cadernos do mercado de valores mobiliÁrios · legal ou regulamentar no contexto de sociedade ......

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NÚMERO 58 * Dezembro de 2017 CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS Artigos * A Responsabilidade Civil do Auditor Independente pela Determinação da Contrapartida Mínima de Oferta Pública de Aquisição * Quão Enviesado é o Comportamento dos Investidores Individuais em Warrants? * Sociedade Com o Capital Aberto ao Investimento do Público: Relevância da Lei Pessoal na Aquisição e Perda da Qualidade de Sociedade Aberta * Concentração no Mercado de Auditoria

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1 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

NÚMERO 58 * Dezembro de 2017

CADERNOS

DO MERCADO

DE VALORES

MOBILIÁRIOS

Artigos

* A Responsabilidade Civil do Auditor Independente

pela Determinação da Contrapartida Mínima

de Oferta Pública de Aquisição

* Quão Enviesado é o Comportamento dos Investidores

Individuais em Warrants?

* Sociedade Com o Capital Aberto ao Investimento

do Público: Relevância da Lei Pessoal na Aquisição

e Perda da Qualidade de Sociedade Aberta

* Concentração no Mercado de Auditoria

2 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

N.º 58

Dezembro de 2017

3 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Editorial 05

Artigos:

A Responsabilidade Civil do Auditor Independente

pela Determinação da Contrapartida Mínima de Oferta

Pública de Aquisição 09

Diogo Tavares

Quão Enviesado é o Comportamento dos Investidores Individuais

em Warrants? 34

Margarida Abreu

Sociedade com o Capital Aberto ao Investimento do Público:

Relevância da Lei Pessoal na Aquisição e Perda da Qualidade

de Sociedade Aberta 54

Juliano Ferreira

Concentração no Mercado de Auditoria 79

Ana Brochado

Índice

4 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

EDITORIAL

5 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Editorial A edição n.º 58 dos Cadernos do Mercado de

Valores Mobiliários apresenta quatro textos,

dois de natureza jurídica e dois de cariz econó-

mico.

No primeiro texto delimita-se o enquadramento

legal ao abrigo do qual um auditor poderá ser

responsabilizado perante investidores em ações

emitidas por sociedade aberta, decorrente da

determinação, pelo auditor, da contrapartida

mínima de oferta pública de aquisição obrigató-

ria (OPA) que recaia sobre essas ações. Quando

a contrapartida mínima da OPA não puder ser

determinada por recurso aos critérios objetivos

definidos no Código dos Valores Mobiliários

(CódVM), ou se a CMVM entender que a con-

trapartida proposta pelo oferente não se encon-

tra devidamente justificada ou não é equitativa,

deverá aquela ser fixada a expensas do oferente

por auditor independente designado pela

CMVM. O autor do relatório que estabelece a

contrapartida mínima da OPA é o auditor inde-

pendente e não a CMVM, não competindo a

esta qualquer intervenção nesse processo.

Para o autor, a intervenção do auditor indepen-

dente é meramente privada, e está fora da alça-

da das normas do Direito Administrativo, pelo

que a existência de obrigação de indemnizar

deverá ser aferida de acordo com as regras de

Direito Civil sobre responsabilidade civil extra-

contratual e pré-contratual. Neste contexto, o

autor conclui que a responsabilização do audi-

tor através do instituto da responsabilidade civil

extracontratual apenas poderá ocorrer se este

tiver estabelecido, numa primeira fase, a contra-

partida mínima da OPA em termos não equitati-

vos, em resultado da violação das regras de ava-

liação de empresas genericamente aceites ou

através da cláusula geral de abuso de direito

prevista no Código Civil (‘conduta contrária

aos bons costumes’). Contudo, a qualificação

da conduta do auditor como ilícita resultará, em

qualquer dos casos, da violação das regras ge-

nericamente aceites de avaliação de empresas.

Conclui ainda que a responsabilização do audi-

tor por via da responsabilidade pré-contratual é

justificada pela relação de confiança estabeleci-

da entre o auditor e os investidores, da qual re-

sulta a obrigação de aquele adotar uma conduta

diligente e cuidadosa na determinação da con-

trapartida mínima da OPA. Por fim, conclui

que, estando verificados estes pressupostos de

responsabilidade civil, o auditor fica obrigado a

indemnizar os investidores afetados nos termos

do artigo 562.º do Código Civil, reconstituindo

a situação que existiria na sua esfera caso a con-

trapartida mínima da OPA tivesse sido correta-

mente determinada ab initio.

No segundo artigo procura-se definir o perfil do

investidor em warrants e testar as hipóteses de

que o excesso de confiança, o efeito de disposi-

ção e o prazer de jogar têm impacto na partici-

pação no mercado de warrants e na negociação

deste instrumento financeiro. A autora conclui

que as características sociodemográficas e com-

portamentais dos investidores em warrants são

diferentes das dos investidores em ações. Em

primeiro lugar, os investidores em warrants

têm um perfil sociodemográfico específico: os

homens com menor escolaridade e profissões

menos qualificadas têm maior probabilidade de

investir em warrants. Em segundo lugar, os

desvios comportamentais dos investidores são

particularmente relevantes para entender a par-

ticipação no mercado de warrants, uma vez que

os investidores com excesso de confiança e

mais propensos ao efeito de disposição, bem

como os investidores que exibem uma maior

apetência pelo jogo, têm maior probabilidade de

investir e negociar warrants. Além disso,

investidores com efeito de disposição são mais

propensos a negociar warrants com mais

frequência.

6 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Editorial É ainda concluído que existe uma característica

distintiva dos investidores que negoceiam war-

rants e que os distingue daqueles que negocei-

am ações: a apetência pelo jogo aumenta as

transações em warrants, mas diminui a ativida-

de de negociação em ações, o que sugere que

quando os investidores são levados a negociar

em mercados financeiros pelo prazer de jogar,

tendem a transacionar mais produtos financei-

ros complexos e a transacionar menos instru-

mentos financeiros mais simples e mais fáceis

de entender como as ações. Finalmente, a dife-

renciação dos investidores em função da fre-

quência com que transacionam revela que o

efeito de disposição e a apetência pelo jogo são

tanto mais relevantes para explicar a frequência

de transação quanto maior a intensidade da

transação, excetuando-se contudo os investido-

res com as mais elevadas frequências de transa-

ção, em virtude de estes serem heterogéneos e

não terem um perfil sociodemográfico e com-

portamental claramente definido.

No terceiro texto é estudada a determinação dos

termos em que a exclusão de negociação das

ações de uma sociedade aberta cotada pode

ocorrer e, em particular, a concomitante imple-

mentação de mecanismos que apenas estão pre-

vistos para sociedades que efetivamente possu-

am a qualidade de sociedade aberta, designada-

mente mecanismos de utilização voluntária que

determinam a exclusão da negociação em mer-

cado regulamentado, a própria perda da quali-

dade de sociedade aberta e a aquisição potesta-

tiva.

Esta questão tem relevo porquanto i) é necessá-

rio determinar se uma sociedade sujeita a lei

pessoal que não a portuguesa pode, ainda assim,

qualificar-se como sociedade aberta, de tal for-

ma que algum daqueles mecanismos constitua

via possível para a exclusão de negociação em

mercado das ações representativas do seu capi-

tal; e ii) se afigura necessário determinar se efe-

tivamente resulta da lei que a exclusão de nego-

ciação, por via da perda de qualidade de socie-

dade aberta pode constituir consequência direta

da simples obtenção de 90% do capital social

na sequência de OPA, mesmo quando, por não

se ter adquirido 90% das ações objeto da oferta,

não se tenham alcançado os patamares constitu-

tivos dos direitos de aquisição e alienação po-

testativas.

O autor conclui que a qualificação como socie-

dade aberta não deve estender-se a sociedades

sujeitas a lei pessoal diferente da portuguesa. A

qualidade de sociedade aberta constitui pressu-

posto da aplicação de um regime de proteção

dos potenciais acionistas que adquire incomen-

surável densificação quando àquela qualidade é

acrescida a qualidade de cotada, sempre que a

sociedade admite à negociação as suas ações.

Não havendo sociedade sujeita a lei pessoal

portuguesa que não seja aberta, a via para a ex-

clusão voluntária passa necessariamente pela

perda da qualidade de sociedade aberta, na se-

quência de OPA que conduza à aplicabilidade

dos regimes de aquisição ou alienação potestati-

va. Contudo, tal não se afigura de recurso possí-

vel para as sociedades sujeitas a lei pessoal es-

trangeira porque, nestes casos, está afastada a

possibilidade de aplicação dos institutos da

aquisição potestativa de direito nacional ou da

perda de qualidade de sociedade aberta como

via para a promoção do delisting das ações.

Resta, por isso o regime da exclusão voluntária

que, tendo sido inicialmente testado sem base

legal ou regulamentar no contexto de sociedade

cotadas em dois mercados regulamentados de

diferentes jurisdições (dual listing), veio em

sequência a ter acolhimento nas regras harmo-

nizadas da Euronext.

7 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Editorial O autor termina defendendo que tal regime,

dependente da verificação dos ‘requisitos adici-

onais’ que a Euronext considere adequados e

criado com o propósito de permitir às socieda-

des sujeitas a lei pessoal que não a portuguesa o

que já era reconhecido às sociedades abertas

por via da perda dessa qualidade, não poderá

em qualquer circunstância ser utilizado para

além desse propósito, distorcendo o level

playing field que se procurou por essa via repor.

Ou seja, não deverá legitimamente pretender-se

obter por essa via uma exclusão voluntária de

negociação em termos substancialmente distin-

tos daqueles em que tal resultado é admissível

na sequência de perda de qualidade de socieda-

de aberta.

No quarto e último artigo desta edição é anali-

sado um dos temas que tem recebido maior

atenção dos reguladores e da comunidade aca-

démica sobre os serviços de auditoria, designa-

damente o respeitante à concentração destes

serviços à escala global e ao domínio das cha-

madas Big 4. Alguns dos fatores que terão con-

duzido ao aumento da concentração do mercado

de auditoria são, para além dos processos de

concentração, a internacionalização dos negó-

cios e a alteração das necessidades das empre-

sas auditadas, a complexidade dos processos

contabilísticos, as economias de escala, o inves-

timento em infraestruturas e a reputação das Big

4. Conclui ainda a autora que, apesar de terem

sido propostas e implementadas em diversos

países um grande número de opções regulató-

rias para promover a independência, aumentar a

concorrência e minimizar os efeitos anti con-

correnciais resultantes do elevado padrão de

concentração observado, a estrutura atual de

mercado dever-se-á manter tendo em conta as

fortes barreiras existentes à entrada de novos

operadores no mercado. No caso de Portugal, a

elevada concentração dos serviços de auditoria

está em linha com a tendência internacional.

Não obstante, a maior concentração e a maior

assimetria das quotas de mercado são obtidas

quando calculadas com base na capitalização

bolsista e nos honorários.

Apresenta-se assim, nesta edição 58 dos Cader-

nos do Mercado de Valores Mobiliários, um

conjunto de artigos com uma diversidade temá-

tica e qualidade que seguramente aconselham a

sua análise atenta e cuidada.

8 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

ARTIGOS

* A Responsabilidade Civil do Auditor Independente pela Determinação da Contrapartida Mínima de Oferta

Pública de Aquisição

* Quão Enviesado é o Comportamento dos Investidores Individuais em Warrants?

* Sociedade com o capital aberto ao investimento do público: Relevância da lei pessoal na aquisição

e perda da qualidade de sociedade aberta

* Concentração no Mercado de Auditoria

9 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

A Responsabilidade Civil do Auditor Independente

pela Determinação da Contrapartida Mínima de Oferta

Pública de Aquisição

Diogo Tavares*

1. Objeto

O presente estudo visa estabelecer o enquadra-

mento legal ao abrigo do qual o auditor inde-

pendente poderá ser responsabilizado perante

investidores em valores mobiliários emitidos

por sociedade aberta (neste caso, ações ou valo-

res mobiliários que deem direito à sua subscri-

ção ou aquisição), pela determinação da contra-

partida mínima de oferta pública de aquisição

obrigatória (“OPA”) que recaia sobre esses va-

lores mobiliários.

2. Enquadramento

2.1 A OPA obrigatória

2.1.1 Pressupostos

O Código dos Valores Mobiliários

(“Cód.VM”) consagra a figura da OPA obriga-

tória no respetivo artigo 187.º n.º 111, estabele-

cendo que “Aquele cuja participação em socie-

dade aberta ultrapasse, diretamente ou nos ter-

mos do n.º 1 do artigo 20.º, um terço ou metade

dos direitos de voto correspondentes ao capital

social tem o dever de lançar oferta pública de

aquisição sobre a totalidade das ações e de

outros valores mobiliários emitidos por essa

sociedade que confiram direito à sua subscri-

ção ou aquisição”.

Em face da letra deste preceito, verifica-se que

a causa geradora do dever de lançamento de

OPA é a ultrapassagem, direta ou indireta, dos

limiares de um terço ou de metade dos direitos

de voto correspondentes ao capital de sociedade

aberta.

2.1.2 Ratio

Conforme resulta do considerando 9 da Diretiva

2004/25/CE do Parlamento Europeu e do Con-

selho, de 21 de Abril de 2004 (“Diretiva das

OPAs”), relativa às ofertas públicas de aquisi-

ção e é geralmente apontado pela doutrina2, o

regime das OPAs obrigatórias opera aquando

de uma aquisição ou alteração de controlo sobre

sociedade aberta e cumpre dois objetivos bem

delineados:

a) Em primeiro lugar, e de modo a acautelar

genericamente a alteração das bases que pre-

sidiram ao investimento em ações da socie-

dade aberta, que contrariamente ao que suce-

dia anteriormente passa a estar sujeita ao

controlo de uma ou mais pessoas, visa pro-

porcionar aos restantes acionistas um direito

de saída a um preço considerado equitativo.

O legislador terá considerado que tal direito

de saída se justifica à luz da elevada proba-

bilidade de extração de benefícios privados

* Advogado no Fundo Europeu de Investimento

1- Sempre que não estejam acompanhadas de referência a um outro diploma legal, as normas legais citadas no presente estudo referem-se

ao Cód.VM.

2- Cfr., a título de exemplo, Nicholas Jennings, Mandatory Bids Revisited, Journal of Corporate Law Studies, Vol.V, Part I, Abril de 2005,

págs. 40 a 47.

10 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

pelo(s) novo(s) acionista(s) controlador(es),

à custa do património social;

b) Em segundo lugar, visa a partilha do prémio

de controlo entre o alienante do controlo e os

restantes acionistas, naquilo que configura

um autêntico dever de igual tratamento, pelo

oferente, de todos os acionistas da sociedade

visada, conforme resulta dos requisitos de

contrapartida mínima que uma OPA obriga-

tória deve respeitar, previstos no artigo 188.º

(ver ponto 2.4 infra)3.

2.1.3 Contrapartida

De modo a que a contrapartida da OPA obriga-

tória seja fixada num montante que, por um

lado, assegure uma efetiva proteção dos acio-

nistas minoritários por via da concessão do di-

reito de saída e, por outro lado, assegure o seu

tratamento igualitário por via da partilha do

prémio de controlo, o artigo 188.º n.º 1 determi-

na que a contrapartida de OPA obrigatória não

pode ser inferior ao mais elevado dos seguintes

montantes:

a) O maior preço pago pelo oferente ou por

qualquer das pessoas que, em relação a ele,

estejam em alguma das situações previstas

no n.º 1 do artigo 20.º pela aquisição de va-

lores mobiliários da mesma categoria, nos

seis meses imediatamente anteriores à data

da publicação do anúncio preliminar da ofer-

ta; ou

b) O preço médio ponderado desses valores

mobiliários apurado em mercado regulamen-

tado durante o mesmo período.

2.1.4 Registo da OPA

Nos termos do disposto no artigo 114.º n.º 2, a

realização de OPA está sujeita a registo prévio

na CMVM, sendo a instrução do respetivo pro-

cesso efetuada de acordo com o elenco de docu-

mentação previsto no artigo 115.º, onde se in-

clui, nomeadamente, o projeto de prospeto

(alínea m)) e o projeto de anúncio de lançamen-

to (alínea n)).

2.2 A Intervenção do auditor independente

De acordo com o disposto no artigo 188.º n.º 2,

caso a contrapartida mínima da OPA não possa

ser determinada por recurso aos critérios referi-

dos no n.º 1 desse preceito, ou se a Comissão

do Mercado de Valores Mobiliários

(“CMVM”) entender que a contrapartida, em

dinheiro ou em valores mobiliários, proposta

pelo oferente não se encontra devidamente jus-

tificada ou não é equitativa, por ser insuficiente

ou excessiva, deverá ser fixada a expensas do

oferente por auditor independente designado

pela CMVM4.

O relatório do auditor independente que deter-

mina a contrapartida mínima da OPA nessas

situações constitui um dos elementos que habi-

lita o oferente a prosseguir com a instrução do

pedido de registo da OPA, pois define o valor

mínimo da contrapartida que este terá de divul-

gar nos documentos da oferta.

De acordo com o artigo 188.º n.º 4, “A decisão

da CMVM relativa à designação de auditor

3- Este dever de igual tratamento resulta diretamente do facto de o artigo 188.º n.º 1 al. a) dispor que “A contrapartida de oferta pública de

aquisição obrigatória não pode ser inferior ao (…) maior preço pago pelo oferente ou por qualquer das pessoas que, em relação a ele,

estejam em alguma das situações previstas no n.º 1 do artigo 20.º pela aquisição de valores mobiliários da mesma categoria, nos seis

meses imediatamente anteriores à data da publicação do anúncio preliminar da oferta”.

4- É de notar a este propósito a prática da CMVM de, ao invés de designar diretamente um auditor independente para determinar contrapar-

tida mínima de OPA, solicitar à Ordem dos Revisores Oficiais de Contas (“OROC”) que proceda ela própria à designação do auditor inde-

pendente.

11 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

independente para a fixação da contrapartida

mínima, bem como o valor da contrapartida

assim que fixado por aquele, são imediatamente

divulgados ao público”.

A contrapartida mínima, tal como fixada pelo

auditor independente e divulgada ao mercado,

terá logicamente de cumprir com os requisitos

gerais de qualidade da informação constantes

do artigo 7.º n.º 1, que determina que “A infor-

mação respeitante a instrumentos financeiros,

(…) a ofertas públicas de valores mobiliários

e a emitentes deve ser completa, verdadeira,

actual, clara, objetiva e lícita”.

De acordo com este quadro legal, o autor do

relatório que estabelece a contrapartida mínima

da OPA é o auditor independente e não a

CMVM. Acionado o mecanismo de fixação da

contrapartida mínima pelo auditor independen-

te, não compete à CMVM qualquer intervenção

nesse processo, não lhe cabendo, nem tomar

qualquer decisão no âmbito do mesmo, nem o

sindicar, tendo o legislador determinado expli-

citamente a intervenção de um terceiro, que não

uma entidade pública, para a definição do valor

mínimo da contrapartida da OPA.

Concluído o trabalho do auditor e fixada a con-

trapartida mínima, é necessária nova atuação do

oferente para efeitos do pedido de registo da

OPA, apresentando novas versões do anúncio

de lançamento e do prospeto que reflitam a con-

trapartida mínima e a sua justificação (cfr. arti-

gos 115.º n.º 1 al. m), 183.º-A n.º 1 al. e) e 138.º

n.º 1 al. a)). Deste modo, o relatório do auditor

independente apenas produzirá efeitos no pro-

cedimento administrativo de registo da OPA

por iniciativa do próprio oferente, não sendo

mais do que uma peça que o habilita a prosse-

guir com a instrução do processo.

Sendo concedido o registo da OPA pela

CMVM, o oferente fica vinculado a divulgar os

documentos da oferta tal como apresentados à

CMVM, i.e., com a indicação de contrapartida

que respeite o valor mínimo fixado no relatório

do auditor independente.

2.3 A Natureza da Intervenção do auditor

independente

Em resultado do exposto no subcapítulo ante-

rior, a fixação da contrapartida mínima da OPA

por auditor independente não deve ser entendi-

da como um ato administrativo e, consequente-

mente, deve-se entender que o procedimento de

registo de OPA apenas comporta um ato admi-

nistrativo, que é o ato de registo ou de recusa de

registo da mesma pela CMVM.

A atuação do auditor ocorrerá assim no contex-

to de um procedimento administrativo de regis-

to de OPA, mas não consubstancia ela própria a

prática de um ato administrativo, desde logo

porque a fixação da contrapartida mínima da

OPA não põe termo ao procedimento adminis-

trativo, não é ato final do procedimento e não

produz, por si, efeitos na esfera jurídica do ofe-

rente, na medida em que, como se viu, o oferen-

te tem ainda de voltar a impulsionar o procedi-

mento de registo para que este se conclua

(mediante, nomeadamente, a apresentação de

documentos que se conformem com o valor

mínimo da contrapartida).

Mesmo impulsionando o oferente o procedi-

mento de registo, é o ato de registo da OPA a

efetuar pela CMVM que determinará o efetivo

lançamento da mesma e a fixação da respetiva

contrapartida, sendo este na realidade o ato que

produz efeitos jurídicos na situação individual e

concreta do oferente, pondo termo ao procedi-

mento de registo da OPA.

Deve-se deste modo entender que o relatório do

auditor independente e consequente fixação da

contrapartida mínima da OPA, quando tem lu-

gar no âmbito de um procedimento de registo

de OPA, é somente mais um elemento obrigató-

rio da instrução desse procedimento, tal como

os demais elementos enunciados no artigo 115.º

n.º 1 para a instrução do pedido de registo de

ofertas públicas.

A Responsabilidade Civil do Auditor Independente...: 11

12 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

A intervenção do auditor independente ao abri-

go do artigo 188.º n.º 2 é assim tida por mera-

mente privada, estando por isso fora da alçada

das normas de Direito Administrativo. Conse-

quentemente, a existência de obrigação de in-

demnizar nesta sede deverá ser aferida de acor-

do com as regras de Direito Civil sobre respon-

sabilidade civil5.

3. Responsabilidade Civil do auditor

independente

3.1 Nota prévia e caso base

Não sendo o relatório do auditor independente

elaborado ao abrigo de uma qualquer relação

contratual estabelecida entre o auditor indepen-

dente e os investidores em ações da sociedade

aberta, a existência de obrigação de indemnizar

nesta sede deverá ser aferida, em primeira linha,

de acordo com as regras de Direito Civil sobre

responsabilidade civil extracontratual e, em se-

gunda linha, e independentemente da conclusão

a que se chegar nesse domínio, de acordo com

as regras de Direito Civil sobre responsabilida-

de civil pré-contratual.

Como cenário base para explorar o tema da res-

ponsabilidade civil do auditor independente, ter

-se-á em linha de conta a hipotética situação em

que o auditor independente estabelece num pri-

meiro momento a contrapartida mínima da

OPA em determinado montante, vindo mais

tarde a corrigir esse montante na sequência da

deteção de desconformidades entre o montante

inicialmente calculado e o montante que decor-

reria de uma correta aplicação das regras de

avaliação de empresas genericamente aceites,

reduzindo consequentemente a contrapartida

mínima da OPA para esse montante6.

As regras de avaliação de empresas generica-

mente aceites consistem nos instrumentos e mé-

todos utilizados de forma estável pelos profis-

sionais que exercem atividades relacionadas

com a avaliação de empresas. O conteúdo des-

sas práticas de mercado encontra-se estabiliza-

do e pode ser encontrado na mais diversa litera-

tura relativa à avaliação de empresas7.

5- Note-se que o regime legal da responsabilidade civil do auditor independente seria diferente caso se entendesse que a fixação da contra-partida mínima da OPA pelo auditor é um ato de direito público. Nesse caso, a questão da eventual responsabilidade civil do auditor teria de ser analisada à luz do regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas (o qual abrange a respon-sabilidade de agentes privados que praticam atos de autoridade – e.g., concessionários), aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, o qual, adotando no seu artigo 9.º um conceito mais lato de ilicitude do que o constante do artigo 483.º do Código Civil, levaria com maior probabilidade à responsabilização do auditor independente no caso em análise. 6- Este caso base é inspirado na situação verificada aquando da OPA da SGL Carbon GmbH (“SGL Carbon”), enquanto oferente, sobre a Fisipe – Fibras Sintéticas de Portugal, S.A. (“Fisipe”), enquanto sociedade visada, cujo anúncio preliminar (acessível em http://web3.cmvm.pt/sdi2004/emitentes/docs/fsd23394.pdf) data de 21 de março de 2012 e previa uma contrapartida para a OPA de € 0,18 por ação. Tendo em conta a impossibilidade de determinar a contrapartida mínima da OPA por recurso aos critérios referidos no artigo 188.º n.º 1, atenta a reduzida liquidez das ações da Fisipe e o facto de o maior preço pago pelo oferente por ações da sociedade visada nos seis meses imediatamente anteriores à data da publicação do anúncio preliminar da oferta ter sido fixado através de negociação particular, circunstân-cias que, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, presumem a não equidade da contrapartida fixada com base nesses critérios, a CMVM solicitou à OROC em 11.04.2012 a nomeação de auditor independente para fixação da contrapartida mínima a oferecer na OPA (http://www.cmvm.pt/pt/Comunicados/Comunicados/Pages/20120411m.aspx?v=). Entretanto, e ainda na pendência do relatório do auditor independente, o anúncio preliminar foi objeto de aditamento no dia 19.06.2012 (disponível em http://web3.cmvm.pt/sdi2004/emitentes/docs/fsd24148.pdf), tendo a contrapartida da OPA sido revista na sequência da aquisição pelo oferente de um lote de ações da Fisipe pertencentes à Quimifértil – Sociedade Gestora de Participações Sociais – S.A., para € 0,20 por ação, nos termos do disposto nos artigos 188.º n.º 1 al. a) e 180.º, n.º 3, al. b). No dia 25.07.2012, na sequência da receção do relatório elaborado pelo auditor independente e em cumprimento do artigo 188.º n.º 4, a CMVM divulgou o resultado do mesmo relatório, que estabeleceu como contrapartida mínima da OPA um preço por ação de € 0,26 (disponível em http://www.cmvm.pt/cmvm/comunicados/comunicados/pages/20120725a.aspx). A contrapartida da OPA foi consequente-mente revista em conformidade. De acordo com comunicado da CMVM datado de 08.08.2012, o auditor independente viria mais tarde a corrigir o seu relatório, referindo que “reponderando um dos pressupostos anteriormente assumido e explicitado, de equiparação entre o valor das ações da Fisipe e o res-petivo Enterprise Value (EV), pode considerar-se que não é provável que, mesmo sem confirmação através de contas auditadas atualiza-das, o valor da dívida líquida nesta data fique aquém de um montante que determine um valor por ação superior a 0,20 euros”, tendo por isso concluído que “0,20 euros deve ser considerada a contrapartida mínima na OPA geral e obrigatória sobre as ações representativas do capital social da Fisipe” (acessível em http://www.cmvm.pt/pt/Comunicados/Comunicados/Pages/AditamentoaoRelat%C3%B3riodoAuditorIndependenteFixaContrapartidaM%C3%ADnimadaOPAsobreaFisipe%E2%80%93FibrasSint%C3%A9ticasdePortugal,SAem0,20Euros.aspx?v=). A contrapartida da OPA seria revista em conformidade mais uma vez, agora para € 0,20 por ação. 7- De entre a qual se pode mencionar, a título de exemplo, o livro Investment Valuation – Tools and techniques to determine the value of any asset (Aswath Damodaran, Investment Valuation – Tools and techniques to determine the value of any asset, Wiley, 2012) e o livro Finanças Empresariais (Paulo Alves e Paulo Francisco, Manual de Finanças Empresariais, ISGB, 2010).

13 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Tratando-se de usos em relação aos quais existe

na sociedade (e neste caso, mais concretamente,

no mercado de valores mobiliários) uma con-

vicção de obrigatoriedade, deve-se entender que

estas regras vinculam a atividade dos auditores

independentes nomeados ao abrigo do artigo

188.º n.º 2. O recurso às referidas regras consti-

tui prática reiterada dos profissionais da área da

avaliação de empresas, estando por isso os in-

vestidores legitimamente a contar com que

qualquer auditor independente designado para

determinar a contrapartida mínima de uma OPA

nos termos do artigo 188.º n.º 2 atue de acordo

com as mesmas.

É significativo disto mesmo o facto de o pró-

prio artigo 5.º, n.º 4, 2.º parágrafo, da Diretiva

das OPAs fazer, por outras palavras, referência

às regras de avaliação de empresas generica-

mente aceites, ao estipular que os Estados-

Membros “Podem igualmente definir os crité-

rios a utilizar em tais casos [i.e., nos casos em

que as autoridades de supervisão podem alterar

a contrapartida mínima da OPA] como, por

exemplo, o valor médio de mercado ao longo de

um determinado período, o valor de liquidação

da sociedade ou outros critérios objectivos de

avaliação geralmente utilizados na análise fi-

nanceira”8 (sublinhados nossos).

As regras de avaliação de empresas generica-

mente aceites constituem assim fonte de direito

sob a forma de costume, na medida em que

constituem um uso, no sentido de prática social

reiterada em relação à qual existe na sociedade

(e neste caso, mais concretamente, no mercado

de valores mobiliários) uma convicção de obri-

gatoriedade fundada na convicção da sua vincu-

latividade9.

Não havendo normas legais específicas que de-

terminem a forma como se deve processar a

avaliação a realizar pelo auditor independente

para efeitos de cálculo da contrapartida mínima

da OPA, a conduta do mesmo deverá ser aferida

por referência às regras de avaliação de empre-

sas genericamente aceites, que se devem enten-

der nesta sede como autênticos usos sedimenta-

dos no domínio da atividade de avaliação de

empresas.

3.2 Responsabilidade Civil Extracontratual

Nos termos do artigo 483.º do Código Civil,

“Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar

ilicitamente o direito de outrem ou qualquer

disposição legal destinada a proteger interes-

ses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado

pelos danos resultantes da violação”.

Esta disposição legal condensa os pressupostos

da responsabilidade civil extracontratual que,

encontrando-se preenchidos, darão lugar à obri-

gação de o auditor independente indemnizar os

investidores em valores mobiliários emitidos

por sociedade aberta que sejam objeto de OPA

obrigatória: (i) facto voluntário; (ii) ilicitude;

(iii) culpa; (iv) dano; e (v) nexo de causalidade.

3.2.1 Facto Voluntário

Tendo em conta que, de acordo com o caso ba-

se proposto, a conduta do auditor independente

que poderá dar lugar à obrigação de indemnizar

passará necessariamente pela divulgação de um

relatório contrário às regras de avaliação de

empresas genericamente aceites, assumimos

este pressuposto como verificado.

A Responsabilidade Civil do Auditor Independente...: 13

8- Portugal não fez uso desta faculdade de definir por lei os critérios que o auditor independente designado pela CMVM (ou, na prática, pela OROC) deve seguir quando está encarregue de determinar a contrapartida mínima de uma OPA. 9- José de Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, págs. 218 e ss., Fundação Calouste Gulbenkian, 1978.

14 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

3.2.2 Ilicitude

O pressuposto da ilicitude tem expressão, por

um lado, na cláusula geral de responsabilidade

civil extracontratual prevista no artigo 483.º do

Código Civil, onde se prevê como formas de

ilicitude a violação de um direito subjetivo de

outrem ou a violação de qualquer disposição

legal destinada a proteger interesses alheios e,

por outro lado, no artigo 334.º do Código Civil,

sobre o abuso de direito.

(A) Artigo 483.º do Código Civil

Começando pelo artigo 483.º do Código Civil, a

primeira das formas de ilicitude previstas neste

preceito, a violação de um direito subjetivo de

outrem, não tem aplicação no presente caso, na

medida em que não está em causa a violação

pelo auditor independente de um qualquer direi-

to subjetivo dos investidores nos valores mobi-

liários em causa10.

É de notar que esta primeira forma de ilicitude

não permite o ressarcimento dos chamados da-

nos patrimoniais puros, que se consubstanciam

“numa lesão do património do sujeito à qual

não corresponde a violação de um qualquer

direito subjectivo. É a pura perda ou prejuízo

económico que estão em causa, sem que, em

paralelo ou ex ante, se possa falar do desres-

peito por um direito (pessoal ou patrimonial)

do sujeito do qual tenha resultado essa per-

da”11.

Regra geral, este tipo de dano não dá lugar a

reparação pela via indemnizatória em sede de

responsabilidade civil extracontratual por o or-

denamento jurídico português não reconhecer o

direito geral à tutela do património, não haven-

do nenhuma norma que garanta o direito das

pessoas à intangibilidade do seu património12.

No entanto, a segunda forma de ilicitude cons-

tante do artigo 483.º do Código Civil, sobre a

qual nos debruçamos de seguida, abre a porta

ao ressarcimento de danos patrimoniais puros

em certos casos, pela consagração de disposi-

ções legais específicas de proteção, isto é, pela

consagração de disposições legais que têm co-

mo fim proteger o património de certas pessoas

em determinadas situações13.

Esta segunda forma de ilicitude (a violação de

qualquer disposição legal destinada a proteger

interesses alheios) estaria aqui em causa em

virtude da violação pelo auditor independente

do disposto nos artigos 188.º n.º 2 e 7.º n.º 1,

por ter estabelecido, numa primeira fase, a con-

trapartida mínima da OPA em termos não equi-

tativos, em resultado da violação das regras de

avaliação de empresas genericamente aceites.

Segundo a melhor doutrina, para ser efetiva, a

invocação da violação de uma disposição legal

destinada a proteger interesses alheios para

efeitos de responsabilidade civil (e, mais preci-

samente, para ressarcimento de danos patrimo-

niais puros) depende da verificação dos seguin-

tes requisitos14: (i) que à lesão dos interesses do

particular corresponda a violação de uma norma

legal; (ii) que a tutela dos interesses particulares

figure, de facto, entre os fins da norma violada;

e (iii) que o dano se tenha registado no círculo

de interesses privados que a lei visa tutelar.

10- Têm-se tipicamente por abrangidos por este preceito os direitos absolutos, como os direitos reais, os direitos de personalidade, os direitos familiares de natureza patrimonial e os direitos de propriedade intelectual (cfr. Antunes Varela, ob. cit., pág. 533). 11- Gabriela Figueiredo Dias, Controlo de Contas e Responsabilidade dos ROC, pág. 191, in Temas Societários, IDEF, Colóquios, n.º 2, 2006. 12- Cfr. Antunes Varela, ob. cit., pág. 540; e Gabriela Figueiredo Dias, Controlo de Contas…, pág. 191. 13-Cfr. Carlos Ferreira de Almeida, Normas de imputação e norma de proteção no regime da responsabilidade civil extracontratual pela informação nos mercados de valores mobiliários, pág. 18, em Direito das Sociedades em Revista, Outubro 2016, Ano 8, Vol. 16, Almedina. 14- Antunes Varela, ob. cit., pág. 539 e 540.

15 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

(i) Violação de norma legal

Quanto ao primeiro requisito, de que à lesão

dos interesses do particular tem de corresponder

a violação de uma norma legal, verifica-se que

foi esse o caso na situação em análise, pois o

dano sofrido pelos investidores ocorreu em re-

sultado do primeiro relatório do auditor inde-

pendente, cujo caráter defeituoso, expresso na

fixação da contrapartida mínima da OPA em

termos não equitativos, implicou já uma viola-

ção do artigo 188.º n.º 2, visto que o cumpri-

mento do disposto nessa norma legal exige ne-

cessariamente a produção de um relatório de

auditoria que fixe a contrapartida mínima da

OPA em termos equitativos15.

Neste sentido, a atualização do relatório do au-

ditor independente corresponde, por sua vez, a

uma verdadeira correção do relatório anterior-

mente apresentado, configurando uma alteração

à contrapartida mínima da OPA de modo a tor-

ná-la equitativa.

Prevendo a lei no artigo 188.º n.º 4 que a

CMVM divulgue imediatamente ao público a

contrapartida mínima da OPA assim que esta

for fixada pelo auditor independente, deve-se

entender que a mesma se considera juridica-

mente relevante a partir do envio do relatório

do auditor independente à CMVM e subsequen-

te divulgação ao público. Por esta razão, o rela-

tório que fixa inicialmente a contrapartida míni-

ma da OPA de forma defeituosa não pode, para

efeitos de responsabilidade civil, deixar de ter

relevância autónoma relativamente ao que a

fixa posteriormente de forma lícita e definitiva.

Este é na realidade o regime que melhor se coa-

duna com a opção do legislador de, para efeitos

de obstar ao abuso de mercado – nomeadamen-

te por parte daqueles que tiverem conhecimento

imediato do montante da contrapartida mínima

fixado pelo auditor independente –, exigir a

divulgação ao público da contrapartida mínima

da OPA assim que esta tiver sido fixada em

relatório elaborado pelo auditor independente.

Daqui resulta que, independentemente de o re-

latório vir a ser posteriormente corrigido, a fi-

xação da contrapartida pelo auditor independen-

te, tal como inicialmente divulgada ao público

pela CMVM, ocorreu já em violação do artigo

188.º n.º 2, na medida em que o preço aí fixado

não pode ser considerado como equitativo, por

não respeitar as regras de avaliação de empre-

sas genericamente aceites.

Da mesma forma, verifica-se que o auditor in-

dependente, atuando dessa forma, violou tam-

bém o disposto no artigo 7.º n.º 1, por não se

poder considerar que a fixação inicial da contra-

partida mínima da OPA de forma contrária re-

gras de avaliação de empresas genericamente

aceites configura a divulgação de informação

completa, verdadeira e lícita, por pura e sim-

plesmente não corresponder ao preço a que o

auditor independente estava obrigado a chegar

por força do artigo 188.º n.º 2 do Cód. VM e

das regras de avaliação de empresas generica-

mente aceites (i.e., o tal preço equitativo)16.

A Responsabilidade Civil do Auditor Independente...: 15

15- Não obstante esse preceito não se referir literalmente à fixação da contrapartida mínima da OPA em termos equitativos pelo auditor independente, essa é a conclusão que preside a uma adequada interpretação desta norma legal, atendendo à ratio do regime das OPAs obri-gatórias em geral e da fixação da contrapartida mínima destas em particular (cfr. disposições da Diretiva das OPAs que abaixo se transcre-vem e que são reveladoras quanto ao facto de a contrapartida mínima da OPA dever ser equitativa e de o papel do auditor independente, se chamado a intervir, ser o de garantir essa equidade). 16- No caso da OPA sobre a Fisipe anunciada no dia 21.03.2012, resulta do comunicado divulgado pela CMVM no dia 08.08.2012 que o auditor independente, para efeitos de determinação da contrapartida mínima da OPA, equiparou o valor das ações da Fisipe ao respetivo entreprise value, assim chegando ao valor de € 0,26 por ação comunicado ao mercado no dia 11.04.2012. Conforme resulta igualmente do mesmo comunicado da CMVM, o auditor independente acabaria por recalcular a contrapartida mínima da OPA deduzindo a dívida líquida da Fisipe ao respetivo enterprise value, chegando ao valor de € 0,20 por ação. Está implícito ao comunicado da CMVM de 08.08.2012 que, na sua avaliação inicial do preço das ações da Fisipe, o auditor independente terá utilizado um método através do qual calculou o preço unitário das ações da Fisipe por referência aos fluxos de caixa operacionais futuros gerados pelos seus capitais próprios e alheios, atualizados para o presente (i.e., para o seu valor no momento em que a OPA decor-ria), chegando ao valor correspondente ao enterprise value.

16 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

(ii) Tutela dos interesses dos investidores e fins

das normas violadas

Relativamente ao segundo requisito, que exige

que a tutela do interesse particular de cada in-

vestidor figure, de forma direta – e não somente

reflexa -, entre os fins das normas violadas, é de

relevar que sendo o artigo 188.º n.º 2 o resulta-

do da transposição para a ordem jurídica portu-

guesa do artigo 5.º n.º 4 da Diretiva das OPAs,

esta Diretiva é um instrumento determinante

para uma correta aferição do círculo de interes-

ses privados que aquele preceito do Cód.VM

visa tutelar.

Quanto ao artigo 7.º n.º 1, sendo este um precei-

to que visa somente fixar os requisitos de quali-

dade da informação divulgada no âmbito do

mercado de valores mobiliários, a constatação

de que a proteção dos investidores figura (ou

não) entre os seus fins depende de se saber se a

proteção dos investidores figura (ou não) entre

os fins da norma ou princípio de Direito que

impôs ou permitiu a divulgação dessa informa-

ção17.

No caso em apreço, sendo o artigo 7.º n.º 1 cha-

mado à colação para garantir a qualidade da

informação constante do relatório do auditor

independente, que por sua vez foi elaborado ao

abrigo do mecanismo previsto no artigo 188.º

n.º 2, a sua qualificação como disposição legal

destinada a proteger o interesse de terceiros nos

termos do artigo 483.º n.º 1 do Código Civil,

através do preenchimentos deste segundo requi-

sito, estará sempre dependente da qualificação

dada ao artigo 188.º n.º 2 nesta sede.

Determina assim o artigo 5.º n.º 1 da Diretiva

das OPAs que “Sempre que uma pessoa singu-

lar ou colectiva, na sequência de uma aquisi-

ção efectuada por si ou por pessoas que com

ela actuam em concertação, venha a deter valo-

res mobiliários18 de uma sociedade a que se

refere o n.º 1 do artigo 1.º que, adicionados a

uma eventual participação que já detenha e à

participação detida pelas pessoas que com ela

actuam em concertação, lhe confiram directa

ou indirectamente uma determinada percenta-

gem dos direitos de voto nessa sociedade, per-

mitindo-lhe dispor do controlo da mesma, os

Estados-Membros asseguram que essa pessoa

deva lançar uma oferta a fim de proteger os

accionistas minoritários dessa sociedade. Esta

oferta deve ser dirigida o mais rapidamente

possível a todos os titulares de valores mobiliá-

rios, para a totalidade das suas participações,

a um preço equitativo definido no n.º

4” (sublinhados do autor).

Por sua vez, reveste também particular impor-

tância a este propósito o disposto no conside-

rando 9 desta Diretiva, onde se lê que “Os Es-

tados-Membros deverão tomar as medidas ne-

cessárias para proteger os titulares de valores

mobiliários e, em especial, os detentores de

participações minoritárias, após uma mudança

do controlo das sociedades. Os Estados-

Membros deverão assegurar essa proteção me-

diante a imposição ao adquirente que assumiu

De modo a garantir que não eram tidos em conta, para efeitos de determinação do preço das ações, os fluxos de caixa gerados pelos capitais alheios (dívida), mas somente os gerados pelos capitais próprios, o auditor independente deveria ter subtraído a dívida líquida da Fisipe ao respetivo enterprise value e dividir esse valor pelo número de ações desta, o que, de acordo com o referido comunicado, não terá ocorrido. Esta prática do auditor independente, desconforme às regras de avaliação de empresas genericamente aceites, que ditariam a dedução da dívida líquida da Fisipe ao respetivo enterprise value (cfr. A. Damodaran, ob. cit., e Paulo Alves e Paulo Francisco, ob. cit., Cap. 5.), levou à sobreavaliação do preço das ações da Fisipe, o que levaria à fixação inicial da contrapartida mínima da OPA em € 0,26 em vez de € 0,20 (esta sobreavaliação decorre naturalmente do facto de o preço de € 0,26 por ação refletir, não só as expectativas de remuneração das ações da Fisipe, mas também as expectativas de remuneração dos outros financiadores desta sociedade, da qual os acionistas não seriam logica-mente beneficiários), o que naturalmente se materializou na fixação da contrapartida mínima da OPA da Fisipe em termos não equitativos e por isso ilícitos, em violação dos artigos 188.º n.º 2 e 7.º n.º 1. 17- Conforme refere Carlos Ferreira de Almeida, em linha com a conclusão expressa no acórdão do STJ de 5 de abril de 2016 (relator Garcia Calejo), “O artigo 7.º não tem portanto a natureza de norma de imputação da responsabilidade civil, porque não prescreve, por si só, qualquer dever de informação nem, em consequência, atribui qualquer direito a indemnização por violação de um dever de informa-ção. Não é sequer uma norma autónoma de proteção, porque só funciona em conjugação com normas prescritoras de deveres de informa-ção” (ob. cit, pág. 31). 18- O conceito de “valores mobiliários” encontra-se definido no artigo 2.º n.º 1 al. e) da Diretiva das OPAs como “títulos negociáveis que conferem direitos de voto numa sociedade”.

17 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

o controlo de uma sociedade do dever de lan-

çar uma oferta a todos os titulares de valores

mobiliários dessa sociedade, tendo em vista a

aquisição da totalidade das respetivas partici-

pações a um preço equitativo que deve ser

objeto de uma definição comum” (sublinhados

do autor).

Resulta deste considerando e do artigo 5.º n.º 4

da Diretiva das OPAs que o regime das OPAs

obrigatórias em geral, do qual a fixação da con-

trapartida mínima em termos equitativos nos

termos do artigo 188.º n.º 2 é parte integrante,

tem como fim proteger os interesses particula-

res dos investidores detentores de ações de uma

sociedade aberta – ou de outros valores mobi-

liários emitidos por essa sociedade que confi-

ram direito à sua subscrição ou aquisição –,

quando ocorre uma aquisição ou alteração do

controlo sobre essa sociedade.

Conforme referido no subcapítulo 2.1.2 com

vista a assegurar o tratamento justo e equitativo

de todos os acionistas de uma sociedade aberta,

essa proteção tem dois objetivos:

a) Por um lado, obstar à possibilidade de algum

(ns) do(s) acionista(s) poder(em) controlar a

sociedade sem dar(em) hipótese de saída a

um preço equitativo aos restantes acionistas

que aí investiram sob determinados pressu-

postos que deixaram de se verificar a partir

do momento em que a mesma passou a ser

controlada por outra(s) pessoa(s); e

b) Por outro lado, proporcionar a distribuição

do prémio de controlo sobre a sociedade por

todos os acionistas da mesma, tendo em con-

ta que depois da tomada de controlo pelo

oferente é expectável que as suas ações se

venham a desvalorizar19.

Seguindo esta lógica no que respeita ao artigo

188.º n. º 2, o segundo requisito da ilicitude

encontra-se certamente preenchido relativamen-

te aos investidores que já eram acionistas da

sociedade visada no momento da tomada de

controlo pelo oferente ou aquando do anúncio

preliminar de OPA derrogatória nos termos do

artigo 189.º n.º 1 al. a), mas já não relativamen-

te aos restantes investidores, pois estes teriam

investido na sociedade já com conhecimento de

que a mesma estava ou poderia estar brevemen-

te sujeita ao controlo de terceiros20.

Não obstante o exposto, o artigo 188.º n.º 4, ao

exigir a divulgação imediata ao público pela

CMVM da contrapartida mínima da OPA, tal

como fixada no relatório do auditor indepen-

dente, abre a porta ao entendimento de que o

bloco composto pelo artigos 188.º n.os 2 e 4 e

7.º n.º 1 tem como fim proteger diretamente,

não só os investidores que já eram acionistas da

sociedade visada no momento da tomada de

controlo pelo oferente ou aquando do anúncio

preliminar de OPA derrogatória, mas também

os restantes investidores ou potenciais investi-

dores em ações da mesma.

Tal entendimento resulta do facto de o artigo

251.º prever a responsabilidade civil dos emi-

tentes pelo conteúdo das informações divulga-

das ao abrigo dos artigos 245.º a 249.º – onde se

encontram previstos os deveres de divulgação

de informação anual, semestral, trimestral e

privilegiada por parte de emitentes, bem como

de transações de dirigentes –, assim qualifican-

do estas normas como disposições legais desti-

nadas a proteger interesses alheios para efeitos

do artigo 483.º n.º 1 do Código Civil21.

A Responsabilidade Civil do Auditor Independente...: 17

19- Nicholas Jennings, Mandatory Bids Revisited, págs. 41 a 47, Journal of Corporate Law Studies, Vol. V, Part I, Abril de 2005. 20- Em bom rigor, dever-se-ia dizer que o artigo 188.º n.º 2 visa acautelar os interesses, não só dos investidores que já eram acionistas da sociedade visada no momento da tomada de controlo pelo oferente, mas também dos investidores que, na mesma data, eram titulares de valores mobiliários emitidos pela sociedade visada que davam direito à subscrição ou aquisição de ações da visada. Contudo, de modo a não complexificar demasiado a presente exposição, tanto neste ponto como noutros pontos deste estudo em que são referidas normas que visam acautelar os interesses tanto de acionistas como de detentores desse tipo de valores mobiliários, apenas serão mencionados os deten-tores de ações. 21- Neste sentido, relativamente ao dever de divulgação de informação privilegiada, Gonçalo Castilho dos Santos, segundo o qual “O incumprimento do dever de comunicação de factos relevantes pode constituir o emitente no dever de indemnizar os lesados (artigo 251.º)”, adotando assim “a tese que tem vindo a considerar que normas como o artigo 248.º são passíveis de ser reconduzidas às “normas de protecção” previstas no artigo 483.º n.º 1, 2ª parte do Código Civil” (O Dever dos Emitentes de Informar sobre Factos Relevantes, pág. 49, in Caderno do Mercado de Valores Mobiliários, n.º 15, Dezembro 2002). No mesmo sentido, relativamente aos artigos 245.º a 249.º, Carlos Ferreira de Almeida, ob. cit., págs. 26 e seguintes.

18 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

A configuração dos artigos 245.º a 249.º como

disposições legais destinadas a proteger interes-

ses alheios para efeitos do artigo 483.º n.º 1 do

Código Civil significa que o legislador preten-

deu que estas normas tutelassem diretamente –

e não somente de forma reflexa –, não só a inte-

gridade e a eficiência do mercado de capitais,

mas também o património dos investidores que

basearam as suas decisões de investimento nas

informações em causa22.

Ora, a obrigação de divulgação imediata ao pú-

blico da contrapartida mínima da OPA pela

CMVM ao abrigo do artigo 188.º n.º 4 é uma

obrigação de natureza semelhante às obrigações

de divulgação de informação resultantes dos

artigos 245.º a 249.º, na medida em que todas

elas têm como objetivo garantir que informa-

ções sobre factos relevantes para a formação do

preço de valores mobiliários emitidos por uma

determinada sociedade cheguem ao mercado o

mais rapidamente possível (especialmente no

caso da divulgação de informação privilegiada

e de transações de dirigentes).

Atenta esta identidade de razões, se o legislador

configura os artigos 245.º a 249.º como disposi-

ções legais que visam assegurar de forma direta

– e não somente reflexa –, não só a integridade

e eficiência do mercado de capitais, mas tam-

bém a proteção dos investidores que negocia-

ram com base na informação a que respeitam,

qualificando-as por isso como disposições le-

gais destinadas a proteger interesses alheios

para efeitos do artigo 483.º do Código Civil, o

mesmo se há-de entender por maioria de razão

relativamente ao bloco de regras relativo à fixa-

ção da contrapartida mínima de OPA por audi-

tor independente, constituído pelos artigos 188.º

n.os 2 e 4 e 7.º n.º 1.

22- Regra geral, ao contrário do que sucede no Direito das Sociedades Comerciais, onde, em prol da tutela patrimonial individualizada do investimento dos acionistas das sociedades comerciais, é-lhes atribuído um verdadeiro direito à informação, no Direito dos Valores Mobi-liários a regulamentação da matéria relativa à informação visa uma tutela do património dos investidores, já não individualizada (pela atribuição aos investidores de um verdadeiro direito à informação), mas sim genérica, pela imposição de deveres de informação a certas pessoas, que tutelam os interesses dos investidores, mas apenas como um mero reflexo da proteção da integridade e eficiência do mercado, não podendo estes lançar mão da sua violação para serem ressarcidos em sede de responsabilidade civil extracontratual. A título de exce-ção, alguns desses deveres de informação em sede de Direito dos Valores Mobiliários concedem uma tutela individualmente dirigida aos investidores, sendo-lhe assegurado por disposição legal específica que podem responsabilizar civilmente pela sua violação as pessoas sobre quem recaem esses deveres (e.g., artigos. 10.º, 149.º, 243.º e 251.º).

Exemplo paradigmático desta distinção resulta, respetivamente, (i) do Regulamento (UE) n.º 596/2014 do Parlamento Europeu e do Conse-lho, de 16 de abril de 2014, relativo ao abuso de mercado (Regulamento do Abuso de Mercado), que revogou a Diretiva 2003/6/CE, tam-bém relativa ao abuso de mercado (antiga Diretiva do Abuso de Mercado), cujo artigo 1.º dispõe (onde dispunha anteriormente o conside-rando 12 da antiga Diretiva do Abuso de Mercado) que “O presente regulamento estabelece um quadro regulatório comum em matéria de abuso de informação privilegiada, transmissão ilícita de informação privilegiada e manipulação de mercado (abuso de mercado), bem como medidas para evitar o abuso de mercado, a fim de assegurar a integridade dos mercados financeiros na União e promover a confi-ança dos investidores nesses mercados”, e (ii) da Diretiva 2001/34/CE (Diretiva dos Prospetos), cujo considerando 10 enuncia que “O objectivo da presente directiva e das respectivas medidas de execução é o de assegurar a protecção dos investidores e a eficácia do mer-cado”, tendo por isso sido exigido aos Estados Membros no respetivo artigo 6.º (transposto para a ordem jurídica portuguesa nos artigos 149.º a 154.º) que assegurassem a sujeição a responsabilidade civil das pessoas responsáveis pela elaboração do prospeto (cfr. Margarida Azevedo de Almeida, A Responsabilidade Civil Perante os Investidores por Realização Defeituosa de Relatórios de Auditoria, Recomen-dações de Investimento e Relatórios de Notação de Risco, pág. 14, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, n.º 36, Agosto 2010).

No mesmo sentido, mas relativamente à temática da responsabilidade sobre o prospeto no antigo Código do Mercado de Valores Mobiliá-rios (onde não havia norma específica sobre responsabilidade civil pelo prospeto e numa altura em que não existia ainda Diretiva dos Pros-petos), Carlos Costa Pina, Dever de Informação e Responsabilidade pelo Prospeto no Mercado Primário de Valores Mobiliários, págs. 182 e ss., Coimbra Editora, 1999; É de notar no entanto que esta distinção entre o regime da responsabilidade civil decorrente da Diretiva dos Prospetos e o decorrente do Regulamento do Abuso de Mercado não tem total aplicação no direito português em virtude de o artigo 251.º prever expressamente que os emitentes são responsáveis pelas informações publicadas ao abrigo do regime da divulgação de informação anual, semestral, trimestral e privilegiada previsto nos artigos 245.º a 249.º, que resultou da Diretiva do Abuso de Mercado e estão agora cobertos pelo Regulamento do Abuso de Mercado.

19 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Entendemos por esta razão que o artigo 251.º

deve ser interpretado extensivamente nos ter-

mos do artigo 9.º n.º 1 do Código Civil23, no

sentido de abranger também a informação sobre

a contrapartida mínima de OPA divulgada ao

público no âmbito do artigo 188.º n.º 4. Seguin-

do esta lógica, o artigo 188.º n.os 2 e 4 e o artigo

7.º n.º 1 deverão ser entendidos como verdadei-

ras normas de proteção para efeitos do artigo

483.º n.º 1 do Código Civil.

Isto significa que, em termos práticos, a divul-

gação da contrapartida mínima da OPA nos

termos do artigo 188.º n.º 4 justifica o preenchi-

mento deste segundo requisito da ilicitude24

relativamente a todos os investidores em ações

da sociedade visada afetados pela violação dos

artigos 188.º n.o 2 e 7.º n.º 1, e não somente em

relação àqueles investidores de entre estes que

já eram acionistas da visada aquando da tomada

de controlo pelo oferente ou da divulgação de

anúncio preliminar de OPA derrogatória.

De qualquer forma, e reconhecendo de certa

forma as fragilidades inerentes à sustentação da

responsabilidade civil do auditor independente

na interpretação extensiva de uma norma de

imputação de responsabilidade civil como o

artigo 251.º, não prescindimos de explorar em

baixo a possibilidade de preenchimento do

pressuposto da responsabilidade civil da ilicitu-

de por via do abuso de direito e da responsabili-

dade civil pré-contratual.

(iii) Ocorrência do dano no círculo de interesses

que a lei visa tutelar

Para que o terceiro requisito da ilicitude se en-

contre verificado, o dano sofrido pelos investi-

dores tem de se ter registado no círculo de inte-

resses privados que a lei visa tutelar.

Caso se considere que a interpretação extensiva

do artigo 251.º acima referida não se aplica e

que por isso o segundo requisito da ilicitude (de

que as normas violadas têm de visar diretamen-

te a proteção dos investidores em causa) só está

preenchido relativamente aos investidores que

já eram acionistas da sociedade visada aquando

da tomada de controlo pelo oferente ou aquando

da divulgação do anúncio preliminar de OPA

derrogatória, chega-se necessariamente à con-

clusão de que, no caso em apreço, o dano sofri-

do por esses acionistas (e, por maioria de razão,

pelos restantes investidores) não se produziu no

círculo de interesses privados que os artigos

188.º n.º 2 e 7.º n.º 1 visam tutelar.

O ponto de partida para esta conclusão é o facto

de o regime das OPAs obrigatórias, do qual a

fixação da contrapartida mínima em termos

equitativos é parte integrante, ter como finalida-

de a proteção dos detentores de ações de uma

sociedade aberta aquando da tomada do contro-

lo desta por outra(s) pessoa(s) – com o objetivo

de lhes proporcionar um direito de saída a um

preço que permita a distribuição do respetivo

prémio de controlo –, e não o aproveitamento

de oportunidades de negócio que surgem em

resultado da ocorrência de uma OPA.

Ora, no caso em análise, os danos provocados

pelo relatório defeituoso do auditor independen-

te ocorreram, não porque a contrapartida míni-

ma da OPA não foi, a final, fixada em termos

equitativos pelo auditor independente, inviabili-

zando o tratamento justo e equitativo dos acio-

nistas da sociedade visada, mas antes porque os

investidores em causa, ao assumirem que a con-

trapartida mínima da OPA seria fixada em de-

terminado montante25, de acordo com o primei-

ro relatório do auditor independente divulgado

ao público pela CMVM (e que viria mais tarde

a ser corrigido):

A Responsabilidade Civil do Auditor Independente...: 19

23- Onde se lê que “A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”. 24- De que a tutela do interesse particular de cada investidor figure de forma direta entre os fins das normas violadas. 25- No caso da OPA da SGL Carbon sobre a Fisipe, € 0,26 por ação.

20 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

a) Adquiriram ações da sociedade visada por

um preço inferior a esse, com o objetivo de

as alienar posteriormente na OPA e encaixar

a diferença entre o preço de aquisição das

ações e a contrapartida mínima fixada pelo

auditor independente26- 27; ou

b) Abstiveram-se de alienar ações da sociedade

visada que já detinham em carteira a um pre-

ço situado entre a contrapartida da OPA, tal

como fixada a final28, e um preço imediata-

mente inferior ao preço determinado pelo

auditor independente no seu primeiro relató-

rio29, por terem a expectativa de vir a alienar

as ações em causa na OPA a este último pre-

ço30.

O dano sofrido pelos acionistas da sociedade

visada decorre assim, não do facto de (i) não

lhes ter sido conferido o direito de saída a um

preço equitativo na sequência da tomada de

controlo pelo oferente (no caso base assumido

neste estudo, a contrapartida da OPA acabaria

por ser fixada em termos equitativos), mas do

facto de (ii) terem negociado (ou se abstido de

negociar) em ações da sociedade visada assu-

mindo que a contrapartida da OPA tinha sido

fixada em determinado montante mais elevado

do que o verificado a final e de, em consequên-

cia disso, terem sofrido perdas que de outro

modo não teriam sofrido.

Assumindo o não provimento da interpretação

extensiva do artigo 251.º, a primeira situação

mencionada no parágrafo anterior seria de facto

tutelada pelo regime da contrapartida mínima

estabelecido no artigo 188.º, pois se o preço das

ações não fosse, a final, fixado em termos equi-

tativos, ou seja, se o preço a que seria lançada a

OPA fosse inferior ao preço dito “equitativo”,

frustrar-se-ia o objetivo central do regime das

OPAs obrigatórias, que consiste na proteção

dos acionistas da sociedade aberta, que assim

veriam ser-lhes negado o direito de saída do

capital da sociedade a um preço equitativo que

lhes assegurasse a sua quota-parte do prémio de

controlo.

No entanto, o mesmo não sucede com a segun-

da situação descrita nesse parágrafo, visto que a

garantia do aproveitamento das oportunidades

de negócio que surgem em resultado da ocor-

rência de uma OPA não é o bem jurídico que o

regime das OPAs obrigatórias em geral, e o

artigo 188.º em particular, visam salvaguardar.

Deste modo, caso se entenda que o artigo 251.º

não é suscetível de interpretação extensiva nos

moldes sugeridos, dever-se-á forçosamente con-

cluir que o pressuposto da ilicitude consagrado

no artigo 483.º do Código Civil não se encontra

preenchido no caso base em análise nem sequer

relativamente aos investidores que eram acio-

nistas da sociedade visada aquando da tomada

de controlo pelo oferente ou da divulgação do

anúncio preliminar de OPA derrogatória, por

não estar em causa, nem a violação dos seus

direitos subjetivos, nem a violação de uma dis-

posição legal destinada a proteger interesses

alheios, na medida em que o dano ocorreu fora

do círculo de interesses que o artigo 188.º n.º 2

visa tutelar (i.e., o terceiro requisito ora tratado

não se verificou).

Contudo, e conforme já referido, entendemos

que uma interpretação extensiva do artigo 251.º

nos moldes acima propostos levará necessaria-

mente à conclusão de que o segundo requisito

da ilicitude se encontra preenchido relativamen-

te a todos os investidores que sofreram danos

em virtude da tomada de decisões de investi-

mento com base no valor da contrapartida

mínima da OPA determinado pelo auditor

26- Os tais € 0,26 por ação, no caso da OPA da SGL Carbon sobre a Fisipe. 27- Os investidores poderiam ainda hipoteticamente ter adquirido ações da sociedade visada ao preço mais elevado fixado pelo primeiro relatório do auditor independente, na esperança de que a OPA viesse a ser lançada com uma contrapartida superior a essa. 28- No caso da OPA da SGL Carbon sobre a Fisipe, € 0,20 por ação. 29- No caso da OPA da SGL Carbon sobre a Fisipe, € 0,25 por ação. 30- Os tais € 0,26 por ação, no caso da OPA da SGL Carbon sobre a Fisipe.

21 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

independente, numa primeira fase, em termos

não equitativos e por isso em violação dos arti-

gos 188.º n.º 2 e 7.º n.º 131.

Consequentemente, a análise do preenchimento

do terceiro requisito da ilicitude, de que o dano

tem de ter ocorrido no círculo de interesses que

a lei visa tutelar, deve incidir sobre a situação

de todos os investidores em ações da sociedade

visada que sofreram danos em resultado da atu-

ação do auditor independente, sendo efetuada

pelo confronto entre a finalidade do bloco cons-

tituído pelos artigos 188.º n.os 2 e 4 e 7.º n.º 1 e

a situação em concreto que levou ao dano sofri-

do por esses investidores, de modo a que se

possa aferir se o dano ocorreu no círculo de

interesses que estas normas, no seu conjunto,

visam tutelar.

Ora, tendo em conta que os danos sofridos por

estes investidores ocorreram exatamente em

virtude de terem negociado (ou se abstido de

negociar) em ações da sociedade visada com

base na informação relativa à contrapartida mí-

nima da OPA calculada inicialmente pelo audi-

tor independente e que as normas referidas no

parágrafo anterior visam assegurar, no seu con-

junto, não só a equidade da contrapartida míni-

ma da OPA, mas também a sua imediata divul-

gação ao mercado em virtude de se tratar de

informação relevante para a tomada de decisões

de investimento, não se pode deixar de entender

que os danos em causa ocorreram dentro do

círculo de interesses que a lei visa tutelar.

Conclui-se assim que este terceiro requisito da

ilicitude se encontra preenchido em virtude da

violação pelo auditor independente dos requisi-

tos de qualidade da informação que resultam da

conjugação dos artigos 188.º n.os 2 e 4 e 7.º n.º

1, no que respeita à situação de todos os investi-

dores que negociaram (ou se abstiveram de ne-

gociar) em ações da sociedade visada assumin-

do que a contrapartida mínima da OPA tinha

sido fixada em montante mais elevado do que o

verificado a final e que, em consequência disso,

sofreram perdas que de outro modo não teriam

sofrido. Está-se assim perante um dano que

ocorreu no círculo de interesses que uma dispo-

sição legal destinada a proteger interesses alhei-

os nos termos do artigo 483.º n.º 1 visa tutelar.

Resta ainda deixar aqui uma última nota relati-

vamente ao artigo 485.º n.º 2 do Código Civil,

sobre responsabilidade por conselhos, recomen-

dações ou informações, que, excecionando a

regra estabelecida no n.º 1 do mesmo preceito,

de que os simples conselhos, recomendações ou

informações não responsabilizam quem os dá,

estabelece que “A obrigação de indemnizar

existe, porém, (…) quando havia o dever jurídi-

co de dar o conselho, recomendação ou infor-

mação e se tenha procedido com negligência ou

intenção de prejudicar, ou quando o procedi-

mento do agente constitua facto punível.”.

Esta norma poderia ser interpretada como uma

outra forma de ilicitude independente das que

constam do artigo 483.º do Código Civil, no

sentido de que, estando-se perante a violação de

uma norma relativa a estas matérias que impo-

nha a alguém o dever de dar conselho, reco-

mendação ou informação, ou que constitua fac-

to punível, está imediatamente preenchido o

requisito da ilicitude na aferição da responsabi-

lidade civil a imputar a essa pessoa.

No entanto, tal não se afiguraria correto, na me-

dida em que o artigo 485.º n.º 2 do Código Civil

não estabelece uma outra forma de ilicitude

paralela à que consta do artigo 483.º do mesmo

Código, apenas estipulando que, caso uma nor-

ma legal imponha o dever jurídico de dar con-

selho, recomendação ou informação, ou o agen-

te, ao fazê-lo, pratique um facto punível, fica

sem efeito o disposto no n.º 1 do artigo 485.º do

A Responsabilidade Civil do Auditor Independente...: 21

31- Conforme anteriormente referido, não limitamos a verificação do segundo requisito da ilicitude àqueles que já eram acionistas da socie-dade visada aquando da tomada de controlo pelo oferente ou da divulgação do anúncio preliminar de OPA derrogatória, por entendermos que a obrigação de divulgação da contrapartida mínima de OPA nos termos do artigo 188.º n.º 4 implica necessariamente a asserção de que os requisitos de qualidade da informação em causa (artigo 188.º n.º 2 e artigo 7.º n.º 1) visam proteger diretamente todos os investidores em ações da visada e não somente aquele grupo restrito.

22 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Código Civil, sem prejuízo da aferição do pre-

enchimento dos pressupostos que determinam a

ilicitude de um determinado facto voluntário

por envolver a violação de uma disposição legal

destinada a proteger interesses alheios, nos ter-

mos do artigo 483.º do Código Civil32.

Neste sentido, estando-se perante a violação de

uma norma legal que impõe ao auditor indepen-

dente o dever de divulgação ao mercado de uma

informação (in casu, da contrapartida mínima

da OPA) que provocou danos a certos investi-

dores – violação essa que constitui facto puní-

vel33 –, como acontece na presente situação em

virtude da designação do auditor independente

pela OROC a pedido da CMVM – que ocorre

nos termos conjugados do artigo 188.º n.º 2 e do

artigo 67.º n.º 1 do Estatuto da Ordem dos Revi-

sores Oficiais de Contas (EOROC)34 –, será

ainda necessário verificar se a tutela dos inte-

resses particulares desses investidores figura, de

facto, entre os fins da norma violada e se o dano

se registou no círculo de interesses privados que

a lei visa tutelar.

Conforme discutido acima, isso acontecerá no

presente caso, desde que se proceda a uma in-

terpretação extensiva do disposto no artigo

251.º no sentido de aí se prever a responsabili-

dade civil do auditor independente pela viola-

ção das normas relativas à fixação da contrapar-

tida mínima de OPA nos termos do artigo 188.º

n.os 2 e 4 e do artigo 7.º n.º 1.

De qualquer forma, e tal como também já men-

cionado, reconhecendo de certa forma as fragi-

lidades inerentes à sustentação da responsabili-

dade civil do auditor independente na interpre-

tação extensiva de uma norma de responsabili-

dade civil como o artigo 251.º, tese na qual sus-

tentamos a ocorrência da violação de uma dis-

posição legal destinada a proteger interesses

alheios nos termos do artigo 483.º n.º 1 do Có-

digo Civil, não prescindimos de explorar em

baixo a via do preenchimento do pressuposto da

responsabilidade civil da ilicitude por via do

abuso de direito e a da responsabilidade civil

pré-contratual.

(B) Abuso de Direito

Atentas as dificuldades notadas no preenchi-

mento do requisito da ilicitude da responsabili-

dade civil extracontratual, previsto no artigo

483.º do Código Civil, cabe ainda verificar se,

no caso base em análise, estamos perante uma

situação de abuso de direito (artigo 334.º do

Código Civil), figura que constitui uma outra

forma de ilicitude para efeitos de responsabili-

dade civil extracontratual.

Nos termos do artigo 334.º do Código Civil, “É

ilegítimo o exercício de um direito, quando o

titular exceda manifestamente os limites impos-

tos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim

social ou económico desse direito”.

No âmbito deste preceito, e de acordo com Ma-

nuel Carneiro da Frada, escrevendo em 1997

sobre o problema da imputação dos danos cau-

sados a terceiros por auditores de sociedades,

matéria que anteriormente à entrada em vigor

do Cód.VM era análoga à do problema da fixa-

ção da contrapartida de OPA por auditor inde-

pendente nos termos do artigo 188.º n.º 2 , por

estar em causa em ambos os casos a existência

de danos patrimoniais puros que escapam à

cláusula geral de responsabilidade civil cons-

tante do artigo 483.º do Código Civil e em rela-

ção aos quais inexiste/inexistia uma qualquer

norma específica de responsabilidade civil,

“Torna-se possível, pelo aproveitamento do

32- Cfr. Manuel Carneiro da Frada, Uma «Terceira Via» no Direito da Responsabilidade Civil – O problema da imputação dos danos causados a terceiros por auditores de sociedades, págs. 66 e 67, Almedina, 1997; No mesmo sentido, Margarida Azevedo de Almeida, ob. cit., págs. 23 e 24. 33- Cfr. artigo 389.º n.º 1 als. a) e c). 34- O n.º 1 do artigo 67.º do EOROC determina que “Os revisores oficiais de contas devem desempenhar as funções profissionais para que forem designados pela Ordem, salvo se existir qualquer incompatibilidade ou impedimento”.

23 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

conteúdo delitual da proscrição do abuso,

construir uma protecção dos danos patrimoni-

ais puros, apesar da não tutelabilidade de prin-

cípio destas lesões em sede delitual e não obs-

tante a inexistência de disposições de protecção

que consintam essa tutela”35 .

Segundo o mesmo autor, tem especial relevân-

cia, entre as diferentes modalidades constantes

do artigo 334.º do Código Civil, o abuso de di-

reito por atuação contrária aos bons costumes36,

exprimindo estes “padrões de conduta mínimos

a observar em geral pelos sujeitos, estejam ou

não inseridos em relações contratuais” 37.

Na determinação da abrangência da noção de

bons costumes, entende este autor que “a indu-

ção de terceiros em erro através de informa-

ções incorrectas pode consubstanciar uma in-

fracção dos bons costumes. Designadamente se

terceiros podiam legitimamente esperar do au-

ditor uma informação fiável, em virtude por

exemplo da sua preparação específica e este,

conhecendo embora a importância dessa infor-

mação para terceiros, procedeu com inaceitá-

vel ligeireza ou negligência. Deste modo, a vio-

lação grave de deveres profissionais originan-

do danos patrimoniais puros pode ser ofensiva

dos bons costumes.

Deve atender-se também ao modo e às circuns-

tâncias de comportamento do lesante, à forma,

em suma, como a lesão é perpetrada. Nos casos

de danos patrimoniais provocados por informa-

ções inexactas ou insuficientes, poderá haver

ofensa aos bons costumes se aquele que as

prestou tinha a consciência de que a sua negli-

gência podia provocar, intoleravelmente, uma

situação objectiva de indução em erro de ter-

ceiros. Não parece também de fechar completa-

mente a porta a que também a leviandade ou a

ligeireza possam ser suficientes para a valora-

ção de uma conduta como contrária aos bons

costumes; sobretudo em situações em que o

prestador da informação dispunha de uma pre-

paração profissional específica e actuava no

exercício da sua actividade e em que a sua con-

duta tenha revelado uma insensibilidade espe-

cialmente grave e incorrecta, ponderadas essas

circunstâncias, em face do risco de dano a que

terceiros ficavam sujeitos.(…)

Em áreas, como a dos mercados de capitais,

extraordinariamente sensíveis às informações

disponibilizadas por auditores (…), é forçoso

aceitar a relevância das informações que se

prestam”38 (sublinhados do autor).

Para efeitos do presente estudo, é a intervenção

negligente do auditor independente no procedi-

mento de registo da OPA que, por não respeitar

as regras de avaliação de empresas generica-

mente aceites, leva à divulgação imediata ao

público da contrapartida mínima em termos não

equitativos e não definitivos e induz os investi-

dores em erro quanto ao desenrolar da OPA,

provocando-lhes os danos referidos no subcapí-

tulo 3.2.4 infra.

A atuação do auditor independente nesta sede

considera-se especialmente censurável, na

medida em que a sua preparação profissional

específica e a sua credibilidade enquanto

revisor oficial de contas inscrito na OROC

A Responsabilidade Civil do Auditor Independente...: 23

35- Cfr. Carneiro da Frada, Uma «Terceira Via»…, pág. 50; No mesmo sentido, Sinde Monteiro, Responsabilidade por Conselhos, Reco-mendações ou Informações, pág. 547, Almedina, 1989. 36- Carneiro da Frada desconsidera a este propósito o recurso aos limites impostos pela boa fé porque, nas suas palavras “o princípio da boa fé requer ordinariamente que entre os sujeitos exista uma relação especial, particular, para que seja chamado a aplicar-se” (Uma «Terceira Via»…, pág. 53). Ora, assumindo as regras da boa fé, como se verá, um papel central também em sede de culpa in contrahendo, onde se mantém a exigência dessa relação especial (neste sentido, Margarida Azevedo de Almeida, ob. cit., pág. 26), e assentando conse-quentemente Carneiro da Frada a responsabilização dos auditores perante investidores em sede de culpa in contrahendo na relação especial que se forma entre os auditores e os investidores, em virtude das circunstâncias em que aqueles são chamados a intervir e das suas compe-tências profissionais, não se destrinça qual a razão pela qual, para este autor, os limites impostos pela boa fé em sede de abuso de direito não relevam para estes efeitos. 37- Carneiro da Frada, Uma «Terceira Via»…, pág. 55. No mesmo sentido, Sinde Monteiro, ob. cit., págs. 547 e ss. 38- Carneiro da Frada, Uma «Terceira Via»…, pág. 58 e 59.

24 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

(preparação e credibilidade essas que são devi-

damente reconhecidas e valorizadas pelo mer-

cado), juntamente com o facto de a sua inter-

venção ter origem na lei e por decisão da pró-

pria CMVM – artigo 188.º n.º 2 –, são particu-

larmente suscetíveis de transmitir a confiança

necessária aos investidores e potenciais investi-

dores em ações da sociedade visada para toma-

rem as suas decisões de investimento assumin-

do que a contrapartida mínima da OPA estava

adequada e definitivamente fixada no montante

inicialmente determinado pelo auditor indepen-

dente.

Acresce que, pelas mesmas razões, é ainda pre-

visível para o auditor independente que, divul-

gada ao mercado a contrapartida mínima da

OPA nos termos do artigo 188.º n.º 4, os inves-

tidores venham a confiar nessa informação e a

basear nela as suas decisões de investimento até

ao registo da oferta pela CMVM, resultando daí

obrigações especiais daquele perante estes,

obrigações essas que no caso em análise são

potencialmente originadoras de responsabilida-

de civil.

Todos estes fatores, juntamente com o facto de

ser do conhecimento geral que, no âmbito do

mercado de capitais, as informações prestadas

pelos profissionais envolvidos são tendentes a

afetar o preço dos valores mobiliários em ques-

tão, leva à conclusão de que, por um lado, a

fixação da contrapartida por auditor indepen-

dente é de molde a influenciar as decisões de

investimento de investidores (e potenciais in-

vestidores) da sociedade visada e que, por outro

lado, o auditor independente – indicado pela

OROC a pedido da CMVM – não pode deixar

de ter consciência disso mesmo.

Pelo que, tendo em conta o acima exposto rela-

tivamente à fixação da contrapartida mínima da

OPA em termos não equitativos pelo auditor

independente, podemos estar perante uma situa-

ção de abuso de direito, por a atuação do audi-

tor independente exceder manifestamente os

limites impostos pelos bons costumes (artigo

334.º do Código Civil), na medida em que não

respeita as regras de avaliação de empresas

genericamente aceites, levando por isso ao pre-

enchimento do requisito da ilicitude por esta

via.

Não se pode deixar de notar aqui que existem

algumas fragilidades inerentes à configuração

da atuação do auditor independente como ilícita

por via do abuso de direito, nomeadamente re-

lativamente ao facto de não ser absolutamente

claro se o auditor independente, quando fixa a

contrapartida mínima da OPA ao abrigo do arti-

go 188.º n.º 2, está na realidade a exercer um

direito que possa ser objeto de abuso.

Este problema não estará no entanto aqui pre-

sente, na medida em que o artigo 67.º n.º 1 do

Estatuto da OROC estabelece o dever de os re-

visores oficiais de contas desempenharem as

funções profissionais para que forem designa-

dos pela OROC, dever ao qual corresponde na-

turalmente, não só a obrigação de efetuar a tare-

fa para a qual foram nomeados, mas também o

direito a efetuar efetivamente essa tarefa e a

cobrar os respetivos honorários.

Deste modo, em virtude do estatuto que advém

da sua inscrição na OROC e da sua designação

como auditor independente pela CMVM

(através da OROC), o auditor independente

tem, não só o dever de fixar a contrapartida mí-

nima da OPA em termos equitativos, mas tam-

bém o direito a efetuar efetivamente esse traba-

lho e a cobrar pelo mesmo, pelo que entende-

mos estar perante o exercício de um direito por

parte do auditor independente que, in casu, se

poderia ter por abusivo.

De qualquer forma, conforme já referido, reco-

nhecendo as fragilidades inerentes a esta posi-

ção, analisamos ainda no subcapítulo 3.3 infra a

possibilidade alternativa de, no caso em análise,

ancorar a obrigação de o auditor independente

indemnizar certos investidores em ações da so-

ciedade visada, na responsabilidade civil pré-

contratual.

25 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

3.2.3 Culpa

Preenchido o pressuposto da ilicitude por via do

artigo 483.º n.º 1 do Código Civil ou do abuso

de direito, passamos agora para o pressuposto

da culpa, cujo ónus da prova caberá aos investi-

dores lesados, nos termos do artigo 487.º n.º 1

do Código Civil.

O critério de aferição da culpa é o constante do

n.º 2 do mesmo preceito, onde se estabelece que

“A culpa é apreciada (…) pela diligência de

um bom pai de família, em face das circunstân-

cias de cada caso”.

Relativamente às modalidades da culpa, a con-

duta do agente pode ser qualificada como:

a) Dolosa, caso este (i) tenha querido direta-

mente realizar o facto ilícito (dolo direto),

(ii) tenha previsto o facto ilícito como conse-

quência necessária da sua conduta (dolo ne-

cessário), ou (iii) tenha previsto a produção

do facto ilícito como uma consequência

eventual da sua conduta (dolo eventual); ou

b) Negligente (atuando com mera culpa, na

terminologia do artigo 483.º do Código Ci-

vil), se (i) o agente previr a produção do fac-

to ilícito como possível, mas por leviandade,

precipitação, desleixo ou incúria, entender

que o mesmo não vai ocorrer e apenas por

essa razão não toma as precauções necessá-

rias para o evitar (negligência consciente),

ou (ii) se o agente não chegar sequer, por

imprevidência, descuido, imperícia ou inap-

tidão, a conceber a possibilidade de o facto

se verificar (negligência inconsciente)39.

Centrando-se a análise no caso base subjacente

ao presente estudo, conforme exposto no subca-

pítulo 3.1 supra, deve-se entender que o auditor

independente não atuou com a diligência que

lhe era exigível enquanto auditor independente

designado pela CMVM (através da OROC) pa-

ra determinar a contrapartida mínima da OPA

em termos equitativo, sendo-lhe imputável pelo

menos uma atuação de caráter negligente, ou

com mera culpa.

A conduta do auditor independente não corres-

pondeu à “diligência de um bom pai de famí-

lia”40, na medida em que não usou da diligên-

cia, cuidado e zelo que lhe eram exigíveis na

determinação das variáveis a ter em conta na

avaliação das ações da sociedade visada em

termos equitativos, nem demonstrou a aptidão

técnica que lhe era exigível enquanto auditor

independente designado pela CMVM, através

da OROC, visto que o não cumprimento das

regras de avaliação de empresas genericamen-

te aceites levaria necessariamente, como acima

se demonstrou, a uma avaliação deficiente do

valor das ações desta.

De facto, aceitando as considerações tecidas a

este propósito pela maioria da doutrina alemã,

Antunes Varela entende que se deve introduzir

na determinação da negligência “um padrão

objectivo e abstracto, não só quanto à diligên-

cia da vontade, como aos conhecimentos e à

capacidade ou aptidão exigíveis às pessoas”,

sendo certo que “estes conhecimentos e apti-

dões objetivamente exigíveis podem variar, no

entanto, de profissão para profissão”41 .

Neste caso concreto, resulta da competência

técnica associada a um revisor oficial de contas

inscrito na OROC e designado pela CMVM

como auditor independente para determinar a

contrapartida mínima de uma OPA nos termos

do artigo 188.º n.º 2, a exigibilidade de esse

revisor oficial de contas, na determinação da

contrapartida mínima de uma OPA, seguir as

regras de avaliação de empresas genericamen-

te aceites.

A Responsabilidade Civil do Auditor Independente...: 25

39- Antunes Varela, ob.cit., págs. 569 a 574. 40- É de notar que, conforme refere Antunes Varela, “a figura do bom pai de família (…) é um conceito simbólico destinado a cobrir, não só a actuação do homem na chefia da sociedade familiar, mas todos os variados sectores da vida de relação, por onde se reparte a activi-dade das pessoas” (ob. cit., pág. 576). 41- Ob. Cit., pág. 581.

26 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Entendemos assim que a conduta do auditor

independente foi negligente aquando da deter-

minação inicial da contrapartida mínima da

OPA em termos não equitativos, estando por

isso preenchido o requisito da responsabilidade

civil da culpa – artigos 483.º e 487.º do Código

Civil –, na medida em que, por um lado, ao não

seguir as regras de avaliação de empresas ge-

nericamente aceites, atuou sem a diligência,

cuidado e zelo que lhe eram exigíveis e, por

outro lado, não demonstrou os conhecimentos e

aptidões que lhe eram também exigíveis en-

quanto auditor independente designado pela

CMVM (através da OROC) para determinar a

contrapartida mínima da OPA ao abrigo do arti-

go 188.º n.º 2 do Código Civil e registado como

revisor oficial de contas na OROC42.

3.2.4 Dano

Nos termos do artigo 483.º do Código Civil, a

obrigação de indemnizar incide sobre os danos

resultantes do facto ilícito praticado.

Conforme já referido, estamos perante duas

situações a analisar separadamente, relativa-

mente aos danos que poderiam ser invocados

pelos investidores em ações da sociedade visa-

da.

A primeira diz respeito aos investidores que

adquiriram ações depois de divulgada a contra-

partida mínima da OPA, conforme determinada

inicialmente pelo auditor independente43, e até

ao dia em que a mesma seria corrigida44, cujo

dano corresponderia, de grosso modo, à dife-

rença entre o preço de aquisição das suas ações

e o valor a que acabariam por as alienar na

OPA45, valor ao qual acresceriam as respetivas

comissões de aquisição e de alienação.

A segunda diz respeito aos investidores que, já

sendo titulares de ações da sociedade visada

antes da fixação inicial da contrapartida mínima

da OPA, decidiram antes dessa data alienar em

mercado ações da visada a um preço situado

entre a contrapartida da OPA a final e um preço

inferior ao divulgado inicialmente pelo auditor

independente46 e tendo condições de mercado

para o fazer, abstiveram-se de prosseguir por,

na sequência da fixação inicial da contrapartida

mínima da OPA pelo auditor independente, te-

rem tido a expectativa de vir a alienar essas

ações na OPA a esse preço47.

Relativamente a estes últimos casos, e assumin-

do que estes investidores conseguiriam provar a

existência desse dano (isto é, que tinham tido

mesmo a intenção de alienar as ações e que teri-

am na realidade conseguido fazê-lo se não ti-

vessem recuado em virtude da atuação do audi-

tor independente), o que se afiguraria particu-

larmente difícil neste caso48, seria de considerar

que a atuação do auditor independente lhes pro-

vocou um dano, que corresponderia generica-

mente à diferença entre o preço a que teriam

alienado as ações caso não tivessem recuado na

sua decisão de desinvestimento e o preço a que

acabariam por as alienar na OPA.

42- Faz-se ainda referência ao facto de a qualificação da atuação do auditor independente como negligente não obstar à sua responsabiliza-ção pelos danos patrimoniais puros causados aos investidores em questão por via do abuso de direito. Contrariamente ao que sucede no direito alemão, onde se encontra prevista uma disposição de responsabilidade civil delitual que possibilita o ressarcimento de danos pura-mente patrimoniais causados contra os bons costumes, mas somente em situação de dolo (§ 826 do BGB), no direito português o instituto do abuso de direito, seguindo o regime geral da responsabilidade civil extracontratual, permite a responsabilização por danos causados por via de atuações meramente negligentes (Carneiro da Frada, Uma «Terceira Via»…, págs. 51 e 55, e Sinde Monteiro, ob. cit., pág. 181). 43- No caso da OPA da SGL Carbon sobre a Fisipe, € 0,26 por ação. 44- No caso da OPA da SGL Carbon sobre a Fisipe, € 0,20 por ação. 45- No caso da OPA da SGL Carbon sobre a Fisipe, € 0,20 por ação. 46- No caso da OPA da SGL Carbon sobre a Fisipe, entre os € 0,20 e os € 0,25 por ação. 47- No caso da OPA da SGL Carbon sobre a Fisipe, € 0,26 por ação. 48- A questão da prova será particularmente delicada, tendo em conta que seria necessário demonstrar, não só que o investidor tinha deci-dido desinvestir, tendo deixado de o fazer em razão da fixação da contrapartida mínima da OPA pelo auditor independente, mas também que a ordem de venda que o mesmo alega que teria dado seria efetivamente executada em mercado, havendo quem comprasse ao preço a que o desinvestimento teria alegadamente ocorrido.

27 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Deste modo, conclui-se que o requisito da res-

ponsabilidade civil do dano estaria preenchido,

mas somente em relação:

a) Aos investidores que adquiriram ações de-

pois de divulgada a contrapartida mínima da

OPA inicialmente determinada pelo auditor

independente e até ao dia em que a mesma

foi corrigida; e

b) Aos investidores que, já sendo titulares de

ações da sociedade visada antes da fixação

inicial da contrapartida mínima da OPA,

decidiram antes dessa data alienar em mer-

cado ações da visada a um preço situado en-

tre a contrapartida da OPA a final e um pre-

ço inferior ao divulgado inicialmente pelo

auditor independente e tendo condições de

mercado para o fazer, abstiveram-se de pros-

seguir por, na sequência da fixação inicial da

contrapartida mínima da OPA pelo auditor

independente, terem tido a expectativa de vir

a alienar essas ações na OPA a esse preço.

3.2.5 Nexo da Causalidade

Nos termos do artigo 563.º do Código Civil, “a

obrigação de indemnização só existe em rela-

ção aos danos que o lesado provavelmente não

teria sofrido se não fosse a lesão”.

É consensual na doutrina portuguesa, em virtu-

de do conteúdo dos trabalhos preparatórios do

Código Civil, que este preceito consagra a teo-

ria da causalidade adequada, o que significa

que, para que um dano seja indemnizável por

quem o provocou, é necessário que o facto que

lhe deu origem, por um lado, tenha sido condi-

ção sine qua non desse dano e, por outro lado,

seja em abstrato uma causa adequada do mes-

mo49.

Relativamente ao conceito de “causa adequa-

da”, a doutrina divide-se, genericamente, numa

formulação de sentido positivo (mais restrita) e

numa formulação de sentido negativo (mais

ampla), sendo certo que a formulação do artigo

563.º do Código Civil é inconclusiva quanto a

este aspeto.

De acordo com a formulação de sentido positi-

vo, mais restrita, “o facto será causa adequada

do dano, sempre que este constitua uma conse-

quência normal ou típica daquele, ou seja, sem-

pre que, verificado o facto, se possa prever o

dano como uma consequência natural ou como

um efeito provável dessa verificação”50 .

De acordo com a formulação de sentido negati-

vo, mais ampla, “o facto que actuou como con-

dição do dano só deixará de ser considerado

como causa adequada se, dada a sua natureza

geral, se mostrar de todo em todo indiferente

(…) para a verificação do dano, tendo-o provo-

cado só por virtude das circunstâncias excepci-

onais, anormais, extraordinárias ou anómalas,

que intercederam no caso concreto”51 .

Da análise destas duas formulações resulta que

é indiferente para estes efeitos determinar qual

é na realidade a formulação do conceito de cau-

sa adequada que o artigo 563º do Código Civil

adotou, na medida em que, seja qual for a for-

mulação que se adote, a fixação inicial da con-

trapartida mínima da OPA pelo auditor inde-

pendente seria causa adequada:

a) Tanto dos danos invocados provocados

a investidores que adquiriram ações na se-

quência da divulgação inicial da contraparti-

da mínima da OPA pelo auditor independen-

te e até ao dia em que a mesma foi corrigida;

A Responsabilidade Civil do Auditor Independente...: 27

49- Antunes Varela, ob. cit., pág. 900. 50- Antunes Varela, ob. cit., pág. 890. 51- Antunes Varela, ob. cit., págs. 890 e 891.

28 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

a) Como dos danos provocados a investidores

que, já sendo titulares de ações da sociedade

visada antes da fixação inicial da contrapar-

tida mínima da OPA, decidiram antes dessa

data alienar em mercado ações da visada a

um preço situado entre a contrapartida da

OPA a final e um preço inferior ao divulga-

do inicialmente pelo auditor independente e

tendo condições de mercado para o fazer,

abstiveram-se de o fazer por, na sequência

da fixação inicial da contrapartida mínima

da OPA pelo auditor independente, terem

tido a expectativa de vir a alienar essas ações

na OPA a esse preço.

De facto, se se confrontar os factos relevantes

do caso em análise com a formulação mais res-

trita do conceito de causa adequada (a formula-

ção positiva), verifica-se desde logo que é per-

feitamente possível prever o dano causado aos

investidores aqui em questão como uma conse-

quência natural ou como um efeito provável da

fixação errónea da contrapartida mínima da

OPA pelo auditor independente e subsequente

correção, tendo em conta a confiança que os

investidores naturalmente depositam no caráter

definitivo da contrapartida mínima da OPA, tal

como fixada por aquele e divulgada ao público

pela CMVM nos termos do artigo 188.º n.º 4.

Entendemos desta forma que a conduta do audi-

tor independente determina o preenchimento do

requisito da responsabilidade civil do nexo de

causalidade relativamente aos dois tipos de situ-

ações acima referidos.

Estando preenchidos os requisitos da responsa-

bilidade civil do auditor independente relativa-

mente a estes investidores, haveria naturalmen-

te lugar à obrigação de aquele os indemnizar,

nos termos que se indicam em baixo no subca-

pítulo 3.4 infra.

Em todo o caso, e tendo em conta a já mencio-

nada fragilidade inerente ao preenchimento do

requisito da ilicitude por via do abuso de direi-

to, analisamos em baixo a possibilidade de an-

corar a obrigação de indemnizar os investidores

em causa, não na responsabilidade civil extra-

contratual, mas na responsabilidade civil pré-

contratual.

3.3 Responsabilidade Civil Pré-Contratual

O artigo 227.º do Código Civil, sob a epígrafe

“Culpa na formação dos contratos” (culpa in

contrahendo), determina que “Quem negoceia

com outrem para conclusão de um contrato

deve, tanto nos preliminares como na formação

dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob

pena de responder pelos danos que causar à

outra parte”.

A responsabilidade civil resultante da culpa in

contrahendo, não se enquadrando no domínio

da responsabilidade extracontratual, nem no

domínio da responsabilidade contratual52, tem

sido entendida por alguma doutrina como uma

terceira via da responsabilidade civil relativa ao

processo de negociação e formação de um con-

trato.

No caso de que aqui nos ocupamos, os contra-

tos cujo processo de formação daria lugar à

obrigação de indemnizar são:

a) Por um lado, os contratos de aquisição de

ações da sociedade visada que foram cele-

brados depois de divulgada inicialmente a

contrapartida mínima da OPA53 pelo auditor

independente, até à data em que a mesma foi

corrigida; e

b) Por outro lado, os contratos de alienação de

ações que não terão chegado a ser celebra-

dos por o potencial alienante ter desistido de

alienar as ações da sociedade visada que já

52- Pois, nas palavras de Carneiro da Frada, “os deveres de comportamento exigidos durante as negociações ou a formação do contrato, embora específicos, não constituem obrigações em sentido estrito, pois não são deveres de prestar” (Uma «Terceira Via»…, pág. 95). 53- No caso da OPA da SGL Carbon sobre a Fisipe, € 0,26 por ação.

29 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

detinha em carteira a um preço situado entre

a contrapartida da OPA a final e um preço

inferior ao divulgado inicialmente pelo audi-

tor independente54, por, na sequência da fi-

xação inicial da contrapartida mínima da

OPA pelo auditor independente55, ter tido a

expectativa de vir a alienar essas ações na

OPA a esse preço.

Segundo Carneiro da Frada, “Os ditames da

boa fé exprimem-se num conjunto variado de

deveres – entre os quais, seguramente, deveres

de informação (correcta) -, que a doutrina tem

reconduzido à ideia de protecção da confiança

(…). Uma particularidade decisiva é dada pelo

facto de os danos ressarcíveis poderem ser,

como o são aliás o mais das vezes, puramente

patrimoniais”56.

Esses deveres de informação correta, no caso

base de que nos ocupamos, são referentes ao

estabelecimento da contrapartida mínima da

OPA pelo auditor independente em termos

equitativos e definitivos, nos termos previstos

no artigo 188.º n.º 2, e com respeito pelos requi-

sitos de qualidade da informação constantes do

artigo 7.º n.º 1.

Seguindo desenvolvimentos doutrinários com

origem na Alemanha, alguma doutrina portu-

guesa tem vindo a entender que a responsabili-

dade pré-contratual pode abranger, para além

das partes contratantes (ou potencialmente con-

tratantes), “certos terceiros que intervêm na

negociação ou na formação do contrato”57 .

A responsabilização desses terceiros resultará

assim “do reconhecimento que outros sujeitos

além das partes propriamente ditas podem ter

no desenrolar do processo tendente à conclu-

são do negócio”, sendo certo que “esses sujei-

tos ficam, nessa medida, vinculados de igual

modo pelos ditames da boa fé[58], respondendo

pelos prejuízos que causam se não os aca-

tam”59.

Esta responsabilização de terceiros ocorrerá

quando a sua intervenção, nomeadamente atra-

vés da emissão de informações, seja de molde e

tenha em concreto influenciado as decisões de

investimento das partes, tendo estas fundado a

sua decisão de contratar nessas informações e

sofrido danos por causa das mesmas, vendo por

isso ser frustrada a confiança que depositaram

nos terceiros.

Conforme refere Carneiro da Frada, surge aqui

“uma base de responsabilização relevantíssima

daqueles sujeitos que, em virtude das suas qua-

lificações profissionais elevadas, exercem uma

influência dominante na decisão de contratar

ou nos seus termos (…). Descortina-se pois um

fundamento importante de imputação de danos

a profissionais especializados como conselhei-

ros financeiros ou fiscais, contabilistas e audi-

tores. (…) se esses profissionais concitaram a

confiança da contraparte na relação de forma-

ção do contrato, então estão vinculados a uma

actuação de boa fé. E mais: pensamos que se

constitui então entre eles uma relação jurídica

que se traduz na necessidade de observância de

deveres de lealdade, informação e veracida-

de”60 (sublinhado do autor).

Conclui assim o mesmo autor, propondo

aparentemente uma interpretação extensiva do

A Responsabilidade Civil do Auditor Independente...: 29

54- No caso da OPA da SGL Carbon sobre a Fisipe, entre os € 0,20 e os € 0,25 por ação. 55- No caso da OPA da SGL Carbon sobre a Fisipe, € 0,26 por ação. 56- Cfr. Carneiro da Frada, Uma «Terceira Via»…, pág. 96. 57- Carneiro da Frada, Uma «Terceira Via»…, pág. 98; ver também, do mesmo autor, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, págs. 115 a 159, Almedina, 2004; Sinde Monteiro, ob. cit., págs. 52 e 549, n. 330; e Gabriela Figueiredo Dias, Fiscalização de Sociedades e Responsabilidade Civil, pág. 99 e 100, Coimbra Editora, 2006. 58- Onde se incluem, conforme se viu, deveres de informação, que, in casu, cabiam ao auditor independente por força do artigo 188.º. 59- Cfr. Carneiro da Frada, Uma «Terceira Via»…, pág. 9. 60- Carneiro da Frada, Uma «Terceira Via»…, pág. 98.

30 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

artigo 227.º n.º 1 do Código Civil por via do

mecanismo da interpretação teleológica, que,

não obstante a letra desse preceito apenas se

referir às partes de um processo de formação

contratual, pode-se dizer que “a relação de ne-

gociação se firma entre aqueles sujeitos que

intervêm com autonomia no processo de forma-

ção do contrato” e que, por isso, “torna-se ra-

zoável a imputação, a esses sujeitos, de deveres

pré-contratuais”61 .

No caso base em análise, a imputação de deve-

res pré-contratuais ao auditor independente,

perante esses investidores, relativamente ao

acerto e estabilidade da informação sobre a con-

trapartida mínima da OPA, decorre dos seguin-

tes fatores:

a) A garantia de qualidade expressa nas suas

qualificações profissionais, garantidas aos

olhos do público pela sua inscrição na

OROC e consequente estatuto de ROC;

b) A confiança inerente ao procedimento da sua

designação para determinação da contrapar-

tida mínima da OPA, que decorre da lei e da

vontade da CMVM (artigo 188.º n.º 2) e visa

assegurar, não só perante o oferente, mas

também perante os acionistas da sociedade

visada e o mercado em geral, a sua indepen-

dência; e

c) O facto de a contrapartida mínima fixada ser

divulgada ao público imediatamente pela

CMVM após a sua fixação, por via do meca-

nismo previsto no artigo 188.º n.º 4 , o que é

demonstrativo de que a informação sobre a

contrapartida mínima da OPA é suposto ter

caráter definitivo e destina-se ao mercado de

capitais em geral e respetivos potenciais in-

vestidores em ações da sociedade visada.

Todos estes fatores criam uma justificada rela-

ção especial de confiança entre o auditor inde-

pendente e os investidores em ações da socieda-

de visada, sendo por isso expectável que estes

negociassem (ou se abstivessem de negociar)

nessas ações com base na informação disponi-

bilizada pelo auditor independente sobre a con-

trapartida mínima da OPA, sendo certo que a

inadequação da contrapartida mínima divulga-

da, desconforme às regras de avaliação de em-

presas genericamente aceites e aos ditames da

boa fé, é tendente a comprometer inevitavel-

mente os resultados que estes investidores espe-

ravam obter com a negociação em ações da vi-

sada.

Estão assim preenchidos os pressupostos da

proteção da confiança apontados por Carneiro

da Frada62 e que permitem a responsabilização

de terceiros em sede de culpa in contrahendo,

consubstanciando-a na existência de uma liga-

ção especial entre o lesado (certos investidores

em ações da sociedade visada) e o terceiro em

questão (auditor independente), em virtude de a

divulgação da informação sobre a contrapartida

mínima da OPA fazer parte do processo de for-

mação do negócio jurídico que levou à aquisi-

ção, ou à não alienação, das ações por esses

investidores, ligação especial essa que era do

conhecimento do auditor independente.

Essa responsabilização decorrerá assim de o

auditor independente estar obrigado a adotar

uma conduta diligente e cuidadosa na determi-

nação da contrapartida mínima de OPA, de

acordo com os ditames da boa fé, de modo a

evitar que os investidores envolvidos sofram

danos, o que manifestamente não ocorreu no

caso base em análise, conforme se verificou

supra, em virtude de o auditor ter fixado inade-

quadamente a contrapartida mínima da OPA

(i.e., em termos não equitativos), por não ter

respeitado as regras de avaliação de empresas

genericamente aceites a que estava vinculado.

61- Carneiro da Frada, Uma «Terceira Via»…, págs. 100 e 101. 62- Cfr. Carneiro da Frada, Uma «Terceira Via»…, págs. 103 e 104; Sobre este ponto, ver também, António Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, págs. 1243 e ss..

31 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Para concluir este tópico relativo à responsabili-

dade pré-contratual, resta dizer que a atuação

ilícita do auditor independente em sede de cul-

pa in contrahendo não prescinde do preenchi-

mento dos restantes pressupostos da responsabi-

lidade civil para dar lugar à obrigação de in-

demnizar.

De qualquer forma, como acima se verificou,

entendemos que esses pressupostos se encon-

tram preenchidos neste caso concreto63, relati-

vamente:

a) Aos investidores que, em virtude do estabe-

lecimento da contrapartida mínima pelo au-

ditor independente, adquiriram ações na se-

quência da divulgação da mesma, até ao dia

em que foi corrigida; e

b) Aos investidores que, pela mesma razão e no

mesmo período, deixaram de alienar ações

da sociedade visada que já detinham em car-

teira, a um preço situado entre a contraparti-

da da OPA a final e um preço inferior ao

divulgado inicialmente pelo auditor indepen-

dente.

3.4 Obrigação de indemnizar

Estabelecido que está o preenchimento dos

pressupostos da responsabilidade civil do audi-

tor independente perante certos investidores em

ações da sociedade visada, seja por via da res-

ponsabilidade civil extracontratual, seja, alter-

nativamente, por via da responsabilidade civil

pré-contratual, resta agora determinar em que

termos é que o auditor independente ficaria

obrigado a indemnizar esses investidores.

Nos termos do artigo 562.º do Código Civil,

deve ser reconstituída a situação que existiria se

não se tivesse verificado o evento que obriga à

reparação do dano, isto é, a fixação inicial da

contrapartida mínima da OPA pelo auditor in-

dependente em montante superior ao que resul-

taria da correta aplicação das normas de avalia-

ção de empresas geralmente aceites.

Neste caso concreto, de acordo com o disposto

no artigo 566.º n.º 1 do Código Civil, a recons-

tituição dessa situação far-se-ia por via da in-

demnização em dinheiro, que teria como medi-

da, nos termos do n.º 2 deste preceito, a diferen-

ça entre a situação patrimonial dos lesados na

data mais recente que pudesse ser atendida no

momento em que fosse fixado o montante da

indemnização, e a situação patrimonial que os

lesados teriam nessa data se não tivessem sofri-

do danos.

Para esse efeito, de acordo com o artigo 564.º

n.º 1 do Código Civil, os lesados teriam de ser

ressarcidos, não só pelo prejuízo que lhes teria

sido causado, mas também pelos benefícios que

deixariam de obter em consequência da lesão.

Deste modo, e em jeito de conclusão, verifica-

se que a situação é a seguinte, relativamente aos

dois grupos de investidores em ações da socie-

dade visada que poderiam vir a ser ressarcidos

das suas perdas pelo auditor independente:

a) Investidores que adquiriram ações da socie-

dade visada na sequência da divulgação ini-

cial da contrapartida mínima da OPA pelo

auditor independente64 e até ao dia em que a

mesma foi corrigida em baixa65, tendo-as

subsequentemente alienado no âmbito da

OPA: deve ser reconstituída a situação que

existiria se o auditor independente tivesse

fixado a contrapartida corretamente ab ini-

tio, o que significa que, nomeadamente,

esses investidores devem ser ressarcidos

A Responsabilidade Civil do Auditor Independente...: 31

63- É de notar relativamente ao pressuposto da culpa que, “violados os deveres específicos impostos pela boa-fé no período pré-contratual, ainda que com mera negligência, se desencadeia a responsabilidade [pré-contratual]. Haverá sem dúvida negligência se, por exemplo, não forem adoptados os critérios seguidos nas auditorias, porque isso falseia a compreensão desses resultados por parte do terceiro que, consabidamente, os vai interpretar.” (Carneiro da Frada, «Uma «Terceira Via»…, pág. 110). 64- No caso da OPA da SGL Carbon sobre a Fisipe, € 0,26 por ação. 65- No caso da OPA da SGL Carbon sobre a Fisipe, para € 0,20 por ação.

32 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

pela diferença entre o preço de aquisição das

suas ações e o valor inferior a que acabaram

por as alienar na OPA66, bem como pelas

respetivas comissões de aquisição e de alie-

nação.

b) Investidores que já sendo titulares de ações

da sociedade visada antes da fixação inicial

da contrapartida mínima da OPA pelo audi-

tor independente, decidiram antes desta data

alienar em mercado as ações da visada que

tinham em carteira a um preço situado entre

a contrapartida da OPA a final e um preço

inferior ao divulgado inicialmente pelo audi-

tor independente67 e tendo condições de mer-

cado para o fazer, abstiveram-se de prosse-

guir, por, na sequência da fixação inicial da

contrapartida mínima da OPA pelo auditor

independente, terem tido a expectativa de vir

a alienar essas ações na OPA a esse preço68:

assumindo que conseguem provar a existên-

cia do dano (isto é, que tinham efetivamente

a intenção de alienar essas ações nessa altura

e que o teriam conseguido se não tivessem

recuado em virtude da atuação do auditor

independente), deve ser reconstituída a situa-

ção que existiria se o auditor independente

tivesse fixado a contrapartida mínima da

OPA corretamente ab initio, o que significa

que, nomeadamente, esses investidores de-

vem ser ressarcidos pela diferença entre o

preço a que teriam alienado as ações caso

não se tivessem abstido de negociar em vir-

tude do estabelecimento inicial da contrapar-

tida mínima da OPA a um preço mais eleva-

do do que o verificado a final, e o preço a

que acabaram por, efetivamente, alienar as

ações na OPA69.

4. Conclusões

A fixação da contrapartida mínima de OPA pe-

lo auditor independente ao abrigo do artigo

188.º n.º 2 é um ato de natureza privada, estan-

do por isso fora da alçada das normas de Direito

Administrativo.

A existência de obrigação de o auditor indepen-

dente indemnizar os investidores em ações da

sociedade visada deverá assim ser aferida de

acordo com as regras de Direito Civil sobre (a)

responsabilidade civil extracontratual, ou (b)

responsabilidade civil pré-contratual.

4.1 Responsabilidade civil extracontratual

A responsabilização do auditor independente

através do instituto da responsabilidade civil

extracontratual poderá ocorrer por violação (i)

dos artigos 188.º n.º 2 e 7.º n.º 1, ou (ii) da cláu-

sula geral de abuso de direito prevista no artigo

334.º do Código Civil. A qualificação da con-

duta do auditor independente como ilícita resul-

tará, em qualquer dos casos, da violação das

regras de avaliação de empresas genericamen-

te aceites.

4.1.1 Responsabilidade civil extracontratual

por violação dos artigos 188.º n.º 2 e 7.º n.º 1

A responsabilização do auditor independente

por violação dos artigos 188.º n.º 2 e 7.º n.º 1

depende de uma interpretação extensiva do arti-

go 251.º que cubra também a violação dos arti-

gos 188.º n.º 2 e 7.º n.º 1, conferindo-lhe caráter

de norma de proteção para efeitos do artigo

66- No caso da OPA da SGL Carbon sobre a Fisipe, a € 0,20 por ação. 67- No caso da OPA da SGL Carbon sobre a Fisipe, entre os € 0,20 e os € 0,25 por ação. 68- No caso da OPA da SGL Carbon sobre a Fisipe, € 0,26 por ação. 69- No caso da OPA da SGL Carbon sobre a Fisipe, a € 0,20 por ação.

33 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

483.º do Código Civil.

4.1.2 Responsabilidade civil extracontratual

por violação do artigo 334.º do Código Civil

A responsabilização do auditor independente

por violação da cláusula geral de abuso de di-

reito prevista no artigo 334.º do Código Civil

depende da qualificação da sua conduta como

contrária aos bons costumes. Tal qualificação

resulta da especial censurabilidade dessa condu-

ta, tendo em conta as circunstâncias envolven-

tes, que são de molde a promover a confiança

dos investidores na licitude da sua atuação e,

consequentemente, no cumprimento das regras

de avaliação de empresas genericamente acei-

tes.

4.2 Responsabilidade civil pré-contratual

A responsabilização do auditor por via da res-

ponsabilidade pré-contratual, prevista no artigo

227.º do Código Civil, é justificada pela relação

de confiança estabelecida entre o auditor e os

investidores em causa, da qual resulta a obriga-

ção de aquele adotar uma conduta diligente e

cuidadosa na determinação da contrapartida

mínima da OPA, o que envolve necessariamen-

te o cumprimento das regras de avaliação de

empresas genericamente aceites.

4.3 Obrigação de indemnizar

Estando verificados os pressupostos de que de-

pende a responsabilidade civil do auditor inde-

pendente por qualquer dos meios propostos

(i.e., por via da responsabilidade civil extracon-

tratual ou da responsabilidade civil pré-

contratual), está este obrigado a indemnizar os

investidores afetados nos termos do artigo 562.º

do Código Civil, reconstituindo a situação que

existiria na sua esfera caso a contrapartida míni-

ma da OPA tivesse sido corretamente determi-

nada ab initio.

A Responsabilidade Civil do Auditor Independente...: 33

34 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Quão enviesado é o comportamento

dos investidores individuais em warrants?1

Margarida Abreu

1. Introdução

Apesar do sucesso que os warrants tiveram em

alguns mercados financeiros, pouco se sabe

sobre o perfil dos investidores que participam e

transacionam este instrumento financeiro com-

plexo. Este artigo procura definir o perfil do

investidor em warrants e testa a existência de

motivos não-racionais que possam explicar o

sucesso do mercado de warrants entre os inves-

tidores individuais portugueses. Com base nas

transações efetivas dos investidores individuais

no mercado financeiro português durante quase

dez anos, examino as características sociode-

mográficas dos investidores em warrants e dis-

cuto a hipótese de que alguns comportamentos

influenciam a predisposição dos investidores

individuais a investir e comercializar warrants.

Mais precisamente, analiso empiricamente as

hipóteses de que o excesso de confiança, o efei-

to de disposição e o prazer de jogar têm impac-

to na participação e na negociação de warrants.

Além disso, procuro diferenciar o perfil e as

diferenças comportamentais entre os investido-

res que negoceiam intensamente warrants e os

investidores que os negoceiam menos frequen-

temente.

O excesso de confiança é provavelmente o des-

vio comportamental mais estudado e confirma-

do empiricamente. Geralmente definido como a

tendência das pessoas de sobrestimar os seus

conhecimentos, a capacidade e a precisão da

informação de que dispõem, bem como da sua

capacidade de estimar e de controlar eventos

futuros, a sobreconfiança é normalmente defini-

da em três perspetivas: má calibração (ver Fis-

chhoff et al. 1977, Lichtenstein et al. 1982 ou

Daniel et al. 1998), efeito melhor do que a mé-

dia ou ilusão de controle (Thompson 1999).

Estas diferentes dimensões do excesso de confi-

ança estão interligadas. Por exemplo, as pessoas

que são excessivamente confiantes sobre as su-

as capacidades tendem a sobrestimar a sua in-

fluência sobre os resultados. Por essa razão,

pode argumentar-se que a melhor forma de

apreender o excesso de confiança é através das

suas consequências. A consequência mais reco-

nhecida do excesso de confiança é o maior vo-

lume de negócios. Os investidores excessiva-

mente confiantes, quer porque sobrestimam a

precisão da informação que possuem, ou porque

pensam ter capacidades de investimento acima

da média, negoceiam mais do que os investido-

res racionais. Para DeBondt e Thaler (1995), o

excesso de confiança é o principal fator com-

portamental necessário para entender o enigma

do excesso de transações.

Odean (1998b) argumenta que o elevado volu-

me de negócios é a consequência mais impor-

tante do excesso de confiança. Statman et al.

(2006) apresenta evidência empírica para o

mercado dos EUA e argumenta que o volume

de negócios é particularmente elevado após um

período de retornos elevados, pois o sucesso do

investimento agrava o excesso de confiança.

1- UECE é financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Este artigo é parte do Strategic Project (UID/ECO/00436/2013).

35 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

No entanto, estas diferentes dimensões do ex-

cesso de confiança não medem o mesmo e a

investigação académica mostra que eles indu-

zem diferentes erros no comportamento finan-

ceiro dos investidores individuais. A tendência

irrealista do investidor de acreditar que as suas

capacidades, conhecimento e aptidão geral para

analisar a informação disponível são melhores

do que a média pode ter um impacto particular-

mente relevante sobre o volume de transações,

particularmente para aqueles que no passado

registaram melhores resultados no mercado. A

intuição por trás desse argumento é que a acu-

mulação de investimentos bem-sucedidos torna

os investidores cada vez mais confiantes e con-

sequentemente incentiva-os a transacionar. De-

vido a um desvio de autoatribuição, os investi-

dores concluem que estão acima da média em

relação às suas capacidades de investimento.

Esse efeito melhor do que a média foi docu-

mentado empiricamente por Glaser e Weber

(2007), os quais fornecem evidência de uma

maior propensão comercial por parte de investi-

dores sobreconfiantes (identificados como

aqueles que pensam que são melhores que a

média em termos de capacidades de investi-

mento ou desempenho passado). Este resultado

também é consistente com outros estudos (ver

Deaves et al. 2009, Graham et al. 2009).

O efeito de disposição é outro desvio comporta-

mental importante, pois as decisões erradas que

suscita acarretam importantes perdas. De facto,

os investidores que demonstram esse desvio

geralmente possuem carteiras pouco diversifi-

cadas e acabam por tomar decisões financeiras

erradas e opostas às sugeridas pelos modelos

racionais de investimento. Rotulado por Shefrin

e Statman (1984), o efeito de disposição descre-

ve a tendência dos investidores para vender títu-

los cujo preço aumenta, os chamados winners,

mantendo em carteira aqueles cujo preço está

em declínio, os losers. Três motivos racionais

podem justificar o efeito de disposição: o rea-

justamento de carteira, os custos de transação e

regimes fiscais diferenciados. No entanto, Ode-

an (1998a) identifica a presença de efeito de

disposição mesmo depois de controlar para o

reajustamento de carteira e para os custos de

transação, e Lakonishok e Smidt (1986) consi-

dera que o efeito de disposição é mais relevante

para explicar a venda de ações com prejuízo do

que os motivos fiscais. Outros trabalhos empíri-

cos documentaram igualmente a existência do

efeito de disposição (Grinblatt e Keloharju

2001, Shapira e Venezia 2001, Dhar e Zhu

2002).

Grande parte da literatura de finanças compor-

tamentais relaciona o efeito de disposição com

a aversão a perdas. Os investidores valorizam

um ganho ou uma perda de títulos relativamente

a um ponto de referência, geralmente o preço de

aquisição do ativo: os agentes reavaliam a sua

carteira observando se os ativos se valorizaram

ou depreciaram em relação ao preço de compra.

Combinando a análise do ponto de referência

com o facto de os investidores serem avessos ao

risco no domínio dos ganhos e favoráveis ao

risco no domínio das perdas, é fácil entender

que, se o preço dos ativos cair e permanecer

abaixo do ponto de referência, os investidores,

que valorizam as perdas mais do que os ganhos,

resistirão a vender esse ativo com perda, contri-

buindo para uma redução da oferta do ativo por

potenciais vendedores. Existem, no entanto,

outras explicações para o efeito de disposição

no domínio das finanças comportamentais. Bar-

beris e Xiong (2009) conclui que a tendência

dos investidores para vender demasiado cedo

ações cujo preço está em alta depende do suces-

so dos investimentos passados.

Se os investimentos passados foram lucrativos,

os agentes tornam-se progressivamente menos

avessos ao risco e passam a revelar mais efeito

de disposição. Muermann e Volkman (2006)

argumenta, com recurso a um modelo dinâmi-

co, que a antecipação de arrependimento ou de

júbilo pode justificar uma estratégia ótima de

venda de winners e a conservação de losers em

carteira; isto é, a antecipação de arrependimento

ou de júbilo contribuem para explicar o efeito

da disposição. Summers e Duxbury (2012)

Quão Enviesado é o Comportamento dos Investidores ... : 35

36 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

favorece a emoção sobre a teoria das antecipa-

ções para explicar o efeito de disposição.

Por último, considero um terceiro fator compor-

tamental a ter em conta para explicar o compor-

tamento dos investidores individuais: o prazer

que alguns investidores retiram do próprio ato

de participar e transacionar nos mercados finan-

ceiros, semelhante ao prazer de jogar nos casi-

nos. Esta motivação para a participação em bus-

ca de prazer deve ser considerada num sentido

amplo, e associada a outros tipos de emoções

positivas (Proyer 2017 menciona interesse ou

satisfação). Algumas pessoas transacionam nos

mercados financeiros apenas porque o simples

ato de transacionar ativos financeiros lhes for-

nece a alegria do jogo. Combinando respostas

de inquéritos a investidores e registos de transa-

ções efetivas, Dorn e Sengmueller (2009) exa-

mina a hipótese de que os motivos de entreteni-

mento conduzem a mais transações numa amos-

tra com mais de 1.000 clientes de uma corretora

alemã. Os autores concluem que, embora o en-

tretenimento não seja o único motivo para as

transações, investidores potencialmente classifi-

cados como sensíveis ao prazer do jogo transa-

cionam mais do que os seus pares e reajustam a

sua carteira (de ações, obrigações, fundos ou

opções) duas vezes mais rapidamente do que os

outros investidores. Na mesma linha de raciocí-

nio, alguns autores argumentam que os investi-

dores que são mais propensos à busca de sensa-

ções fortes, transacionam com mais frequência.

De acordo com Zuckerman (1994), "sensation

seeking is a trait defined by the seeking of var-

ied, novel, complex, and intense sensations and

experiences, and the willingness to take finan-

cial risks for the sake of such experi-

ence" (p.27). Como Grinblatt e Keloharju

(2009) refere, para os investidores propensos a

procurar sensações fortes “the mere act of trad-

ing and the monitoring of a constant flow of

‘fresh stocks’ in one’s portfolio may create a

more varied and novel experience than a buy

and hold strategy" (p.556).

Este estudo contribui para a literatura existente

sobre produtos derivados em alguns aspetos

importantes. Em primeiro lugar, analiso a im-

portância relativa do excesso de confiança, do

efeito de disposição e do prazer do jogo como

determinantes do investimento individual e da

transação de warrants (um produto financeiro

complexo), em comparação com o investimento

e a negociação de ações.

Em segundo lugar, tanto quanto sei, este é o

primeiro estudo que analisa se os investidores

que investem e comercializam com mais fre-

quência têm um perfil diferente dos outros in-

vestidores que transacionam menos frequente-

mente. Por último, ao contrário da maioria dos

estudos empíricos, esta investigação combina o

comportamento real dos investidores de retalho

com um inquérito a esses investidores conduzi-

do pelo supervisor do mercado de valores mobi-

liários (a CMVM).

Começo por demonstrar que os investidores em

warrants são realmente diferentes, não só por-

que possuem características sociodemográficas

específicas, mas também porque revelam desvi-

os comportamentais específicos. Investidores

sobreconfiantes e investidores que exibem efei-

to disposição ou atitude de jogador são mais

propensos a investir em warrants. Em seguida, a

atividade de negociação do investidor é estuda-

da e é testada a hipótese de que os investidores

em warrants transacionam de maneira diferente

dos investidores em ações. Os resultados mos-

tram que a atividade de transação em warrants

aumenta com o excesso de confiança, o efeito

disposição e a atitude de jogador. O mercado de

warrants difere do mercado de ações no sentido

de que a procura de prazer parece contribuir

para aumentar as transações de warrants, ao

mesmo tempo que diminui a atividade de nego-

ciação de ações. Por outras palavras, quando

os investidores são levados a participar e nego-

ciar nos mercados financeiros pelo prazer do

jogo, eles são levados a investir e a transacionar

37 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

produtos financeiros mais complexos como os

warrants em detrimento de instrumentos finan-

ceiros mais simples e mais fáceis de entender

como as ações. Estes resultados são obtidos

após consideração na análise do período em que

o investidor atua no mercado, dividindo-se os

investidores de acordo com a intensidade com

que transacionam. Por último, o efeito de dispo-

sição e a atitude de jogador são tanto mais rele-

vantes para explicar a frequência de negociação

quanto maior a intensidade de transação, mas

não contribuem para a compreensão do com-

portamento dos investidores do quantil mais

baixo de transações. Os investidores com mais

elevada frequência de negociação parecem ser

mais heterogéneos e sem um perfil sociodemo-

gráfico e comportamental claro.

O restante deste artigo está organizado da se-

guinte forma. A próxima seção descreve as ba-

ses de dados e a construção das variáveis

comportamentais. A terceira seção traça o perfil

sociodemográfico dos investidores em warrants

e estuda a importância do excesso de confiança,

do efeito disposição e da atitude de jogador co-

mo determinantes da decisão de participar no

mercado de warrants. Na seção 4 é estudada a

atividade de negociação em ações e em war-

rants. A seção 5 analisa a frequência das transa-

ções e os investidores são divididos de acordo

com a intensidade de negociação de warrants.

Na última seção, são expressas algumas conclu-

sões.

2. Bases de dados e construção das variáveis

2.1 Bases de dados

A base de dados principal utilizada neste estudo

é uma base de dados de transações efetivas re-

gistadas por um dos três principais bancos por-

tugueses, com uma quota de mercado de 15% a

20%. A informação refere-se a todas as contas

de investidores individuais (i.e., de retalho)

existentes nesse banco e inclui os dados demo-

gráficos (estado civil, data de nascimento, géne-

ro, educação, ocupação e residência) do primei-

ro titular da conta. Além disso, inclui informa-

ções sobre todas as transações em instrumentos

financeiros vinculados a essas contas para o

período entre 02/01/1997 e 16/09/2006. Esta

informação inclui a data da transação, o tipo de

transação (compra ou venda), o código ISIN do

instrumento financeiro, a quantidade negociada

e o preço.

No período de quase dez anos coberto por esta

base de dados, 3.620 investidores realizaram

transações em warrants e 491.540 transações

em ações. Assim, para cada 136 investidores

em ações, apenas um negoceia warrants, o que

significa que o mercado deste instrumento deri-

vado é composto por uma pequena percentagem

da população portuguesa.2 Isto pode refletir os

programas de privatização realizados por suces-

sivos governos que levaram muitas famílias

portuguesas a investir no capital de empresas

privatizadas durante esse período, bem como a

maior complexidade dos warrants (em compa-

ração com as ações), que pode desencorajar o

investimento nesse instrumento financeiro. É

também o resultado da introdução tardia deste

instrumento derivado em Portugal. De facto, a

origem dos warrants destacáveis em Portugal

remonta a 1988 (Decreto-Lei n.º 229-B / 88, de

4 de julho) e o quadro legal dos covered war-

rants foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 172/99,

de 20 de maio (que foi seguido pelo Regula-

mento nº 19/99 da CMVM de 10 de novem-

bro).3

Assim, não é surpreendente que, no período

coberto pela base de dados, o número total de

negócios em ações (mais de 3,8 milhões) seja

muito maior que o número total de transações

em warrants (pouco acima de 0,2 milhões), ou

Quão Enviesado é o Comportamento dos Investidores ... : 37

2- De acordo com SFC (2006), 12,6% dos investidores individuais em Hong Kong efetuaram transações em warrants, uma percentagem muito superior à registada em Portugal. 3- A primeira emissão de warrants destacáveis em Portugal foi liderada pelo Banco Comercial de Macau, em 1990, e a primeira emissão de covered warrants foi liderada pelo Banco Santander, em 2000 (Mendes 2012).

38 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

que o número médio de transações em warrants

(ações) por investidor seja de 58,3 (7,8).4 Na

verdade, muitos investidores tiveram o seu pri-

meiro contato com o mercado de ações na se-

quência da privatização de algumas empresas,

mas adquiriram essas ações numa estratégia de

buy and hold ou venderam-nas mais tarde sem

ter reinvestido em novas ações. Pelo contrário,

a maior complexidade dos warrants pode ter

levado alguns investidores a especializarem-se

neste instrumento derivado e, consequentemen-

te, a ser mais ativos, comprando e vendendo

warrants em função das suas expetativas relati-

vamente à evolução do preço do ativo subjacen-

te.

A amostra utilizada neste trabalho foi restrita a

menos investidores. Em primeiro lugar, apenas

foram selecionados os investidores que nego-

ceiam ações e excluíram-se os investidores não

residentes em Portugal. Também exclui o que

designo de "investidores curiosos", isto é, in-

vestidores que só negociaram uma vez em

ações ou warrants. Após a exclusão de algumas

observações para as quais não estava disponível

informação suficiente, a amostra usada inclui

52.768 investidores em ações, dos quais 1.705

também negoceiam warrants durante o período

coberto pela base de dados. Nesta amostra, o

número total de negócios em ações (743.340), é

cerca de 7 vezes maior do que o número total

de negócios em warrants (102.314) e o número

médio de transações em warrants (ações) por

investidor é de 79,0 (13,6).

Este trabalho usa igualmente uma segunda base

de dados. Esta resulta de um inquérito realizado

pela CMVM para identificar as características

dos investidores individuais portugueses.5 O

mais recente foi realizado em 2000 e foi divul-

gado publicamente em maio de 2005 no sítio da

CMVM na internet. Mais de quinze mil indiví-

duos responsáveis ou corresponsáveis pelas

decisões de investimento dentro da família fo-

ram contactados entre 2 de outubro e 22 de de-

zembro de 2000 usando a técnica da entrevista

direta. Todos os investidores identificados no

questionário (1.559) foram entrevistados usan-

do um questionário estruturado mais detalhado.

Cada questionário inclui questões sociodemo-

gráficas, questões relacionadas com a natureza

e o tipo de ativos detidos e a experiência de ca-

da investidor, mas não há questões relacionadas

com a dimensão da carteira, nem com os valo-

res investidos em cada tipo de ativos. Há tam-

bém questões relacionadas com o comporta-

mento do investidor nos mercados financeiros

(frequência das transações, fontes de informa-

ção utilizadas, etc.) e com o conhecimento do

investidor sobre os mercados e os intermediá-

rios financeiros que operam nos mercados. Esta

base de dados é usado para calcular proxies pa-

ra as variáveis melhor do que a média e atitude

de jogador.

2.2 Variáveis comportamentais

Duas abordagens são usadas para tratar a ques-

tão do excesso de confiança. Por um lado, é

seguida a abordagem de Goetzmann e Kumar

(2008) e Bailey et al. (2008), e um investidor é

considerado como tendo excesso de confiança

quando a sua atividade de transação estiver no

quartil superior da distribuição das transações

em ações (ou seja, está no quartil superior do

número de negócios em ações) e o seu desem-

penho estiver no quartil inferior da distribuição

dos retornos dos investimentos em ações. Essa

definição baseia-se na ideia de que os investido-

res sobreconfiantes negoceiam demais e conse-

quentemente obtêm retornos mais baixos para

seus investimentos (Odean 1999, Barber e Ode-

an 2000). A variável assim definida é rotulada

como excesso de confiança.

4- Na base de dados usada por Schmitz et al. (2009) o investidor médio tem 55 transações de warrants e o período temporal coberto pela informação disponível é de 51 meses, inferior ao usado neste artigo. 5- Neste inquérito considera-se ser investidor quem detiver um ou mais dos seguintes instrumentos financeiros: ações, obrigações, fundos de investimento, títulos de participação ou derivados.

39 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Alternativamente, também uso o conceito me-

lhor do que a média. Investidores sobreconfian-

tes são definidos nesta segunda perspetiva co-

mo aqueles que acreditam que sabem mais do

que realmente sabem, o que é medido pela dife-

rença, se positiva, entre o nível de conhecimen-

to financeiro autoavaliado e o conhecimento

financeiro revelado na resposta a questões con-

cretas sobre os mercados e produtos financei-

ros.

A variável de autoavaliação do conhecimento

financeiro é baseada na pergunta "Como classi-

ficaria, numa escala de 1 (nada conhecedor) a 7

(muito conhecedor), o seu conhecimento sobre

os produtos e os mercados de títulos?". As res-

postas a esta questão são comparadas com as

respostas a perguntas dirigidas a avaliar o co-

nhecimento efetivo do investidor, igualmente

na escala de 1 a 7.

São usadas três perguntas do inquérito

(perguntas 7, 11 combinada com 11A e 13) para

avaliar o conhecimento efetivo dos investido-

res. No inquérito, os investidores são convida-

dos a nomear empresas com ações ou obriga-

ções cotadas na bolsa, até um máximo de 5

(pergunta 7). As respostas a esta pergunta são

codificadas de 0 a 5, sendo usado 0 quando o

investidor não menciona o nome de qualquer

empresa e 5 quando ele identifica corretamente

5 empresas com ações ou obrigações cotadas.

Na questão 11A (e na pergunta 11), os investi-

dores são questionados sobre se conhecem al-

guma das seguintes entidades: BVLP, Interbol-

sa, CMVM, Bancos e Corretores. As respostas

são codificadas de 0 a 5, com 0 a significar que

os investidores desconhecem essas entidades e

5 quando as conhecem todas.

Finalmente, a questão 13 é a seguinte: "Se pre-

tender apresentar uma queixa ou uma reclama-

ção sobre um intermediário financeiro, uma

entidade emitente ou outra entidade relacionada

com o mercado de títulos, a quem se deve diri-

gir?" As respostas são codificadas com 5 se a

CMVM é mencionada e com 0 se nenhuma en-

tidade (ou uma errada) é identificada. A média

não ponderada das respostas obtidas para essas

três questões, convertida para a escala de 1 a 7,

é usada como proxy para o conhecimento efeti-

vo dos investidores individuais, com os valores

mais elevados da proxy a traduzir uma melhor

compreensão dos mercados financeiros. Se a

diferença entre a autoavaliação do nível de co-

nhecimento e o conhecimento efetivo dos in-

vestidores for positiva e superior a 0,9, então a

variável melhor do que a média = 16

Esta variável melhor do que a média é de segui-

da usada num modelo linear em probabilidade

(LPM) em que as variáveis explicativas são um

conjunto de características sociodemográficas

dos investidores. Este modelo é estimado para

os investidores identificados no inquérito da

CMVM. Num segundo passo, os coeficientes

estimados deste modelo são usados para identi-

ficar os investidores na base de dados de nego-

ciação que (não) são melhores do que a média.

Para esse efeito uso as características sociode-

mográficas dos investidores da base de dados

de transações e os coeficientes estimados no

primeiro passo para estimar se os investidores

são melhores do que a média, usando novamen-

te um modelo LPM. Supondo que a percenta-

gem de investidores com este desvio comporta-

mental na base de dados de transações é igual à

percentagem de investidores melhores do que a

média no inquérito da CMVM, melhor do que a

média = 1 para os investidores com maior valor

estimado na segunda etapa do procedimento.

Para apreender o motivo hedónico de investi-

mento, construo a variável apetência pelo jogo

com um procedimento semelhante ao usado na

variável melhor do que a média. Os investido-

res são considerados ter uma apetência pelo

jogo em relação ao investimento nos mercados

Quão Enviesado é o Comportamento dos Investidores ... : 39

6- Os resultados são robustos à consideração de outros limiares.

40 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

financeiros quando não recebem informações

sobre mercados e produtos financeiros e, no

entanto, transacionam ativos financeiros. A par-

tir do inquérito da CMVM, são analisadas as

características sociodemográficas dos investido-

res que não usam qualquer fonte de informação

para se informar sobre os mercados e os produ-

tos financeiros, e presumo que esses investido-

res tenham uma apetência pelo jogo quando

investem e transacionam instrumentos financei-

ros sem obter informações sobre mercados e

produtos financeiros. Em primeiro lugar, usan-

do as características do inquérito ao investidor,

esta variável de jogo é regredida relativamente

a um conjunto de características sociodemográ-

ficas dos investidores. Num segundo momento,

os coeficientes estimados deste modelo LPM

são usados para prever quais os investidores na

base de dados de transações que têm uma atitu-

de de jogador. Supondo que as percentagens de

investidores com uma atitude de jogador são

semelhantes no inquérito e na base de dados de

negociação, apetência pelo jogo = 1 para os

investidores com maiores valores estimados no

modelo LPM do segundo passo.

No que se refere à proxy para o efeito disposi-

ção, sigo a metodologia de Goetzmann e Massa

(2003). Em primeiro lugar, cada transação em

ações é classificada como "trade at loss" ou

"trade at gain".7

De seguida, para cada ação em carteira, é cons-

truída uma série temporal das transações

(vendas e compras) com perda e das transações

com ganho. Por exemplo, quando ocorre uma

venda, calculo a diferença entre o preço de ven-

da e o preço ao qual a compra anterior dessa

ação ocorreu. As diferenças negativas (preço de

venda inferior ao preço de compra) são regista-

das como vendas com perda e as diferenças po-

sitivas como vendas com ganho. As compras

são tratadas de modo semelhante; neste caso, o

preço que ocorreu na última transação da mes-

ma ação (independentemente de ser uma venda

ou uma compra) é usado como preço de refe-

rência. Dado que, de acordo com o efeito dispo-

sição, os investidores tendem a vender winners

(ou seja, vender quando o preço está a subir) e

comprar losers (ou seja, comprar quando o pre-

ço das ações está a descer), é calculada, para

cada ação na posse de cada investidor, a relação

Considero que um investidor manifesta efeito

de disposição quando este rácio for positivo

para a soma das ações na sua carteira. Assim,

efeito disposição = 1 se este rácio for positivo, e

zero no caso contrário.

3. A decisão de participação

Utilizo um modelo de probit para distinguir as

características dos investidores que negociaram

simultaneamente em warrants e em ações da-

queles que apenas negociaram ações (ou seja,

está em causa a decisão de participar no merca-

do de warrants). O modelo probit de base é o

seguinte:

Warrant = f (Homem, Idade, Casado, Esco-

laridade, Profissão, Residência)

Onde8:

• Warrant é uma variável binária, igual a 1, se

o investidor negoceia em warrants durante o

período, e zero em caso contrário (o investi-

dor negoceia em ações, mas não em war-

rants);

• Homem é uma variável de género, igual a 1

se o investidor for homem;

• Idade é a idade do investidor em anos, defi-

nida como (2006 menos o ano de nascimen-

to do titular da conta);

7- Assumo o critério LIFO (as últimas ações compradas são as primeiras a serem vendidas) para identificar as vendas com perda. 8- Não incluo variáveis relativas ao rendimento e à riqueza do investidor porquanto estes aspetos não estão considerados em nenhuma das bases de dados utilizadas.

41 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

• Casado é o estado civil do investidor, e é

igual a 1 se é casado (ou vive em união de

facto);

• Escolaridade é o nível de escolaridade con-

cluído. São consideradas três categorias:

Baixa = 1, se o investidor tiver 4 anos ou

menos de escolaridade; Média = 1, se o in-

vestidor tiver mais de 4 anos, mas 12 anos

ou menos de escolaridade; Alta = 1, se um

curso técnico ou superior foi completado

pelo investidor;

• Profissão representa a ocupação do investi-

dor. Cinco categorias são consideradas: Mui-

to qualificada = 1, se o investidor é gerente,

diretor ou está nos níveis superiores de ad-

ministração pública; Qualificada = 1, se o

investidor é um funcionário de escritório ou

similar; Pouco qualificada = 1, se é agricul-

tor, trabalhador industrial, mecânico ou tra-

balhador não qualificado; Trabalhador inde-

pendente = 1, se o investidor é um profissio-

nal liberal; e Inativo = 1, se o investidor for

reformado, desempregado ou estudante;

• Residência representa a região de residência

do investidor. São consideradas três catego-

rias: Lisboa = 1 se o investidor mora em Lis-

boa; Porto = 1 se mora no Porto; Outra = 1

se o investidor não mora em Lisboa ou no

Porto.9

Na literatura identifica-se usualmente um com-

portamento mais tolerante relativamente ao ris-

co com investidores mais jovens e com menos

responsabilidades familiares, enquanto as pro-

fissões mais qualificadas são geralmente associ-

adas a um nível de rendimento mais elevado,

que possibilita maior toma de risco. De facto, o

comportamento dos investidores depende de

características sociodemográficas:

idade (DaSilva e Giannikos 2006), ocupação

(Christiansen et al. 2008) ou o ambiente em que

vivem (Goetzmann e Kumar 2008). Barber e

Odean (2001) e Goetzmann e Kumar (2008),

por exemplo, concluem que os investidores ca-

sados, as mulheres e os investidores mais ido-

sos têm menos apetência pelo risco. Por outro

lado, níveis mais elevados de escolaridade têm

sido positivamente associados a uma maior so-

fisticação. Trabalhos recentes sobre literacia

financeira mostram que quanto mais elevado o

nível académico mais eficiente e racional é o

comportamento financeiro dos agentes, no que

diz respeito à poupança ou ao planeamento da

reforma (Lusardi e Mitchell 2009), ou relativa-

mente ao investimento no mercado de ações

(Christelis et al. 2010) ou ainda à diversificação

da carteira (Abreu e Mendes 2010).

Calvet et al. (2009) conclui que o comporta-

mento aparentemente irracional diminui subs-

tancialmente com a riqueza dos investidores.

Na falta de variáveis de riqueza (e de rendimen-

to) pode considerar-se que a situação profissio-

nal é uma proxy. Adicionalmente, considera-se

que os investidores que vivem nas áreas metro-

politanas têm geralmente maior escolaridade,

são mais propensos a ter maior rendimento, es-

tão com maior probabilidade empregados no

setor financeiro e, consequentemente, têm aces-

so a informação de melhor qualidade. Assim,

distingo os investidores que residem em Lisboa

ou no Porto, de investidores que residem em

outros lugares.

Quão Enviesado é o Comportamento dos Investidores ... : 41

9- Quatro ou menos anos de escolaridade, inativos (principalmente reformados), e residência fora dos grandes centros urbanos de Lisboa e Porto são as categorias omissas nas regressões efetuadas.

42 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Tabela 1: Decisão de Participação

(Modelo Probit)

O modelo probit é estimado por máxima veros-

similhança (Tabela 1). Os resultados do modelo

de base (coluna [1]) confirmam que investido-

res em warrants e investidores em ações possu-

em características sociodemográficas diferen-

tes.

Com efeito, os homens mais jovens e com me-

nor escolaridade são mais propensos a investir

em warrants e os investidores com profissões

qualificadas são mais propensos a investir ape-

nas em ações. No que diz respeito à residência,

viver nas maiores cidades não permite qualquer

discriminação entre investidores em ações e em

warrants. O estado civil também não é um fator

distintivo.

Nas colunas [2] e [3] da Tabela 1 são introdu-

zidas as características comportamentais dos

investidores (excesso de confiança, melhor do

que a média, efeito disposição e apetência pe-

lo jogo). O excesso de confiança pode levar os

investidores a negociar instrumentos financei-

ros com os quais não estão familiarizados. Os

investidores sobreconfiantes têm sido associa-

dos à tomada excessiva de risco (Dorn e

Huberman 2005; Nosic e Weber 2010), o que

significa que são mais propensos a assumir o

risco relativamente ao qual não existe uma

compensação aparente. Além disso, os investi-

dores sobreconfiantes tendem a pensar que

estão acima da média em relação às suas capa-

cidades de investimento (Taylor e Brown

43 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

1988) e, consequentemente, podem investir

mais em instrumentos financeiros complexos.

Os resultados mostram que o efeito melhor do

que a média não tem um impacto forte na deci-

são de participação, mas que os investidores

sobreconfiantes são mais propensos a investir

em warrants.

O efeito disposição também tem sido considera-

do como tendo impacto no comportamento de

transação dos investidores individuais e é um

exemplo de desvio comportamental dependente

do ponto de referência, uma vez que os investi-

dores se comportam de forma diferente quando

registam um ganho do que quando registam

uma perda. O efeito de disposição foi encontra-

do tanto nos investidores individuais como nos

profissionais, e foi documentado no investimen-

to em ações (Odean 1998b, Grinblatt e Kelohar-

ju 2001, Dhar e Zhu 2002, por exemplo) e em

fundos de investimento (Bailey et al. 2011).

Considero que os investidores propensos ao

efeito de disposição também podem enviesar o

seu comportamento no que se refere ao investi-

mento em warrants, um instrumento financeiro

complexo10. Assim, se um investidor manifestar

efeito de disposição quando transaciona ações,

esse desvio comportamental pode ter um im-

pacto na decisão de participar no mercado de

warrants. A variável efeito disposição é a proxy

que uso; é uma variável binária, igual a um se o

investidor exibir efeito de disposição na ativida-

de de negociação em ações, e zero em caso con-

trário.

De forma semelhante, trabalhos recentes refe-

rem que alguns investidores vêm a negociação

no mercado de ações como uma oportunidade

de participar em jogos de sorte. Barber et al.

(2009), por exemplo, documenta que, em

Taiwan, a introdução da lotaria patrocinada pe-

lo governo reduziu significativamente o volume

de negócios no mercado de ações e os autores

concluem que parte da negociação excessiva

dos investidores individuais é motivada pelo

desejo e prazer de jogar. Também se argumen-

tou que o jogo pode justificar a irracionalidade

dos investidores quando optam por produtos

derivados. Na verdade, os investidores de reta-

lho podem decidir não se informar sobre a com-

plexidade e as características dos produtos e

assim escolher aleatoriamente um ativo para

investir, ou seguir acriticamente o conselho dos

distribuidores dos produtos (incentivados a ven-

der com a promessa de comissão de vendas), o

que poderia justificar o grande volume de ven-

das de muitos destes produtos (Bernard et al.

2010). Campbell (2006) argumenta que ou os

investidores tomam decisões aleatórias ou os

distribuidores de produtos são muito bem-

sucedidos no marketing e nas vendas. Uma ma-

neira de explicar o desejo de apostar dos inves-

tidores é considerar que aqueles que não usam

nenhuma fonte de informação (ou seja, não es-

tão informados sobre mercados e produtos fi-

nanceiros) têm apetência pelo jogo e tomam

decisões aleatórias. A variável apetência pelo

jogo é a proxy usada; é uma variável binária,

igual a 1 se o investidor não usar qualquer fonte

para obter informações sobre os mercados e os

instrumentos financeiros.

A hipótese de que o desempenho do investidor

no mercado de ações influencia o investimento

em warrants também é testada. Mendes (2012)

argumenta que os investidores com baixo su-

cesso no investimento em ações são mais pro-

pensos a investir em produtos mais alavancados

(e, portanto, em warrants) na tentativa de recu-

perar perdas sofridas. Assim, uma variável bi-

nária é definida para o quartil inferior de renta-

bilidade do investimento em ações. Na ausência

de informações sobre a composição da carteira

de cada investidor, sigo a metodologia de Seru

et al. (2010) (também usada em Abreu et al.

2011 e Mendes 2012): o desempenho dos in-

vestidores é medido pelo retorno médio não

ponderado a 30 dias das ações compradas pelo

Quão Enviesado é o Comportamento dos Investidores ... :43

10- Ofir e Wiener (2012) concluem que os produtos estruturados vendidos a retalho são desenhados de forma a explorar desvios comporta-mentais dos investidores tais como o efeito de disposição.

44 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

investidor. Consequentemente, a variável baixo

retorno é igual a 1 se o retorno do investidor no

investimento em ações estiver no quartil inferi-

or dos retornos dos investidores nesses investi-

mentos.

Os resultados da estimação permitem concluir

que os investidores sobreconfiantes são real-

mente mais propensos a investir em warrants,

mas que o efeito melhor do que a média não

tem um impacto significativo. Estes resultados

são consistentes com as conclusões de Coval e

Shumway (2005), para o mercado de futuros, e

de Liu et al. (2010), para o mercado de opções.

Profundamente convicto dos seus conhecimen-

tos, um investidor sobreconfiante pode subesti-

mar informações públicas negativas (com po-

tencial impacto negativo nos preços), manter

ativos perdedores em carteira e assumir riscos

excessivos.

No que diz respeito ao impacto do efeito de dis-

posição, conclui-se que é relevante e bastante

forte, e que os investidores que exibem este

efeito na sua atividade de negociação de ações

têm maior probabilidade de investir e negociar

warrants. Este resultado vai no mesmo sentido

das conclusões de Ofir e Wiener (2012); com

base num trabalho experimental, os autores en-

contram evidência da prevalência do efeito de

disposição sobre a tomada de decisão dos inves-

tidores em relação aos produtos estruturados de

retalho.

No que diz respeito à possibilidade de que al-

guns indivíduos possam participar no mercado

de ações (e de derivados) por causa da sua atitu-

de relativamente ao jogo, embora não seja mui-

to forte do ponto de vista estatístico

(significância estatística a 10%), a apetência

pelo jogo parece levar mais investidores a parti-

cipar no mercado de warrants, o que ilustra a

importância deste desvio comportamental neste

mercado.

Deve igualmente sublinhar-se a significância

estatística na variável baixo retorno no modelo

[3] com o efeito melhor do que a média, e a sua

falta de significância estatística (embora com

um coeficiente positivo) no modelo [2] com a

variável excesso de confiança, o que pode re-

sultar da correlação entre as duas variáveis.11

Assim, há evidência de que os investidores com

baixo sucesso nos seus investimentos em ações

são mais propensos a investir em warrants. Este

resultado sugere que o investimento em war-

rants (e similarmente o investimento em outros

derivados) pode ser uma tentativa de compensar

as perdas em que os investidores incorrerem ao

investir em ações.

4. Atividade de transação

A decisão de participar no mercado de warrants

é uma das decisões do investidor. Condicionado

a esta decisão, num segundo momento, o inves-

tidor decide se deseja transacionar mais ou me-

nos warrants. Em Portugal, tanto o mercado de

ações como o de warrants podem ser considera-

dos mercados líquidos. Recorde-se que os war-

rants são um instrumento financeiro com gran-

de sucesso em Portugal, e que os investidores

transacionam warrants de forma muito ativa

(Mendes 2012). Assim, a liquidez não parece

ser um fator distintivo das ações relativamente

aos warrants.

Nesta seção, estudo se os investidores transaci-

onam ações de forma diferente dos warrants.

Com esse objetivo, calculo o número de negó-

cios que cada investidor faz em ações e em war-

rants. Interessa-me, em particular, estudar o

impacto dos desvios comportamentais sobre a

atividade de negociação dos investidores indivi-

duais em ambos os tipos de instrumentos finan-

ceiros.

Assim, a variável dependente do modelo é o

número de transações em warrants (ou ações)

que um investidor faz durante o período de

amostragem. Este é um modelo de contagem,

no qual as variáveis independentes são as

usadas na seção anterior. Uso um modelo de

11- A variável excesso de confiança combina baixo retorno e elevado número de transações.

45 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

contagem binomial negativo, estimado por má-

xima verossimilhança. Os resultados estão na

Tabela 2, e ambas as proxies para excesso de

confiança são testadas.

Um rápido olhar sobre os resultados da Tabela

2 (modelos [6] e [7]) permite concluir que as

transações em warrants são influenciadas pelas

características sociodemográficas dos investido-

res e também pelas características comporta-

mentais. De acordo com os resultados, os inves-

tidores com um grau académico intermédio ne-

goceiam mais warrants, os investidores com

ocupações mais qualificadas têm uma atividade

de negociação semelhante à dos investidores

inativos e ambos os grupos transacionam mais

do que os trabalhadores qualificados, pouco

qualificados e independentes, pelo que a escola-

ridade e a ocupação (e também a idade) não têm

um impacto linear sobre o número de negócios

efetuados. Além disso, os investidores que vi-

vem em Lisboa transacionam mais vezes. Por

outro lado, o género e o estado civil não são

relevantes para explicar o número de negócios

em warrants.

Em relação aos determinantes comportamentais

do número de negócios realizados, o excesso de

confiança tem um impacto positivo, sendo esta

variável significativa a 10%, mas tal não ocorre

com a proxy melhor do que a média. Portanto,

há alguma evidência (embora pouco forte) de

que os investidores sobreconfiantes negoceiem

com mais frequência. A proxy do efeito de dis-

posição é significativa (a 5%), tal como no caso

da negociação de ações (modelos [4] e [5]), mas

o coeficiente estimado é inferior nos modelos

[6] e [7], o que significa que o impacto do efei-

to de disposição é menor quando os investido-

res negociam warrants do que quando transaci-

onam ações.

O resultado mais interessante está relacionado

com o sinal do coeficiente da variável apetência

pelo jogo: é positivo (negativo) para o caso de

warrants (ações), o que significa que a transa-

ção motivada pelo desejo de jogar é mais pro-

nunciada na negociação destes instrumentos

derivados. Além disso, este coeficiente é maior

do que os coeficientes das outras variáveis

comportamentais. Tal distingue claramente a

atividade de transação em warrants da atividade

de transação no mercado de ações, o que signi-

fica que a busca pelo prazer de jogar na negoci-

ação aumenta o número de operações em war-

rants, mas, em vez disso, diminui a atividade de

negociação de ações. Por outras palavras, quan-

do os investidores são impulsionados por prazer

a transacionar nos mercados financeiros, eles

tendem a negociar mais produtos mais comple-

xos e a negociar menos produtos mais fáceis de

entender, isto é, instrumentos financeiros me-

nos complexos como ações.

Finalmente, embora a participação no mercado

de warrants seja impulsionada pela existência

de retornos mais baixos obtidos no investimen-

to em ações, o número de transações em war-

rants não depende do menor sucesso daquele

investimento.

No que diz respeito ao mercado de ações, os

modelos [4] e [5] permitem concluir que exis-

tem diferenças nos determinantes sociodemo-

gráficos da atividade de negociação em war-

rants e em ações. Os investidores homens, com

menor escolaridade e profissões mais qualifica-

das negoceiam ações mais frequentemente, e o

efeito da idade não é linear. O estado civil de-

sempenha um papel relevante e, quanto ao local

de residência, os investidores de Lisboa e do

Porto parecem negociar mais em ações do que

os investidores que residem fora daqueles gran-

des centros urbanos. Este conjunto de resulta-

dos difere dos reportados por Abreu e Mendes

(2012). Na verdade, usando um inquérito à po-

pulação portuguesa (e não dados de transações

efetivas), Abreu e Mendes (2012) concluem que

género, escolaridade e ocupação não são fatores

diferenciadores da atividade de negociação dos

investidores portugueses.

Quão Enviesado é o Comportamento dos Investidores ... : 45

46 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Tabela 2: Número de Transações (Modelo de Contagem)

47 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Quanto ao excesso de confiança e ao efeito me-

lhor do que a média, ambas as proxies são

significativas e com um sinal positivo, o que

significa que os investidores sobreconfiantes

negoceiam ações com mais frequência e que

aqueles que sentem que são melhores do que a

média também comercializam ações com mais

frequência, resultados em sintonia com Odean

(1998b), Barber e Odean (2001), Glaser e We-

ber (2007), Deaves et al. (2009) e Graham et al.

(2009), entre outros.

Os investidores propensos ao efeito de disposi-

ção também negoceiam ações com mais fre-

quência. Uma característica dos investidores

que têm esse desvio comportamental é a sua

tendência para guardar os ativos em carteira

durante tempo excessivo quando as cotações

descem, e a vendê-los demasiado rapidamente

em fases ascendentes do mercado, não aprovei-

tando totalmente as oportunidades de negócio

existentes. O período de amostragem inclui dois

subperíodos em que as cotações aumentaram

(1997/2000 e 2002/2006) e um subperíodo de

forte queda dos preços (2000/2002) e, portanto,

a negociação motivada pelo efeito de disposi-

ção pode ser mais intensa para este tipo de in-

vestidores, não só porque existe apenas um sub-

período com o mercado em baixa, mas também

porque os subperíodos de mercado em alta são

mais longos que o subperíodo de queda de cota-

ções.

A apetência pelo jogo e o baixo retorno levam

a uma menor atividade de transação de ações:

os coeficientes de ambas as variáveis são esta-

tisticamente significativos e negativos, o que

significa que os jogadores negoceiam ações

com menos frequência e que menores retornos

no investimento em ações também levam os

investidores a serem menos ativos no mercado

de ações.

5. Frequência de transação

O número de negócios foi a variável dependen-

te na seção anterior, mas essa variável não tem

em conta o período de tempo em que o investi-

dor está ativo no mercado. Considero agora que

a atividade de negociação dos investidores co-

meça quando o investidor faz o primeiro negó-

cio e assumo que o investidor está ativo até ao

último dia da amostra. O objetivo é analisar a

frequência de transação, definida como o núme-

ro médio de transações de warrants por ano.

Esta é a nova variável dependente (em logs), e

as variáveis independentes são as da seção ante-

rior. Este novo modelo é estimado por OLS.

Um segundo objetivo desta seção consiste em

analisar se existe heterogeneidade entre os in-

vestidores: com efeito, investidores com eleva-

da frequência de transação podem ter um perfil

e motivos diferentes para a negociação do que

os investidores que só transacionam esporadica-

mente. Com este propósito procede-se à estima-

ção por quantis. Contrariamente à regressão de

mínimos quadrados, onde toda a inferência se

reporta à média da frequência das transações, a

regressão de quantis permite estudar o impacto

de cada covariável ao longo de toda a distribui-

ção e não apenas na média e, portanto, o impac-

to da heterogeneidade dos investidores na fre-

quência de transações.

Quão Enviesado é o Comportamento dos Investidores ... : 47

48 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Tabela 3: Frequência de Transação (Modelo de Quantis)

49 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Os resultados das estimações são apresentados

na Tabela 3, onde se pode confirmar a

superioridade da abordagem da regressão de

quantis para discriminar os diferentes grupos

de investidores.12 Se o trabalho se tivesse limi-

tado à estimação por OLS, seríamos levados

(erroneamente) a atribuir o mesmo impacto das

variáveis independentes a todos os investidores,

o que não corresponde à realidade. Os melhores

resultados de estimação (medidos pelo número

de coeficientes com significância estatística)

são obtidos para os quantis 25 e 50 do (log do)

número médio anual de transações em warrants.

Os investidores que negoceiam warrants com

menos frequência (quantil 10), bem como aque-

les que o fazem mais frequentemente (quantil

90) são bastante heterogêneos e não é possível

identificar características sociodemográficas

claras. Entre aqueles que transacionam mais

intensamente não se encontra nenhuma caracte-

rística distintiva: de facto, nenhuma das variá-

veis explicativas é significativa no quantil 90,

nem mesmo ao nível de significância de 10%.

Outro resultado interessante é que, para a maio-

ria das variáveis estatisticamente significativas,

o seu impacto no (log do) número médio de

negócios em warrants aumenta com o número

médio de negócios do investidor. O efeito de

disposição e a apetência pelo jogo são determi-

nantes significativos da negociação para os

quantis intermédios. Quando estatisticamente

significativos, os coeficientes do efeito de dis-

posição e da apetência pelo jogo aumentam

com a frequência de transação, o que significa

que o impacto desses desvios comportamentais

é mais forte para os investidores que negoceiam

com mais frequência. No caso do efeito de dis-

posição, os investidores do quantil 75 têm um

coeficiente estimado de 0,915, mas para os do

quantil 25 o coeficiente é de apenas 0,251. As-

sim, até um certo nível de intensidade de nego-

ciação, o impacto do efeito de disposição e da

apetência pelo jogo aumenta com a intensidade

da negociação.

6. Conclusão

Este artigo estuda as características sociodemo-

gráficas dos investidores de retalho em warrants

e discute a hipótese de que alguns desvios com-

portamentais influenciam a predisposição dos

investidores para investir e transacionar war-

rants, um instrumento financeiro complexo.

Entre as conclusões mais relevantes deste estu-

do empírico, constata-se que as características

sociodemográficas e comportamentais dos in-

vestidores em warrants são diferentes das dos

investidores em ações. Em primeiro lugar, os

investidores em warrants têm um perfil socio-

demográfico específico: os homens com menor

escolaridade e profissões menos qualificadas

têm maior probabilidade de investir em war-

rants. Em segundo lugar, os desvios comporta-

mentais dos investidores são particularmente

relevantes para entender a participação no mer-

cado deste instrumento financeiro complexo.

Na verdade, os investidores com excesso de

confiança e mais propensos ao efeito de dispo-

sição, bem como os investidores que exibem

uma maior apetência pelo jogo, têm maior pro-

babilidade de investir e negociar warrants.

Além disso, os investidores mais sensíveis ao

efeito de disposição são mais propensos a nego-

ciar warrants com mais frequência.

Em segundo lugar, os resultados sublinham

uma característica distintiva dos investidores

que negociam warrants e que os distingue da-

queles que negoceiam ações: a apetência pelo

jogo aumenta as transações em warrants, mas

diminui a atividade de negociação em ações.

Por outras palavras, quando os investidores são

levados a negociar em mercados financeiros

pelo prazer de jogar, eles tendem a transacionar

mais produtos financeiros complexos e a transa-

cionar menos instrumentos financeiros mais

simples e mais fáceis de entender como as

ações.

Quão Enviesado é o Comportamento dos Investidores ... : 49

12- Os resultados da estimação dos modelos com a variável excesso de confiança não são apresentados por economia de espaço, mas são no essencial semelhantes aos apresentados na tabela 3.

50 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Finalmente, a diferenciação dos investidores em

função da frequência com que transacionam

mostra que o efeito de disposição e a apetência

pelo jogo são tanto mais relevantes para expli-

car a frequência de transação quanto maior a

intensidade da transação, com exceção dos in-

vestidores de alta frequência, os quais parecem

ser heterogéneos e sem um perfil sociodemo-

gráfico e comportamental claramente definido.

Os resultados deste estudo parecem-me particu-

larmente interessantes de um ponto de vista

regulatório e de supervisão do mercado Portu-

guês de valores mobiliários. As conclusões

apresentadas podem contribuir para melhorar o

enquadramento regulatório relativo à comercia-

lização de warrants no nosso mercado e ainda

para a identificação de grupos de risco. Conhe-

cer o perfil e os principais desvios comporta-

mentais dos investidores individuais portugue-

ses permite redesenhar com maior acuidade os

programas de literacia financeira, aumentando a

sua adequabilidade ao público alvo e aumentan-

do a sua eficiência.

51 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

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Quão Enviesado é o Comportamento dos Investidores ... : 53

54 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Sociedade com o capital aberto ao investimento

do público: Relevância da lei pessoal na aquisição

e perda da qualidade de sociedade aberta

Mestre Juliano Ferreira*

Sumário: A. Enquadramento do tema: a sociedade aberta e a (exclusão da) negociabilidade em mercado. B. A relevância da lei pessoal para a qualifica-ção da sociedade aberta: 1. Enquadramento do tema; 2. Elementos de interpretação jurídica: 2.1. Elemento gramatical; 2.2. Elemento racio-nal ou teleológico; 2.3. Elemento sistemático (contexto da lei e lugares paralelos); 2.4. Ele-mento histórico; 3. Conclusão preliminar. C. A perda de qualidade de sociedade aberta como via para a exclusão de negociação: 1. Enqua-dramento; 2. História: 2.1. O primeiro momen-to; 2.2. O segundo momento; 2.3. O terceiro momento; 3. A correta interpretação dos requi-sitos de que depende a perda de qualidade de sociedade aberta na sequência de OPA: 3.1. A ‘insuficiência’ do pressuposto quantitativo; 3.2. A integração do regime da perda da qualidade de sociedade aberta num sistema unitário e a consideração de lugares paralelos; 3.3. A pro-teção do investidor como critério de decisão e deferimento do pedido de perda de qualidade de sociedade aberta. D. Conclusões.

A. Enquadramento do tema: a sociedade aberta e a (exclusão da) negociabilidade em mercado ** I. No âmbito da regulação do direito dos valo-res mobiliários o legislador nacional socorre-se, para variados efeitos1, da noção de sociedade com o capital aberto ao investimento do públi-co, abreviadamente, sociedade aberta. Trata-se de uma qualificação jurídica que, pas-sando a designar as sociedades que preencham algum dos pressupostos mencionados no artigo 13.º do Código dos Valores Mobiliários2, deter-minam a sujeição a um regime jurídico especial face ao aplicável às demais sociedades comerci-ais anónimas. II. Várias são as questões que esta qualificação comporta, ao ponto de se suspeitar serem hoje maiores os problemas que a mesma acarreta do que os benefícios que lhe estão associados, par-ticularmente no contexto de legislação comuni-tária que não adota como paradigma da regula-ção a sociedade aberta, mas a sociedade cotada.

* -Diretor do Departamento de Emitentes da CMVM. ** - O presente texto expressa opiniões estritamente pessoais que não podem ser legitimamente entendidas como manifestação da posição da CMVM sobre as matérias versadas. 1- Por exemplo, para imposição de deveres à própria sociedade (tratamento igualitário, menção em atos externos) e para imposição de deveres aos seus acionistas (comunicação de participações qualificadas e dever de lançamento de oferta pública de aquisição). 2- As disposições legais sem identificação do diploma a que pertencem devem entender-se como reportadas ao Código dos Valores Mobi-liários, na sua versão atual.

55 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Entre as diversas questões que aqui poderíamos

colocar em evidência, abordaremos uma que,

pela sua relevância e recorrência merece, nesta

sede, tal destaque. Referimo-nos à problemática

da determinação dos termos em que a exclusão

de negociação das ações de sociedade aberta

cotada pode ocorrer, em virtude do pelo menos

aparente condicionamento de tal resultado à

prévia qualificação como sociedade aberta e à

concomitante implementação de mecanismos

que apenas estão previstos para sociedades que

efetivamente tenham aquela qualidade. Em cau-

sa estarão, como mecanismos de utilização vo-

luntária que determinam a exclusão de negocia-

ção em mercado regulamentado, a própria per-

da da qualidade de sociedade aberta (artigos.

27.º e 29.º/2) e a aquisição potestativa (artigo

194.º e 195.º/4).

III. A questão em causa adquire relevo a dois

níveis. Primeiro, na medida em que é necessário

determinar se uma sociedade sujeita a lei pes-

soal que não a portuguesa pode, ainda assim,

qualificar-se como sociedade aberta, de tal for-

ma que algum daqueles mecanismos constitua

via possível para a exclusão de negociação em

mercado das ações representativas do seu capi-

tal.

Depois, porque se afigura necessário determinar

se efetivamente resulta da lei que a exclusão de

negociação, por via da perda de qualidade de

sociedade aberta de acordo com o artigo 27.º/1/

a pode constituir consequência direta da sim-

ples obtenção de 90% do capital social na se-

quência de OPA, mesmo quando, por não se ter

adquirido 90% das ações objeto da oferta, não

se tenham alcançado os patamares constitutivos

dos direitos de aquisição e alienação potestati-

vas.

Serão esses os dois vetores que orientam, pois,

a nossa análise.

B. A relevância da lei pessoal para

a qualificação da sociedade aberta

1. Enquadramento do tema

I. A primeira questão para a qual procuramos

resposta é a de saber se pode qualificar-se como

aberta qualquer sociedade, independentemente

da lei pessoal a que se encontre sujeita. Poderá,

assim, uma sociedade sujeita a lei pessoal espa-

nhola, brasileira (…) que promova alguma das

operações a que se refere o artigo 13.º ser quali-

ficada como sociedade aberta?

A redação do artigo em causa não é esclarece-

dora. Ao contrário do que sucede em outros

preceitos legais, que clarificam o âmbito subje-

tivo da sua incidência, o artigo 13.º não refere

que tal qualificação se aplica a sociedades sujei-

tas a lei pessoal portuguesa, a sociedades sujei-

tas a diferente lei pessoal ou independentemen-

te da lei pessoal. Refere-se, genericamente, a

sociedades. A dúvida é, portanto, legítima.

II. Para tornar clara esta questão, cumpre ter

consciência de que a resolução de conflitos de

competência territorial, no âmbito de situações

jurídicas plurilocalizadas é, antes de mais, uma

questão de direito internacional privado. Cum-

pre, por isso, identificar as normas de resolução

de conflitos aplicáveis, identificando a ordem

jurídica melhor colocada para dar resposta à

Sociedade com o capital aberto ao investimento do público... : 55

56 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

questão, de forma a delinear as regras a aplicar

ao caso concreto.

III. A delimitação do âmbito de aplicação espa-

cial do Código dos Valores Mobiliários é feita

mediante recurso a variadas técnicas3. Determi-

nadas normas, por exemplo, determinam a apli-

cabilidade da lei pessoal do emitente4 ou aten-

dem às regras de um direito estrangeiro5; outras,

delimitam a sua aplicabilidade a pessoas sujei-

tas a lei pessoal portuguesa6; outras ainda, des-

tinadas à proteção da parte institucionalmente

mais fraca, preveem excecionalmente a interfe-

rência do direito português no direito estrangei-

ro competente7.

Ora, nada disto parece suceder com o artigo

13.º que, para efeitos de aplicação territorial, se

revela literalmente omisso.

A norma que prevê a qualificação de uma soci-

edade como aberta não identifica, restringindo

ou estendendo, o seu âmbito espacial de aplica-

ção. Tal poderia simplesmente significar que,

não restringindo a aplicabilidade da referida

qualificação em função da lei pessoal da socie-

dade em causa, a mesma se aplicaria indistinta-

mente, não relevando, portanto, a lei pessoal da

sociedade interveniente numa das várias opera-

ções de mercado ali identificadas, sendo a mera

ocorrência de uma dessas operações, tendo co-

mo destinatários pessoas com residência ou se-

de em Portugal, originadora daquela qualifica-

ção.

IV. Parece-nos, contudo, não ter sido essa a

intenção do legislador. A comprová-lo está,

desde logo, a diferente redação do artigo

108.º/1, onde, pretendendo regular o direito

aplicável às ofertas públicas dirigidas especifi-

camente a pessoas com residência ou estabele-

cimento em Portugal (norma destinada, portan-

to, à proteção dos mesmos destinatários incluí-

dos nas hipóteses das várias alíneas do artigo

13.º/1), se estabelece expressamente a aplicabi-

lidade das disposições do título III (ofertas pú-

blicas) e dos regulamentos que o complemen-

tem, «…seja qual for a lei pessoal do oferente

ou do emitente e o direito aplicável aos valores

mobiliários que são objecto da oferta»8.

Do confronto do artigo 13.º com o artigo 108.º

resulta que o segundo, atenta a sua letra, identi-

fica como de aplicação imediata todas as nor-

mas daquele título, circunstância que bem se

percebe, atento o evidente risco que o apelo ao

investimento junto do público comporta para os

investidores, quando não devidamente regula-

do.

3- De acordo com a tipificação de Maria Helena Brito, “Sobre a aplicação no espaço do novo Código dos Valores Mobiliários”, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, n.º 7, abril de 2000, o Código dos Valores Mobiliários recorre a normas de conflitos de leis no espaço, de caráter bilateral, normas unilaterais, normas de direito material especial, normas de reconhecimento de requisitos preenchi-dos ao abrigo de um direito estrangeiro, normas que preveem a atendibilidade de um direito estrangeiro, normas que admitem a interferên-cia do direito português no direito estrangeiro competente, com a finalidade de proteção da parte institucionalmente mais fraca e a normas de aplicação imediata. 4- Nos termos do artigo 39.º, «[a] capacidade para a emissão e a forma de representação dos valores mobiliários regem-se pela lei pessoal do emitente.». 5- O artigo 227.º estabelece que «[s]ó podem ser admitidos à negociação valores mobiliários cujo conteúdo e forma de representação sejam conformes ao direito que lhes é aplicável e que tenham sido, em tudo o mais, emitidos de harmonia com a lei pessoal do emitente.». 6- O artigo 16.º, n.º 1, estabelece que «[q]uem atinja ou ultrapasse participação de 10%, 20%, um terço, metade, dois terços e 90% dos direitos de voto correspondentes ao capital social de uma sociedade aberta, sujeita a lei pessoal portuguesa, e quem reduza a sua partici-pação para valor inferior a qualquer daqueles limites deve, no prazo de quatro dias de negociação após o dia da ocorrência do facto ou do seu conhecimento (a) [i]nformar desse facto a CMVM e a sociedade participada». 7- Assim sucede com a previsão do artigo 321.º/5, de onde resulta que «[n]os contratos de intermediação celebrados com investidores não qualificados residentes em Portugal, para a execução de operações em Portugal, a aplicação do direito competente não pode ter como consequência privar o investidor da protecção assegurada pelas disposições do presente capítulo e da secção iii) do capítulo i) sobre informação, conflito de interesses e segregação patrimonial.» 8- No mesmo sentido veja-se a redação do artigo 16.º/4/a, de onde resulta a necessidade de identificar toda a cadeia de entidades a quem a participação qualificada é imputável, independentemente da lei a que se encontrem sujeitas.

57 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Risco semelhante, porém, não se pode afirmar

em relação à qualificação como aberta de deter-

minada sociedade sujeita a lei pessoal que não a

portuguesa: não resulta de qualquer disposição

a menção expressa à sua aplicabilidade inde-

pendentemente da lei pessoal da sociedade em

causa, ao mesmo tempo que essa qualificação

não implica, por si só, qualquer proteção daque-

les que, tendo residência ou estabelecimento em

Portugal, são enquadrados na hipótese de apli-

cação do artigo 13.º. Ou seja, a qualificação de

uma sociedade como aberta, ao contrário do

que sucede, por exemplo, com a imposição do

dever de divulgar um prospeto, não atribui às

pessoas incluídas no âmbito de proteção da nor-

ma um mecanismo de proteção que, atento o

âmbito normativo de aplicação do Código, se

deva impor como de aplicação imediata.

As normas de aplicação imediata, a que se refe-

re o artigo 3.º, correspondem a comandos nor-

mativos imperativos que, «…pelo seu conteúdo,

finalidade e posição que ocupam no ordena-

mento a que pertencem, reclamam aplicação

mesmo nas situações internacionais sujeitas a

um direito estrangeiro, desde que entre essas

situações e a ordem jurídica em que tais nor-

mas se inserem exista uma ligação especi-

al…»9.

A caracterização do artigo 13.º como norma de

aplicação imediata implicaria que, não obstante

ser a lei pessoal do emitente competente para

definir o estatuto da sociedade, a qualificação

como sociedade aberta deveria, ainda assim,

impor-se, atenta a existência de uma conexão

relevante com o território português e a rele-

vância do conteúdo, finalidade ou posição que

aquela qualificação ocupa no ordenamento por-

tuguês.

V. Na determinação do que se deva entender

por conexão relevante auxiliamo-nos da enume-

ração a que procede o artigo 3.º/2. Independen-

temente da lei que pudesse ser convocável para

regular as operações realizadas em mercados

regulamentados ou sistemas de negociação mul-

tilateral registados na CMVM (por exemplo,

em atenção à lei pessoal aplicável aos interveni-

entes em tais sistemas de negociação), as nor-

mas de direito português que regulam as ordens

e as operações ali realizadas não podem deixar

de se aplicar [artigo 3.º/2/a].

Na al. b) do mesmo artigo encontra-se uma re-

ferência às «actividades desenvolvidas e os ac-

tos realizados em Portugal». A conexão rele-

vante decorre, assim, do facto de alguém, sujei-

to a lei pessoal que não a portuguesa, exercer

em Portugal determinada atividade ou praticar

em Portugal um qualquer ato, contanto que,

uma e outro apresentem relevância mobiliária.

Em causa estará, por exemplo, a prestação de

um serviço de investimento em Portugal por

entidade (intermediário financeiro) sujeita a lei

pessoal estrangeira10.

Pergunta-se então se a realização de uma oferta

pública, a promoção da admissão à negociação

de ações ou a realização de uma fusão ou cisão

(referentes procedimentais relevados pelo artigo

13.º) devem ou não ser entendidos como uma

atividade ou um ato realizado em Portugal.

Sociedade com o capital aberto ao investimento do público... : 57

9- Maria Helena Brito, “Sobre a aplicação no espaço…”, ob. ant. cit., p. 71. 10- Como exemplo de atividade teremos a gestão de carteiras por conta de outrem, como exemplo de atos, a tomada firme e a colocação com ou sem garantia em oferta pública de distribuição.

58 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

VI. Embora a resposta deva ser afirmativa, a

conclusão que daqui se deve retirar é a de que

tais atos ou atividades devem (salvo norma de

conflitos que em especial mande atender a lei

distinta da portuguesa) ser regulados por lei

portuguesa e não, necessariamente, que as enti-

dades que as promovam se tenham de passar a

qualificar, elas próprias, como sociedades aber-

tas.

Do artigo 3.º/2 parece assim resultar que a con-

vocação de normas de direito português (de

aplicação imediata) depende sempre de um

concreto comportamento (ato ou atividade) de

determinada pessoa, e já não de uma sua carac-

terística intrínseca (status). A qualificação co-

mo sociedade aberta, consequência jurídica

decorrente do preenchimento de algum dos

pressupostos do artigo 13.º, não constitui, em si,

um ato ou atividade, mas uma característica

intrínseca da pessoa coletiva que realiza alguma

das operações tipificadas. As normas de direito

português que disciplinam a realização dessas

operações e que tenham natureza de «normas

internacionalmente imperativas»11 devem con-

siderar-se aplicáveis independentemente do di-

reito que a outro título seja convocável. Contu-

do, a qualificação que, de acordo com o direito

português, decorre da realização de tais opera-

ções (sociedade aberta) não é, em si, imperati-

va, ao contrário do que sucede com as regras

que disciplinam a própria realização das mes-

mas. A proteção dos investidores é prosseguida

em tais circunstancias pela regulação dos atos

ou atividades realizados em Portugal e não, ne-

cessariamente, pela atribuição a determinada

sociedade da qualificação de sociedade aberta,

não podendo dizer-se que esta reclama aplica-

ção mesmo nas situações internacionais sujeitas

a um direito estrangeiro, i.e., mesmo contra a

qualificação que decorreria da lei pessoal da

pessoa coletiva em causa.

Contra isto não valerá dizer que a qualificação

como sociedade aberta é pressuposto de verifi-

cação indispensável à aplicação de determina-

dos deveres de conduta e que, por esse motivo,

se afigura imperativa. É que o artigo 3.º, ultra-

passando questões de mera qualificação formal,

procura descortinar nas normas de direito portu-

guês um regime materialmente tão relevante

que se deve impor mesmo quando ao caso con-

creto fosse de aplicar, de acordo com as regras

gerais, direito estrangeiro: os atos ou atividades

‘mobiliários’ realizados em Portugal por uma

sociedade sujeita a lei pessoal estrangeira são

regulados pelas normas de aplicação imediata

de direito português, independentemente da

qualificação que da realização dos mesmos re-

sultaria para a sociedade em questão (a sujei-

ção, por exemplo, às regras que disciplinam as

ofertas públicas não depende de uma prévia

qualificação da sociedade que a pretenda pro-

mover como aberta).

Assim, uma pessoa coletiva de direito inglês

com objeto social de prestação de serviços de

intermediação financeira (devidamente autori-

zada para o seu exercício em Portugal), que,

num determinado momento, promova um au-

mento de capital e ofereça ações à subscrição

de pessoas com residência ou estabelecimento

em Portugal, ficará inelutavelmente sujeita à

necessária aplicação de determinadas normas de

direito português (aquelas que dizem respeito à

i) realização de ofertas públicas, ii) admissão à

negociação de valores mobiliários e iii) presta-

ção de serviços de investimento), ainda que não

deva qualificar-se como sociedade aberta.

11- Maria Helena Brito, “Sobre a aplicação no espaço…”, ob. ant. cit., p. 71.

59 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Mas, ainda que assim não se entendesse e hou-

vesse que considerar o artigo 13.º como norma

de aplicação imediata, não deveríamos deixar

de concluir que, atenta a natureza societária que

conforma o regime jurídico aplicável às socie-

dades abertas, não seria com o território portu-

guês que as sociedades sujeitas a lei pessoal

estrangeira apresentariam conexão relevante.

Note-se que essa conexão existe em relação à

oferta pública, ato realizado em Portugal, mas

dificilmente existirá em relação ao exercício

dos direitos e deveres decorrentes da aquisição

da qualidade de acionista, que continuam a ser

regulados pelo ordenamento jurídico onde a

sociedade decidiu situar a sede principal e efeti-

va da sua administração12.

De resto, uma tal abrangência – a nosso ver,

desmesurada –, da consideração como de apli-

cação imediata do artigo 13.º, sempre colocaria

em causa a definição de limites à aplicação do

direito português a situações reguladas por ou-

tras jurisdições. Se o artigo 3.º não for interpre-

tado no sentido de impor ao intérprete e aplica-

dor do direito o dever de descortinar, de entre

as normas de direito nacional, aquelas que se

assumem como impreteríveis, aquelas cuja não

aplicação poderia colocar em causa os mais

básicos e estruturantes princípios do nosso

direito, poderá chegar-se à conclusão de que

todas as normas impositivas de deveres são de

aplicação imediata: o nosso Código regularia

assim qualquer situação que tivesse um mínimo

de conexão com o nosso ordenamento, o que

não deixa de se revelar como indesejável e, so-

bretudo, inexequível.

Bem se compreende que é a própria redação do

artigo 3.º que se presta a tal leitura, motivo pelo

qual defendemos, acompanhando Lima Pinhei-

ro, uma interpretação restritiva do preceito13,

devendo procurar-se na relevância estruturante

que a norma de direito português encerra no

sistema jurídico interno, e na força do elemento

de conexão com o território português da con-

duta a regular, o sentido que deve presidir à

qualificação de determinada norma como de

aplicação imediata e a subsequente subsunção

aos seus comandos normativos da situação con-

flitual concreta.

2. Elementos de interpretação

jurídica

2.1. Elemento gramatical

I. Da letra do artigo 13.º/1 resulta que se consi-

dera «…sociedade com o capital aberto ao in-

vestimento do público, abreviadamente desig-

nada neste Código “sociedade aberta”», as

sociedades que:

Sociedade com o capital aberto ao investimento do público... : 59

12- Atente-se, a este propósito, no disposto no artigo do 33.º do Código Civil, onde se estabelece que à lei pessoal compete especialmente regular a capacidade da pessoa coletiva, a constituição, funcionamento e competência dos seus órgãos, os modos de aquisição e perda da qualidade de associado e os correspondentes direitos e deveres, a responsabilidade da pessoa coletiva, bem como a dos respetivos órgãos e membros, perante terceiros e a transformação, dissolução e extinção da pessoa coletiva. 13- Refere este Autor, em “Direito aplicável às operações sobre instrumentos financeiros”, in Estudos de Direito Internacional Privado, vol. II, Almedina, 2009, p. 400, que «…o art.º 3.º tem como epígrafe “normas de aplicação imediata”, mas esta expressão não correspon-de a uma categoria de normas definida por um critério material. Trata-se, por conseguinte, de uma modalidade de cláusula geral que autoriza o intérprete a aplicar qualquer das normas imperativas do Código sempre que entenda que há uma conexão suficiente com o território português. Esta cláusula geral é indesejável. Aquilo que se espera do legislador, sobretudo numa área de Direito dos negócios em que os operadores necessitam da máxima certeza jurídica e da máxima previsibilidade possíveis, é que determine claramente as normas imperativas que são suscetíveis de sobreposição ao Direito estrangeiro competente e que delimite com precisão o seu âmbito de aplicação no espaço. Casos-limite, em que haja razões ponderosas e excepcionais para aplicar determinada norma imperativa na falta de previsão legal, deixam-se resolver adequadamente com base na teoria das lacunas da lei. Autorizar o intérprete a proceder a valorações conflituais casuísticas é algo que compromete as exigências de certeza e previsibilidade jurídicas e que contribui para uma maximização do âmbito de aplicação no espaço do Direito interno. A maximização do âmbito de apli-cação do Direito interno aumenta o risco de concorrência de pretensões de regulação com outros Estados e, com isso, conduz ao cúmulo de normas imperativas que restringe excessivamente a autonomia da vontade e gera conflitos de deveres para os operadores dos mercados de instrumentos financeiros. Enquanto o artigo 3.º C. Val. Mob. vigorar na ordem jurídica portuguesa, a consideração dos valores fundamentais e dos princípios ge-rais do sistema português de Direito de Conflitos justifica uma interpretação restritiva da regra nele contida.

60 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

• tenham promovido oferta pública de distri-

buição de ações representativas do seu capi-

tal social (als. a), b) e d)),

• as sociedades que tenham, ou tenham tido,

ações admitidas à negociação em mercado

regulamentado situado ou a funcionar em

Portugal [al. c)], e ainda

• as sociedades que resultem de cisão ou que

incorporem, por fusão, a totalidade ou parte

do seu património [al. e)].

Para que se entendesse como decisivo, o ele-

mento gramatical deveria, inquestionavelmente,

apontar num determinado sentido, excluindo os

demais. Tal sucederia, por exemplo, se o n.º 1

do transcrito artigo tivesse uma de duas reda-

ções alternativas:

1. Considera-se sociedade com o capital aberto

ao investimento do público, abreviadamente

designada neste Código «sociedade aberta» a

sociedade sujeita a lei pessoal portuguesa14:

2. Considera-se sociedade com o capital aberto

ao investimento do público, abreviadamente

designada neste Código «sociedade aberta» a

sociedade, independentemente da sua lei

pessoal15:

II. Significa então que, se é verdade que não

pode dizer-se, à partida, que nenhuma das duas

possibilidades em apreço não tem um mínimo

de correspondência na letra da lei (ambas o

têm), também não é menos verdade que não

consegue afirmar-se, unicamente com base na

letra do preceito, que uma daquelas duas hipó-

teses interpretativas tem, sobre a outra, uma

correspondência mais natural e mais direta com

a letra do artigo.

O elemento gramatical não é aqui, portanto,

decisivo, porquanto ao afastar sentidos que não

tenham qualquer apoio, correspondência ou

ressonância nas palavras da lei (por exemplo,

ao afastar a possibilidade de se qualificar como

sociedade aberta uma qualquer pessoa coletiva

que não tenha natureza societária ou que, tendo,

não tenha o seu capital social representado por

ações), não permite ainda assim concluir, de

forma indubitável, que o legislador pretendia

enquadrar naquele conceito apenas as socieda-

des sujeitas a lei pessoal portuguesa ou, ao in-

vés, quaisquer sociedades, independentemente

da sua lei pessoal.

III. De resto, se a letra do preceito depõe em

algum dos sentidos considerados, não poderá

deixar de ser no sentido de reservar a qualifica-

ção como aberta para as sociedades sujeitas a

lei pessoal portuguesa, porquanto se entenda

que a constituição da sociedade através de

oferta pública de subscrição, referencial do

artigo 13.º/1/a aponta para a figura regulada no

artigo 279.º do Código das Sociedades Comer-

ciais, “constituição com apelo a subscrição pú-

blica”. Tal regime aplica-se, nos termos do arti-

go 3.º daquele Código, a sociedades que têm

como lei pessoal a lei do Estado onde se encon-

tre situada a sede principal e efetiva da sua ad-

ministração, usualmente aquele em que a socie-

dade se constitui. O artigo 13.º/1/a, onde se es-

tabelece o primeiro critério de qualificação de

uma sociedade como aberta, aplicar-se-á, assim,

unicamente a sociedades comercias com sede

em Portugal, o que não deixa de revelar o âmbi-

to subjetivo tomado como pressuposto pelo le-

gislador.

2.2. Elemento racional ou teleológico

I. O recurso a este elemento interpretativo visa

descortinar a razão de ser da lei (ratio legis) e o

fim visado pelo legislador. Só conhecendo as

circunstâncias em que a norma foi elaborada

(e a conjuntura político-económico-social que

14- Cfr. artigo 16.º/1 e 16.º/2/a/i, onde o legislador expressamente se referiu a «…sociedade aberta, sujeita a lei pessoal portuguesa…». O mesmo sucede nos artigos 145.º-A/1, 182.º-A, 244.º/1/a, 245.º-A/2 e 3, 246.º-A. 15- Cfr. artigo 108.º, «[s]em prejuízo do disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 145.º, as disposições deste título e os regulamentos que as com-plementam aplicam-se às ofertas públicas dirigidas especificamente a pessoas com residência ou estabelecimento em Portugal, seja qual for a lei pessoal do oferente ou do emitente e o direito aplicável aos valores mobiliários que são objecto da oferta».

61 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

motivou a decisão legislativa) será possível co-

nhecer os vários interesses que a mesma regula

e mensurar o peso relativo que traduzem na so-

lução que a norma exprime.

II. A qualificação de uma sociedade como aber-

ta comporta a aplicação de um regime jurídico

especificamente criado para regular este tipo de

sociedade, em ordem à salvaguarda de diversos

interesses que gravitam na sua órbita. De entre

eles deve evidenciar-se, atendendo ao conjunto

normativo cuja aplicabilidade pressupõe que a

sociedade se qualifique como aberta, os interes-

ses dos seus acionistas.

Tal proteção reflete-se, entre outros, na imposi-

ção do dever de assegurar tratamento igual aos

titulares de valores mobiliários de uma mesma

categoria (artigo 15.º), na previsão de normas

que regulam a sua participação no processo de

formação da vontade da sociedade (artigos 21.º-

C a 26.º), na imposição de deveres de comuni-

cação de participações qualificadas (artigos 16.º

-18.º e 20.º) e de comunicação de acordos pa-

rassociais (artigo 19.º), bem como na imposição

do dever de lançamento de OPA, em caso de

alteração de controlo (artigo 187.º).

A previsão de um regime especial para as socie-

dades abertas consubstancia-se, assim, num

modo de tutela de um interesse tipicamente jus-

societário, o interesse dos acionistas (na sua

relação para com a sociedade e para com os

demais consócios)16.

A desadequação e incompletude da regulamen-

tação ínsita no Código das Sociedades Comer-

ciais, que apenas incidentalmente regula aspe-

tos relacionados com sociedades anónimas de

grande dispersão acionista17, constitui justifica-

ção para o aprofundamento do regime jurídico

destas no Código dos Valores Mobiliários, onde

se encontram regulados os aspetos relacionados

com os valores mobiliários e a respetiva negoci-

abilidade.

III. Pode por isso afirmar-se que não é o caráter

estrito da negociabilidade em mercado que es-

poleta a qualificação de, e o regime jurídico

associado à sociedade aberta18. Em paralelo

com essa, uma outra qualificação de base dou-

trinária pretende agregar, sob a designação de

sociedades cotadas, todas aquelas sociedades

que, independentemente de se qualificarem ou

não como abertas, têm valores mobiliários ad-

mitidos à negociação em mercado regulamenta-

do. As normas que definem o regime jurídico

das sociedades cotadas encontram-se previstas

já não em ordem à tutela dos acionistas, qua

tale, mas em ordem à proteção dos investidores

e, em geral, do mercado.

Equivale isto por dizer que o regime das socie-

dades abertas não visa primacialmente a prote-

ção do mercado, antes se situando, ainda, no

âmbito material de regulação estritamente so-

cietário, tanto mais que a maior parte dos

critérios de qualificação não se relacionam com

a negociabilidade das ações em mercado.

Sociedade com o capital aberto ao investimento do público... : 61

16- De resto, os aspetos regulados em especial para a sociedade aberta não são estranhos à regulação societária, mantendo com esta corres-pondência material. Assim sucede, por exemplo, com o princípio de tratamento igualitário dos acionistas, evidente em inúmeros artigos do Código das Sociedades Comerciais, com a previsão de regras relativas à participação dos acionistas na formação da vontade da sociedade e até na imposição de deveres de comunicação de participações qualificadas (participações acionistas, previstas no artigo 448.º daquele Códi-go). No que diz respeito à imposição do dever de lançamento de OPA, deve notar-se que a primeva regulação da figura encontrou apoio no Código das Sociedades Comerciais (após a inicial intervenção legislativa, operada pelo Decreto-Lei n.º 429/83, de 13 de dezembro, que fazia depender de autorização ministerial as ofertas lançadas do estrangeiro sobre ações emitidas por sociedades com sede em Portugal), tendo posteriormente passado para o Código do Mercado dos Valores Mobiliários e, finalmente, para o Código dos Valores Mobiliários. 17- Como sucede com a constituição da sociedade anónima com apelo a subscrição pública, artigo 279.º do Código das Sociedades Comerciais. 18- Mesmo quando a negociabilidade das ações em mercado regulamentado constitui pressuposto da qualificação da sociedade como aber-ta (como sucede nos termos do artigo 13.º/1/c). É que nesse caso não é a característica da negociabilidade em mercado que espoleta a prote-ção associada ao regime jurídico da sociedade aberta, mas a (pressuposta) dispersão acionista decorrente da negociabilidade em mercado. Equivale isto por dizer que se qualifica como aberta determinada sociedade que tenha valores mobiliários admitidos à negociação em mer-cado regulamentado não pela necessidade de previsão de um regime decorrente das especificidades que advêm daquela negociabilidade, mas em virtude da inerente dispersão da base acionista.

62 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Acompanhando assim todos aqueles que veem

na sociedade aberta um subtipo de sociedade

comercial – a sociedade anónima com o capital

aberto ao investimento do público19 –, não po-

deremos deixar de concluir que a razão de ser

da lei é a da proteção dos acionistas, sendo o

fim visado pelo legislador o de garantir meca-

nismos de proteção de âmbito materialmente

societário adequados à especificidade das socie-

dades que promovam, por alguma das formas

legalmente previstas, a dispersão do seu capital

social.

IV. Constituindo ratio da norma a proteção dos

acionistas com residência ou estabelecimento

em Portugal, poderia admitir-se que a circuns-

crição da qualidade de sociedade aberta às soci-

edades de lei pessoal portuguesa originaria âm-

bitos de desproteção, quando em causa estives-

se a realização de operações de dispersão de

capital por sociedades sujeitas a diferente lei

pessoal.

Porém, não deve desconsiderar-se que, no âm-

bito de situações plurilocalizadas, a identifica-

ção das regras aplicáveis para efeitos de prote-

ção dos acionistas (de natureza societária) se

deve encontrar, prioritariamente, por referência

à lei pessoal da sociedade em causa.

Constituindo as regras inerentes à qualificação

da sociedade aberta corpo normativo de nature-

za tendencialmente societária, não deverão con-

vocar-se critérios distintos que não os decorren-

tes da regra de conflitos prevista no artigo 3.º

do Código das Sociedades Comerciais, sob pe-

na de sobreposição injustificada de regras inci-

dentes sobre as mesmas matérias e, adicional-

mente, de sobreposição de competências de

entidades de natureza administrativa ou jurisdi-

cional.

Nessa medida, conclui-se que a qualificação de

sociedade aberta, atenta a natureza eminente-

mente jus-societária decorrente do seu regime

jurídico, deve circunscrever-se espacialmente às

sociedades sujeitas a lei pessoal portuguesa (em

ordem à regra de conflitos jus-societária convo-

cável no caso concreto).

2.3. Elemento sistemático

(contexto da lei e lugares paralelos)

I. A consideração do elemento sistemático per-

mite ao intérprete apreender o significado da

norma a interpretar atendendo ao contexto da

lei ou complexo normativo onde aquela norma

se insere, tomando como referente disposições

legais que regulam problemas normativos para-

lelos ou institutos afins.

A definição do âmbito subjetivo de incidência

da qualificação de sociedade aberta não deverá,

portanto, desconsiderar as normas jurídicas que

incidem sobre problemas de regulamentação

jurídica fundamentalmente idênticos àquele que

é regulado pela norma a interpretar (artigo

13.º).

II. Assim, o artigo 16.º identifica o universo das

sociedades relativamente às quais há o dever de

comunicar participação qualificada e os limia-

res relevantes. Este dever, relacionado ora com

questões de transparência, ora com questões de

constituição do dever de lançamento de oferta

pública de aquisição, constitui a matriz caracte-

rizadora do regime das sociedades abertas. Não

deverá, pois, deixar de ser visto como um lugar

paralelo relativamente à própria qualificação de

sociedade aberta.

Previstos os pressupostos de qualificação de

uma sociedade como aberta no artigo 13.º, vem

19- Nesse sentido, José De Oliveira Ascensão, “Direito Comercial”, Vol. IV - Sociedades Comerciais, Parte Geral, Lisboa, 2000, p. 54, Menezes Cordeiro, “Manual de Direito das Sociedades”, vol. II, p. 169 e Hugo Moredo Santos (com identificação de demais partidá-rios desta tese, em “Transparência, OPA obrigatória e imputação de direitos de voto”, p. 39). Em sentido inverso, entendendo esta como «um tipo de sociedade autonomizado dos tipos constantes do CSC» (João Paulo Menezes Falcão, "A OPA Obrigatória" em Direito dos Valores Mobiliários, Vol. III, Coimbra, 2001, pp. 179 e ss., p. 211).

63 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

o legislador, no artigo 16.º, diferenciar os limi-

tes relevantes consoante a lei pessoal da socie-

dade em causa. Não deverá, portanto, deixar de

se aproveitar este contributo interpretativo

quando em causa está perceber se para o artigo

13.º releva ou não a lei pessoal da sociedade a

qualificar como aberta.

Distinguem-se, para efeitos de comunicação de

participação qualificada, as:

i) sociedades sujeitas a lei pessoal portuguesa,

e as

ii) sociedades com sede em outro estado mem-

bro ou fora da união europeia.

Em relação às sociedades sujeitas a lei pessoal

portuguesa, o legislador qualifica-as expressa-

mente como sociedades abertas [artigo 16.º/1 e

2/i20].

Em relação às sociedades com sede em outro

Estado Membro, ou fora da União Europeia que

tenham ações admitidas à negociação em mer-

cado regulamentado situado ou a funcionar em

Portugal, o legislador não procede a essa quali-

ficação, mesmo conhecendo que elas preen-

chem, formalmente, e em abstrato, um dos pres-

supostos de que o artigo 13.º/1/c faz depender

essa qualificação – o facto de ter ações admiti-

das à negociação em mercado regulamentado

situado ou a funcionar em Portugal21.

A clara distinção que é promovida em sede de

um dos principais efeitos decorrentes da qualifi-

cação como sociedade aberta constitui, assim,

um subsídio da maior importância para a inter-

pretação do próprio artigo 13.º: na primeira hi-

pótese que o legislador teve de distinguir as

sociedades, de acordo com a lei pessoal aplicá-

vel, fê-lo reservando a qualidade de sociedade

aberta para as sociedades sujeitas a lei pessoal

portuguesa (para as demais limitou-se a qualifi-

cá-las de “Sociedade, com sede estatutária nou-

tro Estado membro” e “Sociedade cuja sede

social se situe fora da União Europeia”).

III. Como refere Baptista Machado, «[e]m tal

hipótese, porque o legislador deve ser uma pes-

soa coerente e porque o sistema jurídico deve

por igual formar um todo coerente, é legítimo

recorrer à norma mais clara e explícita para

fixar a interpretação de outra norma (paralela)

mais obscura ou ambígua»22.

Assim, deve o artigo 13.º ser interpretado no

sentido de qualificar como sociedades abertas

apenas aquelas que, preenchendo algum dos

pressupostos previstos nas várias alíneas do seu

número 1, estejam sujeitas a lei pessoal portu-

guesa.

IV. Não é senão isso o que resulta também da

leitura do artigo 21.º-A, onde, referindo-se a

emitentes com sede estatutária fora da União

Europeia (não os qualificando de sociedade

aberta), o legislador prevê a possibilidade de

não lhes ser aplicável o regime de divulgação

de participações qualificadas quando, «nos ter-

mos da lei aplicável» a esses emitentes,

informação sobre participações qualificadas

for divulgada no prazo máximo de 7 dias de

negociação.

Sociedade com o capital aberto ao investimento do público... : 63

20- Qualificação que repete nos artigos 145.º-A/1, 182.º-A/1, 2, 3 e 6, 244.º/1/a, 245.º-A/2 e 3 e 246.º-A/1. 21- No mesmo sentido, tenha-se presente que, desde a entrada em vigor do Código dos Valores Mobiliários, realizaram-se diversas ofertas dirigidas a trabalhadores, qualificáveis como ofertas públicas de distribuição de ações. Assim, desde o ano 2000 foram registadas várias operações (aproximadamente centena e meia), tendo na sua maioria (cerca de 90%) como emitentes sociedades sujeitas a lei pessoal que não a portuguesa (maioritariamente francesa, luxemburguesa, suíça e alemã). Em tais casos, tratava-se de sociedades sujeitas a lei pessoal que não a portuguesa que, dirigindo-se a pessoas com residência ou estabelecimento em Portugal, realizaram operações de mercado (primário), no âmbito da qual promoveram a distribuição de ações com recurso a oferta pública, preenchendo, formalmente, um dos requi-sitos de que depende a sua qualificação como sociedade aberta. Contudo, em nenhum dos mencionados casos de ofertas a trabalhadores se passaram a qualificar as sociedades oferentes, emitentes de valores mobiliários, como sociedades abertas. Tal ficará a dever-se à circunstância de se ter entendido que tal qualificação não é de se lhes aplicar, em virtude de as sociedades em causa não se encontrarem sujeitas a lei pessoal portuguesa. 22- Baptista Machado, “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, Almedina, 1996, p. 183.

64 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Este é, de resto, um dos casos em que a lei por-

tuguesa expressamente reconhece relevância às

regras jurídicas previstas em outros ordenamen-

tos, salvaguardando contudo um mínimo de

coerência com as normas de direito nacional: o

regime português será de aplicação imediata,

ainda que de forma subsidiária, apenas na cir-

cunstância de, em função da lei aplicável, não

haver divulgação ou, havendo, não ser a mesma

feita no referido prazo.

V. Deve, aliás, notar-se que serão também qua-

lificadas como abertas as sociedades emitentes

de ações em que sejam convertidos créditos

sobre a insolvência, independentemente do con-

sentimento dos respetivos titulares, nos termos

do artigo 204.º do Código da Insolvência e da

Recuperação de Empresas.

Esta disposição fornece, de resto, um importan-

te contributo argumentativo no sentido da res-

trição do conceito de sociedade aberta a socie-

dades sujeitas a lei pessoal portuguesa, uma vez

que, de acordo com o artigo 7.º do referido Có-

digo, «[é] competente para o processo de insol-

vência o tribunal da sede ou do domicílio do

devedor ou do autor da herança à data da mor-

te, consoante os casos». Tal significa que os

tribunais portugueses serão competentes para

estes processos se em causa estiver a situação

jurídica de pessoas coletivas sujeitas a lei pes-

soal portuguesa, em virtude da coincidência

entre o critério de determinação da lei aplicável

e da competência do tribunal.

O mesmo valerá por dizer que, em atenção à

unidade do sistema jurídico, careceria de senti-

do a circunscrição territorial da qualificação

como sociedade aberta para o efeito específico

de tratamento em caso de insolvência, e o alar-

gamento do conceito a sociedades sujeitas a

diferente lei pessoal, para todos os outros efei-

tos.

2.4 Elemento histórico

I. O termo sociedade aberta é uma abreviatura

de «sociedade com o capital aberto ao

investimento do público» e substitui as expres-

sões «sociedade de subscrição pública» e

«sociedade com subscrição pública», utilizadas

até à entrada em vigor do Código dos Valores

Mobiliários, de acordo com o artigo 7.º do De-

creto Preambular que o aprovou. Nota a doutri-

na23 que o conceito não é inteiramente coinci-

dente com o seu antecessor, embora tenha cer-

tamente neste a sua génese.

II. O conceito de sociedade de subscrição pú-

blica encontrava-se previsto no artigo 284.º do

Código das Sociedades Comerciais, na primeira

versão aprovada a 2 de Setembro de 1986, e

compreendia i) as sociedades constituídas com

apelo a subscrição pública, as que, ii) num au-

mento de capital, tivessem recorrido a subscri-

ção pública e as iii) sociedades cujas ações fos-

sem cotadas em bolsa. Após a entrada em vigor

do Código dos Valores Mobiliários, manteve-

se, até hoje, no Código das Sociedades Comer-

ciais o regime da sociedade constituída com

apelo a subscrição pública24 (artigos 279.º a

283.º), mas foi revogado o artigo 284.º.

III. O Código do Mercado de Valores Mobiliá-

rios também referia o conceito, logo no artigo

3.º/1/j, definindo as sociedades de subscrição

pública como as sociedades que tenham parte

ou a totalidade do seu capital disperso pelo pú-

blico em virtude de i) se haverem constituído

com apelo a subscrição pública, de, ii) num

23- Pereira de Almeida, “Sociedades Abertas”, in Direito dos Valores Mobiliários, vol. VI, Coimbra Editora, 2006, pp. 9-49, p. 10 e Fátima Ribeiro, “Sociedades abertas, valores mobiliários e intermediação financeira”, in Jornadas Sociedades Abertas, Valores Mobiliá-rios e Intermediação Financeira, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 11-29, p. 12. O Código dos Valores Mobiliários introduziu um limite mínimo de 10% do capital para as sociedades objeto de oferta pública de venda ou de troca e acrescentou a sociedade resultante de fusão ou que incorpore, por fusão, a totalidade ou parte do seu património. 24- «Uma vez constituída com apelo a subscrição pública a sociedade anónima em questão qualifica-se automaticamente como sociedade com o capital aberto ao investimento do público ou sociedade aberta, nos termos do artigo 13.º, n.º 1 CVM.» «A qualificação é, assim, automática: o próprio modo escolhido pelos promotores para a constituição da sociedade (de subscrição públi-ca) influencia de forma decisiva e imperativa a sua categorização como sociedade aberta.», Gabriela Figueiredo Dias, anotação ao artigo 279.º, Código das Sociedades Comerciais Anotado, Almedina, p. 118.

65 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

aumento de capital, terem recorrido a subscri-

ção pública, ou de iii) as suas ações estarem ou

haverem estado cotadas em bolsa ou terem sido

objeto de oferta pública de venda ou de troca,

ou de venda em bolsa, nos termos do artigo

366.º do Código. Este conceito praticamente

não diferia daquele que estava previsto no Có-

digo das Sociedades Comerciais, tendo sido

apenas acrescentada a situação das sociedades

cujas ações tivessem sido objeto de oferta pú-

blica de venda ou de troca.

IV. No entanto, a duplicidade de regimes, no

Código das Sociedades Comerciais e no Código

do Mercado de Valores Mobiliários, tornava

difícil a concatenação da regulação deste tipo

de sociedade. Foi com o propósito de pôr

«cobro à assistematicidade patente nas diver-

gências de nomen iuris e de disciplina entre o

Código das Sociedades Comerciais e o Código

do Mercado dos Valores Mobiliários» que, com

o Código dos Valores Mobiliários, aprovado

pelo Decreto-Lei n.º 486/99, de 13 de novem-

bro, se substituiu o conceito de sociedade de

subscrição pública pelo de sociedade aberta ao

investimento do público, aproveitando ainda o

ensejo para aprofundar «a autonomia do regime

das sociedades abertas, reforçando a transpa-

rência da sua direcção e do seu controlo, no-

meadamente no que respeita à divulgação das

participações qualificadas e dos acordos paras-

sociais, e ampliando o regime das deliberações

sociais, na linha das modernas tendências rela-

tivamente ao governo das sociedades aber-

tas.»25.

V. O percurso histórico do conceito que aqui se

empreendeu permite compreender a razão pela

qual se deve considerar que o conceito de socie-

dade aberta corresponde a um subtipo de socie-

dade anónima ao qual se aplica o direito portu-

guês, na medida em que a sede principal e efeti-

va da sua administração se situe em Portugal26.

Fora desta hipótese as disposições nacionais

não devem considerar-se competentes para re-

gular a qualificação da sociedade que promova

a realização de alguma das operações a que se

refere o art. 13.º.

3. Conclusão preliminar

I. Partindo de uma análise do Código dos Valo-

res Mobiliários, das normas nele inscritas que

atribuem relevo a outros ordenamentos jurídi-

cos e atendendo às situações que, pela estreita e

relevante conexão que apresentam com o terri-

tório português, devem necessariamente ser

reguladas por disposições de direito português,

concluímos que a qualificação como sociedade

aberta não deve estender-se a sociedades sujei-

tas a lei pessoal diferente da portuguesa.

II. A confortar esta conclusão está a circunstân-

cia de o legislador cuidar de prever, em varia-

dos aspetos disciplinadores das sociedades

abertas, a exclusão da sua aplicabilidade a soci-

edades sujeitas a lei pessoal estrangeira (como

de forma evidente resulta do artigo 16.º). Daqui

parece decorrer que esta qualificação não tem

uma aderência natural a sociedades que não

aquelas relativamente às quais o ordenamento

português regule os aspetos relacionados com a

sua constituição, funcionamento e dissolução.

A localização no Código dos Valores Mobiliá-

rios não prova irrefutavelmente a natureza jus-

mobiliária de várias normas, muitas havendo

que, por regularem exclusivamente situações

jus-societárias, não devem deixar de seguir o

regime de resolução de conflitos previsto no

Código das Sociedades Comerciais (como suce-

de relativamente às normas que regulam o pro-

cedimento inerente à formação da vontade da

sociedade aberta).

Sociedade com o capital aberto ao investimento do público... : 65

25- Ponto 8 do Preâmbulo. 26- Referindo esta hipótese, embora sem a discutir, Gonçalo Castilho dos Santos, “Voto por Correspondência nas Sociedades Abertas”, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, n.º 7, Abril de 2000, pp. 131-158, p. 133, n. 2.

66 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

C. A perda de qualidade de sociedade

aberta como via para a exclusão

de negociação

1. Enquadramento

I. O instituto da perda de qualidade de socieda-

de aberta não tem uma feição única, podendo

por isso justificar-se a sua aplicabilidade em

diferentes circunstâncias e mediante verificação

de distintos pressupostos. Tipologicamente,

atendendo aos requisitos de que a lei faz depen-

der a sua aplicabilidade, poderemos contudo

proceder a uma distinção: casos haverá em que

a perda de qualidade de sociedade aberta resulta

da falência de requisitos de admissão [al. c) do

n.º 1 do artigo 27.º]; casos haverá em que a per-

da de qualidade de sociedade aberta resulta do

mero exercício da vontade, seja do oferente que

adquire o controlo na sequência de OPA, seja

da própria sociedade, mediante deliberação to-

mada em assembleia geral [als. a) e b) do n.º 1

do artigo 27.º, respetivamente].

Assim, e porque agora nos ocupamos da perda

de qualidade com fundamento no mero exercí-

cio da vontade, torna-se irrelevante a convoca-

ção da al. c) do n.º 1 do artigo 27.º, que respeita

aos casos em que deixam de se verificar cum-

pridas as circunstâncias de que depende a ad-

missão à negociação. Ocupar-nos-emos tão só

dos casos em que a perda de qualidade de socie-

dade aberta decorre do mero exercício da von-

tade, tomando em consideração as duas alíneas

do n.º 1 do artigo 27.º que prosseguem o mesmo

propósito mediante consideração primacial da

vontade de determinado(s) sujeito(s) em promo-

ver a perda de qualidade de sociedade aberta,

no sentido de evidenciar as condições legais de

aplicabilidade da al. a) do n.º 1 do artigo 27.º.

II. Feita esta distinção, há que sublinhar que

nenhuma das circunstâncias previstas nas alí-

neas a) ou b) do n.º 1 do artigo 27.º deve ser

considerada como paradigmática: ambas consti-

tuem géneros – distintos e complementares – do

tipo perda de qualidade de sociedade aberta

com fundamento no mero exercício da vontade.

Esta conclusão preliminar ajudar-nos-á a perce-

ber que interesses, neste âmbito, se colocam em

confronto, pois a contraposição com o caso de

perda de qualidade com fundamento na falta de

observância dos requisitos de que depende a

manutenção da admissão à negociação faz res-

saltar que, não sendo, nesse caso, a perda da-

quela qualidade e a inerente exclusão de nego-

ciação (“delisting”) imputáveis à vontade da

sociedade ou dos seus acionistas, obviamente

não será exigível a imposição de um mecanismo

de saída que impenda sobre quem diretamente

beneficie da referida perda (porque, em tal caso,

não haverá ninguém identificável).

Pelo contrário, nos casos em que a perda de

qualidade encontre fundamento no exercício da

vontade de determinado(s) sujeito(s), torna-se

razoável exigir que ao “benefício” de promo-

ção da perda se contraponha um ónus, encargo

ou dever jurídico de permitir aos demais acio-

nistas uma saída da sociedade, em termos justi-

ficados e equitativos.

III. Delimitado que está o âmbito teleológico

da perda de qualidade de sociedade aberta com

fundamento no exercício da vontade cumpre

agora determinar, em face deste enquadramen-

to, os requisitos legais de que aquela depende

quando em causa esteja o recurso à perda de

qualidade na sequência de oferta pública de

aquisição.

2. História

I. Se atentarmos na configuração que, ao longo

do tempo, caracterizou o instituto da perda de

qualidade de sociedade aberta, quando associa-

do à realização de uma oferta pública de aquisi-

ção, poderemos identificar três feições ou

momentos:

67 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

i) Código do Mercado de Valores Mobiliários

(de 1995 a 1999);

ii) Código dos Valores Mobiliários antes da

alteração decorrente da transposição da Dire-

tiva das OPA’s (de 1999 a 2006)

iii) Código dos Valores Mobiliários após da al-

teração decorrente da transposição da Direti-

va das OPA’s (de 2006 em diante)

II. Uma leitura que atenda à evolução do insti-

tuto jurídico da perda de qualidade de sociedade

aberta permitir-nos-á, por via da consideração

do elemento histórico da interpretação, desven-

dar o sentido do artigo 27.º/1/a e encontrar, no

jogo de interesses que aquele convoca, o quadro

relacional em que a perda de qualidade de soci-

edade aberta pode vir a ser deferida pela

CMVM.

2.1. O primeiro momento

I. A perda de qualidade da sociedade aberta27

foi prevista pela primeira vez no nosso ordena-

mento jurídico através de aditamento ao Código

do Mercado de Valores Mobiliários, introduzi-

do pelo Decreto-Lei n.º 261/95, de 3 de outu-

bro.

Mediante aditamento do artigo 531.º-A do Có-

digo do Mercado de Valores Mobiliários veio

prever-se, para as situações de perda daquela

qualidade na sequência de oferta pública de

aquisição, que:

«1 – Uma sociedade de subscrição pública dei-

xará, para todos os efeitos, de ser considerada

como tal mediante declaração da CMVM, que

só será emitida desde que se verifiquem as se-

guintes condições:

(…)

b) Seja lançada uma oferta pública geral de

aquisição com observância do disposto no arti-

go 528.º, abrangendo todos os valores mobiliá-

rios emitidos da natureza dos referidos no n.º 1

do artigo 523.º e em resultado da qual o oferen-

te passe a deter valores que, adicionados aos

detidos pelas pessoas mencionadas nas alíneas

a), c), d) e e) do n.º 2 do artigo 525.º, represen-

tem mais de 90% de cada uma das espécies e

categorias de valores mobiliários objecto da

oferta.

(…)

e) Tanto nos casos da alínea a) como nos da

alínea b), qualquer ou quaisquer dos accionis-

tas que hajam aprovado a deliberação mencio-

nada na alínea a) ou que tenham lançado as

ofertas públicas de aquisição a que se referem

as alíneas b) e d), ou, ainda, se as disposições

legais e estatutárias aplicáveis lho permitirem,

a própria sociedade se obriguem, garantindo

essa obrigação mediante garantia bancária, a

adquirir, durante o prazo de três meses contado

a partir da data da publicação a que se refere o

n.º 4, as acções detidas pelos accionistas que

tenham votado contra a deliberação ou faltado

à assembleia geral referida na alínea a) do pre-

sente número, ou que não hajam aceitado a

oferta pública de aquisição a que se refere a

alínea b), e, bem assim, os valores mobiliários

indicados na alínea c) cujos titulares tenham

votado contra a deliberação ali exigida, ou fal-

tado à assembleia respectiva, ou não hajam

aceitado a oferta pública de aquisição contem-

plada na alínea d).»

II. Do preceito transcrito resultava assim que o

prévio lançamento de oferta pública de aquisi-

ção legitimaria o acesso à referida perda de

qualidade quando, adicional e cumulativamen-

te, se verificassem preenchidos os seguintes

pressupostos:

• O oferente adquirisse mais de 90% de cada

uma das espécies e categorias de valores

mobiliários objeto da oferta; e

• O oferente (ou a própria sociedade) se obri-

gasse, garantindo essa obrigação mediante

garantia bancária, a adquirir, durante o prazo

de três meses, as ações detidas pelos acionis-

tas que não hajam aceitado a oferta pública

de aquisição.

Sociedade com o capital aberto ao investimento do público... : 67

27- Rectius, perda da qualidade de sociedade de subscrição pública.

68 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

III. Significa isto que, neste primeiro momento,

da letra do preceito podia retirar-se que o lança-

mento de oferta pública de aquisição da qual

resultasse uma elevada concentração do capital

na titularidade do oferente não legitimava, por

si só, a obtenção da perda da qualidade de soci-

edade aberta – era ainda necessário que fosse

concedida uma possibilidade adicional de saída

aos acionistas que, não tendo vendido as suas

ações no âmbito da OPA, se veriam posterior-

mente confrontados com a superveniência da

referida concentração de capital na titularidade

do oferente.

Esta possibilidade adicional de saída aparentava

ser tanto mais relevante quanto se verificava

inexistente a previsão de qualquer outro meca-

nismo, no específico âmbito do direito dos va-

lores mobiliários, que possibilitasse aquela saí-

da (como os atuais direitos de aquisição e alie-

nação potestativa, que só mais tarde viriam a

ser previstos, respetivamente, nos artigos 194.º

e 196.º).

Não obstante a inexistência daqueles mecanis-

mos, a verdade é que, à data, o recurso ao artigo

490.º do Código das Sociedades Comerciais –

que então se aplicava também a sociedades de

subscrição pública28 – constituía via privilegia-

da para obtenção da perda de qualidade de

subscrição pública e do consequente delisting

da sociedade, tão abundante é a amostra de situ-

ações em que a perda se obteve por aquela via.

O recurso à aquisição tendente ao domínio total

permitia a concentração da totalidade das ações

na titularidade do oferente, com o que se verifi-

cava excluída qualquer liquidez e inexistente

qualquer fundamento para a manutenção quer

da negociabilidade dos títulos quer da qualidade

de sociedade aberta.

IV. Conforme se referia no preâmbulo do diplo-

ma que introduziu a figura jurídica, o intuito

subjacente ao regime de perda de qualidade de

sociedade aberta com fundamento no prévio

lançamento de oferta pública de aquisição resi-

dia, assim, na possibilidade «de perda de quali-

dade de “sociedade de subscrição pública”,

permitindo-se, assim, a sociedades que tenham

estado cotadas em bolsa ou tenham dispersado

o seu capital pelo público a passagem para um

regime menos exigente e oneroso, através de

um procedimento que proporcione adequadas

garantias a todos os seus accionistas e titulares

de outros valores mobiliários cujos interesses

são potencialmente afectados pela modifica-

ção» (sublinhado nosso).

Verifica-se assim que o regime em causa nas-

ceu com uma marcada feição conciliatória de

interesses antagónicos: o interesse da sociedade

(ou do seu acionista de controlo) passar a estar

sujeita a um regime menos oneroso e exigente

e, do outro lado, o eventual interesse dos acio-

nistas minoritários – representativos de pelo

menos 10% do capital social – em permanecer

na estrutura acionista de uma sociedade cujas

ações continuem admitidas à negociação em

mercado regulamentado para que, por essa via,

vejam assegurado um nível de liquidez e, con-

sequentemente, a manutenção (ou não degrada-

ção significativa) do valor do seu investimen-

to29.

28- Situação que se viria a alterar em virtude da alteração introduzida no artigo 490.º do Código das Sociedades Comerciais pelo Decreto-Lei n.º 486/99, de 13 de Novembro. 29- Com efeito, a saída de mercado regulamentado – consequência necessária da perda de qualidade de sociedade aberta – implica uma menor liquidez das ações, o que, em regra, predispõe o investidor a vender os valores por um preço inferior. Para esta situação alerta Pau-lo Câmara, Manual de Direito dos Valores Mobiliários, Coimbra, Almedina, 2011, 2.ª ed., p. 733. Para uma análise da questão à luz de um confronto entre os ordenamentos jurídicos alemão, espanhol e americano v. Miguel Gimeno Ribes, “La exclusión voluntaria de la cotización bursátil”, in Revista de derecho bancário y bursátil, Madrid, Aranzadi, janeiro-março 2017, pp. 91-153.

69 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

V. O intuito do legislador, ao prever a interven-

ção da CMVM neste processo, terá sido o de

introduzir no âmbito da sua operacionalização

uma entidade incumbida de garantir a legalida-

de do procedimento, de forma a afastar incerte-

za jurídica quanto ao estatuto da sociedade ou

quanto aos termos e condições em que esse es-

tatuto se pode alterar. Assim se pretendeu evitar

que a sociedade se autoproclamasse fechada

sem que os acionistas minoritários vissem os

seus interesses acautelados no âmbito das ga-

rantias que a lei consagrou no procedimento.

VI. Em suma, verifica-se que durante a vigên-

cia do Código do Mercado de Valores Mobiliá-

rios o regime da perda de qualidade de socieda-

de aberta ficou marcado por um concurso entre

a verificação dos requisitos do artigo 531.º-A

daquele Código e o acionamento da aquisição

tendente ao domínio total, prevista no artigo

490.º do Código das Sociedades Comerciais, à

data plenamente aplicável a sociedades de subs-

crição pública, que dessa forma preenchiam o

requisito previsto no artigo 531.º-A/1/e do Có-

digo do Mercado de Valores Mobiliários.

2.2. O segundo momento

I. Com a entrada em vigor do atual Código dos

Valores Mobiliários, o instituto da perda de

qualidade de sociedade aberta, até então previs-

to no artigo 531.º-A do Código do Mercado de

Valores Mobiliários, passou a constar do artigo

27.º, onde se refere [al. a) do n.º 1] que:

«A sociedade aberta pode perder essa qualida-

de quando:

Um accionista passe a deter, em consequência

de oferta pública de aquisição, mais de 90%

dos direitos de voto calculados nos termos do

n.º 1 do artigo 20.º»

II. Uma leitura comparativa entre os preceitos

sucedâneos pode levar-nos à conclusão de que,

em virtude da supressão da letra do transcrito

artigo de requisito equivalente ao constante do

artigo 531.º-A/1/e do Código do Mercado de

Valores Mobiliários – recorde-se, necessidade

de o oferente (ou a própria sociedade) se obri-

gar, garantindo essa obrigação mediante garan-

tia bancária, a adquirir, durante o prazo de três

meses as ações detidas pelos acionistas que não

hajam aceitado a oferta pública de aquisição –,

efetivamente se pretendeu afastar a necessidade

de ser facultado aos acionistas remanescentes

um mecanismo adicional de saída por via da

imposição ao oferente de um dever de aquisição

para além do que resulta já do cumprimento do

dever de lançar a oferta pública de aquisição.

III. Essa leitura revela-se, porém, redutora, por-

que exclusivamente fundada na letra do precei-

to e sustentada numa distorção do elemento

histórico da interpretação, que redundaria na

conclusão – que a nosso ver não se afigura cor-

reta – de que o legislador efetivamente preten-

deu reduzir o grau de proteção que conferia aos

acionistas remanescentes: quando antes, ao

abrigo do anterior Código, a perda de qualidade

de sociedade aberta tinha de ser antecedida de

OPA e acompanhada da atribuição de uma pos-

sibilidade adicional de saída, agora bastaria o

prévio lançamento de OPA.

Ora, segundo cremos, afigurar-se-á mais acerta-

do afirmar que o mecanismo (adicional) de saí-

da não desapareceu, tendo antes passado a

constar de previsão normativa especificamente

prevista, ex novo, em 1999, com o Código dos

Valores Mobiliários: o artigo 196.º/1, norma

que surge, na perspetiva dos acionistas minori-

tários, como reverso do artigo 194.º (assentando

nos mesmos pressupostos quantitativos, embora

atribuindo um direito de sentido inverso), onde,

na sua versão originária, se previa que:

«Quem, após o lançamento de oferta pública de

aquisição geral em que seja visada sociedade

aberta que tenha como lei pessoal a lei portu-

guesa, ultrapasse, directamente ou nos termos

do n.º 1 do artigo 20.º, 90% dos direitos de voto

correspondentes ao capital social pode, nos

seis meses subsequentes ao apuramento do re-

sultado da oferta, adquirir as acções remanes-

centes mediante contrapartida calculada nos

termos do artigo 188.º»

Sociedade com o capital aberto ao investimento do público... : 69

70 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

IV. Em face da remissão para os mesmos requi-

sitos quantitativos, para que determinado ofe-

rente pudesse promover a saída de mercado da

sociedade na sequência de uma oferta pública

de aquisição da qual resultasse uma elevada

concentração de capital na sua titularidade, teria

de se sujeitar à exigibilidade legal de adquirir as

ações dos acionistas remanescentes que o pre-

tendessem. Com isso continuava a verificar-se,

quando em comparação com o direito pretérito,

uma plena coerência e unidade do sistema jurí-

dico e a continuidade da tutela da posição dos

destinatários da OPA confrontados com a con-

centração significativa do capital na esfera do

oferente.

Assim, uma vez adquiridas, na sequência da

oferta, ações a que correspondessem pelo me-

nos 90% dos direitos de voto da sociedade visa-

da, poderia o oferente, em alternativa:

requerer à CMVM a perda de qualidade de so-

ciedade aberta com fundamento no artigo

27.º/1/a; ou

exercer o seu direito de aquisição potestativa,

nos termos do artigo 194.º e com a consequente

perda de qualidade de sociedade aberta e exclu-

são de negociação (195.º/4).

V. Da perspetiva dos acionistas remanescentes,

a quem não é facultado o direito de, por um ato

da sua vontade, promover a perda de qualidade

de sociedade aberta e o respetivo delisting das

ações, restar-lhes-ia recorrer, tendo presentes os

mesmíssimos pressupostos que originaram o

surgimento do direito de aquisição potestativa,

ao direito potestativo de alienar ao oferente as

suas ações (direito de alienação potestativa,

artigo 196.º30).

Ou seja, o delisting promovido unilateralmente

pelo oferente por via da perda de qualidade de

sociedade aberta fundamentada no art. 27.º/1/a

implicava, necessariamente e à luz da redação

originária do atual Código, a disponibilidade do

oferente para suportar os custos associados a

um mecanismo de saída, o exercício do direito

de alienação potestativa. Não bastava, pois, pa-

ra que a perda pudesse ser decretada pela

CMVM que o oferente tivesse lançado OPA e

que, no seu contexto, tivesse preanunciado a

sua vontade de recorrer ao mecanismo da perda

de qualidade, uma vez que o exercício de um tal

direito assentava nos pressupostos de que de-

pendia a emergência na esfera jurídica dos acio-

nistas minoritários de um direito de saída, atra-

vés da alienação potestativa: a circunstância de,

na sequência de OPA, o oferente adquirir mais

de 90% dos direitos de voto da sociedade visa-

da.

VI. Esta hipótese interpretativa é, de resto,

aquela que melhor se coaduna com a feição

com que a prática conformou, mesmo no âmbi-

to do direito pretérito, o instituto da perda de

qualidade de sociedade aberta, promovendo

porém, para o período a que agora nos refe-

rimos, a substituição do recurso à aquisição ten-

dente ao domínio total (artigo 490.º do Código

das Sociedades Comerciais) pela aquisição/

alienação potestativa (artigos 194.º e 196.º). Em

qualquer dos casos, a perda de qualidade de

sociedade aberta na sequência de uma oferta

pública de aquisição não dispensava o aciona-

mento de um mecanismo adicional e subse-

quente à OPA que permitisse ora a aquisição

das ações remanescentes, ora a saída dos acio-

nistas minoritários em condições justas. Verifi-

ca-se assim que ao mecanismo do artigo 490.º

do Código das Sociedades Comerciais – que foi

sempre utilizado para sustentar as perdas de

qualidade de sociedade aberta ao abrigo do re-

gime previsto no Código do Mercado de Valo-

res Mobiliários – veio a suceder, afinal, o artigo

194.º, dessa forma se convocando para o espe-

cífico universo do direito dos valores mobiliá-

rios a solução a dar à pretensão de obtenção de

perda de qualidade de sociedade aberta quando

ao processo de uma oferta pública de aquisição

sobrevenham acionistas minoritários.

30- E este direito será exercitável nos casos em que o oferente não tenha exercido o seu direito de aquisição potestativa e independente-mente de ter ou não requerido a perda de qualidade de sociedade aberta ao abrigo do art. 27.º/1/a.

71 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

É de referir que esta convocação tem, na pers-

petiva dos acionistas minoritários, um efeito útil

do maior relevo: à contrapartida a oferecer no

âmbito da aquisição ou alienação potestativas

aplicam-se as regras decorrentes do artigo

188.º, ou o mesmo será dizer, encontra-se salva-

guardada a saída da sociedade mediante paga-

mento de um valor justificado e equitativo, de

acordo com critérios especificamente previstos

no âmbito do direito dos valores mobiliários31.

2.3. O terceiro momento

I. Com a transposição da Diretiva das OPA’s

(2006) para o ordenamento jurídico português –

pelo Decreto-Lei n.º 219/2006 de 2 de novem-

bro –, para que o direito de aquisição (ou alie-

nação) potestativa pudesse ser exercido passou

a exigir-se que, em resultado da oferta, o ofe-

rente não só viesse a tornar-se titular de ações

correspondentes a 90% dos direitos de voto,

como, adicionalmente, tivesse adquirido mais

de 90% dos direitos de voto abrangidos pela

oferta.

II. Com a previsão de um requisito quantitativo

adicional veio, afinal, a quebrar-se o equilíbrio

simétrico até então existente entre os pressupos-

tos do delisting mediante perda de qualidade de

sociedade aberta fundada na exclusiva e discri-

cionária vontade do oferente (artigo 27.º/1/a) e

as regras do delisting decorrente do exercício

exclusivo e discricionário da vontade do oferen-

te de um direito de aquisição potestativa (artigo

194.º).

Com aquela alteração promoveu-se propiciaram

-se situações em que, pelo menos aparentemen-

te, se passaria a permitir o delisting por recurso

ao mecanismo da perda de qualidade de socie-

dade aberta em casos em que idêntico resultado

não seria possível por recurso ao mecanismo da

aquisição potestativa32. Por outras palavras,

passou a admitir-se, numa interpretação literal,

que o acionista de controlo (que tivesse lançado

oferta pública de aquisição em que obtivesse

mais de 90% dos direitos de voto) obtivesse a

perda da qualidade de sociedade aberta sem que

aos acionistas remanescentes fosse dada oportu-

nidade adicional de saída em face do exercício

de uma vontade que não lhes é imputável

(porquanto em tal circunstância deixou de lhes

ser reconhecido um direito de saída mediante

exercício do direito de alienação potestativa).

Da referida alteração resultaria, assim, uma trí-

plice possibilidade interpretativa:

1. O legislador terá considerado que, na se-

quência de uma oferta pública em que o ofe-

rente adquira mais de 90% dos direitos de

voto, mas já não 90% do objeto da oferta,

poderá aquele obter a perda de qualidade de

sociedade aberta e o consequente delisting

sem que tenha de pagar o que quer que seja

aos acionistas remanescentes, desde que te-

nha previamente lançado uma oferta pública

de aquisição em que a todos tenha sido dada

a possibilidade de abandonar a sociedade;

2. Tratar-se-á de uma alteração irrefletida que,

ao estabelecer requisitos adicionais para a

possibilidade de recurso ao artigo 194.º veio,

afinal, a criar uma incoerência no âmbito da

perda de qualidade de sociedade aberta, não

podendo deixar de se aplicar os mesmos re-

quisitos quantitativos, como forma de repor

a coerência sistemática que sempre operou

desde a entrada em vigor do Código.

Sociedade com o capital aberto ao investimento do público... : 71

31- E que se contrapõem aos critérios previstos no artigo 490.º do Código das Sociedades Comerciais, com aqueles não coincidentes e de aplicação genérica às sociedades que não se qualifiquem como abertas. 32- Assim sucedeu na sequência da oferta pública geral e obrigatória de aquisição das ações representativas do capital social da Brisa - Autoestradas de Portugal, S.A. lançada pela Tagus Holdings S.à.r.l..

72 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

III. Cremos que não só a história como a pró-

pria teleologia do preceito nos conduzem no

sentido de não poder aceitar a primeira opção: a

feição do instituto de perda de qualidade de so-

ciedade aberta enquanto mecanismo de concili-

ação de interesses antagónicos não permite ab-

dicar de uma tutela acrescida ou reforçada da

posição jurídica dos sujeitos que no âmbito da

relação que por via da OPA se estabelece com o

oferente surgem em posição relacional mais

desprotegida (em virtude de uma situação de

sujeição). A mera execução de uma oferta pú-

blica de aquisição, sem que os seus destinatá-

rios sejam informados quanto à futura, efetiva e

consequente perda de qualidade de sociedade

aberta, não pode fundamentar – como nunca

fundamentou – uma tal requalificação da socie-

dade (que de aberta se converte em fechada)

sem que àqueles tenha sido proporcionada uma

efetiva e adicional possibilidade de venda das

suas ações. De resto, como em qualquer situa-

ção de colisão de direitos, a solução justa não

pode deixar de passar pela necessidade de os

respetivos titulares cederem na medida do ne-

cessário para que todos os direitos produzam

igualmente o seu efeito, sem maior detrimento

para qualquer das partes, sendo que apenas no

caso de os direitos serem desiguais ou de espé-

cie diferente, prevalece o que deva considerar-

se superior (v. artigo 335.º do Código Civil).

3.A correta interpretação

dos requisitos de que depende

a perda de qualidade de sociedade

aberta na sequência de OPA

3.1. A ‘insuficiência’ do pressuposto

quantitativo

I. O cumprimento, literal, do pressuposto de

facto a que alude o artigo 27.º/1/a não bastará

para que um pedido de perda de qualidade de

sociedade aberta possa ser, sem mais, deferido.

Aliás, se a verificação do pressuposto quantita-

tivo fosse bastante, a perda de qualidade de so-

ciedade aberta seria suscetível de ser configura-

da como um mecanismo de verificação automá-

tica, que poderia até dispensar uma específica

intervenção da CMVM, de que, porém, o legis-

lador não abdicou. Por outras palavras, o apura-

mento e publicação dos resultados da oferta

(artigo 127.º), momento que, por integrar o pro-

cedimento da oferta pública, se encontra, como

tal, sujeito ainda à supervisão da CMVM

(artigo 353.º/1/a), poderia dispensar uma espe-

cífica pronúncia da CMVM: perante a divulga-

ção dos resultados e verificado o preenchimento

do pressuposto literal do artigo 27.º/1/a, restaria

ao oferente declarar, sendo essa a sua vontade,

a perda de qualidade de sociedade aberta.

II. Ora, não é isso o que sucede quando a lei faz

depender a eficácia da perda de qualidade de

sociedade aberta da publicação de decisão favo-

rável da CMVM (artigo 29.º/1). O legislador

comete assim à CMVM uma importante função

de averiguação, análise e decisão, rodeando a

perda de qualidade de sociedade aberta das ne-

cessárias salvaguardas que visam proteger os

acionistas potencialmente prejudicados com a

reconfiguração do estatuto da sociedade, no

contexto de existência de interesses contrapos-

tos.

É pois, perante um notório conflito de interes-

ses que a atuação da CMVM, a quem incumbe

a verificação do cumprimento da lei, ganha es-

pecial relevância.

III. Na verdade, se a perda de qualidade de so-

ciedade aberta corresponde, nos termos do arti-

go 27.º/1/a, a uma faculdade do oferente

(acionista maioritário) que, tendo já lançado

uma oferta pública de aquisição, não só se pro-

pôs adquirir a um preço equitativo as ações de-

tidas pelos demais acionistas, como obteve um

elevado grau de aceitação que lhe permitiu a

obtenção de uma posição de domínio qualifica-

do, a verdade é que, da perspetiva dos acionis-

tas remanescentes, a exclusão da negociação em

mercado das ações da sociedade que constitui

consequência necessária daquela perda (artigo

29.º/2) introduz uma significativa modificação

na sua posição jurídica e económica, na medida

73 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

em que estes veem drasticamente reduzida a

liquidez e negociabilidade das suas ações, bem

como, et pour cause, uma significativa diminui-

ção do seu valor económico, a par com a elimi-

nação de mecanismos informativos e a diminui-

ção da transparência e da fiscalização a que a

sociedade se encontrava sujeita.

A emergência de uma posição de domínio qua-

lificado introduz, assim, um notório desequilí-

brio entre as posições jurídicas do acionista

que, por ter obtido aquela maioria, pretende

“fechar” a sociedade, e a posição dos acionistas

remanescentes que, não tendo vendido as suas

ações na oferta por se conformarem com o sur-

gimento de um acionista de controlo numa soci-

edade cotada (e que não têm motivos para con-

fiar que ela não se mantém cotada), se veem

afinal confrontados com a perda de qualidade

de sociedade aberta e o inerente delisting das

ações, como exercício da mera vontade do acio-

nista maioritário.

O procedimento de perda de qualidade de socie-

dade aberta deve constituir, por isso, um meca-

nismo de resolução de conflitos ou de concilia-

ção de interesses, permitindo à sociedade perder

a qualidade de aberta, ao mesmo tempo não

desconsiderando o intuito de proteção dos in-

vestidores, aqui acionistas minoritários. Daí a

exigência de que a perda corresponda a uma

vontade representativa de uma maioria bastante

significativa, por referência ao seu capital

social.

Consequentemente, o lançamento de uma oferta

pública de aquisição e a obtenção de uma signi-

ficativa concentração de direitos de voto não

sustenta, por si só, um resultado em que ao re-

conhecimento dos direitos do oferente

(acionista maioritário) corresponda uma com-

pleta desproteção dos interesses, expectativas e

direitos dos acionistas minoritários, o que nos

leva a concluir que, no âmbito da apreciação de

um pedido de perda de qualidade de sociedade

aberta deverá cumulativamente verificar-se:

(i) Se foi ou não lançada uma oferta pública de

aquisição;

(ii) Se, em consequência desta, foi ou não ad-

quirido pelo oferente pelo menos 90% dos

direitos de voto da sociedade visada; e

(iii) Se foi ou não assegurada a proteção dos

investidores, sendo proporcionada aos acio-

nistas minoritários uma efetiva possibilidade

de saída em condições justas, perante o co-

nhecimento de que a perda de qualidade de

sociedade aberta iria afinal ocorrer.

3.2. A integração do regime da perda

da qualidade de sociedade aberta

num sistema unitário e a consideração

de lugares paralelos

I. Para demonstrar que a perda de qualidade de

sociedade aberta apenas pode ser obtida após

concessão de uma oportunidade de saída aos

acionistas remanescentes, deve ter-se em consi-

deração situações em que, perante um potencial

conflito de interesses de natureza análoga àque-

le que existe no âmbito da perda da referida

qualidade, a lei prevê uma resposta que precisa-

mente se baseia na realização de uma oportuni-

dade de saída dos acionistas minoritários.

Assim, reconhecendo a lei a existência de cir-

cunstâncias em que é propícia a ocorrência de

um conflito entre o princípio da maioria e a

proteção da minoria, vem estabelecer diversos

mecanismos para a sua resolução, ou concilia-

ção, promovendo, em nome de um princípio de

justiça, o reequilíbrio entre os interesses e posi-

ções divergentes.

Assim sucede, por exemplo, quando as partici-

pações detidas na sequência de uma oferta pú-

blica de aquisição sejam tão significativas que

importem a concentração de «90% dos direitos

de voto correspondentes ao capital social até

ao apuramento dos resultados da oferta e 90%

dos direitos de voto abrangidos pela oferta» na

pessoa do oferente, surgindo na esfera dos acio-

nistas titulares de ações remanescentes o direito

Sociedade com o capital aberto ao investimento do público... : 73

74 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

de alienação potestativa, a que se refere o

artigo 196.º:

3.2. A integração do regime da perda

da qualidade de sociedade aberta

num sistema unitário e a consideração

de lugares paralelos

I. Para demonstrar que a perda de qualidade de

sociedade aberta apenas pode ser obtida após

concessão de uma oportunidade de saída aos

acionistas remanescentes, deve ter-se em consi-

deração situações em que, perante um potencial

conflito de interesses de natureza análoga àque-

le que existe no âmbito da perda da referida

qualidade, a lei prevê uma resposta que precisa-

mente se baseia na realização de uma oportuni-

dade de saída dos acionistas minoritários.

Assim, reconhecendo a lei a existência de cir-

cunstâncias em que é propícia a ocorrência de

um conflito entre o princípio da maioria e a

proteção da minoria, vem estabelecer diversos

mecanismos para a sua resolução, ou concilia-

ção, promovendo, em nome de um princípio de

justiça, o reequilíbrio entre os interesses e posi-

ções divergentes.

Assim sucede, por exemplo, quando as partici-

pações detidas na sequência de uma oferta pú-

blica de aquisição sejam tão significativas que

importem a concentração de «90% dos direitos

de voto correspondentes ao capital social até

ao apuramento dos resultados da oferta e 90%

dos direitos de voto abrangidos pela oferta» na

pessoa do oferente, surgindo na esfera dos acio-

nistas titulares de ações remanescentes o direito

de alienação potestativa, a que se refere o arti-

go 196.º:

«Cada um dos titulares das acções remanes-

centes, nos três meses subsequentes ao apura-

mento dos resultados da oferta pública de aqui-

sição referida no n.º 1 do artigo 194.º, [pode]

exercer o direito de alienação potestativa, de-

vendo antes, para o efeito, dirigir por escrito

ao sócio dominante convite para que, no prazo

de oito dias, lhe faça proposta de aquisição das

suas acções.»

II. Constituindo este direito de alienação potes-

tativa o reverso do direito de aquisição potesta-

tiva33, se ao acionista de controlo é dada a pos-

sibilidade de obter «…a perda da qualidade de

sociedade aberta da sociedade e a exclusão da

negociação em mercado regulamentado das

acções da sociedade e dos valores mobiliários

que a elas dão direito (…)» (artigo 195.º/4), aos

acionistas remanescentes é facultada, depois da

possibilidade de saída da sociedade que lhes foi

concedida por ocasião da OPA precedente, uma

possibilidade adicional de saída em virtude da

superveniência e conhecimento de uma posição

de domínio qualificado.

O direito de alienação potestativa constitui,

assim, uma solução jurídica de (re)equilíbrio

dos interesses dos acionistas que, em termos

factuais, se encontram não só em posições anta-

gónicas como em posições de diferente privilé-

gio perante as circunstâncias do caso – o acio-

nista maioritário que alcançou os duplos 90%

pode não ter interesse em exercer o direito de

aquisição potestativa, mas os acionistas minori-

tários, destinatários da oferta, encontram-se

carecidos de proteção em virtude de terem reca-

ído em tal circunstância sem que tivessem

contribuído para a mesma.

De resto, recorde-se que, na versão originária

do Código dos Valores Mobiliários, a possibili-

dade de exercer o direito de aquisição potestati-

va dependia dos mesmos pressupostos quantita-

tivos de que dependia a possibilidade de reque-

rer a perda de qualidade de sociedade aberta,

90% dos direitos de voto. Esta, que sendo a

solução mais acertada é a única que confere

33- O que não significa, note-se, que o âmbito subjetivo daqueles abrangidos pelo preceito seja o mesmo. Assim, se o direito de aquisição potestativa pode ser exercido sobre quem quer que tenha as ações que daquele são objeto – mesmo que as tenha adquirido em mercado após o termo da OPA –, já não terá legitimidade para exercer o direito de alienação potestativa o acionista que tenha adquirido as ações após o termo da OPA, pois que em tal caso não se enquadra no universo daqueles que são visados pelo âmbito subjetivo de proteção da norma (que visa facultar aos acionistas, destinatários da OPA, a possibilidade de decidir livremente a manutenção das ações, sem o receio de ficar presos numa sociedade com reduzidíssima liquidez).

75 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

coerência e unidade ao sistema jurídico, condu-

zia à atribuição aos acionistas que se confron-

tassem com a aquisição de uma posição de do-

mínio reforçado na sequência de uma OPA a

possibilidade de evitar ficar reféns numa socie-

dade com tal estrutura acionista, seja porque o

acionista maioritário não exerceu o seu direito

de aquisição potestativa, mantendo a sociedade

em mercado, seja porque vem a requerer a per-

da de qualidade de sociedade aberta (artigo

27.º/1/a), com intuito de a retirar de mercado34.

Significa isto que, na versão originária, o meca-

nismo de saída dos acionistas em casos de exer-

cício do direito de requerer a perda de qualida-

de de sociedade aberta, com fundamento no

artigo 27.º/1/a, estava previsto no artigo 196.º.

O acionista que obtivesse uma tão significativa

adesão à sua oferta, proporcionando-lhe a de-

tenção de 90% dos direitos de voto, não preci-

saria de expulsar os demais mediante exercício

do direito de aquisição potestativa com propósi-

to de fechar a sociedade e excluí-la de negocia-

ção, bastando-lhe requerer a perda de qualidade

de sociedade aberta; os acionistas minoritários

que, não tendo vendido em OPA, fossem con-

frontados com a tomada de decisão de fechar a

sociedade e excluí-la de negociação, disporiam

do direito de alienação potestativa para se apar-

tar da sociedade, em tal cenário.

Tal coerência, quebrada em 2006 quando se

introduziu, sem alterar o art. 27.º/1/a, o requisi-

to quantitativo adicional no artigo 194.º (90%

do objeto da oferta), não pode significar que o

legislador intencionalmente e de forma pensada

pretendeu diminuir as garantias dos acionistas

no contexto do fechamento da sociedade, o que

de reso seria absolutamente incompatível e con-

traditório com a alteração que acabara de intro-

duzir (os duplos 90), cuja razão de ser identifi-

camos com o propósito de tornar mais exigen-

tes os termos em que uma sociedade pode pas-

sar de aberta a fechada e voluntariamente exclu-

ir-se de negociação.

III. Um outro lugar paralelo é encontrado no

artigo 490.º do Código das Sociedades Comer-

ciais35. A circunstância de este se tratar de um

mecanismo previsto naquele Código não poderá

servir para o desqualificar enquanto mecanismo

de proteção dos acionistas minoritários: a or-

dem jurídica deve ser considerada, na aplicação

do direito, de forma unitária, não devendo veri-

ficar-se compartimentações de regulamentação

sobretudo se das mesmas se concluir pela injus-

tiça de tratamento da parte mais desfavorecida

de um determinado conflito. O artigo 490.º da-

quele Código e, em concreto, a alienação potes-

tativa prevista no seu n.º 5, constitui, inegavel-

mente, um mecanismo de proteção da posição

jurídica dos acionistas minoritários a ser acio-

nado necessariamente depois e independente-

mente da possibilidade de saída da sociedade

que aqueles possam ter tido por ocasião da

OPA precedente.

IV. Por fim, é o que sucede, também, nos ter-

mos do artigo 27.º/1/b, de acordo com o qual

uma maioria representativa de pelo menos 90%

do capital social delibera em assembleia geral

requerer a perda de qualidade de sociedade

aberta, caso em que, nos termos do n.º 3 do

mesmo artigo:

«a sociedade deve indicar um accionista que se

obrigue:

a) A adquirir, no prazo de três meses após o

deferimento pela CMVM, os valores mobiliá-

rios pertencentes, nesta data, às pessoas que

não tenham votado favoravelmente alguma das

deliberações em assembleia;

Sociedade com o capital aberto ao investimento do público... : 75

34- A perda de qualidade de sociedade aberta implica necessariamente a exclusão de negociação dos valores mobiliários, embora o inverso não suceda: casos haverá de exclusão de negociação que mantêm intocada a qualidade de sociedade aberta. Porém, nos casos em que tal corresponda ao exercício da vontade, será tendencialmente irrelevante a distinção, pois não se antecipa a existência de qualquer interesse atendível em promover a exclusão de negociação e manter a qualidade de sociedade aberta. Daí que a legislação nacional tenha previsto, como via para a exclusão de negociação, o procedimento de perda de qualidade de sociedade aberta, porque se verifica a concentração da totalidade (artigo 194.º) ou de uma percentagem considerável de direitos de voto (artigo 27.º/1/a) e b)) na esfera de um acionista. 35- Nos termos da qual deverá adquirir as ações remanescentes por um preço justificado por relatório elaborado por revisor oficial de

contas independente das sociedades interessadas (n.º 2) ou judicialmente determinado (n.º 6).

76 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

b) A caucionar a obrigação referida na alínea

anterior por garantia bancária ou depósito em

dinheiro efectuado em instituição de crédito.»

Este mecanismo permite que os acionistas mi-

noritários se desvinculem da relação social em

virtude da verificação de um conflito entre os

seus interesses e os interesses da maioria, resul-

tantes, agora, não (necessariamente) da concen-

tração de capital na sequência de uma OPA,

mas da deliberação de perda em assembleia

geral tomada por aquela maioria.

Ora, se nos termos do artigo 27.º/1/a o pressu-

posto da proteção do princípio da maioria se

consubstancia no prévio lançamento de OPA (e,

se assim o entendermos, na conjugação do mes-

mo com o direito de saída proporcionado pelo

direito de alienação potestativa), nos termos da

al. b) assenta numa deliberação tomada em as-

sembleia geral, conjugada com a implementa-

ção de um mecanismo de saída para os acionis-

tas que não tenham votado favoravelmente a

perda.

V. Revistos os casos em que o legislador pro-

moveu uma conciliação de interesses que iden-

tificámos existir nestes casos, concluímos tratar

-se, em todos os expedientes mencionados, de

mecanismos em que a concretização da garantia

de proteção da posição jurídica dos acionistas

titulares de ações remanescentes passa pela im-

posição ao acionista titular de um domínio qua-

lificado36 de conceder, por qualquer via, um

direito de saída que se afigure justo, conferindo

ao investidor a possibilidade de ponderar a per-

manência ou a saída da sociedade que irá fechar

-se e, neste último caso, permitindo uma saída

em condições satisfatórias, procurando sempre

evitar a alienação das ações por valores iníquos.

Esse constitui, por isso, o pressuposto inerente

à possibilidade de perda de qualidade de socie-

dade aberta que venha a ser determinada por

recurso à al. a) do n.º 1 do artigo 27.º, mal se

compreendendo que ao acionista de controlo

fosse facultada a possibilidade de obter a perda

de qualidade de sociedade aberta e promover a

exclusão de negociação das ações da sociedade

sem que aos acionistas remanescentes fosse

facultado uma correspondente oportunidade de

saída, assente em princípios de justiça material.

VI. Constituem as referidas disposições

(alienação potestativa mobiliária [196.º], aliena-

ção potestativa societária [490.º do Código das

Sociedades Comerciais] e deliberação em as-

sembleia geral [27.º/1/b]), portanto, lugares

paralelos, devendo como tal ser relevados no

âmbito da consideração do elemento sistemático

de interpretação da norma do artigo 27.º/1/a)37.

Em consideração a esses lugares paralelos, con-

clui-se ser desadequado o entendimento de que

a perda de qualidade de sociedade aberta com

fundamento no artigo 27.º/1/a dispensa uma

adicional (face à OPA precedente) forma de

proteção da posição dos acionistas minoritários.

Desde logo porque em nenhuma outra circuns-

tância onde se evidencia um conflito de nature-

za similar o legislador dispensou a efetivação

de um mecanismo de proteção da parte mais

fraca, os acionistas remanescentes, perante a

consumação da circunstância suscetível de afe-

tar a sua posição jurídica38.

36- Mal se compreenderia que tal direito fosse atribuído ao futuro titular de uma eventual e ainda não constituída posição de domínio quali-ficado, quando aos demais acionistas que em tais circunstâncias recairiam numa situação de sujeição não era dada mais do que a possibili-dade de, no presente, decidir sobre o seu desinvestimento em face de uma tão só hipotética situação futura – a verificação dos requisitos quantitativos e volitivos de que dependeria a obtenção da perda de qualidade de sociedade aberta. 37- Como refere Baptista Machado, “Introdução ao Direito…”, ob. ant. cit., p. 183, «[e]ste elemento compreende a consideração (…) de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos).» 38- Não bastando, pois, o simples pré-anuncio da possibilidade futura de a sociedade vir a perder a qualidade de aberta e a negociabilidade das suas ações em mercado, que de resto sempre poderá funcionar como um indesejável instrumento de pressão para a venda em OPA.

77 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Assim, nos casos em que esse mecanismo de

proteção não tenha sido proporcionado aos aci-

onistas minoritários, a perda de qualidade de

sociedade aberta não o poderá dispensar, não

porque a CMVM o deva ou possa discricionari-

amente impor, mas porque o exige uma correta

interpretação do preceito e o pressupõe a unida-

de e coerência do sistema jurídico39.

3.3. A proteção do investidor como critério

de decisão e deferimento do pedido de perda

de qualidade de sociedade aberta

Com tudo o que fica dito, é agora inequívoco

que a CMVM só poderá deliberar favoravel-

mente o pedido de perda de qualidade de socie-

dade aberta ao abrigo do artigo 27.º/1/a se e

quando se verificarem preenchidos todos os

pressupostos de legalidade inerentes ao funcio-

namento do instituto, bem como assegurada a

coerência do sistema e das práticas da CMVM

no que respeita a entendimentos, interpretações

e decisões anteriormente adotadas em casos

similares.

Entre os requisitos legais que devem presidir à

prática do ato assumem particular relevo o prin-

cípio de proteção dos investidores [artigo 358.º/

a)], enquanto princípio estruturante do direito

dos valores mobiliários, cuja implementação e

proteção constitui um dos mais elementares

deveres da CMVM no exercício das suas com-

petências de regulação e supervisão do merca-

do.

Efetivamente, em face da já mencionada deteri-

oração da posição do investidor subsequente a

qualquer exclusão de negociação (delisting, que

a perda de qualidade de sociedade aberta impli-

ca), o ordenamento jurídico muniu-se, como se

viu também, de uma amplitude significativa de

instrumentos destinados a conferir ao investidor

a possibilidade de ponderar a permanência ou a

saída da sociedade que irá fechar-se e, neste

último caso, de permitir ao investidor fazê-lo

em condições satisfatórias, procurando sempre

evitar a alienação das ações por valores iníquos.

Tais formas de tutela dos investidores concreti-

zam-se pela convocação de diversos mecanis-

mos prévios (deliberação autorizativa da assem-

bleia geral para a perda de qualidade, ao abrigo

do artigo 27.º/1/b) e subsequentes (alienação

potestativa, nos termos do artigo 196.º ou do

artigo 490.º/5 do Código das Sociedades Co-

merciais) à perda de qualidade de sociedade

aberta.

Em caso de requerimento para a perda de quali-

dade de sociedade aberta nos termos do artigo

27.º/1/a, sem que aos destinatários da oferta

seja concedida a possibilidade de manter ou

vender as suas ações em face da projetada von-

tade inequívoca do oferente de requerer a perda

de qualidade de sociedade aberta, não estará

assegurada essa possibilidade de saída em con-

dições adequadas, o que resultaria numa poten-

cial e inaceitável situação de captura dos acio-

nistas minoritários, caso o sistema jurídico na

sua coerência global não assegurasse qualquer

mecanismo justo de saída.

A necessidade de tutela da posição do investi-

dor em sociedade aberta que se torna fechada

por acionamento do artigo 27.º/1/a, i.e., sem

qualquer possibilidade de ser influenciada pelo

acionista remanescente, constitui assim um im-

perativo lógico e axiológico do próprio sistema

jurídico e vetor fundamental do regime jurídico

dos valores mobiliários e das sociedades comer-

ciais, estruturalmente vinculada ao cumprimen-

to do dever de proteção do investidor consigna-

do à CMVM pelo artigo 358.º/1/a.

Sociedade com o capital aberto ao investimento do público... : 77

39- Não obstante a existência de precedentes – e a hoje unanimemente aceite interpretação do artigo 27.º/1/a no sentido de os seus requisi-tos quantitativos não diferirem daqueles que estão na base do direito de alienação potestativa –, seria de todo conveniente, ainda que com meros afeitos aclaratórios, uma intervenção legislativa que evitasse a invocação de qualquer solução que pusesse em causa a unidade e coerência sistemática do ordenamento português, conferindo à letra daquele preceito os duplos 90 que hoje se encontram literalmente pre-vistos no artigo 194.º.

78 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

D. Conclusões

I. Feito este percurso, alcançámos algumas con-

clusões que poderão trazer luz a novos proble-

mas.

A qualidade de sociedade aberta constitui pres-

suposto da aplicação de um regime de proteção

dos potenciais acionistas que adquire incomen-

surável densificação quando à qualidade de

aberta é acrescida a qualidade de cotada, sem-

pre que a sociedade admite à negociação as su-

as ações. Não havendo sociedade sujeita a lei

pessoal portuguesa que não seja aberta (artigo

13.º/1/c), percebe-se que a via para a exclusão

voluntária passe necessariamente pela perda da

qualidade de sociedade aberta, na sequência de

OPA que conduza à aplicabilidade dos regimes

de aquisição ou alienação potestativa e que,

como tal, admitam concomitantemente a aplica-

ção do art. 27.º/1/a ou de deliberação em assem-

bleia geral ao abrigo do artigo 27.º/1/b.

II. Tais vias, porém, não se afiguram de recurso

possível para as sociedades que, sujeitas a lei

pessoal estrangeira, não adquirem a qualidade

de sociedade aberta.

Nesses casos, afastada que está a possibilidade

de aplicação dos institutos da aquisição potes-

tativa de direito nacional ou da perda de quali-

dade de sociedade aberta como via para a pro-

moção do delisting das ações, resta o regime da

exclusão voluntária que, tendo sido inicialmen-

te testado, sem base legal ou regulamentar, no

contexto de sociedade cotadas em dois merca-

dos regulamentados de diferentes jurisdições

(dual listing), veio em sequência a ter acolhi-

mento nas regras harmonizadas da entidade

gestora do mercado regulamentado a funcionar

em Portugal (Euronext), como forma de evitar

uma vinculação contratual perpétua de tais enti-

dades a uma negociação em mercado que pode-

ria já não ser do seu interesse.

Tal regime, dependente da verificação dos

«requisitos adicionais que [a Euronext] consi-

dere adequados» (de acordo com o ponto

6905/5 das suas regras harmonizadas) e criado

com propósito de permitir às referidas socieda-

des, sujeitas a lei pessoal que não a portuguesa,

o que já era reconhecido às sociedades abertas

por via da perda dessa qualidade, não poderá

em qualquer circunstância ser utilizado para

além desse propósito, distorcendo o level

playing field que se procurou por essa via repor.

Ou seja, não deverá legitimamente pretender-se

obter por essa via uma exclusão voluntária de

negociação em termos substancialmente distin-

tos daqueles em que tal resultado é admissível

na sequência de perda de qualidade de socieda-

de aberta.

De resto, o recurso a tais mecanismos por socie-

dade aberta sujeita a lei pessoal portuguesa

acabaria por tornar obsoleto o regime da perda

de tal qualidade, conduzindo ao resultado ab-

surdo de se ser mais exigente para a perda de

uma qualidade (de sociedade aberta) que acar-

reta significativamente menos exigências do

que aquelas associadas a outra qualidade (de

sociedade cotada) que mais facilmente se pode-

ria perder se houvesse de se entender que os

requisitos de saída poderiam ser mais ligeiros.

Trata-se esta de questão de não somenos impor-

tância – embora hoje de reduzido âmbito subje-

tivo de aplicação –, que porém não encontra

espaço nas já longas páginas em que nos debru-

çámos sobre o tema conexo da perda de quali-

dade de sociedade aberta.

79 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Concentração no Mercado de Auditoria

Ana Brochado*

1. Introdução

O mercado dos serviços de auditoria desempe-

nha um papel importante na transparência e no

funcionamento do mercado de capitais. Os au-

ditores externos oferecem uma apreciação inde-

pendente sobre o carácter fidedigno das de-

monstrações que traduzem a situação económi-

co-financeira da empresa. Efetivamente, a qua-

lidade dos serviços de auditoria é relevante para

os participantes no mercado (e.g., investidores,

reguladores, contrapartes empresariais) que

possuem interesses na sociedade auditada, sal-

vaguardando a disponibilização de relatórios

financeiros que refletem o desempenho da em-

presa no mercado, e acrescentando valor a essa

informação (Lee e Lee, 2013; DeFond e Zhang,

2014). A independência dos auditores constitui

uma base fundamental da auditoria, contribuin-

do para a melhoria da qualidade dos serviços e

do reporte financeiro (Fargher, Lee e Mande,

2008). A auditoria é apenas útil se os stakehol-

ders sentirem confiança nos serviços dos audi-

tores e nos relatórios por estes produzidos. As

empresas de auditoria funcionam, deste modo

como ‘gatekeepers of the public securities mar-

ket’ (Ghosh & Moon, 2005: 588).

Do lado da procura, a auditoria é obrigatória

por Lei para todas as entidades de interesse pú-

blico, como é o caso das empresas cotadas.

Do lado da oferta, o mercado dos serviços de

auditoria à escala global caracteriza-se por uma

forte concentração. Os principais participantes

atuais no mercado de auditoria para as empresas

cotadas são frequentemente referidos como os

BIG 4 (i.e., Deloitte, Ernst & Young, KPMG e

PwC). Na generalidade dos países desenvolvi-

dos, mais de 75% das empresas cotadas são

clientes de um dos auditores pertencentes ao

grupo Big 4, e estas grandes empresas represen-

tam mais de 90% dos honorários cobrados em

grande maioria dos Estados Membros (Ewert &

London Economics, 2006).

A concentração no mercado tem merecido a

preocupação por parte dos reguladores e está

presente de forma explícita em diversos docu-

mentos oficiais nomeadamente nos Estados

Unidos (Government Accountability Office,

2003, 2008; United States Treasury, 2006,

2008), no Reino Unido (Oxera, 2006, 2007;

Office of Fair Trading, 2011), na Austrália

(Treasury, 2010; Department of Finance and

Deregulation, 2011) e na Europa (Comissão

Europeia, 2010).

Efetivamente, os reguladores nos diversos paí-

ses têm destacado os efeitos negativos potenci-

ais que os níveis de concentração atuais possam

ter na redução da concorrência, no fortaleci-

mento do poder de mercado de alguns auditores

e nos impactos adversos em termos de redução

da qualidade (ou do não incentivo para a au-

mentar) dos serviços prestados, de aumento dos

preços para os serviços de auditoria e conse-

quente obtenção de retornos abnormal, de redu-

ção do número de opções disponíveis para as

empresas auditadas, de aumento das barreiras à

entrada, e ainda preocupações sobre possíveis

conflitos de interesse entre os departamentos de

auditoria e de consultoria e de encorajamento

da benevolência dos auditores (e.g., Carson et

al., 2014).

* Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Business Research Unit (BRU-IUL), Lisboa, Portugal

80 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

A Comissão Europeia, no seu Livro Verde, re-

conhece que o elevado nível de concentração

pode resultar na acumulação de riscos sistémi-

cos e que o desaparecimento de uma das Big 4

poderá afetar negativamente a confiança dos

investidores, perturbar a disponibilidade da in-

formação auditada e, consequentemente, afetar

o funcionamento do sistema financeiro como

um todo (Huber, 2011).

O presente trabalho tem como objetivos: (i)

efetuar uma revisão da literatura existente sobre

a estrutura do mercado e a concorrência nos

serviços de auditoria, bem como das causas e

consequências da concentração observada; (ii)

fornecer evidência empírica sobre o padrão de

concentração atual do mercado em Portugal.

2. Revisão da Literatura

2.1 O mercado dos serviços de auditoria

Os principais participantes no mercado de audi-

toria para as empresas cotadas são frequente-

mente referidos como os Big 4, que prestam os

seus serviços às grandes empresas, sendo os

restantes clientes servidos por outras empresas

de menor dimensão.

A Comissão Europeia (2010), no seu Livro

Verde, considera que existem poucas empresas

multinacionais com capacidade para realizar

auditorias de instituições de grande dimensão e

complexidade. A Comissão Europeia identifi-

cou, nas suas decisões sobre processos de con-

centração, dois mercados distintos no domínio

dos serviços de auditoria e contabilidade: “(i)

um mercado para a prestação destes serviços a

pequenas e médias empresas, que consiste prin-

cipalmente em empresas nacionais, e em que as

(…) Grandes desenvolvem atividades em con-

corrência com as empresas de auditoria e conta-

bilidade de "segundo nível" e (ii) um mercado

da prestação de serviços de auditoria e contabi-

lidade a grandes empresas cotadas na Bolsa, de

dimensão nacional ou multinacional, que são

principalmente prestados pelas (…) Grandes”1.

Grande parte da literatura aponta para a seg-

mentação no mercado de auditoria, entre os ser-

viços premium oferecidos pelas Big 4 e os ser-

viços prestados pelas restantes empresas

(Ghosh e Lustgarten, 2006; Bills e Stephens,

2016). Existem diferenças nos ambientes com-

petitivos das grandes e pequenas/médias empre-

sas por diversas razões, pelo que, numa perspe-

tiva de mercado relevante, estes dois grupos de

empresas concorrerem em mercados separados

(Bills e Stephens, 2016). Considerando o pri-

meiro nível – Big 4 - o mercado de auditoria

funciona como um oligopólio (Simons & Zein,

2016).

Choi et al. (2010) propõe a segmentação das

empresas de auditoria no mercado americano

em três grupos, em função da respetiva dimen-

são (número de escritórios, honorários médios,

e número de clientes), designadamente em

grandes empresas, empresas de média dimensão

e auditores locais.

Adicionalmente, a Comissão identificou a even-

tual existência de mercados ainda mais estreitos

para a prestação de serviços de auditoria e con-

tabilidade em setores específicos, nomeadamen-

te, nos sectores bancário e segurador. Efetiva-

mente, na Europa as Big 4 detêm aproximada-

mente 90% dos mandatos dos bancos e das se-

guradoras cotadas e apenas 2/3 dos mandatos de

outras empresas cotadas (Ewert e London Eco-

nomics, 2006).

Estudos mais recentes têm estudado os níveis

de concentração ao nível local e revelaram que

a liderança de Non-Big4 ao nível local gera

efeitos positivos na concorrência (Keune et al.,

2016).

1- Processo de concentração Ernst & Young/Andersen France, Caso COMP/M.2816, decisão da Comissão de 5 de Setembro de 2002; Processo de concentração Ernst & Young/Andersen Germany, Caso COMP/M.2824, decisão da Comissão de 27 de Agosto de 2002; Pro-cesso de concentração Deloitte & Touche/Andersen UK, caso COMP/M.2810, decisão da Comissão de 1 de Julho de 2002; e Processo de concentração Price Waterhouse/Coopers & Lybrand, Caso M.1016, decisão da Comissão de 20 de Maio de 1998.

81 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

2.2 A estrutura no mercado de auditoria

Os primeiros estudos sobre concentração no

mercado de auditoria foram efetuados no mer-

cado americano (e.g., Eichenseher e Danos,

1981; Danos e Eichenseher, 1982, 1986).

As fusões das Big 8 de 1989 motivaram um

grande número de estudos nos Estados Unidos.

Tonge e Wootton (1991) concluíram que as

fusões não conduziram a uma menor concorrên-

cia e maiores preços e que, através das fusões,

as empresas mais pequenas tornaram-se mais

competitivas com uma dimensão mais homogé-

nea. Choi e Zéghal (1999), calcularam o índice

IHH (Índice Herschman Herfindahm) em dez

países e concluíram que as grandes empresas

dominavam o mercado dos serviços de audito-

ria antes das fusões e aquisições aumentaram o

seu domínio após os processos de concentração.

Ivancevich e Zardkoohi (2000) concluíram que

os processos de concentração de 1989 resulta-

ram em eficiências (diminuição relativa dos

custos) que foram passadas para os clientes

(menores honorários). De acordo com Sullivan

(2002), as fusões e aquisições permitiram que

as empresas partilhassem o staff especializado e

localizações complementares, melhorando a

posição competitiva nos mercados globais.

Pong e Burnett (2006) concluíram que a fusão

que deu origem à PwC no Reino Unido em

1998 gerou uma redução no curto prazo na quo-

ta conjunta das duas empresas, e liderança no

setorial (indústria) e geográfica (regiões especí-

ficas).

A consolidação dos Big 4 gerou uma nova vaga

de estudos, em torno das preocupações sobre o

nível de concorrência observado. Nos EUA, o

índice IHH após os processos de concentração

excedeu no mercado da auditoria o valor de

corte definido pelo departamento de justiça para

o ‘oligopolistic gatekeeper’ (Cox, 2006).

Vários estudos realizados por reguladores e in-

vestigadores avaliaram o nível de concentração

no mercado de auditoria e usaram medidas de

concentração como o rácio de concentração, o

índice de Herfindahl-Hirschman (IHH), o coefi-

ciente de Gini e a curva de Lorenz como uma

representação gráfica da desigualdade da distri-

buição. A Tabela 1 apresenta uma síntese de

uma seleção de estudos de concentração com

cobertura geográfica alargada. Em Portugal,

refiram-se os estudos sobre a concentração no

mercado de auditoria de Almeida (2012) e Al-

meida e Silva (2015).

O estudo de Ewert e London Economics (2006)

revelou a existência de um mercado muito con-

centrado na Europa. Em contraste com a situa-

ção na generalidade dos países, em que o mer-

cado dos serviços de auditoria é dominado pelas

Big 4, na China as Big 4 apenas representavam

17% do mercado (1999-2007) (Francis et al.,

2013) e em 2010 existiam 50 empresas com

capacidade para servir as empresas cotadas

(GAO, 2011). O ministro das finanças Chinês

manifestou a sua preocupação sobre a existên-

cia de um mercado muito competitivo, caracte-

rizado pela presença de pequenas empresas de

auditoria, que concorrem através da oferta de

descontos e de uma reduzida qualidade da audi-

toria. Neste contexto, foram promovidas diver-

sas alterações legislativas tendo em vista o au-

mento da concentração e consequentemente da

dimensão das empresas (General Office of the

State Council, 2009).

Concentração no mercado de Auditoria : 81

82 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Referência Amostra Medida

Concentração Variáveis Nível concentração

Dunn, Kohl-beck e Mayhew (2011)

USA N=649 (45 setores) 2001-2007

CR4, G N.º de cli-entes; Honorários

2001. CR4| G (honorários) 98%, 73,98 2007. CR4| G (honorários) 97%, 67,88

Carson, Redmayneee Liao, (2014)

Austrália, em-presas cotadas 2000-2011; N=1200(2000) – 1858(2011)

CR4,6,20; IHH N.º de cli-entes; Honorários

2000. CR4| IHH (honorários) 91%, 1852- CR4| IHH (clientes) 63%, 939 2011. CR4| IHH (honorários) 87%, 2151- CR4| IHH (clientes) 44%, 742

Ewert e Londom Economics (2006)

25 países, Eu-ropa Cotadas no principal índi-ce acionista de cada país

CR4, IHH N.º clientes IHH Min – 1818; Max – 4876 CR4 Min – 73 Max 100

Abidin, Beattie eGoodacre (2010)

UK1998-2003 N=1907(1998)-1386(2003)

CR4,6,7,8, HHI

N.º de cli-entes; Honorários

CR4 clientes 0,67-0,68 CR (honorários) 0,88-0,96

Francis , Michas e Seavey (2013)

42 países, 1999-2007

CR4, IHH N.º clientes CR4 0,17-0,86

Almeida e Silva (2015)

Portugal 10 maiores empresas de Auditoria 2010-2014

CR4, HHI, G N.º clien-tes; hono-rários

2014 (honorários) CR4=0,71; HHI=0,13; GI=0,78 2010 (honorários) CR4=0,76; IHH=0,15; G=0,77

Tabela 1. Estudos de concentração no mercado dos serviços de auditoria

Nota: IHH – Índice de Herfindahl-Hirschman; G – Coefiente de Gini; CR4,6,20 – Rácio de concentração (quota de mercado das 4, 6 e 20 maiores empresas)

83 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

2.3 Causas dos elevados níveis

de concentração

Os mercados mundiais dos serviços de auditoria

para as cotadas caracterizam-se por elevados

níveis de concentração, um fenómeno que acon-

teceu por todo o mundo. Um número de fatores

terão contribuído para a consolidação das quo-

tas de mercado dos serviços de auditoria à esca-

la global, nos últimos 30 anos. Desde logo, im-

porta referir o efeito direto das fusões e aquisi-

ções que ocorreram de forma sequencial (Liu,

2014). Em 1989 eram consideradas como Big

8: Arthur Anderson, Arthur Young, Coopers &

Lybrand, Ernst & Whinney, Deloitte Haskins &

Sells, Peat, Marwick Mitchell, Price Water-

house e Touche Ross. A concorrência intensifi-

cou-se e as Big 8 deram origem às Big 6, que

incluem a Ernst & Young e a Deloitte &

Touche. As Big 6 transformaram-se nas Big 5

em 1998, após a fusão da Price Waterhouse

com a Coopers & Lybrand, que resultou na

PricewaterhouseCoopers. O desaparecimento

da Arthur Anderson em 2002 após o escândalo

de 2001 em torno da Enron reduziu as princi-

pais empresas de auditoria para as Big 4. As

fusões no mercado de auditoria alteraram a es-

trutura do mercado de auditoria, reduzindo o

número de empresas dominantes. A Tabela que

se segue descreve a transição das Big 8 para as

Big 4.

Concentração no mercado de Auditoria : 83

Fonte: Adaptado a partir de London Economics (2006; 30)

Tabela 2. Fusões e aquisições nos serviços de auditoria à escala global

84 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Um segundo fator que terá conduzido à estrutu-

ra do mercado atual está relacionado com a mu-

dança da procura e das necessidades dos clien-

tes. A globalização e aumento da dispersão geo-

gráfica dos clientes dos serviços de auditoria

alterou a procura destes serviços. Atualmente as

multinacionais procuram fornecedores de servi-

ços de auditoria que cubram todas as operações

geográficas. Este perfil da procura poderá estar

na raiz de algumas operações de concentração,

atendendo ao facto da presença regional das Big

8 variar consideravelmente.

As constantes inovações tecnológicas nos servi-

ços aumentaram as exigências de capital para

investimento em hardware e software. Empre-

sas de maior dimensão conseguem economias

de escala ao dividirem os custos fixos por uma

maior base de clientes.

A necessidade de desenvolvimento de um co-

nhecimento técnico para indústrias específicas e

a necessidade de um staff especializado para

satisfazer as necessidades das grandes multina-

cionais terão resultado num aumento da escala

do investimento necessário para uma empresa

de auditoria.

Adicionalmente, outros fatores, relacionados

com barreiras à entrada e os associados à repu-

tação são também relevantes. O mercado perce-

ciona que as empresas de maior dimensão (Big

Firms) possuem melhores recursos, maior co-

bertura geográfica e melhores competências

técnicas, e oferecem outros serviços para além

dos serviços de auditoria, tal como os serviços

de consultoria (McMeeking, 2007).

De acordo com o estudo da London Economics

(2006) as empresas de média dimensão consi-

deram a reputação como um driver da concor-

rência no mercado de grandes empresas e em-

presas cotadas. De seguida aparece o preço, a

qualidade em termos de fiabilidade e capacida-

de. No mesmo estudo, as Big 4 consideram que

os mandatos individuais são ganhos e mantidos

com base em critérios como a qualidade, a ex-

periência da equipa de auditoria e o envolvi-

mento entre o prestador de serviços e o cliente.

Segundo as Big 4, as auditoras concorrem entre

si com base no preço, dado que os restantes

atributos são bastante semelhantes.

2.4 Barreiras à entrada

A entrada no mercado dos serviços de auditoria

é pouco atrativa atendendo aos elevados custos

de entrada, período de payback elevado, e risco

de negócio (Oxera, 2006). As principais barrei-

ras à entrada na prestação dos serviços de audi-

toria às empresas cotadas possuem uma nature-

za diversa.

Em primeiro lugar, as empresas de média di-

mensão possuem uma capacidade reduzida, bai-

xa cobertura geográfica, rede inexistente e falta

de experiência anterior com diversas empresas

e setores.

A consolidação do mercado nas Big 4 parece

ter gerado um maior conforto na nomeação de

uma destas quatro empresas como auditora.

Observam-se a existência de inércia dos clien-

tes dos serviços de auditoria, custos de mudan-

ça elevados e pouca rotação do auditor.

Os participantes no mercado concorrem em ter-

mos de preço, serviço, tecnologia e qualidade

(Carson et al., 2014). As empresas mudam de

auditor com pouca frequência. O estudo da

London Economics (2006) revela que metade

das empresas tinham o mesmo auditor por mais

de 7 anos e que 85% mudaram de uma Big 4

para outra Big 4. Os preços e a não satisfação

com os serviços não são aspetos revelantes para

a mudança de auditor.

Adicionalmente existe uma barreira de natureza

comportamental que se traduz na preferência

por um Big 4 e a convicção de que estas empre-

sas são as melhores em termos de qualidade do

serviço. Efetivamente, a escolha de um Big 4

85 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

torna-se mais fácil de justificar perante os sta-

keholders. A reputação das Big 4 é, deste modo,

uma forte barreira à entrada.

Por fim, refira-se a existência de cláusulas con-

tratuais que impõem o recurso a uma das quatro

grandes redes de auditoria, conhecidas como

cláusulas “Big 4 only” (Le Vourc’h e Morand,

2011).

Numa estrutura de mercado em que do lado da

oferta existem poucas empresas e do lado da

procura existe um maior número de empresas

são suscetíveis de gerar distorções com implica-

ções negativas em termos de preço e de quali-

dade.

2.5 Nível de concentração e preços

Em teoria, uma estrutura de oligopólio pode

resultar na utilização por parte das empresas de

poder de mercado para aumentarem os preços.

Simunic (1980) desenvolveu um dos primeiros

estudos sobre os preços dos serviços de audito-

ria, dando origem a vários trabalhos que anali-

saram a relação entre os honorários de auditoria

e diversas características da empresa auditada e

do auditor e fatores específicos do contrato (ver

Hay et al. 2006, para uma revisão destes estu-

dos).

Teoricamente e empiricamente, são admissíveis

relações positivas e negativas entre níveis de

concentração e níveis de preços (Huang et al.,

2016). Na perspetiva da teoria microeconómica

clássica, um aumento na concentração aumenta

o poder de mercado e gera um aumento dos

honorários (Oxera, 2006; Comissão Europeia,

2010). Por outro lado, um aumento da concen-

tração pode reduzir os honorários devido às

economias de escala (Pearson e Trompeter,

1994; Numan e Willenkens, 2012).

Outros autores (Numan e Willekens, 2012; Pe-

arson e Trompeter, 1994) concluem pela exis-

tência de uma relação negativa entre os níveis

de concentração e os honorários dos serviços de

auditoria. Pong e Burnett (2006) estudaram o

impacto da fusão que deu origem à PwC no

Reino Unido (1998) e concluíram que esta não

gerou uma redução dos honorários de auditoria

e esteve associada a uma redução dos honorá-

rios não relacionados com a auditoria.

Alguns estudos realizados nos Estados Unidos

(Chi, 2006; Asthana et al., 2009) e Austrália

(Hamilton et al., 2012; Carson et al., 2012) ar-

gumentam que após o desaparecimento da Ar-

tur Anderson o poder de mercado das Big 4

aumentou e reduziu o incentivo para a concor-

rência através dos preços, implicando uma rela-

ção positiva entre concentração e valor dos ho-

norários.

O estudo realizado pela Oxera (2006) revelou

que no Reino Unido no período 1995-2004 a

concentração de mercado e a quota de mercado

de um dado auditor num dado ano/setor tem

uma relação positiva com os honorários.

O estudo de Carson et al. (2012) revelou a exis-

tência de um aumento dos honorários pagos às

Big N no período 2000-2007 relativamente a

1996-1999. No entanto, esse aumento não foi

igual em todos os segmentos. Os grandes clien-

tes observaram um aumento mais reduzido nos

honorários, o que pode ser justificado pelo seu

poder de mercado, enquanto as pequenas em-

presas que optaram por um Big N observaram

um maior aumento nos preços (apesar de existi-

rem outras empresas de auditoria no mercado).

Tal sugere que os pequenos clientes percecio-

nam a existência de um benefício em ter um

auditor Big N, e que as auditorias das restantes

empresas não são percecionadas com qualidade

equivalente (Carson et al., 2012).

Huang et al. (2016) identificaram uma relação

positiva entre os níveis de concentração e os

honorários de auditoria na China, no período de

2001 a 2011. No entanto, os mesmos autores

concluem que este efeito é acompanhado de

Concentração no mercado de Auditoria : 85

86 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

uma melhoria da qualidade dos serviços presta-

dos pelas empresas de auditoria.

Gong et al. (2016) concluem que a consolida-

ção dos mercados dos serviços de auditoria ge-

rou um aumento da eficiência decorrente das

economias de escala observadas (redução dos

custos associados a um aumento da qualidade

dos serviços de auditoria). No entanto, este efei-

to não é passado para o cliente através de hono-

rários mais baixos. Este efeito é especialmente

visível no caso das Big 4 e dos clientes de me-

nor dimensão, que decorre do efeito reputacio-

nal, que leva estas empresas a pagarem um

brand premium.

Liu (2014) concluiu que, apesar da existência

de um mercado fortemente concentrado, uma

fusão adicional iria produzir aumentos de pre-

ços não significativos. Segundo o autor devem

ser balanceados dois efeitos: as fusões reduzem

a concorrência e podem resultar em preços mais

elevados; mas podem ser geradoras de eficiên-

cias que reduzem os preços e aumentam o bem-

estar do consumidor.

2.6 Nível de concentração e qualidade

Os estudos sobre a relação entre concentração e

a qualidade dos serviços de auditoria têm pro-

duzido resultados diversos, apontando para uma

relação positiva ou negativa entre as duas variá-

veis (Huang et al., 2016).

Por um lado, num mercado mais concentrado, o

receio de perda de clientes é minimizado, aten-

dendo ao reduzido número de escolhas possí-

veis, pelo que existe maior probabilidade de

independência (Newton et al., 2013). Adicio-

nalmente a existência de economias de escala

pode permitir reduzir os custos, e dar mais es-

paço aos auditores para aumentar a qualidade

dos serviços prestados. Por outro lado, num

mercado muito concentrado os auditores têm

poucos incentivos para melhorar a qualidade do

serviço, dado que os clientes têm possibilidades

de escolha limitada (Francis et al., 2013).

Simons e Zein (2016) referem que o impacto

das empresas de média dimensão na qualidade

da auditoria e nas quotas de mercado é incon-

clusiva numa perspetiva empírica.

Francis et al. (2013) estudaram a relação entre a

estrutura do mercado de auditoria e a qualidade

da auditoria em 42 países e concluíram que a

concentração de mercado (quota de mercado

das Big 4), por si, não gera efeitos negativos na

qualidade dos serviços de auditoria. No entanto,

o mesmo estudo revelou que a assimetria de

quotas de mercado neste grupo (Big 4) pode

gerar efeitos negativos ao nível da qualidade

dos serviços prestados.

2.7 Medidas de política regulatória

A estrutura oligopolística do mercado, com

poucas empresas de auditoria e elevadas barrei-

ras à entrada tende a persistir, o que origina de-

safios para os reguladores, nomeadamente na

adoção de medidas corretivas para mitigar ou

eliminar os efeitos da concentração e garantir a

independência dos serviços prestados.

Diversas medidas de política regulatória têm

sido propostas ao longo dos anos nos países

europeus, designadamente (vide Heß and Stefa-

ni, 2012 para uma análise das medidas de políti-

ca regulatória adotadas em 29 países): limites

máximos para os honorários, proibição da ofer-

ta conjunta de serviços de auditoria e de consul-

toria; obrigatoriedade de auditorias conjuntas;

duração máxima dos contratos de auditoria/

obrigatoriedade de rotação da empresa de audi-

toria; obrigatoriedade de rotação do auditor;

obrigatoriedade de publicação dos honorários

de auditoria. Outra medida possível é a abertura

de concursos para os serviços de auditoria

(Le Vourc’h e Morand, 2011).

87 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Heß & Ulrike (2012) realizaram um estudo em

29 países, anos 2001-2010 envolvendo141.190

empresas cotadas, 1.439 auditoras e concluíram

que a proibição da oferta conjunta de serviços

de auditoria e de consultoria diminuiu a concen-

tração, enquanto as auditorias conjuntas e a ro-

tação obrigatória do auditor aumentaram a con-

centração de mercado. O estudo revela que as

medidas que pretendem aumentar a qualidade

dos serviços de auditoria podem ter efeitos ad-

versos sobre a concentração de mercado.

Existem diversos argumentos a favor da proibi-

ção da oferta conjunta de serviços de auditoria e

de outros serviços. A oferta conjunta de dois

tipos de serviços pode contribuir para um au-

mento da concentração e mercado e um aumen-

to das barreiras à entrada. Por outro lado, num

cenário de proibição, os clientes podem esco-

lher fornecedores distintos para os dois servi-

ços, por exemplo uma empresa pertencente ao

grupo dos Big 4 para os serviços de auditoria, e

uma de média dimensão para os serviços de

auditoria.

Os resultados empíricos sobre a relação entre os

honorários dos serviços de consultoria e a quali-

dade dos serviços de auditoria e a concentração

de mercado têm resultado em conclusões não

consensuais (Quick, 2012). Por exemplo, o es-

tudo de Hoitash et al. (2008) revelou a existên-

cia de uma relação negativa entre os honorários

de outros serviços e as medidas de qualidade da

auditoria, enquanto Ruddock et al. (2006) con-

cluíram que não existe evidência que confirme

este tipo de relação. Cosgrove e Niederjohn

(2008) argumentam que a restrição de oferta

simultânea dos dois tipos de serviços iria gerar

um aumento dos honorários de auditoria e da

concentração de mercado.

Num sistema de auditorias conjuntas, as empre-

sas são obrigadas a nomear dois (ou mais) audi-

tores que em conjunto elaboram e emitem o

relatório de auditoria. Em termos de benefícios,

espera-se que esta medida diminua o nível de

concentração ao nível dos serviços de auditoria,

favoreça o desenvolvimento de parcerias entre

as Big 4 e pequenas e médias empresas de audi-

toria e melhore a qualidade da auditoria através

de um sistema de validação cruzada. Adicional-

mente, pode minimizar os riscos de falência de

uma das Big 4. Piot (2007) concluiu que as au-

ditorias conjuntas podem preservar a concorrên-

cia reduzindo o domínio das grades empresas.

Este objetivo será maximizado se o consórcio

não agrupar duas Big 4.

No entanto, há custos associados a um sistema

de auditoria conjunta: a presença de dois audi-

tores aumenta os custos de coordenação, especi-

almente num consórcio entre uma empresa

grande e uma empresa de média dimensão. Es-

pera-se que os honorários sejam superiores

quando os serviços são prestados por uma em-

presa de grande dimensão e uma empresa de

média dimensão relativamente a um cenário em

que os serviços são prestados por um consórcio

entre os Big 4 (Thinggaard e Kiertzner, 2008).

Por outro lado, a realização de auditorias con-

juntas apenas por pares de grandes empresas

poderia gerar rotinas de auditoria, favorecer a

cartelização e diminuir a qualidade dos serviços

prestados (Piot, 2007). No mercado Francês

(1997-2003), em que as auditorias conjuntas

são obrigatórias, Piot (2007) concluiu que ape-

sar do aumento da concentração no mercado

dos serviços de auditoria, a fusão que deu ori-

gem á PwC em 1998 não resultou num aumento

da frequência dos consórcios entre grandes em-

presas de auditoria.

A Comissão Europeia (2010) considera que se

afigura incompatível com as normas de inde-

pendência a nomeação da mesma empresa de

auditoria por um período alargado, apensar de

reconhecer a perda de conhecimentos em virtu-

de da rotatividade.

A rotação obrigatória da auditora é uma medida

que procura limitar o número de anos em que

uma empresa pode prestar os serviços de

Concentração no mercado de Auditoria : 87

88 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

auditoria a uma empresa específica. A concen-

tração pode reduzir-se atendendo ao facto de

que mais empresas ficam disponíveis e podem,

potencialmente, ser servidas por empresas de

média dimensão. Espera-se que a rotação tenha

benefícios em termos de independência

(Comunale & Sexton, 2005).

Por outro lado, a rotação pode não conduzir

necessariamente a uma redução da concentra-

ção, atendendo a que uma grande empresa será

substituída com maior probabilidade por outra

grande empresa do que por uma empresa de

pequena ou média dimensão. Em Itália, apesar

de a rotação ser obrigatória desde 1974, acom-

panhou o mesmo padrão de concentração obser-

vado à escala global.

A rotação do auditor é uma prática em vigor

(e.g. Austrália). O argumento base a favor é o

de que a manutenção do auditor pode gerar uma

familiaridade com a gestão do cliente e relutân-

cia a resistir a pressões do cliente relativamente

a opções de política contabilística. A rotação do

auditor é considerada menos custosa do que a

rotação da auditora, assegurando o objetivo de

uma visão nova sobre os serviços de auditoria.

Stewart et al (2016) identificou uma relação

positiva entre os honorários de auditoria e a

rotação do auditor no ano da rotação (voluntária

ou mandatória), associação que é mais forte no

caso dos grandes clientes, não existindo no caso

dos clientes de média dimensão. O grau em que

as empresas são capazes de passar os custos da

rotação varia em função do segmento do merca-

do de auditoria.

Não é expectável que a rotação obrigatória do

auditor dentro da mesma empresa gere efeitos

na concentração de mercado; espera-se que

grandes empresas tenham um número razoável

de auditores. Espera-se que a obrigatoriedade

de rotação do par empresa/auditor poderá intro-

duzir um maior dinamismo no mercado de audi-

toria e aumentar a independência dos auditores.

Esta solução evita que auditores mudem de em-

presas e levem consigo a carteira de clientes.

A realização de concursos com divulgação pú-

blica dos critérios de seleção do auditor é apon-

tada como outra solução (House of the Lords,

2011). Esta abordagem tem como vantagens o

aumento da transparência sobre os critérios de

seleção, devendo ser acompanhada de um rela-

tório com os critérios de escolha. No entanto

esta medida também pode ter desvantagens,

nomeadamente o aumento dos custos para a

empresa auditada e para os auditores. Adicio-

nalmente poderia resultar numa guerra de pre-

ços e na redução da qualidade dos serviços.

3. Metodologia

3.1 Descrição da amostra

A análise empírica sobre a estrutura do mercado

de auditoria em Portugal considera como refe-

rência as sociedades de direito nacional com

ações cotadas na Euronext Lisbon a 31 de de-

zembro de 2013, 2014 e 2015. As sociedades

em análise registaram uma capitalização bolsis-

ta média de 1.338,4M€ em 2013, 1.154,8M€

em 2014 e 1321,1M€ em 2015.

Os dados para a elaboração da presente secção

foram obtidos a partir da informação facultada

no ponto IV dos respetivos relatórios de Gover-

no Societário e dos Relatórios de Governo So-

cietário divulgados pela Comissão do Mercado

de Valores Mobiliários (CMVM).

Para cada auditora foram calculados o número

de clientes, a capitalização bolsista das empre-

sas auditadas e o valor das receitas de auditoria

e de outras receitas.

89 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

3.2 Indicadores de estrutura do mercado

Os indicadores mais frequentemente usados

para aferir a concentração são o rácio de con-

centração das maiores empresas (CR), o índice

IHH (medidas absolutas), o Coeficiente de Gini

(G) e curva de Lorenz (medidas relativas).

O rácio de concentração de ordem (CRn) agrega

a quota de mercado das n empresas de maior

dimensão no mercado:

Em que CR = Quota de mercado acumulada das

n maiores empresas; n= nº de empresas analisa-

das; N = número de empresas totais;

Xn=indicador de atividade da empresa n

Trata-se de um índice simples, suscetível de

uma interpretação generalizada. No entanto,

trata-se de um índice parcial de concentração e

não tem em conta a distribuição completa da

quota de mercado de todas as empresas ou da

sua dimensão.

O índice IHH considera todas as empresas ati-

vas no mercado, independente da sua dimensão,

e reflete a dispersão da dimensão dos agentes.

O índice varia entre 0 e 10.000. O valor 0 signi-

fica uma concentração mínima, em que o mer-

cado é partilhado equitativamente. O indicador

assume o valor 10.000 quando o controlo é

exercido por uma única empresa. Dado que o

quadrado da quota de mercado atribui maior

peso às empresas de maior dimensão, o IHH

diminui à medida que o número de empresas do

mercado aumenta ou quando as quotas de mer-

cado se tornam mais uniformes. O índice IHH é

calculado a partir de:

Em que qn q é a quota de mercado da empresa

n.

A Comissão Europeia considera que existem

preocupações jus concorrenciais de natureza

horizontal quando o IHH assume valores supe-

riores a 20002.

O índice de Gini (G) varia entre 0 e 1. É nulo

quando em todas as classes há uma igual distri-

buição do mercado por todas as empresas e é

máximo quando apenas existe uma empresa no

mercado (concentração máxima); considera-se

um nível de concentração elevado quando o

indicador está entre 0,6 e 0,9 e muito elevado

quando é superior a 0,9.

O coeficiente de Gini é definido por:

, em que

X = proporção acumulada da variável "n.º

auditoras"

Y = proporção acumulada da variável "n.º de

clientes auditados"

A curva de Lorenz obtém-se unindo num refe-

rencial cartesiano as frequências acumuladas

das duas variáveis (X e Y). Quanto maior é a

concentração mais a curva de Lorenz se afasta

da reta de igual distribuição.

4. Resultados

4.1 Níveis de concentração atuais

Nos três períodos em análise foram 10 o núme-

ro de auditores externos que forneceram servi-

ços de auditoria às 43 sociedades cotadas em

análise em cada ano. Considerando o número

de clientes, a PwC é a empresa de maior dimen-

são no mercado, prestando os seus serviços a 17

cotadas em 2013, 16 em 2014 e 14 em 2015. As

duas maiores empresas (PwC e Deloitte) repre-

sentavam em conjunto mais de 50% do merca-

do e as conhecidas BIG 4 tinham um peso entre

85,0% em 2013 e 81,4% em 2015.

Concentração no mercado de Auditoria : 89

2- Estes valores estão em linha com os limites propostos pela Comissão Europeia nas “Orientações para a apreciação das concentrações horizontais nos termos do Regulamento do Conselho relativo ao controlo das concentrações de empresas” (Jornal Oficial C 31 de 05.02.2004).

90 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

A PwC forneceu serviços a 44,0%, 38,1% e

37,7% da capitalização bolsista no mercado

regulamentado Português de 2013 a 2015. As

Big 4 registaram uma quota de mercado conjun-

ta entre 99,0% (2013) e 91,9% (2015), conside-

rando esta medida alternativa de avaliação da

concentração da prestação de serviços de audi-

toria (Tabela 3).

Fonte: Relatórios de Contas e Gestão das Cotadas Nota: IHH – Índice de Herfindahl-Hirschman; G – Coefiente de Gini; CR1,2,4 – Rácio de concentração (quota de mercado da(s) maior empresa, 2 e 4 maiores empresas)

Tabela 3. Concentração no mercado dos serviços de auditoria

(empresas cotadas), 2013-2015

91 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Quando se consideram os honorários totais para

o cálculo das quotas de mercado, a empresa

líder altera-se, Efetivamente, a auditora KPMG

registou a maior quota de mercado em 2013 e

2015 e a Deloitte em 2014.

Em geral observam-se valores superiores dos

indicadores de concentração quando esta é me-

dida pelos honorários totais e capitalização bol-

sista relativamente ao número de empresas au-

ditadas.

Observa-se que a amplitude das quotas de mer-

cado entre a maior e a menor empresa e entre as

Big 4 tem registado uma ligeira contração no

período em análise.

Apesar do índice de concentração IHH ter dimi-

nuído de 2013 para 2015 quando se considera o

número de clientes, registou um aumento quan-

do as quotas de mercado são calculadas com

base na capitalização bolsista e nos honorários.

O coeficiente de Gini revela igualmente a exis-

tência de um mercado com concentração eleva-

da e dispersão entre as quotas de mercado. Tal

como decorre das curvas de Lorenz, a assime-

tria entre as quotas de mercado das 10 auditoras

é superior quando se consideram a capitalização

bolsista e os honorários no cálculo das quotas

de mercado, em alternativa ao número de clien-

tes. O coeficiente de Gini registou uma ligeira

contração de 2013 para 2015 (Gráfico 1).

Concentração no mercado de Auditoria : 91

Gráfico 1. Curva de Lorenz, 2013-2015

Nota: O eixo vertical representa a percentagem acumulada de empresas e o eixo vertical a percentagem acumulada de quota de mercado

4.2 Outras características do setor

4.2.1 Antiguidade

O número de anos que, em média, a empresa de

auditoria externa prestava de forma consecutiva

serviços ao mesmo emitente era de 10,1 em

2013, 8,8 em 2014 e de 9,7 em 2015 (Tabela 4).

Esta evolução decorreu do facto de dois, quatro

e três emitentes terem mudado de auditora em

2013, 2014 e 2015, respetivamente. Do total de

nove empresas, apenas duas contrataram uma

empresa não pertencente às Big 4.

No ano de 2015 uma auditora prestava serviços

há 36 anos consecutivos à mesma empresa.

92 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Tabela 4. Antiguidade dos Serviços de Auditoria (N.º de Anos)

4.2.2 Honorários Serviços

O rácio entre a capitalização bolsista e os hono-

rários cobrados permite uma comparação entre

os honorários recebidos e a dimensão da empre-

sa auditada. A PwC e a EY foram as empresas

que ‘auditaram’ o maior valor de capitalização

bolsista por cada euro de honorários recebidos

da atividade de auditoria e de fiabilidade nos

anos de 2014 e de 2015. Das Big 4, a Deloitte

foi a empresa que registou o menor valor neste

indicador (Gráfico 2).

Gráfico 2. Euro de Capitalização Bolsista das cotadas por cada Euro de Honorários

Recebidos por Serviços de Auditoria e Fiabilidade

Fonte: Relatórios de Contas e Gestão das Cotadas

4.2.3 Peso dos trabalhos de auditoria

As atividades de auditoria representaram

63,0%, 73,2% e 65,2% da faturação cobrada

pelas auditoras às cotadas em análise nos anos

de 2013, 2014 e 2015, respetivamente.

Quando são considerados todos os honorários

cobrados às cotadas pelos serviços de auditoria,

fiabilidade, fiscalidade e outros, observa-se que,

no contexto das cotadas, as Big 4 são mais ati-

vas também nos serviços distintos dos serviços

de auditoria, Por outro lado, as sociedades de

auditoria de menor dimensão tendem a concen-

trar a sua atividade nos serviços de auditoria

(Gráfico 3).

93 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Concentração no mercado de Auditoria : 93

Gráfico 3. Honorários dos auditores externos, por tipo de serviço prestado à sociedade (%)

Fonte: Relatórios de Contas e Gestão das Cotadas

5. Sumário e Conclusões

Os serviços de auditoria desempenham um pa-

pel importante na economia, acrescentando va-

lor aos relatórios financeiros das cotadas. Um

dos assuntos que tem recebido maior atenção

por parte dos reguladores e da comunidade aca-

démica é a concentração à escala global e o do-

mínio das Big 4, descrita em diversos trabalhos

empíricos. Segundo a Comissão Europeia, as

Big 4 assumiram dimensões sistémicas e a fa-

lência de uma das Big 4 poderia causar danos

na confiança do mercado e ter um impacto ne-

gativo na estabilidade do sistema.

Alguns dos fatores que terão conduzido ao au-

mento da concentração são, para além dos pro-

cessos de concentração, a internacionalização

dos negócios e a alteração das necessidades das

empresas auditadas, a complexidade dos pro-

cessos contabilísticos, as economias de escala,

o investimento em infraestruturas e a reputação

das Big 4.

Observa-se a existência de fortes barreiras à

entrada das pequenas e médias empresas de

auditoria e um número reduzido de opções de

escolha. Consequentemente, verifica-se alguma

estabilidade nas auditoras que prestam serviços

às cotadas e uma antiguidade média elevada.

Não obstante as preocupações levantadas pelos

reguladores em torno da concentração de mer-

cado, os resultados empíricos sobre as conse-

quências da concentração em termos de quali-

dade dos serviços e de preços não têm sido con-

clusivos.

Um grande número de opções regulatórias têm

sido propostas e implementadas em diversos

países para promover a independência, aumen-

tar a concorrência e minimizar os efeitos anti

concorrenciais resultantes do elevado padrão de

concentração observado. Não obstante estas

medidas, a estrutura atual de mercado deve-se

manter, atendendo às fortes barreiras à entrada

existentes.

O mercado português de auditoria evidencia

uma elevada concentração, em linha com a ten-

dência internacional. O peso dominante no mer-

cado de auditoria português das Big 4 mantém-

se estabilizado no triénio considerado. Verifica-

se uma maior concentração e uma maior assi-

metria das quotas de mercado quando estas são

calculadas com base na capitalização bolsista e

nos honorários relativamente ao número de cli-

entes.

Estudos posteriores deverão analisar o impacto

das medidas regulatórias recentemente introdu-

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