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    Presena em cena

    Alexandre Pieroni CaladoPrograma de Ps-Graduao em Artes Cnicas USPDoutorando Formao do Artista Teatral Or. Antnio JanuzelliBolsista da F.C.T. / M.C.T.E.S. (Portugal)Fazedor e pesquisador de teatro

    Palavras-chave: presena, ator, Antnio Damsio, Mihaly Csikszentmihalyi

    Apresentao.Maro de 2010, teatro estdio da cole Suprieur de Thtre da

    Universit du Quebec Montral (EST/UQAM). Cerca das 14h estou a comear a

    apresentao do trabalho cnico Tte de Mduse,no qual exploro tenses entre o jogo ao

    vivo e a mediao tecnolgica da recepo. Apago a luz: escorrego por cada gesto

    anteriormente esboado, deslizo saboreando cada palavra planeada, mergulho nas imagens

    interiores sem perder o contacto com o banco onde me sento, operando o teclado docomputador: o espao comea a abrir-se minha volta, parece que a minha ateno

    engloba o pblico e cada pequeno movimento dentro da sala, relaxo entusiasmado. Mas no

    calor da atuao a pequena cmara de vdeo desconecta: os segundos explodem de

    detalhes, quase sem pensar integro o imprevisto na respirao do trabalho, sem que a

    ansiedade se sobreponha a uma estranha lucidez: estou na zona. Cai a cortina, cinquenta

    minutos se passaram, uma fala e acabou: j? Enquanto na coxia troco de roupa, certos

    instantes retornam mente, pouco a pouco volto a mim: senti-me presente em cena.

    Apesar de eivada de aporias, a noo de presena em cena resiste nos discursos

    dos fazedores de teatro e revela um carter operatrio nos campos da direo, da prtica e

    da formao de atores. Pessoalmente, os sentimentos que como ator associo s

    experincias de me sentir presente em cena encontram-se no mago das motivaes que

    me tm mantido na atividade teatral: alegria, desfrute, realizao pessoal.

    Neste texto procuro pensar esta experincia subjetiva com auxlio dos conceitos

    de fluxo, do psiclogo Mihaly Csikszentmihalyi, e de sentimento de si, proposto pelo

    neurobilogo Antnio Damsio. Sustento que estes podem contribuir para entender o

    sentimento de presena experimentado em cena pelos atores e alguns dos processos

    psicobiofsicos envolvidos. Mantenho ainda que os referidos conceitos podem contribuir parailuminar o paradoxo que atravessa esse sentimento e ao qual aludi no final do pargrafo

    anterior: sentir-se presente envolve um sentimento de ausncia. Por ltimo, considerando

    experincias pessoais e o rebatimento do modelo proposto no plano pragmtico, identifico

    determinadas faculdades que podem potenciar experincias de sentimento de presena.

    Fluxo. Csikszentmihalyi elabora o conceito de fluxo a partir de um modelo da

    conscincia fenomenolgico baseado na teoria da informao; para ele, a conscincia

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    informao intencionalmente ordenada (CSIKSZENTMIHALYI, 2002: 50) e depende em

    larga medida da ateno, que seleciona a informao relevante entre aquela disponvel

    (CSIKSZENTMIHALYI, 2002: 56). Ele entende o fluxo como um estado da conscincia

    associado a experincias timas, situaes em que a ateno pode ser aplicada livremente

    para se atingirem os objetivos de cada um (CSIKSZENTMIHALYI, 2002: 67). O psiclogo

    parte de discursos de diversos peritos em atividades preferidas (artistas, atletas, msicos,

    cirurgies, jogadores de xadrez) analisando como estes descrevem suas experincias

    timas. A partir dessas descries, o autor define fluxo como o estado em que as

    pessoas esto to embrenhadas numa atividade que nada mais parece importar; a prpria

    experincia to agradvel que as pessoas a realizam pela simples razo de a realizar,

    mesmo que por um preo elevado (CSIKSZENTMIHALYI, 2002: 21). O psiclogo destaca a

    atuao teatral entre as atividades que reconhecidamente podem propiciar esse estado, mas

    sublinha que as descries das experincias de fluxo apresentam traos semelhantes,

    mesmo quando consideradas atividades muito diferentes e os mais dspares continentes. Eisas caractersticas comuns s diversas descries por ele analisadas: (a) geralmente

    enfrentamos tarefas que podemos realizar; (b) somos capazes de nos concentrar no que

    estamos a fazer; (c) esta concentrao possvel porque temos objetivos claros, e, (d)

    porque temos retorno imediato das nossas aes; (e) agimos com envolvimento profundo e

    sem esforo; (f) temos uma sensao de controle sobre nossas aes; (g) desaparece nossa

    preocupao com o eu; (h) altera-se nossa sensao da passagem do tempo

    (CSIKSZENTMIHALYI, 2002: 78).

    Ser interessante confrontar esta lista com as descries que os artistas da cena

    fazem de suas experincias de presena; pessoalmente, revejo-me na maioria, seno na

    totalidade dos aspectos mencionados. interessante que quando procuramos pensar o

    estado fluxo com a noo de sentimento de presena nos deparamos com um paradoxo:

    sentimo-nos presentes a ns mesmos, pois temos uma sensao de controle e somos

    capazes de agir face ao inesperado, ao mesmo tempo que nos sentimos ausentes de ns

    mesmos, uma vez que se suspende nossa preocupao com o eu e se transforma a

    percepo da passagem do tempo.

    Sentimento de si. Pretendo explorar esse paradoxo da coexistncia de

    sentimentos de presena e de ausncia considerando o conceito de sentimento de si,proposto por Antnio Damsio. O neurobilogo constri um modelo da conscincia baseado

    nas neurocincias cognitivas (DAMSIO, 2008: 32), integrando noes como evoluo,

    omeostasia e organismo (DAMSIO, 2008: 61). Desenvolvendo a hiptese dos marcadores

    somticos apresentada em O Erro de Descartes (2005),o autor sustenta que a conscincia

    emerge das representaes neurais e mentais das modificaes dos estados do corpo

    causadas pela interao com objetos, entendidos tanto como realidades exteriores ao

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    organismo, quanto como objetos mentais. No seu modelo articulam-se trs ordens de

    fenmenos interdependentes: a produo de um conjunto de esquemas neuronais

    interconectados e temporalmente coerente que representa a cada instante os estados do

    organismo, numa esfera no consciente (o proto-si); a produo de esquemas neuronais de

    segunda ordem que ocorre cada vez que um objeto modifica o proto-si, o que atinge a

    conscincia e d azo ao sentimento de si (o si-nuclear); e, a emergncia de um sentido de

    identidade e de agncia decorrente das mltiplas experincias registadas na memria ou

    antecipadas pelo si-nuclear, produzindo uma conscincia alargada no tempo e no espao (o

    si-autobiogrfico) (DAMSIO, 2008: 206). Os dois modelos da conscincia so compatveis,

    se considerarmos que a ateno a que Csikszentmihalyi se refere para definir a conscincia

    aquela que Damsio entende por ateno dirigida (DAMSIO, 2008: 114-116). Quando

    atentamos definio de eu proposta por Csikszentmihalyi enquanto tudo aquilo que

    passou pela conscincia: todas as memrias, aes, prazeres e dores

    (CSIKSZENTMIHALYI, 2002: 60), a diviso entre dois tipos de conscincia proposta porDamsio revela o seu poder heurstico na iluminao do paradoxo de estar presente e

    ausente a si que o ator experimenta. Articulando ento os dois modelos e os conceitos que

    neles destaquei, podemos pensar que o sentimento de fluxo associado experincia de

    presena em cena tende a ocorrer quando estamos sensveis s mudanas do si-

    nucleare quando lanamos para um plano de fundo da ateno o si-autobiogrfico.

    A prestao.O modelo que propus para compreender o sentimento de presena

    em cena identifica este sentimento com o estado de fluxo e, baseando-se nos traos que o

    caracterizam, sublinha o papel central da conscincia do si-nuclear para a sua ocorrncia.

    Esta interpretao parece concordar com noes que se propagam entre os fazedores de

    teatro e que versam sobre a necessidade do ator estar implicado no aqui e agora do jogo e

    de suspender os seus juzos sobre o desempenho no momento da apresentao.

    Considerando este modelo e a minha experincia como ator, penso pertinente distinguir trs

    faculdades particularmente significativas para as prticas de atuao teatral que valorizam a

    experincia do sentimento de presena em cena: (1) a percepo do pulso do si-nuclear,

    entendida como a sensibilidade s modificaes permanentes do meio interno e das

    vsceras, da musculatura esqueltica e o tacto fino; (2) a ateno concentrada nas

    relaes com os objetos,estes ltimos compreendidos num sentido amplo que engloba oespao, os comparsas e objetos mentais; (3) o hbil investimento em cena,pensado como

    equilbrio entre prazer, elaborao e significado pessoal no jogo de atuao.

    Valer a pena demorarmo-nos sobre as prticas concretas que podero contribuir

    para desenvolver estas faculdades, se estamos interessados em explorar o potencial

    operatrio deste modelo para a discusso pedaggica.

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    No teatro estdio da EST/UQAM, depois de apresentar Tte de Mduse,

    participei numa conversa com o pblico na qual discutimos o modelo de compreenso do

    sentimento de presena em cena que acabo de expor, bem como as faculdades que apontei

    como revelando potencial de intensificao desse sentimento. Uma atriz que se encontrava

    entre a assistncia observou quanto as faculdades que indicara diferiam de certas vises do

    jogo do ator que privilegiam a explorao da memria pessoal. No h aqui espao para

    desenvolver o meu ponto de vista sobre o acerto e a incorreo desse julgamento; gostaria

    antes de terminar sublinhando que este texto sobre teoria do ator se inscreve numa tradio

    de reflexes sobre a atuao que procura considerar os dados das cincias da vida e da

    mente, da qual temos j uma manifestao evidente em O Paradoxo Sobre o Comediante,

    por Denis Diderot.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    CSIKSZENTMIHALYI, Mihaly, 2002 [1990], Fluir, Lisboa: Relgio Dgua.

    DAMSIO, Antnio, 2005, O Erro de Descartes, Lisboa: Publicaes Europa-Amrica.

    DAMSIO, Antnio, 2008 [1999], O Sentimento de Si, Lisboa: Publicaes Europa-Amrica,16 ed.