar a produção de borracha, outros envere-daram no ramo do comércio em pequenos e médios núcleos urbanos, euma minoria ajustou-se à nova ordem.

Aqueles que não tiveram seus bens hipotecados, venderam-nos pa-ra os sulistas que aqui chegavam atra(dos pela desvalorização da terra eperspectiva de implantar grandes projetos agropecuários. A produçãoatual de borracha no Acre é insignificante e não tem como soerguê-Ia acurto e médio prazos, uma vez que as seringueiras têm sido destru rdaspelas grandes derrubadas operadas nos últimos tempos. Como forma al-ternativa, procura-se implantar seringais de cultivo, porém o futuro des-tes é incerto, porquanto ainda não se conhece a capacidade produtivados mesmos. Por outro lado, esforça-se o governo, através da Sudhevea,para manter alguns seringais nativos produzindo. Para isso foram criadasas chamadas miniusinas, que congregam em torno de si vários seringuei-ros. A miniusina é uma proposta que visa oferecer melhor preço e técni-ca de trabalho mais modernizada, substituindo os antigos métodos deprodução. O látex deixou de ser defumado até trasnformar-se em pé Ias.

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As miniusinas surgiam com o intuito de manter o seringal na-tivo produzindo e de dar ao seringueiro uma nova perspectivasócio-econômica. Os métodos utilizados para confeccionar oproduto são racionalmente superiores aos usados anterior-mente. Por outro lado, objetivam despertar no seringueirouma consci~ncia cooperativista.

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LEITURA COMPLEMENTAR LEITURA COMPLEMENTAR

O "BRABO" E O "SERINGUEIRO" O DEBITO DO "BRABO"

(Arthur César Ferreira Reis. O Seringale o Seringueiro. Ministério daAgricultura - Serviço de Informação Agr(cola, Rio de Janeiro, 1953.p. 116.)

No pr6prio dia em que parte do Ceará, o seringueiro principia adever: deve a passagem de proa até o Pará (35$000), e o dinheiro querecebeu para preparar-se (150$000). Depois vem a importância dotransporte, num "gaiola" qualquer de Belém ao barracão longfnquo aque se destina, e que é, na média, de 150$000. Aditem-se cerca de800$000 para os seguintesutensfliosinvariáveis:um boiãode furo,uma bacia, mil tigelinhas, uma machadinha de ferro, um machado, umterçado, um rifle (carabina Winchester) e duzentas balas, dois pratos,duas colheres, duas xlcaras, duas panelas, uma cafeteira, dois carretéisde linha e um agulheiro. Nada mais. Aftemos o nosso homem no "bar-racão" senhoril, antes de seguir para a barraca,no centro, que o patrOolhe designará. Ainda é um "brabo", isto é, ainda nOoaprendeu o "corteda madeira" e já deve 1:135$000. Segue para o posto solitário encalça-do de um comboio levando-lhe a bagagem e vfveres, rigorosamente mar-cados, que lhe bastem três meses: 3 paneiros de farinha d'água, 1 sacode feijOo, outro, pequeno, de sal, 20 quilos de arroz, 30 de charque, 21de café, 30 de açúcar, 6 latas de banha, 8 libras de fumo e 20 gramas dequinino. Tudo isso lhe custa cerca de 750$000. Ainda não deu um ta-lho de machadinha, ainda é o "brabo" canhestro, de quem chasqueia o"manso" experimentado, e já tem o compromissosériode 2:090$000.

(Euclides da Cunha. Ã Margemda Hist6ria. Porto, Portugal, EditoraLelloBrasileiraS.A.,1967.pp.24-25.)

Chegamos, por fim, aos dois últimos tipos de significação na paisa-gem social do seringal. Referimo-nos ao "Brabo" e ao ''Seringueiro'~ Oprimeiro é o nordestino novato nas operações de extração do látex.Chegado ao seringal, desconhece as técnicas de trabalho, os segredos damata. E ainda um estranho ao meio f(sico e ao meio s6cio-econômico.Ensina-se-Ihe tudo. Necessariamente comete, nesses primeiros tempos,grandes imprudências, erra constantemente, reclama, ressente-se daque-le mundo de novidades com que se defronta. Em pouco, porém, se vaiaclimando, perdendo as hesitações, afeiçoando-se às contingências lo-cais, aprendendo o que deve aprender para poder permanecer no serin-gal e realizar os seus sonhos de enriquecimento. Vencida essa fase deexperiência, de tomada de contacto, deixa então de ser um "brabo".E atinge a condição ambicionada de "seringueiro". Já não mais se ate-moriza com o ambiente, que desvenda, interpreta e procura dominar.Sente-se, então, um vitorioso. Está, assim, assimilado e incorporado devez ao quadro permanente que movimenta e dá cor definitiva à paisa-gem humana do seringal.

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LEITURA COMPLEMENTAR EXERcrCIO

BARRACAS E BARRACÕES 01 - Ao projetar uma abertura de um seringal, que providências, geral-mente, eram tomadas pelo seringalista?

Barracão, aumentativo para ilustrar a condição social do proprietá-rio, na perspectiva da arquitetura ampliada, na posição de destaque àbeira do rio, diferenciando-se da barraca, uma espécie de senzala ondese abriga o seringueiro propriamente dito, o extrator, casebre, paupér-rimo, sustentando-se no rústico,arcabouço das paxiúbas.

Barracas e BarraclJes, na Amazônia, tiveram o mesmo sentidosocial da casa-grande e senzala no Nordeste. Ambos traduzem a fisiono-mia e o ritmo de duas civilizaçlJes, ou melhor, de dois ciclos econômicosprimos entre si. Dessemelhantes em forma e grau, mas semelhantes naessência comum do patriarcalismo, a civilização da borracha aproveitoumuitas das constantes culturais daquela, naturalmente adaptando-as àsrealidades do meio amazônico, num interessante experimento de assi-milação.

02 - O povoamento dos seringais acreanos não constitui o esponta-nefsmo dos nordestinos como insistem alguns ao tratarem daquestão. A corrida da borracha foi determinada por forças econô-micas e pol rticas externas e internas asquais transcendiam à von-tade popular. Caracterize os fatores históricos determinantes dopovoamento e da conseqüente ocupação dasterras do Acre.

(Leandro Tocantins. Formação Histórica do Acre. Ed. Civilização Brasi-leira, 1979, Vol. I. p. 156.)

03 - "Pois bem! Chegados os primeiros contingentes populacionais e aconseqüente implantação dos seringais,estabeleceu-sea proprie-dade particular da terra, sendo o seringalista(o patrão) o seupro-prietário exclusivoe absoluto, mesmoque fosseapenasde fato, jáque não havia, na região, presença jurídico-administrativa nem daBolívia nem do Brasil." Analise os fatores que determinaram osurgimento da grande propriedade privada no Acre.

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04 - O seringal é uma unidade de produção. Especifique o papel sócio--econômico exercido pelos elementos que o compõem.

05 - Num primeiro momento os seringais eram abastecidos pelas CasasAviadoras. Após sofrerem sériascrises econômicas, os mesmospassarama ser financiadospelo Bancoda Borracha(BASA), cria-do para esse fim. Identifique as causas que proporcionaram asmudanças no sistema de financiamento dos seringais.

06 - Com o passar dos anos nem as Casas Aviadoras nem o BASAevitaram a insolvência total da economia extrativista, e, tantoos seringueirosquanto os seringalistas,chegaramà décadade 70na mais extrema miséria. Explique o porquê dessa situação.

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07 - Leia atentamente o texto "O Débito do Brabo" (leitura comple-mentar) e evidencie o grau de endividamento do trabalhador ex-trativista desde o seu recrutamento em sua terra de origem até omomento de sua fixação no seringal.

V UNI DADE

DEMARCANDO AS FRONTEIRAS:da Bula Intercoetera ao

Tratado de Ayacucho

1. Noções Iniciais

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Formados os primeiros seringais, um problema complexo precisavaser resolvido: o da legitimidade das posses. Nesta Unidade, convidamosvocê a conhecer o mundo das tierras non descubiertas e analisar a ques-tão das linhas fronteiriças, à luz do processo histórico.

Assim, você poderá observar que a demarcação definitiva da linhafronteiriça que separa o Acre atual de seus vizinhos bolivianos e perua-nos tem suas origens remotas a partir do momento em que Espanha ePortugal disputaram a partilha do mundo entre si.

A anexação do Acre ao Território Brasileiro encerra uma históriasecular de conqu ista territorial deste pa ís.

Situado no noroeste do Brasil e sudoeste da Amazônia, o Acretornou-se o Estado brasileiro mais próximo do Oceano Padfico, comuma distância de 800 quilômetros. Sua superfície soma um total de152.589 km2, o que representa 1,79% do território nacional, sendoocupada por uma população de 301.605 habitantes - segundo o censode 1980. Limita-se ao Norte com os Estados do Amazonas e Rondônia;a Sudeste com a Boiívia; e a Sudoeste com o Peru. E banhado pelas ba-cias do Juruá e do Purus - rios que nascem no Peru e correm paralela-mente em direção nordeste, atravessando a região, indo desembocar norio Amazonas, já no Estado amazonense. Os demais rios que formamessas bacias (seus afluentes) também correm em direção nordeste, con-trapondo-se à disposição da linha geopoHtica, que toma o sentidoLeste-Oeste.

Essa imensa planície - em algumas regiões, principalmente na deCruzeiro do Sul, prevalecem as formas onduladas - é coberta por vege-

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tacão de floresta latifoliada perene, o que contribui para a existêndade' um clima tropical, com temperatura quente e úmida.

2. A partilha do mundo: a Bula Intercoetera e o Tratado de Tordesilhas

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Esta área de 152.589 km2, que hoje constitui o Estado do Acre,tornou-se definitivamente brasileira com o ajuste diplomático assinadoentre o Brasil e a Bolrvia, a 17 de novembro de 1903, na cidade de Pe-trópolis.

No entanto, para melhor compreendermos o exposto acima, neces-sário se faz retrocedermos cronologicamente ao ano de 1493, quandouma Bula Papal traçou uma linha de pólo a pólo, 100 léguas a ocidenteda Ilha de Cabo Verde, dividindo a Terra entre Portugal e Espanha. Oque ficasse a oeste dessa linha pertenceria à Espanha e a leste, a Portu-gal.

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Não concordando com a medida pontifrcia, Portugal chegou aameaçar guerra à Espanha. O sucesso que a monarquia lusa vinha obten-do nas costas africanas em sua expansão rumo às rndias demonstravaque "era bom navegar", mas não só para o oriente; o ocidente tambéma atra(a.

Em decorrência dos conflitos gerados, as duas forças resolveramassinar um acordo (Tratado de Tordesi lhas) a 07 de junho de 1494, quetransferia a demarcação da linha anteriormente traçada para 370 léguasa oeste do Arquipélago de Cabo Verde.

Este novo acordo: "... deixou que os portugueses pusessem um péna América. Cabral bem sabia onde desembarcar." (Enrique Peregalli.Como o Brasil ficou assim? Formação das fronteiras e tratados dos li-mites). .

Realmente, como você pode observar no mapa, a linha de 1493dava a Portugal uma grande extensão de mar, mas somente mar. E o quelhe interessava era terra; terra que, de certa forma, lhe proporcionasseriqueza.

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3. Embusca de riquezas e garantindo a posse: os Tratados Coloniais

Desde há muito Portugal percebera que "navegar era preciso", tra-tando de lançar seus marujos ao mar, em busca de especiarias nas i"ndiase de mão-de-obra (escravos) na Costa Africana. E agora, este pedaço de

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terra - e que bom pedaço - na Sul-América iria lhe proporcionar maté-rias-primas que poderiam ser comercializadas, inicialmente, com a Ho-landa, depois com a Inglaterra, principalmente. Pouco a pouco, os por-gueses foram avançando em direção ao coração da Sul-América. Os ban-deirantes no Sul e as incursões fluviais no Norte foram, gradativamente,completando a conquista e esticando o Meridiano de Tordesilhas.

O extrativismo predat6rio empurrava cada vez mais os portuguesesem direção ao poente. E quando do convênio de paz entre as duas co-roas (1668), a ocupação portuguesa já havia ultrapassado de muito a li-nha tordesilhana. A Amazônia se convertia em significante fonte de ri-queza para Portugal, a4ferida pela comercialização das "Drogas doSertão".

Preocupada com esse avanço em direção ao Pacrfico, a Espanhaprotestou, exigindo que fosse respeitada a linha de 1494. Das longas edifrceis negociações diplomâticas resultou o Tratado de Madri, assinadoa 13 de janeiro de 1750.

Esse Tratado, inspirado na pretensiosa frase lusitana: "A TERRANAO PERTENCE A QUEM A DESCOBRE, MAS A QUEM A OCU-PA", proporcionou a Portugal a ampliação do territ6rio já ocupado noContinente Americano.

Em 12 de fevereiro de 1761, um novo acordo, o Tratado de Prado,anulava todas as decisões tomadas em Madri, de forma que tudo voltoua ser como era em 1494.

Segmentos importantes da classe dominante portuguesa - particu-larmente aqueles radicados no Brasil - ficaram revoltados com a postu-ra de seu Monarca ao aceitar esse acordo. Mas logo um novo Rei assu-miu a Coroa Portuguesa e a Espanha viu-se obrigada a aceitar quase quetotalmente o que estabelecia o acordo de 1750, alterando-se apenas al-guns limites no Sul. Tratava-se do Tratado de Santo IIdefonso, assinadoem 10 de outubro de 1777.

Tanto o Tratado de Madri, como o de Santo Ildefonso, no que serefere aos limites que interessavam à questão do Acre, prescreviam:

"Baixará a linha pelas àguas desses dois rios: Guaporé e Mamoré, jáunidos com o nome de Madeira, até a paragem situada em igualdistância do Rio Maranon ou Amazonas e da boca do dito Mamo-ré; e deste àquela paragem continuará por uma linha leste-oeste atéencontrar a margem oriental do Rio Javari, que entra no Maranonpela sua margem austral; e baixando pelo alveo do mesmo Javariaté onde desemboca no Maranon ou Amazonas, prosseguirá águasabaixo deste rio a que os Espanhóis costumam chamar Orellana, e

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os (ndios Guiena, até a boca mais ocidental do Japu rá que deságuanele pela margem setentrional."(Serzedello Corrêa. "Ligeiro estudo sobre a ocupação Paravicini noAcre: limites, navegação e comércio com a Boi(via" in O Rio Acre.)As linhas foram estabelecidas no papel. Entretanto, embora já ti-

vessem apreciável conhecimento dos rios Javari e Madeira - o que erade fundamental importância para o estabelecimento das demarcações -Portugal e Espanha não se acanharam em afirmar:

"... quanto ao espaço intermédio e deserto, confessamos de ambasas partes que estamos todos às cegas."(Craveiro Costa. A Conquista do Deserto Ocidental. p. 10.)Insistia-se, contudo, no caráter transit6rio dos acordos, aguardan-

do-se indefinidamente o pronunciamento final das comissões demarca-tórias. Assim, amarelavam-se os papéis, jamais definitivamente legitima-dos. Até mesmo o Acordo de Badaj6s (firmado a 6 de junho de 1801),que estabelecia princ(pios de boa vizinhança entre as duas Coroas, nadaresolveu sobre a questão. No dizer de Araújo Lima, o Tratado de Bada-j6s "acabou (,.,) de mergulhar no abismo do esquecimento, a cuja beira,aliás, fora concebido."

4. "Tierras non descu biertas", mas ricas em borracha:o Tratado de Ayacucho

A questão demarcat6ria seria reaberta a partir de 1837, agora nãomais entre duas monarquias européias, mas sim entre dois pa(ses latino-americanos em formação. Por um lado o Brasil-Império e por outro aRepública da BoHvia.

Três foram os fatores que contribu(ram decisivamente para que asconversações diplomáticas em torno das linhas divis6rias fossem reativa-das: a legislação brasileira sobre Sesmarias, a franquia do rio Amazonasà navegação internacional e a determinação boliviana relativa à explora-ção do potencial econômico das tierras non descubiertas.

Examinemos melhor os três fatores citados.A legislação brasileira sobre Sesmarias, elaborada em 1837, pre-

tendia tornar clara e disciplinar a questão das terras devolutas, procu-rando, desta forma, resolver antigos litrgios. Tal legislação atingia emcheio importante parcela da ârea litigiosa entre a Boi(via e o Brasil. ARepública vizinha protestou, mas a diplomacia brasileira conseguiu si-lenciá-Ia.

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Em 1844, a BoHviatentou franquear o rio Amazonasà navegaçãointernacional, contando com o apoio dos Estados Unidos, levando o Im-perador D. Pedro II a protestar veementemente. A BoHvia recuou, masem troca exigiu que fossem recomeçadas as conversações demarcatóriaspropostas pelo Tratado de Santo IIdefonso. Essa insistência iria perdu-rar até 1867, quando a assinatura de um acordo solucionaria, tempora-riamente, a questão.

Deste modo, cedendo às pressões da BoHviae dos Estados Unidos,o Brasil assinava a 7 de dezembro de 1866 um tratado, segundo o qual anavegação do rio Amazonas estaria:

"... aberta, desde o dia 7 de setembro de 1867, aos navios mercan-tes de todas as nações, (,..) até à fronteira do BrasiL"(Craveiro Costa. A Conquista do Deserto Ocidental. p. 16.)Deve-se ressaltar, no entanto, que a decisão do governo imperial

brasileiro em abrir o rio Amazonas à navegação internacional não foiconseqüência única ou especial das pressões bolivianas. Deve-se levar em~onsideração que, estando em guerra com o Paraguai, não interessava aogoverno brasileiro desconsiderar totalmente as pretensões bolivianas,pois um IIcochilo diplomático" poderia levar a Boi(via a aliar-se ao ini-migo do Prata.

Mas, por que a Bol(via estava tão interessada em estabelecer osseus limites nesta região, considerada em seus mapas como terras não--descobertas?

Desde a primeira metade do século XIX, a borracha era matéria--prima ambicionada pelas indústrias da Europa e, posteriormente, dosEstados Unidos. As pesquisas vinham demonstrando sua viabilidade eimportância no mercado consumidor mundial. E aqui - na região entreo Madeira e o Javari - encontrava-seo habitat natural das árvoresquejorravam leite. Por isso, mesmo não dispondo de quantidade de braçossuficientes e adequados para a ocupação econômica da região, intentoua Boi(via, pelo menos, obter o reconhecimento da área como definitiva-mente sua.

Por que a Boi(via não ocupou logo esta região, a exemplo do quefez o Brasil?

Desde o in(cio de sua colonização pelos espanhóis, a Bolrviavol-tou-se primordialmente para a extração de minérios que, pela sua abun-dância e concentração numa pequena extensão territorial, desestimulouo adentramento de seus exploradores em direção ao coração da Sul--América. Ouando o governo boliviano se deparou com a necessidadede ocupar o Acre, não contou com uma população suficientemente96

numerosa para concretizar tal projeto. Primeiro, porque grande parte dapopulação boliviana fora dizimada na Guerra do Pac(fico. Segundo, por-que não se podia deslocar os trabalhadores das minas, sem provocar pre-ju(zos a tal atividade - base de sua economia. Ademais, os (ndios boli-vianos, acostumados com o clima dos altiplanos, não se adaptariam fa-mente a esta região de clima tropical. Acrescente-se a esses obstáculos aprecariedade de recursos financeiros e técnicos próprios, além da especi-ficidade de interesses dos investidores e dirigentes pol (ticos.

Certo é que, apesar de o Governo ter eliminado todo e qualquerimposto pessoal de quem fosse trabalhar no Acre, o contingente migra-tório boliviano para esta região foi insignificante.

Quanto ao processo de ocupação do lado brasileiro, desde há mui-to, as bacias do Juruá e Purus não se constitu(am mais em mistério pararijos e destemidos trabalhadores nordestinos. Aos poucos, um contin-gente apreciável de trabalhadores empobrecidos, estimulados pela pro-paganda enganadora do enriquecimento fácil, foi ocupando esta região,não lhe importando lIonde terminava o Brasil". Concomitantemente, oEstado do Amazonas passou a jurisdicionar toda a região ocupada, semse preocupar com uma questão tão importante como a cessão de títulosdefinitivos em território boliviano, tudo isso, entretanto, sem nenhumplanejamento, pois o que interessava prioritariamente ao Estado doAmazonas era o aspecto tribu1ário. Veja o que diz Peregalli:

"Os trabalhadores brasilei ros ocuparam e colonizaram territóriosalém das fronteiras estabelecidas nos acordos internacionais. Mas esteprocesso não foi planejado pelo Estado, pelo contrário, o Estado seaproveitou deste deslocamento de sobrevivência para incorporar novasregiões."

Como resultado dos esforços no sentido de harmonizar todos estesinteresses, foi assinado, a 27 de março de 1867, o Tratado de Aya-cucho.

Tal tratado estabelecia que: "Deste rio (Beni, na sua confluênciacom o Madeira), para o oeste seguirá a fronteira por uma paralela tiradada sua margem esquerda, na latitude 10020', até encontrar as nascentesdo Javari." Entretanto, o artigo 11.0 do tratado ressalvavaque "se o Ja-vari tiver as suas nascentes ao norte daquela linha leste-oeste, seguirá afronteira, desde a mesma latitude, por uma reta a buscar a origem prin-cipal do Javari."

Por este acordo diplomâtico o Brasil anexava nada mais nada me-nos do que 160.000 km2. Além do mais, neste, como em outros trata-dos assinados entre os pa(ses vizinhos, prevalecia o prindpio do uti pos-

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sidetis. Como nos tratados de 1750 e 1777, a acordância definitiva fica-ria aguardando o resultado das pesquisas das comissões demarcatórias aserem constituídas pelas duas nações.

TRATADO DE AYACUCHO

5. A assinatura do tratado de Ayacucho e suas repercussões no Brasil

Diante da morosidade brasileira em nomear as Comissões demarca-tórias, a Bolívia insistia para que fossem agilizadas as atividades. O go-verno boliviano tinha consciência do perigo que representava a imigra-ção nordestina para a região em litígio. O mesmo não acontecia com oBrasil, pois a demora lhe favorecia na medida em que o processo migra-tório criava condições para que, no futuro, pudesse reivindicar a posseda região.

O governo brasileiro não "encontrava tempo" para refletir sobreesses problemas. Estava mais preocupado em reprimir os movimentosrepublícanos e abolicionistas que agitavam todo o país do que em traçaruma linha que, simplesmente, reconheceria a propriedade de uma vastaextensão territorial ao seu vizinho boliviano.

Em 1870 houve a primeira tentativa para a demarcação da linhaleste-oeste. Chefiava a comissão brasileira o Visconde de Maracaju, queparalisou os trabalhos onde começa o rio Javari. Substituiu-o o Barão deParima, que em 1878 encerrou sua missão sem chegar a nenhum resul-tado.

Em 19 de fevereiro de 1895, decorridos dezessete anos após a rea-lização dos últimos trabalhos - o Brasil em pleno regime republicano -foi criada uma comissão mista, presidida pelos coronéis Thaumaturgode Azevedo e José Manuel Pando, ambos representantes dos governosbrasileiro e boliviano respectivamente.

Ao serem retomadas as pesquisas, logo surgiu um impasse: Thau-maturgo de Azevedo recusou-se a aceitar o acordo de 1867, principal-mente no que se referia às nascentes do rio Javari. Argumentava o cor~nel que, se o Brasil aceitasse o disposto naquele instrumento diplomáti-co, perderia toda uma imensa área de terras, já conquistadas e explora-das por brasileiros.

Este brado de alerta foi muito bem recebido, particularmente, pe-los setores ligados ao comércio da borracha - as Casas Aviadoras - e,naturalmente, pelos governos do Amazonas e Pará que, com veemência,insistiam para que se respeitasse o princípio do uti possidetis.

Entretanto, não houve a mesma receptividade na Chancelaria99

'-"'-'-'-'-'-"

LINHA DO TRATADO

Font.. ATLAS HISTÓRICO O.OeRA.,CO - M.c

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brasileira. O coronel foi advertido e lembrado de que sua missão deveriarestringir-se ao reconhecimento e estabelecimento de um ponto de limi-tes entre o Brasil e a Bolfvia. Não restou a Thaumaturgo sentio demitir-se do cargo, sendo substitu(do por Cunha Gomes. Com ordens expressasdo governo federal para que "efetuasse imediatamente a reexploraçãodo rio Javari", o novo Comissário aceitou as latitudes 10020'.

Em 23 de setembro de 1898 assinava-se um protocolo pelo qual oBrasil reconhecia que o território, antes litigioso e agora demarcado pelaLinha Cunha Gomes, era "incontestavelmente boliviano".

Um mês após a assinatura deste protocolo, o governo do Amazo-nas recebia um telegrama da Chancelaria brasileira, que enfaticamentedizia:

"... Podeis concordar no estabelecimento do posto aduaneiro doAcre ou Aquiri, em território incontestavelmente boliviano, isto é,acima da linha tirada do Madeira ao Javari, na verdadeira latitudedeterminada pelo CapoTen. Cunha Gomes."Apesar da indecisão do Congresso Nacional quanto à aprovação do

referido protocolo, não havia mais esperanças para seringalistas, aviado-res e governos regionais no sentido de obterem o atendimento de suasreivindicações. A solução viria pelas armas. Um "exército" de seringuei-ros comandados pelos "coronéis de barranco" em luta contra as tropasregulares do exército boliviano forçaria a criação de condições para ademarcação definitiva.

te, conseqüênciado alarmedado pelo então coronelJosé ManuelPandoque, em 1894, cumpria pena de ex(lio na regiãodo rio Benipor ter ten-tado um golpe contra o govemo de seu pa(s. Esse militar, ao percorrerseringaiscom o objetivo de elaborar coordenadasgeográficas,observaraa presençamaciçade brasileirosàs margensdo rio Acre.Sabedor do queeste fato representavaem relaçãoao cumprimento do estabelecido emAyacuchOe ciente das repercussõesnegativasocorridasem vários pon-tos do Brasil,Pando escreveuminuciosorelatório,enviando-oàs autori-dades bolivianas.Tal ação, além de lhe valer a anistia por "serviço depatriotismo", contribuiu para que a diplomaciaandina acelerasseos en-tendimentos com o Brasil.Surge dar o Tratado de 1895, a que já se fezreferência,também denominado Medina-Carvalho.

Os temores bolivianoseram compreensíveis,pois no decorrer de1898 a área banhada pelos rios Acre, laco e Purus encontrava-setrans-formada em munic(pio amazonense- o munic(piode Floriano Peixoto.Com o desmembramento dos Estados do Pará e Amazonas,que forma-vam o Grão-Parã,governo, imprensa e comércio centraram suas aten-ções sobre a região do Acre, contribuindo para reforçar,não somente aocupação institucional, mas também favorecer,cada vez mais,a ação dainiciativa privada. Com o pequeno lugarejo - anteriormente chamadoAntimari - transformado em munic(pio de sua jurisdição, o governoamazonensedispunha de espaçorazoávelpara influirnasquestões perti-nentes ao Acre.

6. O ponto de vista boliviano:efetivara ocupação

Desde há muito a Boi(via temia pela concretização da ocupaçãobrasileira na região dos altos rios da Amazônia. Já em 1886, proferindoconferência na Sociedade de Geografia, assistida, inclusive, pelo impera-dor D. Pedro 11,D. Juan Velarde, então ministro assistente do governoboliviano no Rio de Janeiro, deixava clara sua preocupação, pois dizia:

"... O Aquiri ainda não foi encontrado, porém, em breve a( chega-rão os infatigáveis pioneers que com nome de seringueiros vão emprocura do rico produto...".Na verdade a suspeição do ministro tem demasiado sentido, mas é

historicamente atrasada, na medida em que nessa data os pioneers jáestavam no Aquiri. .

A assinatura do Acordo Diplomáticode 1895 fora, em grande par-100 101

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LE.ITURA COMPLEMENTAR LEITURA COMPLEMENTAR

TRATADO DE AVACUCHO O MARCO DA POSSE

." O aft. 11.0do tratado- o mesmoque contéma descripçliodafronteira, (...) - abre com o seguinte preâmbulo:

"Sua Magestade o Imperador do Brasil e a República da BaIl'o.via concordam em reconhecer como base para a determinaçãoda fronteira entre os seus respectivos territórios o uti posside-tis e, de conformidade com este princ(pio, declaram e defi-nem a mesma fronteira do modo seguinte:"

O princ(pio a que o tratado obedeceu foi, pois, o do respeito àposse. Ora, a posse dessa região era e sempre foi portugueza; passou aser e sempre foi brasileira;posse mansa e paclfica; posse real e effectiva,traduzida no estabelecimento de frades jesuftas; na exploração de ban-deiras paulistas no século passado; nas viagens e explorações de brasilei-ros neste século; na sua fix ação alli; na creação da indústria da borracha,da navegação e do comércio...

(SerzedelloCorrêa. "Ligeiro estudo sobre a ocupaçãoParavicinino RioAcre: limites, navegaçãoe comérciocom a Boi(via", in O Rio Acre. Riode Janeiro,CasaMont'Alverne, 1899.)

Em 1867, a Bol(via insiste, com decidida energia.Acha-se o Brasil em guerra com a República do Paraguai.E o mo-

mento é, pois, excepcionalmente oportuno para o governo do tiranoMelgarejo "sugerir" a conveniencia de ajustar, com a "poss(vel brevi-dade", a questlio dos seus limites, ainda sujeita a controvérsias.

Em semelhante conjuntura, o Império compreende a gravidade dacontingência, que pode até custar a agregaçliodo exército boliviano àshostes guerreiras de Solano Lopez.

Haja, pois, o encontro de diplomatas, tão desejado pela Boi(via.A discusslio é rápida, como impõem as circunstâncias. E o resulta-

do concretiza-se no Tratado de Ayacucho, firmado em La Paz, aos 27de marçode 1867.

Bom ou mau?Computando as vantagens imediatas, o Brasil sa(a realmente lesa-

do. Porque, a nlio ser que demarcações rigorosas viessem a contraditar oque já fora estabelecidosobre as nascentes do rio Javari,ficariamper-tencendo à Bolfvia todos os muitos milharesde léguasquadradasquehoje integram o Territóriodo Acre. Sem falardacircunstância,intima-mente ligada aos entendimentos preliminares desse Tratado, de quepoucos meses antes - cedendo à dominadora influencia liberal de Tava-

res Bastos, à pressão demonfaca da campanha movida na América pelogeógrafo /V/aurye à polftica das grandes iniciativas mercantis de Mauá.

(Cláudio de Araújo Lima. Plácido de Castro: Um Caudilho Contra oImperialismo. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,1973. pp. 15-16.)

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LEITURA COMPLEMENTAR

THAUMATURGO RECUSA O TRATADO DE AYACUCHO

Logo, nUo sendo conhecida até hoje a verdadeira origem principaldo Javari, sabendo-se, entretanto, positivamente, que ela se estende aci-ma do último marco à margem esquerda desserio, aos 6059' 29", 51at.S e 740 6' 26", 6710ng. O. G., tomando-se como nascente verdadeira alat. S. JO l' 17" 5 e long. O. G. 740 8' 27" 7, determinadas pela segun-da comissão demarcadora com o Peru, a mim parece que o governo nUotem o dever de aceitar como nascente principal do Javari o referidoponto. Antes, para cumprir a letra do tratado, e não sancionar oficial-mente um erro geográfico no seupróprio território, deve mandar desco-brir a nascente principal desse rio para af ser colocado o último marcoda fronteira com a Bolfvia.". . . .. ... ... .. . ... .. . . .. " .. . . ... ... .. . . .. .. ....

"Aceitar o marco do Peru como o último da Bolfvia, devo infor-mar-vos que o Amazonas irá perder a melhor zona de seu território, amais rica e a mais produtiva; porque, dirigindo-se a linha geodésica de1(JJ20' a 7' e 17",5 ela será muito inclinada para o norte, fazendo-nos

perder o alto rio Acre, quase todo o laco e o alto Purus, os principaisafluentes do JurutJ e talvez os do Juta( e do próprio Javan~'os rios quenos dão a maior porção de borracha exportada e extraÚ:Japor brasilei-ros. A área dessazona é maior de 5.870 léguas quadradas. Toda essazo-na perderemos, alitJs,explorada e povoada por nacionais e onde já exis-tem centenas de barracas, propriedades leg(timas e demarcadas e serin-gais cujos donos se acham de posse há alguns anos, sem reclamaçUo daBolt'via, muitos com tl'tulo provisório, só esperando a demarcaçUoparareceberem os definitivos. Portanto, a serem executadas as instruçOesque me destes, terá o A mazonas que perder 46% da produçUo da borra-cha ou, anualmente, 2.610:960$600, no caso da linha de limites nUoabranger os afluentes do rio Juruá; ou, se abranger, a perda será de 68%e a renda desfalcada de 3.859:680$000 e maior ainda será o preju(zo edesfalque na renda, se a mesma linha nUo salvar os afluentes do rio Juta(

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e os do próprio Javari, como Itecuaí, já navegado por vapores em mui-tOSdias de viagem.

Nestas condições, penso que podeis apresentar ao ministro bolivia-no o alvitre de ser descoberta a verdadeira origem do Javari, e, uma vezreconhecida, ali se colocar o último marco da fronteira com a Bolfvia., .., ., . .. .. .. . ... ., .. . . . . ... .. . .. . ... .. . ... .. . . . . .. ..

(CraveiroCosta. A Conquista do Deserto Ocidental: subst'dios para ahistória do Território do Acre. São Paulo, Ed. Nacional, 1973.pp. 15-16.)

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