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Distrbio Eletrnico

ndice

IntroduoA condio virtual1

captulo 1Poder nmade e resistncia cultural11

captulo 2 Vdeo e resistncia: contra documentrios35

captulo 3O teatro recombinante e a matriz performativa57

captulo 4Plgio utpico, hipertextualidade e produo cultural eletrnica81

captulo 5Fragmentos sobre o problema do tempo108

captulo 6Paradoxos e contradies124

IntroduoA condio virtual

As regras da resistncia cultural e poltica mudaram radicalmente. A revoluo tecnolgica causada pelo rpido desenvolvimento do computador e do vdeo criou uma nova geografia das relaes de poder no Primeiro Mundo. Uma nova ordem que h cerca de vinte anos s poderia existir na imaginao: as pessoas esto reduzidas a dados, a vigilncia ocorre em escala global, as mentes esto dissolvidas na realidade da tela do monitor. Surge um poder autoritrio que floresce na ausncia. A nova geografia uma geografia virtual, e o ncleo da resistncia poltica e cultural deve se afirmar neste espao eletrnico. O Ocidente est se preparando para este momento h dois mil e quinhentos anos. Sempre houve uma ideia de virtualidade, quer baseada no misticismo, quer no pensamento analtico abstrato, ou ainda na fantasia romntica. Todas estas abordagens deram forma e manipularam mundos invisveis, acessveis apenas por meio da imaginao, e em alguns casos estes modelos tm recebido privilgio ontolgico. Os conceitos e ideologias contemporneos do virtual so possveis devido a estes sistemas de pensamento preexistentes terem se expandido a partir da imaginao e terem se manifestado no desenvolvimento e na compreenso da tecnologia. O trabalho a seguir, embora resumido, extrai sinais do virtual do passado a partir de narrativas histricas e filosficas. Estes sinais mostram relaes intertextuais entre sistemas de pensamento aparentemente dispares que agora foram recombinados em um corpo de "conhecimento" funcional sob o signo da tecnologia.

I 385 A.C.

Este arteso capaz de fazer no apenas todo tipo de moblia como tambm todas as plantas que crescem da terra, todos os animais incluindo ele mesmo e, alm disso, a terra e o firmamento e os deuses, todas as coisas do cu e todas as coisas do Hades sob a terra.

Este programa capaz de fazer no apenas todo tipo de moblia como tambm todas as plantas que crescem da terra, todos os animais, a si mesmo, e, alm disso, a terra e firmamento e os deuses, todas as coisas do cu e todas as coisas do Hades sob a terra.

II 60 A.C.

No existe qualquer objeto visvel que consista de tomos de apenas um tipo. Tudo se compe de uma mistura de elementos. O maior ou menor nmero de qualidades e poderes de uma coisa so demonstraes da maior ou menor variedade nas formas dos tomos que a compem.

No existe qualquer objeto visvel que consista de pixeis de apenas um tipo. Tudo uma mistura recombinante de representaes. O maior ou menor nmero de qualidades e poderes de uma imagem atesta a maior ou menor variedade nas formas dos pixels que a compem.

III 250 A.C.

Formemos, ento, uma imagem mental de nosso universo: cada membro dever continuar a ser o que , distintamente parte. Tudo deve formar, na medida do possvel, uma unidade completa tal que o que entrar no campo visual, digamos o orbe externo do firmamento, trar instantaneamente com ela a viso, naquele plano, do sol e de todas as estrelas com a terra e o mar e todas as coisas vivas, como se expostas sobre um globo transparente.

Formemos, ento, uma representao virtual do nosso universo: cada membro dever continuar a ser o que e, distintamente parte. Tudo deve formar na medida do possvel, uma unidade completa tal que o que entrar no campo visual, digamos o orbe externo do firmamento, trar instantaneamente com ela a viso, naquele plano, do Sol e de todas as estrelas com a terra e o mar e todas as coisas vivas, como se expostas sobre um globo transparente.

IV 413 A.C.

H muitos rprobos misturados com os virtuosos, e ambos esto reunidos pelo evangelho como numa rede de arrasto. E neste mundo, como em um mar, todos nadam, Sem distino, na rede.

H muitos rprobos misturados com os virtuosos, e ambos esto reunidos no banco de dados como se em uma rede de arbusto. E neste mundo, como em um mor, todos nadam, sem distino, na rede eletrnico.

V 1259

H dois tipos de contato, o de quantidade, e o de poder. Por meio do primeiro um corpo pode ser tocado apenas por outro corpo. Por meio do segundo, um corpo pode ser tocado por uma realidade incorprea, que move tal corpo.

H dois tipos de contato, o de superfcie e o de poder. Por meio do primeiro um corpo pode ser tocado apenas por outro corpo. Por meio do segundo um corpo poder ser tocado por uma realidade incorprea, que move tal corpo.

VI 1321

Ento aqui na terra, em um raio de luz que divide o ar dentro da sombra acolhedora que as artes e ofcios do homem inventam, nossa viso mortal observa partculas brilhantes de matria percorrendo para cima e para baixo, de vis, arremessando-se ou redemoinhando-se, em trajetrias mais longas e mais curtas; mas sempre em mudana.

Ento aqui na tela, em um raio de luz que divide o ar dentro da sombra acolhedora que as artes e ofcios do homem inventam, nossa viso mortal observa partculas brilhantes de matria percorrendo para Cima e para baixo, de vis, arremessando-se ou redemoinhando-se, em trajetrias mais longas e mais curtas, mas sempre em mudana.

captulo 1Poder nmade e resistncia cultural

O termo que melhor descreve a condio social de hoje liquefao. OS outrora inquestionveis marcos de estabilidade, como Deus ou a Natureza, caram no buraco negro do ceticismo, dissolvendo a identificao fixa de sujeito ou objeto. O significado passa, simultaneamente, por um processo de proliferao e condensao. Ao mesmo tempo vagando, resvalando, lanando-se nas antinomias do apocalipse e da utopia. A Sede do poder e o local da resistncia repousa em uma zona ambgua, sem fronteiras. Como poderia ser diferente, quando os sinais do poder fluem em transio entre a dinmica nmade e estruturas sedentrias entre a hipervelocidade e a hiperinrcia? Talvez seja utpico iniciarmos com a afirmao de que a resistncia comea (e termina?) com um repudio nietzschiano ao jugo da catatonia inspirada pela condio ps-moderna. Contudo a natureza disruptiva da conscincia nos deixa poucas opes. Movimentar-se no tanque de poder liquido no precisa ser necessariamente um ato de aquiescncia e cumplicidade. A despeito de sua situao difcil, o ativista poltico e o ativista cultural (anacronicamente conhecido como artista) ainda podem produzir distrbios. Embora tal movimento possa assemelhar-se mais aos gestos de quem se afoga, e no esteja claro exatamente o que est sendo perturbado, nesta situao o lance do dado ps-moderno favorece o ato de distrbio. Afinal, h outra possibilidade? por este motivo que as estratgias anteriores de "subverso" (uma palavra que no discurso critico possui tanto significado quanto a palavra "comunidade"), ou de ataque camuflado, se viram envolvidas em uma nuvem de suspeitas. Para saber o que subverter seria preciso que as foras de opresso fossem estveis e pudessem ser identificadas e separadas uma hiptese demasiado fantstica em uma era de dialticas em runas. Saber como subverter pressupe uma compreenso da oposio que existe no domnio da certeza, ou (pelo menos) no da alta probabilidade. A velocidade com que as estratgias de subverso so cooptadas indica que a adaptabilidade do poder muitas vezes subestimada. Contudo, deve-se dar crdito aos que resistem, na medida em que a ao ou o produto subversivo no seja to rapidamente cooptado e reinventado pela esttica burguesa da eficincia quanto esta gostaria.

O peculiar entrelaamento do cnico e do utpico no conceito de distrbio como um risco necessrio uma heresia para aqueles que ainda so fiis s narrativas do sculo XIX nas quais os mecanismos de opresso e a(s) classe(s) opressora(s), assim como as tticas necessrias para sobrepuja-los, esto claramente identificados. Afinal, a aposta est profundamente ligada s apologias ao cristianismo, e a tentativa de apropriao da retrica e dos modelos racionalistas para persuadir os perdidos a voltarem escatologia tradicional. Um ex-cartesiano como Pascal ou um ex-revolucionrio como Dostoivski so tpicos desse mecanismo. No entanto, devemos compreender que a promessa de um futuro melhor, seja secular ou espiritual, sempre pressups a economia da aposta. A ligao entre a histria e a necessidade torna-se cinicamente cmica quando olhamos para trs sobre a trilha de escombros polticos e culturais de revolues e de quase-revolues. As revolues francesas de 1789 a 1968 nunca detiveram a mar obscena da mercadoria (elas parecem at ter ajudado a facilitar-lhe o caminho), enquanto que as revolues russa e cubana apenas substituram a mercadoria pelo anacronismo totalizante da burocracia. Na melhor das hipteses, tudo o que resultou dessas rupturas foi uma estrutura que serve a uma reviso nostlgica de momentos reconstitudos de autonomia temporria. O produtor cultural no teve melhor sucesso. Mallarm introduziu o conceito de aposta em Um Lance de Dados1Un Coup de ds jamais n'abolira le hasard, poema, (N.E.: Nota da edio brasileira.)

, e, talvez involuntariamente, libertou a imaginao da casamata do transcendentalismo que ele esperava defender, assim como libertou o artista do mito do sujeito potico. ( razovel acreditar que o Marqus de Sadej havia realizado estas tarefas muito antes). Duchamp (o ataque ao essencialismo2Essencialismo: posio filosfica que considera fundamental a essncia, e que afirma que a existncia tem sua razo de ser naquela. (N.E.)

), Cabaret Voltaire3Fundado por Hugo Ball em 1916, o Cabaret Voltaire foi o bero dadasta de Zurique. (N.E.)

(a metodologia da produo aleatria) e o dadasmo berlinense (o desaparecimento da arte na ao poltica), todos agitaram as guas culturais, e no entanto abriram uma das portas culturais para o ressurgimento do transcendentalismo na fase final do surrealismo. Como reao aos trs acima, um canal tambm foi aberto para a dominao formalista (ainda hoje o demnio do texto cultural) que aprisionou o objeto cultural no mercado de luxo do capitalismo tardio. No entanto, a aposta destes precursores do distrbio reinjetou no sonho da autonomia a anfetamina da esperana, que d aos produtores culturais e ativistas contemporneos a energia para aproximarem-se da mesa de jogo eletrnica e lanarem os dados novamente.

Em As Guerras Prsicas, Herdoto descreve um povo temido conhecido como os citas, que tinham uma sociedade agrcola-nmade diferente dos imprios sedentrios do "bero da civilizao". A terra natal dos citas ao norte do Mar Negro era inspita tanto climtica quanto geograficamente, e resistiu colonizao nem tanto por estas razes naturais, mas principalmente pela inexistncia de instrumentos econmicos ou militares por meio dos quais se pudesse coloniz-los ou subjug-los. Sem cidades ou territrios fixos, aquela "horda migratria" nunca podia na verdade ser localizada. Consequentemente, nunca podiam ser postos na defensiva e conquistados. Mantinham sua autonomia por meio do movimento, fazendo parecer aos estrangeiros que estavam sempre presentes e a postos para enfrentarem um ataque, mesmo quando ausentes. O medo inspirado pelos citas era justificado, uma vez que organizavam frequentes ofensivas militares, embora ningum soubesse exatamente onde, at o momento em que repentinamente apareciam, ou at que indcios de seu poder fossem descobertos. Uma fronteira flutuante era mantida em sua terra natal, mas para eles o poder no era uma questo de ocupao espacial. Eles vagavam, tomando territrios e cobrando tributos na medida em que precisavam, em qualquer regio onde se encontrassem. Desse modo, construram um imprio invisvel que dominou a "sia" por vinte e sete anos e que se estendeu at o Egito, ao sul. O imprio em si no era sustentvel, j que sua natureza nmade rejeitava a necessidade ou o valor da posse de territrios. (No deixavam guarnies em territrios conquistados.) Os citas ficavam vagando livres, j que seus adversrios rapidamente compreenderam que, mesmo quando a vitria parecia provvel, por uma questo de praticidade era melhor no combat-los, mas sim concentrar esforos militares e econmicos em outras sociedades sedentrias isto , sociedades onde a infra-estrutura podia ser localizada e destruda. Para combater os citas, O inimigo era obrigado a primeiro revelar-lhes a sua posio. Era extremamente raro os citas serem apanhados numa posio defensiva. Se os citas no gostassem das condies de combate, sempre tinham a opo de permanecerem invisveis, impedindo O inimigo de construir um teatro de operaes. Este modelo arcaico de distribuio do poder e estratgia predatria foi reinventado pela elite do poder do capitalismo tardio, com praticamente os mesmos objetivos. Sua reinveno baseia-se na abertura tecnolgica do ciberespao, onde velocidade/ ausncia e inrcia/presena colidem na hiper-realidade. O modelo arcaico de poder nmade, outrora um meio para formar um imprio instvel, evoluiu para um meio sustentvel de dominao. Em um estado de duplo sentido, a sociedade contempornea de nmades se torna tanto um campo difuso de poder sem localizao quanto uma mquina de ver que aparece como espetculo. A primeira prerrogativa abre caminho ao aparecimento da economia global, enquanto a segunda age como uma guarnio militar em vrios territrios, mantendo a ordem da mercadoria com uma ideologia especfica a cada rea. Embora tanto o campo de poder difuso quanto a mquina de ver estejam integrados atravs da tecnologia, e sejam peas indispensveis ao imprio global, foi o campo de poder difuso o que realizou plenamente o mito cita. A passagem de um espao arcaico para uma rede eletrnica acrescenta um complemento s vantagens do poder nmade: os nmades militarizados sempre esto na ofensiva. A obscenidade do espetculo e o terror da velocidade so seus companheiros fiis. Na maioria dos casos, populaes sedentrias se submetem obscenidade do espetculo, e alegremente pagam o tributo que lhes exigido sob a forma de trabalho, bens materiais e lucro. Primeiro Mundo, Terceiro Mundo, nao ou tribo, todos devem pagar tributo. As naes, classes, raas e gneros diferenciados e hierrquicos da sociedade sedentria moderna, todos se fundem sob o domnio nmade e passam a ter o papel de prestadores de servio zeladores da ciberelite. Esta diviso, mediada pelo espetculo, oferece tticas que ultrapassam o modelo nmade arcaico. Em vez de uma pilhagem hostil de um adversrio, tem lugar uma pilhagem amigvel, conduzida de modo sedutor contra o passivo em xtase. A hostilidade do oprimido recanalizada para a burocracia, que desvia O antagonismo para longe do campo de poder nmade. O refgio na invisibilidade da no-localizao impede que aqueles que foram pegos nos enquadramentos espaciais do panptico4Idealizado pelo ingls Jeremy Bentham (1748-1832) no fim do sculo XVIII, o panptico era um modelo de priso cuja arquitetura permitia que os guardas vigiassem os detentos sem ser vistos. Com o tempo, passou a designar qualquer estrutura de controle onde o poder no pode ser identificado. (N.E.)

definam um local de resistncia (um teatro de operaes), ficando, pelo contrrio, presos por uma fitai adesiva aos monumentos do capital morto. (Direito ao aborto? Faa uma manifestao nas escadas da Suprema Corte. Para a liberao de drogas que retardam o desenvolvimento do HIV invada o NIH5National lnstitute of Health. Agncia de pesquisa do sistema de sade pblica norte-americano. (N.E.)

.) A maior vantagem dos nmades reside em no terem mais necessidade de manter uma posio defensiva.

Enquanto os centros de informao eletrnica transbordam com arquivos de pessoas eletrnicas (aquelas transformadas em histricos bancrios, tipos de consumidores, padres e tendncias etc.), pesquisa eletrnica, dinheiro eletrnico e outras formas de poder da informao, o nmade est livre para vagar pela rede eletrnica e cruzar as fronteiras nacionais com um mnimo de resistncia por parte das burocracias nacionais. O domnio privilegiado de espao eletrnico controla a logstica fsica da produo industrial, visto que a liberao de matrias-primas e de bens manufaturados requer autorizao e orientaes eletrnicas. Tal poder deve ser entregue ao ciberdomnio, sob pena da eficincia (e portanto a lucratividade) da produo industrial complexa, da distribuio e do consumo entrarem em colapso devido a uma falha de comunicao. O mesmo vale para as foras armadas: existe um controle das informaes de recursos e distribuio pela ciberelite. Sem comando e controle, as foras militares ficam imobilizadas ou, na melhor das hipteses, ficam limitadas a uma distribuio catica em um espao localizado. Dessa maneira, todas as estruturas Sedentrias se tornam servas dos nmades.

A elite nmade em si frustrantemente difcil de apreender. Mesmo em 1956, quando C. Wright Mills escreveu The Power Elite6Mills, C. Wright. A elite no poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. (N.E.)

, estava claro que a elite sedentria j compreendia a importncia da invisibilidade. (Esta foi uma mudana e tanto em relao aos gigantescos marcadores espaciais de poder usados pela aristocracia feudal.) Mills descobriu que era impossvel conseguir qualquer informao direta sobre a elite, s lhe restando especulaes feitas a partir de categorias empricas questionveis (a lista de pessoas proeminentes, por exemplo). Na medida em que a elite contempornea se desloca das reas urbanas centralizadas para o ciberespao descentralizado e desterritorializado, o dilema de Mills se agrava cada vez mais. Como se pode avaliar criticamente um objeto que no pode ser localizado, examinado ou sequer visto? A anlise de classe chega a um ponto de exausto. Subjetivamente h um sentimento de opresso, e no entanto difcil localizar, quanto mais identificar, um opressor. O mais provvel que este grupo no constitua sequer uma classe ou seja, um agrupamento de pessoas com interesses polticos e econmicos em comum mas sim uma conscincia militar de elite que foi absorvida. A ciberelite hoje uma entidade transcendente que s pode ser imaginada. No se sabe se unificaram objetivos programados. Talvez sim, ou talvez suas aes predatrias fragmentem sua solidariedade, deixando trilhas eletrnicas comuns e pilhas de informao como nica base de unidade. A paranoia da imaginao o fundamento para milhares de teorias conspiratrias - todas as quais so verdadeiras. Lancem os dados.

O desenvolvimento de um poder nmade ausente e potencialmente inexpugnvel, acoplado viso da revoluo em runas, quase emudeceu a voz contestatria. Tradicionalmente, em tempos de desiluso, estratgias de recuo comeam a predominar. Para o produtor cultural, vrios exemplos de participao cnica povoam a paisagem da resistncia. A experincia de Baudelaire vem mente. Na Paris de 1848, ele lutou nas barricadas, guiado pela noo de que "a propriedade um roubo": contudo, voltou-se para o niilismo cnico depois do fracasso da revoluo. (Baudelaire nunca conseguiu render-se totalmente. O seu emprego do plgio como estratgia colonial invertida evoca claramente a noo de que a propriedade um roubo.) O projeto surrealista inicial de Andr Breton que sintetizava a libertao do desejo com a libertao do trabalhador se desfez diante da ascenso do fascismo. (As discusses pessoais de Breton com Louis Aragon sobre a funo do artista enquanto agente revolucionrio no devem ser ignoradas. Breton nunca conseguiu abandonar a ideia do eu potico como uma narrativa privilegiada.) Breton abraou cada vez mais o misticismo na dcada de 30, e terminou se refugiando no transcendentalismo. A tendncia do trabalhador cultural desiludido a recuar na direo da introspeco para evitar a questo iluminista: "O que deve ser feito da situao social luz do poder sdico?", a representao da vida atravs da negao. No que a libertao interior seja indesejvel e desnecessria, mas sim que no pode se tornar singular ou privilegiada. Virar as costas revoluo da vida quotidiana, e colocar a resistncia cultural sob a autoridade do eu potico, sempre levou produo cultural, que mais fcil de coisificar e burocratizar. Do ponto de vista ps-moderno americano, a categoria de eu potico do sculo XIX (tal como delineada pelos decadentistas, simbolistas e pelo grupo dos nabis7Grupo ps-impressionista formado em Paris em 1888. (N.E.)

etc.) veio a representar cumplicidade e aquiescncia quando se apresentou como pura. A cultura da apropriao eliminou esta opo em si e por si. (Ainda tem algum valor como ponto de interseo. Como exemplo, bell hooks8bell hooks (1952- ), pseudnimo de Gloria Watkins, crtica e ensasta norte-americana que aborda principalmente questes de gnero e raa. (N.E.)

a usa muito bem como ponte para outros discursos). Embora necessitando de reviso, o mote modernista de Asger Jorn9Asger Jorn (1914-1973). Pintor dinamarqus, um dos fundadores da Internacional Situacionista. (N.E.)

, A vanguarda nunca desiste!, ainda tem alguma relevncia. A revoluo em runas e o labirinto da apropriao esvaziaram a reconfortante certeza da dialtica. O divisor de guas marxista, durante o qual os meios de opresso tinham uma identidade clara, e o caminho da resistncia era unilinear, desapareceu no vazio do ceticismo. No entanto, isso no desculpa para a capitulao. O surrealista que caiu no ostracismo, Georges Bataille10Georges Bataille (1897-1962), romancista e ensasta francs. (N.E.)

, oferece uma opo que ainda no foi totalmente explorada: na vida quotidiana, em vez de confrontar a esttica da utilidade, ataque pela retaguarda, por meio da economia irracional do perverso e do sacrificial11Battaile se encanta especialmente com o festival indgena norte-americano chamado Potlatch (que depois deu nome revista Situacionista).

. Tal estratgia oferece a possibilidade de produzir uma interseo entre os distrbios externo e interno. A importncia do movimento de desencantamento, de Baudelaire a Artaud, reside no fato de seus participantes terem imaginado a economia sacrificial. No entanto, a concepo que fizeram dela era quase sempre limitada a um teatro de tragdia elitista, reduzindo-a assim a um simples meio para a explorao "artstica". Para complicar ainda mais as coisas, a apresentao artstica do perverso era sempre to sria que, muitas vezes, locais para utilizao eram por consequncia secretos. A chocante constatao feita por Artaud de que o corpo sem rgos havia aparecido, embora ele no pudesse ter certeza sobre o que isto poderia ser, limitava-se tragdia e ao apocalipse. Sinais e vestgios do corpo sem rgos aparecem ao longo da experincia mundana. O corpo sem rgos Ronald McDonald, no uma esttica esotrica. Apesar de tudo, h um espao decisivo para a comdia e o humor como meio de resistncia. Talvez esta seja a maior contribuio da Internacional Situacionista esttica ps-moderna. O Nietzsche danante est vivo.

Alm do retrocesso estetizado, uma variedade mais sociolgica atrai a resistncia romntica uma verso primitiva do desaparecimento nmade. Trata-se da retirada desiludida para reas fixas que escapam vigilncia. Tipicamente, o recuo para as reas rurais que mais negam a cultura, ou para reas urbanas desterritorializadas. O princpio bsico alcanar a autonomia escondendo-se da autoridade social. Tal como em sociedades de bandos, cuja cultura no pode ser tocada porque no pode ser encontrada, a liberdade intensificada para os que participam de tal projeto. No entanto, ao contrario das sociedades de bandos, que emergem em um dado territrio, estas comunidades transplantadas sempre so suscetveis a contaminaes por espetculos, linguagem, e at mesmo pela nostalgia por meios ambientes, rituais e hbitos anteriores. Essas comunidades so sempre instveis (o que no necessariamente negativo). Se elas podem ou no ser transformadas em bases de resistncia eficazes, deixando de ser local de acampamento para os desiludidos e os derrotados (como no final dos anos 60 e incio dos 70 na Amrica), o que ainda veremos. Resta saber, no entanto, se uma base de resistncia eficaz no ser rapidamente exposta e solapada, no durando tempo suficiente para produzir qualquer resultado.

Outra narrativa do sculo XIX que persiste para alm de sua vida natural o movimento trabalhista isto , a crena de que a chave para a resistncia fazer um corpo organizado de trabalhadores parar a produo. Tal como a ideia de revoluo, a ideia de sindicato foi despedaada, e talvez nunca tenha existido na vida quotidiana. A ubiquidade de greves suspensas, cortes voluntrios de salrios e demisses voluntrias" atestam que aquilo que se chama sindicato no passa de uma burocracia trabalhista. A fragmentao do mundo em naes, regies, Primeiro e Terceiro Mundos etc., como mtodo disciplinador utilizado pelo poder nmade tornou anacrnicos os movimentos trabalhistas nacionais. Os locais de produo so mveis demais e as tcnicas de gesto flexveis demais para que a ao trabalhista seja eficaz. Se os trabalhadores em uma regio resistem s exigncias corporativas, uma fonte de mo-de-obra alternativa rapidamente encontrada. A transferncia das fbricas da Dupont e da General Motors para o Mxico, por exemplo, demonstra esta habilidade nmade. Como colnia fonte de mo-de-obra, o Mxico tambm permite a reduo dos custos unitrios, eliminando os "padres salariais" de Primeiro Mundo e os direitos trabalhistas. O preo da velocidade do mundo corporativo pago pela intensificao da explorao. A sustentada fragmentao do tempo e do espao faz com que isso seja possvel. O tamanho e o desespero da mo-de-obra do Terceiro Mundo, em conjunto com sistemas polticos cmplices, deixam as classes trabalhadoras organizadas sem uma base a partir da qual possam barganhar. Os situacionistas tentaram resolver esse problema rejeitando o valor tanto do trabalho quanto do capital. Todos deveriam parar de trabalhar proletrios, burocratas, prestadores de servio, todos. Embora a ideia parea simptica, ela pressupe uma unidade invivel. A ideia de uma greve geral era limitada demais. Ficou atolada em conflitos nacionais, nunca foi alm de Paris, e ao final causou poucos danos mquina global. A esperana de que uma greve mais elitizada se manifestasse no movimento de ocupao foi uma estratgia que tambm nasceu morta, pela mesma razo.O deleite situacionista com a ocupao interessante na medida em que era uma inverso do direito aristocrtico a propriedade, embora exatamente este fato o torne suspeito desde o incio, j que as estratgias modernas no deveriam se limitar a procurar inverter as instituies feudais. A relao entre ocupao e propriedade, tal como apresentada no pensamento social conservador, foi adotada pelos revolucionrios na primeira Revoluo Francesa. A libertao e ocupao da Bastilha foi importante nem tanto pelos poucos prisioneiros libertados, mas sim por ter chamado a ateno para o fato de que a propriedade obtida atravs da ocupao uma faca de dois gumes. Esta inverso fez da concepo de propriedade uma justificativa conservadoramente vivel para o genocdio. No genocdio irlands da dcada de 1840, os proprietrios ingleses de terras compreenderam que seria mais lucrativo usar suas propriedades como pasto para seus animais do que deixar que l ficassem os agricultores arrendatrios que tradicionalmente usavam a terra. Quando a praga atacou as plantaes de batata, destruindo as colheitas dos arrendatrios e os deixando sem ter como pagar o aluguel, percebeu-se uma oportunidade para O despejo em massa. Os proprietrios ingleses pediram e receberam ajuda militar de Londres para expulsarem os arrendatrios e para garantir que eles no ocupassem novamente a terra. claro que os agricultores acreditavam que tinham o direito de permanecer ali por ocuparem a terra havia tantos anos, independentemente da incapacidade de pagarem o aluguel. Infelizmente, os agricultores foram transformados em simples populao excedente, j que O direito propriedade por ocupao no era reconhecido. Foram aprovadas leis que lhes negavam o direito de imigrar para a Inglaterra, o que causou a morte de milhares de pessoas que se viram obrigadas a passar o inverno irlands sem comida ou abrigo. Alguns conseguiram imigrar para os Estados Unidos, e sobreviveram, vivendo como refugiados abjetos. Enquanto isso, nos Estados Unidos, o genocdio dos americanos nativos estava a todo o vapor, justificado em parte pela ideia de que, como as tribos nativas no eram proprietrias de terras, todos os territrios estavam livres, e uma vez ocupados (investidos de valor sedentrio), poderiam ser defendidos.

No perodo ps-moderno do poder nmade, os movimentos trabalhista e de ocupao no foram relegados lata de lixo da histria, mas tambm no continuaram com a capacidade de outrora. O poder da elite, tendo se livrado de suas bases nacionais e urbanas para vagar distrado pelas trilhas eletrnicas, no pode mais ser destrudo por estratgias criadas para a contestao de foras sedentrias. Os monumentos arquitetnicos do poder so ocos e vazios, e funcionam agora apenas como casamatas para os cmplices e complacentes. So lugares bem guardados que revelam apenas vestgios de poder. E como toda arquitetura monumental, silenciam a resistncia e a indignao atravs de sinais de resoluo, continuidade, coisificao e nostalgia. Estes locais podem ser ocupados, mas faz-lo no ir interromper o fluxo nmade. Na melhor das hipteses, tal ocupao um distrbio que pode ser tornado invisvel atravs da manipulao da mdia. Uma casamata particularmente valorizada (tal como uma burocracia) pode ser facilmente reocupada pela mquina de guerra ps-moderna. Os bens eletrnicos dentro da casamata, claro, no podem ser tomados por meios fsicos. A teia que liga as casamatas a rua tem to pouco valor para o poder nmade que foi deixada para a ral. (Uma exceo o maior monumento mquina de guerra j construdo: a malha rodoviria interestadual. Ainda valorizado e bem defendido, l no se v quase nenhum sinal de distrbio.) Deixar a rua para a mais alienada das classes assegura que a nica coisa que poder ocorrer l uma alienao profunda. No apenas a polcia, mas criminosos, viciados e mesmo os sem-teto esto sendo usados como destruidores do espao pblico. A aparncia da plebe, junto com o espetculo da mdia, permitiu que as foras da ordem construssem a percepo histrica de que as ruas so perigosas, insalubres e inteis. A promessa de segurana e familiaridade atrai hordas de ingnuos para espaos pblicos privatizados como os shopping centers. O preo dessa proteo a renncia soberania individual. Ningum, alm da mercadoria, tem direitos no Shopping center. As ruas em particular e os espaos pblicos em geral esto em runas. O poder nmade fala a seus seguidores por meio da auto-experincia da mdia eletrnica. Quanto menor o pblico, maior a ordem.A vanguarda nunca desiste, e no entanto as limitaes dos modelos antiquados e os locais de resistncia tendem a empurrar essa resistncia para o vazio da desiluso. importante manter as casamatas sob cerco. No entanto, o vocabulrio da resistncia deve ser expandido para incluir meios de distrbio eletrnico. Assim como a autoridade localizada nas ruas era combatida por meio de manifestaes e barricadas, a autoridade que se localiza no campo eletrnico deve ser combatida atravs da resistncia eletrnica. Estratgias espaciais podem no ser as mais importantes nesse caso, mas so necessrias como apoio, pelo menos no caso de distrbios de largo espectro. Essas estratgias mais antigas de combate fsico esto mais bem desenvolvidas, enquanto estratgias eletrnicas no. Est na hora de voltarmos nossa ateno para a resistncia eletrnica, tanto em termos da casamata quanto do campo nmade. O campo eletrnico uma rea pouco conhecida. Em tal jogo, necessrio estar pronto para enfrentar os perigos ambguos e imprevisveis de uma forma de luta nunca tentada. A famosa faca de dois gumes est a. Devemos nos preparar para ela. A resistncia ao poder nmade deve se dar no ciberespao e no no espao fsico. O jogador ps-moderno um jogador eletrnico. Um pequeno mas coordenado grupo de hackers poderia introduzir vrus e bombas eletrnicas em bancos de dados, programas e redes de autoridade, colocando a fora destrutiva da inrcia contra o domnio nmade. A inrcia prolongada se iguala ao colapso da autoridade nmade em nvel global. Tal estratgia no requer uma ao unificada de classe, e nem uma ao simultnea em vrias reas geogrficas. Os menos niilistas poderiam ressuscitar a estratgia de ocupao mantendo como refns dados em vez de propriedades. Por quaisquer meios que a autoridade eletrnica seja perturbada, o importante quebrar totalmente o comando e o controle. Sob essas condies, todo o capital improdutivo no entrelaamento militar-corporativo se torna um sorvedouro econmico material, equipamento e fora de trabalho, todos ficariam sem um meio de serem distribudos. O capitalismo tardio entraria em colapso sob seu prprio excesso de peso. Muito embora esta sugesto seja apenas um cenrio de fico Cientfica, esta narrativa revela problemas que devem ser enfrentados. O mais bvio e que aqueles que se engajaram na ciberrealidade formam em geral um grupo despolitizado. A maioria dos casos de infiltrao no ciberespao tem sido um simples vandalismo por diverso (como o programa pirata de Roben Morris ou a srie de vrus de PCs como o Michelangelo), espionagem politicamente mal orientada (a invaso de computadores militares feita por Markus Hess, que provavelmente foi feita para a KGB), ou vingana pessoal contra uma fonte particular de autoridade. O cdigo de tica dos hackers12"Hacker" aqui se refere a uma categoria genrica de entendidos em computador que frequentemente, mas no sempre, trabalham em oposio s necessidades da estrutura militar-corporativa. Tal como usado aqui, o termo inclui crackers, phreakers, hackers propriamente ditos e cypherpunks.

desencoraja qualquer ato de distrbio no ciberespao. At a Legion Of Doom (um grupo de jovens hackers que assustou o Servio Secreto) alega nunca ter danificado um sistema. Suas atividades eram motivadas por curiosidade a respeito de sistemas computacionais, e por acreditarem no acesso livre informao. Alm dessas preocupaes muito especficas com a descentralizao da informao, o pensamento ou a ao poltica nunca esteve realmente presente na conscincia do grupo. As transgresses que eles fizeram (e s uns poucos membros desrespeitaram a lei) resumiram-se a fraude bancria ou invaso eletrnica. O problema que se coloca o mesmo de dar carter poltico a cientistas cujas pesquisas levam ao desenvolvimento de armamentos. A pergunta : como podemos pedir a essa classe que desestabilize ou destrua seu prprio mundo? Para complicar ainda mais as coisas, apenas alguns tm o conhecimento especializado necessrio para tal ao. A ciberrealidade profunda a menos democratizada de todas as fronteiras. Como mencionamos acima, os cibertrabalhadores enquanto classe profissional no precisam estar plenamente unificados, mas como pode-se reunir um nmero suficiente de membros desta classe para pr em prtica uma ruptura, especialmente quando a ciberrealidade est sob a mais eficaz autovigilncia? Todos estes problemas atraram muitos "artistas" para a mdia eletrnica, deixando boa parte da arte eletrnica contem pornea com uma forte carga poltica. J que no provvel que os trabalhadores das reas cientficas ou tecnolgicas gerem uma teoria do distrbio eletrnico, coube aos artistas-ativistas (assim como outros grupos interessados) a responsabilidade de ajudarem a estabelecer um discurso crtico sobre o que est realmente em jogo no desenvolvimento desta nova fronteira. Apropriando-se da autoridade legitimizada da "criao artstica", e usando-a como meio para estabelecer um frum pblico para discutir modelos de resistncia dentro da tecnocultura emergente, o produtor cultural pode contribuir para a perptua luta contra o autoritarismo. Alm disso, as estratgias concretas de comunicao por imagem/texto, desenvolvidas por meio do uso de tecnologia que escapa pelas brechas da mquina de guerra, vo facilitar a criao de materiais explosivos para serem jogados nas casamatas poltico-econmicas por aqueles que se interessarem. Cartazes, panfletagem, teatro de rua, arte pblica todos foram teis no passado. Mas como mencionamos acima, onde est o "pblico", quem est na rua? A julgar pelo nmero de horas que uma pessoa comum assiste televiso, parece que o pblico est envolvido com a eletrnica. O mundo eletrnico, no entanto, no est de forma alguma totalmente estabelecido, e est na hora de tirar vantagem desta fluidez atravs da criao. Antes que nos reste apenas a crtica como arma.

As casamatas j foram descritas como espaos pblicos privatizados que sem/em a vrias funes particularizadas, tais como a continuidade poltica (reparties governamentais ou monumentos nacionais), ou reas para orgias de consumo (Shopping centers). De acordo com a mentalidade de fortificao da tradio feudal, a casamata garante a segurana e a familiaridade em troca da renncia soberania individual. Pode agir como agente de seduo que oferece a iluso verossmil da escolha de consumo e a paz ideolgica para o cmplice, ou pode ainda agir como uma fora agressiva exigindo aquiescncia de quem resiste. A casamata leva quase todos ao seu interior com exceo dos que so deixados para guardar as ruas. Afinal, o poder nmade no oferece a escolha de no trabalhar ou no consumir.A casamata uma caracterstica to abrangente da vida quotidiana que mesmo o mais resistente no pode sempre abord-la criticamente. A alienao, em parte, se origina desse inevitvel aprisionamento na armadilha da casamata. As casamatas variam tanto em termos de aparncia quanto de funo. A casamata nmade o produto da "aldeia global" tem tanto uma forma eletrnica quanto uma forma arquitetnica. A forma eletrnica testemunhada como mdia, e como tal, tenta colonizar a residncia particular. Distraes informativas fluem numa corrente incessante de fices produzidas por Hollywood, pela Madison Avenue e pela CNN. A economia do desejo pode ser vista em toda a segurana atravs da janela familiar da superfcie da tela. Protegida na casamata eletrnica, uma vida de auto-experincia alienada (uma perda do social) pode prosseguir em tranquila aquiescncia e`profunda privao. O espectador levado ao mundo, o mundo ao espectador, tudo mediado pela ideologia da tela. Trata-se de vida virtual em um mundo virtual. Da mesma forma que a casamata eletrnica, a casamata arquitetnica outro local onde a hipervelocidade e a hiperinrcia se cruzam. Casamatas como estas no esto restritas a fronteiras nacionais. Na verdade, abarcam o mundo. Embora no possam se mover realmente pelo espao fsico, simulam a aparncia de estarem em toda a parte ao mesmo tempo. A prpria arquitetura pode variar consideravelmente, mesmo em termos de tipos especficos. No entanto, O logotipo ou o totem de um tipo especfico universal, assim como seus artigos de consumo. De um modo geral, a existncia destas caractersticas redundantes que a torna to sedutora. Este tipo de casamata era caracterstico da primeira tentativa do poder capitalista de se tornar um poder nmade. Durante a Contra-Reforma, quando a Igreja Catlica percebeu, no Conclio de Trento (1545-63), que a presena universal era uma chave para o poder na era da colonizao, este tipo de casamata chegou maioridade. (Foi necessrio o pleno desenvolvimento do sistema capitalista para que se produzisse a tecnologia necessaria para uma volta ao poder por meio da ausncia). O aparecimento da Igreja em reas de fronteira, tanto no Ocidente quanto no Oriente, a universalizao do ritual, a manuteno da relativa grandiosidade de sua arquitetura e o smbolo ideolgico do crucifixo, tudo conspirou para que se apresentasse como um local confivel e de segurana. No importa onde uma pessoa estivesse, Igreja-ptria estava esperando. Em pocas mais recentes, os arcos gticos se transformaram em arcos dourados. O McDonalds global. Onde quer que uma fronteira econmica esteja se abrindo, l est o McDonalds. Viaje para onde quiser, aquele mesmo hambrguer e aquela mesma Coca-Cola esto te esperando. Como a praa de Bernini na Baslca de So Pedro, os arcos dourados se curvam para abraar seus clientes contanto que eles consumam, e saiam quando terminarem. Enquanto se est na casamata, fronteiras nacionais so coisa do passado, mas de fato sente-se como se estivesse em casa. Por que viajar? Afinal, aonde quer que voc v, voc j est l. Existem tambm casamatas sedentrias. Este tipo claramente de carter nacional, sendo assim a casamata preferida dos governos. o tipo mais antigo, surgido na aurora da sociedade complexa, e alcanando o auge na sociedade moderna, com conglomerados de casamatas espalhados por todos os centros urbanos. Em alguns casos estas casamatas so o ltimo vestgio do poder nacional centralizado (a Casa Branca). Em outros casos so os locais onde se forja uma elite cultural cmplice (a universidade), ou ainda locais da continuidade fabricada (monumentos histricos). As casamatas sedentrias so os locais mais vulnerveis ao distrbio eletrnico, uma vez que suas imagens e mitologias so as mais fceis de serem apropriadas. Em qualquer casamata (junto com a geografia, o territrio e a ecologia que lhes esto associados) o produtor cultural da resistncia quem melhor pode produzir um distrbio. Existe Suficiente tecnologia acessvel para ao menos temporariamente reapresentar a casamata com uma imagem e uma linguagem que revelem seu propsito sacrificial, assim como a obscenidade de sua esttica utilitria burguesa. O poder nmade criou pnico nas ruas com suas mitologias de subverso poltica, deteriorao econmica e infeco biolgica, o que por sua vez produz uma ideologia de fortificao, e consequentemente uma demanda por casamatas. Agora necessrio levar pnico casamata, perturbando desta forma a iluso de segurana e no deixando nenhum lugar para se esconderem. O jogo ps-moderno consiste no incitamento ao pnico em toda a parte.

VII 1500

Do sonho. Parecer aos homens que eles veem destruio no cu, e chamas descendo de l parecero estar fugindo aterrorizadas. Eles ouviro criaturas de todo tipo falando a linguagem humana. Correro logo para vrias partes do mundo, sem movimento. Vero os mais radiantes esplendores em meio escurido.

Do sonho. Parecer aos homens que eles vivenciam destruio no cu e chamas descendo de la parecero estar fugindo aterrorizadas. Eles ouviro criaturas de todo tipo falando a linguagem humana. Viajaro em instantes para varias partes do mundo, sem movimento. Vero os mais radiantes esplendores em meio a escurido.

VIII 1641

Nada melhor para obter um conhecimento exato da realidade do que previamente nos acostumarmos a alimentarmos duvidas, especialmente sobre coisas materiais.

Nada melhor para obter um conhecimento no censurado da realidade do que previamente nos acostumarmos a alimentarmos dvidas, especialmente sobre coisas materiais.

Da que, ao menos por meio do instrumento do poder divino, a mente pode existir parte do corpo, e o corpo parte da mente.

Da que, ao menos por meio do instrumento do poder virtual, a mente pode existir parte do corpo, e o corpo a parte da mente.

captulo 2 Vdeo e resistncia: contra documentrios

O veculo vdeo nasceu em crise. A tecnologia ps-moderna foi mandada de volta ao tero da histria com a exigncia de que se desenvolvesse passando pelos mesmos estgios que seus irmos mais velhos, o cinema e a fotografia. O documentrio o modelo supremo na produo de vdeo para a resistncia e muito menos uma testemunha das aes de guerrilhas, manifestaes de rua e desastres ecolgicos, que a prova da persistncia dos conceitos iluministas de Verdade, Conhecimento e Realidade Emprica. A hegemonia do documentrio afasta a tecnologia de vdeo da funo de simulador, e significa um retrocesso concepo da tecnologia como criadora de rplicas (testemunha). claro que a tecnologia no vai nos salvar da condio insuportvel da eterna repetio. Lembremos o arquivo intitulado "Iluminismo". Iluminismo: um momento histrico do passado, hoje visto atravs do filtro da nostalgia. A verdade era ento muito simples. Confiava-se nos sentidos, isto , que conjuntos isolados de sensaes continham conhecimento. A natureza entregaria seus segredos para quem se dispusesse a observar.Cada objeto continha conjuntos teis de dados transbordando de informaes, visto que o mundo era considerado uma rede de fatos interligados. Os fatos eram o que mais interessava: tudo que fosse observvel era dotado de factualidade. Tudo que fosse concreto merecia ser observado, de um gro de areia atividade social. O "conhecimento" explodiu como uma supernova.A especializao foi a resposta ao problema de lidar com uma quantidade de dados que aumentava geometricamente: dividindo a tarefa de observao em tantas categorias e subcategorias quanto possvel, tenta-se impedir que a integridade da observao seja posta em risco pela proliferao de possibilidades factuais. ( sempre assombroso ver estruturas autoritrias vicejando em um momento de utopia.) A especializao funcionava na economia (processo industrial complexo) e na administrao pblica (burocracia). Por que tambm no no conhecimento? O conhecimento penetrou o domnio terreno (em oposio ao transcendental), dando humanidade controle sobre seu prprio destino e iniciando uma era de progresso, tendo a cincia como sua redentora.Em meio a este jbilo, um ceticismo mrbido assombrava fiis como os enciclopedistas, os novos pensadores sociais (como Turgot13Anne Robert Jacques Turgot (1727-1781), ministro das finanas da Frana. Sua obra abordava a economia poltica. dele o princpio do laisser-faire, laisse-passer da economia liberal. (N.E.)

, Fontenelle14Bernard de Bouvier de Fontenelle (1657-1757), escritor francs cuja obra principal Entretiens Sur la pluralit des mondes. (N.E.)

e Condorcet15Jean-Antoine-Nicolas de Caritat (1743-1794), marqus de Condorcet, filsofo, matemtico e poltico francs. Condorcet influenciou o liberalismo, principalmente na defesa da educao pblica para todos. (N.E.)

) e, mais tarde, os positivistas lgicos. O problema exposto pelo ceticismo foi exemplificado pela crtica de David Hume16David Hume (17114776), filsofo ingls. (N.E.)

ao modelo emprico, a qual colocou a epistemologia iluminista fora do domnio da certeza. Mostrou-se assim que os sentidos no eram portadores confiveis de informaes, e revelou-se tambm que associaes factuais eram na verdade inferncias convenientes. Fortalecido pela crtica romntica, desenvolvida mais tarde sob a bandeira do Idealismo alemo, o argumento de que o mundo fenomnico no era uma fonte de conhecimento se tornou aceitvel, uma vez que a percepo podia ser estruturada por categorias mentais especficas que poderiam ou no ser fiis coisa-em-si. Sob este prisma, a cincia foi reduzida a um mapeamento prtico de constelaes espao-temporais. Infelizmente, os idealistas no foram capazes de escapar do ceticismo que os fez surgir. Seu prprio sistema de transcendentalismo era igualmente suscetvel aos argumentos dos cticos. A cincia se encontrava numa posio peculiar em relao sociologia do conhecimento do sculo XIX. Ela tornou-se um legitimador ideolgico at mesmo no nvel ordinrio da vida quotidiana, uma vez que produzia resultados prticos, segundo O desejo e a interpretao dos secularistas. No vcuo dos cticos, a cincia emprica usurpava revelia o direito de proclamar o que era real na experincia. O julgamento dos sentidos poderia ser confivel em relao ao presente, mas para julgar eventos passados era necessrio que a percepo imediata fosse reconstruda por meio da memria. A diminuio da factualidade do objeto sensvel devido aos elementos subjetivos da memria e a insuficincia da representao escrita como meio de preservar a histria fizeram com que o problema posto pela memria fosse transformado em um problema tecnolgico. Embora teoria e mtodo estivessem maduros e legitimados, uma tecnologia satisfatria ainda estava para aparecer. Este problema finalmente ficou resolvido com a inveno da fotografia. A fotografia podia fornecer um registro visual concreto (a viso sendo o mais fidedigno dos sentidos), como uma descrio do passado. Ela representava fatos em vez de subjetivamente dissolv-los na memria, ou abstrai-los como na escrita. Enfim passou a existir algo que fizesse rplicas visuais, produzindo deste modo um registro desvinculado da testemunha. A tecnologia poderia mediar a percepo, e assim impor objetividade ao registro visual. Neste sentido, a fotografia foi adotada mais como ferramenta cientfica do que como um meio para manifestar intenes estticas. Artistas de todas as linguagens comearam a incorporar na tecnologia de produo de rplicas o modelo emprico que havia sido rejuvenescido por estas inovaes. O interesse deles, por sua vez, deu origem ao Realismo e ao Naturalismo literrio. Nestes novos gneros, o desejo pela rplica se tornou mais complexo. Uma nova agenda poltica se insinuara na produo cultural. Diferentemente do passado, quando a poltica geralmente servia para manter o status quo, a agenda da recm-nascida esquerda comeou a fazer aparies bem definidas na representao cultural emprica. Os proponentes deste movimento no cultuavam mais os cones culturais idealistas de seus predecessores romnticos, mas transformaram a factualidade em fetiche - tendncias que reduziam o papel do artista ao da reproduo mecnica. A apresentao visual de dados factuais permitia que se testemunhasse objetivamente a injustia da histria, fornecendo aos que foram eliminados do registro histrico um modo de tornar conhecido seu lugar. O uso de mdias tradicionais combinou-se com a epistemologia iluminista na promoo de uma nova ideologia esquerdista que fracassou relativamente rpido. Mesmo os romances experimentais de Zola17mile Zola (1840-1902), romancista e critico francs, fundador do naturalismo na literatura. Entre suas obras mais importantes esto Nona (1880), que trata da prostituio, e Germinal (1885), que retrata a explorao dos mineiros. (N.E.)

, no fim, s podiam ser percebidos como fico, e no como relatos histricos. A obra dos pintores realistas tambm no parecia confivel, uma vez que o pincel no era uma tecnologia satisfatria para assegurar a objetividade. Alm disso seu produto estava preso demais a uma tradio elitista e a suas instituies. Talvez sua nica vitria real tenha sido produzir um smbolo degradado da inteno subversiva que humildemente insistia na horizontalizao das categorias estticas tradicionais, principalmente na rea de temas. No final do sculo, no tendo mais o que experimentar, alguns produtores culturais esquerdistas comearam a repensar a fotografia e seu novo desenvolvimento, o filme. Os primeiros documentaristas pretendiam produzir um registro visual objetivo e preciso da injustia social e da resistncia esquerdista. Guiados por estes objetivos, o documentrio comeou a tomar forma. A empolgao com as novas possibilidades de representao socialmente responsvel fez com que a produo precedesse a reflexo crtica sobre o veculo, e os equvocos que foram cometidos continuam, como instituies, at o presente.

O documentrio cinematogrfico foi uma catstrofe desde seu incio. Mesmo ainda na obra dos irmos Lumire, a factualidade do filme de no-fico foi esmagada sob o peso da ideologia. Um filme como Workers Leaving the Lumire Factory18Produzido pelos irmos Lumire em 1895. Assim como seus outros filmes, foi feito a partir de cenas da vida cotidiana. (N.E.)

funciona primariamente como uma propaganda da industrializao um sinal do futuro divorciado das foras histricas que o geraram. A despeito da cmera esttica e da inevitvel falta de edio, a funo de produzir uma rplica se perdeu, j que a vida apresentada no filme ainda no era vivida pela maioria das pessoas. Deste ponto em diante o documentrio cumpriu cada vez mais sua vocao inevitvel. Um filme como Elephant Processions at Phnom Penh19Dos irmos Lumire. (N.E.)

se tornou o predecessor do que hoje considerada uma obra ps-moderna cnica. O documentrio mergulhou no mago da apropriao colonial. Este filme foi um entretenimento espetacular, que permitiu que o pblico penetrasse temporariamente numa cultura que nunca existiu. Acabou sendo uma maneira de se divertir com um evento simulado, isolado de qualquer espcie de contexto histrico. Nesse sentido, Lumire foi o predecessor de Disney. A Disney World a coroao do projeto de entretenimento cultural de Lumire. Apropriando-se dos destroos culturais e os reagrupando de um modo digervel para consumo espordico, a Disney faz em 3-D o que Lumire havia feito em duas dimenses: produzir uma simulao do texto cultural mundial na locao fixa da casamata. A situao continuou a piorar. Robert Flaherty introduziu no documentrio a narrativa complexa, em seu filme Nanook Of the North20No Brasil o filme levou o nome de Nanook, o esquim. Considerado um clssico, foi produzido em 1921. (N.E.)

. Este filme era marcado por uma gramtica cinematogrfica ultracodificada, que abstrusamente gerava uma histria a partir de pretensos fatos brutos. Os abismos entre as discrepantes imagens reapresentadas tinham de ser juntados pela cola da ideologia romntica, a preferida pelo cineasta. Isto era inevitvel, uma vez que no havia fatos para comeo de conversa, mas apenas lembranas reconstitudas. O desejo de Flaherty de produzir o extico levou-o a simular um passado que nunca existiu. Na seqncia mais famosa do filme, Flaherty recria uma caada morsa. Nanook nunca tinha estado em uma caada sem armas de fogo, mas Flaherty insistiu que ele usasse arpes. Nanook se lembrava do que seu pai tinha lhe contado sobre a tradio da caa, e tinha visto antigos desenhos esquims destas caadas. A partir dessas lembranas, mescladas com os conceitos romnticos de Flaherty, a caada morsa foi reencenada. O resultado foi uma representao de uma representao sob o pretexto de uma originalidade inalcanvel. O filme deu uma histria excitante e foi um bom entretenimento, mas tinha tanta integridade factual quanto o O Nascimento de uma Nao21De 1915, Birth Of a Nation um clssico do cinema norte-americano. Sua mensagem racista e de exaltao Ku Klux Klan faz com que seja utilizado at hoje como meio de recrutamento da KKK. (N.E.)

, de D. W Griffith. No necessrio repetir a histria cnica do documentrio oscilando ao longo do espectro poltico de Vertov22Dziga Vertov, polons, viveu na Rssia ps-1917, influenciou escolas de cinema no mundo todo.

a Riefenstahl23Leni Riefenstahl produziu, entre outros, O Triunfo da Vontade, um dos primeiros filmes do partido nazista alemo, hbrido de documentrio e propaganda do nazismo. (N.E.)

. Em todos os casos, ela tem sido fundamentalmente cnica uma mercadoria poltica fadada pela prpria natureza da tecnologia a sempre se repetir dentro da economia do desejo. O filme no hoje, nem jamais foi, a tecnologia da verdade. Mente a uma velocidade de vinte e quatro quadros por segundo. Seu valor no est em registrar a histria, mas apenas em ser um meio de comunicao, um meio pelo qual gerado significado. O aspecto assustador do documentrio sua capacidade de gerar uma histria rgida no presente do mesmo modo que a Disney pode gerar o significado colonial da cultura do Outro. Sempre que existirem filmes implodidos24Por "filmes implodidos" os autores se referem a filmes nos quais estruturas binrias (tais como fico/no-fico), perdem sentido, entram em colapso. (N.E.)

simultaneamente como fico e no-fico, eles sero uma prova de que a histria feita em Hollywood. A problemtica aliana do documentrio com a metodologia cientfica tenta explorar o aparente poder da cincia de parar o fluxo de interpretaes multifacetadas. Justificadamente ou no, a prova cientfica incontestvel: ela repousa confortavelmente sob o signo da certeza. Esta a autoridade que o documentrio tenta reclamar para si. Consequentemente, os documentaristas tm sempre usado sistemas de cdigos autoritrios para estruturar a narrativa de seus filmes. Essa estratgia depende, em primeiro lugar, do total esgotamento da imagem no momento da apreenso imediata. A estrutura narrativa deve envolver o espectador como uma rede e deixar de fora todas as outras interpretaes possveis. A narrativa que guia a interpretao das imagens deve fluir ao longo de um caminho unilinear, a tal velocidade que o espectador no tenha tempo para qualquer reflexo. Nessa ao, O essencial produzir a impresso de que cada imagem ligada por uma relao causal s imagens precedentes. O estabelecimento da relao causal entre as imagens produz uma unidade e mantm o fluxo interpretativo dos espectadores em um caminho predeterminado. O caminho termina com a concluso que foi preparada pelo documentarista ao construir a cadeia causal de imagens, oferecendo assim o que parece ser uma concluso incontestvel. Afinal, quem pode desafiar a causalidade reproduzida? Sua legitimao pela autoridade tradicional da razo grande demais. Um documentrio fracassa quando a cadeia causal se quebra, mostrando as descontinuidades e permitindo que um momento de descrena cause uma ruptura na matriz interpretativa predeterminada. Sem o principio cientfico da causalidade estruturando rigorosamente a narrativa, a autoridade do documentrio rapidamente se dissipa, revelando sua verdadeira natureza de propaganda ficcional. Quando ocorre uma crise de legitimao no filme, a imagem fica transparente ao invs de se exaurir, e a ideologia da narrativa exposta em toda a sua horrenda glria. O documentrio de qualidade no se revela, e essa trapaa ilusionista aperfeioada pela primeira vez pelo realismo hollywoodiano que infelizmente guia a grande maioria dos documentrios e obras testemunhais em vdeo que trabalhadores culturais da esquerda produzem hoje em torrentes infindveis. Esta exibio deplorvel particularmente insidiosa porque transforma os trabalhadores culturais da esquerda naquilo que eles mais temem: legitimadores da matriz interpretativa conservadora. Se o princpio fundamental da poltica conservadora manter a ordem em prol da economia, complementar as necessidades e os desejos da elite econmica e desencorajar a heterogeneidade social, ento o documentrio, em sua forma atual, cmplice desta ordem, mesmo se levanta a bandeira da justia social sobre sua fortaleza ideolgica. isto assim porque o documentrio no cria uma oportunidade para o livre-pensamento, mas instila autocensura no espectador, que deve absorver suas imagens dentro da estrutura de uma narrativa totalizante. Ao se examinar o prprio sinal de censura, como foi corporificado, por exemplo, nas crticas de Jesse Helms25Senador republicano ultraconservador do estado da Carolina do Norte. (N.E.)

a Piss Christ26Piss Christ uma foto que mostra um crucifixo num penico. (N.E.)

de Andre Serrano27Andre Serrano, fotgrafo que ganhou notoriedade na metade dos anos 80. Seu trabalho gerou controvrsia nos Estados Unidos e grande furor nos conservadores. (N.E.)

, podem-se observar os mtodos de interpretao totalizante em funcionamento. Helms argumentou que uma figura de Cristo submersa em urina leva a uma nica concluso, a de que a obra um sacrilgio obsceno. A interpretao de Helms justa. No entanto, no a nica. Helms usou seu desempenho espalhafatoso no Senado como autoridade para legitimar e totalizar sua interpretao. Sob sua matriz interpretativa privilegiada, a imagem imediatamente esgotada. No entanto, qualquer um que reflita na imagem de Serrano por apenas um instante pode ver que vrios outros significados esto contidos nela. H significados que so tanto crticos quanto estticos (formais). A estratgia global de Helms no foi tanto usar o poder pessoal como um meio de censura, mas sim criar as precondies para que o pblico prossiga cegamente at a autocensura, concordando dessa forma com a ordem homognea desejada pela classe dominante. O documentrio da resistncia depende desse mesmo conjunto de condies para ter sucesso. A consequncia a longo prazo da utilizao de tais mtodos, mesmo que com boas intenes, deixar o espectador cada vez mais suscetvel estrutura narrativa ilusionista, enquanto que o modelo fica cada vez mais sofisticado por ser constantemente revisto. Para qualquer ponto do espectro poltico que o consumidor se volta, ele tratado como rebanho pela mdia. Para parar com essa manipulao, os documentaristas devem se recusar a sacrificar a subjetividade do espectador. O filme de no-fico precisa percorrer outros caminhos que no aqueles herdados da tradio.

Planejando um documentrio esquerdista genrico para a PBS28Public Broadcasting Service. Trata-se de uma rede de TV e mdia no-comercial dos Estados Unidos. (N.E.)

. Assunto: a guerrilha em ............ (escolha um pas do Terceiro Mundo). 1. Escolha um ttulo cuidadosamente, j que este um dos principais elementos na construo. Ele deve se apresentar meramente como uma descrio das imagens contidas na obra, mas deve tambm funcionar como um marcador ideolgico privilegiado. Por exemplo, "A Luta pela Liberdade em ....... " Lembre-se de no mencionar "guerrilha" no ttulo. Palavras como essa tm uma conotao de causa subversiva ou perdida que poderia levar a aes irracionais violentas, e isso assusta os liberais. 2. Se seu oramento for grande o suficiente (o que deve ser o caso se voc est fazendo um segundo filme sobre disputas polticas), faa uma abertura com uma lrica tomada area da paisagem natural do pas em questo. Geralmente o interior dominado pela guerrilha. Isso bom. Agora voc tem a autoridade tradicional da natureza (e a moralidade da distino cidade/ campo) do seu lado. Estes so dois cdigos bsicos da arte didtica ocidental. Eles raramente so questionados, e criaro um canal que levar o espectador crena de que voc est filmando um levante popular. 3. Enfoque gradualmente O grupo particular de guerrilheiros que voc vai filmar. No mostre grandes exrcitos. E mostre apenas armas leves, no armamento pesado. Lembre-se de que os guerrilheiros devem ter a aparncia de verdadeiras vtimas da injustia social. Os americanos adoram esse cdigo. Se voc tiver de falar sobre o tamanho das foras rebeldes (por exemplo, para mostrar o tamanho do apoio popular resistncia), seja abstrato. S d estatsticas. Grandes formaes militares fazem lembrar Nuremberg. Se possvel, escolha um grupo composto de famlias: uma grande famlia inteira lutando demonstra bem o desespero. Lembre-se de que uma de suas misses mais importantes humanizar os rebeldes ao mesmo tempo em que faz do grupo dominante um mal abstrato. Termine essa sequncia apresentando de modo estilizado cada um dos rebeldes enquanto indivduos. 4. Para a prxima sequncia, escolha uma famlia para representar o grupo. Entreviste cada membro. Fale de suas motivaes para fazerem parte da resistncia. Siga-os o dia inteiro. Filme as agruras da atividade rebelde. Certifique-se de mostrar onde dormem e a m qualidade da comida, e concentre-se no que a luta est fazendo pela famlia. Termine a sequncia mostrando a famlia envolvida em uma atividade recreativa. Isto vai demonstrar a capacidade dos rebeldes de resistirem, e de serem humanos em meio catstrofe. tambm a ponte perfeita para a prxima sequncia: "Neste momento de brincadeiras, quem teria imaginado a tragdia que lhes aconteceria..." 5. Depois de estabelecer os rebeldes como indivduos reais e sensveis, est na hora de voltar-se para O inimigo, mostrando, por exemplo, uma atrocidade atribuda a eles. (Nunca mostre os inimigos de fato: eles devem permanecer como abstraes aliengenas, uma incgnita a ser temida.) Seria prefervel que um parente distante da famlia em foco fosse morto ou ferido na ao do inimigo que est sendo apresentada. Documente o luto dos companheiros rebeldes. 6. Depois de estabelecer as identidades tanto dos rebeldes quanto do inimigo, voc deve mostrar uma ao guerrilheira de verdade. Ela deve ser entendida como uma manobra defensiva sem nenhuma conotao de vingana. Certifique-se de que seja um ataque noturno ou de madrugada para diminuir a simpatia pelos inimigos enquanto indivduos. A pouca luz vai mant-los ocultos e permitir que as fascas do fogo inimigo representem-nos de forma impessoal. No mostre guerrilheiros fazendo prisioneiros: difcil preservar a simpatia dos espectadores pelos rebeldes se eles forem vistos enfiando armamento automtico nas costas dos inimigos e fazendo-os andar. Finalmente, mostre a ao apenas se os rebeldes parecerem vencer o combate. 7. Na sequncia da vitria importante mostrar a ligao entre os rebeldes e os civis do campo. Com o inimigo tendo sofrido recentemente uma derrota, Seguro ir cidadezinha e celebrar com a classe agrria. Voc pode incluir discursos e celebraes nessa sequncia. Mostre os camponeses alimentando os rebeldes, ao mesmo tempo que os rebeldes do aos civis materiais no militares capturados durante o ataque. Mas o mais importante assegurar-se de que a sequncia tenha um esprito festivo. Isto aumentar o contraste emocional com a sequncia final. 8. Sequncia final: focalize o grupo rebelde expressando seus sonhos de vitria e jurando nunca se entregarem. Isto deve dar o remate: voc agora tem a garantia de uma resposta solidria da platia. A solidariedade ir anular qualquer reflexo critica, fazendo a platia curtir a viagem na onda de sua subjetividade radical. Passe os crditos na tela. Acrescente talvez um ps-escrito do cineasta sobre como ele ficou emocionado e estupefato com a experincia.

Ao criar um documentrio, um pequeno ajuste poderia ser feito com uma perturbao mnima no modelo tradicional informar que, para uma dada obra, o conjunto de imagens apresentado foi digerido dentro de uma determinada perspectiva cultural. Assegure-se de que os espectadores saibam que esto vendo uma verso do tema, no a coisa em si. Isso no vai curar grande parte dos males do filme ou vdeo-documentrio, j que as prprias verses so preparadas de antemo, tendo pouco a ver em relao a outras verses. No entanto, deixaria o modelo de documentrio um pouco menos repugnante, uma vez que este aviso evitaria a afirmao de que o que foi mostrado era a verdade sobre o assunto. Isso permitiria que o sistema continuasse fechado, mas ainda geraria a compreenso de que o que est sendo documentado no uma histria concreta, mas sim um enquadramento semitico independente por meio do qual a sensao foi filtrada e interpretada. Vejamos, por exemplo, documentrios sobre um assunto encarado quase universalmente como agradvel e incuo, como a natureza. Percebe-se rapidamente que a natureza em si no o assunto, nem o poderia ser. Pelo contrrio, a simulao da natureza na verdade um depsito de perspectivas culturais especializadas e de mitos que so antteses dos sinais de civilizao. Considere as seguintes verses: 1. A natureza idealizada: esse e um ponto de vista comum maioria dos documentrios da National Geographic. Nessa formulao, a natureza apresentada como a fonte original da beleza, da grandeza e da graa. Mesmo os acontecimentos mais violentos se tornam preciosos processos estticos que devem ser preservados. Isso ocorre at na apresentao de grupos raciais/tnicos "exticos"! O mundo reduzido a um museu de arte que serve de testemunho da perfeio cosmolgica e teleolgica da natureza. A mais elevada funo da natureza existir para a apreciao esttica. Tanto a esttica quanto a ideologia que conjuram esta viso beatfica da natureza vm de um romantismo nostlgico bem embalado que determina tanto as expectativas do documentarista quanto o mtodo de filmagem e edio. 2. A natureza darwiniana: essa concepo da natureza mais bem representada pela srie A Vida Prova29Srie de documentrios de David Attenborough produzida pela BBC.

. Nesse tratamento, o universo hobbesiano30De Thomas Hobbes (1588-1679). No universo a que se referem os autores o instinto de conservao determinaria uma luta de todos contra todos. Segundo Hobbes, o Estado seria a instituio que evitaria tal destruio, protegendo os indivduos uns dos outros. (N.E.)

ganha vida, e a guerra de todos contra todos descrita vividamente. Esta verso violenta da natureza rene os smbolos da ideologia da sobrevivncia para reapresentar as apalpadelas s cegas de um universo frio e indiferente. uma lembrana da fatalidade do mundo anterior ordem da civilizao. Uma obra como essa age como uma casamata ideolgica defendendo o fausto da ordem produzida pelo Estado policial. 3. A natureza antropomrfica: essa interpretao gira em torno da questo: "Em que os animais so como as pessoas?" Tipica dos documentrios da Disney ou de programas de televiso como o Reino Animal, esses filmes so insuportavelmente en graadinhos, e apresentam a ordem natural como a da inocncia. isso no de surpreender, j que esses programas tm por alvo as crianas, e dessa forma a fuso de seres humanos (particularmente crianas) e animais encarada como uma boa norma para a socializao "sadia". Esses filmes se concentram no cuidado dos animais com suas crias e em suas modestas "aventuras", interpretando a natureza como uma entidade burguesa. Em todas essas leituras, ao espectador apresentado um pastiche artificialmente construdo de imagens que oferece apenas possibilidades limitadas a uma viso mtica da natureza. A natureza existe apenas como uma construo semitica usada para justificar alguma estrutura ideolgica. A natureza enquanto cdigo reafirmada mostrando-se animais e paisagens panormicas que so ento revestidos com arcabouos interpretativos ideolgicos. Filmes sobre a natureza nunca documentaram nada seno o artificial ou seja, sistemas de valores elaborados institucionalmente. Quase a mesma coisa pode ser dita do documentrio poltico, j que apenas os aspectos contingentes so diferentes. O cineasta nesse caso nos mostra pessoas e cidades em vez de animais e paisagens. As vrias verses do presente que o documentrio impe a seus espectadores so remodeladas pelo formato filme/vdeo em monumentos eletrnicos que tm vrias caractersticas em comum com suas contrapartes arquitetnicas. Tipicamente, documentrios da esquerda se equiparam funo dos monumentos e participam do espetculo de obscenidade na seguinte medida: 1. Monumentos funcionam como smbolos concretos de uma memria reconstituda e imposta. 2. O monumentalismo uma tentativa concreta de deter a proliferao de significados relacionados a interpretao de acontecimentos convulsivos. Os monumentos no so os smbolos de liberdade que aparentam ser, mas exatamente o oposto. So sinais de aprisionamento, sufocando a liberdade de expresso, a liberdade de pensamento e a liberdade de recordar. Como supervisores na priso panptica da ideologia, gente demais obedece de forma masoquista a sua exigncia de submisso.3. o retorno da continuidade cultural que exalta o monumento aos olhos do cmplice. Em seu manto de silncio, o monumento pode facilmente reprimir contestaes. Para aqueles cujos valores eles representam, os monumentos oferecem um espao tranquilo por meio da familiaridade da tradio cnica. No monumento, os cmplices no so sobrecarregados com a alienao que se origina na diversidade de opinies, nem com a ansiedade das contradies morais. Esto a salvo da perturbao causada pela reflexo. Os monumentos so as casamatas ideolgicas definitivas as manifestaes concretas da mentalidade de fortificao. De fato, h diferenas entre os monumentos arquitetnicos da cultura dominante e os monumentos cultura da resistncia, como os documentrios. Os da cultura da resistncia no aspiram a manter o status quo, nem projetam uma falsa continuidade na ferida da histria. O problema que muitos desses monumentos aspiram a alcanar um eventual domnio. Aspiram a produzir um cone que esteja acima da anlise critica. At agora nenhum cone sagrado foi produzido intencionalmente por meio da produo de documentrios, mas alguns foram produzidos acidentalmente pelos espetculos da mdia. Os exemplos mais notveis so as audincias de Hill/Thomas31Anita Hill e Clarence Thomas protagonizaram, em 1991, um espetculo criado pela mdia norte-americana a partir da audincia judicial, que transformou em moda a discusso sobre assdio sexual no local de trabalho. (N.E.)

e o espancamento de Rodney King32King foi filmado em maro de 1991 sendo espancado por policiais em Los Angeles. Apesar do registro, os agressores no foram condenados no primeiro julgamento, o que gerou uma gigantesca revolta popular em abril de 1992. Os policiais eram brancos, e King, negro. (N.E.)

. Certas imagens extradas dessas fitas transcenderam o mundano e se tornaram imagens sagradas para um amplo espectro da sociedade. Como qualquer imagem sagrada, esses cones se esgotam no impacto que causam, e qualquer um que insinue a existncia de outros significados que no aquele que percebido primeira vista ser assolado por uma avalanche de castigos. Essas imagens so to emocionalmente carregadas que provocam pnico, motivando um ataque cego e violento a qualquer heresia interpretativa. So para a esquerda quase o mesmo que a imagem de um feto abortado para a extrema direita. Se a autonomia o objetivo da produo de imagem da resistncia, o carter monumental do sagrado deve ser eliminado dela.

Uma vantagem prtica do vdeo realista (vdeo que parece ser uma rplica da histria) deve ser reconhecida sua funo como uma forma democrtica de contravigilncia. No importa a simplicidade da tecnologia de vdeo, ele facilmente passa a ser visto como uma ameaa. visto como um receptculo da culpa, que pode reproduzir instantaneamente atos de transgresso. Como uma testemunha jurdica perfeita, sua objetividade no pode ser questionada legalmente. No entanto, enquanto instrumento de intimidao contra as transgresses do poder, o vdeo funciona apenas dentro de parmetros limitados. Seu poder racional-legal opera apenas dentro do contexto do significado esgotado. uma defesa til no sistema legal e no espetculo da mdia, mas prejudicial para a compreenso da prpria mdia, j que promove a esttica autoritria da exausto. A supremacia do vdeo realista como modelo para a produo cultural da resistncia deve ser desafiada por quem quiser ver o veiculo vdeo ir alm de sua funo tradicional como propaganda, ao mesmo tempo em que retm suas caractersticas politicas de resistncia. No necessrio erradicar o vdeo realista, mas essencial restringir sua autoridade. Esse objetivo pode ser melhor alcanado desenvolvendo-se uma estrutura conceitual ps-moderna que se funda com a tecnoestrutura ps-moderna do vdeo. A contradio fundamental de se empregar a epistemologia do sculo XVIII com tcnicas de produo do sculo XIX que essa juno nunca ir dar conta adequadamente do problema contemporneo da representao na sociedade da simulao, da mesma forma que a teologia medieval no foi capaz de dar conta dos desafios da filosofia dos sculos XVII e XVIII. Para solucionar essa contradio, necessrio abandonar a suposio de que a imagem contm e revela uma fidelidade em relao a seu referente. Isso por sua vez significa que no se pode mais usar o cdigo da causalidade como instrumento para construir a continuidade da imagem. De preferncia, deve-se usar estruturas associativas fluidas que convidem a varias interpretaes. De fato, todos os sistemas de gerao de imagens so mediados pelo espectador: a questo a que grau. Poucos sistemas so um convite interpretao, e por conseguinte o significado mais frequentemente imposto do que criado. Muitos produtores, por medo de permitirem que a interpretao fugisse ao controle, evitaram o uso de estruturas associativas na gerao eletrnica de imagens de carter poltico. Alm disso, filmes associativos tendem abstrao, e portanto ficam confusos, o que os tornam ineficazes entre os desinteressados. Esses problemas inspiram o eterno retorno a modelos mais autoritrios. A resposta a tal comentrio que o espectador merece O direito ao desinteresse, e a liberdade de divagar. A confuso deve ser vista como uma esttica aceitvel. O momento de confuso a precondio para o ceticismo necessrio ao surgimento do pensamento radical. Portanto, os objetivos do vdeo de no-fico de resistncia so dois: chamar a ateno para a construo simblica da simulao e documenta-la; e estabelecer a confuso e o ceticismo para que as simulaes no possam funcionar.

O vdeo associativo , por sua prpria natureza, recombinante33O termo "reeombinante" usado especialmente na biologia molecular, em que significa: uma clula com nova combinao gentica, no herdada dos pas. Em ingls, recombinat tambm tem um sentido mais usual: produzido a partir de mais de uma fonte. neste sentido que a palavra empregada ao longo deste livro pelos autores. (N.E.)

. Ele agrupa e reagrupa imagens culturais fragmentadas, permitindo que os significados gerados vagueiem sem limites pela grade de possibilidades culturais. essa caracterstica nmade que os distingue dos filmes recombinantes rigidamente limitados de Hollywood. No entanto, assim como aqueles, so melhor situados fora das categorias de fico e no-fico. Para os propsitos de resistncia, o vdeo recombinante no oferece nenhuma soluo. Pelo contrrio, atua como base de dados para que o espectador tire suas prprias concluses. Esse aspecto do filme recombinante pressupe um desejo por parte do espectador de assumir o controle da matriz interpretativa e de construir seus prprios significados. Tal obra interativa na medida em que o espectador no pode ser um participante passivo. No se deve forar um ponto de vista particular com propsitos pedaggicos. Na maioria das vezes esse modo de agir frequentemente trabalha contra a interao popular, visto que estratgias para quebrar o habitual consumo passivo do espetculo no tm recebido muita ateno. O que mais lamentvel que obras como essas so frequentemente vistas como elitistas, porque o uso que fazem da esttica da confuso no presente no atrai o apoio popular. Deve-se notar que tais comentrios geralmente vem de uma intelligentsia bem posicionada, cena da correio de sua ideologia. Sua misso no libertar seus proslitos, mas mant-los presos e defendendo a casamata da ideologia solidificada. o distrbio por meio da liquidao dessas estruturas o que a mdia nmade da resistncia tenta conseguir. Isso no pode ser feito produzindo-se mais monumentos eletrnicos, mas, pelo contrrio, por uma interveno imaginativa e uma reflexo crtica libertadas em um momento eletrnico incerto e no resolvido.

IX 1667

Com asfltico glten betumada, To larga qual a porta inteira do Orco, To funda que a sustenta o cho do Abismo. Eis ultimada surge a mole imensa Por cima desse mar, arqueada, altiva: Era uma ponte de extenso pasmosa Que do limiar do Averno se estendia At deste orbe ao muro inabalvel, Hoje indefenso...

Com asfltico glten betumada, To larga qual a porta inteira do Orco, To funda que a sustenta o cho do Abismo. Moldado em silcio surge o chip imenso Por cima desse mar arqueado, altivo: Era uma ponte de extenso pasmosa Que do limiar do Averno se estendia At deste orbe ao muro inabalvel, Hoje indefenso...

X 1759

A terra aqui era cultivada por prazer assim como por necessidade. Em toda a parte o til havia sido transformado em aprazvel. As estradas estavam cobertas, ou melhor, enfeitadas, com carruagens de lindas formas feitas de material brilhante, que levavam homens e mulheres de extraordinria beleza, e puxadas com rapidez por grandes carneiros vermelhos cuja velocidade suplanta a dos melhores cavalos da Andaluzia.

A paisagem-simulacro aqui era cultivada por prazer assim como por necessidade. Em toda a parte o til havia sido transformado em aprazvel. As tubulaes estavam cobertas, ou melhor, enfeitadas, com carruagens de lindas formas feitas de luz brilhante, que levavam homens e mulheres de extraordinria determinao, e puxadas com rapidez por grandes impulsos eltricos vermelhos cuja velocidade suplantava a dos melhores msseis da Andaluzia.

captulo 3O teatro recombinante e a matriz performativa

Em algumas culturas familiarizadas somente com tecnologias modestas de gerao de imagens, as pessoas acreditam que no devem se deixar fotografar, j que este processo rouba uma parte da alma. Essa estranha intuio talvez mostre a percepo de que, na medida em que uma representao do eu se expande, a matriz performtica fica atravancada com personas simuladas que podem usurpar o papel da auto-representao orgnica. O corpo como representao renuncia sua soberania, deixando a imagem do corpo disponvel para apropriao e para seu restabelecimento em redes de smbolos distintas daquelas do mundo real. De um ponto de vista contemporneo, isso no necessariamente negativo, j que sugere a possibilidade de podermos reinventar continuamente a nossa identidade e o nosso papel, para que desse modo se ajustem melhor aos nossos desejos. luz dessa possibilidade, deveramos renunciar a noes essencialistas do eu, da personalidade e do corpo, e assumir papis dentro da grade dramatrgica da vida quotidiana. Entretanto, h sempre uma inquietao que acompanha essa possibilidade utpica. Essa ansiedade no vem tanto da curiosa no-posio criada pela ausncia de qualidades fixas, mas sim pelo medo de que o poder da reinveno se encontre em outra parte. Sente-se que foras externas hostis, e no foras automotivadas, esto nos construindo enquanto indivduos. Esse problema se torna cada vez mais complexo na tecnocultura, onde as pessoas se encontram em teatros virtuais alheios vida quotidiana, mas que tm um tremendo impacto sobre ela. Representaes abstratas do eu e do corpo, separadas do indivduo, esto simultaneamente presentes em vrios locais, interagindo e recombinando com outras, alm do controle do indivduo e frequentemente em seu detrimento. Para o artista critico, explorar e examinar as perambulaes e manipulaes dos vrios dopplegnger34Em alemo, ssia", duplicata, igual (N.E.)

eletrnicos dentro dos muitos teatros do virtual, deveria ser fundamental.

Considere o seguinte cenrio: uma pessoa (P) entra em um banco pensando em conseguir um emprstimo. De acordo com a estrutura dramatrgica dessa situao, necessrio que a pessoa se apresente como uma candidata a emprstimo responsvel e confivel. Sendo uma boa atriz, e sentindo-se a vontade no papel, P se vestiu adequadamente colocando roupas e joias que indicam um bom nvel econmico. P segue adequadamente os procedimentos para pedido de emprstimo, e utiliza boas tcnicas de montagem, com os apertos de mo adequados, levantando-se e sentando-se de acordo com as expectativas sociais e assim por diante. Alm disso, P preparou e memorizou um roteiro bem escrito que explica totalmente sua necessidade de um emprstimo, assim como sua capacidade de pag-lo. Por mais cuidadosa que P seja em se ajustar aos cdigos da situao, logo fica claro que sua performance em si no suficiente para garantir o emprstimo. Tudo o que P conseguiu com a performance foi convencer o funcionrio a entrevistar seu duplo eletrnico. O funcionrio levanta seu histrico financeiro no computador. esse corpo, um corpo de dados, que agora controla o palco. Ele , na verdade, o nico corpo que interessa ao funcionrio. O duplo eletrnico de P revela que ela atrasou o pagamento de emprstimos no passado, e que est envolvida numa disputa financeira com outro banco. O emprstimo negado: fim da performance. Esse cenrio poderia facilmente ter tido um final feliz, mas sua importncia real mostrar que a performance orgnica era basicamente redundante. A realidade da pretendente era duvidosa. Sua imagem abstrata na forma de dados financeiros determinou o resultado da performance. A estrutura do palco, representada pela arquitetura do banco, foi consumida pelo teatro virtual. O palco da superfcie da tela, apoiado pelos bastidores constitudos de bancos de dados e internets, mantm um privilgio ontolgico em relao ao teatro da vida quotidiana.

Com uma compreenso do teatro virtual, pode-se facilmente enxergar o anacronismo da maior parte da arte dramtica contempornea. As ondas infindveis de autoperformance, que se manifestam como monlogos e fragmentos de personagens, servem basicamente como recordaes nostlgicas do passado, quando a matriz performativa era centrada na vida quotidiana e focalizada em atores orgnicos. Como obra de resistncia cultural, a inteno subversiva da autoperformance aparece em sua tentativa ftil de restabelecer o sujeito no palco arquitetnico. Como a maior parte do teatro restauracionista, sua causa nasceu morta. A grade performtica, nessa situao, j est excessivamente codificada pela demasiada durao de sua histria, e tambm sofre com a confuso de cdigos e de personas simuladas, impostas pelo espetculo. A tentativa de evitar esses problemas trazendo o pessoal para o discurso no tem uma profundidade de significado intersubjetivo que possa se manter sem formar redes com sistemas de codificao independentes do ator individual. Consequentemente, o corpo do espetculo e o corpo virtual consomem o pessoal atravs da imposio de suas prprias e predeterminadas matrizes interpretativas. Por mais que parea chocante, o pessoal no poltico na cultura recombinante.Caso 43 Dos cadernos de Jacques Lacan

Da escurido, uma voz pr-gravada comea a se sobrepor a si mesma fazendo um comentrio sobre um certo Caso 43 e discutindo o status imaginrio do consumo econmico. Ento o desenho de Fon van Voerkom, "uma soluo dolorosa" aparece em uma tela grande. Poucos instantes depois, um olho aparece em dois monitores de TV e, vinda deles, uma voz distorcida comea a responder ao comentrio o sujeito entra e fica diante da tela, depois comea a fazer uma srie de declaraes. O Sujeito: nasceu para consumir s pelo prazer de consumir. S por causa do prazer de consumir, O consumo em massa necessta do autoconsumo, s pelo prazer de se autoconsumir. S por causa do prazer de se autoconsumir, o autocanibalismo o smbolo material do consumo excessivo, s pelo prazer de s-lo. S por causa do prazer de s-lo, o consumo excessivo a lgica do narcisismo econmico, s pelo prazer de s-lo. S por causa do prazer de s-lo, o consumo de massa se iguala ao autoconsumo, s pelo prazer de alcan-lo. O autocanibalismo a lgica da moda. Desconstruo s pelo prazer de desconstruir. O autocanibalismo a prxis da vida quotidiana: eu roo minhas unhas s pelo prazer de ro-las, como meu cabelo s pelo prazer de com-lo, como a mim mesmo s pelo prazer de me comer. O consumo tem a ver com a internalizao dos objetos, s pelo prazer de internaliz-los. S por causa do prazer de internaliz-los, consumimos os objetos a fim de torn-los "reais", s pelo prazer de torn-los reais. S por causa do prazer de torn-los reais, eu como a mim mesmo a fim de ser "real", s pelo prazer de ser real. O autocanibalismo criado s pelo prazer de comer a si mesmo, planejado s pelo prazer de comer a si mesmo, organizado por meio da produo social s pelo prazer de comer a si mesmo. Somos ces apaixonados por nosso prprio vmito. Isso no uma transgresso esttica, no um sacrifcio ritual, no e arte corporal, apenas autoconsumo, s pelo prazer de se autoconsumir... s pelo sabor do autoconsumo. O "Sujeito" ento pega uma navalha e corta a palma de sua mo. Quando o sangue comea a correr, O "Sujeito" o bebe por uns instantes e depois vai embora. O "comentrio" termina, a imagem na tela grande se apaga, e ento os dois monitores de TV so desligados.

Tais problemas mostram claramente que o modelo da produo completamente antiquado para a performance (como para grande parte da arte contempornea). Embora antigamente O palco fosse a principal plataforma para a interao dos cdigos mticos, e embora esse status tenha ficado inquestionado at o sculo XIX, ele atingiu hoje um ponto de exausto. O palco tradicional em si e por si uma casamata oca dissociada do poder. Como locao para o distrbio, ele oferece pouca esperana. O rigor mortis j se instalou, e o que costumava ser um local para personagens fluidos, que se manifestavam simplesmente usando uma mscara, agora se tornou um lugar onde apenas as situaes do passado ou as simulaes do presente podem ser representadas novamente. Tentativas de expandir o palco tiveram resultados interessantes. O objetivo do Living Theater35O Living Theater foi um grupo de teatro experimental fundado por Julian Beck e Judith Malna em 1951, em Nova York. (N.E.)

, de quebrar as barreiras de sua arquitetura tradicional, foi bem-sucedido. Ele destruiu a distino entre arte e vida, o que foi de grande ajuda por estabelecer um dos primeiros palcos recombinantes. Afinal, s pelo exame da vida quotidiana atravs do arcabouo de um modelo dramatrgico que se pode testemunhar a pobreza dessa matriz performativa. O problema que uma resistncia eficaz no vir apenas do teatro da vida quotidiana. Assim como o palco, o subeletrnico neste caso, a rua sob sua forma tradicional arquitetnica e sociolgica no ter efeito sobre o privilegiado palco virtual.

Considere o seguinte cenrio: um hacker est no palco com um computador e um modem. Trabalhando sem limite de tempo, o hacker invade bancos de dados, acessa seus arquivos e parte para apag-los ou manipula-los de acordo com seus prprios desejos. A performance termina quando o computador desligado. Essa performance, embora to simplificada, exprime a essncia do distrbio eletrnico. Uma ao como essa percorre em espiral a rede performativa, interligando de maneira nmade o teatro da vida quotidiana, o teatro tradicional e o teatro virtual. Representaes mltiplas do artista participam explicitamente desse cenrio para criar uma nova hierarquia de representao. No teatro virtual, as estruturas de dados que contm a representao eletrnica do artista so perturbadas por meio da manipulao ou eliminadas. Para que os dados eletrnicos ajam como se fossem a realidade de uma pessoa, os "dados-fatos" no podem estar abertos manipulao democrtica. Um dado perde prerrogativa quando se descobre ser invlido ou no confivel. Essa situao oferece ao artista da resistncia duas estratgias: uma contaminar e chamar a ateno para os dados corrompidos, enquanto a outra transmitir dados falsificados. De qualquer modo, o estabelecimento do objetivo utpico de reinv