calígula - michel sauquet

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Calígula: Imperador, Príncipe de Roma, Supremo Pontífice e Pai da Pátria Michel Sauquet Edições Asa, Porto, 18ª Edição, 1990. Biografia Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destina-se unicamente à leitura de pessoas portadoras de deficiência visual. Por força da lei de direitos de autor, este ficheiro não pode ser distribuído para outros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente. Calígula Imperador, Príncipe De Roma, Supremo Pontífice E Pai Da Pátria Colecção criada por Michel Pierre Direcção literária: Michel Pierre e Martine Prosper Direcção artística: Giampiero Caiti Fotografias Pág. 1 OI Galeria dos Ofícios, Florença O Alinari-Giraudon Pág. 103 O M. Pierre Págs. 1 Ob e I 08 O Alinari-Viollet Pág. I 09 O Giraudon Pág. 111 O Roger-hollet Pág. 116 O M. Pierre Edições Asa Sede R. Mártíres da Liberdade, 77/Apartado 4263/4004 PORTO CODEX Telefs. 2002279-70/2014183/2014672/Telex 24389 Telefax 2013808 Delegação Av. Dr. Augusto de Castro, Lote 110 (ChelaslOlivais)/1900 LISBOA Telefs. 8596176 / 8596251 / 8596276 / Telex 64894 Telefax 8597247 Livraria ASA Papelaria R. de Avis, 9-R. da Fábrica, 74/Apartado 4263I4004 PORTO CODEXITelef. 2007725 Livraria ASA Infantil e Juvenil R. Galeria de Paris, 118/Apartado 4263/4004 PORTO CODEX Telef. 2080513 Livraria ASA Material Didáctico

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calígula - Michel Sauquet

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  • Calgula: Imperador, Prncipe de Roma, Supremo Pontfice e Pai da Ptria Michel Sauquet Edies Asa, Porto, 18 Edio, 1990. Biografia

    Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destina-se unicamente leitura de pessoas portadoras de deficincia visual. Por fora da lei de direitos de autor, este ficheiro no pode ser distribudo para outros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente. Calgula Imperador, Prncipe De Roma, Supremo Pontfice E Pai Da Ptria Coleco criada por Michel Pierre Direco literria: Michel Pierre e Martine Prosper Direco artstica: Giampiero Caiti Fotografias Pg. 1 OI Galeria dos Ofcios, Florena O Alinari-Giraudon Pg. 103 O M. Pierre Pgs. 1 Ob e I 08 O Alinari-Viollet Pg. I 09 O Giraudon Pg. 111 O Roger-hollet Pg. 116 O M. Pierre Edies Asa Sede R. Mrtres da Liberdade, 77/Apartado 4263/4004 PORTO CODEX Telefs. 2002279-70/2014183/2014672/Telex 24389 Telefax 2013808 Delegao Av. Dr. Augusto de Castro, Lote 110 (ChelaslOlivais)/1900 LISBOA Telefs. 8596176 / 8596251 / 8596276 / Telex 64894 Telefax 8597247 Livraria ASA Papelaria R. de Avis, 9-R. da Fbrica, 74/Apartado 4263I4004 PORTO CODEXITelef. 2007725 Livraria ASA Infantil e Juvenil R. Galeria de Paris, 118/Apartado 4263/4004 PORTO CODEX Telef. 2080513 Livraria ASA Material Didctico

  • R. Cndido dos Reis, 137/Apartado 4263I4004 PORTO CODEXITelef. 2014884 Imperador, Prncipe De Roma, Supremo Pontfice E Pai Da Ptria Texto: Michel Sauquet Ilustraes: Michahl Welply Traduo: Paulo Vieira EDIES ASA Imperador CAiO CSAR AUGUSTO, bisneto do divino Augusto, neto de Tibrio Csar, Supremo Pontfice, Pai da Ptria, sada aqueles que lerem estas pginas. A alguns dias da abertura dos Jogos Palatinos, a que presidirei como de tradio. Decidime a editar estas pginas. Eisme no meu quarto ano de reinado. o que na verdade pouco, mas j me parece muito. H j algum tempo que os sinais celestes so desfavorveis e os orculos no anunciam nada de bom. Em Maro do ano passado, em Cpua, uma fasca atingiu o Ca pitlio no prprio dia do aniversrio do assassinato do grande Jlio Csar. Nesse mesmo dia, aqui em Roma, tambm o templo de Apolo Palatino sofreu a clera de Jpiter. Tambm se evoca essa espantosa histria da esttua de Zeus de Olmpia, que soltou uma tremenda gargalhada quando quiseram retir la do local onde estava chumbada, risada que fez desabar os andaimes e fugir os trabalhadores demasiado crdulos. Alguns vem nestas fbulas ou acidentes sinistros avisos do Cu. H, quanto a mim, sinais bem mais graves: o meu astrlogo pessoal. Sila, que tem toda a minha confiana, no pressagiou que a minha morte estava prxima? E Sila nunca se engana. Se os astros anunciam o meu fim, porque ele no deve tardar. No temo a morte porque estou demasiado habituado a ela. mi nha companheira desde a infncia; ela agarra-se-me ao corao, pele. No se destri uma tal amizade. As duas profetisas de ncio avisaram-me para ter cuidado com um certo Cssio. Porque no foram elas mais explcitas? Conhecero o nome do meu futuro assassino?... Reflecti, e apenas vejo Cssio Longino, o governador da sia. Decidi a sua morte, sem no entanto o julgar culpado de ms intenes para comigo. Esse porco imundo no teria a coragem necessria para isso! 5 Mas preciso no negligenciar nada. Que ele se suicide, pois, j que essa a vontade do Imperador o Imperador no

  • o chorar! Como manter a confiana? A quem a testemunhar hoje em dia? Sei que os que me so mais chegados esto sempre pron tos a conspirar contra mim, para se apoderarem do poder, como se tivessem qualquer direito a disputar o meu lugar! Cludio, o meu tio, , na verdade, o nico que pode pretendlo, mas um perfeito imbecil! Devo ver um sombrio pressgio no incidente que manchou o terceiro dia deste ms? Durante um sacrifcio, fui salpicado pelo sangue do touro imolado. A prpura imperial manchada de sangue impuro! Este facto originou um grande silncio na multido e encolerizou-me. Para que serviu esse mau humor? Hoje, lamento-o. verdade, acontece-me ser exaltado, susceptvel, mas quem poder dominar todos os seus sentimentos quando os prprios deuses do mostras de fraqueza a esse respeito? Nunca tive a pretenso da sabedoria; deixo-a aos filsofos. Sem dvida que preciso no atribuir grande importncia a estas coisas, mas no quero menosprezar o poder e a determinao dos meus inimigos. O Senado, essa Alta Assembleia, pa rece firmemente resolvido a desembaraarse da minha pessoa, 6 correndo o risco de se entrar numa era de caos! A minha querida esposa, Milnia Cesnia, a quem devo a grande alegria de ser pai, previne-me constantemente, lastimando a pouca segurana de que me rodeio. Terna Milnia... Escuto-te paciente mente, a ti que quiseram comprometer junto do meu corao, acusando-te indignamente de quereres atentar contra a minha vida... Tu, Milnia, cujo amor e fidelidade conheo, como po ders compreender que a segurana uma palavra v? Os senadores, que so os mais encarniados contra mim, esses polidores de armas assassinas, no decretaram j que doravante eu ficaria sobre um estrado, desejando render-me homenagem e proteger-me de eventuais punhaladas? Irnico, no ? Ser a sua patifaria dotada de humor? Ambos podemos rir, Milnia, da sua hipocrisia! O Destino far soar a sua hora e ns nada poderemos fazer. Tal como no conseguimos desviar o curso do Tibre com uma mo! Se no tenho qualquer medo da morte porque ela indigna de um Imperador, Pai da Ptria, senhor do mundo! O medo daqueles que conspiram e tem pensamentos criminosos. A esses, at ao meu ltimo suspiro, no concederei trguas, nem piedade, nem clemncia! Divirto-me muito a ouvir os relatrios de Protgenes, quando vem do Senado. Todos crem que ele traz sob a sua toga a lista negra dos meus inimigos, o nome daqueles de quem suspeito; e todos o rodeiam de

  • amabilidades, o cumulam de sorrisos, receando que ele v no dia seguinte decretar-lhes a morte! Que farsantes! Protgenes no precisa de lista. Sabe, tal como eu, os nomes dos fiis que, por serem raros, mais fceis so de guardar na memria. Vou aproveitar o tempo livre que me permitem estes poucos dias de Janeiro para me expor, sem mscara, aos olhos do futuro. Se algum encontrar um dia estas pginas que vou confiar ao leal e discreto Sila (ele saber guardlas em lugar seguro), poder assim restabelecer-se a minha verdade acerca destes quatro anos de reinado. E isto porque no posso iludir-me: esta verdade, os meus inimigos, logo que consigam derrubar-me, con seguiro deformla, trala desavergonhadamente. No tendo podido sujar-me em vida sem correrem grandes riscos, eles tornloo num prazer e num dever aps a minha morte. Tubares da maledicncia, alimentados pelo leite da inveja, destruiro a minha imagem para que, de sculo em sculo, se amaldi oe para sempre CAIO CSAR AUGUSTO, a quem os soldados apelidaram de CALGULA, quando era ainda criana. Cronistas de toda a espcie e pensadores sem escrpulos daro as mos para ajudar carnificina, pintando com o dio contido por muito tempo o retrato de um prncipe louco e degenerado, que aterrorizou o mundo, um monstro sedento de sangue cujo assassinato foi uma bno. Deste modo justificaro a sua paixo pelas conjuras e homicdios, assim como a sua indiferena perante o interesse pblico. Eu no tenho que me justificar: um Imperador no se rebaixa desta forma! Se dito estas pginas, para no deixar eterna mente o meu reinado nas trevas para onde, infalivelmente, o atiraro. J sei que a minha poltica no compreendida. Sinto at o povo afastar-se de mim, no obstante o amor sincero que lhe dedico. Conta-se uma anedota das mais verdicas a meu respeito. No ano passado, decidi, contra todos os costumes, vestir-me de Jpiter para proferir os orculos. A ideia divertia-me. A corte, entre gue bajulao quotidiana, no podia seno aplaudir o meu ca pricho. Todos, militares, cavaleiros e senadores, acompanharam 8 o desenrolar desta cerimnia com o ar mais srio do mundo, temendo o meu desagrado ao menor sinal de contestao. Ora, quebrando subitamente este silncio constrangido, elevou-se da multido uma magnfica gargalhada. A guarda apoderou-se sem demora do culpado e arrastouo at aos meus ps. Era um gauls, um sapateiro humilde a quem a brutalidade dos soldados no parecia de modo algum amedrontar. Maltratado, no parava contudo de rir. Ento, puslhe a seguinte questo:

  • "Que pensas tu de mim?", a que ele imediatamente retorquiu: "Tu s um grande excntrico!" Gerou-se minha volta um grande murmrio de reprovao e os soldados apenas esperavam a ordem para punir o insolente. Ento, desatei a rir por minha vez. "Vai em paz", disse a este homem, "tu que no sabes mentir e gostas, como o teu Imperador, de um gracejo!" Compreenda quem quiser! 10 No sou poeta e no saberia cantar conveniente mente os arredores de Npoles, sobretudo Baias, cujo nome nos vem de Baios, o timoneiro de Ulisses. Conheceis vs essa pai sagem coberta de oliveiras, de colinas e de mar azul? A suavidade do clima e a luminosidade so tais que se desejaria nunca abandonar essa "pequena Roma", como lhe chamava Ccero... Se me orgulho, e justamente, dos meus dons de orador, con fesso no encontrar as palavras adequadas para descrever es tes lugares fascinantes, dignos da morada dos Imortais! A bon dade das suas guas que nascem no sop da colina bastar como prova. Todavia, muito perto desse stio, parece que o solo entrou em convulso. Dir-se-ia que o mundo subterrneo dos Campos Flegreus no cessa de ameaar os homens, precisamente a onde a crena popular situa ainda uma das entradas dos Infernos! O Vesvio, na verdade, no fica longe. Essa terra de vio lncia, cheia de vapores ftidos, tem com que impressionar o viajante que logo preferir a calma e a beleza de Baias. Nesta regio, tal como no homem, a escurido e a luz andam sempre lado a lado! H j bastantes anos que Baias est na moda. Os ricos, que s procuram ser mais ricos, estabeleceram a a sua resi dncia preferida de frias, imitando o divino Augusto. Aqui vinha dantes com Tibrio, em breves visitas. Adorava Baias, mas o meu av preferia a solido de Capri ou o rigor da militar Miseno. Ele, que reprovava o luxo e ocultava os seus prazeres, no aceitava de maneira nenhuma a ostentao nos outros. A minha chegada ao poder restituiu a toda esta regio o seu esplendor. As vivendas podem exibir novamente a fortuna dos seus proprietrios. Como poderia isso ofuscar-me, quando possuo as maiores riquezas do Imprio e uma residncia 11 que no tem igual? Baias permite-me repousar da agitao romana. Sim. Roma e o rumor incessante da multido, o chiar das carroas de manhzinha, os clamores do circo, as insnias, os permanentes riscos de incndio, apesar da vigilncia do prefeito da cidade (h dois anos, tive eu prprio de combater as cha mas!), e a sujidade, a abominvel sujidade que emporcalha cada passo! No suporto estas ruas juncadas de

  • imundcie e dejec tos de toda a ordem, que num nada se transformam em lodaais. Um dia at tive um acesso de fria, porque, ao caminhar, sujei a borda da minha toga. Como se pode aceitar semelhante horror? 11 Na minha clera, ordenei aos meus soldados que fossem de imediato buscar o edil Vespasiano, responsvel pelo servio de limpeza, e sujassem a sua toga com esse lodo imundo! Se nessa ltura te ultrajei publicamente, caro Vespasiano, sabes, porm, que no te retirei a minha proteco, como o comprova a tua brilhante carreira. Mas essa maliciosa brincadeira funcionou como um smbolo: o povo depressa ficou a saber at que ponto me preocupava com o seu bem-estar. Venho sempre a Baias com uma comitiva reduzida a cem pessas. Fao o possvel por receber poucas delegaes estrangei ras e aproveito as guas curativas para atenuar os efeitos dos inmeros banquetes que a minha qualidade de primeiro cida do me obriga a honrar. Mas esta pequena jia natural permanecer sobretudo como o cenrio do mais belo espectculo que jamais ofereci desde a minha investidura. H muito tempo que trazia esta ideia na cabea. De facto, desde o dia em que o astrlogo de Tibrio, o venenoso Trasilo, que se tornou charlato dos astros depois de uma miservel carreira de filsofo, esse Trasilo de linguagem hipcrita, ousou dizer ao seu mestre, preocupado com os seus herdeiros, que eu, Caio, tinha tantas hipteses de me tornar imperador como de atravessar a baa de Baias a cavalo. Desde que soube disso, tive muita dificuldade em esconder o meu ressentimento. evidente que a minha chegada ao poder foi um deslumbrante desmentido. Mas no podia esquecer as palavras envenenadas desse Trasilo! Queria cobri-lo de vergonha e, ao mesmo tempo, espantar todo o mundo. O povo gosta de surpresas, prefere-as at ao dinheiro: tudo o que novo e imprevisto encanta-o. Tambm sou como ele. este morto, calmamente, e**sabor, o que foi e ser a mais grandiosa encenao sonhada por um 14 imperador. Imagine-se que me propunha atravessar a cavalo os 3600 ps* de mar que medeiam entre o nosso porto de Puto- los e Baias. O suficiente para assustar qualquer um, excepto Caio, 13 que sabe jogar com as palavras! Convoquei, pois, o meu conselho privado, aumentado com alguns senadores, prefeitos do pretrio e os meus artistas preferidos, para lhes anunciar a minha deciso: "Neste terceiro ano de reinado, o Imperador Caio Csar Augusto decide efectuar uma viagem de alguns dias a Baias, neste Vero. Aproveitar a ocasio para atravessar a enseada

  • a cavalo!" Que grande foi a estupefaco dos meus ouvintes! Desta vez, no tinha, como habitualmente, adornado a ideia com um * N. T. : Antiga unidade romana de comprimento, equivalente a 5 ps. ou seja, 1,48 metros. 14 discurso de homenagem aos deuses e aos bons e leais servidores da Repblica que so os senadores, nem eles estavam preparados para ouvir semelhante enormidade. A minha deciso era inapelvel. Disfarando o melhor que puderam a sua sur presa, saudaram-me e retiraram-se, cismticos, para tratar das suas ocupaes. Ficaram comigo Apeles (na altura o meu actor trgico preferido) e o mmico Mnester, e eu ri-me bastante com o efeito produzido. Os meus amigos estavam tambm de excelente humor. Os artistas sabem apreciar o inslito e so os ni cos que me compreendem e aprovam, mesmo que o sentido poltico dos meus caprichos lhes escape. Ele no escapa, bem pelo contrrio, ao jovem Helico, o belo rapaz que Tibrio recusou como favorito e que, posteriormente, libertei e escolhi como amigo e conselheiro. Helico apercebeuse imediatamente de que eu escondia alguma coisa neste caso... Fomos todos fes tejar o acontecimento nos jardins da Lamia, com cocheiros e msicos. Estando tudo finalmente pronto, partimos para Baias. No tinha revelado ainda nada do meu segredo. Mas o meu outro fiel liberto, Calisto, precedera-me para cuidar de toda a organizao. Todos os barcos de carga haviam sido requisitados. Sabendo que Roma era principalmente abastecida por estes barcos, no podia imobilizlos por mais de dois dias, com risco de provocar a fome na cidade. Teria desistido se tivesse que pr em perigo a barriga da plebe. Calisto tinha realizado verdadeiras proezas: ancorados em duas filas, os barcos cobertos de terra, oh! quo inesperado! davam a imagem de um prolongamento da via pia. Uma ponte provisria ligava o molhe de Putolos ao porto de Baias! A corte aplaudiu este espectculo. Descortinei olhares sombrios nos 15 senadores ao verem os barcos requisitados, mas no lhes dei qualquer importncia. Tinha ordenado a realizao de festas sumptuosas, se bem que nada houvesse a comemorar para alm da minha presena. Tive que obrigar algumas famlias importantes a participar nas despesas. Gosto de festas bem sucedidas, e neste domnio no tolero a mesquinhez. No primeiro dia, atravessei sozinho esta ponte improvisada, a

  • cavalo, coroado com folhas de carvalho, levando a espada e um pequeno escudo, envolto num manto bordado a ouro. Nas margens, ou apertadas em frgeis embarcaes, as pessoas aplaudiam-me. A multido, dificilmente contida pelos guardas pretorianos, comprimia-se para me aclamar. Foi com alguma apreenso, confesso-o hoje, que me lancei assim sobre o mar, 16 eu, to gil em todos os desportos, to bom condutor de carros como esgrimista, mas que nunca aprendera a nadar! Porm, j tinha experincia de terrveis travessias nos mares encapelados por Neptuno, e no podia, pois, assustar-me por muito tempo com esta cavalgada sobre um Mediterrneo to calmo. O meu cavalo, o fiel Incitatus, que eu mandara adornar luxuo samente para esta ocasio, mereceu a minha confiana, evitando todos os perigos. Tal como um astro cruzando a luz do Sol, fiz a travessia vrias vezes, vivamente aplaudido. Na margem, sacrificavam-se touros pelo xito da minha faanha. A noite decorreu por entre felizes excessos. Mnester honrou a corte com uma das suas mais belas pantominas. No dia seguinte, apareci vestido de auriga, conduzindo um carro puxado por dois soberbos cavalos. Precedia-me um 17 prncipe refm, o jovem parto* Dario. Seguiam-me a guarda pretoriana e os meus numerosos amigos, confortavelmente instalados nos seus carros. Msicos ritmavam a travessia ao som das suas liras e flautas. Danarinos improvisavam para engrandecer o acontecimento, parodiados por stiros que, nas suas costas, sacudiam as ancas cobertas com peles de cabra. "Por conseguinte", disse eu apeando-me, "deixem de admirar Xerxes s porque ele soube lanar uma ponte sobre o Helesponto, muito mais pequena do que esta! "Assim", acrescentei, "Germanos e Bretes tremero ao saberem da omnipotncia do Imperador Caio Csar!" "Portanto", conclu, "apagai das vossas memrias at mesmo o nome de Alexandre, o vencedor de Dario!" Perante todos, tinha posto a ridculo Trasilo e as suas falsas profecias. Se eu j sabia que todos os meus desejos eram realizveis, estes dois dias culminaram o meu gosto pela grandiosi dade, pois que este espectculo iria ficar gravado nas memrias. E as crianas, admiradas, ouviro os seus pais contar-lhes como o divino Calgula atravessou o mar a cavalo!... Encerrei os festejos pblicos com uma distribuio de dinheiro ao povo, em Baias e em Roma. Tinha surgido aos olhos de todos como um superhomem, um igual dos deuses, ao triunfar sobre os obstculos naturais. Mas havia um outro motivo para esta encenao, bem mais grave. Com efeito, acabava de ser informado que uma conspirao se

  • tramava contra mim, uma conspirao que envolvia pessoas da minha famlia e oficiais. Procurando manter em segredo as minhas intenes, aproveitei estes dois dias para lanar, com este * N. T. : Parto - guerreiro de origem persa. 18 espectculo invulgar, um aviso simblico a quem fosse capaz de o compreender. Alguns senadores e cavaleiros no se dei xaram enganar e suspeitaram, na verdade, de que qualquer ameaa velada se escondia por detrs daquela faustosa travessia. Como se ver, quando eu abordar esse triste episdio, isso no demoveu os traidores do seu projecto. Decidido a punir, achei demasiado prematuro dar a conhecer que estava a par da conspirao. Assim, como se tivesse sido repentinamente tomado pela generosidade, permiti aos senadores murmurarem a sua desaprovao em face das minhas excessivas despesas e extravagncias. Alis, nenhum deles pde recusar a excurso, excepto aqueles cuja sade os impedia ou cuja presena em Roma era indispensvel. Um convite do Prncipe sempre uma ordem: ningum to ingnuo que o esquea! Mas, em privado, quantas censuras, quantas dvidas! Julgaram-me louco, temeram pelo futuro... Fiis e odiosos espies relatavam-me cada con versa. Cada um deles merecia a morte. Mas tinha mais que fazer do que lanar acusaes e, em lugar de encorajar os mais zelosos e ansiosos delatores, proibi-os de levarem a julgamento alguns nobres cujas palavras eram imprudentes. Ah! Como eles gostam dessa lei de majestade que lhes permite acusarem-se mutuamente de atentar contra a soberania do povo romano ou contra a segurana do Estado na pessoa do Imperador! Tibrio, colocando em vigor essa terrvel arma pol tica, atirara um osso a ces raivosos. Ento, quantas denncias! Tanto mais que o acusador recebe uma grande parte dos bens do condenado! Tibrio repetia-me sem cessar que o Imprio no tem melhores guardies do que os acusadores pblicos, e por isso merecem ser recompensados. O dio e a inveja fizeram o resto e Roma estremeceu com o alarde dos processos que 19 levavam os nobres ao suicdio ou ao exlio, arruinando famlias inteiras. E pensar que, sem esses processos, os ricos se aborrecem! Desde que subi ao poder fiz imediatamente saber que detestava os delatores, fazendo esquecer, assim, to funesta lei. Que pena, os Romanos no souberam aproveitar tal liberdade!... E hoje, essa arma mais til do que nunca! De regresso a Roma, todos se apressaram a felicitar-me, com um sorriso nos lbios. Eu j sabia que a corte estava

  • invadida por hipcritas (alguns de reputado nome), s capazes de elevar a voz para abaterem os mais fracos. As caras mudam, a lisonja permanece! Se os deixasse, ter-me-iam votado um pequeno triunfo! O Imperador muda, os aduladores continuam!... Aprendi a conhec-los no squito de Tibrio. Ao menor gesto ou palavra do meu av, todos aplaudiam. A minha juventude foi por muito tempo perturbada por este espectculo pouco edificante. Compreendia agora porque Tibrio fugira de Roma e limitara a sua corte, ele que tanto odiava os bajuladores, embora sa bendo dissimular-lhes o seu desprezo. Mas eu no compreen dia que o senhor do mundo devesse suportar tantos cobardes e mentirosos. Ele bem -me dizia que era necessrio. Mas acontecia-lhe por vezes ceder impacincia. Em Capri, o velho Imperador reunira um grupo de rapazinhos, filhos de escravos, escolhidos pela sua beleza, que tinham de banhar-senus com ele, no seu quarto privado, e a quem cha mava familiarmente os seus "peixinhos". No sei se ao tocar esses corpos virginais ele acordava os seus ardores perdidos, mas estou certo de que ele nunca atentou contra o pudor des sas crianas que, por serem escravas, no beneficiavam portanto de nenhuma proteco. Um dia, um senador cujo nome no revelarei porque ainda hoje faz parte da Alta Assembleia, chegado 20 na vspera a Capri, testemunhou comigo o banho do Imperador. Psse logo, hipocritamente, a felicitar Tibrio por este adorvel espectculo. A sua falsidade saltava aos olhos! De facto, este senador era conhecido pela austeridade dos seus costumes, era inimigo de todo o excesso e volpia. Tibrio sabia que este tagarela, no seu ntimo, devia considerar repugnante o que via. Irritado, o Imperador no pde, dessa vez, suportar a lisonja. Assim, agradecendo-lhe os cumprimentos, autorizouo a juntar aos peixinhos servis o seu prprio filho de treze anos, que estava ao seu lado. Apanhado na armadilha, o magistrado quase sufocava! E eu, por meu lado, ria s gargalhadas! Os soldados despiram o rapaz que teve que se juntar ao Imperador e s suas nereides. Tibrio, num ltimo requinte, props-se ouvir, pela 21 segunda vez, os louvores do pai, que teve que os repetir, de cabea baixa, a boca seca e as pernas a tremer. Porque era rara, ainda apreciei mais esta prova de humor do meu av. Para com pletar a lio, o Imperador no lhe entregou o filho seno um ms mais tarde, quando ento j o infeliz senador

  • vivia dias de mortal inquietao em Roma! Alis, tirou da as consequncias devidas e absteve-se de futuro de toda a mentira. Resta acrescentar que, entregando-lhe o filho, Tibrio desculpou-se, por carta, da sua vil partida. O meu av, sendo de facto to hipcrita como os seus cortesos, soube sempre como lidar com os seus colaboradores. No saio a ele e no deso ao ponto de fazer crer a minha considerao quando no h razo para ser merecida. Sei, contudo, que este desprezo con fessado imprudente. Osaudoso" Macro no -me disse sempre que o engodo do poder faz rastejar os ricos e o medo das denncias os empurra para a dissimulao? Recentemente, durante um jantar, lembrando-me desta piada, ria-me sozinho, quando dois cnsules, que eram meus convidados, me perguntaram, afveis e melosos, qual era o motivo da minha alegria para a poderem partilhar. Aquilo quebrou em mim a doura da lembrana. Olheios com dureza e disse-lhes: " porque com um gesto posso mandar cortar a cabea aos dois!" O que, novamente, me fez rir s a mim, porque desta vez eles no puderam forar-se a acompanhar-me. 22 Tibrio! Neto do grande Jlio Csar! O teu nome vem-me aos lbios sem que eu saiba se devo louvlo ou amaldiolo. Em pblico, tenho evitado sempre ofender-te. Mas prometi aqui mesmo ser sincero. Confesso que, ao pronunciar o teu nome, misturam-se-me no corao muitos sentimentos contraditrios! Tibrio, que envolveste de horrores a minha juventude! Quando me reclamaste minha av Antnia tinha eu dezanove anos, para partilhar contigo a tua vida isolada em Capri - e isto at tua morte -, foi por verdadeira afeio? Ou para poupares o ltimo herdeiro de uma famlia que ias exterminar? Ou por ambas as razes? No tenho resposta, apesar de tantos anos passados na tua companhia. Soubeste dissimu lar to bem que todo o meu actual poder no chega para arrancar do teu cadver a verdade acerca dos dramas que mancharam essa poca! verdade que vivi a teu lado uma vida de luxo e ociosidade e que no tenho razes de queixa. Quer conduzisse um carro, quer aprendesse a arte da dana ou a retrica com os melhores mestres, ou me entregasse estouvadamente a uma aventura amorosa, a tua vigilncia exercia-se de forma to discreta e os encorajamentos eram to frequentes que me foi difcil ver em ti outra coisa que no fosse um av afectuoso, sorrindo das minhas loucuras de adolescente. Tomaste muitas vezes a minha defesa contra pessoas importantes que sonhavam com a minha desgraa. Quiseste dar-me a melhor educao que poderia

  • exigir e receber, vinda do grande Csar, o descendente de uma ilustre famlia, e a atingiste os teus fins. Distinto em todas as artes, alimentado pela literatura grega e latina, pude desde os vinte anos brilhar na tua corte e rivalizar nas disputas oratrias, granjeando unnime admirao... Sempre te serei grato por isso. 23 4 A infncia junto de minha me, da velha Lvia e, depois, de Antnia apenas serviu para me amolecer. Tendo-o percebido, sonhando j, sem dvida, com o meu alto destino, decidiste encarregarte do teu neto preferido. Fizeste bem! Contudo, tive de cruzar-metodos os dias, em Capri, com esse nojento Sejano, o teu imundo chefe dos pretorianos, que parecia impossvel denegrir aos teus olhos, de quem no vias (ou fingias no ver) as manobras ambiciosas que o aproximavam lentamente da tua herana! Sei que, em Sperlonga, ele te salvou a vida, quando, durante um jantar, o tecto da gruta em que estavas instalado desabou; sim, protegeute com o seu corpo das rochas que te ameaavam: Bela prova de coragem que no ter deixado de ser intencional... possvel que ele tenha sido capaz de provocar este desmoronamento s para captar defini tivamente a tua confiana!... Porque nada era demasiado vil para aquele venenoso batrquio! E tu, meu caro antepassado, por cansao e enfado do poder, deixavas que ele governasse em teu lugar. Por tua culpa, Sejano tornou-se o senhor inconfessado e inconfessvel do imprio, que tu, desse modo, entregavas a um implacvel inimigo da nossa famlia! Se ento me ensinaste algo acerca da poltica, foi que, luz dos teus erros, eu nunca deveria delegar o meu poder a outrem. Quando vi Macro aproximar-se demasiado e fazer-me sombra, no hesitei em sacrificlo, ele que era meu cmplice desde Capri. Que os meus actuais conselheiros no o queiram imi tar, sejam eles Helico, Calisto, Protgenes ou at Sila, porque a sua sorte seria a mesma; nunca haver seno um nico Prncipe, eu! Tu, Tibrio, tu esqueceste-o. Da mesma maneira que me fcil perdoar as tuas crueldades privadas, os teus gostos 25 mrbidos e o teu apetite devasso, no te perdoarei a fraqueza que te fez submeteres-te vontade de Sejano. No te absolverei das desgraas que esse maldito prefeito provocou: eras o seu senhor, e por isso recai sobre ti uma enorme responsabilidade. com lgrimas nos olhos que agora evocarei a morte daqueles que me foram to queridos, e que a ambio de um s me

  • arrancou. A minha me Agripina e os meus dois irmos mais velhos, aps terem conhecido todas as honras, tiveram que mergulhar na ignomnia pblica, sob os repetidos golpes de Sejano. Obstinado na nossa perdio, querendo o Imprio s para si, no hesitou diante de nada! Depois de ter condenado dois ami gos do meu saudoso pai, corrompeu a minha tia Lvia. Tomando se amante dela, levoua a envenenar o marido, o teu prprio irmo, Tibrio! Por ltimo, vendeu a sua filha a um dos meus primos para obter um pouco da legitimidade familiar que tanto lhe faltava. Quando rico e poderoso, mandou espiar a minha me, utilizando provocadores para a obrigarem a falar de mais. Comprando denunciantes no seio do nosso ambiente domstico, depressa te persuadiu que Agripina e o meu irmo Nero conspiravam contra ti. Foi ento fcil detlos em Herculano! Eu tinha dezasseis anos e nada sabia das desgraas que ocorriam por toda a parte. Para fazer face ao perigo, a minha av Antnia levou-me para junto dela. Sob a sua importante proteco, eu estava seguro. Ela esclareceu-me sobre as aces do nosso inimigo. Mas a tempestade mal comeara! Um ano mais tarde, no reconheceste publicamente o meu segundo irmo Druso III, j que me mandaste fazer o elogio fnebre da nossa av Lvia que morrera aos oitenta e seis anos. Esse elogio cabia por direito ao meu irmo. Agindo dessa forma, davas carta 26 branca aos tubares! Quantos horrores, ento, o rancor gravou em mim para sempre! Uma carta tua desencadeou a carnificina: nela acusavas Nero de pederasta e impdico (tu!), e Agripina de ser arrogante e ter ideias rebeldes. O povo. indignado com estas afirmaes, protestou: odiando Sejano, opunha-se a estas perseguies. O odioso prefeito soube interpretar os acontecimentos, aproveitando para liquidar definitivamente os seus rivais. O Senado, disse-te ele, tinha-te desprezado, ao hesitar em processar os acusados, o povo ameaaria revoltarse! E tu engoliste todas estas mentiras! Enviaste uma carta admoestando o povo e o Senado, reiterando as tuas acusaes. Tibrio transformava-se no assassino da famlia! Atravs do senatusconsulto, Nero e minha me foram condenados, declarados inimigos pblicos, exilados, meu irmo para a Ilha Pontia, e Agripina para a de Pandataria, onde um centurio se permitiu bater-lhe e furar-lhe um olho! Ningum ou sou defend-los. Mas o apetite de Sejano no estava saciado. O meu outro irmo. Druso III, que vivia comigo em Campnia e que era o meu melhor companheiro, apesar de ser mais velho quatro anos, espantava-me dizendo-se espiado na tua corte, temendo pela sua prpria vida. Seguro da tua

  • benevolncia. tentei em vo sosseglo, preferindo rir dos seus temores. E, subi tamente, eis que tu o envias para Roma sem motivo. A, o cnsul Lcio Cssio Longino acusa-o de intenes perigosas em relao ao Prncipe e ao Estado! Imediatamente condenado, , segundo as tuas ordens, encerrado no subterrneo de uma das nossas casas imperiais do Palatino! Druso!... At onde iria Sejano? Quem o impediria de me prejudicar? Um ano mais tarde, eilo cnsul contigo. Declarava-lo, assim e abertamente, como teu sucessor, a ele, esse miservel cavaleiro amassado no 27 dio, que nenhum deus aceitaria por interlocutor! Nero foi condenado morte e a sua mulher prometida a este guardio enraivecido. Eis, meu caro av, em que terrores me mergulhaste, constrangendo-me a fingir indiferena para no despertar as suspeitas de Sejano e a tua consequente clera, a desconfiar dos pratos que me serviam, das mulheres que frequentava, de todos, escravos ou homens livres! Tinha um irmo morto, uma me deportada, o meu outro irmo privado da luz do dia, numa cela imunda, e sobre mim recaa o olhar vido de Sejano, o teu to fiel Sejano, que procurava a melhor forma de cair sobre a sua presa... Todo este dio ento acumulado tenho-o dentro de mim, corrompe o meu sangue e s desaparecer com a minha morte! Calava-me. Macro, o meu nico amigo, correndo riscos e perigos, segredava-me notcias de minha me, de Druso. Mas interceder a favor deles era impensvel. A isto veio juntar-se uma 28 terrvel suspeita. Murmurava-se que tu, filho de Augusto, no estavas inocente quanto ao assassinato de meu pai no Oriente! Nessa altura, acreditei tratar-se de provocaes inspiradas por Sejano para me obrigar a pronunciar contra ti palavras irrepar veis. Hoje, gostaria de forar os teus Manes a confess-lo! Germnico, meu pai! O maior general depois de Csar! Germnico, amado por todos, favorito dos deuses, dolo dos soldados. Germnico, meu venerado pai, segui-te, ainda criana, at aos campos da Germnia, depois at Nicpolis (onde nos recolhemos no local da batalha de ccio), at Atenas, para o lugar de Tria, donde nos vem o fundador Eneias, e finalmente Sria, onde o infame Piso o mandou envenenar. "Que no lhes perdoem!", disse ele aos seus assassinos, antes de se unir s Sombras. Germnico, o meu pai, que mandou fazer, segundo as minhas medidas de criana de trs anos, um uniforme de legionrio, que divertiu todos

  • os soldados, sobretudo fascinados com as minhas minsculas botinhas. Os soldados cognominaram-me ento "Calgula, botinha", sem se preocuparem com 29 as convenincias. Desde esse dia, e graas ao meu pai, adquiri a confiana do exrcito, e a sua dedicao sempre se manteve (apesar de uma ou outra ovelha ranhosa ter que ser eliminada). CALGULA! CALGULA! Calgula, o nosso Imperador! O povo assim me aclama incessantemente, no anfiteatro, no circo, nas ruas, apesar da minha proibio. Porque agora detesto esta alcunha ridcula que nenhum prncipe se permitiria usar. Mas quando o pretoriano Cssio Quereia, que me conhece desde pequeno e invejava o meu pai por ter um filho to formoso, me chama Calgula em privado, recordando-me a Germnia, eu sor rio e, com o corao entristecido, perdoo ao soldado de hoje, em homenagem ao fiel soldado de Germnico. A Germnia, a Grcia, o Oriente: a minha infncia decorreu entre viagens, paisagens magnficas, lugares ancestrais e sagrados, visitados com fervor. Se o meu pai era, antes de mais nada, um militar, sabia tambm, graas sua natural bondade, trans mitir aos que o rodeavam a sua enorme curiosidade, explicando -me o que havia para ele de mgico na cultura e mostrando-me, pelo seu exemplo quotidiano, o que h de mais precioso num corao humano. E foi o assassnio deste ser idealista que tu ordenaste, Tibrio? Desta forma, a plebe teve razo ao gritar, quando soube da tua morte: "Tibrio no Tibre!". De um lado, a escola do luxo e do sexo; de outro, a do sangue e da perfdia... Felizmente, a sorte mudou. Sejano foi finalmente acusado por minha av Antnia de conspirar. Ela escreveu-te, desmascarando a tempo os planos desse monstro. Toda a famlia estava ameaada pela sua ambio, especialmente tu, Tibrio. Sejano precisava de aniquilar-me e matar-te para alcanar os seus fins. Ficaste assustado quando, subitamente, te apercebeste da amplitude da maquinao. E o cavaleiro Macro, 30 antigo prefeito dos vigias, pde liquidar Sejano. Um alvar secreto encarregouo da prefeitura da guarda pretoriana. Chegou a Roma de noite, munido de todos os poderes e, no dia seguinte, mandou prender aquele verme, no templo de Apolo. Sejano foi encarcerado no Tuliano, a priso subterrnea do Frum. A o estrangularam. Depois, expuseram o corpo nas escadarias das Gemnias, como se faz com um vulgar criminoso, para exem plo do povo. Para minha grande alegria, toda a sua famlia foi exterminada. Desta vez, pela mo de Macro,

  • cabia-me a mim fazer jorrar o sangue! Amargurado, desiludido, deixaste-nos agir... Mas tu, que sempre soubeste da inocncia da minha me e de Druso, deixaste-os morrer sem esboar um gesto para os salvar e os reabilitar. A se tornou clara toda a negrura do teu orgulho: preferiste a morte deles a confessar os teus erros! E que morte! Minha me, no tendo qualquer esperana, deixou de se alimentar; o meu querido irmo Druso III, prncipe da juventude, nu no seu crcere infecto, preferiu sufocar-secom a sua enxerga a ter de viver mais um dia essa ignbil punio. Oh!, Tibrio! Quantas coisas para te perdoar! Demasiadas... O sangue de Sejano no me bastava. Para vingar a minha me e o meu irmo queria perseguir todos os seus cmplices e faz-los pagar atravs de sofrimentos atrozes e da confiscao dos seus bens. O subtil Macro acalmou a minha sede de justia, fazendo-me compreender rapidamente que nenhum excesso de paixo devia ensombrar a minha imagem aos olhos do povo que e saudava j como o digno filho de Germnico, so e salvo das garras de Sejano. Porque tu, Tibrio, envelhecias. Caminhavas, curvado, para a morte. E nada mais nos restava que esperar por esse instante. Macro encorajava-me a apressar o teu fim, oferecendo-se como 32 executor. Mas no consegui decidir-me a isso. Um tal acto tinha ainda a ver com a nossa famlia, j to sacrificada. E isso condenaria Macro de quem tanto precisava. Preferi dedicar-me aos meus prazeres. No meu vigsimo quinto ano (que correspondia ao teu septuagsimo oitavo), o Destino decidiu. Em Miseno, tuas foras abandonaram-te. O teu mdico, Caricles, anunciou que a tua morte se aproximava. Enviaram-se mensagens para todo o Imprio, dizendo que se preparassem para me aceitar como sucessor. O Imprio esperou o fim daquele que o conduzira com mo de mestre, mas que nunca soubera fazer-seamar. Eu era filho de Germnico. Est tudo dito! Se tivesses demorado muito a morrer, talvez o Imprio se tivesse impacientado... Soubeste deixar-nos a tempo, apertando nos teus dedos gastos o anel da suprema autoridade, como se quisesses, num ltimo esforo, levar o poder contigo para o tmulo!... E eu, diante do teu corpo sem vida, comovi-me, esquecido dos teus horrores. Nesse instante, no estava ali seno o rapaz mimado que tu tinhas protegido e escolhido como herdeiro e que via desfilar sobre a tua pele amarelecida todos os belos dias de Capri... Agora que me tornava imperador perdoava-te, filho do divino Augusto, todos os terrores que tive de suportar, para unicamente ter em conta as tuas atenes. Ao povo que injuriou o teu corpo, respondi

  • com o teu elogio, e chorei com sinceridade no teu funeral. Hoje, repousas no mausolu de Augusto, tendo levado contigo todos os teus horrveis segredos. As feridas reabriram-se. Porm, dividido entre a piedade filial e o dio, Caio Csar no pode, decididamente, amaldioarte para sempre. 33 Po e circo, eis o que o povo romano avidamente reclama! Porque no satisfazlo? Alimentado pelo Estado quando os seus recursos no bastam. Protegido nas fronteiras por valorosos soldados, o cidado romano aborrecer-se-ia se no tivesse distraces! No h nada pior que o tdio! Pode mesmo conduzir a todos os excessos. Os jogos evitam que o povo dedique demasiado tempo reflexo poltica. O povo no pensa revoltar-sequando se diverte. preciso cultivar a indife rena das massas e obter o seu apoio. Os jogos so sagrados, so o nico luxo dos pobres. Multiplicando os combates de gla diadores ou as corridas de carros, consigo agradar a todos e a mim prprio. No reside o equilbrio do Imprio neste permanente esforo de oferecer ao povo as distraces que ele pede? Os ricos no gostam de fazer grandes despesas, que julgam inteis: preciso for-los um pouco! E, de resto, estes espectcu los fornecem-lhes temas para conversas muito tranquilizadoras: ningum se compromete, falando de um auriga vencedor... Proporcionar jogos no basta. necessrio estar l pessoalmente e interessar-sepelas alegrias ou desventuras da multido. Ela quer ver na tribuna imperial o seu Prncipe, a aplaudir os favoritos ou a protestar contra aqueles que ela desaprova. O povo adora-me quando partilho das suas paixes, quando tenho prazer naquilo em que ele tambm tem. No se trata de lisonja da minha parte. No preciso de me constranger. Uma boa corrida de carros, um excelente combate. uma sublime tra gdia, pem-me de bom humor. E quando o Imperador est alegre, o povo tambm est. to simples quanto isso. O grande Jlio Csar no o tinha compreendido. Por mais de uma vez, parece, chocou toda a gente ao redigir o seu correio ou ao discutir com os seus conselheiros, enquanto que na arena os 34 gladiadores lutavam. Que falta de diplomacia! A sua indiferena era sentida como um insulto multido. Quanto a Tibrio, desprezava o povo de tal forma que se recusava a fart-lo de espectculos. Por avareza, e para no satisfazer gostos que no eram os seus, granjeou em Roma muitos descontentamentos ao reduzir o nmero de festividades ao estritamente necessrio. A economia no o meu forte! Desde a minha chegada ao poder, gastei somas incrveis para que as

  • festas fossem sump tuosas, oferecendo plebe banquetes e espectculos de quali dade. As riquezas de Tibrio permitiram-mo. No lamento ter esbanjado esses milhes de sestrcios: tornaram-me mais popu lar do que qualquer um dos meus antepassados! O que no quer dizer que o povo tenha sempre bom gosto. Ele despreza os comediantes sem razo. O teatro o divertimento que mais aprecio. Acho que os gestos e a declamao dos actores dizem mais do que todos os livros de filosofia. Alm disso, donos lies de graciosidade e de beleza. Por motivo nenhum faltaria representao de uma pea de Plauto ou de Terncio. Eu prprio vigiei o restauro do teatro de Pompeia, que tem lugar para mais de 17 000 pessoas. No entanto, os espec tadores fazem-se rogados! Muitas vezes tive de repreender os Romanos que desertavam dos teatros para acorrerem aos cir cos! A minha presena assdua impede-os de se furtarem s re presentaes, mas este pblico to inculto que boceja, come, faz barulho e no ouve nada! Quando me exalto, chego at a mandar os guardas pretorianos expulsar os espectadores indis ciplinados. H ordem para bater naqueles que ousarem falar quando Mnester dana. Nada adianta. O povo no tem educa o. No v a beleza que se lhe oferece, e s se entusiasma com cocheiros e gladiadores! 35 Eu, Caio Csar, quando vi Apeles representar pela primeira vez, senti uma emoo to intensa que quase desmaiei! Chamei-o tribuna imperial e abraceio, aos olhos de toda a gente. Nenhum papel era demasiado difcil para ele. Que pena que um tal talento tenha trado a minha confiana... Foi preciso mat-lo, mas lamento-o profundamente: nenhum outro actor soube comover-me a tal ponto. At os seus gritos debaixo da tortura se tornaram para mim um cntico maravilhoso! Em contrapartida, Mnester continua a ser um dos meus favoritos. Esse dan arino abenoado pelos deuses, esse momo inimitvel, nunca ousou conspirar contra o seu Prncipe. Dentro de dias, irei de novo aplaudilo e oferecer-lhe os presentes que merece. Talvez digam mais tarde que me liguei demasiado a estes histries, a estes comediantes to servis e to pouco viris... Que importa! No e preocupo com as convenincias. Se um comediante me agrada, acolho-o na corte, trato-o com amizade. Ele partilha ento da minha mesa, dos meus prazeres, acompanhando-me nos meus passeios. E de boa vontade lhe presto ateno. Por vezes, os actores so melhores conselheiros que os polticos. Se iniciei a construo de um novo circo pblico, que ter mais de 1500 ps de comprimento, porque, tal como meu pai, sou um grande apreciador das corridas de carros, desde muito

  • novo. 36 At mandei vir do Egipto um obelisco para decorar o centro da pista. Infelizmente, os trabalhos no avanam to depressa quanto eu queria!... Quando no Circo Mximo o presidente dos jogos baixa o pano branco anunciando a partida, com o corao a tremer que vejo partir as parelhas. preciso ouvir ento os clamores que se soltam das bancadas para encorajar este ou aquele auriga, esta ou aquela equipa. Tal como os 150.000 espectadores, tambm eu me levanto, grito e bato com os ps. Sou sempre pela faco dos Verdes. At nisso mostro o meu apoio ao povo, pois os ricos sempre preferiram os Azuis. Fico furioso quando os Verdes perdem as corridas. Por pouco que no mando lanar os maus aurigas s feras! Mas contenho-me, e como os Verdes so quase sempre vencedores, depressa lhes perdoo as suas derrotas. Recebem frequentemente a minha visita. Gosto de comer com os aurigas e de dar uma volta pelas cavalarias para cumprimentar os cavalos vencedores. Foi entre os Verdes que conheci Eutiques. Enamorei-me dele desde o nosso primeiro encontro. Ele j ganhara duas corridas nesse dia, mas, infelizmente, no final da jornada, fez a ltima curva to apertada que o seu carro se estilhaou. Enquanto a parelha de cavalos naufragava num concerto de relinchos, ele teve a presena de esprito necessria para tirar o seu punhal e cortar as rdeas que lhe rodeavam a cintura. Sem este gesto, talvez tivesse morrido. Assim, escapou com alguns arranhes. A multido silenciara no momento do acidente. At os partidrios dos Azuis se calaram, privando de aplausos o seu auriga que voava para a vitria. Fui imediatamente ver o desafortunado. Quando cheguei, Eutiques bebia uma poo base de excrementos de javali que, diz-se, um excelente tnico. Os seus longos cabelos estavam ainda 37 ensopados de sangue e suor. Deitado, tinha unicamente vestida a sua tnica verde. A sua beleza misturava-se com a tristeza de ter perdido. Estendilhe a mo para beijar e jureilhe nesse ins tante a minha amizade. S ele teve, mais tarde, o direito de mon tar o meu cavalo Incitatus. fcil imaginar o que se dir deste valente animal! certo que mais de uma vez convidei Incitatus para a minha mesa. Aos senadores presentes dizia que no possua amigo mais fiel. Com ar de troa, lamentava que no houvesse cama bastante grande para dormir ao seu lado. A um cnsul que tinha convidado, ousei mesmo dizer que no exclua a hiptese de um dia nomear cn sul este meu cavalo que to bem me obedecia!

  • Da palavra ao acto, parece no haver seno um passo... Acreditou-se imediatamente que eu iria executar o meu projecto. Para muitos, eu era completamente louco! Os ricos no compreendiam os meus rasgos humorsticos. "Caio? Esse indigno imperador que nomeou cnsul o seu cavalo?" - que rico ttulo para os meus futuros cronistas... No sendo propriamente uma mentira, eles faro de um comentrio feito no fim de um jantar uma prova de irresponsabilidade. Receio que a Histria no se escreva de outra maneira. Gosto de cavalos, verdade. Por vezes, sonho que, envergando a cor dos Verdes, dirijo a minha equipagem pelas catorze voltas da pista, sob aclamaes. Evitando as armadilhas dos outros aurigas, passando o mais prximo possvel das marcas para ganhar tempo, ultrapasso todos os concorrentes e termino vencedor sobre a linha branca de chegada, saudando com a mo direita a multido delirante. Lamentavelmente, tenho de contentar-mecorrerido em privado, longe do povo que no aceitaria que o Prncipe se exibisse no circo. Pelas mesmas razes, 38 -me proibido descer arena, no obstante o meu desejo, eu que tanto prezo uma disputa! A arena! O sangue dos gladiadores! Ei-los que se alinham voltando-se para mim: "Ave, Caio Csar, morituri te salutant!" ("Os que vo morrer sadam-te!") Com elmo ou de cabea descoberta, armados com gldios ou tridentes e redes, segurando pequenos ou grandes escudos, dispersam-se sobre a areia, e os combates iniciam-se. Em quatro anos, j lancei em combate 10000 pares de gladiadores. O povo est-me reconhecido. apaixonado por este espectculo. Mas exigente: um reles vencido que no soube bater-seser com certeza degolado. Querem-se magnficos combates. Pedem-me os melhores, os mais dispendiosos gladiadores do Imprio. Mas tambm se sabe usar de clemncia: muitos combatentes, tendo provado a sua destreza e coragem, saram vivos da arena, no obstante a sua derrota. No o sangue que agrada, mas o valor do duelo. Disso fiz a experincia ao organizar massacres de prisioneiros, lanados s feras; devo reconhecer que a multido aprecia menos isto. Um dia, aconteceu uma coisa terrvel. Cinco recirios, gladiadores armados com rede e tridente, acabavam de ser derrotados por cinco trcios, seus habituais adversrios. Como os recirios no tinham, a bem dizer, combatido, a multido gritou a sua clera, exigindo que os miserveis covardes fossem degolados. Hesitei. Esses recirios tinham deixado ganhar os trcios, os meus gladiadores preferidos. Apreciei a inteno. Interpretou-se mal a minha hesitao. Um

  • dos recirios, julgando que eu acabava de ordenar a morte, voltou a pegar no seu tridente e, sob os nossos olhos assombrados, matou os cinco trcios. Imediatamente a guarda massacrou o culpado e os seus com panheiros. Os trcios tinham morrido por nada. Nesse mesmo dia, publiquei um dito condenando a carnificina. Nesse texto, censurei os espectadores, responsveis, quanto a mim, pela tra gdia. No h nada pior que essas mortes ignominiosas! Um gla diador aprende a bater-se e a morrer com dignidade. Esses homens, que no so seno escravos, prisioneiros brbaros e 40 delinquentes. esses marginais que se lanam para a arena e que lutam to bem, merecem o nosso respeito. Sabendo morrer, resgatam a sua infmia. Sim, os trcios so os meus favoritos. preciso vlos evoluir com o seu pequeno escudo e o seu gldio curvo. O rosto escondido pelo capacete, os rins cingidos por uma tanga. apoiados nas sas coxas fortes, fazendo ondular os seus poderosos *mrscos! Nada h mais belo do que esses gladiadores! Para eles, mandei construir no centro da cidade uma escola em miniatura, reservada aos mais prometedores, aos mais valentes e estimados. Entre outros, esses dois soberbos atletas que nunca fecham os olhos, qualquer que seja a ameaa que lhes faam. E, sobretudo, o meu Studioso, o trcio que tem o brao direito mais comprido do que o esquerdo, o que lhe valeu numerosas vitrias. Studioso tornou-se rapidamente o dolo da multido. Reformeio-. apesar da sua juventude, no querendo perd-lo; j no combate. mas serve de treinador. Gosto tanto dos trcios que j me aconteceu ter sadas infelizes. Por exemplo, num dia em que um gladiador chamado Colombo tinha vencido um dos meus pequenos "amparos", cometi a imprudncia de dizer que ele merecia que se deitasse veneno nas suas feridas para o punir de uma tal malvadez. Um imbecil julgou que procederia bem correndo a cumprir o meu desejo. e Colombo morreu sem saber porqu! Que podia eu fazer? No por isso que vou calar os meus pensamentos! Novamente, a falta de humor daqueles que me rodeiam... Pouco importa. ningum chora por um 41 gladiador muito tempo. Excepto as suas amantes. essas mulheres de nobres famlias que frequentam as sesses de treino, loucas pelo suor dos Colombos e outros que tais, prontas a desonrar-se publicamente para se deitarem com estes homens inferiores, de msculos superdesenvolvidos! Neste aspecto, no tm conta as conquistas do meu Studioso: mulheres, homens, rapazes, ningum resiste ao seu encanto. Como o invejo, eu, cujo nico encanto reside no poder!

  • Mas os jogos foram muitas vezes o meu mau humor, to pronto a crescer. No gosto que esqueam a minha presena, dando honras de vedeta a outro. Detesto o povo quando ele me infiel! Lembro-me daquele dia em que a multido no acabava de aplaudir um certo gladiador. Ergui-me. magoado. e quis imediatamente abandonar o local. Em m hora o fiz! Enrolei os ps na minha toga e ca de cabea, no meio da bancada. Imaginais a minha fria? "Povo ordinrio", gritei, vermelho de clera. "povo que concede mais honras a um miservel do que a mim, Caio Csar Augusto, seu Imperador! Se o povo esquece to facilmente os deuses, os divinos imperadores, ento no merece mais ser chamado Povo-Rei! Prouve aos deuses que o povo romano soubesse que s tem uma cabea!" Parti no meio de um silncio glacial. Logo no dia seguinte, a minha clera tinha-se dissipado e ordenei novas festas, para no deixar no povo uma pssima recordao da minha tirada. Numa outra ocasio, cedi ao cime. Vivia nessa altura em Roma o filho de um nobre, Asio Prculo. que o povo no se cansava de admirar devido sua estatura e beleza extraordin rias. Tinham-no at apelidado de "o colosso do amor"! No ridculo? Quando esse Prculo estava nas bancadas, a multido s tlnha olhos para ele. Eu j no contava! Comecei a odi-lo 43 tanto que um dia, no aguentando mais, mandei os guardas prend-lo e lanlo na arena contra um trcio. Ele teve a audcia de vencer o meu gladiador! Era demais! s minhas ordens, os soldados amarraram-no, depois de o terem despido, e arrastaram-no pela cidade antes de voltarem para, perante os meus olhos deliciados, o degolarem. O colosso do amor no vale nada diante do Imperador!... Confesso ter-me deixado arrebatar pelo meu mau carcter nesta ocorrncia, e temo que se lembrem mais deste lamentvel incidente do que de todo o bem que espalho minha volta! Fora estes pequenos detalhes, verdade que sempre cuidei da minha imagem junto do povo, preferindo a sua naturalidade dissimulao dos ricos. Macro censurava-mo. Desde a minha subida ao poder, vendo as minhas atitudes liberais, advertiu-me de que, fora de preferir o povo, me afastaria dos cavalei ros e dos senadores. Quantas vezes me citou ele o destino de certos reis da antiga Roma? Tarqunio, assassinado por se con fessar inimigo das antigas famlias; Srvio, degolado nas escadas do Senado por ter lisonjeado as classes inferiores... Macro tinha sempre a moral na ponta da lngua! Quanto mais tempo passava, menos eu suportava as suas reprimendas. Para ele, teria sido melhor calar-se. No aconselhvel contrariar os meus gostos e as minhas escolhas. Macro

  • suicidou-se, no lhe restava outra alternativa... E se os ricos me odeiam, pouco me importa, desde que me temam! 44 No tinha ainda festejado os meus vinte e cinco anos. Tibri morrera a 16 de Maro do ano 790 da fundao de Roma. Ainda estava de viglia ao seu corpo quando o Senado, por unanimidade, me confiou, a partir de 18 de Maro, o direito de comandar os exrcitos e governar as provncias. Evitando, assim, qualquer interregno do poder, tornava-me senhor do mundo. Os cidados do Imprio, numa s voz, aclamavam Caio Csar Augusto! Nascera um novo imperador, desejado pelos deuses e pelos homens, do qual muito se esperava. O testamento do meu av foi aberto pelos magistrados: eu era nomeado co-herdeiro dos seus bens, juntamente com Gmelo, o meu jovem primo de dezoito anos. A fortuna de Tibrio elevava-se a dois mil e setecentos milhes de sestrcios! O velho poupado conseguira amealhar tanto! Sem a minha interveno, o Senado anulou a clusula que institua a partilha. Isso tornou-me o homem mais rico do Imprio. Deserdado, Gmelo somente podia contar com a minha generosidade. Apreciei bastante a atitude do Senado. Dez dias mais tarde, cheguei a Roma, de luto por Tibrio Csar. Desta vez, com a unanimidade do povo e da aristocracia, confirmaram-me os poderes votados em 18 de Maro. Considerando-me demasiado jovem e ainda pouco merecedor, recusei o glorioso ttulo de Pai da Ptria que me queriam atribuir. Essa recusa era uma jogada poltica: no se deve receber demasiado duma s vez! O poder bastava-me. Imediatamente, as legies disseminadas pelo Imprio juraram-me fide lidade. Os civis fizeram o mesmo. Todos aderiam transmisso familiar do poder, desejada pelo divino Augusto. Eu exultava. A minha popularidade era imensa: eu era jovem, rico, nobre descendente de Jlio Csar, amado pelo exrcito; e era o nico sobrevivente que escapara ao sinistro Sejano! Isto fazia de mim, 45 aos olhos de todos, o Prncipe ideal to esperado; a mais feliz das pocas podia comear... Era preciso no perder a cabea! Habituado a viver com Tibrio, conhecia algumas das respon sabilidades que me esperavam e a dificuldade de governar bem. Mas no receava as consequncias desse acontecimento que abalava a minha vida. Sabia que milhares de rostos se voltavam para mim: ao pronunciar-se o meu nome, tantas esperanas que renasciam. Precisava de agir com prudncia, e no comear por decepcionar a opinio pblica. Aproveito para expressar aqui algumas reflexes sobre esse poder de que tanto se fala. Em Roma, isso uma coisa muito

  • confusa. Como explicar-mecom clareza? Perteno quinta gerao da mais ilustre famlia. os Jlios-Cludios. A este ttulo, a minha investidura pareceria legtima. Ora, este sistema monr quico, que subitamente me guindou ao primeiro lugar, no de modo algum oficialmente hereditrio. A poca dos reis da antiga Roma j no passa de uma lembrana, e m no seu conjunto. Vivemos numa repblica. Os cidados, reunidos em Assembleias, escolhem o seu Prncipe. Tibrio foi eleito desta forma. Tinha sido considerado como o homem mais capaz de servir o Imprio. Possua uma longa experincia de governo e dos exrcitos. Tinha dado as suas provas. Comigo, tudo mudava. Na corte, eu tinha vivido como convidado, afastado de toda a vida pblica, longe dos exrcitos desde a morte de Germnico, pouco ao corrente das subtilezas administrativas. Assim o quisera o meu av. Portanto, posso pensar hoje que a minha ascen so ao poder foi uma verdadeira revoluo na histria de Roma: nascera a monarquia imperial! Pois que, no tendo nenhuma experincia, apenas me escolheram por causa do meu nome e devido adopo de Tibrio. difcil recuar no tempo para 46 saber como Roma chegou a esta estranha repblica, em que um prncipe hereditrio partilha o governo com os seiscentos senadores eleitos entre os nobres. Onde acabam os poderes de Csar? Onde comeam os dos senadores? Nem eu prprio sei! O que certo que o meu poder considervel. Seno, repare-se: primeiro magistrado, sou o senhor dos exrcitos, o governador das provncias (excepto a frica e a sia), o chefe do povo (sendo tribuno vitalcio), o sacerdote de todos os colgios reli giosos importantes e Sumo Pontfice da religio oficial. Sou Prn cipe, Imperador e Pai da Ptria (aceitei este ttulo seis meses mais tarde!). Eis a fora de Csar! Mas o Senado tem tambm um papel importante: estabelece as leis, serve de tribunal, nomeia os magistrados, gere o tesouro pblico, responsvel pela frica e pela sia e dirige os assuntos externos. A sua necessidade evidente. O entendimento entre o Imperador e o Senado deveria, pois, ser total. Infelizmente, no o caso! Esses queridos nobres multiplicam as suas censuras para comigo. Temem. dizem em voz baixa, um golpe de Estado que me permitiria, com o apoio do exrcito, governar sem eles. rid culo! Senhores senadores, sejam sensatos! No mantive todos os vossos privilgios? Restringi algum dos vossos direitos? Frequentemente, administrais o Imprio sem a minha interven o. Portanto, de que vos podereis queixar? Somente ameao aqueles que. dentre vs, pretendem esquecer o seu juramento de fidelidade: no est nas vossas funes conspirar contra a minha vida!

  • Eu sou o Senhor. Vs o decidistes. Provei a minha competncia. Roma nunca foi to prspera e to respeitada. Nas fron teiras, os brbaros Germanos ou Partos esto calmos. A admi nistrao gira como uma roda de carro bem oleada. Ento? 47 Isto no vos chega? Vs quisestes fazer das nossas relaes uma questo pessoal. Censurais-me pecadilhos, j que no me podeis acusar de governar mal! grave, muito grave! Entrevejo o abismo, no qual um grupo de imbecis vai acabar por precipitar o Imprio... Que no me julguem o responsvel. Tenho os meus caprichos, o meu reles carcter, confesso-o. Mas, em quatro anos, revelei-me um Prncipe to perito, seno mais, como o foram os meus antepassados! Uma visita de Protgenes interrompeu-me. Diz-me que se admiram da minha ausncia. Alguns devem sonhar que uma doena mortal est prestes a levar-me! Que "sosseguem", pois o seu Prncipe est de boa sade e nunca esteve to feliz por viver! Logo que termine este pequeno memorial reaparecerei, para decepcionar aqueles que j me vem em cinzas! Ordenei a Protgenes para manter em segredo o que dito a este escravo. Que diga qualquer coisa, que ando a reflectir nalguns problemas do Oriente, por exemplo... No quero ver ningum. to raro estar sozinho que aprecio estes momentos e no quero encurtlos. Onde que eu ia? O fio dos meus pensamentos foi cortado por este Protgenes excessivamente zeloso. Sabem a que ponto o trabalho do Prncipe arrasante? Todos os dias tenho de estar com, pelo menos, uma centena de pessoas. H ainda o correio para redigir e enviar para todos os cantos deste imenso Imprio; controlar, com os tesoureiros, as finanas do Estado; sem contar com as nomeaes militares, a reunio do conselho privado, a visita ao Senado, a presidncia dos tribunais, os sacrifcios das festas religiosas, ler os orculos 48 nas entranhas fumegantes das vtimas, ouvir os confidentes, os amigos, ocupar-me da minha querida esposa, organizar os banquetes, encomendar os espectculos, aceitar os convites. E, incessantemente, brilhar aos olhos do mundo, sem revelar fadiga, nem aborrecimento... Sim, nunca mais acabaria de enumerar todos os deveres do meu cargo, que vo at dar, diariamente, o santo-e-senha dos guardas pretorianos! O meu amor por Roma e pelo mundo tal que assumo todas as minhas funes com a maior seriedade. Afirmar o contrrio mentir. E acusam-me, por vezes, de estar de mau humor, de ter brincadeiras maldosas? Todos aqueles que protestam que venham

  • um dia ocupar o meu lugar! Um nico dia bastar- lhes para verem a amplitude da minha tarefa. Em contrapartida, reservo-me o direito de rir quando me apetece e de ameaar os indignos: coisas sem importncia... Admiram-se do meu silncio? porque sem mim o Imprio parece-se com uma mquina endoidecida que tritura os seus utilizadores. No posso deixar a vida pblica por mais de dois dias, o preo que devo pagar ao Supremo Poder. Pago-o sem protestar. Agradeo aqui a todos aqueles que gostam de mim e me ajudam nesta pesada tarefa. Caio Csar no esquecer aqueles que deram e do provas da sua lealdade! Mas deixemos este assunto. Voltemos ao primeiro ano do meu reinado. Mal as cinzas de Tibrio foram colocadas no mausolu de Augusto, j eu voltava a partir para a Campnia. Da, sem tardar, corri para a ilha de Pandataria, para recolher as cinzas de minha me, a saudosa Agripina. Em seguida, fui ilha de Pontia para trazer a urna cinerria do meu irmo Nero. S me restava embarcar para navegar at embocadura do Tibre e regressar a Roma. Nessa altura, o 49 meu navio foi apanhado numa terrvel tempestade. Dava para acreditar que os deuses se tinham unido para nos matarem a todos! Donde vinha a sua irritao? Que fizera eu para merecer a sua clera? Os flancos da galera despedaavam-se sob o assalto das vagas; as velas esfarrapadas pendiam inteis. Enormes cargas de gua abatiam-se sobre a coberta do barco, arrastando por vezes um dos marinheiros aterrorizados. Os remadores, em pnico, j no seguravam os remos. Por cima de ns, nuvens to negras como a noite entrechocavam-se na violncia da tempestade. Os ventos, enlouquecidos, brin cavam com a galera imperial, ameaada pelo claro lvido dos raios do grande Jpiter! Nunca na minha vida tinha visto semelhantes frias! Espervamos, aterrorizados, que o mar nos engolisse. Os marinheiros oravam, cada um implorando aos deuses do seu pas. Em Roma, o povo, aflito por me saber em perigo, multiplicava os votos para o meu regresso. Os deuses eram considerados injustos por no respeitarem esta piedosa viagem... Finalmente, as vagas acalmaram-se e pudemos arribar a stia. Com o pavilho erguido, o maltratado barco subiu lentamente o Tibre sob o sol que de novo voltara. Roma acolheu-me com gritos entusisticos. Um grande cortejo funerrio con duziu as cinzas at ao mausolu do divino Augusto. No dia 50 seguinte, eu prprio coloquei as de Druso III junto s de Nero. Toda a minha famlia se encontrava finalmente reunida, na morte. Prestara homenagem s vtimas de Sejano, queles

  • que eu mais amara. Sempre tive esta preocupao com a famlia, sem a qual um Romano no digno deste nome. O meu respeito pelas tradi es foi apreciado; admiram-me sem reserva. Fiz ainda mais. O meu tio Cludio foi afastado da vida pblica por Tibrio. certo que um pouco idiota e pouco apresentvel com aquela baba que lhe escorre sem cessar dos lbios. Alm disso, tem o aspecto de um porquito assustado! Mas meu tio. Assim, nomeeio, desde 1 de Julho, cnsul-conselheiro, a mais alta dis tino que se pode ter. E para completar este sentido de fam lia, adoptei Gmelo. Eis os termos em que anunciei esta deci so ao meu conselho privado: "Por vontade de Caio Csar Augusto, aquele que meu primo pelo sangue e meu irmo pela afeio que lhe tenho, e de acordo com o desejo de Tibrio, Gmelo, partilhar comigo o poder imperial. Ainda uma criana e precisa de mestres. Mas, doravante, saber-se- que Gmelo depressa contribuir para me tornar menos pesada a fatigante tarefa da governao. Roma que se tranquilize: j no um s corpo, uma s alma, 51 que a guia. Caio Csar Augusto declara-se, a partir de hoje, o pai de Gmelo e proclama-o seu filho. " Ao ouvir-me, Gmelo chorou. Quando recebeu a toga viril, concedi-lhe imediatamente o ttulo de Prncipe da Juventude que os meus irmos tambm tinham usado. Uma nica sombra obscureceu esta poca: a minha deliciosa av Antnia morreu pouco depois de ter recebido de mim as honras que merecia e o prestigioso ttulo de Augusta. Jamais esquecerei as suas atenes. Eu segui em todas estas decises os ditames do meu corao. Era preciso fazer ainda mais para conquistar os Romanos. Assim, com toda a indulgncia, reabilitei os condenados exilados do reinado precedente. Neste ponto, podia desautorizar o meu av sem me pr em perigo. Todos os processos que estavam a decorrer foram abandonados. Lamentava bastante no ter ido salvar os condenados, cuja execuo estava prevista para o dia da minha subida ao poder. Estrangularam-nos, sem esperarem que os agraciasse: os soldados fazem, por vezes, demasiado bem o seu trabalho! Cadveres expostos nas escadarias das Gemnias, no primeiro dia do meu reinado: que sinistro pressgio!. Enfim - e esse foi o gesto mais espectacular -, queimei no Frum todos os processos comprometedores organizados durante os abusos de autoridade de Sejano. "Caio Csar Augusto queima isto para que, mesmo se um dia quiser censurar algum pelas desgraas da sua me e dos seus irmos, se veja impedido de o fazer e de punir!"

  • Estas palavras foram recebidas com prolongadas aclama es. Vendo as chamas devorar todos aqueles arquivos, devia haver na assistncia muitos suspiros de alvio. Para completar esta demonstrao de benevolncia, proibi qualquer expul so, mantendo nos seus lugares os nobres mais comprometidos. O Senado, directamente visado, respirava. Era certo que eu no perseguiria os cmplices de Sejano. Macro, o meu chefe da guarda pretoriana, inspirara-me nesse dia uma soberba comdia! Todos acreditaram na minha palavra. Porm, mentira. Esquecer a morte da minha me, de Nero, do meu estimado Druso? Perdoar? A ideia de Macro encantou-me: fazer crer no desaparecimento definitivo desses processos e guardar em segredo uma cpia, para poder atacar no momento oportuno, se isso fosse necessrio. Macro era um terrvel conselheiro! 53 Veremos que, mais tarde, foi preciso tornar a pegar nestes processos, provocando o terror que ainda hoje reina em Roma. Mas, nesse dia, eu conseguira ser adulado pelos nobres e pela plebe. Antes de festejar os meus vinte e cinco anos, eu detinha todos os poderes de Tibrio e, ainda por cima, com a confiana de todos! 54 Chegou a altura de fazr o meu retrato sem con cesses, antes de abordar algumas coisas ntimas. Sou grande. Se o meu corpo bem configurado, mais vigoroso do que mus culoso. Parece-me sempre que os meus ps so enormes; sem dvida a minha alcunha de Calgula que me leva a olhlos cons tantemente e a preocupar-me com o seu tamanho. O meu rosto nada tem de excepcional, verdade seja dita! De h uns anos para c que os meus olhos, demasiado enterrados nas suas rbitas, se ensombraram com imponentes olheiras, devidas fadiga. Apesar dos banquetes, o Imprio fez-me perder um pouco do peso que tinha: as minhas faces e tmporas cavaram-se. S se v a minha fronte saliente, segundo Sila, sinal de grande inteli gncia. Isso agrada-me, ainda que no d qualquer crdito a este gnero de cumprimentos. O que me entristece mais , na verdade, esta minha tendncia para a calvcie. Sim, cai-me o cabelo! Cremes e unguentos de nada servem... Aos vinte e nove anos j tenho o crnio calvo, o que no me favorece. Pelo contrrio, a minha tez clara encanta-me. No que as peles bronzeadas pelo sol -me desagradem, mas acho-as duma vulgaridade que de forma alguma conviria ao senhor do mundo. O que os que me rodeiam mais espiam o meu olhar, que, por vezes, diz mais do que as palavras. Nele, todos os meus pensamentos se revelam, como num livro: basta saber ler. Compenso este fsico pouco agradvel com a minha elegncia natural, com esta dis tino sempre constante cujo segredo

  • aprendi durante a minha adolescncia em Capri. Alm disso, o meu vontade nos dis cursos e discusses valem-me muita admirao. Deste retrato, poder-se- concluir que s o meu aspecto seria insuficiente para cativar os coraes. No possuo nem a graa andrgina de Mnester, nem os msculos de Studioso para 55 fazer vibrar as mulheres. Mas a nobreza do meu nome e o poder suplantam facilmente a fealdade dos meus traos. Tenho, em suma, o encanto da minha situao excepcional: quem ousaria resistir aos desejos do Imperador? Desposei, aos vinte e um anos, aconselhado por Tibrio, Jnia Cludia, filha do senador Silano. A nossa famlia no podia fazer casamento desigual: a minha esposa deveria ser rica e nobre... Atrs de mim, j tinha inmeras aventuras amorosas. Por pudor, calarei a minha iniciao nesta matria. Contudo, saiba-se que, quando cheguei a Capri, a minha surpresa foi enormeao ver em que orgias se metiam Tibrio e os seus cortesos. Nada era proibido. Mandavam-se vir dos mais longnquos pases peritos na arte do erotismo. O meu gosto pessoal no me levava a tais excessos. Apren dera com as minhas avs a ser reservado, e estes perfumes de luxria pouco me inebriavam. Cortejava as mulheres para no desagradar a Tibrio, que acharia estranho que um rapaz da minha idade no tivesse uma amante. Porm, secretamente, amava a minha jovem irm Drusila, preferindo de longe este amor casto s habituais fantasias. As minhas outras duas irms, Agripina II e Jlia, perseguiram-me durante algum tempo com as suas atenes. As minhas relaes incestuosas com elas no tiveram qualquer continuidade: eu apenas correspondera aos seus desejos, sua lubricidade. Alis, elas no me agradavam. Altivas, j ambiciosas, no se pareciam com Drusila, to reservada e sincera. No ano do meu casamento, Drusila desposou Lcio Cssio Longino: mais uma ideia do meu av! Fui pouco infiel a Jnia Cludia. Mas Macro tinha-se tornado meu amigo e tinha uma mulher soberba que me aconteceu desejar. Macro, sem hesitar, empurrou nia para os meus braos. 56 Que temperamento! nia queria sempre ser mais amada, como se eu e Macro no lhe bastssemos! Logo que se oferecesse a ocasio, ela arrastava-me para o leito conjugal, para que eu me prestasse ao seu frenesim. Macro, submisso, esperava-nos no quarto contguo. Nessa altura, no suspeitava das intenes de Macro que, ao prostituir a sua mulher, esperava receber o poder como pagamento. Mas a gravidez de Jnia

  • depressa ocupou os meus pensamentos: iria ser pai, ia nascer um herdeiro! Nada para Tibrio e para mim tinha mais importncia do que este acontecimento. Infelizmente, os deuses no quiseram o meu filho. A dedi cada Jnia morreu de parto. Trs anos depois do meu casamento. Estava vivo, sem herdeiro. Este golpe do destino fez-me sofrer muito. A minha querida Drusila foi a nica que soube consolar me. Tinha vinte e quatro anos e tantos anos minha frente... Deitado, escutava-a. Depois, chegando a noite, corria pelas ruas com os jovens nobres, procurando esquecer esta tragdia nos braos das mulheres fceis. Chegado a Roma, j Csar, procurei rapidamente uma outra esposa. Mas faltava-me tempo. Assim, para no dar azo s calnias, ostentava uma ligao com Pyrallis, a cortes mais clebre da cidade, cujo apetite pelo ouro era igual ao que tinha pelo sexo. Ela passeava ento pelas ruas, cheias de gente, o seu squito numeroso, exibindo as riquezas que Lhe davam os seus amantes. Na verdade, a minha predileco por ela depressa a embaraou: lisonjeada por ser a minha amante, sentia pena dos outros seus amantes, que no podia ter sem me desagradar. Por isso, aquilo no durou muito. Restitu-lhe a liberdade. Por essa poca, no suportando mais o marido de Drusila, fila divorciar se para a ter algum tempo junto de mim, s para mim. Nesse 57 mesmo ano de 791apareceu-me Vnus, sob os traos de Lvia Orestina! O rico Lcio Calprnio Piso tinha-me convidado para o seu

    casamento. Desposava Lvia. Amavam-se como s se ama na poesia. Quando vi aquela jovem mulher, fiquei sem voz. Pela primeira vez, o corao de Caio teria sido tocado pelas flechas do Amor? Que dizer da sua beleza? Aos meus olhos, Lvia era a mais bela mulher do Imprio, depois da minha irm Drusila, bem entendido. Bastou-me dizer uma palavra para separar este casal recm-casado: eu no suportava a ideia de este Piso, belo de resto, oder tocar uma tal flor! Piso no se ops minha vontade, e nem o podia. Soube recompens-lo com um dote de um milho de sestrcios. Nesse mesmo ano, ofereci a minha adorada irm a um rapaz, to sedutor quanto rico, chamado Marco Emlio Lpido. Mas se Lvia me encantara. eralhe necessrio tambm ser me, e rapidamente. Isto porque a minha irm Agripina II j tinha um filho, o pequeno Nero! Os deuses no foram, ainda desta vez, favorveis minha felicidade. O 10 de Junho privou-me da minha doce irm Drusila. O ser mais encantador do mundo partira, deixando-me s... Ao pronunciar o teu nome, Drusila, ainda hoje choro lgrimas

  • abundantes. Nunca tivera um tal desgosto. Quando me deram a terrvel notcia, pensei enlouquecer de dor. Andei s voltas no palcio imperial, chorando, injuriando os mdicos, afastando os meus parentes, quebrando tudo que estava ao meu alcance. Eu. Csar, possuindo todos os poderes, no pudera salvla! Ah, eusei! Jpiter e todos os deuses: eles tinham ousado tocar no nico corao que contava para mim! Que ia ser de mim sem ela? Como esquecer a sua ternura, a doura da sua voz, o seu

    amor por mim? Em sinal de luto, deixei crescer os cabelos e a 58 barba. Durante quinze dias, tudo parou em Roma. O luto geral foi decretado. Proibi os banquetes. Rir, banharse, jantar com os pais, a mulher ou os filhos tornaram-se crimes capitais durante este perodo. Pouco me importava! Deixei Roma, atormentado pelo mais vivo desespero, e s encontrei a calma na Siclia. A, decidi que Drusila seria divinizada. Foi assunto arrumado no dia 23 de Setembro. O senador Lvio Gmino jurou ver Drusila subir ao cu: que a maldio casse sobre ele e os seus filhos, 60 se mentia. O Senado decidiu, pois, que Drusila era divina, "Diva Drusila", e que, a partir de ento, seria organizado um culto em sua honra. Erigiu-se no Frum ma esttua de Vnus tendo os traos de minha irm. Era o mnimo que o Imperador podia fazer pela sua memria. Mas ele sabia que a sua solido comeara!... Eu sei que esta divinizao foi mal aceite. O povo no exprimira tal vontade. Nenhuma necessidade de Estado a impunha. Somente estava em causa o meu querer, que foi satisfeito. Roma sentiu isto como um abuso de poder. Todos o consideraram como o gesto dum tirano. Eu cheguei mesmo a endividar o meu tio Cludio, obrigando-o a pagar o excessivo direito de entrar no colgio sacerdotal da Diva Drusila. Cludio, apesar de imbe cil, guarda-me rancor por causa desta histria. Ao divinizar a minha irm, chocara as mentalidades. A minha dor escarnecia disso. Os remoques de Macro a este propsito desagradaram me: eles assinaram o seu fim! Hoje, espanto-me com todos aqueles zunzuns. Roma, que acolhe no seu seio as religies mais diversas, no suportava ver Drusila como deusa! L, onde se adora sis ou Baal livremente, onde os deuses do lar se associam com os da cidade, onde Zeus e Jpiter se unem sem dificuldade, recusase honrar a memria da minha irm. O grande Jlio Csar

  • divinizado, sim! Augusto, pois claro! O povo estava mesmo disposto a divinizar Tibrio que, enquanto fora vivo, detestara! Mas uma mulher, a simples irm do Imperador? No! Odeio tudo o que intolerante em matria religiosa. Aos dezoito anos, lembro-me de ter ouvido falar de um jovem galileu que tinha sido crucificado em lugar dum assassino. Esse Jesus de Nazar dizia-se o Messias, filho de Deus, rei dos Judeus. Em que que ele perturbava? O assassino, Barrabs, se a 61 memria no me falha, esse matara. Jesus nada fizera de repreensvel. Ento, porqu t-lo condenado morte? Eu quero ver os culpados crucificados. Mas Jesus, de que era culpado? Diz-se que a religio crist, nascida do seu martrio, comea a fazer discpulos um pouco por toda a parte. Os homens precisam de heris. Esse Jesus, com a sua morte, tornou-se um deles. Tambm se fala de um certo Paulo que se converteu e cuja palavra muito ouvida. Qual o perigo de tudo isto? Pr Jesus na cruz foi um lamentvel erro: a responsabilidade cabe a Tibrio, Pncio Pilatos e Herodes. Pelo meu lado, ordenei que Roma acolha os cristos tal como os outros. Baal, sis, Zeus, Jpiter ou esse deus de Jesus no tudo a mesma coisa? Quem pensaria em perseguir os homens por causa das suas crenas? As tradies romanas faziam do culto de Drusila um acto mpio. Era muito mais grave do que a presena na cidade dos deuses estrangeiros que cada um livre de venerar. Festejar Drusila Diva tornava-se, por ordem minha, uma obrigao da religio oficial. Eis o que chocou os cidados. Confesso a minha imprudncia, ditada pelo desgosto. Desta vez ainda, Macro tinha razo. Macro tinha sempre razo. Era insuportvel! demasiado tarde para voltar atrs. Aposto que o povo romano se habituar: ele habitua-se a tudo. Pouco depois, repudiei Lvia. Ela tinha sido testemunha da minha felicidade com Drusila, e essa felicidade acabara. E, alis, ela amava ainda Piso e no era muito dotada para os jogos amorosos. Dela esperava, em vo, uma criana. Eram razes sufi cientes para a entregar a Piso. Foi um perodo muito triste. Consolei-me com o meu cunhado Lpido, tambm ele muito marcado pela morte de Drusila. Lpido agradava-me. Ele tocara Drusila. Amando-o, era ainda a minha irm que eu amava. 62 O prfido Macro j no existia para me pregar a moral, o que eu aproveitava. Mas a obsesso de ter um herdeiro perseguia-me. Sonhava com isso durante a noite, nos braos de Lpido.

  • Falava disso sem cessar. Jantando com os aurigas ou com os gladiadores trcios da minha escola privada, evocava as minhas inquietaes por morrer sem descendente. Eutiques, Mnester, Apeles, Studioso, todos os meus humildes amigos procuravam uma esposa digna de mim. Finalmente, encontreia. Foi Llia Paulina, casada com Rgulo, governador da Macednia e da Acaia. Soube tambm ele ceder-me a sua mulher, cheio de compreenso. Depressa lamentei este capricho principesco. Llia no me satisfazia em nenhum aspecto. A sua beleza tornou-se intil. No foi preciso muito tempo para a considerar indesejvel. Ela no disfarava a sua ambio desmedida. Detesto as ambiciosas! Tambm acabei com este casamento e encontrei ento Milnia Cesnia. Soube, ao vla, que s ela correspondia aos meus desejos. Possua a doura de Drusila, a beleza de Lvia. Era rica e nobre, mas no o demonstrava. A sua discrio encantou-me. Alm disso, ela era me de trs filhas, pelo que nada tinha a temer pela sua fecundidade. Os deuses tinham-te escolhido, Milnia. Mesmo assim, o casamento parecia-me precipitado: tinha tido demasiados problemas nesta matria. Tomei-te, por tanto, como amante. Vivamos, ento, momentos difceis, fora de Roma, no seio das legies da Germnia. Os problemas pol ticos afastavam-me de ti, mas eu via com alegria o teu ventre arredondarse. Quando puseste no mundo a minha pequena Dru sila II, enchi-me de felicidade. Pude desposarte tranquilamente. Foi o que fiz no ano passado, em Lio. Doravante, Milnia, tu sers para toda a vida a esposa do Prncipe. S em ti deposito 63 todas as minhas esperanas de ter um filho, a quem chamaremos Druso, em memria do meu irmo, e que ser o digno her deiro de Caio Csar. Mas perdoa-me, Milnia, daquilo que vou ditar agora: se tiver de falar do verdadeiro amor, devo confessar s o ter experimentado por Drusila. E a minha querida irm est morta. Ainda a choro. 64 Subitamente, o Imperador adoeceu!.. Em plena felicidade, no meio do coro unssono dos Romanos que se feli citavam com a minha chegada ao poder, os deuses latiram. Os deuses so imprevisveis. Aos seus olhos, os homens no passam de miserveis joguetes. Prncipe adulado desde Maro, governando com o apoio do Senado e a simpatia do povo, como poderia eu prever uma tal machadada do destino? No tinha eu tido desgraas suficientes? Os deuses j me tinham privado de um pai. de uma me, dos meus dois irmos, da minha esposa grvida. sem contar com os outros membros da minha famlia

  • desaparecidos demasiado cedo: queriam eles tambm tirar-me a vida? Quando se soube, em Outubro, da notcia da minha permanncia na cama, foi a consternao geral. O Imprio, num s lamento, chorava a minha sorte. Fizeram-se por toda a parte votos e sacrifcios pelo meu restabelecimento. Da Grcia, Glia, Egipto e Sria acorriam os mensageiros inquietos, transtornados. O povo, sobretudo, estava abatido. Tinha acreditado tanto no meu pai Germnico, tinha esperado tanto a sua coroao. Tinham envenenado o meu pai. Eu chegara a Roma. Novamente as esperanas iam, desta vez, para Caio Csar. E eis que, encerrado num quarto, longe do barulho, rodeado pelos melhores mdicos, Csar lutava contra a morte! O povo, lembrando-se do meu pai, acreditou num envenenamento. As ruas de Roma reclamaram os culpados. Denunciaram-se senadores, cavaleiros, antigos amigos de Sejano de quem se suspeitava. Como o povo est sempre pronto a acusar! Macro deu ordem aos guardas pretorianos para vigiarem a multido, prenderem os cabecilhas mais exaltados. A plebe pode estar sujeita a perigosas frias; era melhor prevenir qualquer eventualidade. Alguns nobres j no se atreviam a sair sem escolta armada para se deslocarem 65 cria onde se rene o Senado. Roma, o mundo, revoltavam-se contra a injustia dos deuses e dos eventuais assassinos. Havia quem oferecesse a sua vida para salvar a minha. Durante as festas, no perodo das celebraes religiosas, no Senado, havia uma s preocupao: a sade do Prncipe! Eu, recolhido no quarto mais calmo da residncia imperial, na obscuridade, aguardava a deciso dos deuses. Quase que os ouvia insultarem-se por minha causa. Marte parecia furioso i e Vulcano tambm (ele, que fez tremer os montes da Sic1ia para mostrar a sua reprovao). Outros queriam a minha perdio, exigindo a minha vida a Jpiter. Que estranhos sonhos tive ento! Poucas mais recordaes tenho desta situao que durou mais de um ms. Homens falavam em voz baixa, eram os meus mdicos, que j no reconhecia. Via mal. Tudo me parecia impreciso, como se estivesse a ver atravs das guas turvas do Tibre. Mas sentia as mos da querida Drusila quando ela as pousava na minha testa escaldante e enxugava a baba da minha boca! Distinguia tambm a voz de Macro. Debruado sobre mim, falava-me longamente dos problemas da governao, como se eu no estivesse doente! Macro, o excelente conselheiro, Macro, o bilioso, a vbora escondida na boca do amigo! Tu aproveitaste a minha prostrao para verter no meu corao terrveis venenos! Sei que governaste com segurana e fidelidade durante a minha ausncia. Nada haveria a censurar-

  • te se no fossem as tuas mentiras acerca de Gmelo. Voltarei a este assunto. Apesar da minha compleio desportiva, nunca tive uma sade muito slida. Crises epilpticas mancharam a minha juven tude. Presentemente, tenho muito menos. um presente de famlia, que nos vem do grande Jlio Csar! Sou um ansioso, 67 um hipernervoso. Receio as noites sem sono, essas noites interminveis que me deixam de manh to esgotado. Tenho por vezes tremores inexplicveis, cleras sbitas e sem motivo, acessos imprevisveis de fraqueza (que -me fazem titubear, fraquejar sem chegar ao desmaio). Acontece-me tambm querer esconder-me do mundo, fugir dos olhares de todos, preso de medonhas angstias. Tudo isto deve vir da minha atribulada juventude... A minha vida acompanhada por estes males, j me habituei a eles. Mas a doena que me prostrou nessa poca no se relacionava com estas perturbaes. Os mdicos confirmaram-mo. Igualmente Drusila, que me conhecia to bem. Todos me 68 julgaram envenenado, mesmo Sila. No entanto, nenhum escravo morrera ao provar os meus pratos, as minhas bebidas... E eu no sofria. Os homens da cincia estavam perplexos, impotentes. Invocaram-se as Sombras, recorreuse aos adivinhos. Em vo. As profetisas de ncio afirmaram que eu no estava doente, que este estado passaria. O meu mal era inexplicvel. Ainda o . Nada veio esclarecer-meacerca deste assunto. Imobilizado, to fatigado que no me podia mexer, mudo, esperava a morte ou a cura. O combate j no me interessava. No alm, os deuses discutiam, s eles podiam decidir. E decidiram-se. Curei-me. O estranho mal desapareceu tal como tinha 69 vindo, repentinamente. Numa manh, levanteime, para grande surpresa dos mdicos que, vencidos no seu saber. j nada esperavam. Pareceu-me sair dum prolongado sonho. Alis, estava muito repousado, como se tivesse dormido muito tempo. Pedi imediatamente a minha tnica, as sandlias, o manto pr puro e exigi que me conduzissem imediatamente ao Senado. Drusila chorava de alegria. De imediato, correu a anunciar a feliz notcia. Atravessei Roma debaixo de aclamaes. O Imp rio estava salvo! A minha palidez era o ltimo sinal visvel da minha indisposio. O Senado, reunido em assembleia extraordinria, acolheu-me solicitamente. A sua surpresa foi grande ao ouvir o meu discurso: "Caio Csar Augusto sada os Senadores aqui presentes e

  • aqueles que esto ausentes de Roma, ao servio do Imprio. Como vedes, os deuses concederam a cura a Csar: que eles sejam louvados com os sacrifcios que se impem. Alegrai-vos, o vosso Prncipe recuperou a sade! Ele pretende felicitar-vos pelo vosso acolhimento, pela expresso sincera da vossa alegria e pelo modo como governastes durante estes tristes dias. Graas a vs, o mundo no sofreu qualquer dano e nada lhe faltou. No entanto, no certo que existe entre vs quem muito cedo tenha desesperado? O Prncipe soube coisas muito desagradveis. Partidrios ter-se-iam agrupado volta de Gmelo, primo e filho de Caio? Gmelo, imperador? O Prncipe estaria morto para se fomentarem tais pensamentos? Haveis de convir que esta candidatura era prematura, muito imprudente! Dever o Imperador repetir incessantemente esta evidncia de que no h seno um senhor e chama-se Caio Csar Augusto? O filho de Germnico, na sua bondade, no exigir os nomes. Os culpados compreenderam o seu erro. Mas de urgncia extrema que 70 qualquer risco desta natureza desaparea! Exige-o a razo de Estado. Vs condenastes o meu primo, que a responsabilidade da sua morte caia sobre vs!" Com estas palavras, abandonei o Senado. Se estava feliz devido minha cura, sentia-me furioso por no final de contas ter de afastar o meu primo e filho adoptivo! Seria a minha vez de atacar a nossa famlia? Hesitava. Tive com Macro uma longa discusso. Macro! Foste tu que me sugeriste a traio de Gmelo. Querias o seu desaparecimento e soubeste aproveitar a minha fraqueza para o conseguir. Eu, que tanto sofrera com a morte de minha me e a dos meus irmos, devia condenar o meu primo! Fizeste-me sobre ele juzos odiosos: cometi o erro de os ouvir sem dizer palavra. Afirmavas que um perigoso partido o rodeava. Mostraste-o minha mesa recusando pratos, utilizando contravenenos, sem dvida devido s tuas prprias recomendaes! "O qu?", disse eu ao meu primo em plena refeio, "pro curas anular o Csar?" Gmelo olhou-me sem compreender esta sbita fria. Era um frgil rapaz de dezoito anos, gostava da vida e era to respeitoso. Foi preciso toda a persuaso de Macro para o denegrir aos meus olhos. Deveria, ento, ter protegido o meu primo e condenarte a ti, Macro, o prfido, mais negro que Sejano! Tu no suportavas obstculos entre ti e Csar. Que orgulho! Pensava que eras ainda meu amigo e no servias seno as tuas ambies. Tivesse eu desconfiado mais cedo de ti e Gmelo ainda viveria! Mas tu apressavas-me para acabar com ele. Os meus outros conselheiros, incluindo Helico,

  • recusaram-se a dar-me a sua opinio, temendo as represlias que poderiam seguirse. Fui obrigado a dar a ordem que Macro aguardava... 71 Um tribuno e um centurio partiram imediatamente para casa de Gmelo. Era-lhes proibido agredi-lo: nenhum descendente do imperador pode morrer pela mo de um estranho. Perdoem-me estes detalhes que os militares me comunicaram logo que regressaram. O rapaz, na sua inocncia, no tinha nenhuma ideia do modo como um homem se pode suicidar! As armas nunca foram a sua especialidade. Sem querer escapar ao seu destino, no exigindo qualquer explicao sobre este sbito desfavor de Csar e querendo obedecer, pediu a um soldado que o degolasse. Perante a recusa do pretoriano, pegou no punhal, inda gou qual o melhor stio para o cravar e ps fim aos seus dias. Morreu com grande coragem, protestando a sua fidelidade a Caio Csar Augusto, seu pai! Teve direito a funerais dignos da sua posio e repousa no mausolu de Augusto. Vivo com o peso deste suicdio forado, que esmaga o meu corao. Mais tarde, Macro foi juntar-se a Sejano, no reino das Sombras, mas isso no me devolveu Gmelo. Este acto de impiedade familiar ia manchar o meu reinado para sempre! Sangue de um inocente tinha sido derramado. Ningum protestou. O nome de meu primo nunca mais foi pronunciado. Mas todos, em silncio, me julgaram. Se acuso Tibrio dos crimes de Sejano, tambm me devo acusar dos crimes de Macro, sobretudo deste, o mais terrvel erro poltico que cometi! No sinto a mesma coisa por Silano, o pai da minha defunta esposa. Esse teve a sorte que merecia! No tentara criar a desordem quando eu estava longe de Roma, procura das cinzas familiares? Mas Macro fez-me vrios relatos detalhados sobre as manobras subversivas daquele que se intitulava ainda meu sogro. Durante a minha doena, gabara-se desta situao, exi gindo homenagens imerecidas. Que imbecil! Morta a sua filha, 72 esquecia-se de que j no me era absolutamente nada? Que esperava este sapo? O poder? De dia para dia evidenciava-se a sua arrogncia. Fatigado, alguns dias aps o meu regresso vida pblica, convidei-o a cortar a garganta com uma lmina. O que ele fez, evitando uma condenao oficial que teria mergulhado a sua famlia na ignomnia. Deste modo, aprendeu que no se deve desagradar a Csar! O Senado soube da sua morte sem vacilar. A razo d