cadernos/diÁrios de asÉ – escritas de candomblÉ

15
Recôncavo: Revista de História da UNIABEU Volume 3 Número 5 Julho - dezembro de 2013 RECÔNCAVO ISSN 2238 - 2127 CADERNOS/DIÁRIOS DE ASÉ – ESCRITAS DE CANDOMBLÉ Marta Ferreira da Silva 1 2 RESUMO: Este ensaio se propõe a apresentar as considerações iniciais da pesquisa em que analisamos as redes educativas estabelecidas, através das construções e leituras de cadernos/diários produzidos pelas crianças e jovens que são iniciados em religião de matriz africana (candomblé) na instituição religiosa Ilè Aşé Omi Larè Ìyá Sagbá, em 1 Mestranda em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 2 As imagens utilizadas são de autoria da fotógrafa Luciana Serra.

Upload: leandro-araujo

Post on 02-Oct-2015

52 views

Category:

Documents


18 download

DESCRIPTION

Este ensaio se propõe a apresentar as considerações iniciais da pesquisa em que analisamos as redes educativas estabelecidas, através das construções e leituras de cadernos/diários produzidos pelas crianças e jovens que são iniciados em religião de matriz africana (candomblé) na instituição religiosa Ilè Aşé Omi Larè Ìyá Sagbá, em Duque de Caxias - RJ. A partir da escrita, prática incomum em religiões de matrizafricana, refletir sobre as ressignificações promovidas por esta prática. Usos, continuidades, rupturas e especificidades provocadas não só pela tradição e segredos repassados, mas a escrita em si, como é percebida por quem está ator/autor desses materiais e sob sua ação direta.

TRANSCRIPT

  • Recncavo: Revista de Histria da UNIABEU Volume 3 Nmero 5 Julho - dezembro de 2013

    RECNCAVO ISSN 2238 - 2127

    CADERNOS/DIRIOS DE AS ESCRITAS DE CANDOMBL

    Marta Ferreira da Silva1

    2

    RESUMO: Este ensaio se prope a apresentar as consideraes iniciais da pesquisa em

    que analisamos as redes educativas estabelecidas, atravs das construes e leituras

    de cadernos/dirios produzidos pelas crianas e jovens que so iniciados em religio

    de matriz africana (candombl) na instituio religiosa Il A Omi Lar y Sagb, em

    1 Mestranda em Educao pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

    2 As imagens utilizadas so de autoria da fotgrafa Luciana Serra.

  • 122

    Recncavo: Revista de Histria da UNIABEU Volume 3 Nmero 5 julho - dezembro de 2013

    Duque de Caxias - RJ. A partir da escrita, prtica incomum em religies de matriz

    africana, refletir sobre as ressignificaes promovidas por esta prtica. Usos,

    continuidades, rupturas e especificidades provocadas no s pela tradio e segredos

    repassados, mas a escrita em si, como percebida por quem est ator/autor desses

    materiais e sob sua ao direta.

    Palavras-chave: educao; redes educativas; candombl.

    ABSTRACT: This text intends to present the initial considerations of research in which

    we analyze the educational networks established through the buildings and readings

    notebooks/diaries produced by the children and youth who are started on religion of

    African origin (Candombl), in the religious institution Ile Ase Omi Lare Iya Sagb, in

    Duque de Caxias - RJ. From writing, uncommon practice in African religions, reflect on

    the reinterpretation promoted by this practice. Uses, continuities, ruptures and

    specificities, caused not only by tradition and secrets passed on, but the writing itself,

    how it is perceived by those being actors/authors of these materials and under its

    direct action.

    Keywords: Education - Educational Network - Candombl.

    tn, termo da lngua yorub que significa mitos, histrias de oris. Histrias

    que tm por tradio, dentro dos terreiros de candombl, serem repassadas de

    gerao em gerao aos iniciados no culto, atravs da oralidade. O tn estabelece as

    caractersticas pessoais dos oris e os caminhos percorridos por eles atravs de

    enredos que envolvem o sagrado e o humano que acabam por determinar ritos,

    personalidades e identificaes dentro do terreiro de candombl. atravs dele que se

    estabelece como rituais sero realizados. Rituais que envolvem segredos. Como os

    segredos so mantidos atravs das geraes? Ser que o registro escrito pode ameaar

    os segredos? Como perpetuar segredos sem correr os riscos de deform-los ou

    mesmos modific-los? A escrita protege ou fragiliza esses segredos?

    Essas perguntas movem a pesquisa inicial que serve de aporte para este ensaio

    e suscita outras ligadas diretamente s questes do aprender de crianas e jovens para

  • 123

    Recncavo: Revista de Histria da UNIABEU Volume 3 Nmero 5 julho - dezembro de 2013

    alm dos muros da escola, pensando o itn como um facilitador da aprendizagem.

    Propomo-nos a pesquisar esses processos a partir do registro escrito desses tn e seu

    repasse dentro de um terreiro de candombl, onde os registros escritos fazem parte

    do seu cotidiano, sendo desdobramento de uma prtica pouco comum nos espaos de

    religiosidade afro-descendente.

    Interessa-nos aqui partilhar um pouco essa cultura preservada e recriada nos

    terreiros de candombl. Para Raymond Williams (2007), a noo de cultura est

    impregnada da produo histrica, material e simblica da sociedade e suas lutas.

    Cultura, na concepo de Williams so modos de vida. As comunidades de terreiros

    abrigam modos de vida singulares, complexos, constitudos de saberes especficos,

    saberes que percebem, sentem, intuem, interpretam e narram o mundo, ou seja, h

    uma epistemologia, uma maneira de conhecer prpria nesses lugares de saberes, que

    difere dos modelos epistemolgicos dominantes.

    O tn um dos principais instrumentos para o repasse, compreenso,

    manuteno das tradies do candombl, tradies essas que possuam o segredo e a

    oralidade como mola de propulso at h algum tempo, tendo em vista que esta

    prtica vem passando por um processo de transformao, a partir do momento em

    que encontramos registros escritos nos espaos dos terreiros. Falamos em tradio

    no sob a tica passadista ou tradicionalista criticada por Maritegui, que segundo o

    autor, percebe o passado como uma relquia fria, inerte (Maritegui, 2007);

    trabalhamos com tradio na perspectiva de compreender o passado para sentirmos

    o presente e nos inquietarmos com o futuro (Maritegui, 2007).

    Concordando com Maritegui e sua definio clara e objetiva sobre tradio,

    quando diz que ela viva e mvel, nos propomos a pesquisar, a partir de um material

    manuscrito que foi deixado como herana por uma yalori/me de santo ao seu filho

    de santo, e o uso desta prtica incomum nos terreiros de candombl, a escrita, e as

    ressignificaes promovidas atravs das leituras desse material, e mais

    especificamente, os cadernos produzidos pelas crianas e jovens do terreiro

    pesquisado.

    Usos, continuidades, rupturas e especificidades provocadas no s pelo

    manuscrito, mas a escrita em si; como percebida pelos herdeiros desse material. Falo

    em herdeiros, pois esse material encontra-se em movimento atravs do herdeiro

  • 124

    Recncavo: Revista de Histria da UNIABEU Volume 3 Nmero 5 julho - dezembro de 2013

    direto, hoje um babalori/pai de santo, que tem um terreiro de candombl em pleno

    funcionamento, com muitas crianas e jovens iniciados e incentivados a registrar em

    cadernos todos os ritos, bem como sua origem de famlia de santo, mas sem quebrar a

    tradio do segredo. Cadernos/dirios que so lidos entre eles dentro do terreiro de

    candombl; secretos, pois possuem informaes que no podem ser repassadas aos

    no iniciados e nem aos iniciados de outros terreiros.

    A escrita dos cadernos/dirios, por sua construo, como marcas que o corpo

    vai adquirindo a cada experincia vivenciada dentro do terreiro, impregnado com as

    demais experincias e leituras de vida para alm desse espao, pensando em Certeau,

    e sua demonstrao sobre os esforos desprendidos ao nos propormos a fazer

    registros escritos:

    Do nascimento ao luto, o direito se apodera dos corpos para faz-

    los seu texto. Mediante toda sorte de iniciaes (ritual, escolar, etc.),

    ele os transforma em tbuas da lei, em quadros vivos das regras e

    dos costumes, em atores do teatro organizado por uma ordem social.

    (...).

    (...) O texto impresso remete a tudo aquilo que se imprime sobre o

    nosso corpo, marca-o (com ferro em brasa) com o Nome e com a Lei,

    altera-o enfim com dor e/ou prazer para fazer dele um smbolo do

    Outro, um dito, um chamado, um nomeado. A cena livresca

    representa a experincia, tanto social como amorosa, de ser o escrito

    daquilo que se pode identificar. (CERTEAU, 1994, pp. 231-232).

    A escrita de cada caderno acaba por expor no s as marcas da tradio

    religiosa, mas das tradies que circulam e compem essas crianas e jovens, com suas

    personalidades, experincias familiares, experincias escolares, gostos, alegrias e

    tristezas.

    vlido observar que a av desses cadernos, a yalori/me de santo (que

    deixou seus manuscritos como herana), uma pessoa que no trabalhava por receber

    penses herdadas do pai militar, j falecida, mas seu filho de santo, herdeiro dos

    manuscritos, repassa as tradies estabelecidas no seu prprio terreiro de candombl.

    Assim como sua yalori/me de santo, a religio no funciona como um meio para

    sua subsistncia, ele no vive do candombl. Possui profisso e atua nela. mdico,

  • 125

    Recncavo: Revista de Histria da UNIABEU Volume 3 Nmero 5 julho - dezembro de 2013

    professor universitrio e pai de santo. Incentiva a ampliao da escolaridade entre

    seus filhos de santo - crianas, jovens e adultos. Apresenta-se como exemplo de

    superao ao contar sua trajetria de vida dedicada aos oris, sem que isso

    atrapalhasse a sua vida pessoal/intelectual.

    O babalori/pai de santo mantm a raiz do seu A, nao Ketu, a Gantois3,

    com a qual tem contato e acesso, j antes estabelecido por sua me de santo,

    procurando uma vez ao ano visitar o primeiro a Gantois, em Salvador, levando filhos

    da casa em sua companhia para conhecerem de perto a histria viva do terreiro e suas

    tradies de quase dois sculos.

    O terreiro de candombl onde realizamos a investigao localiza-se em Santa

    Cruz da Serra, Duque de Caxias RJ. Tem uma mdia de cento e dez filhos de santo

    entre crianas, jovens e adultos. Uma pequena parte dos filhos de santo mora no

    bairro em que o terreiro est localizado e os demais que, so a maioria, moram em

    outros municpios (Rio de Janeiro, Paraty, Nova Iguau, Volta Redonda, So Gonalo,

    Maca) e outro pas (EUA).

    O nvel de escolaridade bastante diversificado, desde o ensino fundamental

    incompleto ps-graduao. Todas as crianas frequentam a escola, e existe uma

    cobrana de rendimento por parte do pai de santo. Boletins e avaliaes so

    apresentados ao babalori; faz parte do dia a dia do terreiro ver crianas e

    adolescentes com cadernos e/ou livros para realizao das atividades de casa e em

    estudo para as avaliaes. Quando algo no vai bem com relao ao rendimento e/ou

    comportamento os responsveis solicitam ajuda do babalori, como suporte para a

    educao escolar.

    Os responsveis das crianas e jovens, na maioria dos casos, so adeptos da

    religio e tambm frequentam o terreiro. As atividades profissionais das pessoas que

    frequentam o terreiro so bem variadas, passando por trabalhos formais, com registro

    em carteira, como trabalhos informais, sem vnculo empregatcio.

    3 Terreiro fundado em 1849 (p.11), por Omonik (nome de origem africana), uma egba, de cultura

    yorub,natural de Ak em Abeocut na Nigria; tendo por nome de batismo Maria Jlia da Conceio Nazar.

  • 126

    Recncavo: Revista de Histria da UNIABEU Volume 3 Nmero 5 julho - dezembro de 2013

    ATIVIDADES PROFISSIONAIS

    ATIVIDADES FORMAIS ATIVIDADES INFORMAIS

    Auxiliar de servios gerais Manicure

    Auxiliar de rouparia Vendedor

    Dentista Auxiliar de recreao

    Mdico Diarista

    Professor Cuidadora (crianas/idosos)

    Recepcionista

    Tcnico em segurana do trabalho

    Vendedor

    Promotor de vendas

    Costureira

    Militar

    Auxiliar administrativo

    Empresrio (hotelaria; decorao)

    Gerente

    O respeito e a educao so exigidos a todo tempo tanto entre os irmos e os

    mais velhos ou as pessoas que possuam cargo4, assim como com as visitas que chegam

    ao terreiro.

    As publicaes e pesquisas realizadas e em andamento sobre casas de

    candombl so voltadas, em grande parte, para estudos etnogrficos e antropolgicos;

    pouco se faz com a relao entre casas de candombl e educao. Entre os anos de

    1989 e 2011, contabilizamos, no banco de teses da CAPES, um total de 25 pesquisas

    entre dissertaes de mestrado e teses de doutorado5; em doze anos uma mdia de

    duas pesquisas ao ano. Em 2012, nenhum registro foi encontrado.

    4 Uma funo especfica carregada de responsabilidade apontada por um Oris ou Babalori ou

    yalori. 5 Esses dados foram coletados no site da CAPES, especificamente nas universidades registradas na

    tabela.

  • 127

    Recncavo: Revista de Histria da UNIABEU Volume 3 Nmero 5 julho - dezembro de 2013

    PESQUISAS COM TEMA A EDUCAO E CANDOMBL

    ANO

    NMERO DE PESQUISAS

    UNIVERSIDADE

    1989

    02

    UFBA/USP

    1996

    01

    PUC SP

    1997

    01

    UFMG

    1998

    03

    UFBA (02) / USP (01)

    1999

    01

    UNICAMP

    2004

    01

    PUC SP

    2005

    03

    PUC RJ (01)/USP (02)

    2006

    01

    UFPB

    2008

    05

    UERJ(02)/USP(01)/UFRJ(01)/UFMG (01)

    2009

    04

    UFBA (02)/UFF (01)/UFRGS (01)

    2010

    03

    UERJ (01)/UFCE (01)/UCP (01)

    2011

    01

    USP

    Esses dados revelam que pouco se tem discutido sobre o tema Educao-

    Candombl, bem como Candombl e suas crianas.

    Citamos, como destaque, a pesquisa de Caputo (2005), como propulsora e

    incentivadora em pensar crianas e jovens de terreiros e os reflexos na/da escola em

    suas vidas, e tambm para justificar a validade da presente pesquisa, refletindo sobre

    os objetivos que a autora destaca na sua pesquisa:

    Assim, a pesquisa que partilho com vocs teve dois objetivos: o

    primeiro foi observar e ouvir as prticas de crianas e adolescentes

    que frequentam terreiros de candombl, entendendo os terreiros

    como espaos de educao. O segundo foi observar e ouvir a escola

  • 128

    Recncavo: Revista de Histria da UNIABEU Volume 3 Nmero 5 julho - dezembro de 2013

    para saber como ela se relaciona com essas crianas (CAPUTO, 2012,

    pp. 30-31).

    A relao criana de candombl/escola nos possibilita ir alm dos muros do

    terreiro e da escola, pensando em como as redes educativas estabelecidas nestes dois

    espaos ajudam a construir/tecer as identidades dessas crianas e jovens, e fortalecem

    (ou no) seu protagonismo social.

    O foco da nossa investigao sobre os cadernos produzidos pelas crianas e

    jovens sob a orientao do herdeiro direto do material manuscrito, nas

    ressignificaes feitas com o material manuscrito deixado pela yalori/me de santo,

    como se d sua relao com a oralidade e a escrita, como os segredos/mistrios

    podem ser mantidos aps o seu registro escrito. todo um trabalho de resgate de

    memria, de reelaborao de valores, avaliao de perspectiva religiosa e de registro

    de histrias ressignificadas e dotadas de sentidos em pleno movimento de

    construo/reconstruo, que se reflete nos cadernos tecidos no cotidiano do terreiro.

  • 129

    Recncavo: Revista de Histria da UNIABEU Volume 3 Nmero 5 julho - dezembro de 2013

    Consideramos importante para uma melhor compreenso das ressignificaes

    estabelecidas neste espao, confrontar os cadernos das crianas e jovens com a fala do

    babalori/pai de santo que se faz responsvel pelo repasse dessa tradio, buscando

    suas justificativas para o incentivo da propagao da escrita em seu terreiro de

    candombl, e a valorizao e incentivo ao estudo:

    - Qual a importncia, para ele, dessas prticas?

    - Qual a fora da lngua escrita? Esse pai de santo possui essa noo?

    - Como se d a formao da casa de santo?

    - Como a sociedade grafocntrica se impacta com a oralidade?

    - Como os processos de formao religiosa respondem ao tempo ser que

    atravs da escrita?

    Utilizamos, alm dos cadernos das crianas e jovens, as imagens do cotidiano,

    entrevistas gravadas dentro do terreiro em questo, sobre o aprender neste lugar,

    como forma de fundamentar, enriquecer e legitimar as escritas que tecem as redes de

    conhecimento estabelecidas neste espao; entrevistas gravadas fora do terreiro com

    pessoas ligadas ao candombl e que possuem ligao com o babalori/pai de santo

    atualmente e anterior inaugurao do terreiro pesquisado.

    Estamos analisando, especificamente, oito cadernos construdos no perodo de

    sete anos de existncia do terreiro; os cadernos so como dirios que vo se

    atualizando dia aps dia dentro do prprio espao do terreiro. As idades dos autores

    dos cadernos variam de sete aos vinte e dois anos. Estamos acompanhando o crescer

    desses autores dentro do espao religioso atravs dos seus cadernos/dirios; no

    campo, h seis meses acompanhamos as construes e continuidades dos mesmos.

    As entrevistas com as crianas e jovens do terreiro pesquisado servem de

    suporte para uma melhor compreenso dos registros escritos analisados bem como as

    demais questes propostas pela pesquisa, pensando essa entrevista como (...) uma

    experincia de olhar o mundo e ouvir o outro. (Caputo, 2006, p. 28).

    Utilizamos imagens do cotidiano como subsdio e complemento para uma

    melhor anlise dos indcios apontados no decorrer da pesquisa, pensando de forma

    contextualizada essas imagens:

  • 130

    Recncavo: Revista de Histria da UNIABEU Volume 3 Nmero 5 julho - dezembro de 2013

    Nessa perspectiva, compreensvel que as fotografias devam ser

    objeto de uma leitura sociolgica; e que nunca sejam consideradas

    em si mesmas e por si mesmas em termos das suas qualidades

    tcnicas e estticas. (BOURDIEU, 2005, p. 34).

    Os desenhos encontrados nos cadernos tambm servem como base para

    anlise sob a perspectiva sugerida por Bourdieu.

  • 131

    Recncavo: Revista de Histria da UNIABEU Volume 3 Nmero 5 julho - dezembro de 2013

    Como aporte para nossas anlises, consideramos alguns eixos temticos que

    percebemos importantes para o embasamento terico desta pesquisa. Destacamos

    como principais: cultura, tradio, escrita e redes educativas.

    O refletir sobre cultura nos caro por estarmos tratando especificamente de

    ressignificaes de tradies e em meio a tantas definies sobre o assunto,

    abordaremos o conceito sob as perspectivas de Williams:

    Estou dizendo que uma teoria da cultura atinge sua maior

    significao quando se ocupa precisamente das relaes entre as

    muitas e diversas atividades humanas que tm sido agrupadas

    histrica e teoricamente nessas categorias, e especialmente quando

    ela explora essas relaes como simultaneamente dinmicas e

    especficas dentro de situaes histricas descritveis que, prticas

    sociais, so alterveis, assim como nosso presente o . , ento,

    nesta acepo de uma teoria das relaes especficas e em constante

    mutao que a teoria da cultura se torna apropriada e produtiva, ao

    invs de se oferecer como uma teoria capaz de abranger as mais

    diversas prticas artsticas ou, de outro lado, como um tipo de teoria

    social proposta ou organizada como uma alternativa embora que

    ela sempre oferecer uma contribuio a uma anlise scio-

    histrica mais geral. (WILLIAMS, 2011, p.190)

    Para esta pesquisa, pensar cultura como contribuio scio-histrica

    faz-se fundamental por estarmos dialogando com tradies religiosas que vo sendo

    repassadas atravs dos sculos, em princpio, de forma oral, dos mais velhos aos mais

    jovens, e, por ora, ainda dos mais velhos aos mais jovens, mas com um diferencial -

    registros escritos em cadernos/dirios, nos fazendo refletir se as formas de aprender e

    os locais de aprender tambm vo sofrendo influncias scio-histricas.

    Estamos nos propondo a pesquisar conhecimentos seculares e sua

    transmisso para as geraes como busca para a manuteno de tradies, que

    segundo Maritegui, est em constante movimento:

    Porque la tradicin es, contra lo que desean los tradicionalistas, viva

    y mvil. La crean los que la niegan para renovarla y enriquecerla. La

    matan los que la quieren muerta y fija, prolongacin de um pasado

  • 132

    Recncavo: Revista de Histria da UNIABEU Volume 3 Nmero 5 julho - dezembro de 2013

    en un presente sin fuerzas, para incorporar en ella su espritu y para

    meter en ella su sangre.

    (...) Hablo, claro est, de la tradicion entendida como patrimonio y

    continuidad histrica. (MARITEGUI, 2007, p. 114).

    Por estarmos pesquisando uma cultura que, tradicionalmente, era repassada

    oralmente, as ressignificaes e aprendizagens ocorridas na transio para a escrita so

    consideradas por ns como fundamentais para tentarmos compreender melhor esses

    registros. Utilizaremos Certeau para nos ajudar na reflexo sobre o papel do registro dessa

    escrita:

    O sofrimento de ser escrito pela lei do grupo vem estranhamente

    acompanhado por um prazer, o de ser reconhecido (mas no se sabe

    por quem), de se tornar uma palavra identificvel e legvel numa

    lngua social, de ser inscrito numa simblica sem dono e sem autor.

    (CERTEAU, 1994, p. 232).

    Esta pesquisa, a partir dos registros escritos dos cadernos de crianas e jovens

    do terreiro, se prope a pensar nas redes educativas estabelecidas em espaos alm-

    muros da escola; como o aprender em espaos tidos como no formais, produzem

    conhecimentos e saberes so compartilhados:

    Assim, ao contrrio da formao aprendida e desenvolvida na

    maioria das pesquisas do campo educacional, inclusive em muitas

    sobre os cotidianos escolares, que, de maneira muito frequente, tm

    assumido uma forma de pensar que os vem negando como espao

    tempo de saber e criao, vou reafirm-lo como sendo de prazer,

    inteligncia, imaginao, memria e solidariedade, precisando ser

    entendido, tambm e sobretudo, como de grande diversidade. (...)

    Buscar entender, de maneira diferente do aprendido, as atividades

    dos cotidianos escolares ou dos cotidianos comuns, exige que esteja

    disposta a ver alm daquilo que os outros j viram e muito mais: que

    seja capaz de mergulhar inteiramente em uma determinada

    realidade buscando referncias de sons, sendo capaz de engolir

  • 133

    Recncavo: Revista de Histria da UNIABEU Volume 3 Nmero 5 julho - dezembro de 2013

    sentindo a variedade de gostos, caminhar tocando coisas e pessoas e

    me deixando tocar por elas, cheirando odores que a realidade coloca

    a cada ponto do caminho dirio. (ALVES, 2008, pp. 18-19).

    Os odores, sabores, sons, toques, dentre outras tantas coisas, vo

    tecendo as redes de saberes dos/nos/com cotidianos, no nosso caso especificamente

    no terreiro, mas no desconsiderando todo o mundo que forma cada uma das pessoas

    que compem este espao.

    Nesses cadernos/dirios encontramos vocabulrios, histrias de vida

    religiosa, rezas, cantos, artefatos como, por exemplo, penas e folhas; desenhos

    criados, ao que nos parece inicialmente, para afirmar sentidos aos escritos; estratgias

    de recordar, rememorar e repassar, na medida do possvel, o aprendido no cotidiano

    desse espao, fotos de momentos e pessoas consideradas importantes na trajetria

    espiritual. Todos falam em ensinar sempre aos irmos mais novos, a quem est

    chegando, falam da importncia de ouvir os mais velhos e suas histrias para em

    seguida, ou concomitantemente, fazer o registro escrito para que no se esqueam do

    que foi falado e ensinado, para que no se perca a tradio.

    Nos registros tambm podemos observar o crescimento cronolgico das

    crianas e jovens a partir do avanar dos anos. O caderno de uma menina iniciada em

    2006 aos onze anos, onde seu relato refere-se a sua boneca que ficou junto a ela

    durante seus rituais, as brincadeiras com sua boneca e com as crianas que teve

    contato nesse perodo, junto a relatos das suas sensaes mgicas durante os rituais;

    aps trs anos, aos quatorze anos, em outro momento ritualstico, sua escrita aponta a

    preocupao em aprender, pois considera a possibilidade de vir a ter um dia

    responsabilidades maiores em sua trajetria religiosa; relata detalhes dos rituais pelo

    qual passou e que confirmam o que antes era uma suposio. J no existe mais o

    relato da boneca e brincadeiras, mas a emoo por estar em crescimento na sua

    religio.

    Em alguns cadernos/dirios percebemos como o babalori/pai de

    santo, visto como um modelo para as crianas e jovens do terreiro, por sua trajetria

    pessoal. Nas entrevistas isso fica muito mais bvio, ao falarem que pretendem fazer

  • 134

    Recncavo: Revista de Histria da UNIABEU Volume 3 Nmero 5 julho - dezembro de 2013

    faculdade como Bab, e ainda como ele trabalhar e cuidar das responsabilidades

    religiosas.

    O contato com os cadernos/dirios um momento de riqueza e diversidade

    cultural, onde tradies seculares esbarram e convivem o tempo todo com artefatos

    do nosso cotidiano cibercultural: cadernos, computadores, redes sociais, bloco de

    notas em celulares misturados a rituais, cnticos, transes, cheiros, sabores. Os prprios

    cadernos compostos de segredos pessoais divinizados, de histrias cotidianas

    vivenciadas em seus rituais, mitologias que tentam dar conta das subjetividades

    religiosas, singularidades que os tornam to ricos e conflituosos ao pensar em

    manuteno e perpetuao de tradies.

    vlido ressaltar que estamos no caminhar da pesquisa, portanto, nas

    tenses provocadas pelos questionamentos que movem a ao de pesquisar.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS. ALVES, Nilda. Trajetrias e redes na formao de professores. Rio de Janeiro, DP&A, 2001. BENISTE, Jos. Dicionrio yorub portugus. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2011. BOURDIEU, Pierre. BOURDIEU, Marie-Claire. O campons e a fotografia. Revista Brasileira de Sociologia e Poltica, 2006; N 26: pp. 31-39 (Jun). CAPUTO, Stela Guedes. Sobre Entrevistas teoria, prtica e experincias. Petrpolis, Vozes, 2006. ___________________. Educao nos terreiros e como a escola se relaciona com as crianas de candombl. Rio de Janeiro, Pallas, 2012. CARDOSO, Ciro Flamarion S. Uma introduo histria. So Paulo, Brasiliense, 1982. CERTEAU, Michel de. A inveno do cotidiano artes de fazer. Petrpolis, Vozes, 1994. GOLDENBERG, Mirian. A arte de pesquisar como fazer pesquisa qualitativa em Cincias Sociais. So Paulo, Record, 2009. MARITEGUI, Jos Carlos. Literatura y esttica. Caracas, Fundacin Biblioteca Ayacucho, 2007. NBREGA, Cida. ECHEVERRIA, Regina. Me Menininha do Gantois uma biografia. Rio de Janeiro, Ediouro, 2006.

  • 135

    Recncavo: Revista de Histria da UNIABEU Volume 3 Nmero 5 julho - dezembro de 2013

    OLIVEIRA, Ins Barbosa de. ALVES, Nilda (Orgs.). Pesquisa nos/dos/com os cotidianos da escolas sobre redes de saberes. Petrpolis, DP&A, 2008. WILLIAMS, Raymond. Cultura. So Paulo, Paz e Terra, 1992. ___________________. Palavras-chave. So Paulo, Boitempo, 2007. ___________________. Poltica do modernismo. So Paulo, UNESP, 2011.