cadernos do mercado de valores mobiliÁrios - … · de juro, jogo e aposta e alteração das...

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NÚMERO 53 * Abril de 2016 Artigos * A Anatomia do Mercado Português - Uma Análise da Microestrutura e Liquidez da Euronext Lisbon * Os Derivados Diferenciais e a Exceção de Jogo e Aposta * Abuso de Informação Privilegiada - O Especial Caso dos Instrumentos de Remuneração dos Administradores CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

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Page 1: CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS - … · de Juro, Jogo e Aposta e Alteração das Circunstâncias que Fundaram a Decisão de Contratar (Continuado do n.º 3987, pág

1 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

NÚMERO 53 * Abril de 2016

Artigos

* A Anatomia do Mercado Português - Uma Análise da Microestrutura e Liquidez da Euronext Lisbon

* Os Derivados Diferenciais e a Exceção de Jogo e Aposta

* Abuso de Informação Privilegiada - O Especial Caso

dos Instrumentos de Remuneração dos Administradores

CADERNOS

DO MERCADO

DE VALORES

MOBILIÁRIOS

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2 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

N.º 53

Abril de 2016

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3 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Editorial 05

Artigos:

A Anatomia do Mercado Português - Uma Análise

da Microestrutura e Liquidez da Euronext Lisbon 09

Paulo Pereira da Silva

Os Derivados Diferenciais e a Exceção de Jogo e Aposta 24

Simão Mendes de Sousa

Abuso de Informação Privilegiada - O Especial Caso

dos Instrumentos de Remuneração dos Administradores 37

Ana Claudia Salgueiro

Índice

Page 4: CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS - … · de Juro, Jogo e Aposta e Alteração das Circunstâncias que Fundaram a Decisão de Contratar (Continuado do n.º 3987, pág

4 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

EDITORIAL

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5 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Editorial A edição n.º 53 dos Cadernos do Mercado de

Valores Mobiliários inclui um artigo de cariz

económico e dois de natureza jurídica.

No primeiro artigo é analisada a microestrutura

e a liquidez do mercado acionista nacional e,

em particular, o padrão intradiário da negocia-

ção das ações admitidas na Euronext Lisbon.

Esta temática assume crescente importância

dadas as progressivas alterações na estrutura

dos mercados, como sejam a criação de novas

plataformas e estratégias de negociação em que

os algoritmos e a negociação de elevada fre-

quência (high frequency trading) têm um papel

cada vez mais importante na criação de liquidez

e na formação dos preços de mercado. A exis-

tência de fricções nos mercados financeiros im-

possibilita que os preços atinjam, no curto pra-

zo, os seus valores de equilíbrio. Ademais, a

liquidez (ou a sua ausência) poderá ter influên-

cia no próprio preço de equilíbrio se os investi-

dores exigirem um prémio para deter esses ati-

vos. O facto de a liquidez dos títulos variar ao

longo do tempo e ser sensível ao ciclo económi-

co torna o risco de liquidez não diversificável.

Uma primeira conclusão retirada neste artigo é

a de que as ações com menor capitalização bol-

sista apresentam um bid-ask spread muito supe-

rior ao das ações com maior capitalização bol-

sista. A diferença entre títulos com maior e me-

nor capitalização bolsista é ainda superior nos

casos da profundidade e do impacto da negocia-

ção no preço, o que significa que as empresas

de maior dimensão apresentam menores custos

implícitos de transação e menor impacto das

transações nos preços. Estes resultados são ex-

tensíveis a outras variáveis indicativas da quali-

dade do mercado, como a eficiência dos preços

e a volatilidade intradiária causada por desequi-

líbrios na procura e na oferta.

Uma segunda conclusão referida pelo autor

aponta para um aumento dos custos implícitos

de transação e para uma deterioração do nível

de liquidez com o aproximar do fecho da sessão

de negociação. Não obstante, o impacto das

transações no preço tende a ser atenuado pelo

aumento da profundidade do mercado nesse

período; os custos de transação são potencial-

mente mais reduzidos quando a negociação

ocorre fora dos períodos de abertura e de fecho

das sessões de negociação, particularmente

quando se trata da negociação de montantes

mais reduzidos.

Finalmente, conclui-se que os elevados montan-

tes transacionados e a intensidade da negocia-

ção durante o fecho da sessão poderão aumentar

o risco de liquidez nesse período, nomeadamen-

te em situações de elevada concentração de or-

dens agressivas. Assim, desequilíbrios na pro-

cura e na oferta poderão induzir com maior pro-

babilidade variações nos preços não justificadas

por informação relevante. Consistente com esta

premissa, o autor constata que a volatilidade

dos preços é bastante mais elevada no momento

próximo do fecho da sessão, mesmo entre as

empresas de maior dimensão.

O segundo texto analisa as diferenças entre os

instrumentos financeiros derivados de natureza

diferencial e os contratos de jogo e de aposta. O

tratamento que o direito civil concede ao jogo e

à aposta apenas se compreende numa lógica de

reprovação moral que o legislador fez destes,

sobretudo por ter considerado que a assunção

de riscos artificialmente criados, lúdica ou re-

creativamente, com vista à obtenção de um lu-

cro, redunda numa atividade que não comporta

um objetivo sério, não devendo merecer prote-

ção do ordenamento jurídico.

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6 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Editorial Contudo, defende o autor que não deve haver

confusão do jogo e aposta com instrumentos

financeiros derivados uma vez que o contexto

estrutural e a finalidade de uns e outros são dis-

tintas. Com efeito, ao jogo e aposta encontra-se

muito frequentemente associada uma vertente

lúdico-recreativa e a vontade do contratante é

dominada pela submissão à verificação de um

acontecimento incerto, tendo ambas as partes a

mesma intenção (a de apostar), o que no plano

dos instrumentos financeiros derivados se afi-

gura de particular dificuldade em virtude de

uma das partes ser um profissional de interme-

diação financeira. Ademais, considerar os con-

tratos derivados diferenciais como de jogo ou

aposta sem que as partes o tivessem querido

dessa forma seria um desrespeito intolerável

pela autonomia privada. O simples facto de

uma das partes correr o risco de sofrer uma per-

da, enquanto a outra recebe um ganho, nada

mais indicia do que a verificação da bilaterali-

dade de prestações decorrente da vontade das

partes.

O autor avalia a (in)existência de uma aposta e

a desconsideração do elemento subjetivo de um

contrato derivado diferencial, para argumentar

que sempre que o contrato vise a realização de

uma atividade comercial legítima – como seja,

por exemplo, a gestão do risco – não existe uma

aposta uma vez que o resultado que as partes

almejavam não depende única e exclusivamente

da sorte mas da movimentação de indicadores

de mercado que são amplamente regulados.

Também a especulação deve ser vista como a

deliberada e consciente exposição do investidor

às incertezas do mercado, com a intenção de

delas retirar um benefício económico; o objeti-

vo do especulador é obter um ganho pela aber-

tura de uma posição que lide com o risco. A

especulação motivada por razões económico-

financeiras racionais é tida como inerente a es-

tes instrumentos, opondo-se assim aos funda-

mentos irracionais típicos do jogo e da aposta.

Nestes termos, os instrumentos financeiros deri-

vados diferenciais não devem ser considerados

jogo e aposta uma vez que são negociados por

um profissional de intermediação financeira

vinculado às regras do Código dos Valores Mo-

biliários, respeitam a liberdade de estipulação

das partes no contrato, o prognóstico é baseado

em análise feita ao mercado regulado, assentam

numa cuidada análise financeira e visam fins

legítimos na prática negocial.

O terceiro artigo trata a matéria do abuso de

informação privilegiada e a sua conexão com os

instrumentos de remuneração dos administrado-

res das empresas, em particular com os planos

de atribuição de ações e as stock options. A au-

tora procura dar resposta a duas questões: o cri-

me de abuso de informação implica a proibição

dos instrumentos de remuneração? Ou resta

ainda espaço para tais práticas no direito so-

cietário, sem que se cometa o crime de abuso de

informação?

Diversos estudos procuraram alguma relação

entre a data de constituição ou de exercício das

stock options e o abuso de informação privile-

giada, questionando se a escolha da data de

constituição das stock options é meramente fru-

to de sorte (o chamado good timing), ou se essa

escolha tem por base o conhecimento e o uso de

informação privilegiada. Neste último caso, o

administrador estaria numa posição de vanta-

gem em relação aos demais intervenientes no

mercado, podendo mesmo falar-se, nalguns ca-

sos, de uma atribuição oportunista das stock

options. A autora constata que tem havido al-

gumas tentativas de regulamentação destas

matérias na Europa e em Portugal. Em particu-

lar, realça as recomendações e a regulamenta-

ção da Comissão Europeia no sentido de ser

prestada informação, de base individual, sobre a

remuneração dos dirigentes e de os sistemas de

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7 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Editorial remuneração com base em ações serem previa-

mente aprovados pelos acionistas das socieda-

des. Na mesma linha, destaca as recomendações

e a regulamentação da CMVM sobre o governo

societário, as quais determinam que a remune-

ração dos membros do órgão de administração

deve ser aprovada por uma comissão de remu-

nerações e estruturada de forma a permitir o

alinhamento dos interesses daqueles com os

interesses da sociedade, devendo ser objeto de

divulgação anual em termos individuais. No

entanto, a autora argumenta que estes instru-

mentos de controlo não são suficientes para

evitar que, no âmbito dos planos de atribuição

de ações e dos planos de opção de ações, ocorra

o crime de abuso de informação privilegiada.

Dado o enorme poder de discricionariedade das

sociedades, na sua opinião impõe-se a criação

de novas e mais eficazes medidas neste âmbito.

A diversidade e a qualidade dos temas apresen-

tados nesta edição dos Cadernos aconselham,

pois, a sua leitura atenta e cuidada.

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8 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

ARTIGOS

* A Anatomia do Mercado Português

- Uma Análise da Microestrutura

e Liquidez da Euronext Lisbon

* Os Derivados Diferenciais

e a Exceção de Jogo e Aposta

* Abuso de Informação Privilegiada - O Especial Caso dos Instrumentos

de Remuneração dos Administradores

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9 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

A Anatomia do Mercado Português: Uma Análise da Microestrutura e Liquidez da Euronext Lisbon

Paulo Pereira da Silva *

1. Introdução

Nas últimas duas décadas assistiu-se a um cres-

cente interesse por parte de académicos, regula-

dores e profissionais da indústria financeira na

análise da microestrutura dos mercados de capi-

tais. Atualmente esta temática assume ainda

maior importância num contexto em que algo-

ritmos e high frequency traders têm um papel

cada vez mais preponderante na criação de li-

quidez e na formação dos preços de mercado.

De facto, nos últimos anos verificaram-se alte-

rações importantes na estrutura dos mercados

(por exemplo, com o aparecimento de Multila-

teral Trading Facilities e outras plataformas

alternativas de negociação), advento de novas

tecnologias (as quais fomentaram novas estraté-

gias de negociação) e nova regulamentação

(entre as quais a Diretiva dos Mercados de Ins-

trumentos Financeiros).

Os efeitos de todos estes fatores na estrutura de

negociação têm sido estudados para diversos

mercados. Todavia, no que se refere ao merca-

do português existe ainda escassez de análises

empíricas nesta área. Uma vez que a realização

deste tipo de análises requer uma grande quanti-

dade de informação, muitas vezes não acessível

ao público, estudos aprofundados sobre esta

temática no contexto do mercado português são

praticamente inexistentes. O presente estudo

pretende contrariar essa tendência e contribuir

para uma melhor compreensão de como funcio-

na a microestrutura do mercado português.

A existência de fricções nos mercados financei-

ros impossibilita que os preços de mercado

atinjam, no curto prazo, os seus respetivos valo-

res de equilíbrio em mercados eficientes. Mui-

tas dessas imperfeições são geradas pela própria

microestrutura dos mercados. A liquidez (ou a

sua ausência) poderá ter influência no próprio

preço de equilíbrio se os investidores exigirem

um prémio de liquidez para deter esses ativos.

Por outro lado, também é sabido que a liquidez

dos títulos varia ao longo do tempo e é sensível

ao ciclo económico, tornando o risco de liqui-

dez não diversificável.

Numa análise inicial são focadas três vertentes

do conceito de liquidez: custos de transação

implícitos, profundidade do mercado e impacto

das transações nos preços. Estas três vertentes

são aqui estudadas usando dados intradiários

da negociação. Dessa análise emergem duas

importantes conclusões. Por um lado, a liqui-

dez, medida nas suas várias facetas, tende a

aumentar com a dimensão da empresa. Por

outro lado, numa perspetiva intradiária a liqui-

dez - medida pelos custos de transação ou im-

pacto das transações no preço - tende a diminuir

no fecho da sessão, sem prejuízo de se verificar

* - Economista, Comissão do Mercado de Valores Mobiliários. As opiniões expressas neste texto são as do autor, e não necessariamente as da CMVM.

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10 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

paralelamente um aumento da profundidade.

Num outro domínio, constata-se que a atividade

de negociação tende a intensificar-se no fecho

da sessão, o que é consistente com a ideia de

que a procura de liquidez é muito elevada nesse

período de negociação, elevando os custos de

transação. Uma análise ao risco de liquidez

também mostra maior variabilidade dos custos

de transação e impacto das transações durante o

fecho da sessão, mesmo nas empresas de maior

dimensão. O risco de liquidez parece advir da

maior intensidade da negociação resultante de

ordens agressivas (e como tal “consumidoras”

de liquidez) durante este período.1

Por fim, analisa-se a eficiência dos preços numa

ótica intradiária. A componente de ruído nos

preços é bastante diminuta nos títulos de empre-

sas de maior dimensão, e mais elevada nos títu-

los de menor dimensão. Estima-se que o bid-

ask bounce dos títulos de menor dimensão ex-

plique 75% da variação intradiária dos preços.

A volatilidade intradiária tende a crescer quan-

do se aproxima o fecho das sessões de negocia-

ção, sendo este padrão mais evidente nos títulos

de empresas de maior dimensão.

Este documento encontra-se estruturado do se-

guinte modo. A Secção 2 apresenta as fontes de

informação e a definição das variáveis analisa-

das. A Secção 3 mostra os principais resultados.

Finalmente, na Secção 4 apresenta-se as princi-

pais conclusões e algumas implicações dos re-

sultados para investidores, profissionais da in-

dústria financeira e entidades de supervisão e

regulação.

2. Fontes de informação, variáveis

analisadas e estatísticas descritivas

Os dados utilizados na análise foram extraídos

da Bloomberg. Em particular, recolheu-se da-

dos intradiários para cotações bid, ask, mid,

trade, quantidades associadas à melhor cota-

ção de compra, quantidades associadas à me-

lhor cotação de venda e quantidades associadas

a transações. Os dados foram recolhidos para

janelas temporais de um minuto para o período

compreendido entre 02 de abril de 2015 e 16 de

outubro de 2015. A análise abrange os títulos

ativos negociados na Euronext Lisbon.

Foram calculados diversos indicadores para

medir os custos de transação, profundidade e o

impacto da negociação nos preços. Relativa-

mente aos primeiros calculou-se o best bid-ask

spread (BAS), o bid-ask spread efetivo (EBAS)

e indicadores compósitos de profundidade. O

BAS é um indicador clássico de liquidez que

traduz o custo de comprar e vender instantanea-

mente um ativo às melhores cotações de merca-

do em determinado momento. É importante

sublinhar que o BAS pode subestimar os custos

de transação, sobretudo nos casos em que a pro-

fundidade é diminuta. Tal acontece devido à

existência de múltiplos preços de compra e ven-

da (com diferentes quantidades disponíveis as-

sociadas) em vez de um preço único no livro de

ofertas.

O best bid (ask) reflete a melhor cotação de

compra (venda) em determinado momento. A

diferença entre as melhores cotações de venda e

compra constitui o BAS. Para facilitar compara-

ções entre diferentes títulos, o BAS reportado

neste documento é calculado em termos relati-

vos, isto é, consiste no rácio entre a diferença

das melhores cotações de venda e compra

e a cotação média (a média entre as me-

lhores cotações de venda e compra).

(1)

O EBAS traduz-se no valor absoluto da diferen-

ça entre o preço da transação e a cotação média.

Novamente, para facilitar a comparação entre

diferentes títulos aquele valor é dividido pela

cotação média. A vantagem deste indicador

face ao BAS reside no facto de ser considerada

1- É sabido que muito fundos passivos e ETFs atuam principalmente no fecho das sessões.

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11 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

a profundidade do mercado. Nos casos em que

a quantidade transacionada é inferior ou igual

às melhores quantidades associadas à compra

ou venda, o EBAS deverá ser inferior ou igual

ao BAS. Porém, quando tal não sucede, não é

possível ao investidor executar a totalidade da

ordem à melhor cotação. Assim, essa ordem é

fracionada e executada em piores condições por

comparação com as melhores cotações de mer-

cado, traduzindo-se numa perda superior ao

BAS.

(2)

em que e correspondem ao preço da tran-

sação e à cotação média, respetivamente.

No que se refere à profundidade do mercado

são calculados quatro indicadores de profundi-

dade do mercado: (i) valor das quantidades

associadas às melhores cotações de compra; (ii)

valor das quantidades associadas às melhores

cotações de venda; (iii) valor médio das quanti-

dades associadas às melhores cotações de com-

pra e de venda; e (iv) medida compósita de pro-

fundidade (MCP) obtida através do rácio entre

o BAS e o valor médio das quantidades associa-

das às melhores cotações de compra e venda.

(3)

Relativamente ao impacto das transações nos

preços analisa-se a versão intradiária do indica-

dor de Amihud e o lambda de Kyle calculados

em intervalos minuto-a-minuto. O indicador de

Amihud baseia-se no rácio entre o valor absolu-

to dos retornos ( ) e o valor das transações

efetuadas durante intervalos de um minuto.

(4)

O segundo indicador inspira-se no indicador de

iliquidez de Kyle e obtém-se através do rácio

entre o valor absoluto dos retornos em interva-

los de um minuto e uma medida do valor líqui-

do do fluxo de ordens executadas (o valor de

cada transação é multiplicado por uma variável

binária (D) que assume o valor 1 quando a tran-

sação é iniciada pelo comprador e -1 quando é

iniciada pelo vendedor).2

(5)

O EBAS pode ser decomposto em duas medi-

das complementares: o spread realizado e o im-

pacto nos preços. A primeira medida captura

efeitos transitórios no preço, ao passo que a

segunda foca movimentos mais permanentes.

Estes indicadores são calculados do seguinte

modo:

(6)

(7)

em que e correspondem ao preço da tran-

sação e à cotação média em t, respetivamente; e

denota a cotação média cinco minutos

após a transação.

O facto de estas medidas permitirem desagregar

efeitos transitórios de movimentos permanentes

nos preços torna a sua análise interessante.

Combinando as duas medidas obtém-se um in-

dicador de resiliência dos preços calculado do

seguinte modo:

(8)

Quanto menor o peso do spread realizado maior

será a resiliência dos preços. Quando o rácio se

aproxima de zero, as variações dos preços ex-

plicadas por choques de liquidez assumem me-

nor relevância.

A secção seguinte expõe os principais

resultados da análise.

2- Para distinguir as transações iniciadas pelo comprador das iniciadas pelo vendedor recorreu-se ao algoritmo de Lee e Ready (1991). Lee, C. M. C., e M. Ready, 1991, Inferring trade direction from intraday data, Journal of Finance 46, 733-747.

A Anatomia do Mercado Português... : 11

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12 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

3. Resultados

3.1 Custos de transação e profundidade

Numa primeira fase, analisam-se os custos de

transação implícitos em investimentos em títu-

los negociados no mercado regulamentado por-

tuguês. Para facilitar a interpretação dos resulta-

dos, a amostra foi seriada pela capitalização

bolsista de cada sociedade a 01 de abril de

2015, tendo-se constituído de seguida cinco

grupos distintos de ações. A cada quintil da

amostra (obtido com a ordenação mencionada

acima) é assignado um grupo distinto.

A Tabela 1 mostra o BAS para cada grupo de

títulos e permite identificar uma associação ne-

gativa entre a dimensão da empresa e a liqui-

dez. A média global deste indicador oscila entre

0.1% para os títulos de maior dimensão (Q1) e

3.3% para os títulos de menor dimensão (Q5). É

de assinalar que a heterogeneidade dentro dos

diferentes grupos diminui com a dimensão da

empresa, pelo que as empresas de maior dimen-

são evidenciam menores desvios-padrão.

Um outro aspeto relevante prende-se com a

evolução intradiária desta variável. Para o efei-

to, subdividiu-se o período amostral em subpe-

ríodos hora-a-hora, com exceção do período

associado ao fecho que inclui apenas os trinta

minutos finais da negociação. A Tabela 2 apre-

senta valores médios do BAS por grupo de

empresas e por subperíodo. Nos três grupos de

empresas com maior dimensão (Q1-Q3), o BAS

é substancialmente superior no fecho da sessão

por comparação com outros períodos. No caso

de empresas de maior dimensão, o BAS

diminui entre a abertura da sessão e as 16:00.

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13 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Deste modo, e partindo do ponto de vista de um

pequeno investidor, será preferível executar

uma ordem “agressiva” fora do período de fe-

cho da negociação, porquanto nesse período

terá que efetuar uma maior concessão de preço

aos fornecedores de liquidez.

De seguida, analisa-se o padrão do EBAS se-

gundo a dimensão da empresa. Sem surpresa, o

EBAS é, em média, superior ao BAS refletindo

o facto de parte das transações não se efetuar às

melhores cotações do mercado. É também de

sublinhar que este indicador tende a diminuir

com a dimensão da empresa. Assim, ao passo

que um investidor ao transmitir uma ordem

“agressiva” teria que abdicar, em média, de

0.21% do preço num título de maior dimensão,

num título de menor dimensão essa perda

ascende a 3.13%.

A Anatomia do Mercado Português... : 13

A análise do padrão intradiário do EBAS refor-

ça a ideia de que os custos de transação tendem

a aumentar significativamente próximo do fe-

cho da negociação. É também de sublinhar o

facto de o EBAS associado ao segundo quintil

ser inferior ao do primeiro quintil quando anali-

sado próximo do fecho do mercado. De facto, a

associação entre a dimensão e os custos de tran-

sação é mais forte quando considerada toda a

negociação, do que quando considerada a parte

da negociação que se realiza próximo do fecho.

Já os títulos de empresas de menor dimensão

(Q4 e Q5) tendem a tornar-se mais líquidos

com o aproximar do fecho da sessão.

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14 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

A diferença entre as melhores cotações de com-

pra e venda são, por si só, um indicador insufi-

ciente para caracterizar a liquidez de um título.

Um complemento importante dos indicadores

estudados até este ponto são as quantidades

(valores) associadas às melhores cotações. A

Tabela 5 mostra estatísticas descritivas dos va-

lores das quantidades oferecidas às melhores

cotações de compra e venda, e a sua média.

Como seria de esperar, as empresas de maior

dimensão (Q1) denotam maior profundidade

que as demais. Em termos médios, para estas

empresas seria possível efetuar uma transação

de 775 mil € às melhores cotações de mercado.

É, porém, de assinalar o elevado desvio-padrão

associado a este grupo. Entre as empresas do

primeiro quintil existe alguma heterogeneidade.

De facto, os valores médios da profundidade

são influenciados por uma (ou mais) empresas

que evidenciam uma profundidade bastante su-

perior às demais.

Já os quintis formados pelas empresas de menor

dimensão apresentam uma profundidade dimi-

nuta. Com efeito, não será exequível realizar

transações aos melhores preços na maioria das

situações, porquanto a mediana da profundida-

de é inferior a 2,5 mil € para os grupos Q4 e

Q5.

A profundidade associada às empresas de maior

dimensão (Q1) tende a aumentar substancial-

mente no fecho da sessão. Com efeito, quer o

valor das quantidades disponíveis para compra,

quer o valor das quantidades disponíveis para

venda duplicam no fecho da sessão por compa-

ração com o valor evidenciado no intervalo ho-

rário anterior. É de assinalar que o BAS e a pro-

fundidade apresentam uma associação positiva

para os títulos de maior dimensão ao longo da

sessão de negociação. Este resultado sugere que

existe alguma endogeneidade na formação da

liquidez, em que maiores BAS atraem fornece-

dores de liquidez e geram maiores quantidades

disponíveis para transacionar. Por conseguinte,

parte do impacto negativo do aumento do BAS

no fecho da sessão é atenuado.

Outra nota de interesse é que os custos de liqui-

dez podem ser minimizados para os negócios de

maior dimensão se a transação for efetuada pró-

ximo do horário de fecho da sessão de negocia-

ção. Para os grupos Q3, Q4 e Q5 a profundida-

de não se altera substancialmente ao longo da

sessão de negociação.

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15 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

A Anatomia do Mercado Português... : 15

O rácio entre o bid-ask spread e a profundidade

(MCP) tem sido sugerido nos meios académi-

cos como uma medida de liquidez capaz de reu-

nir informação relacionada com custos de tran-

sação e profundidade. Esta medida está inversa-

mente correlacionada com a liquidez. A Tabela

7 mostra um largo desvio entre a média e a me-

diana deste indicador para as empresas dos cin-

co grupos. De facto, a média tende a ser bastan-

te superior à mediana, o que sugere a existência

de valores extremos acima da mediana. Tam-

bém é importante assinalar que a mediana dos

três primeiros grupos é bastante semelhante

(contrariamente à média), mas aumenta subs-

tancialmente para os grupos Q4 e Q5.

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16 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

A análise do indicador compósito de liquidez

também permite retirar ilações interessantes ao

nível do comportamento intradiário da liquidez.

À semelhança de outras medidas atrás referidas,

a iliquidez nos grupos Q1-Q3 parece crescer no

fecho da sessão. À luz dos resultados da análise

desta medida, o aumento das quantidades asso-

ciadas às melhores cotações de compra e de

venda (profundidade) são insuficientes para

compensar o aumento do BAS.

No subcapítulo seguinte, o enfoque estará na

atividade de negociação, designadamente nos

montantes transacionados ao longo das sessões

de negociação analisadas.

3.2 Negociação

Durante o período em análise, cada título tran-

sacionou, em média, 2 780 705 € diariamente.

Todavia, é importante realçar a forte heteroge-

neidade da atividade de negociação no mercado

português: enquanto essa média foi de 9 747

015 € nas maiores empresas (Q1), a média para

as empresas incluídas nos quintis Q4 e Q5 foi

inferior a 25 000 €. Ademais, se atendermos à

mediana ao invés da média, verifica-se que os

títulos de empresas de menor dimensão transa-

cionaram diariamente menos de 4 000 € em

50% das sessões de negociação analisadas. Esse

valor aumenta para 44 168 € para as empresas

do quintil 3.

A atividade de negociação das empresas perten-

centes aos quintis Q1 e Q2 encontra-se centrada

no fecho da sessão. De facto, quase 30% (24%)

do valor das transações de empresas do grupo

Q1 (Q2) é feita a partir das 16:00, isto é, nos

últimos trinta minutos da sessão de negociação.

Uma forte pressão de negociação neste período

de tempo traduz-se em maior risco de liquidez

e, por conseguinte, em mais elevados BAS. A

procura de liquidez no fecho da negociação ten-

derá a crescer no fecho da sessão por variadas

razões. Uma das quais poderá ser a presença de

day-traders que aguardam o fecho da sessão

para fechar as suas posições em aberto.

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17 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

A Anatomia do Mercado Português... : 17

3.3 Impacto no preço

O impacto das transações no preço constitui

uma vertente do conceito de liquidez. Por um

lado, quanto maior for a quantidade pretendida

maior deverá ser a concessão no preço a reali-

zar pelo investidor (desvio do preço face à cota-

ção média). Por outro lado, a impaciência dos

investidores também tem um custo associado.

Assim, ordens ao melhor serão executadas mais

rapidamente, mas por contrapartida de um pre-

ço mais desfavorável que a cotação média. O

fracionamento de ordens de maior dimensão

pode por seu turno resultar em menor impacto

no preço, mas aumenta o tempo necessário para

completar a transação.

São analisadas duas medidas de impacto no

preço: indicador de iliquidez de Amihud e indi-

cador de iliquidez de Kyle. A Tabela 11 apre-

senta estatísticas descritivas para cada um dos

indicadores. No cálculo dessas estatísticas re-

moveu-se as observações situadas acima do

percentil 90 e abaixo do percentil 10 com o in-

tuito de reduzir o impacto de valores extremos

na análise.

Como seria de esperar, ambos os indicadores

tendem a diminuir com a dimensão da empresa.

Em média, um volume de negociação de

100,000 € poderá gerar uma variação de 0.6%

no preço das ações de empresas com maior di-

mensão se atendermos ao indicador de Amihud.

O indicador de Kyle sugere um impacto no pre-

ço mais reduzido, cerca de 0.2%. A diferença

nas estimativas poderá derivar de assimetria nos

impactos de ordens agressivas de compra e de

venda ou de se estarem a excluir observações

desta média.

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18 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

A análise intradiária sugere que o impacto nos

preços é quase homogéneo ao longo da sessão

de negociação para as empresas de maior di-

mensão (quintis Q1 e Q2). Já os demais grupos

de empresas apresentam maior heterogeneidade

de impacto da negociação nos preços ao longo

da sessão de negociação, pese embora essa he-

terogeneidade não obedeça a um padrão facil-

mente identificável.

3.4 Reversão dos preços

e volatilidade de curto prazo

A reduzida liquidez dos títulos é geradora de

movimentos transitórios dos preços dos títulos.

Em virtude disso, transações que envolvem

montantes elevados poderão dar origem a fenó-

menos de overshooting, em que os preços apre-

ciam (depreciam) acima (abaixo) do valor de

equilíbrio corrigindo subsequentemente ao lon-

go da sessão de negociação. Os preços de títu-

los menos líquidos podem assim tornar-se me-

nos eficientes do ponto de vista informacional.

Este aspeto da microestrutura dos mercados é

aqui examinado através do indicador que mede

a resiliência dos preços (equação [8]).

A Tabela 13 mostra estatísticas descritivas para

o indicador de resiliência. Depreende-se destes

resultados que as variações dos preços das

ações das empresas de menor dimensão se de-

vem sobretudo a fricções associadas a choques

resultantes da procura de liquidez por parte dos

investidores e não à incorporação de nova infor-

mação. Os negócios tendem assim, a gerar vari-

ações temporárias nos preços que são revertidas

ao longo da sessão de negociação. Tendo por

base os resultados obtidos, em média, cerca de

75% da variação de preços das ações destas

empresas são desencadeadas por fricções de

mercado e não por informação relevante.

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19 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

A Anatomia do Mercado Português... : 19

A Tabela 14 permite observar o indicador de

resiliência numa ótica intradiária. No que se

refere às empresas dos grupos Q1 e Q2, este

indicador tende a apresentar-se de forma mais

homogénea ao longo da sessão, pese embora

também apresente valores inferiores na abertura

e no fecho das sessões de negociação.

Para melhor compreender a formação de preços

das ações negociadas no mercado português

calculou-se a associação entre desequilíbrios no

fluxo de ordens e os retornos intradiários. O

desequilíbrio do fluxo de ordens é calculado do

seguinte modo:

o valor de cada transação é multiplicado por

uma variável binária que assume o valor 1

quando a transação é iniciada pelo compra-

dor e -1 quando é iniciada pelo vendedor

usando o método de Lee and Ready (1991);

esta variável é posteriormente somada para

cada intervalo horário da sessão de negocia-

ção e dividida pelo valor total das transações

alcançado nesse período.

De seguida calcula-se o coeficiente de correla-

ção entre a variável de desequilíbrio do fluxo de

ordens e os retornos obtidos no intervalo horá-

rio subsequente. Caso a correlação seja negati-

va, um desequilíbrio positivo (negativo) do flu-

xo de ordens será corrigido durante o intervalo

horário ulterior através de uma desvalorização

(valorização) do preço. Tal também significa

que possíveis valorizações (desvalorizações)

durante o período em que incidiu o desequilí-

brio do fluxo de ordens se caracterizam pela sua

reversibilidade.

A Tabela 15 mostra a correlação entre a variá-

vel de desequilíbrio do fluxo de ordens e os

retornos obtidos no intervalo horário subse-

quente. O coeficiente de correlação é negativo

para os vários grupos. Todavia, é também pos-

sível identificar uma associação entre o coefici-

ente de correlação e a dimensão das empresas,

sendo que essa medida de associação estatística

diminui (em termos absolutos) com a dimensão

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20 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

da empresa. Este resultado é consistente com a

ilação retirada acima de que os preços dos títu-

los de empresas de menor dimensão tendem a

ser mais afetados por fricções de mercado.

Finalmente, analisa-se a volatilidade intradiária

dos títulos. A volatilidade intradiária é calcula-

da a partir do desvio padrão dos retornos obti-

dos em intervalos de minuto-a-minuto. Para o

efeito foram calculados retornos baseados em

preços (e como tal mais suscetíveis a choques

de liquidez) e retornos baseados em cotações

médias. A Tabela 16 apresenta a volatilidade

intradiária dos retornos para cada quintil em

termos agregados. A volatilidade tende a dimi-

nuir com a dimensão da empresa. As empresas

do quintil Q1 apresentam um desvio-padrão

médio dos retornos (cotação média) de 0.13%,

ao passo que as empresas do quintil Q5 exibem

um desvio-padrão médio de 1.52%. Além da

liquidez, uma segunda justificação para as dife-

renças de volatilidade intradiária dos vários tí-

tulos relaciona-se com o tick size. As reduzidas

cotações de alguns títulos (em regra com menor

capitalização bolsista) induzem variações mais

acentuadas de preços em resultado da existência

de um tick size mínimo.

O padrão intradiário desta medida de risco su-

gere, por seu lado, um aumento bastante acentu-

ado da volatilidade com o aproximar do fecho

da sessão para as empresas dos quintis Q1- Q3

e Q5. Tal padrão não ocorre entre as empresas

do quintil Q4.

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21 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

A Anatomia do Mercado Português... : 21

O nível de resiliência dos preços também pode

ser avaliado através do rácio da variância dos

retornos calculados em diferentes frequências

temporais. Neste caso, comparou-se a variância

dos retornos hora-a-hora com a variância dos

retornos minuto-a-minuto multiplicados por 60.

Se os retornos forem independentes, o rácio

entre aquelas duas parcelas deverá aproximar-se

da unidade.

Para cada um dos grupos calculou-se a mediana

do rácio da variância. A análise da Tabela 18

sugere que os preços do quintil Q1 aparentam

ser quasi- eficientes. A mediana do rácio da

variância é de 93% para aquele grupo, um valor

bastante próximo da unidade. Para o grupo Q2,

a mediana é de 81%. Nos grupos Q4 e Q5, a

evolução dos preços parece ser dominada por

ruído da microestrutura de mercado.

3.5 Risco de liquidez

Na última década passou a ser atribuída maior

importância ao risco de liquidez. O risco de

liquidez reflete a variabilidade da liquidez ao

longo do tempo. De facto, títulos com elevada

liquidez quando o ciclo é favorável podem tor-

nar-se extremamente ilíquidos em períodos de

crise. Como tal, para esses títulos poderá ser

exigido um prémio de risco de liquidez pelos

investidores. O desvio-padrão do BAS, EBAS,

ICP e Amihud foi calculado para os diversos

grupos de títulos em intervalos minuto-a-

minuto. Posteriormente, esses resultados foram

agregados para os diversos grupos. Os valores

médios foram calculados eliminando observa-

ções situadas acima do percentil 90 e abaixo do

percentil 10, no sentido de reduzir a influência

de valores extremos.

A Tabela 19 permite identificar uma associação

entre o risco de liquidez e a dimensão da em-

presa. De facto, o desvio-padrão do BAS e

Amihud diminuem com a dimensão da empre-

sa. Todavia, é curioso que o quintil Q5 apresen-

ta menor risco de liquidez por comparação com

o quintil Q4 quando a liquidez é medida pelo

EBAS ou ICP.

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22 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Em linha com resultados anteriores, verifica-se

igualmente que o risco de liquidez se tende a

agravar no fecho da sessão de negociação, em

particular no que se refere aos títulos de empre-

sas de maior dimensão (i.e., aqueles compreen-

didos nos quintis Q1-Q3).

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23 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

A Anatomia do Mercado Português... : 23

4. Conclusão

O presente estudo teve por finalidade a análise

do padrão intradiário da atividade de negocia-

ção dos títulos negociados na Euronext Lisbon.

Os resultados obtidos têm interesse para os in-

vestidores, em particular para os pequenos in-

vestidores, para os gestores das estruturas de

mercado e para reguladores. Sem surpresa, veri-

fica-se alguma idiossincrasia ao nível da liqui-

dez dos títulos, com as empresas de maior di-

mensão a exibirem consideravelmente menores

custos de transação (BAS) e menor impacto das

transações nos preços. A análise da eficiência

dos preços revela também que as empresas de

menor dimensão apresentam maior reversão de

preços face a desequilíbrios na procura e na

oferta.

A análise intradiária da negociação mostra que

os custos de transação (medidos pelo BAS e

EBAS) tendem a aumentar significativamente

no fecho da negociação. Em sentido contrário,

durante esse período regista-se um aumento

substancial da profundidade, quando medida

pelo valor das melhores ofertas associadas à

compra e à venda. A análise de indicadores

compósitos de liquidez e do risco de liquidez

indiciam uma deterioração do nível de liquidez

com o aproximar do fecho da sessão. Este resul-

tado pode ter implicações interessantes para os

pequenos investidores. Assim, se a sua intenção

for transacionar agressivamente pequenos mon-

tantes, os pequenos investidores poderão mini-

mizar os custos de transação negociando fora

dos períodos de abertura e fecho das sessões de

negociação.

Os elevados montantes transacionados e a in-

tensidade de negociação durante o fecho da ses-

são poderão, em última análise, ser a causa do

maior risco de liquidez durante esse período.

Entidades gestoras do mercado e reguladores

deverão analisar com maior profundidade as

consequências que daí poderão advir. Desequi-

líbrios entre a procura e a oferta poderão desen-

cadear variações mais abruptas nos preços nes-

ses períodos, muito embora o aumento da pro-

fundidade do mercado tenda a atenuar esse pa-

drão. Tal poderá ocorrer se os operadores de

mercado (market-makers, high frequency tra-

ders e outros investidores intradiários) aguar-

darem pelo fecho da sessão para fecharem posi-

ções em aberto. Uma elevada concentração de

ordens agressivas no fecho da sessão poderá

conduzir a desequilíbrios na procura e na oferta

não justificados por informação relevante, e a

alterações transitórias nos preços.

De facto, consistente com essa premissa verifi-

ca-se que a volatilidade dos preços é de sobre-

maneira mais elevada próximo do fecho da ses-

são entre as empresas de maior dimensão. A

volatilidade dos preços, o risco de liquidez e a

intensidade da negociação parecem, assim, re-

gistar uma associação forte no fecho das ses-

sões de negociação.

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24 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Os Derivados Diferenciais e a Exceção de Jogo e Aposta Simão Mendes de Sousa *

I. Razão de Ordem

Ao longo dos últimos anos tanto a Doutrina

como a Jurisprudência têm vertido muita tinta

sobre a exceção de jogo e aposta e a sua aplica-

ção aos instrumentos financeiros derivados.

Ainda que o culpado seja, em grande medida, o

contrato de swap de taxa de juro e a excessiva

litigiosidade que tem sido alvo no último trié-

nio, esse desvalor pode ser importado para

qualquer derivado de estrutura diferencial. Des-

se modo, as considerações que faremos ao lon-

go do presente estudo terão sempre em mente a

gama de derivados diferenciais, partindo do

contrato de swap de taxa de juro, não fosse este

a estrela da companhia da gama de derivados

diferenciais.

A exceção de jogo e aposta é, grosso modo,

uma questão pacífica em outros ordenamentos

jurídicos sendo, em Portugal, um tema tabu,

sobretudo porque para muita doutrina as noções

de risco, rendibilidade do ativo e especulação

são, ainda, um demónio de muitas cabeças.

Contribui em larga medida a desconfiança que,

desde sempre, mereceu ao direito o jogo e a

aposta. Assim, tentaremos, ao longo das linhas

desmistificar um pouco os derivados diferenci-

ais, como também, demonstrar as nossas posi-

ções no debate.

Focaremos a nossa análise apenas na considera-

ção como aposta dos derivados diferenciais,

mesmo sabendo que estes podem ver as mais

variadas invalidades decorrerem do período de

formação do negócio. Institutos como a usura, o

erro-vício, o dolo e a responsabilidade pré-

contratual, mereciam igualmente uma cuidada

avaliação, impossível de fazer dado o escopo

deste trabalho.

II. Os Derivados

I. O pr imeiro desígnio que assumimos é ten-

tar explicitar o que entendemos não só por ins-

trumento financeiro derivado, como também

por derivado diferencial. Nessa linha, é neces-

sário um breve excurso teórico introdutório que

ajudará a perceber a realidade estudada ao lon-

go deste texto. Estudaremos a relação de deri-

vação do instrumento, a definição de contrato

diferencial, estudaremos as funções dos deriva-

dos diferenciais, bem como, a aleatoriedade

deste tipo de contratos. As linhas que se se-

guem, são assim, teóricas e explanatórias deste

tipo de instrumentos.

A primeira nota de relevo é a inexistência,

ao longo de todo o articulado do Código dos

Valores Mobiliários de uma proposta de

definição de instrumento financeiro derivado1,

prevendo-se apenas algumas categorias (como

sejam os futuros, as opções, os swaps), não

se impondo nenhuma lista taxativa de

* - Mestre em Direito e Gestão de Empresas pela Universidade Nova de Lisboa; Advogado. 1- Encontramos na Doutrina e na Jurisprudência definições de instrumentos financeiros derivados, como também de instrumento financei-ro, definição essa que deve ser tida como o ponto de partida. Assim, uma possível definição de instrumento financeiro, é-nos fornecida por ENGRÁCIA ANTUNES, dizendo que “os instrumentos financeiros são um conjunto de instrumentos juriscomerciais suscetíveis de criação e/ou a cobertura do risco da atividade económica das empresas”. Cfr. Os Derivados, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliár ios, n.º30, Agosto de 2008, P.96. Pela parte da jurisprudência, pode-se ler que “os instrumentos financeiros são um conjunto de instrumentos juriscomerciais suscetíveis de criação e/ou negociação em mercado de capitais, que têm por finalidade primordial o financiamento e/ou a cobertura do risco da atividade económica das empresas. Tais instrumentos financeiros encontram-se expressamente consagrados no artigo 2.º, n.ºs 1 e 2 do CVM, sendo os instrumentos derivados um dos tipos ou categorias dos instrumentos financeiros contradistinguindo-se dos demais (instrumentos mobiliários e instrumentos monetários) por serem instrumentos típicos do mercado de capitais a prazo” – cfr. Ac. TRL 08-05-2014 (ILÍDIO SACARRÃO MARTINS), Processo n.º 531/11.7 TVLSB.L1-8.

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25 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

instrumentos financeiros derivados tidos como

aceitáveis. É de aplaudir este tipo de técnica

legislativa, uma vez que permite mediante a

verificação das principais características de um

determinado instrumento financeiro, se possam

criar novos instrumentos financeiros2. Este tipo

de técnica legislativa, permite uma maior adap-

tabilidade do Código e resistência ao decurso

do tempo e aos movimentos de inovação finan-

ceira, permitindo que não se excluam do seu

âmbito, todos os instrumentos que mediante

pontuais modificações se consigam eximir ao

escopo de proteção do código.

II. Simplisticamente, até poder íamos encer -

rar este breve excurso dizendo que ao estudar

um instrumento financeiro derivado, estudamos

aqueles instrumentos financeiros cujo valor de-

riva de um outro ativo subjacente3. Sucede que,

deixaríamos de parte uma fatia muito importan-

te das características destes instrumentos, uma

vez que, as possíveis dificuldades apresentadas

pela estrutura própria deste tipo de instrumentos

contribui para que haja quem na Doutrina con-

sidere que estes se devem ter como a “figura

mais misteriosa de todas quantas neste domínio

se defrontam”4.

Um dos aspetos essenciais deste tipo de instru-

mentos encontra-se no facto de estes não pode-

rem, sem mais, existir de uma forma isolada,

estando sempre indexados a um outro ativo

subjacente que lhes dá vida e fundamenta a

“técnica de derivação”5.

III. Os instrumentos financeiros der ivados

que são aptos a levantar a questão de existência

ou não de uma aposta, são os que são formados

com base num contrato diferencial, os chama-

dos derivados diferenciais.

Uma definição possível de contratos diferenci-

ais6 é aquela, consoante a qual estamos diante

de um contrato diferencial, quando encaramos

um contrato “em que é devida uma só prestação

em dinheiro, igual à diferença entre o valor de

referência inicial de um bem (real ou nocional),

de um indicador de mercado [elemento comum

aos futuros e às opções diferenciais] ou da rela-

ção entre dois bens ou indicadores de mercado

[elemento especifico dos swaps diferenciais] e

o valor do mercado em data futura do mesmo

bem, indicador de mercado ou relação de valo-

res. A prestação beneficia aquela das partes

que, podendo exigi-la, tenha previsto correta-

mente a alta ou a baixa do valor de mercado ou

a valorização de um dos bens em relação ao

outro”7. O pagamento desta diferença tem, co-

mo opções, uma única prestação ao momento

do fecho da operação (próprios ou puros) ou,

contrariamente, uma conta corrente mediante

determinados ajustes periódicos (impróprios ou

Os Derivados Diferenciais e a Exceção de Jogo e Aposta : 25

2- No mesmo sentido, RENATO GONÇALVES, Nótulas Comparatísticas Sobre os Conceitos de Valor Mobiliário, Instrumento do Mercado Monetário e Instrumento Financeiro na DMIF e no Código dos Valores Mobiliários, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, n.º19, Dezembro de 2004, Lisboa, P.102. 3- Cfr, STEVEN EDWARDS, The Legal Principles of Derivatives, in Journal of Business Law, January Issue, 2002, London, Sweet&Maxwell, P.2 e ENGRÁCIA ANTUNES, Os Instrumentos Financeiros, 2009, Coimbra, Almedina, P.119. 4- Cfr. OLIVEIRA ASCENSÃO, Derivados, in Direito dos Valores Mobiliários, Vol. IV, 2003, Lisboa, Coimbra Editora, P. 41. 5- A expressão é da autoria do saudoso AMADEU FERREIRA, in Direito dos Valores Mobiliários, 1997, Lisboa, A.A.F.D.L., P.239. Rejeitando a possibilidade dos instrumentos financeiros nascerem ou subsistirem de forma isolada, cfr. CALVÃO DA SILVA, Swap de Taxa de Juro: Sua Legalidade e Autonomia e Inaplicabilidade da Exceção de Jogo e Aposta, in Revista de Legislação e Jur isprudência, Ano 142.º, n.º 3979, Março-Abril de 2013, Coimbra, Coimbra Editora, P. 268. 6- ANTÓNIO PEREIRA DE ALMEIDA, não entende os contratos diferencias como uma categoria autónoma de derivados, mas sim uma forma de liquidação/compensação de outros contratos de derivados. Cfr. Instrumentos Financeiros: Os Swaps, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, 2011, Coimbra, Almedina, P. 41. 7- Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos Diferenciais, in Estudos Comemorativos dos 10 anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Vol. II, 2008, Coimbra, Almedina, P. 93-94 e notas 34 e 35.

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26 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

impuros)8, sendo o seu objeto, apenas e só, di-

nheiro9. Os contratos diferenciais, à semelhança

de todos os outros derivados, também assumem

finalidades de cobertura de risco ou especulati-

vas10, sendo aptos a serem celebrados para re-

gistar um ganho ou evitar uma perda, ou seja,

não se limitam a uma ação de cobertura de risco

podendo também incluir especulação11. Sobre

estas duas refletiremos em seguida.

IV. Pela banda da gestão ou cobertura de

risco, importa salientar que as par tes quando

celebram um derivado diferencial procuram,

tendencialmente12, acautelar-se contra a volati-

lidade do mercado e suas variações negativas

ou positivas13. Não se afigura descabido afirmar

que as empresas lidam, diariamente, com todo

um universo de desafios relacionados com o

risco. A variação de indicadores ou tendências

no mercado fazem com que as empresas umas

vezes registem ganhos, registando perdas nou-

tros, assim diluindo a sua exposição ao risco.

Do mesmo modo, não se afigura despicienda a

afirmação segundo a qual ser do interesse de

qualquer equipa de gestão, que gira os seus ati-

vos de forma racional, uma limitação do risco a

que se encontra exposta. É este o contexto, sa-

bendo que a volatilidade do mercado vai sem-

pre existir, em que surge a necessidade de co-

bertura de risco (hedging). O que as partes pro-

curam é precaverem-se contra as consequências

adversas da volatilidade do mercado. Na procu-

ra de alguma segurança, afigura-se natural que

as partes percam algumas oportunidades que

lhes sejam favoráveis em face da volatilidade

do mercado. Dada a aleatoriedade típica deste

tipo de instrumentos, sempre existirá o risco de

perda, ou seja, aqueles casos em que o instru-

mento aumenta o valor dos pagamentos a reali-

zar, encontrando-se assim, out-of-the-money14,

no caso contrário, aquele em que o investidor

regista ganhos com a previsão efetuada, diz-se

que, para ele, o instrumento se encontra in-the-

money.

Pelo lado da função especulativa, sempre mere-

cerá importância a referência de que o resultado

obtido dependerá sempre da direção em que o

mercado e os seus preços se movimentem, mas

também, da incerteza que se cria durante o perí-

odo de tempo compreendido até à maturidade

do instrumento15. Quando todos os movimentos

do mercado decorrerem conforme o projetado,

o investidor obtém um ganho de gestão que lhe

pode facilitar, por exemplo, o financiamento da

empresa, em função das dificuldades na conces-

são de crédito, assegurando, deste modo, a li-

quidez no mercado. Poderá, igualmente, ser

vista como o reverso da medalha da gestão ou

cobertura de risco, o risco coberto por uma das

partes é assumido, pela outra parte16. A especu-

lação deve ser vista como a deliberada e consci-

ente exposição do investidor às incertezas do

mercado, com a intenção de retirar dessas

8- Cfr. ENGRÁCIA ANTUNES, Os Instrumentos Financeiros, 2009, cit., P.189. 9- Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos III, Contratos de Cooperação e de Risco, 2.ª Edição, 2013, Lisboa, Almedina, P. 281 10- Cfr. ENGRÁCIA ANTUNES, Os Derivados, cit., P.126. 11- Cfr. ALASTAIR HUDSON, The Law of Finance: a Comprehensive Treatise for Practitioners, 2010, London: Sweet & Maxwell, P. 1122. Nos instrumentos financeiros derivados que não tenham estrutura diferencial, ainda se acrescenta a função arbitragista. Por seu turno, MENEZES CORDEIRO acrescenta ainda a função seguradora enquanto função dos instrumentos financeiros derivados. Manifestamos humildemente a nossa discordância do distinto Professor, sobretudo por considerarmos que a função seguradora não possui a autonomia nesta sede que o Autor defende, propondo por isso que a mesma seja parte da função de gestão ou cobertura de risco. Cfr. MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito Bancário, 2014, 5.ª Edição, Lisboa, Almedina, P. 885. 12- Tendencialmente, uma vez que pode haver uma outra motivação, como seja, por exemplo uma tendência de mercado contra a qual se pretendem acautelar. 13- Cfr. PAUL GORIS, The Legal Aspects of Swaps, 1994, London, Graham & Trotman, pp. 78-79 14- Cfr. JOHN-PETER CASTAGNINO, Derivatives: The Key Principles, 2009, London, Oxford, P.57. 15- Cfr. PAUL GORIS, cit., P.81. 16- Cfr. PAUL GORIS, cit., P.82. Para este Autor, tudo aquilo que não deva ser qualificado como gestão ou cobertura de risco, deverá ser qualificado de especulação. Cfr., no mesmo sentido, ENGRÁCIA ANTUNES, Os Instrumentos Financeiros, cit., P.125, nota 253.

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27 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

incertezas um benefício económico. Em síntese,

o objetivo do especulador é obter um ganho

pela abertura de uma posição de mercado que

lide com o risco17.

V. Uma caracter ística essencial dos der iva-

dos diferenciais prende-se com a sua aleatorie-

dade. Ou seja, o risco e a incerteza são os forne-

cedores da causa e objeto contratuais18. Ao mo-

mento da celebração, as partes não têm conhe-

cimento sobre qual recairá o prejuízo, nem tão-

pouco a sua medida. A consciência das partes

está na possibilidade de existir uma desvanta-

gem ou prejuízo agindo, e naturalmente gerindo

as suas expectativas, em sentido inverso, acre-

ditando que vão registar um ganho com a ope-

ração19. O risco de variação é o combustível dos

contratos aleatórios, a determinação da presta-

ção a realizar acontece no fim do período con-

tratual, sendo esse o momento em que as partes

percebem quem registou um ganho e quem re-

gistou uma perda com a operação. Uma boa

definição é aquela que vê nos contratos aleató-

rios, “aqueles em que uma das atribuições patri-

moniais, ou ambas, está dependente de uma

álea, ou seja, de um facto incerto quanto à sua

verificação (incertus an) ou quanto ao momento

da sua verificação (incertus quando)”20. Impor-

ta, ainda, referir que a álea do contrato deve ser

tida como bilateral, sendo os contratos, no caso

estudado dos derivados diferenciais, onerosos.

VI. Importa ainda, em jeito de síntese, deixar

algumas breves notas finais. Uma primeira, pa-

ra referir que os derivados obedecem às regras

de direito bancário, por se tratarem na maioria

dos casos de instrumentos negociados por insti-

tuições de crédito. Para além disso, tratam-se

ainda de contratos bancários – ainda que, em

sentido amplo. Convocam-se, a este propósito,

todas aquelas regras informativas, contratuais e

pré-contratuais, mas também ao respeito pela

confiança como vetor essencial da relação ban-

cária21. Uma segunda para alertar que o leque

de ativos subjacentes aos quais um instrumento

financeiro derivado possa ser indexado são,

praticamente ilimitados. Uma terceira, para

alertar para o efeito de alavancagem financei-

ra22 que a utilização deste tipo de instrumentos

permite, uma vez que mediante uma pequena

parcela de investimento feito para a contratuali-

zação do instrumento financeiro base, represen-

tante apenas de uma pequena parte do investi-

mento total, se aumenta exponencialmente a

exposição ao risco do investidor, podendo o

investidor amplificar, positiva ou negativamen-

te, os seus resultados23. Uma quarta e última

nota¸ para estabelecer que os instrumentos fi-

nanceiros derivados se dividem naqueles que se

negoceiam em mercado regulamentado, e aque-

les que se negoceiam em mercado de balcão

(Over-The-Counter, OTC), estes últimos são

iminentemente marcados pela autonomia priva-

da, negociados individualmente mediante as

necessidades e intentos de cada investidor, sen-

do precisamente esta característica que mais

cativa os investidores.

III. O Jogo e Aposta

I. Importa refer ir que, o jogo e a aposta são

regulados pelos artigos 1245.º e seguintes do

CC. Interessam, fundamentalmente, para o nos-

so estudo, os artigos 1245.º e 1247.º do CC. O

primeiro, refere que “o jogo e aposta não são

contratos válidos nem constituem fonte de

Os Derivados Diferenciais e a Exceção de Jogo e Aposta : 27

17- Cfr. PAUL GORIS, cit., P.80. 18- Cfr. Ac. STJ, de 10-10-2013, Processo n.º 1387/11.5 TBBCL.G1.S1 (GRANJA DA FONSECA) e ENGRÁCIA ANTUNES, Os Instrumentos Financeiros, cit., P.129-130. 19- Cfr. CATARINA MONTEIRO PIRES, Entre um Modelo Corretivo e um Modelo Informacional no Direito Bancário e Financeiro, in Cadernos do Direito Pr ivado, n.º 44, Outubro-Dezembro, 2013, Braga, Coimbra Editora, P.6. 20- Cfr. JOÃO DE CASTRO MENDES, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, Lisboa, A.A.F.D.L.¸ Pp. 485-486. 21- Cfr. MENEZES CORDEIRO, cit., P.853. 22- Cfr. AMADEU FERREIRA, cit., P.235. 23- Cfr. HÉLDER MOURATO, O Contrato de Swap de Taxa de Juro, 2014, Lisboa, Almedina P.23.

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28 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

obrigações civil; porém, quando lícitos, são

fonte de obrigações naturais, exceto se neles

concorrer qualquer outro motivo de nulidade

ou anulabilidade, nos termos gerais de direito,

ou se houver fraude do credor na sua execu-

ção”. Por seu turno, o segundo artigo enunciado

refere-nos que, “fica ressalvada a legislação

especial sobre a matéria de que trata este capí-

tulo”.

II. A distinção entre as duas figuras não é de

fácil cotejo, razão pela qual o legislador optou

sempre por não a fazer24. Aliás, a forma como o

Direito Civil aborda a matéria é repleta de som-

bras e zonas cinzentas, uma vez que, a principal

preocupação se prende com a efetiva invalidade

qua tale do jogo e da aposta25, ou seja, o seu

desvalor jurídico, faltando sempre um conceito.

O regime do jogo e aposta no Código Civil de

1966, sintetiza-se facilmente, “segundo a tradi-

ção e por compreensíveis razões de moralida-

de, estabeleceu-se o princípio de que o jogo e

aposta não constituem contratos válidos. Eles

não são modos admissíveis de aquisição. Não

têm a proteção da lei, porque a sua causa, o

seu fim, não é de molde a justifica-la. Não pro-

duzem pois efeitos jurídicos, não são fonte de

obrigações civis: o contratante que ganhou não

pode reclamar judicialmente ao outro o que

este perdeu”26.

Não devemos olvidar que, grosso modo, o trata-

mento jurídico que lhes é concedido decorre do

interesse económico conexionado com o resul-

tado que obtém, ou seja, “a contingência de

uma perda ou de um lucro”27. Amplamente, dir-

se-á que o contrato tem um risco endógeno, ou

seja, o risco deriva do contrato, sendo o seu

custo certo quanto à sua verificação, incerto

quanto à parte sobre a qual recai, ou seja, con-

tratos de risco puro28. Estritamente, o jogo coin-

cide com a aposta sobre factos que se situam

fora da esfera de controlo do apostador29.

Uma noção possível de contrato de jogo é aque-

la segundo a qual, as partes (jogadores), volun-

tariamente30 num momento competitivo entre

os próprios31 de fim recreativo32 regido por re-

gras próprias previamente estabelecidas, subor-

dinado a um evento fortuito de verificação futu-

ra, convencionam a obrigação de uma prestação

pecuniária (ou um qualquer prémio com valor

patrimonial33) no caso de perda, em função da

parte vencedora. Neste contrato, as partes têm

uma influência fundamental no desenrolar dos

acontecimentos34, sendo as próprias a ditar a

sua sorte futura, com a jogada que pretendam

24- Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, Volume III, Contratos em Especial, 9.ª Edição, 2014, Coimbra, Almedina, P.523. Ainda que o STJ, no caso que analisamos, a propósito do disposto no artigo 1245.º do CC, refira que o preceito “faz o «distinguo» entre jogo e aposta sendo comum a ambos a natureza aleatória – possibilidade de ganhar ou perder por fatores em absoluto alheios à intervenção do jogador/apostador” – Cfr. Ac. STJ de 11-02-2015, Processo n.º 309/11.8TVLSB.L1.S1 (SEBASTIÃO PÓVOAS). 25- Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos III, cit. P. 273. 26- Itálicos nossos. Cfr. INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, Contratos Civis: Projecto Completo de um Título do Futuro Código Civil Português e Respectiva Exposição de Motivos, in B.M.J, n.º 83, 1959, P.182. 27- Cfr. PIRES DE LIMA/ ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Vol. II (Artigos 762.º a 1250.º), 4.ª Edição, Reimpressão, 2010, Coimbra, Coimbra Editora, P. 927 28- Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos III, cit. P. 272 e 273. 29- Cfr. RUI PINTO DUARTE, O Jogo e o Direito, in Themis, Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, N.º3, Ano II, 2001, Lisboa, Almedina, P. 70 30- Cfr. RUI PINTO DUARTE, cit., P.70. 31- Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos III, cit., P. 274. 32- Cfr. PAULO MOTA PINTO, Contrato de Swap de Taxas de Juro, Jogo e Aposta e Alteração das Circunstâncias que Fundaram a Decisão de Contratar (Continuado do n.º 3987, pág. 413) in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 143.º, N.º 3988, Setembro-Outubro de 2014, Coimbra, Coimbra Editora, P. 16 33- Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos III, cit. P. 275. 34- Cfr. PAULO MOTA PINTO, Contrato de Swap de Taxas de Juro, Jogo e Aposta e Alteração das Circunstâncias que Fundaram a Decisão de Contratar (Continuado do n.º 3987, pág. 413), cit., P.16

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29 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

efetuar. As regras a observar são percetivas35,

uma vez que, apenas estabelecem ou determi-

nam o comportamento a observar no decurso do

jogo, propriamente dito.

Por seu turno, o contrato de aposta – simplisti-

camente –, queda-se pelo interesse económico

aliado ao jogo. Ou seja, quem erre acerca da

previsão, ou veracidade de um certo evento36,

qualquer que ele seja37, obriga-se a efetuar a

prestação patrimonial a favor de quem tenha

conseguido prever corretamente o desfecho so-

bre o qual recaiu a aposta, sendo esta que atri-

bui o interesse jurídico ao jogo38. O foco aqui

não está na atividade exercida, mas sim, no de-

senrolar da verificação do facto incerto e futuro.

Como bem refere o Supremo Tribunal de Justi-

ça, cumprindo a sua função de esculpir a dife-

renciação entre uns e outros, refere-nos que,

“enquanto no jogo existe um acordo segundo o

qual uma das partes se obriga a pagar à outra

certa quantia, sendo que o vencedor participou,

teve intervenção na lide; na aposta há um desa-

cordo inicial relativamente à verificação de um

evento (passado ou futuro) e o apostador inves-

te determinada quantia, ou valor, no sentido de

que se o evento em que apostou se verificar (ou

tiver ocorrido) auferir uma vantagem económi-

ca”39. Ou seja, a aposta implica a obrigação de

prestar algo que recairá sobre a parte que falhar

a previsão40. Sumarizando, para existir jogo ou

aposta, não pode deixar de se referir a necessi-

dade de existência de um animus de jogo e

aposta41, mormente, a verificação de uma ver-

tente recreativa ou de entretimento42, sem a

qual não se pode defender a existência de jogo

ou aposta.

III. Ainda que a jur isprudência levantada

seja relativa ao contrato de swap de taxa de

juro43, vale a pena olhar para os principais argu-

mentos, contra e favor, que esta esgrime. Por

um lado, argumenta-se que a existir uma aposta,

esta não visará uma ocorrência dependente ape-

nas da sorte, ou seja um evento fortuito, enten-

dendo-se que se trata antes de um prognóstico

acerca da evolução de uma determinada taxa de

juro44. Igualmente se refere que, a especulação

adveniente de um derivado que não tenha liga-

ção direta a um outro instrumento financeiro,

possa ser colocada no domínio do abstrato, não

podendo deixar de ser desconsiderada, em vir-

tude da sua criação de riqueza artificial45. Ainda

se defende, para que não se considere o instru-

mento enquanto jogo ou aposta que a relação de

derivação se verifique ao longo de todo o con-

trato, sem a qual haverá uma situação de jogo

ou aposta, admitindo-se, no limite, uma manu-

tenção dos níveis de endividamento durante

todo o período do instrumento46.

Os Derivados Diferenciais e a Exceção de Jogo e Aposta : 29

35- Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos III, cit. P. 276. 36- Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos III, cit. P. 277. 37- Cfr. HÉLDER MOURATO, O Contrato de Swap de Taxa de Juro, cit., P.70. 38- Cfr. PIRES DE LIMA/ ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Vol. II, cit., P. 927 39- Cfr. Ac. STJ de 11-02-2015, Processo n.º 309/11.8TVLSB.L1.S1 (SEBASTIÃO PÓVOAS). 40- Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, Volume III, cit., P.523. 41- Cfr. PAULO MOTA PINTO, Contrato de Swap de Taxas de Juro, Jogo e Aposta e Alteração das Circunstâncias que Fundaram a Decisão de Contratar (Continuado do n.º 3987, pág. 413), cit., P.18 42- Cfr. PEDRO BOULLOSA GONZALEZ, Interest Rate Swaps: Perspectiva Jurídica, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliár ios, n.º44, Abril de 2013, Lisboa, P. 20 43- Cfr., para um levantamento completo dos argumentos aduzidos na Jurisprudência Nacional, o nosso Contrato de Swap de Taxa de Juro: Validade ou Invalidade do Contrato no Ordenamento Jurídico Nacional, in ROA, Ano75, Vol. III/IV, Junho/ Dezembro de 2015, Lisboa, P. 708 e segs. 44- Cfr. Ac. STJ de 29-01-2015, Processo n.º 531/11.7TVLSB.L1.S1 (BETTENCOURT DE FARIA). 45- Idem, idem. 46- Cfr. Ac. TRL de 21-03-2013, Processo n.º 2587/10.0TVLSB.L1.6 (ANA AZEREDO COELHO).

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30 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Por outro lado, entende-se que, quando o inves-

tidor procura este tipo de instrumentos o faz

baseando-se numa operação de cobertura de

risco (ou hedging), já se encontrando sujeito a

riscos de variações da taxa de juro procurando,

deste modo, atenuar o risco ao invés de criar

mais risco47. Além do mais, o instrumento fi-

nanceiro derivado basta-se a si próprio, não ne-

cessitando de um outro instrumento financeiro

do qual este derive48. Ainda se defende, com

interesse que a principal distinção entre um

contrato de derivados e o jogo e aposta, radica

nas finalidades económico-financeiras das par-

tes e a racionalidade económica na assunção de

um determinado risco, baseado em avaliações e

análises ao mercado49. A própria liberdade de

celebração mediante as cláusulas apresentadas,

sugere que as partes quiseram que o contrato

tivesse o conteúdo que acabou por ter, afastan-

do-se igualmente o jogo ou aposta50. Reputa-se,

ainda, a especulação tida como inerente a estes

instrumentos como própria dos agentes de mer-

cado e motivada por razoes económico-

financeiras racionais, opondo-se aos fundamen-

tos irracionais típicos do jogo e da aposta51. De-

fendendo-se, na mesma linha, que as taxas de

juro EURIBOR enquanto indexante se encon-

tram fortemente condicionadas pelo Banco

Central Europeu, e só com base nos elementos

destas entidades se pode fazer uma previsão

racional de movimentação do indexante52. Por

último, defende-se que a previsão legal do art.

2.º, n.º1 do Código dos Valores Mobiliários é

quanto basta para afastar o regime do art. 1245.º

do CC, acrescentando-se, ainda que, para a

existência de uma situação de jogo ou aposta é

necessária que ambas as partes manifestem essa

intenção53.

Não podemos deixar de referir os argumentos

aduzidos pelo Acórdão do Commercial Court

de Londres54 no caso dos contratos de swap de

taxa de juro das empresas públicas de transpor-

tes portuguesas, considerando ainda existirem

razões que permitam concluir que os referidos

contratos visavam, na sua génese, a redução dos

custos de financiamento das empresas, reconhe-

cendo a gestão de custos efetuada como um

fundamento válido e indiciador de uma função

de gestão de risco por parte das empresas. Mas

mesmo que assim não fosse, e estes fossem pu-

ramente especulativos, apoiando-se em algumas

decisões dos Tribunais Superiores Portugueses,

o Commercial Court de Londres, não considera

a especulação uma atividade ilegítima sobretu-

do num terreno altamente regulado como este,

entendendo como válidos os referidos contra-

tos, afastando assim a nulidade por serem

contratos de jogo ou aposta, conforme o petici-

onado55.

IV. Do lado da Doutr ina os argumentos –

também eles relativos ao contrato de swap de

taxa de juro –, com algumas nuances, não di-

vergem substancialmente dos argumentos esgri-

midos pela Jurisprudência. Assim, temos quem

pronunciando-se a favor da consideração como

jogo e aposta defenda que, se devem reconduzir

47- Cfr. Ac. STJ de 11-02-2015, Processo n.º 309/11.8TVLSB.L1.S1 (SEBASTIÃO PÓVOAS). 48- Cfr. Ac. STJ de 11-02-2015, Processo n.º 309/11.8TVLSB.L1.S1 (SEBASTIÃO PÓVOAS), Ac. TRP de 28-10-2015, Processo n.º 27/14.5TVPRT.P1 (SOUSA LAMEIRA). 49- Cfr. Ac. STJ de 03-05-2016, Processo n.º 27/14.5TVPRT.P1.S1 (SILVA SALAZAR). 50- Cfr. Ac. TRL de 15-01-2015, Processo n.º 876/12.9TVLSB.L1.6 (MANUELA GOMES). 51- Cfr. Ac. TRL de 08-05-2014, Processo n.º 531/11.7TVLSB.L1.8 (ILÍDIO SACARRÃO MARTINS). 52- Cfr. Ac. STJ de 26-01-2016, Processo n.º 876/12.9TVLSB.L1.S1 (GABRIEL CATARINO). 53- Cfr. Ac. TRL de 13-05-2013, Processo n.º 309/11.8TVLSB.L1.7 (MARIA DO ROSÁRIO MORGADO). 54- Cfr. BST v. Transport Companies [2016] EWHC 465 (Comm). 55- Cfr. BST v. Transport Companies [2016] EWHC 465 (Comm), PART G: THE “GAME OF CHANCE” ISSUE, (c) Conclusions.

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31 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

a jogo e aposta sempre que sejam meramente

especulativos56, estendendo-se aos contratos

que não lhe vêm diretamente ligada uma opera-

ção financeira – indexados, por exemplo, a um

montante nocional57. Do mesmo modo, se con-

sidera como um contrato de jogo ou aposta,

quando o contrato é a fonte do risco, não exis-

tindo esse risco fora do contrato58. Um outro

argumento, prende-se com a inexistência, na

previsão do art. 2.º, n.º1 do CVM de uma defi-

nição legal ou autorização do mesmo em todas

as suas modalidades, sendo de aplicar o art.

1245.º do CC59. Mesmo que, apenas no decurso

do contrato este deixe de ter, primordialmente,

a função de cobertura de risco, devendo consi-

derar-se este como contrário à lei (cfr. art. 281.º

do CC) pela ilicitude da sua causa60, decorrente

do repúdio, que esta corrente defende encontrar

no nosso ordenamento jurídico, da especula-

ção61. Um outro argumento, com base na estru-

tura diferencial (v.g., a título de exemplo, os

swaps, futuros e opções diferenciais), defende

que sendo os diferenciais tendencialmente um

subtipo de aposta, assim deve ser considerado o

instrumento sempre que não cubra um risco de

mercado real e exógeno, sendo assim nulos62.

Finalmente, entende-se que não existindo uma

amortização, ao longo do período de subsistên-

cia do instrumento, do montante nocional o ris-

co vai-se modificando para um risco fictício,

transformando o contrato, em contrato pura-

mente especulativo63.

De outra banda, defende-se que não deve haver

uma confusão do jogo e aposta com instrumen-

tos financeiros derivados, uma vez que o con-

texto estrutural e finalidade de uns e outros, são

absolutamente distintas64, em virtude de ao jogo

e aposta se encontrar, na esmagadora maioria

das vezes, associada uma vertente lúdico-

recreativa65, sendo a vontade do contratante

dominado pela submissão à verificação de um

acontecimento incerto66, tendo ambas as partes

a mesma intenção, ou seja, a intenção de apos-

tar67, o que neste plano se afigura de particular

dificuldade em virtude de uma das partes se

tratar de um profissional de intermediação fi-

nanceira68. Aliás, considerar o contrato como de

Os Derivados Diferenciais e a Exceção de Jogo e Aposta : 31

56- Cfr. LEBRE DE FREITAS, Contrato de Swap Meramente Especulativo, Regimes de Validade e de Alteração de Circunstâncias, in R.O.A., Ano 72, Vol. IV Outubro/Dezembro, 2012, Lisboa. P.949 57- Cfr. HÉLDER M. MOURATO, Swap de Taxa de Juro: A Primeira Jurisprudência, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, N.º44, Abril de 2013, Lisboa, P.41. Ou seja, a inexistência de “(…)efeito jurídico direto, que não o risco”, não tendo, como tal, “(…) qualquer outro efeito que não a captura do produto do risco”. Cfr. MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito Bancário, cit., P. 944 e LEBRE DE FREITAS, cit., P. 949. 58- Cfr. PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Contratos de Risco e Contratos Especulativos em Direito Bancário, in I Congresso de Direito Bancário, Coordenação: L. MIGUEL PESTANA DE VASCONCELOS, 2015, Coimbra, Almedina, P.93 59- Cfr. LEBRE DE FREITAS, cit., P. 952. 60- Cfr. LEBRE DE FREITAS, cit., P. 953. 61- fr. LEBRE DE FREITAS, cit., P. 953, Nota 23. 62- Cfr. HÉLDER M. MOURATO, Swap de Taxa de Juro: A Primeira Jurisprudência, cit., P.39-42 e HÉLDER M. MOURATO, O Contrato de Swap de Taxa de Juro, cit., P.69. 63- Idem, idem. 64- Cfr. PEDRO BOULLOSA GONZALES, cit., P.21. 65- Cfr. PEDRO BOULLOSA GONZALES, cit., P.10 66- Cfr. CALVÃO DA SILVA, Swap de Taxa de Juro: Sua Legalidade e Autonomia e Inaplicabilidade da Excepção de Jogo e Aposta, cit., P.265. 67- Cfr. CLARA CALHEIROS, O Contrato de Swap no Contexto da Actual Crise Financeira Global, in Cadernos de Direito Pr ivado, N.º42.º, Agosto, 2013, Braga, Coimbra Editora, P.8. 68- Cfr. PAULO MOTA PINTO, Contrato de Swap de Taxas de Juro, Jogo e Aposta e Alteração das Circunstâncias que Fundaram a Decisão de Contratar (Continuado do n.º 3987, pág. 413), cit., P.25.

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32 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

jogo ou aposta sem que as partes o tivessem

querido dessa forma, seria um desrespeito into-

lerável pela autonomia privada69. O simples

facto de uma das partes correr o risco de sofrer

uma perda, enquanto a outra recebe um ganho,

nada mais indicia do que a verificação da bila-

teralidade de prestações decorrente da vontade

das partes70. É, aliás, esse o papel da cobertura

de risco71, motivo mais do que suficiente para

defender a relevância desta para a gestão de

endividamento na economia mundial, o que,

desaconselha a sua recondução a jogo e aposta72

podendo, no limite, redundar no definhamento

do mercado de derivados73. Um último argu-

mento vê na previsão legal do art. 2.º, n.º1 do

CVM a legislação especial a que se refere o

disposto no art. 1247.º do CC74.

IV. Apreciação crítica

I. Noutra sede já, detalhadamente, tivemos a

oportunidade de dissecar os argumentos quer

Jurisprudenciais, quer Doutrinários que, com a

devida nota de se referirem ao contrato de swap

de taxa de juro, nos parecem ainda atuais, para

onde remetemos75.

Parece-nos possível afirmar que o tratamento

que o direito civil concede ao jogo e à aposta,

apenas se compreende numa lógica de reprova-

ção moral que o legislador fez destes, sobretudo

por ter considerado que a assunção de riscos

artificialmente criados, lúdica ou recreativa-

mente, com vista à obtenção de um lucro, re-

dunda numa atividade que não comporta, em si

mesmo, um objetivo sério não devendo merecer

proteção por parte do nosso ordenamento jurídi-

co76. Ou seja, o direito civil reprova a possibili-

dade de se encontrar qualquer finalidade econó-

mica, social ou moral justificada por quem

aposta, atropelando a vontade das partes e a

autonomia privada típica do direito privado, por

motivações ético-morais e por o resultado do

contrato de aposta relevar do acaso, de factos

ou valores externos e incontroláveis77.

A possibilidade de existência de uma aposta

num derivado diferencial78 decorre, das partes,

tentarem fazer um prognóstico sobre a movi-

mentação do ativo subjacente do derivado con-

tratado79. Ainda que exista quem defenda que,

estruturalmente, nos encontramos diante de

uma aposta80 – válida à luz do direito vigente –

69- Cfr. PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Contratos de Risco e Contratos Especulativos em Direito Bancário, cit., P.92 70- Cfr. CALVÃO DA SILVA, Swap de Taxa de Juro: Sua Legalidade e Autonomia e Inaplicabilidade da Excepção de Jogo e Aposta, cit., P.265. 71- Cfr. PAULO MOTA PINTO, Contrato de Swap de Taxas de Juro, Jogo e Aposta e Alteração das Circunstâncias que Fundaram a Decisão de Contratar (Continuado do n.º 3987, pág. 413), cit., P.25. 72- Idem, idem. 73- Cfr. CALVÃO DA SILVA, Swap de Taxa de Juro: Sua Legalidade e Autonomia e Inaplicabilidade da Excepção de Jogo e Aposta, cit., P.266. 74- Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Swaps de Troca e Swaps Diferenciais, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, Ensaios de Homenagem a Amadeu Ferreira, Número Especial – Agosto de 2015, Volume I, Lisboa, P.17, estipulando o Autor que, não obstante a possível estrutura semelhante à do contrato de aposta – pela verificação de um evento futuro e incerto – em face da previsão legal do art. 1247.º do CC remeter a sua validade ou invalidade para legislação especial e ser este o direito vigente, não pode deixar de se tomar o Código dos Valores Mobiliários como essa legislação especial. Cfr., ainda, PAULO MOTA PINTO, Contrato de Swap de Taxas de Juro, Jogo e Aposta e Alteração das Circunstâncias que Fundaram a Decisão de Contratar (Continuado do n.º 3987, pág. 413), cit., P.24 e 25. 75- Cfr., o nosso Contrato de Swap de Taxa de Juro: Validade ou Invalidade do Contrato no Ordenamento Jurídico Nacional, cit., P. 716 e segs. 76- Cfr. PAULO MOTA PINTO, Contrato de Swap de Taxas de Juro, Jogo e Aposta e Alteração das Circunstâncias que Fundaram a Decisão de Contratar (Continuado do n.º 3987, pág. 413), cit., P.18. 77- Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos III, cit. P. 273. 78- Para uma análise histórico-comparativa vide CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos Diferenciais, cit., Pp. 81-89. 79- Cremos na mesma linha ALASTAIR HUDSON, The Law of Finance: a Comprehensive Treatise for Practitioners, cit., P. 409. 80- Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Swaps de Troca e Swaps Diferenciais, cit., P.17

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33 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

entendemos que ainda compete falar num prog-

nóstico, seja ele para fins especulativos, ou de

cobertura de risco, de movimentação do ativo.

A recondução a uma aposta decorre da constan-

te inovação e evolução financeira global do

mercado, mas também do direito não nutrir uma

especial simpatia pela assunção cega do risco

de forma endógena ao contrato.

Outra nota de redobrado interesse, prende-se

com a avaliação da existência ou não de uma

aposta, e a desconsideração do elemento subje-

tivo do contrato nessa análise, com vista a des-

cortinar se este é, ainda que apenas estrutural-

mente, um contrato de aposta81. De facto, sem-

pre que o contrato vise a realização de uma ati-

vidade comercial legítima – como seja, por

exemplo, a gestão do risco – não concordamos

que possa existir uma aposta, uma vez que, o

resultado que as partes almejavam não dependia

única e exclusivamente da sorte82, dependendo,

isso sim, da movimentação de indicadores de

mercado que são, amplamente regulados. Aliás,

é necessário que o principal fundamento do

contrato para ambas as partes seja a aposta re-

creativa celebrada de forma autónoma e priva-

da, para que este possa ser considerado como

aposta, o que se afigura de particular dificulda-

de num mercado regulado, organizado e fiscali-

zado, onde uma das partes atua enquanto profis-

sional – o intermediário financeiro.

Entendemos que, em última instância esta con-

sideração vise a proteção dos investidores me-

nos experientes dos especuladores profissionais.

Esta corrente pretende, sobretudo, proteger o

investidor de si próprio e do “gangsterismo fi-

nanceiro” que, com a crise financeira global de

2008, se tornou evidente aos olhos de todos.

Sucede que, esta corrente se prejudica pelo sim-

ples facto de bastar que uma das partes procure

seguir uma das funções legítimas atribuídas aos

instrumentos financeiros derivados para que

estes não devam ser reconduzidos a uma mera

aposta83. O que importará, sobretudo, para a sua

qualificação como derivado diferencial lícito,

afastando-se o regime da aposta, será a tipicida-

de do contrato e a sua qualificação jurídica. Co-

mo se sabe, os contratos diferenciais são legal-

mente típicos conforme resulta do art. 2.º, n.º1,

al. d) do CVM. Esta sujeição ao Código dos

Valores Mobiliários dos derivados diferenciais,

pressupõe que a sua negociação é feita de forma

regulamentada com intervenção de um interme-

diário financeiro84. O intermediário financeiro,

encontrar-se-á vinculado, como bem se compre-

ende, a todas as obrigações informativas e pro-

cedimentos pré-contratuais exigidos pelo códi-

go (nomeadamente, os arts. 7.º, n.º1, 304.º,

304.º-A, 309.º, 312.º e seguintes, 314.º e se-

guintes e 317.º e seguintes todos do CVM) que,

quando não cumpridos dão lugar ao pagamento

de uma indemnização dos danos causados ao

investidor.

II. Pode-se debater e encontrar todo o tipo de

desvalores ético-morais na especulação e tentar

descobri-los no nosso ordenamento jurídico,

com maior ou menor criatividade, podemos

até encontrar na Constituição da República

Portuguesa85 justificação pela contrariedade à

ordem pública mas, é irrefutável a ideia de para

Os Derivados Diferenciais e a Exceção de Jogo e Aposta : 33

81- Como explicitamente se refere no Ac. STJ de 29-01-2015, Processo n.º 531/11.7 TVLSB.L1.S1 (BETTENCOURT DE FARIA). 82- Cfr. ALASTAIR HUDSON, The Law of Finance: a Comprehensive Treatise for Practitioners, cit., P.411 e ANDREA PERRONE, Contratti di Swap con Finalità Speculative ed Eccezione di Gioco, in Banca Borsa Titoli di Credito, Vol. LXIII, 5, Settembre-Ottobre, 2010, Giuffré Editore, 2010, P.85. 83- Cfr. PHILIP R. WOOD, Law and Practice of International Finance, 2008, London, Sweet & Maxwell, P.446. 84- Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Swaps de Troca e Swaps Diferenciais, cit., P.17. Se assim não for, como bem ensina o Autor, não são “válidos, no direito português, os contratos diferenciais (diretos) em que nenhuma das partes esteja autorizada a exercer uma atividade de intermediação financeira no âmbito da qual se compreenda a celebração de contrato dessa natureza. Esta consequência pode parecer excessiva à luz de critérios de política legislativa, mas resulta de modo inexorável da aplicação conjugada das leis vigentes, suficientemente claras no âmbito das permissões e proibições que estabelecem”. Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos Diferenciais, cit., P.111. Itálicos Nossos. 85- Como é o caso do Ac. STJ de 29-01-2015, Processo n.º 531/11.7 TVLSB.L1.S1 (BETTENCOURT DE FARIA).

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34 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

se cobrir um risco, haverá sempre alguém que

se prontifique a assumir esse risco, não se de-

vendo entender como negativa essa situação

uma vez que esta permite uma maior liquidez e

um correto funcionamento do mercado. Do

mesmo modo que a diferença entre a especula-

ção e a aposta não deve ser distinguida em fun-

ção do “market-making” do intermediário fi-

nanceiro. Tanto o intermediário financeiro, co-

mo o corretor de jogos poderão ter essa função,

uma vez que, tanto um como o outro procuram

a realização de um negócio oportunista que visa

ganhos decorrentes de um certo evento (seja

uma competição desportiva, ou a variação de

um determinado ativo subjacente)86.

Se a especulação poderá ser similar, estrutural-

mente, a uma aposta é opinião que não partilha-

mos, mas mesmo que assim fosse ela seria sem-

pre legal por força do disposto no art. 1247.º do

CC, ao remeter para legislação especial, no ca-

so, o Código dos Valores Mobiliários87. Não

perfilhamos esta corrente precisamente, por

entendermos que as partes procuram efetuar um

prognóstico quanto à movimentação do ativo

subjacente que não se verifica na aposta – nem

que se entenda esta de uma perspetiva ampla –

para existir uma aposta, teria de ser um negócio

feito, por exemplo, entre dois particulares com

vista a obter um ganho decorrente de um evento

fortuito ou, simplesmente, da sorte. A partir do

momento em que é necessária a intervenção de

um intermediário financeiro que atua nessa qua-

lidade, mediante uma análise científica do mer-

cado, com intenção de contratar um instrumento

financeiro, não nos parece verosímil o trata-

mento como aposta dado a um instrumento fi-

nanceiro derivado na modalidade de derivado

diferencial. Contudo, não poderá deixar de se

dizer que, a solução encontrada é equilibrada –

a da sua validade em face do disposto no art.

1247.º do CC – em virtude do direito vigente88.

A principal diferença entre a aposta e os deriva-

dos diferenciais prende-se, como bem ensina

CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA89, no

facto de, nestes últimos, a natureza do evento

sobre o qual se celebra se prender com a cota-

ção no mercado de um bem de referência. Do

mesmo modo, o distanciamento para com a

aposta prende-se com a construção de um deri-

vado diferencial, se distanciar no modelo básico

da aposta, pelo seu conteúdo, função, qualifica-

ção jurídica e tipo social em que assenta.

III. De extrema importância parece a refe-

rência ao risco contratual como uma realidade

existente em todo e qualquer contrato. Todos

sem exceção encerram riscos diferentes, conso-

ante a sua natureza e, sobretudo, o seu clausula-

do. Do mesmo modo, um derivado diferencial

tem, ao longo dos seus períodos diferentes ris-

cos, maiores nuns períodos, menores noutros.

Pense-se, por exemplo, num contrato de swap

de taxa de juro que tem funções distintas – fun-

ções especulativas nuns, e de gestão ou cobertu-

ra de risco noutros – consoante o período con-

tratual90. Ora, se o contrato tem funções distin-

tas consoante o período, o plano de risco tam-

bém varia consoante o período. Assim como os

riscos assumidos, o plano de risco das partes

não é, também ele, estanque. O plano de risco

pode ser típico, quando é o que decorre daquele

tipo contratual, ou concreto, quando decorre do

convencionado pelas partes. Sucede que, como

nos situamos no domínio da autonomia

privada, as partes podem divergir, nos riscos

assumidos, em relação aos riscos típicos de um

86- Cfr. CHRISTOPHER C. CHEN, Dividing Hedging and Gambling: Legal Implications of Derivative Instruments, in Opticon 1826, Vol. I, n.º1, 2006, P.3. 87- Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Swaps de Troca e Swaps Diferenciais, cit., P.18. 88- O contrato de jogo e/ou aposta que se enquadre no âmbito do art. 1247.º do CC é, para além de válido, fonte de obrigações civis válidas, ao contrário do disposto no art. 1245.º do CC. Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, Volume III, cit., P.525. 89- Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos Diferenciais, cit., Pp. 107-108. 90- O que até foi uma prática perfeitamente normal no período anterior à crise em que o acesso ao crédito começava a ser mais tortuoso, e que as empresas procuravam estratégias de financiamento empresarial e de cobertura de posições previamente assumidas. Ainda que esta noção de financiamento empresarial seja tomada em sentido amplo.

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35 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

determinado contrato, sendo até normal que

isso aconteça91.

O julgador, ao avaliar este tipo de contratos e

com vista a descobrir se há ou não a intenção de

jogar, tem de recorrer às regras normais de in-

terpretação dos negócios jurídicos92, de modo a

discorrer sobre a vontade concreta das partes no

momento da celebração. Diz-nos o art. 236.º do

CC, no seu n.º1 que “a declaração negocial

vale com o sentido que um declaratário normal,

colocado na posição do real declaratário, pos-

sa deduzir do comportamento do declarante,

salvo se este não puder razoavelmente contar

com ele”, para, nos termos do n.º2, se estabele-

cer que, “sempre que o declaratário conheça a

vontade real do declarante, é de acordo com

ela que vale a declaração emitida”. Ou seja,

vale a vontade subjetiva comum de ambas as

partes, uma vez que o contrato, por definição, é

um exercício de consenso entre as partes. Quan-

to ao resto, nos casos em cujo entendimento de

uma questão seja do conhecimento de uma das

partes, aplicar-se-á a regra do n.º2 do referido

artigo. Assim, bastará que uma das partes pre-

tenda a gestão do seu risco de atividade, e essa

vontade seja conhecida da outra parte, ou pelo

menos cognoscível, para que o contrato não

levante dúvidas quanto ao querido e desejado

pelas partes.

Entendeu-se, muito por culpa da aleatoriedade

do contrato que as partes não tinham como

compreender os riscos e que se os conheces-

sem, não os aceitaram, nem tão-pouco celebra-

riam. Em primeiro lugar, se as partes celebra-

ram em erro-vício é matéria que não cabe no

âmbito do nosso estudo, contudo, sempre se

dirá que desde que verificados os requisitos do

erro-vício – seja ele sobre o objeto, sobre os

motivos ou sobre a base do negócio – não há

razão para que não se aplique o seu regime. So-

mos até, da opinião, que a grande maioria dos

contratos de swap de taxa de juro no período

anterior à crise, podem ter sido celebrados em

erro.

Sucede que, a álea própria deste tipo de contra-

tos consiste na diferença, positiva ou negativa,

do indexante – valor de referência ou preço de

mercado – contratual93. Assim, como já se dis-

se, é o risco que consubstancia o contrato. A

gestão deste risco é, naturalmente, racional. As

partes aceitam-no, gerindo o seu posicionamen-

to, na evolução que esperam que o mercado

faça, de modo a que este posicionamento lhes

seja favorável. Se assim não fosse, o contrato

seria puramente aleatório94, o que não é o caso.

As partes não arriscam, neste nível, de forma

cega, pela sensação e pelo gozo que retiram do

risco95, o raciocínio das partes assenta nos vá-

rios relatórios de análise financeira e métricas

aritméticas de variação dos indicadores de mer-

cado e em que circunstâncias, permitindo assim

que, com alguma precisão96, se consigam deter-

minar as possíveis e expectáveis movimenta-

ções de um determinado índice financeiro. Este

risco é procurado pelas partes, lindando estas

com ele da melhor maneira possível97.

Os Derivados Diferenciais e a Exceção de Jogo e Aposta : 35

91- Como bem ensina o Professor PEDRO PAIS DE VASCONCELOS. Cfr., Contratos de Risco e Contratos Especulativos em Direito Bancário, cit., P.91. 92- Cfr., PEDRO PAIS DE VASCONCELOS Contratos de Risco e Contratos Especulativos em Direito Bancário, cit., P.92. 93- Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos Diferenciais, cit., P. 103. 94- Cfr. MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito Bancário, cit., P.879. 95- Como o faz um apostador, recreativo ou profissional. Em bom rigor os jogadores e apostadores também podem ser profissionais, e nesse caso obedecem a alguma cientificidade nas jogadas efetuadas. Pense-se, por exemplo, nos jogadores de poker profissionais. Estes estudam, não só os possíveis adversários, como o tipo de jogadas efetuadas, tentando daí retirar um padrão que abranja um certo tipo de situações. Do mesmo modo, encontram métricas de cálculo que lhes permitam ter uma noção exata da probabilidade do adversário ter uma determinada carta que lhe permita uma determinada combinação, assim vencendo o jogo, gerindo com base nisso as jogadas a efetuar. 96- Ainda que estejam sempre sujeitas ao aparecimento de qualquer fator exógeno à matriz que levou à sustentação daquela conclusão. 97- Cfr. CATARINA MONTEIRO PIRES, cit., P.13.

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36 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Posicionamo-nos, deste modo, dentro daqueles

que consideram que os instrumentos financeiros

derivados diferenciais não devem ser considera-

dos como uma aposta nos termos do disposto

no art. 1245.º do CC. Não podem, em suma,

porque são legal e socialmente típicos, negocia-

dos por um profissional de intermediação finan-

ceira, respeitando as regras do Código dos Va-

lores Mobiliários e a liberdade de estipulação

das partes no contrato, assentando o prognósti-

co efetuado numa análise que fazem ao merca-

do regulado, mediante fins licitamente conven-

cionados e legítimos na prática negocial.

V. Conclusões

I. Os instrumentos financeiros der ivados fa-

zem parte do catálogo dos instrumentos finan-

ceiros. Chamam-se de derivados, por decorre-

rem de um outro ativo subjacente. Dentro des-

tes últimos, encontramos os chamados deriva-

dos diferenciais, ou seja, aqueles em que apenas

é devida uma prestação em dinheiro igual à di-

ferença entre um valor de referência de um

bem, de um indicador de mercado, ou da rela-

ção entre dois bens ou indicadores de mercado

e o valor de mercado desse indicador ou relação

de valores, em uma data específica no futuro.

Os derivados diferenciais têm como funções a

gestão ou cobertura de risco e a especulação,

tendo ainda como característica fundamental a

sua aleatoriedade, sendo legal e socialmente

típicos Assim, as partes não só querem o risco

contratual, como é esse risco que as faz celebrar

o contrato, na forma celebrada.

II. Os der ivados diferenciais não devem ser

tidos como integrando a exceção de jogo e

aposta, dado que, para que exista jogo e aposta

é necessário que ambas as partes tenham o

animus de jogo ou aposta. Ora, esta possibili-

dade fica extremamente enfraquecida quando

uma das partes atua enquanto profissional, de

forma organizada e regulada, prosseguindo am-

bas as partes, um fim comercialmente admissí-

vel. Não podemos deixar de referir, ainda, que o

jogador/apostador cria risco de forma recreativa

e para sua própria satisfação pessoal, destruindo

valor. Por seu turno, o investidor redireciona o

risco a seu favor, com vista à obtenção de um

ganho financeiro decorrente da volatilidade do

mercado ou da tendência de cotação de um

bem. Esta – errada – recondução ao regime do

jogo e aposta, decorre de estruturalmente, os

derivados diferenciais se assemelharem a apos-

tas.

III. O der ivados diferenciais – à semelhança

de todos os outros contratos bancários – possu-

em uma esfera de risco própria, composta por

riscos típicos e concretos conforme o concreto

consenso contratual. Esse risco decorre, em lar-

ga medida, da aleatoriedade contratual que con-

siste, fundamentalmente, na diferença, positiva

ou negativa, do indexante – valor de referência

ou preço de mercado – contratual. É esta álea

que consubstancia o contrato e o torna querido

pelas partes.

IV. Consideramos assim que, os instrumen-

tos financeiros derivados diferenciais não de-

vem ser considerados como uma aposta, uma

vez que se tratam de instrumentos financeiros

negociados por um profissional de intermedia-

ção financeira, vinculado às regras do Código

dos Valores Mobiliários, respeitando a liberda-

de de estipulação das partes no contrato, assen-

tando o prognóstico efetuado na análise que

fazem do mercado regulado, assente numa cui-

dada análise financeira, visando fins legítimos

na prática negocial.

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37 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Introdução

No atual contexto internacional, muito marcado

pela progressiva liberalização do comércio

mundial e dos movimentos de capitais, pela

criação e ampliação de grandes espaços de mer-

cado, pelo desenvolvimento das telecomunica-

ções e pela criação de novos mecanismos de

contratação internacional, emergem novos desa-

fios de governação para os Estados e, por con-

sequência, também para os sistemas jurídicos.

Neste quadro, os crimes de mercado têm vindo

a assumir uma particular atenção, em especial o

crime de abuso de informação (também conhe-

cido em Portugal por abuso de informação pri-

vilegiada), mais conhecido no direito anglo-

saxónico como insider trading ou no direito

francês como délit d’initié. Este crime pressu-

põe que alguém usa, no mercado de valores

mobiliários, uma informação economicamente

relevante, a que teve acesso por uma via privile-

giada, antes de a generalidade dos intervenien-

tes no mercado a poderem conhecer, com bene-

fício desse conhecimento prévio.

Embora o insider trading goze de uma forte tra-

dição reguladora no sistema norte-americano,

desde a segunda metade do século XX, também

na União Europeia esta questão tem vindo a ser,

nos últimos anos, alvo sistemático de regula-

mentação – incluindo em Portugal – no sentido

da criminalização do insider trading.

Porém, o caráter ilícito do insider trading nem

sempre foi consensual. Desde a década de 60,

algumas teorias defenderam, por um lado, que o

insider trading tem um efeito positivo do ponto

de vista económico (cujo expoente máximo ca-

be a H. G. MANNE) e, por outro, que a crimi-

nalização do insider trading decorreria mais de

considerações morais, do que de verdadeiras

necessidades político-criminais de proteção de

bens jurídicos (posição que foi, durante algum

tempo, muito defendida num amplo sector da

doutrina alemã e espanhola).

Em qualquer caso, estas teorias foram sendo

ultrapassadas e, hoje, a criminalização do abuso

de informação privilegiada tornou-se uma reali-

dade, pelo que se impõe precisar o alcance des-

ta figura delitiva e clarificar os distintos proble-

mas de interpretação que resultam da sua com-

plexa estrutura típica, dada a sua origem num

contexto lícito (a negociação no mercado de

valores mobiliários). Para enquadrar melhor a

nossa perspetiva, começaremos por contextuali-

zar o insider trading em termos histórico-

jurídicos, abordando as questões terminológicas

que envolvem este crime, apresentando os argu-

mentos pro e contra a criminalização daquele

delito e dissecando os antecedentes legislativos

na União Europeia e, em especial, no sistema

legislativo português. De seguida, analisaremos

o regime legal atual do abuso de informação,

Abuso de Informação Privilegiada - O Especial Caso dos Instrumentos de Remuneração dos Administradores *

Ana Cláudia Salgueiro **

* - O presente artigo baseia-se num trabalho realizado no âmbito do seminário especializado “Internacionalização das PME’s”, integrado no Doutoramento em Direito – Ciências Jurídico-Criminais, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, supervisionado pelo Professor Doutor Pedro Maia. ** - Advogada na Comissão do Mercado de Valores Mobiliários. Doutoranda em Direito, na especialidade de Ciências Jurídico-Criminais, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. As opiniões assumidas no texto são pessoais, não podendo ser atribuídas à CMVM.

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38 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

presente no Código dos Valores Mobiliários

(doravante CdVM), procedendo a uma análise

sistemática de todos os elementos que confor-

mam a descrição do tipo penal do artigo 378º,

do CdVM, dando uma especial atenção ao bem

jurídico protegido, ao tipo objetivo e ao tipo

subjetivo. Numa segunda fase, apresentaremos

algumas zonas de potencial intersecção entre o

crime de abuso de informação e matérias do

direito societário, designadamente, em três do-

mínios: na Oferta Pública de Aquisição (OPA),

na aquisição de ações em operações de manage-

ment buy-out, e, finalmente, no âmbito dos ins-

trumentos de remuneração dos administradores,

sobretudo, nos planos de atribuição de ações e

nas stock options.

Com a abordagem deste último âmbito, propo-

mo-nos também problematizar e analisar mais

detalhadamente o problema, tomando como

linhas orientadores as seguintes questões: o cri-

me de abuso de informação implica a proibição

dos instrumentos de remuneração? Ou resta

ainda espaço para tais práticas no direito so-

cietário, sem que se cometa o crime de abuso de

informação?

1. A punibilidade do Insider Trading

Insider trading exprime, literalmente, na estei-

ra de FÁTIMA GOMES, a ideia de “comércio

interior ou do que está dentro”, ou seja,

“significa a comercialização por um sujeito si-

tuado numa posição especial (o insider), tradu-

zindo-se aquela comercialização na realização

de compras ou de vendas de valores mobiliá-

rios, com base numa informação especial, de

grande relevância, desconhecida dos investido-

res, potenciais interessados, e de cuja posse re-

sulta para o utilizador uma posição de vantagem

em relação à contraparte”1.

Contudo, embora o termo insider trading2 não

se afigure a expressão mais adequada para de-

signar estes comportamentos3, “o peso da tradi-

ção e o caráter sintético e sugestivo da expres-

são conduziram à utilização daquela, pela dou-

trina e jurisprudência, com completa indistin-

ção”4.

Nesse sentido, e apesar de o legislador da União

Europeia utilizar o termo francês initié

(iniciado) – numa imposição proveniente dos

1- FÁTIMA GOMES, Insider Trading, Valadares: APDMC – Associação Portuguesa para o Desenvolvimento do Mercado de Capitais,

1996, p. 7.

2- Sendo de origem norte-americana, a expressão tem designações diversas em diferentes países. No Reino Unido utiliza-se a expressão

insider dealing, em França utiliza-se o termo délit d’initié e em Portugal utiliza-se a expressão abuso de informação privilegiada ou,

simplesmente – como veremos mais à frente –, abuso de informação.

3- Neste sentido, designadamente, MARÍA TERESA DE GISPERT PASTOR, “La protección legal de la inversión mobiliaria en Gran Bretaña”, in R. D. B. B., nº 5, ano II, 1982, pp. 55-70 (p. 56); EDUARDO CALDERÓN SUSÍN, “El abuso de información privilegiada en el mercado de valores”, in Delitos socioeconómicos en el Nuevo Código Penal, Cuadernos de Derecho Judicial, 1996, pp. 210-260 (p. 212). 4- FÁTIMA GOMES (1996), op. cit., pp. 7-8.

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39 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

trabalhos iniciais do Conselho da antiga CEE –,

por se considerar que o termo insider trading

não abarcaria todos os comportamentos aqui

englobados, utilizaremos, frequentemente, esta

mesma expressão.

A prática do insider trading no ordenamento

jurídico norte-americano começou por ser proi-

bida logo no início do século XX5, por ser con-

siderada violadora das regras de formação do

negócio. Aliás, as primeiras regulações federais

sobre os mercados de valores mobiliários surgi-

ram nos anos trinta – mais propriamente, em

1933 e 19346 –, na sequência do crash da bolsa

de Nova Iorque, em 1929.

Na Europa, o primeiro sinal de preocupação

com as práticas de insider trading surgiu com

um relatório elaborado em 1966 por um grupo

de especialistas, constituído pela Comissão da

antiga CEE, sobre o desenvolvimento de um

mercado europeu de capitais. Neste relatório,

assinalou-se a necessidade de os Estados mem-

bros aproximarem os seus controlos relativos a

informação suscetível de influenciar as cotiza-

ções de mercado7.

No entanto, a necessidade de punir o insider

trading nem sempre foi consensual, tendo mes-

mo surgido algumas teorias contraditórias. O

debate sobre o mérito do insider trading procu-

rou responder, sobretudo, a duas questões: “é

justo haver negociação quando as pessoas são

informadas de forma diferenciada? É economi-

camente eficiente permitir informação privilegi-

ada?”8.

Na linha de argumentação que defende a

desregulação e a descriminalização do insider

trading, surgem alguns autores, sobretudo da

escola de Chicago9, como H. G. MANNE10 e

ROBERT J. HAFT11, que, a partir dos anos ses-

senta, romperam com o consenso que até aí im-

perava, segundo o qual as práticas de insider

trading eram prejudiciais. Estes autores defen-

deram, em síntese, que o insider trading tem um

efeito positivo do ponto de vista económico,

incorporando “os benefícios do insider trading

na remuneração devida aos corporate insiders e,

por essa via, reputava como legítima e lícita tal

prática”12. Sintetizando todo o pensamento da

escola de Chicago, H. G. MANNE afirma que

“without insider trading, the corporate system

Abuso de Informação Privilegiada...: 39

5- No entanto, JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS advertem para o facto de já no século XVIII se pôr “em destaque, por um lado, os benefícios obtidos por um grupo restrito de «iniciados» que negoceia as suas ações na posse de informações reservadas e, por outro lado, o prejuízo sofrido pelo público investidor que não dispõe de tais informações” (in O crime de abuso de informação privilegiada (insider trading). A informação enquanto problema jurídico-penal, Coimbra Editora, 2006, p. 18). A este propósito, JOSÉ ZAMYR VEJA GUTIÉRREZ aponta mesmo o ano de 1723 como sendo a origem do insider trading, data em que parece ter sido documentado o primeiro caso de denúncia desta prática (in Mercado de valores en derecho penal. Abuso de información privilegiada bursátil: “Insider Trading”, Madrid: Edisofer, 2013, p. 10; “El delito de uso de información privilegiada en el mercado de valores, especialmente en el derecho penal español”, Tese de Doutoramento, Universidad de Alcalá, Facultad de Derecho, 2010, p. 29, disponível em http://dspace.uah.es/dspace/bitstream/handle/10017/9783/TESIS%20DOCTORAL%20DEFINITIVA%20IMPRESA.pdf?sequence=1&isAllowed=y, consultado em 15-03-2015). 6- O colapso da bolsa de Nova Iorque deu lugar ao Securities Act, em 1933 e ao Securities Exchange Act, em 1934, normas que criaram um corpo jurídico contra as práticas de insider trading. Estas duas leis encontram-se hoje no United States Code Annotated (USCA), Título 15, Secção 78 p(b). 7- D. J. GÓMEZ INIESTA, La utilización abusiva de información privilegiada en el mercado de valores, Madrid: McGraw-Hill, 1997, pp. 68 e ss. 8- HAYNE E. LELAND, “Insider Trading: Should it be prohibited?”, in The Journal of Political Economy, vol. 100, nº 4, agosto de 1992, pp. 859-887 (p. 859). 9- Os designados partidários da teoria da utilidade da utilização em bolsa de informação privilegiada. 10- Para um maior aprofundamento da obra, ver Insider trading and the Stock Market, Nova Iorque: Free Press, 1966. 11- Para maiores esclarecimentos da sua teoria, ver “The effect of insider trading rules on the internal efficiency of the large Corporation”, in Michigan Law Review, nº 80, 1982, pp. 1051-1071. 12- JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS, op. cit., p. 22.

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40 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

might not survive”13, já que “esta seria a forma

de remunerar devidamente os administradores

das sociedades (...) que, pelas suas excecionais

qualidades de liderança e de inovação, eram o

motor de criação da riqueza”14.

Mas esta teoria viria a ser muito criticada, invo-

cando-se como argumentos decisivos designa-

damente, “a ilicitude intrínseca à utilização de

informações privilegiadas e a injustiça relativa-

mente aos investidores em especial, e ao merca-

do em geral, bem como a existência de danos

provocados pelos insiders aos investidores”15.

Assim, pese embora o relevo e a atenção que a

escola de Chicago e, em especial, H. G. MAN-

NE, receberam, a verdade é que se consolidou,

tanto nos EUA, como na Europa16, o carácter

ilícito do insider trading17.

2. O quadro legal do abuso

de informação privilegiada

Na União Europeia, o relatório de um grupo de

especialistas, de 1966, constituído pela Comis-

são da antiga CEE, sobre o desenvolvimento de

um mercado europeu de capitais – como abor-

dámos supra –, constituiu um alerta para o iní-

cio da articulação de medidas para reprimir a

exploração abusiva de informação privilegiada,

dado que nem todos os países comunitários ti-

nham legislação sobre insider trading.

O primeiro passo, nesse sentido, foi dado com a

Recomendação da Comissão 77/534/CEE, de

25 de julho de 1977, relativa a um código euro-

peu de conduta respeitante às transações relati-

vas a valores mobiliários. Este código, que pri-

mava pelo aspeto deontológico, não teve grande

eficácia, visto não ser um instrumento vinculati-

vo perante os Estados membros. Um segundo

passo, no sentido de se combater as práticas de

insider trading, foi dado com a Convenção do

Conselho da Europa, de 20 de abril de 198918,

que representou, nesta matéria, o primeiro trata-

do internacional multilateral.

Mas o passo mais relevante dado pela União

Europeia, atendendo ao seu caráter vinculativo,

surgiu com a Diretiva do Conselho 89/592/

CEE, de 13 de novembro de 198919, relativa à

coordenação das regulamentações respeitantes

13- Apud ROBERT CHARLES CLARK, Corporate Law, Boston / Toronto: Little, Brown and Company, 1986, p. 277. 14- JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS, op. cit., p. 22. 15- FÁTIMA COSTA (1996), op. cit., p. 12. Para maiores esclarecimentos sobre os argumentos que foram sendo invocados a favor da proibição e criminalização do insider trading, ver, designadamente, JOSÉ ZAMYR VEJA GUTIÉRREZ (2010), op. cit., pp. 42-46. 16- A resposta da Europa ao insider trading revelou-se ampla. A título de exemplo, França puniu aquelas práticas em 1967, na Ordennance nº 67-833, o Reino Unido puniu (criminalmente) a partir de 1985, com a aprovação da Company Securities (Insider Dealing) Act, dentro da Financial Services Act, e a Itália puniu a partir de 1991, com a Legge nº 157, de 17 de maio de 1991. Embora a Alemanha tenha sido um dos países que, com maior força, se opôs a que a União Europeia (na altura, CEE) estabelecesse a obrigação dos Estados membros imporem medidas de carácter penal, relativamente às práticas de insider trading, a verdade é que o escândalo que ocorreu na Bolsa de Frankfurt, em 1991, relativo à atuação de um insider, modificou, em grande medida, as opiniões acerca da utilização de sanções penais. A propósito das reticências que alguns autores revelam quanto a impor medidas de carácter penal no combate às práticas de insider trading, GUIDO SANTORO analisa o insider trading no âmbito do direito civil e coloca a hipótese de aquele ser punido só no campo civil (“Insider Trading: profili civilistici”, in Contratto e impresa. Dialogui con la giurisprudenza civile e commerciale diretti da Francesco Galgano, nº 2, ano 8, 1992, pp. 663-681). O Reino Unido, por exemplo, segue maioritariamente a via do direito civil, neste domínio, com numerosos acordos extrajudiciais, sendo escassas as declarações de culpabilidade penal. A este propósito, JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS consideram que, “embora a experiência de várias ordens jurídicas (...) mostre que tanto a reação ao abuso de informação como a tutela dos investidores pode passar por mecanismos ou instrumentos não penais, é certo que a tutela penal tem sido considerada como necessária e imprescindível (...), tendo em conta a inoperatividade de sanções civis quando referidas a transações efetuadas em mercados de anónimos e a insuficiência da disciplina não penal para combater as condutas próprias do insider trading” (op. cit., p. 31). 17- Embora se possa ponderar, como o fez JOSÉ ZAMYR VEGA GUTIÉRREZ (2010), tendo por base Luzón Peña, a possibilidade de o abuso de informação ser apenas uma manifestação do chamado direito penal simbólico (op. cit., pp. 46-54). 18- Portugal não aderiu, nem ratificou esta convenção. 19- A Diretiva do Conselho 89/592/CEE teve por base a Proposta de Diretiva da Comissão da CEE, de 25 de maio de 1987, sobre coordenação das normas relativas às operações de iniciados. Dado o seu caráter de programas mínimos (artigo 6º), a Diretiva não se pronuncia sobre a natureza das correspondentes sanções. O artigo 13º limita-se a exigir que se imponham sanções suficientes para incentivar o respeito pelas disposições resultantes da Diretiva, sem decidir pela criminalização. Não obstante, esta via foi seguida pela maioria dos países membros da União Europeia. A Diretiva do Conselho 89/592/CEE foi transposta para a ordem jurídica portuguesa, por intermédio do Decreto-Lei nº 142-A/91, de 10 de abril.

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41 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

às operações de iniciados. Esta diretiva teve

como principais inovações, por um lado, obri-

gar todos os Estados membros a adotar as medi-

das necessárias para reprimir as práticas de insi-

der trading, tanto em mercados bolsistas, como

em mercados não bolsistas; e, por outro, estabe-

lecer os princípios básicos que estiveram na

base da sua adoção20.

No entanto, a União Europeia reconheceu que

esta diretiva estava incompleta, já que se limita-

va à prevenção do abuso de informação. Assim,

em 2003, a mesma diretiva foi revogada pela

Diretiva 2003/6/CE21 do Parlamento Europeu e

do Conselho, de 28 de janeiro de 200322, relati-

va ao abuso de informação privilegiada e à ma-

nipulação de mercado (abuso de mercado)23 .

Mais recentemente, surgiu o Regulamento (UE)

nº 596/2014 do Parlamento Europeu e do Con-

selho de 16 de abril de 2014, relativo ao abuso

de mercado, que revoga a Diretiva 2003/6/CE

do Parlamento Europeu e do Conselho24. O Re-

gulamento (EU) N.º 596/2014 começou a ser

aplicado - na maioria dos seus artigos - desde 3

de junho de 2016. Surgiu igualmente, a Diretiva

2014/57/UE do Parlamento Europeu e do

Conselho, de 16 de abril de 2014, relativa às

sanções penais aplicáveis ao abuso de informa-

ção privilegiada e à manipulação de mercado

(abuso de mercado), diploma que deveria ter

sido transposto até 3 de julho de 2016, prazo

dado aos Estados membros para adotarem e

publicarem as disposições legislativas, regula-

mentares e administrativas necessárias para dar

cumprimento à referida Diretiva. No entanto,

tanto o Regulamento, como a Diretiva, não

são, para já, pacíficos, já que, por exemplo,

FREDERICO DE LACERDA DA COSTA

PINTO25 entende, por um lado, que o Regula-

mento é, de alguma forma, um retrocesso, e,

por outro, que a Diretiva trará poucas inovações

para Portugal, pois, embora o diploma estabele-

ça penas mínimas, Portugal já contempla essas

exigências, estando até acima do que a Diretiva

exige como mínimo.

Em Portugal, embora a Diretiva do Conselho

89/592/CEE só tenha sido transposta por

intermédio do Decreto-Lei nº 142-A/91, de 10

de abril – como acima referimos –, a verdade

é que, desde os anos oitenta, já a ordem jurídica

proibia o abuso de informação privilegiada.

A responsabilidade pela prática de insider

trading foi introduzida no ordenamento

jurídico português pelo Código das Sociedades

Abuso de Informação Privilegiada...: 41

20- Princípio da confiança dos investidores; princípio do bom funcionamento do mercado; princípio da proibição e punição dos comportamentos nacionais e transnacionais que violem aqueles princípios. 21- A Diretiva 2003/6/CE trouxe algumas inovações, designadamente: em primeiro lugar, enquanto a anterior diretiva não explicava se a informação respeitava direta ou indiretamente a emitentes ou a instrumentos financeiros, o novo diploma veio esclarecer que pode ser abrangida uma relação indireta; em segundo lugar, o artigo 2º incluiu como sujeito do delito a pessoa que detém informação privilegiada em virtude das suas atividades criminosas (nº 1, alínea d)); e, finalmente, introduziu uma nova conduta proibida, que não estava prevista na Diretiva 89/592/CEE: o mero uso da informação, tendo em vista adquirir ou alienar instrumentos financeiros com que a informação se relaciona. 22- A Diretiva 2003/124/CE da Comissão, de 22 de dezembro de 2003 veio estabelecer as modalidades de aplicação da Diretiva 2003/6/CE, no que diz respeito à definição e divulgação pública de informação privilegiada e à definição de manipulação de mercado. A Diretiva 2003/6/CE foi alterada pela Diretiva 2008/26/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de março de 2008 e, posteriormente, pela Diretiva 2010/78/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de novembro de 2010. 23- Tal como HELENA BOLINA (p. 62) destaca, “a diretiva vem assumir expressamente a ideia de que ambos os tipos de conduta são danosas para o mercado e que em ambos os casos o que se visa proteger através das proibições é a integridade do mercado”. Para um maior aprofundamento sobre as inovações da Diretiva 2003/6/CE, ver HELENA BOLINA, “A manipulação de mercado e o abuso de informação privilegiada na nova Diretiva sobre o abuso de mercado (2003/6/CE)”, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº 18, de agosto de 2004, pp. 62-71. 24- Revoga igualmente a Diretiva 2003/124/CE da Comissão, de 22 de dezembro de 2003. 25- Reportamo-nos a considerações que o autor teceu, a este propósito, no módulo “Tutela penal do mercado de valores mobiliários”, inserido no XVIII Curso de Especialização em Direito Penal Económico, Internacional e Europeu, que decorreu na Faculdade de Direito, da Universidade de Coimbra, de 31 de janeiro a 16 de maio de 2015.

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42 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Comerciais (doravante, CSC)26, onde resultava

dos artigos 449º e 450º, do CSC27 a natureza

ilícita do abuso de informação. Mais tarde, por

força do Decreto-Lei nº 184/87, de 21 de

abril28, foi introduzido o artigo 524º, do

CSC, que tipificou o crime de abuso de

informações29. No entanto, o artigo 524º, do

CSC foi revogado, em 1991, aquando da

entrada em vigor do Código do Mercado de

Valores Mobiliários30 (CódMVM), inserindo

sistematicamente, no artigo 666º, do

CódMVM31, o crime de abuso de informação,

no âmbito dos mercados de valores

mobiliários32. Em 1999, o atual Código

dos Valores Mobiliários33 (de agora em

diante, CdVM)34 coloca o crime de abuso de

informação no artigo 378º – onde se

mantém atualmente35 – o que analisaremos

detalhadamente no ponto seguinte.

26- Aprovado pelo Decreto-Lei nº 262/86, de 2 de setembro. 27- Estas disposições – que se mantêm em vigor – só contemplavam sanções não penais, como a obrigação de indemnizar os lesados, destituição judicial dos agentes responsáveis e inquérito judicial. O artigo 449º, do CSC foi alterado pelo Decreto-Lei nº 280/87, de 8 de julho e o artigo 450º, do CSC foi alterado pelo Decreto-Lei nº 76-A/2006, de 29 de março – para um aprofundamento sobre o objeto de proteção do artigo 449º, do CSC, ver ANA BROCHADO, “A indemnização por abuso de informação privilegiada no Código das Sociedades Comerciais”, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº 36, agosto de 2010, pp. 32-48. Assim, a criminalização do insider trading foi deixado para o Código do Mercado de Valores Mobiliários (atual Código dos Valores Mobiliários), regulando o Código das Sociedades Comerciais apenas a responsabilidade societária. No entanto, o Código das Sociedades Comerciais prevê um crime de informações falsas (artigo 519º), que é aplicável a todas as sociedades comerciais. A propósito do enquadramento jurídico-sancionatório da falsificação de informação financeira relativa a sociedades abertas, ver FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO, “Falsificação de informação financeira nas sociedades abertas”, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº 16, 2003, pp. 99-135. 28- Diploma que acrescentou ao Código das Sociedades Comerciais o Título VII, dedicado a disposições penais e de mera ordenação social. Enquanto o legislador português optou por colocar os crimes societários no Código das Sociedades Comerciais, o legislador espanhol optou por colocá-los no Código Penal. 29- A conduta proibida por este crime consistia em revelar ilicitamente a outrem fatos relativos à sociedade aos quais não tenha sido dada previamente publicidade (nº 1) ou que sejam suscetíveis de influir no valor dos títulos das sociedades anónimas ou das sociedades participantes na fusão (nº 2). 30- Aprovado pelo Decreto-Lei nº 142-A/91, de 10 de abril. SUSANA AIRES DE SOUSA entende que, o fato de os crimes de abuso de informações (artigo 524º, do CSC) e de manipulação fraudulenta de cotações de títulos (artigo 525º, do CSC) – com grande probabilidade, dos crimes societários mais importantes – terem sido revogados, passando a constar do Código do Mercado dos Valores Mobiliários, reflete bem a importância que se dá aos crimes societários (reportamo-nos a considerações que a autora teceu, a este propósito, no módulo “Direito Penal da Pessoa Coletiva”, inserido no XVIII Curso de Especialização em Direito Penal Económico, Internacional e Europeu, que decorreu na Faculdade de Direito, da Universidade de Coimbra, de 31 de janeiro a 16 de maio de 2015). Para maiores considerações sobre os crimes societários, ver SUSANA AIRES DE SOUSA, “Direito Penal das Sociedades Comerciais. Qual o bem jurídico?”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 1, jan-mar de 2002, pp. 49-77; ANA MICAELA PEDROSA AUGUSTO, “Insider Trading: Perspetiva sobre o enquadramento jurídico-societário no ordenamento português”, in O Direito, nº 5, ano 136º, 2004, pp. 999-1042. Para um estudo mais aprofundado sobre os problemas de aplicação da lei no tempo, que resultaram da entrada em vigor das incriminações de abuso de informação do Código do Mercado de Valores Mobiliários, ver MIGUEL NUNO PEDROSA MACHADO, “A entrada em vigor das incriminações de abuso de informação e de manipulação do mercado do Código do Mercado de Valores Mobiliários”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 1, Fasc. 4, out-dez de 1991, pp. 609-625. 31- FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO tece algumas críticas à técnica utilizada pelo legislador de 1991, já que este se limitou, por um lado, a “transformar em normas jurídicas as regras da Diretiva [de 1989], que apenas continham indicações sobre a matéria, criando desse modo um conjunto de tipos penais estranhos à técnica jurídica nacional, com uma estrutura complexa e densa, mas ainda assim lacunar em alguns aspetos”; e, por outro lado, a recorrer “de forma exagerada a elementos subjetivos especiais para delimitar os tipos incriminadores, transpondo para crimes que, na sua essência, são de natureza económica, a técnica dos crimes contra o património” (in O novo regime dos crimes e contraordenações no Código dos Valores Mobiliários, Almedina, 2000, p. 42). 32- A este propósito, JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS consideram que esta “mudança de inserção sistemática (...) não deixa de ser relevante e significativa porquanto, sob o ponto de vista do sistema, expressa a ligação entre o crime de abuso de informação e o mercado dos valores mobiliários” (op. cit., p. 28). 33- Aprovado pelo Decreto-Lei nº 486/99, de 13 de abril. O CódMVM de 1991 previa três crimes: o abuso de informação, a manipulação do mercado e a desobediência (artigos 666º, 667º e 668º). Estas incriminações mantêm-se no CdVM de 1999, embora com uma reformulação dos tipos de ilícito. 34- A Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), criada pelo Decreto-Lei nº 142-A/91, de 10 de abril, é a entidade pública que regula, regulamenta, supervisiona, fiscaliza e sanciona no âmbito do mercado de valores mobiliários. 35- Este artigo sofreu algumas alterações nos últimos anos, com o Decreto-Lei nº 52/2006, de 15 de março, a Retificação nº 21/2006, de 30 de março e a Lei nº 28/2009, de 19 de junho, que analisaremos, com maior detalhe, em lugar próprio do artigo. De relevar ainda que, em 18 de novembro de 2005, foi publicada a Lei nº 55/2005, que autoriza o Governo a regular os crimes de abuso de informação e de manipulação do mercado, no âmbito do mercado de valores mobiliários, criando-se, desta forma, as condições para que fosse transposta para a ordem jurídica nacional a Diretiva 2003/6/CE do Parlamento e do Conselho – o que aconteceu com o Decreto-Lei nº 52/2006, de 15 de março.

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43 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

3. O regime criado pelo Código

dos Valores Mobiliários

O crime de abuso de informação privilegiada

surge no artigo 378º, do CdVM, com a epígrafe

abuso de informação – nome que, em Portugal,

se adotou para o insider trading ou délit d’initié.

Segundo FREDERICO DE LACERDA DA

COSTA PINTO, “o núcleo essencial da incri-

minação” do abuso de informação “contempla

situações em que alguém usa no mercado de

valores mobiliários uma informação economi-

camente relevante a que teve acesso de uma

forma especial, antes mesmo de a generalidade

dos investidores a poder conhecer”. Assim, co-

mo conclui o mesmo autor, “quem utiliza infor-

mação privilegiada encontra-se numa situação

de vantagem ilegítima perante os demais inves-

tidores com quem negoceia, podendo com mais

segurança evitar prejuízos ou obter lucros”36.

Estes princípios de legalidade e de intervenção

mínima ou ultima ratio conduzem-nos ao prin-

cípio de nullum crimen sine iniuria, segundo o

qual todo o crime tem como finalidade a prote-

ção de um bem jurídico. Ao longo dos últimos

anos, tem sido recorrente, na doutrina, a ques-

tão de saber qual é o bem jurídico do crime de

abuso de informação, sendo inúmeras as posi-

ções quanto ao bem jurídico protegido no crime

de abuso de informação.

Inicialmente, defendeu-se, por um lado, que o

bem jurídico protegido do abuso de informação

visava proteger os interesses da empresa onde

o insider trabalhava37 e, por outro, que visava

proteger os interesses do investidor individu-

al38. No entanto, estas posições encontram-se

hoje, de alguma forma, ultrapassadas. JOSÉ

DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE

RAMOS consideram que “a incriminação do

abuso de informação pretende, por um lado,

tutelar a confiança dos investidores no correto

funcionamento do mercado39 e, por outro lado,

proteger a decisão económica individual no

sentido de que esta seja tomada em situação de

igualdade de informação para todos os

potenciais intervenientes no mercado.

Criando-se, assim, as condições de livre

concorrência entre os investidores” – corolários

constitucionais (artigos 81º, alínea f) e 99º, alí-

nea a), da CRP). Os autores concluem que, mais

do que um bem jurídico poliédrico, está em

causa um bem jurídico heterogéneo40.

No entanto, para FREDERICO DE LACERDA

DA COSTA PINTO, o bem jurídico que sobre-

tudo se visa proteger é “a função pública da

informação enquanto justo critério de distribui-

ção do risco do negócio no mercado de valores

mobiliários”. Ou seja, “está em causa, na verda-

de, a igualdade perante um bem económico (a

Abuso de Informação Privilegiada...: 43

36- FRECERIDO DE LACERDA DA COSTA PINTO, O novo regime dos crimes..., 2000, pp. 42-43. 37- A este propósito, FRECERIDO DE LACERDA DA COSTA PINTO considera que, em bom rigor, “os interesses da empresa enquanto eventual ofendido com o ato do insider já são protegidos por via das incriminações que visam tutelar os segredos patrimoniais ou industriais (artigos 195º e 196º do Código Penal) sendo uma repetição inútil integrar esse objeto de tutela na incriminação do abuso de informação” (in O novo regime dos crimes..., 2000, p. 66). 38- O penalista alemão GÜNTER STRATENWERTH, seguindo Forstmoser, agrupa em três critérios as lesões que provoca o abuso de informação privilegiada: em primeiro lugar, pode configurar um abuso de confiança, relativamente à empresa onde o insider trabalha; em segundo lugar, tais abusos constituem um engano a outros investidores e, nesse sentido, uma violação do princípio de igualdade de oportunidades; e, finalmente, prejudica interesses económicos gerais, ao vulnerar a confiança do investidor num correto e transparente funcionamento do mercado de capitais (“Zum Straftatbesand des Missbrauchts von Insiderinformationen”, in Festschrift für Frank Vischer, zum 60, 1983, pp. 667-676 (p. 668)). 39- DANIEL FERRANDIS CIPRIÁN e LUCÍA MARTÍNEZ GARAY estão de acordo quanto à confiança no correto funcionamento do mercado, enquanto bem jurídico protegido (“Tratamiento penal del abuso de información privilegiada en el mercado financiero”, in Estudios penales y criminológicos, vol. XXIII, Cursos y Congresos nº 135, Servizo de Publicacións da Universidade de Santiago de Compostela, 2001-2002, pp. 100-174 (p. 169)). 40- JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS, op. cit., pp. 37-38.

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44 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

informação) necessário para a tomada de deci-

sões económicas racionais”41.

Em qualquer uma das posições que se defenda

quanto ao bem jurídico protegido, a informação

– e, especialmente, a informação privilegiada –

assume sempre um papel importante. Pelo que,

torna-se impreterível analisar o conceito jurídi-

co-penal de informação privilegiada42.

Nos termos do artigo 378º, nº 3, do CdVM43,

“entende-se por informação privilegiada toda a

informação não tornada pública que, sendo pre-

cisa e dizendo respeito, direta ou indiretamente,

a qualquer emitente ou a valores mobiliários ou

outros instrumentos financeiros, seria idónea, se

lhe fosse dada publicidade, para influenciar de

maneira sensível o seu preço no mercado”44.

Assim, é possível, desde já, elencar quatro re-

quisitos típicos para a definição legal de infor-

mação privilegiada: 1. caráter não público; 2.

precisão; 3. referência a entidades emitentes de

valores mobiliários ou a valores mobiliários; 4.

influência sensível sobre o preço45.

Feito este enquadramento, é chegada a hora de

fazermos uma análise sucinta sobre o abuso de

informação, ao nível do tipo objetivo e do tipo

subjetivo.

3.1. O tipo objetivo do abuso de informação

Como temos vindo a salientar, a génese do abu-

so de informação está intimamente ligada ao

uso de informações relevantes para a cotização

de valores, por parte de sujeitos que se encon-

tram numa posição privilegiada, relativamente

aos demais intervenientes no mercado. Pelo que

se torna impreterível determinar, desde logo,

quem são os sujeitos ativos do abuso de

41- FRECERIDO DE LACERDA DA COSTA PINTO, O novo regime dos crimes..., 2000, p. 67; “Delitos económicos y mercados financieros. Abuso de información privilegiada y manipulación del mercado en el nuevo Código Portugués de Valores Mobiliários de 1999”, in Revista Penal, nº 6, 2000, pp. 84-103 (p. 98). 42- Para um maior aprofundamento sobre a noção jurídica de informação, ver, designadamente, ANDREA NERVI, “La nozione giuridica di informazione e la disciplina di mercato. Argomenti di discussione”, in Rivista del Diritto Commerciale e del Diritto Generale delle Obbligazioni, parte prima, nº 96, 1998, pp. 843-872. Para maiores esclarecimentos sobre a tutela penal da informação, ver MIGUEL PEDROSA MACHADO, “Sobre a tutela penal da informação nas sociedades anónimas: problemas da reforma legislativa”, in Direito Penal Económico e Europeu: Textos doutrinários. Problemas Especiais, vol. II, Coimbra Editora, 1999, pp. 173-226. Para um maior conhecimento sobre a informação no âmbito do mercado de valores mobiliários, ver CARLOS OSÓRIO DE CASTRO, “A informação no direito do mercado de valores mobiliários”, in Direito dos Valores Mobiliários, Lex, 1997, pp. 333-347. 43- O artigo 248º, nº 2, do CdVM complementa a definição de informação privilegiada, referindo que esta “abrange os fatos ocorridos, existentes ou razoavelmente previsíveis, independentemente do seu grau de formalização, que, por serem suscetíveis de influir na formação dos preços dos valores mobiliários ou dos instrumentos financeiros, qualquer investidor razoável poderia normalmente utilizar, se os conhecesse, para basear, no todo ou em parte, as suas decisões de investimento”. Saliente-se que, nos termos do nº 1 daquele preceito, o dever de divulgação de informação privilegiada a cargo dos emitentes abrange apenas a informação que lhes diga diretamente respeito ou aos valores mobiliários por si emitidos, e ainda qualquer alteração à informação tornada pública. Fora do dever de divulgação fica a informação privilegiada relativa a fatos que apenas digam indiretamente respeito aos emitentes e aos valores mobiliários por si emitidos, enquanto tais fatos mantiverem essa caraterística. Já que, tal como muito bem salienta a CMVM, “na generalidade [destas] (...) situações o emitente apenas tomará delas conhecimento juntamente com o restante público ou, mesmo que as conheça antes, poderá encontrar-se impedido de divulgar publicamente as informações relevantes antecipando-se à respetiva fonte” (Entendimentos da CMVM sobre divulgação de informação privilegiada por emitentes. Conceitos, linhas de orientação, exemplos e condutas a adotar, 2008, disponível em http://www.cmvm.pt/pt/Legislacao/Legislacaonacional/Entendimentos/Pages/Entendimentos-da-CMVM-sobre-a-Divulga%C3%A7%C3%A3o-de-Informa%C3%A7%C3%A3o-Privilegiada-por-Emitentes---Conceitos,-Linhas-de-Orienta%C3%A7%C3%A3o,-Exempl.aspx, consultado em 26-04-2015). A este propósito, FRANCESCO GALGANO tem um entendimento contrário, defendendo que “é insider trading quando se está na posse de uma notícia reservada relativa a companhia de outras pessoas, e não quando se trata de uma notícia sobre a sua própria empresa” (“Gruppi di società, insider trading, OPA obbligatoria”, in Contratto e impresa. Dialoghi con la giurisprudenza civile e commerciale diretti da Francesco Galgano, ano 8, nº 2, 1992, pp. 637-652 (p. 640)). 44- O artigo 378º, nº 3, do CdVM exige, como requisito constitutivo da noção de informação privilegiada, que a informação seja idónea, de forma a influenciar de maneira sensível o preço do mercado, JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS questionam que mercados estão abrangidos nesta norma. Os autores concluem que “o crime de abuso de informação «lesa» todos os que real ou potencialmente estão no mercado de valores mobiliários”, mercados estes “organizados em que se «admite a negociação de valores mobiliários por um conjunto indeterminado de pessoas” (op. cit., pp. 54-61). 45- Para um estudo aprofundado sobre os conceitos de informação específica, precisa, não pública e idónea, ver, designadamente, JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS, op. cit., pp. 43-54; JOSÉ ZAMYR VEGA GUTIÉRREZ (2010), op. cit., pp. 237-258.

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45 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

informação privilegiada46, ou seja, quem pode

praticar este crime. Na senda do artigo 378º, nos

1 e 2, do CdVM47, e utilizando a casuística nor-

te-americana, podemos considerar que a alínea

a) do nº 1 do artigo 378º, do CdVM pune os

corporate insiders (também designados de insi-

ders internos), que “abrange todos os sujeitos

que têm um vínculo jurídico especial com uma

sociedade, vínculo esse que pode derivar da sua

qualidade de membros do órgão de administra-

ção, direção, fiscalização, de funções que exer-

çam ou de participação que detenham no capital

social”48; as alíneas b) e c) alargam a incrimina-

ção até aos temporary insiders e insiders não

institucionais, ou seja, “pessoas com um víncu-

lo profissional, permanente ou temporário, a um

emitente ou, ainda, pessoas que exercem

profissão ou função pública”49; já o nº 2 pune,

em determinadas circunstâncias, os outsiders

(também conhecidos por tippies50), isto é, pes-

soas que, “não revestindo as qualidades previs-

tas pelos anteriores preceitos, têm conhecimen-

to de uma informação privilegiada que depois

utilizam” 51,52 .

A propósito dos sujeitos ativos do abuso de in-

formação privilegiada, tem-se colocado a ques-

tão de saber se o insider non trading também é

punido53, ou seja, os casos em que alguém rece-

be informação privilegiada e decide não efetuar

o negócio, ainda que essa abstenção implique

um benefício54. Relativamente a este problema,

FREDERICO DE LACERDA DA COSTA

PINTO entende que o insider non trading não

está no tipo, porque o artigo 378º, do CdVM

não prevê a omissão55.

Abuso de Informação Privilegiada...: 45

46- A doutrina espanhola tem-se debruçado bastante sobre a problemática do abuso de informação privilegiada praticado por funcionário. A este propósito, ver, designadamente, PILAR OTERO GONZÁLEZ, “Abuso de información privilegiada de funcionario (delito de)”, in Eunomía. Revista en Cultura de la Legalidad, nº 1, setembro de 2011-fevereiro de 2012, pp. 167-172; ABRAHAM CASTRO MORENO e PILAR OTERO GONZÁLEZ, El abuso de información privilegiada en la función pública, Tirant lo Blanch, 2006. Alguma doutrina portuguesa tem analisado se os jornalistas podem ser responsabilizados pela divulgação ou retenção de notícias que possam afetar o funcionamento dos mercados. A este propósito, ver INÊS FERNANDES GODINHO, “Abuso de informação e a função de jornalista”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 3, jul-set de 2002, pp. 459-495; FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO, “O direito de informar e os crimes de mercado. Uma reflexão sobre as fronteiras da liberdade de imprensa e a integridade dos mercados de valores mobiliários”, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº 2, primeiro semestre de 1998, pp. 96-109. 47- O artigo 378º, nos 1 e 2, do CdVM determina quem são agentes do crime de abuso de informação: a) titular de um órgão de administração ou de fiscalização de um emitente (alínea a)); b) titular de uma participação no capital social de um emitente (alínea a)); c) prestador de trabalho ou serviço, com caráter permanente ou ocasional, a um emitente ou a outra entidade (alínea b)); d) pessoas que exerçam função pública (alínea c)); e) quem disponha de informação privilegiada que, por qualquer forma, tenha sido obtida através de um fato ilícito ou que suponha a prática de um fato ilícito (alínea d)); f) qualquer pessoa não abrangida pelo artigo 378º, nº 1, do CdVM que tenha conhecimento de informação privilegiada. 48- FÁTIMA GOMES (1996), op. cit., p. 67. 49- JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS, op. cit., p. 62. 50- Tal como GONÇALO NICOLAU CERQUEIRA SOPAS DE MELO BANDEIRA recorda, “já em 1997 a doutrina alemã criticava, com razão, a exclusão do tippies do tipo «legal de proibição»” (in “Abuso de mercado e «responsabilidade penal» das pessoas (não) coletivas. Contributo para a compreensão dos bens jurídicos coletivos e dos «tipos cumulativos», na mundialização”, Tese de Doutoramento, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2008, p. 177). 51- JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS, op. cit., p. 62. 52- Para além desta distinção, também se diferencia entre insiders primários e insiders secundários, estes últimos, pessoas que recebem dos primeiros a informação relevante. Para um maior conhecimento, ver J. J. VIEIRA PERES, «O delito de “insider trading” e a obrigação de informação», in Problemas societários e fiscais do mercado de valores mobiliários, Edifisco, 1992, pp. 79-99 (pp. 89-90). 53- Outro problema que surge no âmbito do abuso de informação é o scalping. Definido por MIGUEL BRITO BASTOS como “o comportamento do agente que, após a aquisição de determinados valores mobiliários, recomenda a terceiros a aquisição do mesmo, alienando seguidamente os valores previamente adquiridos, destarte obtendo um lucro correspondente a uma subida das cotações derivada da sua própria recomendação” (pp. 293-294), tem sido alvo de forte discussão na doutrina, relativamente à qualificação deste comportamento como insider trading ou como manipulação de mercado. Para um maior conhecimento da problemática, ver MIGUEL BRITO BASTOS, “Scalping: abuso de informação privilegiada ou manipulação de mercado?”, in Revista de Concorrência e Regulação, ano III, nº 9, jan-mar de 2012, pp. 293-324. 54- Um exemplo paradigmático: A queria comprar ações de um banco, fala com B, seu vizinho, que é primo de um administrador do banco, que o aconselha a não investir e A não investe. 55- Reportamo-nos a considerações que o autor teceu, a este propósito, no módulo “Tutela penal do mercado de valores mobiliários”, inserido no XVIII Curso de Especialização em Direito Penal Económico, Internacional e Europeu, que decorreu na Faculdade de Direito, da Universidade de Coimbra, de 31 de janeiro a 16 de maio de 2015. Sobre este problema, ver, designadamente, JOSÉ ZAMYR VEGA GUTIÉRREZ (2010), op. cit., pp. 314-322; JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS, op. cit., pp. 109-110.

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46 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Relativamente às condutas proibidas56, para

além da proibição genérica de uso indevido de

informação privilegiada, o artigo 378º, do

CdVM indica as seguintes: 1. transmitir essa

informação, fora do âmbito normal das suas

funções; 2. utilizar a informação privilegiada,

isto é, não pode, com base nela e relativamente

a valores mobiliários ou instrumentos financei-

ros, negociar, aconselhar alguém a negociar ou

ordenar, para si ou para outrem, direta ou indi-

retamente, a subscrição, aquisição, venda ou

troca, sendo sempre necessário que qualquer

uma dessas operações seja feita com base na

informação privilegiada57. Este conjunto de

comportamentos penalmente proibidos podem

ser cometidos na forma consumada ou na forma

tentada, e ainda em qualquer uma das modali-

dades de comparticipação previstas no Código

Penal (artigos 22º, 26º e 27º)58.

Finalmente, coloca-se a questão de saber se as

pessoas coletivas respondem criminalmente

pelo crime de abuso de informação. O problema

surge, sobretudo, porque as pessoas coletivas

podem integrar os órgãos de administração e de

fiscalização, podendo inclusive ser titulares de

participações sociais no capital social de emi-

tentes59. Até à alteração do artigo 11º, do Códi-

go Penal – com a Lei nº 59/2007, de 4 de se-

tembro –, a maioria da doutrina defendia que o

artigo 378º, do CdVM “não apresenta uma res-

trição expressa às pessoas singulares nem o

alargamento explícito das margens de punibili-

dade até às pessoas coletivas”60. Assim, a reso-

lução do problema passava pela convocação do

artigo 11º, do Código Penal, que preceituava a

regra geral de a responsabilidade criminal se

reportar a pessoas singulares – salvo disposição

em contrário.

No entanto, desde 2007, as pessoas coletivas

respondem criminalmente, no âmbito do Códi-

go Penal, o que permite, pelo menos, questionar

se não haverá aqui uma mudança de paradigma,

também no âmbito do Código dos Valores Mo-

biliários, passando a pessoa coletiva a respon-

der pelo crime de abuso de informação61.

3.2. O tipo subjetivo do abuso de informação

O crime de abuso de informação só pode ser

imputável a título doloso, por força do disposto

no artigo 13º, do Código Penal, não se punindo

por negligência.

Finalmente, acresce ainda referir que o crime de

abuso de informação é punido com penas prin-

cipais (artigo 378º, nºs 1 e 2, do CdVM), penas

acessórias (artigo 380º, do CdVM) e com con-

sequências jurídicas especiais ao nível da perda

56- Em Espanha exige-se a obtenção, para si ou para terceiro, de um benefício superior a €600.000,00 ou que cause um prejuízo de idêntica quantidade (artigo 285º, do Código Penal espanhol). Para maiores considerações sobre esta exigência, ver JOSÉ ZAMYR VEGA GUTIÉRREZ, “Valoración político-criminal del insider trading como delito económico: la reforma por LO 5/2010, una oportunidade perdida”, in Revista Jurídica de la Universidad Autónoma de Madrid, nº 25, 2012-I, pp. 211-229. Em Portugal não existe este sistema de quantia mínima, adotado pelo legislador espanhol. 57- O que significa que, tal como FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO (2000) adverte, “a simples posse da informação não constitui uma conduta criminosa, podendo apenas ter relevância por referência aos crimes previstos no Código Penal, nomeadamente de acesso ilegítimo a segredos (artigos 194º a 197º do Código Penal)” (O novo regime dos crimes..., p. 43). 58- No CódMVM de 1991 havia um regime de atenuação para a errada convicção do agente que transmitia a informação privilegiada a outrem, sempre que aquele estivesse fundadamente convencido de que o recetor da informação a manteria sob reserva e não a utilizaria. Esta atenuação foi suprimida no CdVM de 1999. 59- Tal como JORGE MANUEL COUTINHO DE ABREU refere, as pessoas coletivas privadas e públicas podem participar no ato constituinte de sociedades, tornando-se, assim, sócias (in Curso de Direito Comercial. Das Sociedades, 4ª edição, Almedina, 2011, pp. 98-103). 60- JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS, op. cit., p. 89. No mesmo sentido, FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO (2000), O novo regime dos crimes..., pp. 34-35. 61- No entanto, parece-nos que, para já, a maioria da doutrina continua a excluir a responsabilidade criminal das pessoas coletivas do âmbito do CdVM, limitando a sua responsabilidade ao nível contraordenacional (artigos 248º, nº 4, 394º, nº 1, alínea i) e 401º e ss, do CdVM) ou enquanto partes civis (artigo 378º, nº 7, do CdVM).

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47 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

das vantagens económicas do crime (artigo 380º

-A, do CdVM; artigo 111º e ss, do Código Pe-

nal; artigos 449º e 450º, do CSC).

4. Zonas de potencial interseção

Feito este enquadramento detalhado do crime

de abuso de informação, enunciando alguns

problemas que têm sido colocados a propósito

do mesmo e a forma como têm vindo a ser re-

solvidos, torna-se agora importante analisar,

concretamente, zonas de potencial intersecção

entre o crime de abuso de informação e maté-

rias do direito societário. Já que, por um lado, o

direito não é estanque e, por outro, o crime de

abuso de informação integra-se no âmbito do

mercado de valores mobiliários, o que permite

esta relação umbilical entre matérias do direito

penal e matérias do direito societário. Acresce

que, neste mundo globalizado e sempre promo-

tor de constantes mutações, surgem hoje zonas

particularmente sensíveis na delimitação das

condutas proibidas pelo crime de abuso de in-

formação. Este problema torna-se ainda mais

complexo, quando sabemos estar no âmbito de

práticas que surgem num contexto lícito – a

negociação no mercado de valores mobiliários

–, mas que, sem o devido controlo, facilmente

podem resvalar para zonas de ilícitos penais.

Nos tempos mais recentes – e até, de alguma

forma, a reboque da crise económico-financeira

de 200862 –, têm surgido alguns questionamen-

tos, designadamente, em três domínios do âm-

bito societário. Em primeiro lugar, no âmbito

da Oferta Pública de Aquisição (OPA)63, opera-

ção muito propícia à prática do crime de abuso

de informação e que muitas vezes é alvo de um

amplo escrutínio por parte da CMVM64. O pro-

blema coloca-se quando uma entidade emitente

inicia o processo de eventual lançamento de

uma OPA sobre uma empresa concorrente, mas,

antes do anúncio do lançamento, vários admi-

nistradores compram para si e para a própria

empresa ações da entidade visada. Ou seja, com

conhecimento de informações que não foram

ainda tornadas públicas e que podem influenci-

ar o preço, beneficiando do desconhecimento de

quem vendeu que as ações iriam proximamente

valorizar, com o anúncio da oferta. Embora

exista uma obrigação legal de anúncio prelimi-

nar – estabelecido pela lei para prevenir o insi-

der trading –, a verdade é que estes casos conti-

nuam a ocorrer com alguma frequência.

Em segundo lugar, no âmbito da aquisição de

ações em operações de management buy-out65.

O problema coloca-se também, já que, de acor-

do com o ordenamento jurídico português, os

adquirentes terão, em regra, que lançar uma

OPA sobre as ações da respetiva sociedade.

Como salientam JOSÉ DE FARIA COSTA e

MARIA ELISABETE RAMOS, “a disciplina

do insider trading proíbe que os administrado-

res adquiram ações em posse de informação

privilegiada que obtiveram em razão do exercí-

cio das suas funções”, sendo que, “se os admi-

nistradores pretendem «comprar a sociedade»

Abuso de Informação Privilegiada...: 47

62- Teve origem em 2006, nos EUA, com a quebra de instituições de crédito, que concediam empréstimos hipotecários de alto risco, arrastando vários bancos para uma situação de insolvência, tendo uma forte repercussão nas bolsas de valores de todo o mundo. Esta crise do subprime foi assumida publicamente, em inícios de 2007, como uma crise financeira, desembocando, em 2008, numa crise económica. 63- ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO refere que “há oferta pública quando uma pessoa dirija a uma generalidade de outras pessoas, uma proposta contratual”. Uma das ofertas públicas mobiliárias mais recorrente é a oferta pública de aquisição, em que o oferente propõe “adquirir ações; para tanto, ele dirige uma proposta a todos os detentores das ações pretendidas, no sentido de que lhas vendam, mediante um preço” (“Ofertas Públicas de Aquisição”, in Direito dos Valores Mobiliários, Lex, 1997, p. 267). Embora a OPA seja facultativa, casos há em que a lei pode torná-la obrigatória (artigo 187º e ss., CdVM). Para um conhecimento mais aprofundado sobre o regime da OPA, ver, designadamente, JOSÉ DIOGO HORTA OSÓRIO, Da tomada do controlo de sociedades (takeovers) por leveraged buy-out e a sua harmonização com o direito português, Almedina, 2001, pp. 119-131; PAULO CÂMARA, “As ofertas públicas de aquisição”, in Aquisição de empresas, Coimbra Editora, 2011, pp. 157-210. 64- O mais recente caso de que há conhecimento, onde já existem duas condenações ainda não transitadas em julgado, relaciona-se com a OPA lançada pela Tagus sobre a Brisa, em 29 de março de 2012. Há ainda algumas suspeitas de abuso de informação na OPA lançada pelo grupo mexicano Ángeles sobre o capital da Espírito Santo Saúde, em agosto / setembro de 2014. 65- Expressão anglo-saxónica que “designa uma operação em que os quadros diretivos adquirem o capital da empresa e assumem a sua gestão”. Distingue-se do management buy-in, por neste “serem quadros exteriores à empresa que assumem a sua gestão” (disponível em http://www.iapmei.pt/iapmei-art-03.php?id=319, consultado em 04-04-2015). A este propósito, ver ainda JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS, op. cit., pp. 100-108.

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48 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

que administram, é plausível que beneficiem de

um conhecimento avantajado sobre a situação

atual da sociedade e poderão, com menor incer-

teza, traçar quadros de prospetiva”66. O que os

poderá colocar numa posição de vantagem face

a todos os outros intervenientes no mercado.

Ora, se a incriminação do abuso de informação

não impossibilita que os administradores adqui-

ram ações da sociedade que eles administram, a

verdade é que, ao abrigo do artigo 378º, nº 1,

alínea a), do CdVM, proíbe que tal negociação

seja realizada na posse de informação privilegi-

ada, obtida em razão das funções exercidas.

Pelo que, JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA

ELISABETE RAMOS defendem que, “nesta

situação, o crime de abuso de informação impe-

de-os de explorarem esta assimetria informati-

va, designadamente através da negociação de

ações da sociedade visada (ou seja, comprando

ações enquanto permanece não pública a infor-

mação sobre a futura oferta pública de aquisi-

ção e vendendo no contexto desta)”67.

Por último, no âmbito dos instrumentos de re-

muneração dos administradores – estamos a

pensar, sobretudo, nos planos de atribuição de

ações e nas stock options –, domínio onde pre-

tendemos questionar se o crime de abuso de

informação implica a proibição dos instrumen-

tos de remuneração ou se resta ainda espaço

para tais práticas. E é este problema que optá-

mos por abordar no próximo ponto, guardando

os dois primeiros problemas para investigações

futuras.

4.1. O especial caso dos instrumentos

de remuneração dos administradores

Na última década, assistimos a duas crises com

repercussões financeiras, envolvendo, direta ou

indiretamente, a problemática das remunerações

dos administradores das sociedades, com possí-

veis interseções com o crime de abuso de infor-

mação: a primeira, com grandes falências inter-

nacionais, de onde se destaca a Enron68; e a se-

gunda, com a crise financeira global no período

de 2007-201069.

Neste sentido, antes mesmo de entrarmos no

cerne do problema nuclear do nosso trabalho,

impõe-se que façamos um breve enquadramen-

to sobre os instrumentos de remuneração dos

administradores, tendo em vista, especialmente,

os planos de atribuição de ações e os planos de

opção de ações70 (stock options plans)71.

Tradicionalmente, as remunerações dos admi-

nistradores das sociedades eram constituídas

unicamente por dinheiro – remuneração fixa.

66- JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS, op. cit., p. 103. 67- JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS, op. cit., p. 107. 68- A Enron Corporation, companhia americana líder na área da energia, entrou em insolvência em 2001 – tendo apresentado extraordinárias alegadas receitas em 2000 –, tendo-se descoberto que utilizava inúmeros artifícios de contabilidade e práticas suspeitas de gestão. A insolvência desta grande empresa não se ficou a dever à revelação destas práticas – que levou inclusive à dissolução de Arthur Andersen, uma das cinco maiores sociedades de auditoria e contabilidade do mundo na altura, que colaborou com aquela empresa, tendo mesmo ajudado a encobrir as fraudes –, mas ao enorme endividamento que a empresa foi contraindo para financiar essas suas atividades duvidosas. Em consequência do escândalo, foi criada nos EUA, em 2002, a Sarbanes-Oxley Act, lei que procurou aumentar a transparência dos mercados, através da reforma da contabilidade pública das empresas, e a responsabilidade das empresas de auditoria – disponível em http://www.soxlaw.com/, consultada em 08-06-2015. 69- Uma crise que ainda faz sentir os seus efeitos no tempo presente. De acordo com PEDRO MAIA, “a grande crise financeira que eclodiu em 2008 [veio] (...), por um lado, dar grande publicidade às elevadas remunerações de, pelo menos, alguns CEOs e, por outro lado, evidenciar que existia uma relativa imunidade dessas elevadas remunerações ao desempenho das sociedades. Sociedades que faliram tinham acabado de atribuir prémios de desempenho de elevados montantes aos seus CEOs” (in “Voto e Corporate Governance. Um novo paradigma para a sociedade anónima”, volume II, Tese de Doutoramento, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2009, p. 879). 70- Como adverte PEDRO MAIA (2009), estes dois instrumentos são “habitualmente tratados em conjunto, enquanto mecanismos equivalentes para alinhar os interesses dos managers com os interesses dos acionistas e assim tomados por alguma doutrina” (op. cit., p. 904). Dada a semelhança entre os planos de atribuição de ações e os planos de opção de ações, focaremos o artigo sobretudo nestes últimos. 71- Não é nosso objetivo ser demasiado minuciosos, ao nível das questões societárias, nesta exposição introdutória ao problema, já que pretendemos, sobretudo, fazer um correto e necessário enquadramento, com vista a dar um bom suporte ao problema que queremos efetivamente abordar.

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49 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

No entanto, nas últimas décadas, tem-se enten-

dido que a variabilidade das remunerações –

uma remuneração assente numa fração variável

– pode permitir um alinhamento dos interesses

dos administradores com os interesses dos acio-

nistas72. Como refere PEDRO MAIA, “o ali-

nhamento dos interesses dos managers com os

interesses dos acionistas pela via da remunera-

ção – assente numa estrutura remuneratória que

faça variar os ganhos dos administradores em

função dos ganhos dos acionistas –, apresentan-

do embora inconvenientes e riscos, é, segundo

os seus defensores, a mais eficaz de todas”73. Já

que, “ao menos teoricamente, permite resolver

o problema de agência74 com um custo mínimo,

uma vez que a sociedade, id est, os acionistas só

suportarão o custo de maior remuneração no

caso de terem obtido, eles próprios, um acrésci-

mo de ganho”75. No entanto, o mesmo autor

adverte para o fato de que «as remunerações,

sendo variáveis, podem não conter bons incenti-

vos e não “alinhar” os interesses dos managers

com os dos acionistas, pois, (...) remuneração

com “incentivos” não significa, necessariamen-

te, remuneração que alinhe interesses dos mana-

gers com interesses dos acionistas». Pode, isso

sim, “estabelecer incentivos que levem os ma-

nagers a prosseguir interesses que não sejam

inteiramente coincidentes com os dos acionis-

tas»76.

Como avançámos supra, os planos de atribuição

de ações77 – em que a remuneração consta da

atribuição de ações – e os stock options plans78

– consistindo a remuneração na atribuição de

Abuso de Informação Privilegiada...: 49

72- Aliás, a própria CMVM aprovou em 1999 as “Recomendações sobre o Governo das Sociedades Cotadas”, onde referia, no ponto 8, que “a remuneração dos membros do órgão de administração deve ser estruturada por forma a permitir o alinhamento dos interesses daqueles com os interesses da sociedade”, disponível em http://www.cmvm.pt/pt/Legislacao/Legislacaonacional/C%C3%B3dGoverno%20das%20Sociedades/AnexosGovSoc/Pages/2003_IV.aspx, consultado em 08-06-2015. 73- Neste alinhamento de interesses, em tese, os acionistas “satisfazem os seus interesses com a valorização das ações (e / ou a distribuição de dividendos)” e os administradores “satisfazem os seus interesses aumentando a sua remuneração” (PEDRO MAIA, op. cit., 2009, p. 868). 74- A propósito do problema de agência, ver, designadamente, PEDRO MAIA (2009), op. cit., pp. 905-907; 913. 75- PEDRO MAIA (2009), op. cit., p. 907. 76- PEDRO MAIA (2009), op. cit., p. 909. A este propósito, FÁTIMA GOMES acrescenta mesmo que o debate que se tem vindo a fazer sobre a remuneração dos dirigentes salienta como principais falhas do sistema as seguintes: “a remuneração pelo insucesso, a assunção excessiva de riscos, a prevalência pela performance de curto prazo, a prossecução do interesse dos acionistas e gestores sem consideração de outros valores, a promiscuidade na análise financeira e contabilística e a falta de independência dos profissionais envolvidos, a deficiente informação prestada aos mercados e consequente capacidade de influenciar os resultados apresentados” («Remuneração de administradores de sociedades anónimas “cotadas”, em geral, e no sector financeiro, em particular», in I Congresso Direito das Sociedades em Revista, Almedina, 2011, pp. 297-333 (p. 297)). 77- FÁTIMA GOMES refere que os planos de atribuição de ações comungam de caraterísticas semelhantes aos planos de stock options, “mas apresentam a particularidade de visarem a atribuição de ações já emitidas ou que venham a sê-lo, pela própria entidade concedente do benefício ou de sociedade coligada, originando uma aquisição derivada de ações, que pode ser realizada a título gratuito ou oneroso”. Embora podendo ser realizada a título oneroso, a aquisição de ações é normalmente gratuita, “no sentido de não pressupor uma contraparti-da patrimonial ou pecuniária por parte do beneficiário, mas tão-só uma prestação de serviço ou trabalho com determinadas caraterísticas, que são avaliadas pela concedente e, caso se verifiquem, originam a atribuição das ações” (in O direito aos lucros e o dever de participar nas perdas nas sociedades anónimas, Almedina, 2011, pp. 506-507). 78- Estes instrumentos de remuneração são enquadráveis nos chamados pay incentives, isto é, planos de incentivos que assentam em salário, ou seja, formalmente constituem remuneração, consistindo em pagamentos anuais aos administradores. Aos pay incentives opõem-se os portfolio incentives, ou seja, planos de incentivos assentes na detenção de ações, não constituindo formalmente remuneração (PEDRO MAIA (2009), op. cit., p. 914).

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50 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

opções de compra de ações79 – constituem dois

instrumentos de remuneração dos administrado-

res. Nos anos 80 e 9080, estes instrumentos re-

muneratórios começaram a ser fortemente utili-

zados nos EUA81 – estendendo-se depois à ge-

neralidade dos países desenvolvidos –, sendo

esta alteração “acompanhada de um significati-

vo aumento dos valores médios das remunera-

ções”82.

Em Portugal, o regime da remuneração dos ad-

ministradores das sociedades comerciais encon-

tra-se previsto no CSC, na parte relativa às soci-

edades anónimas. Nos termos do artigo 399º, nº

1, do CSC83, compete à assembleia geral de

acionistas ou a uma comissão por aquela nome-

ada fixar as remunerações de cada um dos ad-

ministradores. No entanto, de acordo com o

artigo 429º, do CSC, a remuneração dos mem-

bros do conselho de administração executivo

compete ao conselho geral e de supervisão ou a

uma comissão de remuneração, podendo, contu-

do, competir à assembleia geral de acionistas ou

a uma comissão por esta nomeada, no caso em

que o contrato de sociedade assim o determinar.

Se a remuneração dos membros do conselho de

administração ou do conselho de administração

executivo consistir parcialmente numa percen-

tagem de lucros do exercício, o valor máximo

dessa percentagem tem de se encontrar fixado

79- Na esteira de FÁTIMA GOMES (2011), podemos entender stock options como uma «situação jurídica que se cria em benefício de alguém – dirigente, trabalhador ou outra pessoa –, atribuindo-se-lhe o direito de adquirir ações de uma sociedade, a própria emitente ou outra, mediante um preço predefinido, normalmente o valor nominal, num prazo que se estabelece; o beneficiário fica investido numa situação de poder solicitar a (...) aquisição das ações “prometidas”, nas condições acordadas, e a sociedade emitente na obrigação de lhe atribuir tais ações». Acrescenta ainda a autora que «a especificidade da operação reconduz-se à atribuição de um direito de opção ao beneficiário, que apenas a exercerá, se e na medida em que do seu exercício possa retirar vantagens económicas, em especial quando o valor de mercado das ações for superior ao valor que contratualmente foi fixado para o exercício da opção» (in O direito aos lucros..., pp. 471-472). As stock options podem ser “at-the-money” e “in-the-money”. São “at-the-money” quando “o seu valor é o da ação à data em que a opção se emite (p. 919). São “in-the-money” quando “o valor do exercício da opção (stick price) é inferior ao valor da ação (spot price) à data em que a stock option se emite” (p. 920). Para um aprofundamento desta distinção, ver PEDRO MAIA (2009), op. cit., pp. 918-925. As stock options podem ainda ser europeias, “por se tratar de uma opção que só pode ser exercida numa determinada data futura” e americanas, por poderem “ser exercidas em qualquer momento até à data da sua extinção”. No entanto, esta qualificação “nada tem que ver com o local em que a opção é emitida ou negociada, mas apenas com a referida caraterística. Por isso, pode haver opções americanas negociadas na Europa e, inversamente, opções europeias emitidas e negociadas nos Estados Unidos” (PEDRO MAIA, op. cit., 2009, p. 919). Relativamente a outras classificações das stock options, ver, designadamente, ROBERT CHARLES CLARK, op. cit., pp. 202-209; FÁTIMA GOMES (2011), O direito aos lucros..., pp. 475-476. Inicialmente, os planos de stock options eram destinados aos gestores de topo, no entanto, hoje, estão cada vez mais disseminados pelos quadros médios e pelo restante pessoal. A este propósito, a própria União Europeia publicou, em 2003, um relatório de peritos sobre os planos de opções de ações para empregados (employee stock options) – in Opções de ações para empregados. O enquadramento jurídico e administrativo dos Planos de Opções de Ações para Empregados na UE, disponível em http://ec.europa.eu/enterprise/newsroom/cf/_getdocument.cfm?doc_id=3703, consultado em 23-04-2015. Em Portugal, o Relatório Anual sobre o Governo das Sociedades Cotadas em Portugal, da CMVM, de 2012 (p. 41), refere que “apenas a Cimpor, o Banco BPI e a Martifer apresentam planos de stock options para os demais trabalhadores e colaboradores. Em oito sociedades existiam sistemas de remuneração baseados em ações dos quais eram beneficiários os trabalhadores e colaboradores da empresa” – disponível em http://www.cgov.pt/images/stories/ficheiros/relatrio_anual_sobre_o_governo_das_sociedades_cotadas_pt_cmvm_2012.pdf, consultado em 28-05-2015. 80- PEDRO MAIA (2009), na esteira de Henry W. Ballantine, adverte que «apesar de a remuneração com stock options ser habitualmente vista como uma originalidade dos anos 80/90, o certo é que já na primeira metade do século se praticava “com frequência”» (op. cit., p. 880). 81- Para um aprofundamento das razões que contribuíram para um aumento exponencial de sociedades que passaram a remunerar os administradores através de stock options, ver PEDRO MAIA (2009), op. cit., pp. 895-896. 82- PEDRO MAIA (2009), op. cit., p. 880. É oportuno referir que num relatório de peritos da União Europeia (2003) sobre as opções de ações para empregados, considerou-se que “para muitas PME, os planos de opções de ações não são adequados, uma vez que implicam custos administrativos relativamente elevados e exigem uma estrutura do capital com base em ações. No entanto, para PME com clara orientação para o crescimento (...), os planos de ações para empregados são um instrumento que oferece muitas vantagens. (...) Especial-mente para as jovens empresas, que frequentemente não dispõem ainda de fluxos de caixa suficientes para pagar salários competitivos, os planos de opções de ações para empregados são por vezes a única forma de remuneração com que podem atrair e manter empregados de alto calibre” (op. cit., pp. 8-9). No entanto, em Portugal, atendendo à realidade das nossas PMEs, este instrumento, eventualmente, ainda não será economicamente apetecível. Para essa conclusão, temos por base a Recomendação 2003/361/CE da Comissão, de 6 de maio de 2003, relativa à definição de micro, pequenas e médias empresas, que, no seu artigo 2º, nº 1, refere que “a categoria das micro, pequenas e médias empresas (PME) é constituída por empresas que empregam menos de 250 pessoas e cujo volume de negócios anual não excede 50 milhões de euros ou cujo balanço total anual não excede 43 milhões de euros” – o mais recente Regulamento (UE) nº 1287/2013 do Parlamento e do Conselho, de 11 de dezembro de 2013, que cria um Programa para a Competitividade das Empresas e das Pequenas e Médias Empresas (COSME) continua a remeter para a definição da Recomendação de 2003. 83- Embora a maioria da doutrina não atribua grande relevância à alteração introduzida no referido preceito pelo Decreto-Lei nº 76-A/2006, de 29 de março, PEDRO MAIA (2009) revela alguma preocupação quanto à alteração. Já que, se a redação anterior «permitia que a remuneração, em vez de ser fixada pela assembleia, fosse estabelecida por uma “comissão de acionistas”, em 2006, o legislador suprimiu esta exigência, tendo passado, por isso, a ser possível que a referida comissão de remunerações, designada pela assembleia, se componha, no todo em parte, de não-acionistas» (op. cit., p. 1008).

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51 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

no contrato de sociedade (artigos 399º e 429º,

do CSC)84.

Como temos vindo a referir, os instrumentos de

remuneração dos administradores não têm esta-

do, nos últimos anos, isentos de críticas. Assim,

na esteira de FÁTIMA GOMES85, impõe-se

sistematizar as principais vantagens e desvanta-

gens que têm sido apontadas às stock options86.

As vantagens atribuídas às opções de ações são,

designadamente, as seguintes: “atrair e reter

pessoas-chave na empresa, proporcionar ganhos

financeiros a quem tem realmente impacto nos

resultados da empresa – ao associar a compo-

nente variável da remuneração ao desempenho

individual e à evolução dos resultados da em-

presa –, alinhar os interesses dos acionistas com

os dos colaboradores, levando à partilha do su-

cesso da empresa (...); o fato de não provoca-

rem um impacto contabilístico imediato nos

resultados da empresa”. No entanto, no verso da

medalha têm sido apontadas as seguintes des-

vantagens das stock options: a possibilidade de

criar “um potencial conflito entre os titulares

das opções e os acionistas”, dada a diferença de

risco suportado por estas duas categorias de

sujeitos; “a atribuição destes direitos aos diri-

gentes (...) não incentiva a que os gestores pros-

sigam objetivos de médio e longo prazo, o que

opera em detrimento dos acionistas, dando pre-

ferência à valorização (...) de curto prazo”;

acresce ainda que “é comum que a atribuição de

stock options ocorra imediatamente antes de as

ações se valorizarem, oferecendo aos dirigentes

um direito de opção mais benéfico porque toma

por referência a cotação ou valor da ação pré-

valorização”; finalmente, é frequente que “a

atribuição ou exercício dos direitos de opção

estejam associados à utilização indevida, e até

ilícita, de informação privilegiada, traduzindo-

se na prática de um ilícito criminal típico do

mercado de capitais conhecido pela designação

de insider trading”. O que nos traz ao cerne do

nosso problema, que passaremos a analisar de

imediato.

Para percebermos melhor a problemática que

pode estar aqui em causa, teremos por referên-

cia as questões colocadas por EDUARDO

RIBEIRO BOTTINO87: “imaginemos um admi-

nistrador cujo plano de bonificação preveja o

direito de optar por receber a sua remuneração

em ações ao invés de dinheiro e que o prazo

para essa opção seja entre os meses de novem-

bro e dezembro. Esse administrador está obriga-

do a fazer a divulgação de um fato relevante

que causará a diminuição do valor das ações e

deverá fazê-lo no início de novembro; por outro

lado, já é possível antever que em dezembro

será divulgado o melhor resultado da empresa

em vários anos, o que elevará o preço das ações

novamente. O exercício do direito de aquisição

das ações entre um e outro fato relevante cons-

tituiria o uso de informação privilegiada? Esta-

ria o gestor obrigado a adquiri-la antes da divul-

gação do primeiro fato? (...) Será que o gestor

deveria aguardar a divulgação dos lucros para

exercer o seu direito de aquisição? E se esse

direito expirasse antes da data prevista para a

Abuso de Informação Privilegiada...: 51

84- Advertimos para o fato de que, tanto a remuneração dos membros do conselho geral e de supervisão, como a do Presidente da assembleia geral, são exclusivamente constituídas por uma quantia fixa (artigos 422º-A e 423º-D; 374º-A, nº 3 e 422º-A, do CSC). 85- FÁTIMA GOMES (2011), O direito aos lucros..., pp. 478-479. A este propósito, ver, igualmente, RENATO PEREIRA, PAULO FARIA e JOSÉ VIEIRA DOS REIS, Stock Options. Elementos financeiros, contabilísticos e fiscais, bnomics, 2009, pp. 18-19. 86- Para um maior conhecimento sobre os problemas que as stock options levantam ao nível contabilístico, ver ANTÓNIO FERNANDES DE OLIVEIRA, “Remuneração de Administradores e Planos de Aquisição de Ações”, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº 19, dez. de 2004, pp. 28-44. Para um aprofundamento sobre os problemas das stock options no âmbito da tributação em sede de IRS, ver, designadamente, RICARDO RODRIGUES PEREIRA, “A tributação em sede de IRS dos planos de opção, de subscrição ou de aquisição de ações estabelecidos em benefício de trabalhadores ou membros de órgãos sociais”, in Revista Fiscal, nº 3, mar/abr de 2010, pp. 13-28; J. L. SALDANHA SANCHES e RUI BARREIRA, “O regime atual das stock options”, in Fiscalidade. Revista de Direito e Gestão Fiscal, nºs 7/8, jul-out de 2001, pp. 5-16. 87- EDUARDO RIBEIRO FARIA DE OLIVEIRA THIAGO BOTTINO, “Seletividade do sistema penal nos crimes contra o mercado de capitais (Lei nº 6.385/76)”, in Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI, realizado em Fortaleza, nos dias 9, 10, 11 e 12 de junho de 2010, pp. 923-924, disponível em http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/fortaleza/3244.pdf, consultado em 23-03-2015.

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52 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

a divulgação dos resultados do ano?”88.

Na verdade, nos últimos anos, têm sido desen-

volvidos vários estudos, no sentido de procurar

alguma relação entre a data de constituição ou

de exercício da stock option e o abuso de infor-

mação privilegiada. Isto é, tem sido questiona-

do se a escolha da data de constituição da stock

option é meramente fruto de sorte, o chamado

good timing, ou se, de fato, a escolha do mo-

mento teve por base um conhecimento e uso de

informação privilegiada, estando, desta forma,

o administrador numa posição de vantagem em

relação a todos os demais intervenientes no

mercado. O primeiro trabalho doutrinal a anali-

sar este problema data de 1997 e foi desenvol-

vido por DAVID YERMACK. Nesta investiga-

ção, o autor concluiu, designadamente, que

“padrões de divulgações de resultados trimes-

trais das empresas são consistentes com uma

interpretação de que os CEOs recebem prémios

de stock option pouco antes de notícias favorá-

veis sobre a empresa”89. Também ERIK LIE,

num estudo sobre o mesmo problema, entendeu

que, “a menos que os executivos possuam uma

capacidade extraordinária de prever os movi-

mentos futuros do mercado, que impulsionam

estes retornos previstos, os resultados sugerem

que pelo menos alguns prémios são cronome-

trados retroativamente”90. A este propósito,

PEDRO MAIA considera que “o administrador

tem interesse em que a ação valorize o mais

possível entre a data em que é adquirida a stock

option e a data do respetivo exercício”. No en-

tanto, “a data em que se constitui a stock option

a favor do administrador pode não estar exata-

mente definida no contrato celebrado com a

sociedade”. Assim, “se o administrador tiver a

possibilidade de escolher ou de influenciar o dia

preciso em que a stock option se constitui, en-

tão terá a possibilidade de escolher um dia em

que a ação tenha um valor de cotação

(anormalmente baixo). Desse modo, bastará que

as ações voltem à cotação normal para que o

administrador lucre com a stock option”91.

O que nos permite concluir, tal como o

fizeram DANIEL NATHAN e BRIAN NEIL

HOFFMAN, que “o exercício das stock options

pode criar riscos adicionais de violação de leis

dos valores mobiliários, dependendo de como

elas são exercidas”92.

Perante este quadro, no mínimo, preocupante,

de alegadas – e algumas comprovadas – esco-

lhas oportunistas e ilícitas da data de constitui-

ção ou exercício das stock options, têm havido

algumas tentativas de regulamentação, por par-

te, tanto das instituições europeias, como das

autoridades portuguesas, no sentido de reforçar

o controlo destas zonas de potencial intersecção

88- A este propósito, recordamos o escândalo que ocorreu em Espanha, revelado em 16 junho de 2000, pelo jornal El Mundo, sobre abuso de informação privilegiada por parte de Juan Villalonga, na compra de opções de ações da Telefónica, da qual aquele era presidente (disponível em http://www.elmundo.es/especiales/2007/10/comunicacion/18elmundo/telefonica.html, consultado em 14-06-2015). 89- DAVID YERMACK, “Good Timing: CEO stock option awards and company news announcements”, in The Journal of Finance, vol. 52, issue 2, junho de 1997, pp. 449-476 (p. 449). 90- ERIK LIE, “On the timing of CEO stock option awards”, in Management Science, vol. 51, nº 5, maio de 2005, pp. 802-812 (p. 802). De acordo com PEDRO MAIA (2009), nos tempos mais recentes, tem sido «detetada a sistemática “coincidência” entre a data de atribuição de stock options e a data da melhor cotação das ações para o efeito, fato que talvez não tivesse origem num mero acaso, mas sim numa verdadeira manipulação da data atribuída à stock option, antedatando-a». Ou seja, «se, por exemplo, a mais baixa cotação das ações se tivesse verificado no dia 15 de janeiro, era essa mesma a data que, posteriormente, se atribuía à stock option – antedatando-a –, para desse modo se facultar ao manager o máximo ganho possível» (op. cit., p. 931-932). 91- PEDRO MAIA (2009), op. cit., p. 929. O autor adverte que «isto só poderá suceder quanto às stock options cuja atribuição não esteja previamente calendarizada (...). Quanto às calendarizadas (...), a intervenção dos CEOs só poderá afetar a sua remuneração através de uma “gestão da informação” ao mercado» (p. 929). 92- DANIEL NATHAN e BRIAN NEIL HOFFMAN, “Is exercising employee stock options ilegal insider trading? Maybe”, in New Y ork Law Journal, de 5-12-2013, p. 4, disponível em http://media.mofo.com/files/Uploads/images/131205-Is-Exercising-Employee-Stock-Options-Illegal-Insider-Trading.pdf, consultado em 02-06-2015. A este propósito, também JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS consideram que “da análise das decisões de exercício de opções de aquisição de ações resulta uma névoa de suspeita de que os administradores, no exercício de uma certa discricionariedade na periodização de receitas e de despesas, concentrariam num dado período tudo o que pudesse influenciar positivamente os resultados (impulsionando a subida de cotação), sendo anormalmente baixos os resultados no período pós-exercício dessas opções” (op. cit., p. 97).

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53 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

e de desenvolver os instrumentos normativos

nesse sentido93. Como exemplo desta regula-

mentação que tem sido levada a cabo pela Uni-

ão Europeia encontramos, designadamente, a

Recomendação da Comissão 2004/913/CE94, de

14 de dezembro de 2004, relativa à instituição

de um regime adequado de remuneração dos

administradores de sociedades cotadas. Esta

Recomendação exige que seja prestada infor-

mação, de base individual, sobre a remuneração

dos dirigentes. Na secção IV, a Recomendação

exige ainda que os sistemas de remuneração

com base em ações sejam previamente aprova-

dos pelos acionistas (ponto 6.1). Em 30 de abril

de 2009, surge a Recomendação da Comissão

2009/385/CE, que complementa a Recomenda-

ção 2004/913/CE, no que respeita ao regime de

remuneração dos administradores de sociedades

cotadas, a par da Recomendação da Comissão

2009/384/CE, relativa às políticas de remunera-

ção no setor dos serviços financeiros95.

Em Portugal96, a CMVM, sensível a este

problema relacionado com o governo das socie-

dades (corporate governance)97, tem emitido

algumas recomendações, designadamente, a

“Recomendação da CMVM sobre o governo

das sociedades cotadas”98, aprovada em 199999,

que propõe que “a remuneração dos membros

do órgão de administração deve ser estruturada

por forma a permitir o alinhamento dos interes-

ses daqueles com os interesses da sociedade e

deve ser objeto de divulgação anual em termos

individuais”. Em 2001, algumas das recomen-

dações aprovadas em 1999 foram elevadas a

verdadeiros deveres prescritos pelo Regulamen-

to da CMVM nº 7/2001100, relativo ao governo

das sociedades cotadas. Este Regulamento de-

termina que “as sociedades emitentes de ações

admitidas à negociação em mercado regulamen-

tado enviem à CMVM informação relativa a

planos de atribuição de ações e ou de opções de

aquisição de ações (...) a membros do órgão de

Abuso de Informação Privilegiada...: 53

93- Nos EUA, com a aprovação da Sarbanes-Oxley Act, de 2002, conseguiu-se dificultar em grande medida estas práticas abusivas, já que a secção 403 desta lei impôs a comunicação da aquisição de ações por insiders, no prazo máximo de dois dias úteis após a transação, quando antes a comunicação era feita mensalmente, podendo ir até 45 dias, em certos casos. 94- Torna-se necessário advertir que esta Recomendação é dirigida aos Estados-membros e não às sociedades, sem caráter vinculativo. Em 2005, surgiu igualmente a Recomendação da Comissão 2005/162/CE, de 15 de fevereiro de 2005, relativa ao papel dos administradores não executivos ou membros do conselho de supervisão de sociedades cotadas e aos comités do conselho de administração ou de supervisão. Esta Recomendação exigia a criação de um Comité de Supervisão, no âmbito do conselho de administração ou de supervisão (ponto 3.1, do Anexo I). 95- Em 2010, surgiu a Resolução do Parlamento Europeu, de 7 de julho, sobre a remuneração dos administradores de sociedades cotadas e as políticas de remuneração no sector dos serviços financeiros. Mais recentemente, foi publicada a Diretiva 2013/36/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de junho de 2013, relativa ao acesso à atividade das instituições de crédito e à supervisão prudencial das instituições de crédito e empresas de investimento. A referida diretiva dispõe de uma panóplia de normas relativas às políticas de remuneração e à supervisão das mesmas. 96- No direito português, a construção da estrutura remuneratória está prevista nos artigos 399º e 429º do CSC, consoante o modelo de governo societário adotado. De acordo com o artigo 399º, nº 2, do CSC, “a remuneração pode ser certa ou consistir parcialmente numa percentagem dos lucros de exercício (...)”. 97- Como refere PEDRO ALEXANDRE TAVARES DA SILVA, “o governo das sociedades procura evitar os problemas que surgem da separação da propriedade e do controlo (...), bem como relativamente aos acionistas maioritários e minoritários. Visa ainda melhorar a confiança dos investidores, que é necessária para o adequado funcionamento de uma economia de mercado (...)” (“Fatores que influenciam o cumprimento das Recomendações da CMVM sobre o Governo das Sociedades Cotadas em Portugal”, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº 46, dez. de 2013, pp. 62-87 (p. 63)). Para um aprofundamento sobre o corporate governance, ver, designadamente, PAULO CÂMARA, “Códigos de Governo das Sociedades”, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº 15, dez. de 2002, pp. 65-90. 98- Mais recentemente, em 2013, surgiu o “Código de Governo das Sociedades da CMVM”, em forma de recomendações (disponível em http://www.cmvm.pt/pt/Legislacao/Legislacaonacional/Recomendacoes/Documents/C%C3%B3digo%20de%20Governo%20das%20Sociedades%202013.pdf, consultado em 02-05-2015). 99- Para um conhecimento mais aprofundado sobre a Recomendação da CMVM de 1999, ver CARLOS ALVES e VICTOR MENDES, “As Recomendações da CMVM relativas ao Corporate Governance e a Performance das Sociedades”, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº 12, dez. de 2001, pp. 57-88. 100- Alterado pelos Regulamentos da CMVM nos 11/2003, 10/2005, 3/2006, 1/2007, 5/2008 e 1/2010, este último entretanto revogado pelo Regulamento da CMVM nº 4/2013.

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54 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

administração, nos sete dias úteis posteriores à

respetiva aprovação”. Mais recentemente, foi

aprovado o Regulamento da CMVM nº 4/2013,

cuja principal novidade consistiu em permitir

aos “(...) emitentes de ações admitidas à negoci-

ação em mercado regulamentado situado ou a

funcionar em Portugal [que adotem] (...) o Có-

digo da CMVM ou um código de governo so-

cietário emitido por entidade vocacionada para

o efeito” (artigo 2º, nº 1), sem necessidade de

qualquer apreciação prévia por parte da

CMVM. Nos termos do artigo 245º-A, do

CdVM, “os emitentes de ações admitidas à ne-

gociação em mercado regulamentado situado ou

a funcionar em Portugal divulgam, em capítulo

do relatório anual de gestão elaborado para o

efeito ou em anexo a este, um relatório detalha-

do sobre a estrutura e as práticas de governo

societário”.

Em 19 de junho de 2009, foi publicada a Lei nº

28/2009101, que “(...) estabelece o regime de

aprovação e de divulgação da política de remu-

neração dos membros dos órgãos de administra-

ção e de fiscalização das entidades de interesse

público102 (...)” (artigo 1º). Nos termos do artigo

2º, nº 1, da referida lei, “o órgão de administra-

ção ou a comissão de remuneração, caso exista,

das entidades de interesse público (...), subme-

tem, anualmente, a aprovação da assembleia

geral uma declaração sobre política de remune-

ração dos membros dos respetivos órgãos de

administração e de fiscalização”. Acrescenta o

artigo 3º que “as entidades de interesse público,

ou sendo emitentes de ações admitidas à nego-

ciação em mercado regulamentado no docu-

mento a que se refere o artigo 245º-A do Códi-

go dos Valores Mobiliários (...), divulgam nos

documentos anuais de prestação de contas a

política de remuneração dos membros dos ór-

gãos de administração e de fiscalização (...),

bem como o montante anual da remuneração

auferida pelos membros dos referidos órgãos,

de forma agregada e individual”.

Após a entrada em vigor do Decreto-Lei nº

185/2009, de 12 de agosto, foram aditados os

números 5 e 6 ao artigo 420º, do CSC. Estes

números passaram a exigir que o conselho fis-

cal único, o conselho fiscal e o conselho geral e

de supervisão – nas sociedades que sejam emi-

tentes de valores mobiliários admitidos à nego-

ciação em mercado regulamentado – devem

atestar se o relatório sobre as estruturas e práti-

cas de governo societário divulgado inclui os

elementos referidos no artigo 245º-A, do

CdVM.

Mas serão estes instrumentos de controlo sufici-

entes para evitar que, no âmbito dos planos de

atribuição de ações e dos planos de opção de

ações, ocorra o crime de abuso de informação

privilegiada? A mera existência de uma comis-

são de remunerações será suficiente?103 Cremos

que não, pois se esta e aqueles têm permitido

uma redução das zonas de interseção, a verdade

é que o enorme poder de discricionariedade que

as sociedades detêm, nestas matérias, permite

que estas práticas ainda ocorram com alguma

frequência. O que impõe a criação de novas e

mais eficazes medidas104.

101- Alterada pelo Decreto-Lei nº 157/2014, de 24 de outubro. 102- Consideram-se “entidades de interesse público” as enumeradas no Decreto-Lei nº 225/2008, de 20 de novembro (artigo 2º, nº 1, da Lei nº 28/2009), a que acrescem as sociedades financeiras e as sociedades gestoras de fundos de capital de risco e de fundos de pensões (artigo 2º, nº 2, da referida lei). O Decreto-Lei nº 225/2008 foi, no entanto, revogado pela Lei nº 148/2015, de 9 de setembro, que aprova o Regime Jurídico da Supervisão de Auditoria, que enumera as “entidades de interesse público” no seu artigo 3º. 103- JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS consideram que “a mera existência de uma comissão de remunerações não afasta completamente o risco de conflitos de interesses, porque se ela for integrada por pessoas ligadas ao órgão de administração ou por este influenciadas (ao fim e ao cabo, pessoas ligadas ao núcleo que elegeu todo o conselho ou a maioria dos membros), então perpetua-se o risco de conflito de interesses entre o órgão de administração e os acionistas” (op. cit., p. 98). 104- ANTÓNIO FERNANDES DE OLIVEIRA sugere que, para se evitar a manipulação de ganhos no exercício dos direitos de aquisição de ações, propiciada, em parte, pelas vantagens informativas dos administradores, «“basta” que se desenhem as opções de forma a que os resultados (ou parte deles) fiquem congelados por um período X (...) para efeitos de eventuais retificações, para menos, em função da evolução da cotação, no período pós-exercício» (op. cit., p. 41). Ainda a este propósito, CARLOS MOREDA DE LECEA defende que, “nestes momentos de globalização económica em que os capitais se transferem em segundos de uma bolsa a outra, é necessário continuar a harmonizar as leis dos distintos países para impedir esta conduta imoral” (“El abuso de información privilegiada (insider trading): una perspectiva ética”, in Scripta Theologica, nº 28, 1996/1, pp. 121-146 (p. 146)).

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55 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Considerações finais

Ultimando este percurso de análise do crime de

abuso de informação, cumpre-nos agora proce-

der às últimas considerações sobre a temática

em apreciação.

Desde logo, após um estudo detalhado do pro-

blema em questão, concluímos que, na esteira

de FÁTIMA GOMES, o mercado de capitais é

um “local privilegiado de transação de valores

mobiliários, com as suas especificidades pró-

prias, nomeadamente a constante procura de

informação atempada de quaisquer elementos

que possam influir na decisão de investimento

ou desinvestimento, a sua atualização perma-

nente e a fluidez na circulação”, o que “impôs a

adoção de medidas tendentes a impedir com-

portamentos baseados na utilização de informa-

ções não divulgadas à generalidade dos investi-

dores”105. E é neste quadro que surge o crime de

abuso de informação – igualmente conhecido

por abuso de informação privilegiada, insider

trading, insider dealing ou délit d’initié.

O insider trading nem sempre foi considerado

como crime, o que discordamos, pois partilha-

mos da posição que defende a criminalização

do insider trading, atendendo aos efeitos nefas-

tos que provoca. Defendemos, igualmente, que

a resposta a este problema deverá ser, sobretu-

do, penal.

A par dos EUA, também a Europa começou a

revelar preocupação com as práticas de insider

trading, a partir da década de 60, altura em

que surgiu o primeiro relatório de especialistas

sobre a matéria, constituído pela Comissão da

CEE e que culminou com a Diretiva do Conse-

lho 89/592/CEE, de 13 de novembro de 1989,

considerada como constituindo o passo mais

relevante, dado pela União Europeia, no âmbi-

to das regulamentações respeitantes às opera-

ções de iniciados.

Em Portugal, já desde os anos oitenta que a or-

dem jurídica portuguesa proibia a prática do

insider trading, altura em que o crime de abuso

de informação foi introduzido no Código das

Sociedades Comerciais (Decreto-Lei nº

184/87). Posteriormente, em 1991, aquando da

entrada em vigor do Código do Mercado de

Valores Mobiliários (que em 1999 passou a

designar-se Código de Valores Mobiliários), o

crime de abuso de informação foi inserido neste

diploma, onde se encontra atualmente no artigo

378º, do CdVM.

Um dos problemas mais debatidos na doutrina

sobre o crime de abuso de informação é a ques-

tão do bem jurídico. Apesar das divergências

doutrinais, entendamos que está em causa um

bem jurídico heterogéneo, como defendem

JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA

ELISABETE RAMOS, ou que o bem jurídico

que se visa proteger é a função pública da infor-

mação, como defende FREDERICO DE

LACERDA DA COSTA PINTO, a verdade é

que, em qualquer dos casos, a informação – e,

sobretudo, a informação privilegiada – assume

um papel preponderante. O conceito de infor-

mação privilegiada, definido no artigo 378º, nº

3, do CdVM, implica quatro caraterísticas típi-

cas: caráter não público; precisão; referência a

entidades emitentes de valores mobiliários ou a

valores mobiliários; e influência sensível sobre

o preço.

Relativamente aos sujeitos ativos do crime de

abuso de informação, o artigo 378º, nºs 1 e 2, do

CdVM pune os corporate insiders (ou insiders

internos), os temporary insiders e insiders não

institucionais e, ainda, os outsiders (ou tippies).

A este propósito, como clarificámos, é de real-

çar que, desde 2006, deixou de se exigir que

o conhecimento da informação privilegiada

chegasse ao agente por via de uma fonte interna

do emitente (direta ou indiretamente), bastando

o seu conhecimento de que a informação de que

Abuso de Informação Privilegiada...: 55

105- FÁTIMA GOMES (1996), op. cit., pp. 3-4.

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56 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

dispõe é informação privilegiada, havendo, des-

ta forma, um alargamento do leque de sujeitos

ativos.

Mantém-se ainda em discussão, na doutrina, o

problema de saber se o insider non trading deve

ser punido. Relativamente a este problema, em-

bora ele ainda nos suscite algumas reservas, a

verdade é que, desde já, nos parece que a proi-

bição do insider trading só obriga o insider a

abster-se de realizar operações na posse de in-

formação privilegiada, mas não implica um de-

ver de negociar, sobretudo quando as operações

desembocam em prejuízos patrimoniais para

aquele. Acresce que, se o insider non trading

fosse punido, debater-nos-íamos sempre com

dificuldades probatórias.

Já quanto ao problema de saber se as pessoas

coletivas respondem penalmente pelo crime de

abuso de informação, a partir do momento em

que o Código Penal, no seu artigo 11º, começou

a prever a responsabilidade criminal das pesso-

as coletivas, cremos que, também ao nível do

Código dos Valores Mobiliários, esta questão

deveria ser seriamente repensada.

Apesar de o crime de abuso de informação ser

já há alguns anos largamente trabalhado e deba-

tido pela doutrina, a verdade é que existem ain-

da zonas problemáticas, nomeadamente, quan-

do em interação com matérias do direito so-

cietário, como sejam, a Oferta Pública de Aqui-

sição (OPA), a aquisição de ações em opera-

ções de management buy-out, e, finalmente, no

âmbito dos instrumentos de remuneração dos

administradores, sobretudo, nos planos de atri-

buição de ações e nas stock options. E foi sobre

este último problema – instrumentos de remu-

neração dos administradores – que nos detive-

mos por largo tempo, na última parte do artigo,

já que nos parece existir muitas zonas de inter-

secção entre o direito legítimo de remuneração

do administrador e o abuso de informação ine-

rente a esse cargo.

Se, tradicionalmente, as remunerações dos ad-

ministradores das sociedades eram constituídas

unicamente por dinheiro – remuneração fixa –,

a verdade é que, nas últimas décadas, tem-se

entendido que uma remuneração assente numa

fração variável pode permitir um alinhamento

dos interesses dos administradores com os inte-

resses dos acionistas – ideia que, entretanto,

tem sido contestada por alguns autores, como

vimos em lugar apropriado. Os planos de atri-

buição de ações e os planos de stock options

constituem instrumentos de remuneração, que

começaram a ser fortemente utilizados, nos

EUA, nos anos 80 e 90, passando, pouco de-

pois, a ser igualmente difundidos na Europa.

Ocorre que, como enfatizámos, um dos proble-

mas que tem sido atribuído aos planos de stock

options, é a sua associação à utilização indevi-

da, e até ilícita, de informação privilegiada,

questionando-se, por exemplo, se a escolha da

data da constituição da stock option é meramen-

te fruto de um good timing, ou se teve na base

um conhecimento e abuso de informação privi-

legiada – havendo já alguns estudos e casos

reais que nos levam neste sentido. Esta situação

permite ao administrador colocar-se numa posi-

ção de vantagem em relação a todos os demais

intervenientes no mercado, podendo mesmo

falar-se, nalguns casos, de uma atribuição opor-

tunística das stock options.

Assim, embora o crime de abuso de informação

não implique a proibição dos instrumentos de

remuneração – restando ainda espaço para tais

práticas no direito societário –, a verdade é que

se impõe a criação de novas e mais eficazes

medidas. Medidas essas que têm vindo, gradu-

almente, a surgir, tanto no âmbito da União Eu-

ropeia, como no seio do regime jurídico portu-

guês, mas que, dado o enorme poder de discri-

cionariedade das sociedades, o problema ainda

se mantém, apesar de se colocar com menor

acuidade.

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58 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

53ª Edição dos Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

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