cadernos do idn 28 nov · em 1990, no último ano da guerra fria, havia 26,7 milhões de pessoas...

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Cadernos do IDN Dezembro de 2008 Nº 1 II Série António Telo Armando Marques Guedes Carlos Martins Branco Conflitos e Transformação da Defesa. A Sempre Instável Equação A OTAN no Afeganistão e os Desafios de uma Organização Internacional na Contra-subversão O Conflito na Geórgia Cada época histórica tem um certo tipo de conflitos a ela associado, que é tanto mais diferente de outras quando maior tiver sido a mudança na sociedade e mentalidades. Este pressuposto vai ser testado através de uma comparação muito sumária da conflitualidade actual com a existente na Guerra Fria, tendo como objectivo procurar estabelecer um “conflito- padrão” da actualidade. Trata-se de tentar indicar as principais características do que é o tipo de conflito mais normal nos tempos actuais, salientando as suas diferenças da Guerra Fria... A presença da OTAN no Afeganistão representa o primeiro caso de envolvimento de uma organização internacional numa contra-subversão, algo que até agora pertenceu ao domínio exclusivo dos Estados. A participação da OTAN neste tipo de conflitos, assim como a organização da resposta contra-subversiva requerem uma profunda reflexão... A região geral do Mar Negro parece-nos remota e distante. Não o é. Tem sido um lugar decisivo na maioria das mudanças estruturais que o sistema internacional de Estados e a própria ordem internacional têm sofrido no último século e meio... Instituto da Defesa Nacional

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Cadernos do IDNDezembro de 2008

Nº 1 II Série

António Telo

Armando Marques Guedes

Carlos Martins Branco

Conflitos e Transformação da Defesa.A Sempre Instável Equação

A OTAN no Afeganistão e os Desafios

de uma Organização Internacional

na Contra-subversão

O Conflito na Geórgia

Cada época histórica tem um certo tipo de conflitos a ela associado, que é

tanto mais diferente de outras quando maior tiver sido a mudança na

sociedade e mentalidades. Este pressuposto vai ser testado através de uma

comparação muito sumária da conflitualidade actual com a existente na

Guerra Fria, tendo como objectivo procurar estabelecer um “conflito-

padrão” da actualidade. Trata-se de tentar indicar as principais

características do que é o tipo de conflito mais normal nos tempos actuais,

salientando as suas diferenças da Guerra Fria...

A presença da OTAN no Afeganistão representa o primeiro caso de

envolvimento de uma organização internacional numa contra-subversão,

algo que até agora pertenceu ao domínio exclusivo dos Estados. A

participação da OTAN neste tipo de conflitos, assim como a organização da

resposta contra-subversiva requerem uma profunda reflexão...

A região geral do Mar Negro parece-nos remota e distante. Não o é. Tem

sido um lugar decisivo na maioria das mudanças estruturais que o sistema

internacional de Estados e a própria ordem internacional têm sofrido no

último século e meio...

NOS

NOS

AD AD

OÃÇA

N

OÃÇA

N

Instituto da Defesa Nacional

Os Cadernos do IDN II Série resultam de eventos promovidos pelo Instituto da Defesa Nacional, contribuindo para o debate sobre questões nacionais e internacionais. As perspectivas são da responsabilidade dos autores não reflectindo necessariamente uma posição institucional do Instituto da Defesa Nacional sobre as mesmas.

Director António Telo

Coordenação Mário Sobral

Concepção Gráfica/PaginaçãoGabinete de Desenho/Centro Editorial

Endereço PostalCalçada das Necessidades, 5, 1399-017 Lisboa

Telefone+351 213 924 600

Fax+351 213 924 658

Internethttp://www.idn.gov.pt

[email protected]

Depósito Legal nº 241419/06

ISSN 1646-4397

© Instituto da Defesa Nacional, 2008Todos os direitos reservados.

NOS

NOS

AD AD

OÃÇA

N

OÃÇA

N

1 FONTES E MÉTODOentender o que são “partes”, o que é a

“violência organizada” e o que se entende pela Cada época histórica tem um certo

sua utilização mesmo “intermitente”, mas sem tipo de conflitos a ela associado, que é tanto

ser em acto isolado. Para efeitos deste estudo, mais diferente de outras quando maior tiver

porém, este entendimento é suficiente. sido a mudança na sociedade e mentalidades.

Para chegar à conflitualidade actual, Este pressuposto vai ser testado através de

vamos passar previamente pelo exame uma comparação muito sumária da

sumário das “partes” que são essenciais para conflitualidade actual com a existente na

que um conflito possa existir, ou seja, os grupos Guerra Fria, tendo como objectivo procurar

armados e organizados, sejam eles forças estabelecer um “conflito-padrão” da

militares ou civis, regulares ou irregulares, bem actualidade. Trata-se de tentar indicar as

como as despesas militares. Isto porque me principais características do que é o tipo de

parece necessário compreender as grandes conflito mais normal nos tempos actuais,

linhas desta evolução para entender a salientando as suas diferenças da Guerra Fria.

transformação da conflitualidade.Não me vou preocupar com uma

Estas reflexões não são definitivas. definição rigorosa de “conflito” nesta fase

Elas constituem um mero ponto de partida para inicial, nem com o estabelecimento de

uma análise mais rigorosa da ligação entre fronteiras entre os diferentes tipos destes,

conflitualidade e transformação da defesa, que desde as rivalidades armadas à guerra global

será feita através de um projecto a criar no IDN.geral, como manifestação superior dos

Nas breves considerações sobre este conflitos. Conflito, embora sem uma definição

tema vou usar, essencialmente, quatro fontes. rigorosa, será encarado para efeitos deste

Duas incluem uma elaboração teórica sobre os trabalho como uma divergência entre partes

conflitos e uma tentativa de sistematização que recorrem, mesmo que de forma esporádica

destes dentro de uma grelha de classificação e intermitente, embora não como caso isolado e

relativamente simples: não repetido, ao uso de violência organizada

? O Heidelberg Institut Fur Internationale para alcançar os seus objectivos. Nesta

Konfliktforschung (HIIK), através da sua acepção, uma divergência política ou de outro

publicação anual Conflit Barometer 2007 tipo entre partes que não recorrem a métodos

(Heidelberg, 2008 com dados referentes a violentos para a sua resolução não é um

2006-2007); conflito; mas uma divergência política onde

? O Stockholm International Peace Research pelo menos uma das partes, ou um seu

Institute (SIPRI), através da sua publicação componente, recorre a métodos violentos,

SIPRI Yearbook 2008 (Oxford University mesmo que de forma intermitente, é um

Press, 2008). conflito. A definição não é rigorosa porque falta

1 FONTES E MÉTODO

Cadernos do IDN

Dezembro de 2008Nº 1

A Sempre Instável Equação - Conflitos e Transformação da Defesa

Cada época histórica

tem um certo tipo de

conflitos a ela

associado, que é tanto

mais diferente de

outras quando maior

tiver sido a mudança

na sociedade e

mentalidades.

António José Telo

Director do IDN

1

1

Os Cadernos do IDN II Série resultam de eventos promovidos pelo Instituto da Defesa Nacional, contribuindo para o debate sobre questões nacionais e internacionais. As perspectivas são da responsabilidade dos autores não reflectindo necessariamente uma posição institucional do Instituto da Defesa Nacional sobre as mesmas.

Director António Telo

Coordenação Mário Sobral

Concepção Gráfica/PaginaçãoGabinete de Desenho/Centro Editorial

Endereço PostalCalçada das Necessidades, 5, 1399-017 Lisboa

Telefone+351 213 924 600

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ISSN 1646-4397

© Instituto da Defesa Nacional, 2008Todos os direitos reservados.

NOS

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OÃÇA

N

OÃÇA

N

1 FONTES E MÉTODOentender o que são “partes”, o que é a

“violência organizada” e o que se entende pela Cada época histórica tem um certo

sua utilização mesmo “intermitente”, mas sem tipo de conflitos a ela associado, que é tanto

ser em acto isolado. Para efeitos deste estudo, mais diferente de outras quando maior tiver

porém, este entendimento é suficiente. sido a mudança na sociedade e mentalidades.

Para chegar à conflitualidade actual, Este pressuposto vai ser testado através de

vamos passar previamente pelo exame uma comparação muito sumária da

sumário das “partes” que são essenciais para conflitualidade actual com a existente na

que um conflito possa existir, ou seja, os grupos Guerra Fria, tendo como objectivo procurar

armados e organizados, sejam eles forças estabelecer um “conflito-padrão” da

militares ou civis, regulares ou irregulares, bem actualidade. Trata-se de tentar indicar as

como as despesas militares. Isto porque me principais características do que é o tipo de

parece necessário compreender as grandes conflito mais normal nos tempos actuais,

linhas desta evolução para entender a salientando as suas diferenças da Guerra Fria.

transformação da conflitualidade.Não me vou preocupar com uma

Estas reflexões não são definitivas. definição rigorosa de “conflito” nesta fase

Elas constituem um mero ponto de partida para inicial, nem com o estabelecimento de

uma análise mais rigorosa da ligação entre fronteiras entre os diferentes tipos destes,

conflitualidade e transformação da defesa, que desde as rivalidades armadas à guerra global

será feita através de um projecto a criar no IDN.geral, como manifestação superior dos

Nas breves considerações sobre este conflitos. Conflito, embora sem uma definição

tema vou usar, essencialmente, quatro fontes. rigorosa, será encarado para efeitos deste

Duas incluem uma elaboração teórica sobre os trabalho como uma divergência entre partes

conflitos e uma tentativa de sistematização que recorrem, mesmo que de forma esporádica

destes dentro de uma grelha de classificação e intermitente, embora não como caso isolado e

relativamente simples: não repetido, ao uso de violência organizada

? O Heidelberg Institut Fur Internationale para alcançar os seus objectivos. Nesta

Konfliktforschung (HIIK), através da sua acepção, uma divergência política ou de outro

publicação anual Conflit Barometer 2007 tipo entre partes que não recorrem a métodos

(Heidelberg, 2008 com dados referentes a violentos para a sua resolução não é um

2006-2007); conflito; mas uma divergência política onde

? O Stockholm International Peace Research pelo menos uma das partes, ou um seu

Institute (SIPRI), através da sua publicação componente, recorre a métodos violentos,

SIPRI Yearbook 2008 (Oxford University mesmo que de forma intermitente, é um

Press, 2008). conflito. A definição não é rigorosa porque falta

1 FONTES E MÉTODO

Cadernos do IDN

Dezembro de 2008Nº 1

A Sempre Instável Equação - Conflitos e Transformação da Defesa

Cada época histórica

tem um certo tipo de

conflitos a ela

associado, que é tanto

mais diferente de

outras quando maior

tiver sido a mudança

na sociedade e

mentalidades.

António José Telo

Director do IDN

1

1

FORÇAS ARMADAS REGULARES - QUANTIDADE

As outras fontes principais não procuram uma análise sistemática dos conflitos ou uma sua

tipificação, mas são importantes em termos da informação sobre estes, especialmente relevantes no

caso presente na medida em que fornecem uma visão global abrangente. São o Military Balance 2008,

do International Institute for Strategic Studies (IISS) e o World Defence Almanac (WDA), anexo anual

da revista Military Technology, publicada pelo grupo Monch PG, Bona, 2008.

Há menos de duas décadas atrás, quando a Guerra Fria chegou ao fim, era normal pensar

que se ia entrar num mundo de paz, sem conflitualidade ou com uma conflitualidade muito reduzida e

atenuada, algo meramente residual, que não teria qualquer expressão significativa.

Hoje, não pode haver dúvidas que esta noção estava completamente equivocada.

Em 1990, no último ano da Guerra Fria, havia 26,7 milhões de pessoas nas forças armadas

de todo o mundo, enquanto que em 2008 se registavam somente 19,9 milhões uma queda de 26%

(totais obtidos a partir do MB-IISS de 1990 e 2008).

A diminuição é notória nos principais estados: uma queda de 3,0 para 2,1 milhões na China;

de 3,9 para 1,0 milhões na URSS/Rússia (com mais 0,5 milhões em 2008 nos outros estados da ex-

URSS); de 2,1 para 1,5 milhões nos EUA. Significa isto que só as três mais numerosas forças armadas

em 1990 passaram, nestes 18 anos, de 9,1 para 4,6 milhões de pessoas, uma drástica diminuição

para cerca de metade.

No entanto, será bom constatar que a queda para

metade está longe de ser uma tendência universal. O que se

verifica é uma acentuada queda numérica nos estados

economicamente mais desenvolvidos, o que está associado à

transição para forças armadas profissionais (América do Norte,

Europa, “dragões” da Ásia). Nos estados que formavam a NATO

em 1990 (com a exclusão dos EUA, já mencionados), por

exemplo, as forças armadas passaram de 3,1 nesse ano para

1,89 milhões em 2008. Regista-se igualmente uma queda numérica muito importante na ex-URSS,

por motivos evidentes, e na China, em larga medida neste último caso pela mudança do paradigma da

defesa, com um amplo esforço de modernização que está a decorrer.

Em contrapartida noutras regiões do mundo, nomeadamente nos casos em que as forças

armadas de conscrição ainda são uma realidade, verifica-se a tendência contrária. No Norte de África,

por exemplo, entre 1990 e 2008 as forças armadas regulares passaram de 0,97 para 1,04 milhões; na

Ásia do Índico registou-se igualmente um aumento de 2,07 para 2,32 milhões; o mesmo aconteceu

na América Latina (1,51 para 1,71 milhões). A África sub-sahariana (passou de 1,23 para 1,18

2 2

Cadernos do IDN

Dezembro de 2008 Nº 1

2

milhões) e a Ásia do Pacífico e Oceânia (que, com exclusão da China, passou 4,89 para 4,31 milhões)

mantiveram praticamente os mesmos números nas forças armadas, apesar de situações particulares

onde se registou uma grande variação.

A grande queda nas forças armadas regulares desde o fim da Guerra Fria, em resumo, está

concentrada nos estados economicamente mais desenvolvidos (América do Norte, Europa, dragões da

Ásia), na ex-URSS e na China. No resto do mundo, verifica-se a evolução contrária, com a tendência

para o crescimento numérico.

Uma segunda constatação é que, embora o número absoluto de indivíduos nas forças armadas

tenha descido em termos globais em cerca de um quarto (26%, para ser mais exacto) isso não se

traduziu numa queda das despesas militares. Vamos utilizar, neste aspecto, os números do SIPRI,

embora estes analisem somente a evolução entre 1998 e 2007 e não todo o período posterior à Guerra

Fria. A razão porque o fazemos, é que o SIPRI faz um cálculo a preços constantes de 2005 em dólares

americanos, o que permite uma comparação da evolução das despesas militares numa escala global

levando em conta a inflação e a evolução dos câmbios.

Segundo esta fonte, as despesas militares globais passaram (a preços constantes de 2005) de

um total de 834 mil milhões de US$ em 1998 para 1.214 mil milhões de US$ em 2007 um muito

substancial aumento, em termos reais, de 45% (SIPRI, 2008, pp. 208-209). A distribuição regional é

igualmente muito desigual, mas não obedece a um padrão rigoroso, dependendo sobretudo da situação

particular da cada estado.

O que ficou dito permite tirar duas primeiras e muito importantes conclusões:

1. As últimas duas décadas foram marcadas por uma queda absoluta global das forças

armadas regulares em termos numéricos, mas com uma distribuição muito desigual e com

amplas zonas a registarem justamente a tendência contrária.

2. Ao mesmo tempo, porém, verificou-se um aumento muito substancial das despesas

militares, podendo ser acrescentado que o maior aumento das despesas se deu nos

estados que tiveram a maior queda na quantidade (os melhores exemplos são os EUA e a

China).

Este primeiro nível de aproximação, mesmo sem desenvolvimentos que introduzimos

posteriormente, permite detectar de imediato um fenómeno dos mais importantes para compreender a

arte militar no mundo em que vivemos: o aumento do desnível qualitativo.

Constatamos que os estados economicamente mais desenvolvidos diminuem drasticamente a

quantidade nas suas forças armadas, mas mantêm ou aumentam o nível real de despesas militares, o

que aponta necessariamente para um grande pulo qualitativo e das capacidades.

3 FORÇAS ARMADAS REGULARES - QUALIDADE A grande queda nas

forças armadas

regulares desde o fim

da Guerra Fria, em

resumo, está

concentrada nos estados

economicamente mais

desenvolvidos, na ex-

URSS e na China. No

resto do mundo,

verifica-se a evolução

contrária, com a

tendência para o

crescimento numérico.

““

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Cadernos do IDN

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Dezembro de 2008Nº 1

FORÇAS ARMADAS REGULARES - QUANTIDADE

As outras fontes principais não procuram uma análise sistemática dos conflitos ou uma sua

tipificação, mas são importantes em termos da informação sobre estes, especialmente relevantes no

caso presente na medida em que fornecem uma visão global abrangente. São o Military Balance 2008,

do International Institute for Strategic Studies (IISS) e o World Defence Almanac (WDA), anexo anual

da revista Military Technology, publicada pelo grupo Monch PG, Bona, 2008.

Há menos de duas décadas atrás, quando a Guerra Fria chegou ao fim, era normal pensar

que se ia entrar num mundo de paz, sem conflitualidade ou com uma conflitualidade muito reduzida e

atenuada, algo meramente residual, que não teria qualquer expressão significativa.

Hoje, não pode haver dúvidas que esta noção estava completamente equivocada.

Em 1990, no último ano da Guerra Fria, havia 26,7 milhões de pessoas nas forças armadas

de todo o mundo, enquanto que em 2008 se registavam somente 19,9 milhões uma queda de 26%

(totais obtidos a partir do MB-IISS de 1990 e 2008).

A diminuição é notória nos principais estados: uma queda de 3,0 para 2,1 milhões na China;

de 3,9 para 1,0 milhões na URSS/Rússia (com mais 0,5 milhões em 2008 nos outros estados da ex-

URSS); de 2,1 para 1,5 milhões nos EUA. Significa isto que só as três mais numerosas forças armadas

em 1990 passaram, nestes 18 anos, de 9,1 para 4,6 milhões de pessoas, uma drástica diminuição

para cerca de metade.

No entanto, será bom constatar que a queda para

metade está longe de ser uma tendência universal. O que se

verifica é uma acentuada queda numérica nos estados

economicamente mais desenvolvidos, o que está associado à

transição para forças armadas profissionais (América do Norte,

Europa, “dragões” da Ásia). Nos estados que formavam a NATO

em 1990 (com a exclusão dos EUA, já mencionados), por

exemplo, as forças armadas passaram de 3,1 nesse ano para

1,89 milhões em 2008. Regista-se igualmente uma queda numérica muito importante na ex-URSS,

por motivos evidentes, e na China, em larga medida neste último caso pela mudança do paradigma da

defesa, com um amplo esforço de modernização que está a decorrer.

Em contrapartida noutras regiões do mundo, nomeadamente nos casos em que as forças

armadas de conscrição ainda são uma realidade, verifica-se a tendência contrária. No Norte de África,

por exemplo, entre 1990 e 2008 as forças armadas regulares passaram de 0,97 para 1,04 milhões; na

Ásia do Índico registou-se igualmente um aumento de 2,07 para 2,32 milhões; o mesmo aconteceu

na América Latina (1,51 para 1,71 milhões). A África sub-sahariana (passou de 1,23 para 1,18

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milhões) e a Ásia do Pacífico e Oceânia (que, com exclusão da China, passou 4,89 para 4,31 milhões)

mantiveram praticamente os mesmos números nas forças armadas, apesar de situações particulares

onde se registou uma grande variação.

A grande queda nas forças armadas regulares desde o fim da Guerra Fria, em resumo, está

concentrada nos estados economicamente mais desenvolvidos (América do Norte, Europa, dragões da

Ásia), na ex-URSS e na China. No resto do mundo, verifica-se a evolução contrária, com a tendência

para o crescimento numérico.

Uma segunda constatação é que, embora o número absoluto de indivíduos nas forças armadas

tenha descido em termos globais em cerca de um quarto (26%, para ser mais exacto) isso não se

traduziu numa queda das despesas militares. Vamos utilizar, neste aspecto, os números do SIPRI,

embora estes analisem somente a evolução entre 1998 e 2007 e não todo o período posterior à Guerra

Fria. A razão porque o fazemos, é que o SIPRI faz um cálculo a preços constantes de 2005 em dólares

americanos, o que permite uma comparação da evolução das despesas militares numa escala global

levando em conta a inflação e a evolução dos câmbios.

Segundo esta fonte, as despesas militares globais passaram (a preços constantes de 2005) de

um total de 834 mil milhões de US$ em 1998 para 1.214 mil milhões de US$ em 2007 um muito

substancial aumento, em termos reais, de 45% (SIPRI, 2008, pp. 208-209). A distribuição regional é

igualmente muito desigual, mas não obedece a um padrão rigoroso, dependendo sobretudo da situação

particular da cada estado.

O que ficou dito permite tirar duas primeiras e muito importantes conclusões:

1. As últimas duas décadas foram marcadas por uma queda absoluta global das forças

armadas regulares em termos numéricos, mas com uma distribuição muito desigual e com

amplas zonas a registarem justamente a tendência contrária.

2. Ao mesmo tempo, porém, verificou-se um aumento muito substancial das despesas

militares, podendo ser acrescentado que o maior aumento das despesas se deu nos

estados que tiveram a maior queda na quantidade (os melhores exemplos são os EUA e a

China).

Este primeiro nível de aproximação, mesmo sem desenvolvimentos que introduzimos

posteriormente, permite detectar de imediato um fenómeno dos mais importantes para compreender a

arte militar no mundo em que vivemos: o aumento do desnível qualitativo.

Constatamos que os estados economicamente mais desenvolvidos diminuem drasticamente a

quantidade nas suas forças armadas, mas mantêm ou aumentam o nível real de despesas militares, o

que aponta necessariamente para um grande pulo qualitativo e das capacidades.

3 FORÇAS ARMADAS REGULARES - QUALIDADE A grande queda nas

forças armadas

regulares desde o fim

da Guerra Fria, em

resumo, está

concentrada nos estados

economicamente mais

desenvolvidos, na ex-

URSS e na China. No

resto do mundo,

verifica-se a evolução

contrária, com a

tendência para o

crescimento numérico.

““

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3

Dezembro de 2008Nº 1

Por detrás disto estão dois fenómenos paralelos, que se fazem sentir desde 1990: a transição

para forças armadas profissionais e a digitalização da força, ou, caso se prefira, a criação de um

conceito de força infocentrada, preparada para operações em rede onde o domínio da informação a

muitos níveis é fundamental para a evolução da arte da guerra. A transição para uma força

infocentrada tem ritmos, conceitos e graus muito diferentes, conforme consideramos, por exemplo,

os EUA ou a Formosa/Taiwan. Ela é, no entanto, uma realidade generalizada em termos dos estados

mais desenvolvidos economicamente, o que obriga a manter ou mesmo aumentar as despesas

militares, apesar da quantidade diminuir.

O resultado é, obviamente, uma qualidade muito diferente e isto num duplo sentido que

somente menciono, sem desenvolver, nas suas muitas consequências: qualidade em termos de

capacidades e em termos de concepções da arte da guerra.

Em contrapartida, muitos outros estados economicamente menos desenvolvidos, que no

conjunto formam cerca de metade da humanidade, mantêm ou mesmo aumentam a quantidade das

suas forças armadas, o que é acompanhado por um aumento das despesas militares reais, mas não

na mesma relação que os anteriores. Nestes casos estamos perante um crescimento de forças

armadas regulares convencionais, com alguma modernização, mas sem qualquer tentativa séria de

introduzir conceitos de guerra infocentrada, até pelo simples mas inultrapassável motivo que o grau

de educação médio das populações não permite dar esse passo.

O que isto significa é que está a ocorrer um movimento de tesoura. Acentua-se o desnível em

termos qualitativos entre as forças armadas regulares numa escala global. Umas criam capacidades

únicas e inovadoras que ainda não chegaram à maturidade e ainda não foram devidamente

exploradas nas suas potencialidades; outras crescem para responder a tensões e ameaças também

crescentes, mas sem um efectivo salto qualitativo. Este desnível qualitativo sempre existiu no

passado. A novidade é que agora ele é maior que no período da Guerra Fria.

Em certo sentido estamos numa situação semelhante à do século XV e XVI, quando uma

parte da humanidade estava a completar a “revolução militar da Idade Moderna” e se preparava para

criar o Primeiro Sistema Mundial, enquanto a maior parte da humanidade ainda vivia numa concepção

da arte militar muito diferente, o que não impedia que também ela sofresse em cheio o impacto do

Primeiro Sistema Mundial. O desnível qualitativo que hoje existe em termos da arte militar é

semelhante ao de fins do século XV e tende a aumentar.

É preciso, porém, ter em conta um factor. A “transformação da defesa” não ocorre somente

do lado das forças regulares e dos estados. Ela ocorre igualmente, mas de forma diferente, do lado

das forças dos não-estados e a influência entre as duas dinâmicas é muito forte. Por exemplo, o

conceito do FCS (Future Combat System - Sistema de Combate Futuro dos EUA) mudou,

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sensivelmente desde 2001 para cá, devido à experiência do envolvimento americano no Iraque e no

Afeganistão. Do mesmo modo, a maneira de fazer a guerra nestas regiões por parte dos insurgentes

mudou pela introdução ainda muito parcial das tecnologias da FCS, nomeadamente através das

brigadas Striker.

Ambas as mudanças são “transformações da defesa” na transição para a Idade da Informação,

mas muito diferentes.

A principal diferença entre o sistema militar global que existia no período final da Guerra Fria e

o actual, normalmente não é detectado pela maior parte dos comentadores. Estou a falar da imensa

explosão das forças não estatais de todos os tipos, algumas delas total ou parcialmente armadas, quase

todas vocacionadas para uma actividade de guerra irregular.

A grande dificuldade é que, enquanto é relativamente fácil acompanhar a evolução numérica

das forças estatais regulares, é muito difícil, senão impossível, ter números igualmente fiáveis para as

forças não estatais, sejam ou não vocacionadas para operações irregulares.

A primeira dificuldade está em definir de forma rigorosa o que são forças armadas não estatais.

Vamos entender que estas, numa primeira aproximação, são todo o tipo de forças armadas militares ou

civis que não estão ligadas aos estados e normalmente se encontram vocacionadas para uma arte

militar associada a um qualquer conceito de “guerra irregular” (e muitos há) ou para operações

acessórias numa guerra regular (o caso das empresas privadas de segurança). Esta definição geral

permite constatar a grande dificuldade de uma identificação exacta e precisa.

Dentro deste conceito temos de considerar realidades tão diferentes como, por exemplo,

organizações que querem conquistar o poder por uma actividade armada, às organizações militares

ligadas ao narcotráfico (por vezes difíceis de distinguir das anteriores, como os casos da Colômbia e do

Afeganistão bem ilustram), os grupos terroristas internacionais com uma qualquer motivação

ideológica, os grupos organizados de imigração ilegal que, por vezes, são verdadeiras redes de

escravatura com “exércitos” próprios, os grupos de “piratas marítimos” que têm crescido nos últimos

anos e provocaram o renascimento, em pleno século XXI, de uma realidade que era associada ao

período anterior ao século XIX, as forças irregulares ligadas aos “quase-estados”, os grupos de

“senhores da guerra” que se têm desenvolvido recentemente em várias regiões de África, as redes de

banditismo organizado com núcleos armados por vezes muito evoluídos, as empresas privadas de

segurança e muitas outras realidades. Temos um leque muito amplo, que abarca actividades legais e

ilegais (por vezes a fronteira é difusa), civis e militares, organizações políticas, de banditismo, de

negócios ou outras.

Qual a dimensão efectiva deste fenómeno de crescimento exponencial nos últimos anos? É

4 FORÇAS ARMADAS NÃO ESTATAIS

(...) imensa explosão das

forças não estatais de

todos os tipos, algumas

delas total ou

parcialmente armadas,

quase todas vocacionadas

para uma actividade de

guerra irregular (...)

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5

(...)Os estados

economicamente mais

desenvolvidos diminuem

drasticamente a

quantidade nas suas

forças armadas, mas

mantêm ou aumentam o

nível real de despesas

militares, (...)

Por detrás disto estão dois fenómenos paralelos, que se fazem sentir desde 1990: a transição

para forças armadas profissionais e a digitalização da força, ou, caso se prefira, a criação de um

conceito de força infocentrada, preparada para operações em rede onde o domínio da informação a

muitos níveis é fundamental para a evolução da arte da guerra. A transição para uma força

infocentrada tem ritmos, conceitos e graus muito diferentes, conforme consideramos, por exemplo,

os EUA ou a Formosa/Taiwan. Ela é, no entanto, uma realidade generalizada em termos dos estados

mais desenvolvidos economicamente, o que obriga a manter ou mesmo aumentar as despesas

militares, apesar da quantidade diminuir.

O resultado é, obviamente, uma qualidade muito diferente e isto num duplo sentido que

somente menciono, sem desenvolver, nas suas muitas consequências: qualidade em termos de

capacidades e em termos de concepções da arte da guerra.

Em contrapartida, muitos outros estados economicamente menos desenvolvidos, que no

conjunto formam cerca de metade da humanidade, mantêm ou mesmo aumentam a quantidade das

suas forças armadas, o que é acompanhado por um aumento das despesas militares reais, mas não

na mesma relação que os anteriores. Nestes casos estamos perante um crescimento de forças

armadas regulares convencionais, com alguma modernização, mas sem qualquer tentativa séria de

introduzir conceitos de guerra infocentrada, até pelo simples mas inultrapassável motivo que o grau

de educação médio das populações não permite dar esse passo.

O que isto significa é que está a ocorrer um movimento de tesoura. Acentua-se o desnível em

termos qualitativos entre as forças armadas regulares numa escala global. Umas criam capacidades

únicas e inovadoras que ainda não chegaram à maturidade e ainda não foram devidamente

exploradas nas suas potencialidades; outras crescem para responder a tensões e ameaças também

crescentes, mas sem um efectivo salto qualitativo. Este desnível qualitativo sempre existiu no

passado. A novidade é que agora ele é maior que no período da Guerra Fria.

Em certo sentido estamos numa situação semelhante à do século XV e XVI, quando uma

parte da humanidade estava a completar a “revolução militar da Idade Moderna” e se preparava para

criar o Primeiro Sistema Mundial, enquanto a maior parte da humanidade ainda vivia numa concepção

da arte militar muito diferente, o que não impedia que também ela sofresse em cheio o impacto do

Primeiro Sistema Mundial. O desnível qualitativo que hoje existe em termos da arte militar é

semelhante ao de fins do século XV e tende a aumentar.

É preciso, porém, ter em conta um factor. A “transformação da defesa” não ocorre somente

do lado das forças regulares e dos estados. Ela ocorre igualmente, mas de forma diferente, do lado

das forças dos não-estados e a influência entre as duas dinâmicas é muito forte. Por exemplo, o

conceito do FCS (Future Combat System - Sistema de Combate Futuro dos EUA) mudou,

Cadernos do IDN

Dezembro de 2008 Nº 1

4

sensivelmente desde 2001 para cá, devido à experiência do envolvimento americano no Iraque e no

Afeganistão. Do mesmo modo, a maneira de fazer a guerra nestas regiões por parte dos insurgentes

mudou pela introdução ainda muito parcial das tecnologias da FCS, nomeadamente através das

brigadas Striker.

Ambas as mudanças são “transformações da defesa” na transição para a Idade da Informação,

mas muito diferentes.

A principal diferença entre o sistema militar global que existia no período final da Guerra Fria e

o actual, normalmente não é detectado pela maior parte dos comentadores. Estou a falar da imensa

explosão das forças não estatais de todos os tipos, algumas delas total ou parcialmente armadas, quase

todas vocacionadas para uma actividade de guerra irregular.

A grande dificuldade é que, enquanto é relativamente fácil acompanhar a evolução numérica

das forças estatais regulares, é muito difícil, senão impossível, ter números igualmente fiáveis para as

forças não estatais, sejam ou não vocacionadas para operações irregulares.

A primeira dificuldade está em definir de forma rigorosa o que são forças armadas não estatais.

Vamos entender que estas, numa primeira aproximação, são todo o tipo de forças armadas militares ou

civis que não estão ligadas aos estados e normalmente se encontram vocacionadas para uma arte

militar associada a um qualquer conceito de “guerra irregular” (e muitos há) ou para operações

acessórias numa guerra regular (o caso das empresas privadas de segurança). Esta definição geral

permite constatar a grande dificuldade de uma identificação exacta e precisa.

Dentro deste conceito temos de considerar realidades tão diferentes como, por exemplo,

organizações que querem conquistar o poder por uma actividade armada, às organizações militares

ligadas ao narcotráfico (por vezes difíceis de distinguir das anteriores, como os casos da Colômbia e do

Afeganistão bem ilustram), os grupos terroristas internacionais com uma qualquer motivação

ideológica, os grupos organizados de imigração ilegal que, por vezes, são verdadeiras redes de

escravatura com “exércitos” próprios, os grupos de “piratas marítimos” que têm crescido nos últimos

anos e provocaram o renascimento, em pleno século XXI, de uma realidade que era associada ao

período anterior ao século XIX, as forças irregulares ligadas aos “quase-estados”, os grupos de

“senhores da guerra” que se têm desenvolvido recentemente em várias regiões de África, as redes de

banditismo organizado com núcleos armados por vezes muito evoluídos, as empresas privadas de

segurança e muitas outras realidades. Temos um leque muito amplo, que abarca actividades legais e

ilegais (por vezes a fronteira é difusa), civis e militares, organizações políticas, de banditismo, de

negócios ou outras.

Qual a dimensão efectiva deste fenómeno de crescimento exponencial nos últimos anos? É

4 FORÇAS ARMADAS NÃO ESTATAIS

(...) imensa explosão das

forças não estatais de

todos os tipos, algumas

delas total ou

parcialmente armadas,

quase todas vocacionadas

para uma actividade de

guerra irregular (...)

Dezembro de 2008Nº 1

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Cadernos do IDN

5

(...)Os estados

economicamente mais

desenvolvidos diminuem

drasticamente a

quantidade nas suas

forças armadas, mas

mantêm ou aumentam o

nível real de despesas

militares, (...)

impossível dizer de forma exacta. Ele é muito significativo em amplas zonas do planeta e aumenta

sempre que a soberania tradicional dos estados enfraquece.

O MB-2008, por exemplo, menciona somente os casos das organizações que, de alguma

forma, visam a conquista do poder e têm um componente armado, fornecendo uma lista de mais

de 400, muitas delas com forças armadas (militares e civis) significativas. Só no Iraque refere a

existência de 31 destas organizações, uma das quais teria cerca de 30 mil indivíduos (a Saddam

Fedayeen) e outras três mais de 10 mil cada. Na Ásia encontramos mais de 50 destes grupos

armados, tendo a maior parte efectivos impossíveis de quantificar, mas alguns muito numerosos,

como os 15 mil da UIF, os 10 mil da JMB do Bangladesh, os 4.500 da NSCM da Indonésia, os 30 mil

do Exército de Muhammad (Paquistão), os 11 mil dos Tigres do Tamil (Sri Lanka), os 15 mil da

UWSA (Myamar) e outros. Em África estão registadas mais de 80 organizações deste tipo, das

quais mais de 20 com efectivos que ultrapassam os 5 mil indivíduos, com destaque para os 18 mil

homens do Mouvement de Liberation Congolais, os 150 mil do FESCI, os 20 mil das milícias

Janjaweed, os 30 mil da SPLA ou os 37 mil da CDF. Na América Latina vamos encontrar uma

listagem de somente 16 destes grupos, dos quais dois (da Colômbia) contam com efectivos de

mais de 10 mil indivíduos.

A imagem com que ficamos é a de uma alteração significativa do sistema militar global

nos últimos anos, com um crescimento muito grande de grupos armados não estatais, com

múltiplos objectivos e áreas de actuação, que criam organizações armadas (militares e civis)

vocacionadas para uma guerra irregular. Se contabilizarmos somente as organizações deste tipo

que visam a conquista do poder elas são mais de 400, de acordo com o MB-2008. Mas isso é só a

ponta do icebergue, a parte que surge de

forma mais evidente e visível aos olhos de

todos.

A base do icebergue é mais ampla,

mas mais difusa e difícil de detectar:

milhares de organizações com “braços

armados”, que se multiplicam rapidamente,

muitas delas com uma presença em

múltiplos estados. Estas organizações têm

objectivos muito diversos, desde o controlo

de redes de narcotráfico, a circuitos de escravatura disfarçada, sem esquecer o banditismo ou a

pirataria. É impossível quantificar esta realidade, mas todos os indicadores apontam para o facto

de que ela cresceu exponencialmente nos últimos anos.

Estas organizações têm

objectivos muito diversos, desde

o controlo de redes de

narcotráfico, a circuitos de

escravatura disfarçada, sem

esquecer o banditismo ou a

pirataria.

Cadernos do IDN

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6

Nunca na História da Humanidade tantos estados mantiveram forças expedicionárias militaresSó

nas 22 operações de paz da ONU que decorreram em 2007 havia forças de nada menos de 119 estados,

mais de metade do total mundial.

Também em raras ocasiões da História da Humanidade (com a excepção dos períodos dos grandes

conflitos globais), houve tantas forças militares expedicionárias e tantos conflitos de variada intensidade em

simultâneo. A “grande confusão” do nosso tempo, é justamente o facto desses conflitos serem de natureza,

intensidade, localização e índole muito diferentes, a ponto da maior parte das pessoas só ouvir falar de alguns.

Vejamos somente uma vertente desta realidade: as operações de paz. Em 2007, segundo o SIPRI,

estavam em curso, simultaneamente, 61 operações de paz em todo o mundo, que envolviam 169.467 pessoas,

das quais 18.816 (11%) eram civis. Destas operações, 22 eram da responsabilidade da ONU, 10 da União

Europeia, 3 da NATO e 3 da União Africana. O que impressiona nas operações de paz não é tanto a quantidade

dos efectivos envolvidos (170 mil é muito pouco à escala global). O que impressiona é a grande difusão deste

fenómeno. A pequena Noruega, por exemplo, em 2008 participa em 9 operações de paz; a Polónia, em 14; a

Albânia em 4; o Benim em 4; o Burkina Faso em 2; a Coreia do Sul em 11; a Argentina em 5; o Brasil em 7 e

isto para dar só alguns exemplos de vários continentes.

A mudança que isto representa em relação à Guerra Fria é imensa. Agora os estados mais estáveis,

aqueles que se podem dar ao luxo de participar na criação da ordem internacional possível, passam a considerar

“normal” enviar forças expedicionárias de efectivos muito diversos (desde os poucos indivíduos aos milhares)

para diferente continentes e isto de uma forma regular. Antigamente eram os grandes poderes militares que

faziam isto; agora são praticamente todos os poderes que têm uma situação interna minimamente estabilizada

e se inserem dentro dos princípios gerais da ordem internacional, tal como interpretados por uma das várias

organizações multilaterais significativas. Os efeitos deste fenómeno são imensos, tanto em termos internos de

cada estado como, sobretudo, em termos da criação de uma “cultura militar global”.

A expansão da prática das forças expedicionárias não abarca todo o planeta. Na realidade, uma das

divisões que se pode fazer hoje em dia na humanidade é entre os estados que exportam “segurança”, sob a

forma do envio de forças expedicionárias para o exterior e aqueles que recebem “segurança”. No entanto, uns e

outros contribuem para a criação de uma “cultura militar global”, pois conhecem de formas diferentes e com

vários impactos a realidade de operações de forças multilaterais.

É evidente que os cerca de 170 mil indivíduos que participam em operações de paz não representam a

totalidade das forças expedicionárias envolvidas em conflitos. Só no Iraque, por exemplo, as forças militares

americanas, em começos de 2008, eram de 160 mil homens, o que pode descer para quase metade até fim do

ano. As forças do ISAF no Afeganistão representavam 41.444 indivíduos em 2008, com efectivos de 42 estados,

entre os quais Portugal.

FORÇAS EXPEDICIONÁRIAS

(...) uma das divisões que

se pode fazer hoje em dia

na humanidade é entre os

estados que exportam

“segurança”, sob a forma

do envio de forças

expedicionárias para o

exterior e aqueles que

recebem “segurança” (...)

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impossível dizer de forma exacta. Ele é muito significativo em amplas zonas do planeta e aumenta

sempre que a soberania tradicional dos estados enfraquece.

O MB-2008, por exemplo, menciona somente os casos das organizações que, de alguma

forma, visam a conquista do poder e têm um componente armado, fornecendo uma lista de mais

de 400, muitas delas com forças armadas (militares e civis) significativas. Só no Iraque refere a

existência de 31 destas organizações, uma das quais teria cerca de 30 mil indivíduos (a Saddam

Fedayeen) e outras três mais de 10 mil cada. Na Ásia encontramos mais de 50 destes grupos

armados, tendo a maior parte efectivos impossíveis de quantificar, mas alguns muito numerosos,

como os 15 mil da UIF, os 10 mil da JMB do Bangladesh, os 4.500 da NSCM da Indonésia, os 30 mil

do Exército de Muhammad (Paquistão), os 11 mil dos Tigres do Tamil (Sri Lanka), os 15 mil da

UWSA (Myamar) e outros. Em África estão registadas mais de 80 organizações deste tipo, das

quais mais de 20 com efectivos que ultrapassam os 5 mil indivíduos, com destaque para os 18 mil

homens do Mouvement de Liberation Congolais, os 150 mil do FESCI, os 20 mil das milícias

Janjaweed, os 30 mil da SPLA ou os 37 mil da CDF. Na América Latina vamos encontrar uma

listagem de somente 16 destes grupos, dos quais dois (da Colômbia) contam com efectivos de

mais de 10 mil indivíduos.

A imagem com que ficamos é a de uma alteração significativa do sistema militar global

nos últimos anos, com um crescimento muito grande de grupos armados não estatais, com

múltiplos objectivos e áreas de actuação, que criam organizações armadas (militares e civis)

vocacionadas para uma guerra irregular. Se contabilizarmos somente as organizações deste tipo

que visam a conquista do poder elas são mais de 400, de acordo com o MB-2008. Mas isso é só a

ponta do icebergue, a parte que surge de

forma mais evidente e visível aos olhos de

todos.

A base do icebergue é mais ampla,

mas mais difusa e difícil de detectar:

milhares de organizações com “braços

armados”, que se multiplicam rapidamente,

muitas delas com uma presença em

múltiplos estados. Estas organizações têm

objectivos muito diversos, desde o controlo

de redes de narcotráfico, a circuitos de escravatura disfarçada, sem esquecer o banditismo ou a

pirataria. É impossível quantificar esta realidade, mas todos os indicadores apontam para o facto

de que ela cresceu exponencialmente nos últimos anos.

Estas organizações têm

objectivos muito diversos, desde

o controlo de redes de

narcotráfico, a circuitos de

escravatura disfarçada, sem

esquecer o banditismo ou a

pirataria.

Cadernos do IDN

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Nunca na História da Humanidade tantos estados mantiveram forças expedicionárias militaresSó

nas 22 operações de paz da ONU que decorreram em 2007 havia forças de nada menos de 119 estados,

mais de metade do total mundial.

Também em raras ocasiões da História da Humanidade (com a excepção dos períodos dos grandes

conflitos globais), houve tantas forças militares expedicionárias e tantos conflitos de variada intensidade em

simultâneo. A “grande confusão” do nosso tempo, é justamente o facto desses conflitos serem de natureza,

intensidade, localização e índole muito diferentes, a ponto da maior parte das pessoas só ouvir falar de alguns.

Vejamos somente uma vertente desta realidade: as operações de paz. Em 2007, segundo o SIPRI,

estavam em curso, simultaneamente, 61 operações de paz em todo o mundo, que envolviam 169.467 pessoas,

das quais 18.816 (11%) eram civis. Destas operações, 22 eram da responsabilidade da ONU, 10 da União

Europeia, 3 da NATO e 3 da União Africana. O que impressiona nas operações de paz não é tanto a quantidade

dos efectivos envolvidos (170 mil é muito pouco à escala global). O que impressiona é a grande difusão deste

fenómeno. A pequena Noruega, por exemplo, em 2008 participa em 9 operações de paz; a Polónia, em 14; a

Albânia em 4; o Benim em 4; o Burkina Faso em 2; a Coreia do Sul em 11; a Argentina em 5; o Brasil em 7 e

isto para dar só alguns exemplos de vários continentes.

A mudança que isto representa em relação à Guerra Fria é imensa. Agora os estados mais estáveis,

aqueles que se podem dar ao luxo de participar na criação da ordem internacional possível, passam a considerar

“normal” enviar forças expedicionárias de efectivos muito diversos (desde os poucos indivíduos aos milhares)

para diferente continentes e isto de uma forma regular. Antigamente eram os grandes poderes militares que

faziam isto; agora são praticamente todos os poderes que têm uma situação interna minimamente estabilizada

e se inserem dentro dos princípios gerais da ordem internacional, tal como interpretados por uma das várias

organizações multilaterais significativas. Os efeitos deste fenómeno são imensos, tanto em termos internos de

cada estado como, sobretudo, em termos da criação de uma “cultura militar global”.

A expansão da prática das forças expedicionárias não abarca todo o planeta. Na realidade, uma das

divisões que se pode fazer hoje em dia na humanidade é entre os estados que exportam “segurança”, sob a

forma do envio de forças expedicionárias para o exterior e aqueles que recebem “segurança”. No entanto, uns e

outros contribuem para a criação de uma “cultura militar global”, pois conhecem de formas diferentes e com

vários impactos a realidade de operações de forças multilaterais.

É evidente que os cerca de 170 mil indivíduos que participam em operações de paz não representam a

totalidade das forças expedicionárias envolvidas em conflitos. Só no Iraque, por exemplo, as forças militares

americanas, em começos de 2008, eram de 160 mil homens, o que pode descer para quase metade até fim do

ano. As forças do ISAF no Afeganistão representavam 41.444 indivíduos em 2008, com efectivos de 42 estados,

entre os quais Portugal.

FORÇAS EXPEDICIONÁRIAS

(...) uma das divisões que

se pode fazer hoje em dia

na humanidade é entre os

estados que exportam

“segurança”, sob a forma

do envio de forças

expedicionárias para o

exterior e aqueles que

recebem “segurança” (...)

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6 CONFLITUALIDADE

O HIIK faz uma classificação de conflitos em cinco níveis, que dependem da regularidade e

intensidade do uso da violência organizada: latentes, manifestos, crise, crise séria e guerra. Segundo

este instituto, a conflitualidade em termos globais tem crescido de forma regular de 1945 para a

actualidade, mas muito em particular desde 1990. (ver gráfico anexo).

Em 2006 o HIIK registou 278 conflitos dentro da sua classificação, dos quais os 35 mais sérios eram

acompanhados por actos de violência organizada repetida e sistemática: 29 eram classificados de

“crise séria” e 6 de

“guerras” (Somália, Sudão,

Iraque, Afeganistão e

I s r a e l / H e z b o l a h ) . A

repartição geográfica dos

278 conflitos é muito

ampla: 33 na Europa, 39

em África, 18 na América,

43 na Ásia e 27 no Médio

Oriente e Norte de África.

A análise do HIIK

aponta para um aumento

geral do número de

conflitos, mas muito em particular dos de média intensidade, enquanto o número de “guerras” (o tipo

mais elevado de conflitos) revela tendência para decrescer nos últimos anos (“só” 6 em 2007).

*

O SIPRI, com critérios de classificação diferentes, chega a uma conclusão semelhante mas

ilustrada por outros números. Este instituto fala num aumento geral da conflitualidade, mas com uma

queda dos mais intensos que merecem a classificação de “guerras”. Estes últimos teriam passado de

20, em 1998, para somente 14, em 2007 (mais do dobro das “guerras” na classificação do HIIK).

Não vamos entrar na discussão em pormenor destes e de outros critérios que se podiam citar

sobre o que são “guerras”, pois isso não cabe aqui; é um ponto a desenvolver no projecto futuro.

As conclusões que interessa salientar são essencialmente duas e elas não dependem do

número que conflitos que se classificam ou não como “guerras”:

a) A conflitualidade, em termos gerais, tende a aumentar nas últimas duas décadas no

sistema internacional;

b) O número de conflitos de grande intensidade que recorre ao uso frequente de actos de

violência organizada de alguma dimensão, tende a diminuir.

Fonte: Conflict Barometer 2007, HIIK, Heidelberg, 2008

6

Cadernos do IDN

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8

Dá a impressão que

o sistema internacional está a

acumular tensão, a fazer

crescer as rivalidades e

divergências que dão origem

a centenas de conflitos de

pequena e média intensida-

de, mas sem que estes ainda

alcancem o nível que permite

chamar- lhes “guerras”,

independentemente do que

se entenda por isso.

A questão que se coloca é a de saber como podemos identificar o conflito padrão da actualidade.

Será possível detectar a sua evolução em termos de média estatística, por comparação com o que era

normal no período recente da Guerra Fria?

Penso que sim, sendo que obviamente o caso padrão é isso mesmo, ou seja, é um quadro geral

que não se aplica necessariamente a qualquer conflito em particular.

É possível indicar 13 características para este novo “conflito-padrão”, na minha opinião.

1. CADA VEZ MENOS CONFLITOS ENTRE ESTADOS

Há cada vez menos conflitos entre estados. Mais concretamente, segundo o SIPRI, só 5% dos

conflitos registados desde 1990 foram entre estados e nos últimos anos somente um foi desse tipo

o conflito entre a Geórgia e a Rússia.

2. EXTRATERRITORIALIDADE

A esmagadora maioria dos conflitos são internos a um estado, no sentido que se passam no essencial

dentro do território de um estado, embora as partes envolvidas tenham um leque de apoios e uma

composição com origem em múltiplos estados. Os conflitos, porém, tendem para uma extraterritorialidade,

o que só aparentemente contraria o que foi dito antes. O que se passa, é que embora a maior parte dos

conflitos ocorra nas fronteiras de um único estado, o envolvimento de organizações sem características

territoriais marcantes, transforma esse conflito particular numa parte de uma disputa mais geral, o que

significa que ele pode ter múltiplas manifestações numa ampla zona geográfica. O conflito do Iraque, depois

de 2003, é um caso típico com as forças da coligação sujeitas a ataques em muitos estados vizinhos.

7 PARA UMA TIPIFICAÇÃO DA CONFLITUALIDADE

Fonte: Conflict Barometer 2007, HIIK, Heidelberg, 2008

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A conflitualidade, em

termos gerais, tende a

aumentar nas últimas

duas décadas no

sistema internacional;

O número de conflitos

de grande intensidade

que recorre ao uso

frequente de actos de

violência organizada

de alguma dimensão,

tende a diminuir.

6 CONFLITUALIDADE

O HIIK faz uma classificação de conflitos em cinco níveis, que dependem da regularidade e

intensidade do uso da violência organizada: latentes, manifestos, crise, crise séria e guerra. Segundo

este instituto, a conflitualidade em termos globais tem crescido de forma regular de 1945 para a

actualidade, mas muito em particular desde 1990. (ver gráfico anexo).

Em 2006 o HIIK registou 278 conflitos dentro da sua classificação, dos quais os 35 mais sérios eram

acompanhados por actos de violência organizada repetida e sistemática: 29 eram classificados de

“crise séria” e 6 de

“guerras” (Somália, Sudão,

Iraque, Afeganistão e

I s r a e l / H e z b o l a h ) . A

repartição geográfica dos

278 conflitos é muito

ampla: 33 na Europa, 39

em África, 18 na América,

43 na Ásia e 27 no Médio

Oriente e Norte de África.

A análise do HIIK

aponta para um aumento

geral do número de

conflitos, mas muito em particular dos de média intensidade, enquanto o número de “guerras” (o tipo

mais elevado de conflitos) revela tendência para decrescer nos últimos anos (“só” 6 em 2007).

*

O SIPRI, com critérios de classificação diferentes, chega a uma conclusão semelhante mas

ilustrada por outros números. Este instituto fala num aumento geral da conflitualidade, mas com uma

queda dos mais intensos que merecem a classificação de “guerras”. Estes últimos teriam passado de

20, em 1998, para somente 14, em 2007 (mais do dobro das “guerras” na classificação do HIIK).

Não vamos entrar na discussão em pormenor destes e de outros critérios que se podiam citar

sobre o que são “guerras”, pois isso não cabe aqui; é um ponto a desenvolver no projecto futuro.

As conclusões que interessa salientar são essencialmente duas e elas não dependem do

número que conflitos que se classificam ou não como “guerras”:

a) A conflitualidade, em termos gerais, tende a aumentar nas últimas duas décadas no

sistema internacional;

b) O número de conflitos de grande intensidade que recorre ao uso frequente de actos de

violência organizada de alguma dimensão, tende a diminuir.

Fonte: Conflict Barometer 2007, HIIK, Heidelberg, 2008

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Dá a impressão que

o sistema internacional está a

acumular tensão, a fazer

crescer as rivalidades e

divergências que dão origem

a centenas de conflitos de

pequena e média intensida-

de, mas sem que estes ainda

alcancem o nível que permite

chamar- lhes “guerras”,

independentemente do que

se entenda por isso.

A questão que se coloca é a de saber como podemos identificar o conflito padrão da actualidade.

Será possível detectar a sua evolução em termos de média estatística, por comparação com o que era

normal no período recente da Guerra Fria?

Penso que sim, sendo que obviamente o caso padrão é isso mesmo, ou seja, é um quadro geral

que não se aplica necessariamente a qualquer conflito em particular.

É possível indicar 13 características para este novo “conflito-padrão”, na minha opinião.

1. CADA VEZ MENOS CONFLITOS ENTRE ESTADOS

Há cada vez menos conflitos entre estados. Mais concretamente, segundo o SIPRI, só 5% dos

conflitos registados desde 1990 foram entre estados e nos últimos anos somente um foi desse tipo

o conflito entre a Geórgia e a Rússia.

2. EXTRATERRITORIALIDADE

A esmagadora maioria dos conflitos são internos a um estado, no sentido que se passam no essencial

dentro do território de um estado, embora as partes envolvidas tenham um leque de apoios e uma

composição com origem em múltiplos estados. Os conflitos, porém, tendem para uma extraterritorialidade,

o que só aparentemente contraria o que foi dito antes. O que se passa, é que embora a maior parte dos

conflitos ocorra nas fronteiras de um único estado, o envolvimento de organizações sem características

territoriais marcantes, transforma esse conflito particular numa parte de uma disputa mais geral, o que

significa que ele pode ter múltiplas manifestações numa ampla zona geográfica. O conflito do Iraque, depois

de 2003, é um caso típico com as forças da coligação sujeitas a ataques em muitos estados vizinhos.

7 PARA UMA TIPIFICAÇÃO DA CONFLITUALIDADE

Fonte: Conflict Barometer 2007, HIIK, Heidelberg, 2008

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A conflitualidade, em

termos gerais, tende a

aumentar nas últimas

duas décadas no

sistema internacional;

O número de conflitos

de grande intensidade

que recorre ao uso

frequente de actos de

violência organizada

de alguma dimensão,

tende a diminuir.

3. INTERVENÇÕES MULTILATERAIS

Os conflitos tendem a provocar intervenções multilaterais a favor de um ou de ambos os

lados. O conflito do Iraque é mais uma vez um excelente exemplo, com uma intervenção

multilateral a favor do Governo e várias intervenções multilaterais a favor das correntes de

insurgentes.

4. CONFLITOS COM MUITAS PARTES

Os conflitos tendem a ser mais complexos, envolvendo não só dois, mas múltiplos lados,

por vezes com dezenas de participantes independentes e com um mínimo de coordenação

entre eles.

5. AGENTES NÃO-ESTATAIS

A tendência é para a maior parte dos agentes envolvidos num conflito serem não-

estatais.

6. BAIXAS FUNDAMENTALMENTE CIVIS

A esmagadora maioria das baixas nos conflitos são civis e não militares é normal as

baixas civis representarem 80 a 90% do total. Passa a ser frequente o recurso à violência de

grupos armados contra civis desarmados, que por vezes se torna o tipo normal dos

confrontos de um conflito.

7. OBJECTIVOS MÚLTIPLOS E SOBREPOSTOS

Nestes conflitos de crescente complexidade, o espectro dos objectivos das partes em

confronto é maior que no passado. A maior parte dos conflitos da Guerra Fria tinha como

objectivo tomar ou manter o poder. Hoje em dia isso tende a ser a motivação de somente uma

parte dos agentes de um conflito. Noutros casos os objectivos podem ser a mera

sobrevivência, a manutenção de um nicho de mercado ou negócio (caso típico do narcotráfico

ou da emigração ilegal), a defesa de valores universais pelos quais se combate em qualquer

parte, a obtenção de vantagens particulares, a defesa do controlo parcial de um território ou

de uma população, entre outros.

8. OPERAÇÕES INFOCENTRADAS

As informações e o seu controlo passaram a ser algo vital num conflito e isto num duplo

sentido: em termos das operações militares e em termos dos objectivos gerais do conflito,

Cadernos do IDN

Dezembro de 2008 Nº 1

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(será desenvolvido no ponto 9). Em termos das operações militares, a maior parte destas

exige um controlo mínimo das informações e um domínio neste campo para serem bem

sucedidas. A maior parte das operações militares não só tende a ser infocentrada, como tende

a ter como objectivo central a obtenção ou reforço de uma vantagem no campo do espectro do

domínio da informação.

9. A VISIBILIDADE NA OPINIÃO PÚBLICA COMO OBJECTIVO OPERACIONAL CENTRAL

As operações passaram a ser centradas nas informações, num outro sentido: o objectivo

central de muitas das operações passou a ser o de obter um efeito nos órgãos de informação

de modo a influenciar a opinião pública. Muitas das operações pensadas visam simplesmente

convencer a opinião pública de uma certa tese. A motivação central das operações deixou de

ser a de destruir as forças do adversário; as operações tendem a ser centradas no seu efeito na

opinião pública. Uma emboscada onde se destrua uma companhia inteira do inimigo, por

exemplo, pode ser pouco importante caso não passe para os órgãos de informação; uma

emboscada onde, em contrapartida, se abata um único militar do inimigo mas que seja

filmada e fotografada por repórteres tem muito mais significado.

10. ORGÂNICAS EM REDE, FLUÍDAS E DISPERSAS

Os múltiplos lados que se envolvem nos conflitos da Idade da Informação tendem a criar

uma organização em rede, fluida e sem hierarquias claras, flexível, difusa. Em certos casos as

redes tendem para a espontaneidade, ou seja, para a criação de nós independentes sem a

intervenção directa de outros nós e sem uma subordinação hierárquica. Esta tendência tanto

se aplica às entidades não-estatais, como às estatais. As forças militares destas últimas, por

exemplo, tendem a adoptar na zona de operações uma organização infocentrada em rede,

mesmo quando não era essa a sua organização na origem.

11. COMBATES EM ZONAS URBANAS

Os conflitos travam-se cada vez mais em zonas urbanas. Recentemente e pela primeira

vez a maior parte da humanidade passou a viver em zonas urbanas. Para além deste facto, a

verdade é que uma das primeiras reacções ao começo de um conflito numa região é a ampla

transferência das populações das zonas rurais para as urbanas, com o rápido crescimento

destas e com a sua transformação em zona de operações. As áreas urbanas são normalmente

preferidas pelas forças que apostam nos vários tipos de guerra irregular, por três motivos:

permitem uma ocultação muito mais fácil das forças que desencadeiam os ataques, que se

Dezembro de 2008Nº 1

Cadernos do IDN

11

3. INTERVENÇÕES MULTILATERAIS

Os conflitos tendem a provocar intervenções multilaterais a favor de um ou de ambos os

lados. O conflito do Iraque é mais uma vez um excelente exemplo, com uma intervenção

multilateral a favor do Governo e várias intervenções multilaterais a favor das correntes de

insurgentes.

4. CONFLITOS COM MUITAS PARTES

Os conflitos tendem a ser mais complexos, envolvendo não só dois, mas múltiplos lados,

por vezes com dezenas de participantes independentes e com um mínimo de coordenação

entre eles.

5. AGENTES NÃO-ESTATAIS

A tendência é para a maior parte dos agentes envolvidos num conflito serem não-

estatais.

6. BAIXAS FUNDAMENTALMENTE CIVIS

A esmagadora maioria das baixas nos conflitos são civis e não militares é normal as

baixas civis representarem 80 a 90% do total. Passa a ser frequente o recurso à violência de

grupos armados contra civis desarmados, que por vezes se torna o tipo normal dos

confrontos de um conflito.

7. OBJECTIVOS MÚLTIPLOS E SOBREPOSTOS

Nestes conflitos de crescente complexidade, o espectro dos objectivos das partes em

confronto é maior que no passado. A maior parte dos conflitos da Guerra Fria tinha como

objectivo tomar ou manter o poder. Hoje em dia isso tende a ser a motivação de somente uma

parte dos agentes de um conflito. Noutros casos os objectivos podem ser a mera

sobrevivência, a manutenção de um nicho de mercado ou negócio (caso típico do narcotráfico

ou da emigração ilegal), a defesa de valores universais pelos quais se combate em qualquer

parte, a obtenção de vantagens particulares, a defesa do controlo parcial de um território ou

de uma população, entre outros.

8. OPERAÇÕES INFOCENTRADAS

As informações e o seu controlo passaram a ser algo vital num conflito e isto num duplo

sentido: em termos das operações militares e em termos dos objectivos gerais do conflito,

Cadernos do IDN

Dezembro de 2008 Nº 1

10

(será desenvolvido no ponto 9). Em termos das operações militares, a maior parte destas

exige um controlo mínimo das informações e um domínio neste campo para serem bem

sucedidas. A maior parte das operações militares não só tende a ser infocentrada, como tende

a ter como objectivo central a obtenção ou reforço de uma vantagem no campo do espectro do

domínio da informação.

9. A VISIBILIDADE NA OPINIÃO PÚBLICA COMO OBJECTIVO OPERACIONAL CENTRAL

As operações passaram a ser centradas nas informações, num outro sentido: o objectivo

central de muitas das operações passou a ser o de obter um efeito nos órgãos de informação

de modo a influenciar a opinião pública. Muitas das operações pensadas visam simplesmente

convencer a opinião pública de uma certa tese. A motivação central das operações deixou de

ser a de destruir as forças do adversário; as operações tendem a ser centradas no seu efeito na

opinião pública. Uma emboscada onde se destrua uma companhia inteira do inimigo, por

exemplo, pode ser pouco importante caso não passe para os órgãos de informação; uma

emboscada onde, em contrapartida, se abata um único militar do inimigo mas que seja

filmada e fotografada por repórteres tem muito mais significado.

10. ORGÂNICAS EM REDE, FLUÍDAS E DISPERSAS

Os múltiplos lados que se envolvem nos conflitos da Idade da Informação tendem a criar

uma organização em rede, fluida e sem hierarquias claras, flexível, difusa. Em certos casos as

redes tendem para a espontaneidade, ou seja, para a criação de nós independentes sem a

intervenção directa de outros nós e sem uma subordinação hierárquica. Esta tendência tanto

se aplica às entidades não-estatais, como às estatais. As forças militares destas últimas, por

exemplo, tendem a adoptar na zona de operações uma organização infocentrada em rede,

mesmo quando não era essa a sua organização na origem.

11. COMBATES EM ZONAS URBANAS

Os conflitos travam-se cada vez mais em zonas urbanas. Recentemente e pela primeira

vez a maior parte da humanidade passou a viver em zonas urbanas. Para além deste facto, a

verdade é que uma das primeiras reacções ao começo de um conflito numa região é a ampla

transferência das populações das zonas rurais para as urbanas, com o rápido crescimento

destas e com a sua transformação em zona de operações. As áreas urbanas são normalmente

preferidas pelas forças que apostam nos vários tipos de guerra irregular, por três motivos:

permitem uma ocultação muito mais fácil das forças que desencadeiam os ataques, que se

Dezembro de 2008Nº 1

Cadernos do IDN

11

misturam com “o povo”; nelas abundam os alvos potenciais; estão melhor cobertas pelos

órgãos de informação, pelo que o efeito de uma operação na opinião pública é imediato.

12. NOVOS NÍVEIS E TIPOS DE CONFLITUALIDADE

Os conflitos tradicionais tendem a expandir-se a novas formas e níveis que podem ser

muito mais perturbadoras que no passado. Um caso típico é a ciberguerra, um campo onde a

conflitualidade ainda dá os primeiros passos em termos de ataques de grande envergadura,

mas onde as operações eram já normais em termos de rivalidades e conflitos de pequena

intensidade. Um ciberataque bem dirigido, pode paralisar por completo uma sociedade

moderna de uma forma tal que, por meios convencionais, seria preciso um ataque nuclear

para obter algo de semelhante. Um outro campo onde ainda se dão somente os primeiros

passos é a bioguerra, sendo quase inevitável o crescente recurso a ataques biológicos a

todos os níveis na conflitualidade futura. Uma das características mais perturbadoras e

preocupantes do nosso tempo, é a forma como as catástrofes (naturais ou não) e as crises

humanitárias (fomes, epidemias, pandemias e outras) se podem no futuro unir à

conflitualidade criando “zonas de caos”, num movimento de alimentação mútua, onde será

muito difícil repor a ordem e a vida organizada. As estatísticas não iludem: as catástrofes

tendem a aumentar (número crescente de inundações e fenómenos meteorológicos

anormais provocados ou aumentados pelo “aquecimento global”) bem como as pandemias e

epidemias, provocando graves crises humanitárias em amplas regiões. Este é um dos

desenvolvimentos mais preocupantes do momento presente.

13. COMBATES “NO SEIO DO POVO” (RUPERTH-SMITH)

Finalmente, como muito bem refere o general Ruperth-Smith, os conflitos travam-se “no seio

do povo”, o que tem múltiplas consequências, ainda muito insuficientemente exploradas pela maior

parte das entidades estatais envolvidas. Uma delas é que mesmo uma unidade militar regular

passa a ter um tipo de actuação que é fundamentalmente política e não fundamentalmente militar;

simultaneamente e num compreensível paralelismo, uma unidade civil envolvida num conflito

deste tipo não pode operar na maior parte dos casos sem o apoio de uma força armada (seja

militar ou civil). Isto significa que a actividade militar entendida num sentido tradicional, se tende a

diluir: os núcleos que se consideram a si próprios como unidades militares regulares passam a ter

uma actuação principalmente política, dispersa e organizada em rede; ao mesmo tempo os

núcleos “não militares” tendem a aumentar, em termos relativos, e adoptam algum tipo de

cobertura armada para assegurar um nível de defesa próprio mesmo numa escala limitada.

Cadernos do IDN

Dezembro de 2008 Nº 1

12

*

Os 13 pontos anteriores são uma tentativa de tipificar o “conflito-padrão” da Idade da

Informação onde estamos a entrar. São ainda uma primeira aproximação, sujeita a revisões futuras.

Eles já permitem afirmar, sem grandes riscos, que o conflito tipo ou padrão do tempo presente

é muito diferente da situação na Guerra Fria. É possível acrescentar que ele se está a alterar muito

rapidamente nos anos mais recentes, desde 2003, para ser mais exacto.

Uma importante prevenção: isto não significa que os conflitos de tipo tradicional tenham

desaparecido. Pelo contrário, o que caracteriza a complexidade do nosso tempo é que eles continuam

activos, mas desenvolve-se um novo tipo de conflitualidade paralela muito diferente do passado.

Os 13 pontos adiantados não querem igualmente dizer que a conflitualidade actual tenha

alcançado a estabilidade. Acontece exactamente o contrário: ela vai evoluir muito rapidamente nos

próximos tempos. É fácil prever, por exemplo, que os conflitos tradicionais entre estados vão crescer no

futuro, devido ao aumento das rivalidades pelo controlo dos recursos escassos. É fácil prever

igualmente que o aumento das catástrofes e crises humanitárias ditas naturais irá provocar o

crescimento das “zonas de caos” em termos mundiais, zonas onde amplos milhões de seres humanos

vão lutar meramente para continuar vivos. Quais os efeitos disto na conflitualidade actual? Imensos,

sem dúvida, mas em que sentido? É ainda fácil prever que a difusão das tecnologias ditas avançadas a

todos os níveis vai colocar meios de destruição cada vez mais potentes nas mãos de agentes que podem

ser numericamente muito reduzidos, muito em particular quando eles recorrem a meios de acção

imaginosos e pouco tradicionais. Podemos afirmar que a conflitualidade é hoje muito diferente dos

tempos da Guerra Fria e que vai mudar rapidamente. Não podemos ter a certeza dos caminhos da sua

evolução.

(...) os conflitos

tradicionais entre estados

vão crescer no futuro,

devido ao aumento das

rivalidades pelo controlo

dos recursos escassos (...)

Dezembro de 2008Nº 1

Cadernos do IDN

13

(...) O conflito tipo ou

padrão do tempo

presente é muito

diferente da situação na

Guerra Fria (...)

misturam com “o povo”; nelas abundam os alvos potenciais; estão melhor cobertas pelos

órgãos de informação, pelo que o efeito de uma operação na opinião pública é imediato.

12. NOVOS NÍVEIS E TIPOS DE CONFLITUALIDADE

Os conflitos tradicionais tendem a expandir-se a novas formas e níveis que podem ser

muito mais perturbadoras que no passado. Um caso típico é a ciberguerra, um campo onde a

conflitualidade ainda dá os primeiros passos em termos de ataques de grande envergadura,

mas onde as operações eram já normais em termos de rivalidades e conflitos de pequena

intensidade. Um ciberataque bem dirigido, pode paralisar por completo uma sociedade

moderna de uma forma tal que, por meios convencionais, seria preciso um ataque nuclear

para obter algo de semelhante. Um outro campo onde ainda se dão somente os primeiros

passos é a bioguerra, sendo quase inevitável o crescente recurso a ataques biológicos a

todos os níveis na conflitualidade futura. Uma das características mais perturbadoras e

preocupantes do nosso tempo, é a forma como as catástrofes (naturais ou não) e as crises

humanitárias (fomes, epidemias, pandemias e outras) se podem no futuro unir à

conflitualidade criando “zonas de caos”, num movimento de alimentação mútua, onde será

muito difícil repor a ordem e a vida organizada. As estatísticas não iludem: as catástrofes

tendem a aumentar (número crescente de inundações e fenómenos meteorológicos

anormais provocados ou aumentados pelo “aquecimento global”) bem como as pandemias e

epidemias, provocando graves crises humanitárias em amplas regiões. Este é um dos

desenvolvimentos mais preocupantes do momento presente.

13. COMBATES “NO SEIO DO POVO” (RUPERTH-SMITH)

Finalmente, como muito bem refere o general Ruperth-Smith, os conflitos travam-se “no seio

do povo”, o que tem múltiplas consequências, ainda muito insuficientemente exploradas pela maior

parte das entidades estatais envolvidas. Uma delas é que mesmo uma unidade militar regular

passa a ter um tipo de actuação que é fundamentalmente política e não fundamentalmente militar;

simultaneamente e num compreensível paralelismo, uma unidade civil envolvida num conflito

deste tipo não pode operar na maior parte dos casos sem o apoio de uma força armada (seja

militar ou civil). Isto significa que a actividade militar entendida num sentido tradicional, se tende a

diluir: os núcleos que se consideram a si próprios como unidades militares regulares passam a ter

uma actuação principalmente política, dispersa e organizada em rede; ao mesmo tempo os

núcleos “não militares” tendem a aumentar, em termos relativos, e adoptam algum tipo de

cobertura armada para assegurar um nível de defesa próprio mesmo numa escala limitada.

Cadernos do IDN

Dezembro de 2008 Nº 1

12

*

Os 13 pontos anteriores são uma tentativa de tipificar o “conflito-padrão” da Idade da

Informação onde estamos a entrar. São ainda uma primeira aproximação, sujeita a revisões futuras.

Eles já permitem afirmar, sem grandes riscos, que o conflito tipo ou padrão do tempo presente

é muito diferente da situação na Guerra Fria. É possível acrescentar que ele se está a alterar muito

rapidamente nos anos mais recentes, desde 2003, para ser mais exacto.

Uma importante prevenção: isto não significa que os conflitos de tipo tradicional tenham

desaparecido. Pelo contrário, o que caracteriza a complexidade do nosso tempo é que eles continuam

activos, mas desenvolve-se um novo tipo de conflitualidade paralela muito diferente do passado.

Os 13 pontos adiantados não querem igualmente dizer que a conflitualidade actual tenha

alcançado a estabilidade. Acontece exactamente o contrário: ela vai evoluir muito rapidamente nos

próximos tempos. É fácil prever, por exemplo, que os conflitos tradicionais entre estados vão crescer no

futuro, devido ao aumento das rivalidades pelo controlo dos recursos escassos. É fácil prever

igualmente que o aumento das catástrofes e crises humanitárias ditas naturais irá provocar o

crescimento das “zonas de caos” em termos mundiais, zonas onde amplos milhões de seres humanos

vão lutar meramente para continuar vivos. Quais os efeitos disto na conflitualidade actual? Imensos,

sem dúvida, mas em que sentido? É ainda fácil prever que a difusão das tecnologias ditas avançadas a

todos os níveis vai colocar meios de destruição cada vez mais potentes nas mãos de agentes que podem

ser numericamente muito reduzidos, muito em particular quando eles recorrem a meios de acção

imaginosos e pouco tradicionais. Podemos afirmar que a conflitualidade é hoje muito diferente dos

tempos da Guerra Fria e que vai mudar rapidamente. Não podemos ter a certeza dos caminhos da sua

evolução.

(...) os conflitos

tradicionais entre estados

vão crescer no futuro,

devido ao aumento das

rivalidades pelo controlo

dos recursos escassos (...)

Dezembro de 2008Nº 1

Cadernos do IDN

13

(...) O conflito tipo ou

padrão do tempo

presente é muito

diferente da situação na

Guerra Fria (...)

Nº 1

17 de Dezembro de 2008, em Lisboa (14:30)

10 de Fevereiro de 2009, em Lisboa (14:30)

13 de Janeiro de 2009, em Lisboa (14:30)

Dr. Jorge Sampaio

Dr. Mário Soares

Contactos:Instituto da Defesa Nacional, Calçada das Necessidades, nº5 1399 - 017 LisboaTelefone: 21 392 46 00 Fax: 21 392 46 58 Email: [email protected] URL: http://www.idn.gov.ptCom transmissão, em simultâneo, para o IDN Porto (Castelo da Foz, Telf. 22 615 34 40)por Video-conferência

Contributos para uma Estratégia Nacional

INSTITUTO DA DEFESA NACIONALCiclo de Conferências

NOS

NOS

AD AD

OÃÇA

N

OÃÇA

N

General Ramalho Eanes

Conferências Presididas pelo Ministro da Defesa Nacional

DESFAZENDO EQUÍVOCOS desastrosos, sendo manifestamente incapazes

de conquistar terreno estrategicamente A presença da OTAN no Afeganistão

importante, como sejam grandes cidades. A representa o primeiro caso de envolvimento de

última vez que o tentaram fazer, já em 2008, uma organização internacional numa contra-

quando atacaram Lashkar Gah, a capital da subversão, algo que até agora pertenceu ao

província de Helmand, no Sul do país, foram domínio exclusivo dos Estados. A participação

copiosamente derrotados; uma insurreição da OTAN neste tipo de conflitos, assim como a

militar generalizada está completamente fora organização da resposta contra-subversiva

de questão. requerem uma profunda reflexão, dadas as

A equiparação das alegadas ofensivas novas questões que levantam e às quais urge

de Primavera dos Talibãs com a acção militar encontrar respostas.

desencadeada pelo General Giap, na O envolvimento inicial da OTAN no

Primavera de 1992, em que as forças Vietcong Afeganistão, em 2003, foi concebido como

defrontaram convencionalmente o exército uma operação de estabilização. Apesar da

Americano não passa de um exercício intervenção internacional no Norte do país, à

desprovido de sentido. Não é possível presente data, ainda se assemelhar a uma

estabelecer analogias entre uma coisa e outra, operação de estabilização, no Sul verificaram-

dada a diferença que as separa. Os insurrectos s e d e s envo l v imen t o s qua l i t a t i v o s

estão muito longe de o poderem fazer.significantes. A partir de 5 de Outubro de 2006,

O facto de terem conseguido, em quando a OTAN oficialmente finalizou o

2008, provocar mais baixas aos contingentes alargamento da sua acção a todo o território do

internacionais do que em qualquer ano Afeganistão, passando a incluir o Sul e o Leste

p r e c e d e n t e , e t e r e m a u m e n t a d o na sua área de responsabilidade, a Aliança viu-

consideravelmente a sua área de intervenção e se envolvida numa contra-subversão.

de influência, não provocou alterações A s u b v e r s ã o e n c o n t r a - s e

significativas na correlação de forças. Uma presentemente no designado período

análise cuidadosa da situação leva-nos a insurreccional, que compreende a fase armada

concluir que nos encontramos num impasse (de terrorismo ou guerrilha). Não se prevê que

estratégico. venha a dispor de capacidade para passar à

Isto não significa porém, que a fase seguinte da subversão a qual consiste,

manter-se indefinidamente o actual impasse, entre outras coisas, em levantar um exército

isso não possa provocar brechas no campo da regular e defrontar as forças internacionais

Aliança e acabe por afectar as vontades, o que, num confronto militar directo. Os insurrectos

aliás, já se começou a verificar. Sondagens tentaram fazê-lo em 2006 com resultados

Dezembro de 2008Nº 1

A partir de 5 de Outubro

de 2006,...a Aliança viu-

se envolvida numa

contra-subversão

Cadernos do IDN

A OTAN no Afeganistão e os Desafios de uma Organização Internacional na Contra-subversão

15

Carlos Martins Branco

Major-General

Nº 1

17 de Dezembro de 2008, em Lisboa (14:30)

10 de Fevereiro de 2009, em Lisboa (14:30)

13 de Janeiro de 2009, em Lisboa (14:30)

Dr. Jorge Sampaio

Dr. Mário Soares

Contactos:Instituto da Defesa Nacional, Calçada das Necessidades, nº5 1399 - 017 LisboaTelefone: 21 392 46 00 Fax: 21 392 46 58 Email: [email protected] URL: http://www.idn.gov.ptCom transmissão, em simultâneo, para o IDN Porto (Castelo da Foz, Telf. 22 615 34 40)por Video-conferência

Contributos para uma Estratégia Nacional

INSTITUTO DA DEFESA NACIONALCiclo de Conferências

NOS

NOS

AD AD

OÃÇA

N

OÃÇA

N

General Ramalho Eanes

Conferências Presididas pelo Ministro da Defesa Nacional

DESFAZENDO EQUÍVOCOS desastrosos, sendo manifestamente incapazes

de conquistar terreno estrategicamente A presença da OTAN no Afeganistão

importante, como sejam grandes cidades. A representa o primeiro caso de envolvimento de

última vez que o tentaram fazer, já em 2008, uma organização internacional numa contra-

quando atacaram Lashkar Gah, a capital da subversão, algo que até agora pertenceu ao

província de Helmand, no Sul do país, foram domínio exclusivo dos Estados. A participação

copiosamente derrotados; uma insurreição da OTAN neste tipo de conflitos, assim como a

militar generalizada está completamente fora organização da resposta contra-subversiva

de questão. requerem uma profunda reflexão, dadas as

A equiparação das alegadas ofensivas novas questões que levantam e às quais urge

de Primavera dos Talibãs com a acção militar encontrar respostas.

desencadeada pelo General Giap, na O envolvimento inicial da OTAN no

Primavera de 1992, em que as forças Vietcong Afeganistão, em 2003, foi concebido como

defrontaram convencionalmente o exército uma operação de estabilização. Apesar da

Americano não passa de um exercício intervenção internacional no Norte do país, à

desprovido de sentido. Não é possível presente data, ainda se assemelhar a uma

estabelecer analogias entre uma coisa e outra, operação de estabilização, no Sul verificaram-

dada a diferença que as separa. Os insurrectos s e d e s envo l v imen t o s qua l i t a t i v o s

estão muito longe de o poderem fazer.significantes. A partir de 5 de Outubro de 2006,

O facto de terem conseguido, em quando a OTAN oficialmente finalizou o

2008, provocar mais baixas aos contingentes alargamento da sua acção a todo o território do

internacionais do que em qualquer ano Afeganistão, passando a incluir o Sul e o Leste

p r e c e d e n t e , e t e r e m a u m e n t a d o na sua área de responsabilidade, a Aliança viu-

consideravelmente a sua área de intervenção e se envolvida numa contra-subversão.

de influência, não provocou alterações A s u b v e r s ã o e n c o n t r a - s e

significativas na correlação de forças. Uma presentemente no designado período

análise cuidadosa da situação leva-nos a insurreccional, que compreende a fase armada

concluir que nos encontramos num impasse (de terrorismo ou guerrilha). Não se prevê que

estratégico. venha a dispor de capacidade para passar à

Isto não significa porém, que a fase seguinte da subversão a qual consiste,

manter-se indefinidamente o actual impasse, entre outras coisas, em levantar um exército

isso não possa provocar brechas no campo da regular e defrontar as forças internacionais

Aliança e acabe por afectar as vontades, o que, num confronto militar directo. Os insurrectos

aliás, já se começou a verificar. Sondagens tentaram fazê-lo em 2006 com resultados

Dezembro de 2008Nº 1

A partir de 5 de Outubro

de 2006,...a Aliança viu-

se envolvida numa

contra-subversão

Cadernos do IDN

A OTAN no Afeganistão e os Desafios de uma Organização Internacional na Contra-subversão

15

Carlos Martins Branco

Major-General

efectuadas às opiniões públicas em diferentes países da Aliança revelam que o apoio destas ao

esforço militar no Afeganistão é cada vez menor. Uma sondagem recente no Reino Unido, onde a

opinião pública tradicionalmente regista uma elevada compreensão para com baixas em combate,

veio revelar que cerca de dois terços da população estará contra a participação do país no conflito.

Embora de uma forma não exaustiva, procuraremos com este texto solicitar a atenção do

leitor para uma série de questões que nos parecem decisivas e que têm vindo a condicionar a acção

das forças da OTAN (ISAF) no Teatro de Operações do Afeganistão. As consequências que podem ter

no curso dos acontecimentos justificam plenamente a sua chamada à colação.

A intervenção internacional no Afeganistão foi concebida num quadro muito diferente

daquele que se vive actualmente, isto é, estabilização em vez de contra-subversão. Este facto, por si

só, justificaria uma profunda reanálise do actual desenho da campanha, o qual foi construído com

base no conceito de Comprehensive Approach, um modelo orientado para um cenário de pós

violência, que se traduz em três linhas de operações: governação, reconstrução e desenvolvimento e

segurança.

Antes de mais, torna-se necessário perceber em que fase do espectro da resolução de

conflitos se encontra a situação no Afeganistão. A resposta a esta questão facilita a identificação dos

instrumentos a utilizar pelos actores internacionais no processo de resolução do conflito. Uma

percepção errada da fase em que se encontra o conflito fez com que determinadas actividades como

sejam a reconstrução e o desenvolvimento, típicas da Construção da Paz, tenham sido incluídas num

pacote conceptual aplicado à gestão da violência.

O desenvolvimento só é possível após terminada a violência generalizada, num ambiente de

segurança. Já que estamos num ambiente de contra-subversão fará mais sentido falar em estratégia

socioeconómica, contextualizada no espaço e no tempo, e combinada com as restantes estratégias

gerais da contra-subversão. Esta abordagem faz toda a diferença e ajuda a esclarecer onde nos

encontramos. Não se trata de uma mera questão de semântica.

Numa operação de estabilização fará sentido, com certeza, falar de reconstrução e

desenvolvimento, mas nunca durante a gestão da violência, qualquer que seja o conflito. Imperativos

de natureza política ditam que o desenho conceptual em vigor continue a ser o de uma operação de

estabilização. Convém, contudo, clarificar que essa conceptualização não responde às necessidades

do momento actual. É necessário desenvolver um desenho da campanha para fazer face à acção

subversiva, já que é com isso que as forças da ISAF têm diariamente de se defrontar, e não com outra

coisa qualquer.

O ANACRONISMO CONCEPTUAL

Cadernos do IDN

Dezembro de 2008 Nº 1

16

Todas as doutrinas de contra-subversão salientam a necessidade de integrar esforços civis e

militares. A experiência tem-nos mostrado que uma integração plena daqueles dois domínios requer

uma cadeia de comando única, situação que não se verifica actualmente no terreno. Enquanto que a

ISAF se encontra primariamente orientada para as questões da segurança, a UNAMA está mais

vocacionada para a reconstrução e desenvolvimento e o governo Afegão para a governação. Nenhum

destes actores tem o exclusivo ou o monopólio de uma das linhas de operações referidas. A sua acção

pode alargar-se a outras o que, aliás, acontece.

Contudo, estes actores relacionam-se numa posição de pares. Ao não existir qualquer relação

de autoridade/subordinação entre eles, o máximo que se consegue obter é a coordenação de acções, já

que cada um deles tem a sua própria agenda. A retórica em redor da Comprehensive Approach e de um

esforço integrado não passa disso mesmo. A ausência de um actor numa posição de comando com

autoridade para decidir o que é que tem de ser feito e impor decisões aos restantes parceiros é um

obstáculo à plena integração de esforços.

Os mecanismos de coordenação em vigor são manifestamente insuficientes para se atingir a

tão almejada integração. Mas pior que uma organização internacional são várias organizações

internacionais envolvidas na gestão de uma contra-subversão, sem existir entre elas uma relação de

autoridade/subordinação claramente definida, sem um primus inter pares, apenas condicionadas pela

sua própria vontade.

O conceito de assimetria aplicada ao conflito no Afeganistão deve ser objecto de uma atenção

muito particular, sobretudo se tivermos em consideração o tão propalado consenso de que a subversão

não se resolve por meios militares. Quando falamos de assimetrias referimo-nos a diferenças

significativas de recursos entre os beligerantes. Contudo, a questão que se coloca é a de se saber de que

recursos é que estamos a falar.

O conceito de assimetria aparece normalmente associado aos meios militares que cada uma

das partes tem ao seu dispor, a tudo aquilo a que convencionámos designar por cinético. Nesta

perspectiva, as forças internacionais têm a primazia. Mas, no que se refere ao domínio não cinético, não

podemos dizer o mesmo; aí os insurrectos dispõem de uma nítida vantagem.

Esta desvantagem reveste-se de uma importância crucial se tivermos em consideração que o

conflito no Afeganistão se enquadra no paradigma da war amongst people desenvolvido pelo General

Ruperth Smith, em que o essencial da questão não é o sucesso das operações militares, mas o problema

estratégico subjacente que está por resolver.

Nesta forma de guerra com que nos confrontamos no Afeganistão o objectivo é influenciar o

REAVALIANDO O CONCEITO DE ASSIMETRIA

Dezembro de 2008Nº 1

Cadernos do IDN

17

Numa operação de

estabilização fará sentido,

com certeza, falar de

reconstrução e

desenvolvimento, mas

nunca durante a gestão

da violência, qualquer que

seja o conflito.

Imperativos de natureza

política ditam que o

desenho conceptual em

vigor continue a ser o de

uma operação de

estabilização.

Uma análise cuidadosa

da situação leva-nos a

concluir que nos

encontramos num

impasse estratégico.

efectuadas às opiniões públicas em diferentes países da Aliança revelam que o apoio destas ao

esforço militar no Afeganistão é cada vez menor. Uma sondagem recente no Reino Unido, onde a

opinião pública tradicionalmente regista uma elevada compreensão para com baixas em combate,

veio revelar que cerca de dois terços da população estará contra a participação do país no conflito.

Embora de uma forma não exaustiva, procuraremos com este texto solicitar a atenção do

leitor para uma série de questões que nos parecem decisivas e que têm vindo a condicionar a acção

das forças da OTAN (ISAF) no Teatro de Operações do Afeganistão. As consequências que podem ter

no curso dos acontecimentos justificam plenamente a sua chamada à colação.

A intervenção internacional no Afeganistão foi concebida num quadro muito diferente

daquele que se vive actualmente, isto é, estabilização em vez de contra-subversão. Este facto, por si

só, justificaria uma profunda reanálise do actual desenho da campanha, o qual foi construído com

base no conceito de Comprehensive Approach, um modelo orientado para um cenário de pós

violência, que se traduz em três linhas de operações: governação, reconstrução e desenvolvimento e

segurança.

Antes de mais, torna-se necessário perceber em que fase do espectro da resolução de

conflitos se encontra a situação no Afeganistão. A resposta a esta questão facilita a identificação dos

instrumentos a utilizar pelos actores internacionais no processo de resolução do conflito. Uma

percepção errada da fase em que se encontra o conflito fez com que determinadas actividades como

sejam a reconstrução e o desenvolvimento, típicas da Construção da Paz, tenham sido incluídas num

pacote conceptual aplicado à gestão da violência.

O desenvolvimento só é possível após terminada a violência generalizada, num ambiente de

segurança. Já que estamos num ambiente de contra-subversão fará mais sentido falar em estratégia

socioeconómica, contextualizada no espaço e no tempo, e combinada com as restantes estratégias

gerais da contra-subversão. Esta abordagem faz toda a diferença e ajuda a esclarecer onde nos

encontramos. Não se trata de uma mera questão de semântica.

Numa operação de estabilização fará sentido, com certeza, falar de reconstrução e

desenvolvimento, mas nunca durante a gestão da violência, qualquer que seja o conflito. Imperativos

de natureza política ditam que o desenho conceptual em vigor continue a ser o de uma operação de

estabilização. Convém, contudo, clarificar que essa conceptualização não responde às necessidades

do momento actual. É necessário desenvolver um desenho da campanha para fazer face à acção

subversiva, já que é com isso que as forças da ISAF têm diariamente de se defrontar, e não com outra

coisa qualquer.

O ANACRONISMO CONCEPTUAL

Cadernos do IDN

Dezembro de 2008 Nº 1

16

Todas as doutrinas de contra-subversão salientam a necessidade de integrar esforços civis e

militares. A experiência tem-nos mostrado que uma integração plena daqueles dois domínios requer

uma cadeia de comando única, situação que não se verifica actualmente no terreno. Enquanto que a

ISAF se encontra primariamente orientada para as questões da segurança, a UNAMA está mais

vocacionada para a reconstrução e desenvolvimento e o governo Afegão para a governação. Nenhum

destes actores tem o exclusivo ou o monopólio de uma das linhas de operações referidas. A sua acção

pode alargar-se a outras o que, aliás, acontece.

Contudo, estes actores relacionam-se numa posição de pares. Ao não existir qualquer relação

de autoridade/subordinação entre eles, o máximo que se consegue obter é a coordenação de acções, já

que cada um deles tem a sua própria agenda. A retórica em redor da Comprehensive Approach e de um

esforço integrado não passa disso mesmo. A ausência de um actor numa posição de comando com

autoridade para decidir o que é que tem de ser feito e impor decisões aos restantes parceiros é um

obstáculo à plena integração de esforços.

Os mecanismos de coordenação em vigor são manifestamente insuficientes para se atingir a

tão almejada integração. Mas pior que uma organização internacional são várias organizações

internacionais envolvidas na gestão de uma contra-subversão, sem existir entre elas uma relação de

autoridade/subordinação claramente definida, sem um primus inter pares, apenas condicionadas pela

sua própria vontade.

O conceito de assimetria aplicada ao conflito no Afeganistão deve ser objecto de uma atenção

muito particular, sobretudo se tivermos em consideração o tão propalado consenso de que a subversão

não se resolve por meios militares. Quando falamos de assimetrias referimo-nos a diferenças

significativas de recursos entre os beligerantes. Contudo, a questão que se coloca é a de se saber de que

recursos é que estamos a falar.

O conceito de assimetria aparece normalmente associado aos meios militares que cada uma

das partes tem ao seu dispor, a tudo aquilo a que convencionámos designar por cinético. Nesta

perspectiva, as forças internacionais têm a primazia. Mas, no que se refere ao domínio não cinético, não

podemos dizer o mesmo; aí os insurrectos dispõem de uma nítida vantagem.

Esta desvantagem reveste-se de uma importância crucial se tivermos em consideração que o

conflito no Afeganistão se enquadra no paradigma da war amongst people desenvolvido pelo General

Ruperth Smith, em que o essencial da questão não é o sucesso das operações militares, mas o problema

estratégico subjacente que está por resolver.

Nesta forma de guerra com que nos confrontamos no Afeganistão o objectivo é influenciar o

REAVALIANDO O CONCEITO DE ASSIMETRIA

Dezembro de 2008Nº 1

Cadernos do IDN

17

Numa operação de

estabilização fará sentido,

com certeza, falar de

reconstrução e

desenvolvimento, mas

nunca durante a gestão

da violência, qualquer que

seja o conflito.

Imperativos de natureza

política ditam que o

desenho conceptual em

vigor continue a ser o de

uma operação de

estabilização.

Uma análise cuidadosa

da situação leva-nos a

concluir que nos

encontramos num

impasse estratégico.

oponente, alterar ou formar uma intenção, estabelecer uma condição e, acima de tudo, vencer o

choque de vontades. Ora neste domínio, os meios não cinéticos são determinantes, mais eficazes do

que os cinéticos, aos quais se associa o uso da força.

No que é crítico para vencer este embate o domínio não cinético são os insurrectos quem

tem vindo a estabelecer os termos do combate. Por isso, quando se fala em assimetria deve-se ser

mais preciso e clarificar exactamente aquilo a que nos estamos a referir, para que não fique

erradamente a ideia de que quem está em vantagem são as forças internacionais, ideia dominante nos

meios políticos e académicos, com a qual discordamos.

Para uma contra-subversão ter sucesso é decisivo que consiga operar sobre a sociedade de

modo a separar os insurrectos da população, negando-lhes as fontes logísticas e de recrutamento. Um

debate construtivo deve centrar-se no modo como o fazer, já que os insurrectos partem com

vantagem não só por conhecerem melhor a sociedade como por serem parte dessa mesma sociedade,

da qual emergem.

Neste capítulo há ainda um longo caminho a percorrer. Os comunicadores internacionais

centram as suas actividades nos media, negligenciando outras ferramentas particularmente eficazes

em sociedades pré-modernas, como sejam os meios tradicionais de comunicação, das quais o

Afeganistão é um bom exemplo.

Se os actores internacionais pretendem atingir segmentos essenciais da população na

dimensão cognitiva do domínio da informação, torna-se necessário uma estratégia que integre as

realidades do país, socorrendo-se de outras funções, muito para além da utilização dos media.

A questão reside em identificar os modos e os meios a utilizar para persuadir a população a,

pelo menos, não combater ao lado, ou a não apoiar os insurrectos. O risco do uso substancial de poder

militar pode voltar a população afegã contra o governo e as forças internacionais, numa crescente

espiral de alienação civil.

Contudo, se todos concordamos que os meios não cinéticos são cruciais para se ganhar a

campanha dos corações e das almas, não estou tão seguro se conseguimos obter um consenso

quando falamos nas formas e nos meios de o obter. Não é suficiente concordar que a contra-

insurreição não deve ser vista exclusivamente através de uma lente puramente militar, se isso não

tiver qualquer significado tangível, para além de retórica. Torna-se, portanto, necessário

operacionalizar o conceito.

É fundamental a quem trabalha no domínio não cinético melhorar os seus conhecimentos

sobre a sociedade e a(s) audiência(s). Isto significa, por exemplo, segmentá-las vertical e

CONHECER OS MEANDROS DA SOCIEDADE AFEGÃ

Cadernos do IDN

Dezembro de 2008 Nº 1

18

horizontalmente com um grau de desagregação muito superior àquele que se tem efectuado até agora.

Só após este trabalho é que nos encontramos em condições de identificar as formas e os meios para

difundir mensagens. Esta abordagem faz toda a diferença.

A identificação das formas e dos meios requer forçosamente uma abordagem completamente

diferente daquela que tem vindo a ser efectuada. O conselho de sociólogos, antropólogos e psicólogos

poderá ser mais útil que aquele que possa ser proporcionado por especialistas em marketing ou em

campanhas eleitorais.

O conhecimento profundo do público-alvo requer um trabalho prévio de human mapping,

fundamental para se desenvolver e estruturar uma política de comunicação eficaz com os afegãos.

Como foi atrás sugerido, temos que compreender para quem e com quem falamos, qual a sua posição

social, qual a filiação política, etc. Uma dose elevada de recursos tem de ser empregue nesta tarefa.

Se não se fizer um esforço sério para compreender a sociedade onde se opera, qualquer que for

a doutrina adoptada, está-se condenado ao fracasso; é como um médico que quer curar um doente mas

não tem a menor ideia da sua doença.

Essa compreensão da sociedade só é possível através do conhecimento detalhado da imensa

diversidade de redes de interacção social que a compõem e que se intersectam, das organizações, e dos

meios institucionais para atingir os objectivos humanos na sociedade afegã, os quais poderão ser mais

complexos e difíceis de perceber do que nas sociedades ocidentais. O facto de se tratar de uma

sociedade pré-moderna não significa ausência de complexidade social, bem pelo contrário.

Alianças militares, hierarquias religiosas, tribos, grupos de famílias, língua comum, cartéis da

droga e por aí adiante, são tudo redes poderosas de interacção social a ter em conta e que não se podem

negligenciar. Necessitamos de identificar e compreender a cumplicidade, sofisticação, interconexões e

poderes destas intrincadas redes. Nesta lógica, é crucial compreender as estruturas tribais de modo a

entender o relacionamento entre os diferentes grupos. É necessário investir no estudo das estruturas

tribais, sobretudo no Sul e no Leste do país, de modo a poder comunicar eficientemente com elas.

Isto ajudará a distinguir entre lutas tribais intestinas e lutas entre grupos pró e contra

insurrectos e, por conseguinte, conseguir determinar com precisão o seu impacto nas operações da

ISAF. Isso evitará que se confundam querelas tribais com lutas contra os insurrectos, as quais

presentemente não são frequentemente distinguidas devido ao desconhecimento do modo como as

tribos se encontram organizadas.

Se no passado tivesse havido um maior cuidado no relacionamento com os chefes tribais antes

de se levarem a cabo acções cinéticas ou outras nas regiões sob a sua alçada, obtendo previamente o

seu consentimento, não se teriam provocado tantas baixas civis assim como não haveria metade do

ressentimento que existe relativamente às forças internacionais.

Dezembro de 2008Nº 1

Cadernos do IDN

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oponente, alterar ou formar uma intenção, estabelecer uma condição e, acima de tudo, vencer o

choque de vontades. Ora neste domínio, os meios não cinéticos são determinantes, mais eficazes do

que os cinéticos, aos quais se associa o uso da força.

No que é crítico para vencer este embate o domínio não cinético são os insurrectos quem

tem vindo a estabelecer os termos do combate. Por isso, quando se fala em assimetria deve-se ser

mais preciso e clarificar exactamente aquilo a que nos estamos a referir, para que não fique

erradamente a ideia de que quem está em vantagem são as forças internacionais, ideia dominante nos

meios políticos e académicos, com a qual discordamos.

Para uma contra-subversão ter sucesso é decisivo que consiga operar sobre a sociedade de

modo a separar os insurrectos da população, negando-lhes as fontes logísticas e de recrutamento. Um

debate construtivo deve centrar-se no modo como o fazer, já que os insurrectos partem com

vantagem não só por conhecerem melhor a sociedade como por serem parte dessa mesma sociedade,

da qual emergem.

Neste capítulo há ainda um longo caminho a percorrer. Os comunicadores internacionais

centram as suas actividades nos media, negligenciando outras ferramentas particularmente eficazes

em sociedades pré-modernas, como sejam os meios tradicionais de comunicação, das quais o

Afeganistão é um bom exemplo.

Se os actores internacionais pretendem atingir segmentos essenciais da população na

dimensão cognitiva do domínio da informação, torna-se necessário uma estratégia que integre as

realidades do país, socorrendo-se de outras funções, muito para além da utilização dos media.

A questão reside em identificar os modos e os meios a utilizar para persuadir a população a,

pelo menos, não combater ao lado, ou a não apoiar os insurrectos. O risco do uso substancial de poder

militar pode voltar a população afegã contra o governo e as forças internacionais, numa crescente

espiral de alienação civil.

Contudo, se todos concordamos que os meios não cinéticos são cruciais para se ganhar a

campanha dos corações e das almas, não estou tão seguro se conseguimos obter um consenso

quando falamos nas formas e nos meios de o obter. Não é suficiente concordar que a contra-

insurreição não deve ser vista exclusivamente através de uma lente puramente militar, se isso não

tiver qualquer significado tangível, para além de retórica. Torna-se, portanto, necessário

operacionalizar o conceito.

É fundamental a quem trabalha no domínio não cinético melhorar os seus conhecimentos

sobre a sociedade e a(s) audiência(s). Isto significa, por exemplo, segmentá-las vertical e

CONHECER OS MEANDROS DA SOCIEDADE AFEGÃ

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horizontalmente com um grau de desagregação muito superior àquele que se tem efectuado até agora.

Só após este trabalho é que nos encontramos em condições de identificar as formas e os meios para

difundir mensagens. Esta abordagem faz toda a diferença.

A identificação das formas e dos meios requer forçosamente uma abordagem completamente

diferente daquela que tem vindo a ser efectuada. O conselho de sociólogos, antropólogos e psicólogos

poderá ser mais útil que aquele que possa ser proporcionado por especialistas em marketing ou em

campanhas eleitorais.

O conhecimento profundo do público-alvo requer um trabalho prévio de human mapping,

fundamental para se desenvolver e estruturar uma política de comunicação eficaz com os afegãos.

Como foi atrás sugerido, temos que compreender para quem e com quem falamos, qual a sua posição

social, qual a filiação política, etc. Uma dose elevada de recursos tem de ser empregue nesta tarefa.

Se não se fizer um esforço sério para compreender a sociedade onde se opera, qualquer que for

a doutrina adoptada, está-se condenado ao fracasso; é como um médico que quer curar um doente mas

não tem a menor ideia da sua doença.

Essa compreensão da sociedade só é possível através do conhecimento detalhado da imensa

diversidade de redes de interacção social que a compõem e que se intersectam, das organizações, e dos

meios institucionais para atingir os objectivos humanos na sociedade afegã, os quais poderão ser mais

complexos e difíceis de perceber do que nas sociedades ocidentais. O facto de se tratar de uma

sociedade pré-moderna não significa ausência de complexidade social, bem pelo contrário.

Alianças militares, hierarquias religiosas, tribos, grupos de famílias, língua comum, cartéis da

droga e por aí adiante, são tudo redes poderosas de interacção social a ter em conta e que não se podem

negligenciar. Necessitamos de identificar e compreender a cumplicidade, sofisticação, interconexões e

poderes destas intrincadas redes. Nesta lógica, é crucial compreender as estruturas tribais de modo a

entender o relacionamento entre os diferentes grupos. É necessário investir no estudo das estruturas

tribais, sobretudo no Sul e no Leste do país, de modo a poder comunicar eficientemente com elas.

Isto ajudará a distinguir entre lutas tribais intestinas e lutas entre grupos pró e contra

insurrectos e, por conseguinte, conseguir determinar com precisão o seu impacto nas operações da

ISAF. Isso evitará que se confundam querelas tribais com lutas contra os insurrectos, as quais

presentemente não são frequentemente distinguidas devido ao desconhecimento do modo como as

tribos se encontram organizadas.

Se no passado tivesse havido um maior cuidado no relacionamento com os chefes tribais antes

de se levarem a cabo acções cinéticas ou outras nas regiões sob a sua alçada, obtendo previamente o

seu consentimento, não se teriam provocado tantas baixas civis assim como não haveria metade do

ressentimento que existe relativamente às forças internacionais.

Dezembro de 2008Nº 1

Cadernos do IDN

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Para além disso, o conhecimento das estruturas tribais vai ajudar na criação de plataformas

de diálogo e negociação tanto com os líderes locais como com a população. O Governo não é capaz de

fornecer esta plataforma, e nalguns casos não a quer proporcionar. Particularmente nas zonas rurais,

a população encontra-se frustrada pela falta de atenção que lhe é dada pelo Governo e pela

comunidade internacional.

Embora a ISAF não seja, nem é suposto que se torne num actor político, deve desenvolver

plataformas de diálogo que permitam dar voz às diferentes comunidades, permitindo-lhes exprimir as

suas preocupações, anseios e necessidades, na forma de jirgas ou shuras, fazendo-as chegar ao

Governo.

Em que é que isto é útil para a ISAF? Permitir-lhe-á envolver-se com as comunidades, às

quais de outro modo não teria acesso, e ganhar a sua confiança. Permitir-lhe-á explicar-lhes a

necessidade e o objectivo da presença das forças internacionais, tão vilipendiada pelos insurrectos. O

relacionamento com as comunidades e a troca de informação sobre as actividades da ISAF só trará

amigos e não inimigos.

A religião e as elites religiosas são outro assunto com que temos de começar a lidar de uma

forma mais adequada. Elas também são um público-alvo extremamente importante. Se tratadas

correctamente podem ser parceiros de grande utilidade e, como tal, contribuírem para separar os

insurrectos da população. O abandono desta frente pode ter um efeito avassalador para as forças

internacionais.

O Conselho dos Ulemas, a autoridade máxima no país em matéria religiosa, eleito em 2002

pelo governo e sedeado em Cabul, tem sido nos últimos seis anos o interlocutor exclusivo da

comunidade internacional com a comunidade eclesiástica muçulmana, através do defunto Centro

Nacional de Coordenação da Comunicação, mais conhecido na gíria por NC3.

Mas a autoridade deste Conselho sobre a rede de mullahs é diminuta. A sua influência é

praticamente nula. O apoio tácito, para não dizer militância activa, da maioria dos mullahs e dos

líderes religiosos no Sul e no Leste à ideologia dos insurrectos, tem produzido um efeito devastador

nas forças da ISAF. Em vez de aliados e ajudarem a espalhar a mensagem da comunidade

internacional, são portadores de mensagens hostis.

É da maior relevância conseguir alterar as atitudes e os comportamentos dos mullahs

daquelas regiões. Para além da necessidade de interacção e envolvimento com os mullahs no Sul, é

fundamental desenvolver um plano detalhado de actividades orientadas para os influenciar, de modo a

torná-los, pelo menos, actores neutrais. A recolha de dados sobre as estruturas tribais e religiosas

necessita de ser melhorada. É urgente criar novas dinâmicas neste domínio.

Cadernos do IDN

Dezembro de 2008 Nº 1

20

OS MÉTODOS E OS MEIOS A EMPREGAR

Só após se executar o referido trabalho de recolha e análise de dados é que fará sentido falar

dos métodos e dos meios a empregar. Também neste domínio é necessária uma nova abordagem. Para

se conseguir comunicar correctamente com os afegãos há que fazer um esforço em os conhecer. Num

país onde 80% da população é analfabeta, as mensagens escritas têm um alcance extremamente

reduzido. O uso dos media convencionais como a televisão, a rádio e a imprensa apenas nos permitem

atingir uma pequena fracção da população.

Para se chegar a uma fatia maior há que perceber o verdadeiro alcance do que significa

Comunicação Tradicional, no contexto do Afeganistão. Isto significa difundir mensagens recorrendo a

meios tradicionais como sejam o boca a boca, a comunicação cara a cara, o envolvimento com os

líderes e com a população, etc. os quais são de uma tremenda eficácia. O boca a boca pode significar

muita coisa, desde o contador de histórias, o poeta, o cantor, o mullah ou um governante, sem esquecer

as conversas nos mercados onde os insurrectos controlam a comunicação. Há que ser capaz de

influenciar o processo da comunicação nos mercados, algo até agora completamente esquecido.

Os insurrectos dominam com mestria os meios tradicionais de comunicação, combinando-os

de uma forma criativa e inteligente com meios tecnologicamente avançados. Os insurrectos sabem

muito bem qual a importância comunicacional dos poetas e cantores. Não descurando esta frente,

recorrem à internet para lhes indicar qual o conteúdo dos temas e mensagens que devem incluir nos

seus poemas e canções.

As cartas nocturnas (shabnamah), tanto impressas como escritas à mão, distribuídas nas

cidades e vilas são um outro meio de comunicação tradicional utilizado pelos insurrectos. Os DVD's e as

cassetes áudio são meios também utilizados intensivamente pelos insurrectos devido às vantagens

óbvias sobre as publicações escritas. Os primeiros aparecem com mensagens orientadas para o

recrutamento e o moral, enquanto que os segundos contêm normalmente canções e poesia, em

particular cantos religiosos e taranas, canções marciais, nacionalistas e de grande carga emocional,

sem acompanhamento musical.

Fazendo jus ao prescrito nas diversas doutrinas de contra-insurreição, os actores locais são os

melhores meios de comunicação ao dispor da contra-subversão, desfrutando de vantagens óbvias

sobre os actores internacionais. Neste capítulo, entre outros, o exército e a polícia Afegã podem

desempenhar um papel decisivo na comunicação tradicional, se correctamente orientados e se essa

acção se subordinar a uma estratégia previamente estabelecida.

A mobilização de soldados e polícias para participarem no processo da comunicação

tradicional teria um impacto importante junto das populações. Medidas simples como, por exemplo, a

assistência aos sermões das 6.ª feiras em uniforme especialmente após acusações de estes não serem

Dezembro de 2008Nº 1

Cadernos do IDN

21

Para se conseguir

comunicar correctamente

com os afegãos há que

fazer um esforço em os

conhecer. Num país onde

80% da população é

analfabeta, as

mensagens escritas têm

um alcance

extremamente reduzido

(...) difundir mensagens

recorrendo a meios

tradicionais como sejam

o boca a boca, a

comunicação cara a cara,

o envolvimento com os

líderes e com a

população, etc. os quais

são de uma tremenda

eficácia (...)

Para além disso, o conhecimento das estruturas tribais vai ajudar na criação de plataformas

de diálogo e negociação tanto com os líderes locais como com a população. O Governo não é capaz de

fornecer esta plataforma, e nalguns casos não a quer proporcionar. Particularmente nas zonas rurais,

a população encontra-se frustrada pela falta de atenção que lhe é dada pelo Governo e pela

comunidade internacional.

Embora a ISAF não seja, nem é suposto que se torne num actor político, deve desenvolver

plataformas de diálogo que permitam dar voz às diferentes comunidades, permitindo-lhes exprimir as

suas preocupações, anseios e necessidades, na forma de jirgas ou shuras, fazendo-as chegar ao

Governo.

Em que é que isto é útil para a ISAF? Permitir-lhe-á envolver-se com as comunidades, às

quais de outro modo não teria acesso, e ganhar a sua confiança. Permitir-lhe-á explicar-lhes a

necessidade e o objectivo da presença das forças internacionais, tão vilipendiada pelos insurrectos. O

relacionamento com as comunidades e a troca de informação sobre as actividades da ISAF só trará

amigos e não inimigos.

A religião e as elites religiosas são outro assunto com que temos de começar a lidar de uma

forma mais adequada. Elas também são um público-alvo extremamente importante. Se tratadas

correctamente podem ser parceiros de grande utilidade e, como tal, contribuírem para separar os

insurrectos da população. O abandono desta frente pode ter um efeito avassalador para as forças

internacionais.

O Conselho dos Ulemas, a autoridade máxima no país em matéria religiosa, eleito em 2002

pelo governo e sedeado em Cabul, tem sido nos últimos seis anos o interlocutor exclusivo da

comunidade internacional com a comunidade eclesiástica muçulmana, através do defunto Centro

Nacional de Coordenação da Comunicação, mais conhecido na gíria por NC3.

Mas a autoridade deste Conselho sobre a rede de mullahs é diminuta. A sua influência é

praticamente nula. O apoio tácito, para não dizer militância activa, da maioria dos mullahs e dos

líderes religiosos no Sul e no Leste à ideologia dos insurrectos, tem produzido um efeito devastador

nas forças da ISAF. Em vez de aliados e ajudarem a espalhar a mensagem da comunidade

internacional, são portadores de mensagens hostis.

É da maior relevância conseguir alterar as atitudes e os comportamentos dos mullahs

daquelas regiões. Para além da necessidade de interacção e envolvimento com os mullahs no Sul, é

fundamental desenvolver um plano detalhado de actividades orientadas para os influenciar, de modo a

torná-los, pelo menos, actores neutrais. A recolha de dados sobre as estruturas tribais e religiosas

necessita de ser melhorada. É urgente criar novas dinâmicas neste domínio.

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OS MÉTODOS E OS MEIOS A EMPREGAR

Só após se executar o referido trabalho de recolha e análise de dados é que fará sentido falar

dos métodos e dos meios a empregar. Também neste domínio é necessária uma nova abordagem. Para

se conseguir comunicar correctamente com os afegãos há que fazer um esforço em os conhecer. Num

país onde 80% da população é analfabeta, as mensagens escritas têm um alcance extremamente

reduzido. O uso dos media convencionais como a televisão, a rádio e a imprensa apenas nos permitem

atingir uma pequena fracção da população.

Para se chegar a uma fatia maior há que perceber o verdadeiro alcance do que significa

Comunicação Tradicional, no contexto do Afeganistão. Isto significa difundir mensagens recorrendo a

meios tradicionais como sejam o boca a boca, a comunicação cara a cara, o envolvimento com os

líderes e com a população, etc. os quais são de uma tremenda eficácia. O boca a boca pode significar

muita coisa, desde o contador de histórias, o poeta, o cantor, o mullah ou um governante, sem esquecer

as conversas nos mercados onde os insurrectos controlam a comunicação. Há que ser capaz de

influenciar o processo da comunicação nos mercados, algo até agora completamente esquecido.

Os insurrectos dominam com mestria os meios tradicionais de comunicação, combinando-os

de uma forma criativa e inteligente com meios tecnologicamente avançados. Os insurrectos sabem

muito bem qual a importância comunicacional dos poetas e cantores. Não descurando esta frente,

recorrem à internet para lhes indicar qual o conteúdo dos temas e mensagens que devem incluir nos

seus poemas e canções.

As cartas nocturnas (shabnamah), tanto impressas como escritas à mão, distribuídas nas

cidades e vilas são um outro meio de comunicação tradicional utilizado pelos insurrectos. Os DVD's e as

cassetes áudio são meios também utilizados intensivamente pelos insurrectos devido às vantagens

óbvias sobre as publicações escritas. Os primeiros aparecem com mensagens orientadas para o

recrutamento e o moral, enquanto que os segundos contêm normalmente canções e poesia, em

particular cantos religiosos e taranas, canções marciais, nacionalistas e de grande carga emocional,

sem acompanhamento musical.

Fazendo jus ao prescrito nas diversas doutrinas de contra-insurreição, os actores locais são os

melhores meios de comunicação ao dispor da contra-subversão, desfrutando de vantagens óbvias

sobre os actores internacionais. Neste capítulo, entre outros, o exército e a polícia Afegã podem

desempenhar um papel decisivo na comunicação tradicional, se correctamente orientados e se essa

acção se subordinar a uma estratégia previamente estabelecida.

A mobilização de soldados e polícias para participarem no processo da comunicação

tradicional teria um impacto importante junto das populações. Medidas simples como, por exemplo, a

assistência aos sermões das 6.ª feiras em uniforme especialmente após acusações de estes não serem

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Para se conseguir

comunicar correctamente

com os afegãos há que

fazer um esforço em os

conhecer. Num país onde

80% da população é

analfabeta, as

mensagens escritas têm

um alcance

extremamente reduzido

(...) difundir mensagens

recorrendo a meios

tradicionais como sejam

o boca a boca, a

comunicação cara a cara,

o envolvimento com os

líderes e com a

população, etc. os quais

são de uma tremenda

eficácia (...)

islâmicos ou auxiliar os camponeses nas lides da lavoura certamente que ajudaria a ultrapassar o

vazio existente entre aquelas instituições e a população.

Estas medidas aplicam-se em primeiro lugar à polícia. Os polícias devem ter um

comportamento próximo e amigável com a população, sendo a sua acção fundamental para separar os

insurrectos da população. Contrariamente ao que se podia esperar, os polícias extorquem a

população, não se inserindo no esforço colectivo desejado. Estas são apenas algumas ideias daquilo

que poderia ser feito neste domínio. Continua a ser necessário conceber um plano que reflicta uma

nova estratégia, que conte com a contribuição dos afegãos, muito especialmente da polícia Afegã.

As dificuldades de comunicação da ISAF estendem-se igualmente às audiências

internacionais. São várias as dificuldades, as quais, uma vez mais, se prendem com o facto da OTAN

ser uma organização internacional. O processo de decisão numa organização internacional reflecte

um compromisso baseado no menor denominador comum. Diferentes perspectivas nacionais sobre a

resolução dos problemas dificultam a adopção de mensagens unificadas.

Enquanto alguns governos consideram que as mensagens com um maior conteúdo cinético

sabotam o apoio da opinião pública à missão, outros são mais receptivos a missões de combate. As

prioridades de comunicação diferem de nação para nação. As discussões públicas sobre caveats e

insuficiência de tropas transmitem uma noção de fraqueza e desunião no seio da Aliança. Mensagens

contraditórias criam enormes problemas a quem tenta transmitir uma imagem de determinação e

força.

Os insurrectos, por seu lado, não têm as restrições de comunicação da ISAF. A sua liberdade

de acção é total e completa, operando quando e onde querem. Isso fez com que se tenham conseguido

tornar, tanto a nível regional como internacional, fontes de informação credíveis a par com a ISAF,

tendo contribuído para isso o facto de serem eles a estabelecer a agenda do campo de batalha

mediático. Pelo contrário, os oficiais de relações públicas da ISAF são confrontados com toda a espécie

de restrições que afectam a qualidade e o efeito das suas respostas fazendo-os falhar no seu propósito

de fornecer respostas adequadas a este novo desafio.

De acordo com os estudos feitos pelo Rendon Group, os insurrectos têm dominado o espaço

mediático tanto a nível nacional como internacional, tendo a ISAF revelado uma enorme dificuldade

em produzir respostas em tempo útil. A competição força frequentemente as agências noticiosas a

publicarem notícias apesar da informação disponível sobre os acontecimentos ser muito limitada e

sem previamente as certificarem.

Na ausência de respostas em tempo útil, estas agências noticiosas transmitem a versão dos

AS AUDIÊNCIAS INTERNACIONAIS

Cadernos do IDN

Dezembro de 2008 Nº 1

22

acontecimentos avançada pelos insurrectos, enquanto a ISAF aguarda pela validação da informação.

São raras as situações em que a ISAF consegue proporcionar aos media uma resposta detalhada e

precisa num curto espaço de tempo. Esta desvantagem é fatal, acabando por prevalecer a competição

pelo scoop, a qual cria as condições ideais para que os insurrectos tenham vantagem na batalha da

informação.

O YouTube tornou-se para os insurrectos um novo campo de batalha da Guerra no

Afeganistão, sendo capazes de difundir vídeos uma hora após a ocorrência dos acontecimentos.

Manuseando as câmaras de vídeo como armas são capazes de carregarem na internet as imagens dos

seus ataques com uma extrema rapidez utilizando-as, entre outras coisas, para elevar o moral dos seus

apoiantes.

Apesar de não ser fácil, esta situação de desvantagem pode ser revertida e o rumo dos

acontecimentos pode ser alterado. Mas isso requer uma abordagem nova que se coadune com as

limitações próprias de se trabalhar no quadro de uma organização internacional, e que permita

descredibilizar o rol de mentiras dos insurrectos. Isso passa, pela relutância das agências noticiosas em

disseminarem, na primeira oportunidade, as declarações intencionalmente enganadoras dos

insurrectos. Isto exige dos responsáveis a marcação da agenda mediática com o seu próprio ciclo de

resposta, em vez de tentarem competir com os insurrectos.

Dezembro de 2008Nº 1

Cadernos do IDN

23

(...) uma abordagem

nova que se coadune

com as limitações

próprias de se trabalhar

no quadro de uma

organização

internacional, e que

permita descredibilizar o

rol de mentiras dos

insurrectos (...)

islâmicos ou auxiliar os camponeses nas lides da lavoura certamente que ajudaria a ultrapassar o

vazio existente entre aquelas instituições e a população.

Estas medidas aplicam-se em primeiro lugar à polícia. Os polícias devem ter um

comportamento próximo e amigável com a população, sendo a sua acção fundamental para separar os

insurrectos da população. Contrariamente ao que se podia esperar, os polícias extorquem a

população, não se inserindo no esforço colectivo desejado. Estas são apenas algumas ideias daquilo

que poderia ser feito neste domínio. Continua a ser necessário conceber um plano que reflicta uma

nova estratégia, que conte com a contribuição dos afegãos, muito especialmente da polícia Afegã.

As dificuldades de comunicação da ISAF estendem-se igualmente às audiências

internacionais. São várias as dificuldades, as quais, uma vez mais, se prendem com o facto da OTAN

ser uma organização internacional. O processo de decisão numa organização internacional reflecte

um compromisso baseado no menor denominador comum. Diferentes perspectivas nacionais sobre a

resolução dos problemas dificultam a adopção de mensagens unificadas.

Enquanto alguns governos consideram que as mensagens com um maior conteúdo cinético

sabotam o apoio da opinião pública à missão, outros são mais receptivos a missões de combate. As

prioridades de comunicação diferem de nação para nação. As discussões públicas sobre caveats e

insuficiência de tropas transmitem uma noção de fraqueza e desunião no seio da Aliança. Mensagens

contraditórias criam enormes problemas a quem tenta transmitir uma imagem de determinação e

força.

Os insurrectos, por seu lado, não têm as restrições de comunicação da ISAF. A sua liberdade

de acção é total e completa, operando quando e onde querem. Isso fez com que se tenham conseguido

tornar, tanto a nível regional como internacional, fontes de informação credíveis a par com a ISAF,

tendo contribuído para isso o facto de serem eles a estabelecer a agenda do campo de batalha

mediático. Pelo contrário, os oficiais de relações públicas da ISAF são confrontados com toda a espécie

de restrições que afectam a qualidade e o efeito das suas respostas fazendo-os falhar no seu propósito

de fornecer respostas adequadas a este novo desafio.

De acordo com os estudos feitos pelo Rendon Group, os insurrectos têm dominado o espaço

mediático tanto a nível nacional como internacional, tendo a ISAF revelado uma enorme dificuldade

em produzir respostas em tempo útil. A competição força frequentemente as agências noticiosas a

publicarem notícias apesar da informação disponível sobre os acontecimentos ser muito limitada e

sem previamente as certificarem.

Na ausência de respostas em tempo útil, estas agências noticiosas transmitem a versão dos

AS AUDIÊNCIAS INTERNACIONAIS

Cadernos do IDN

Dezembro de 2008 Nº 1

22

acontecimentos avançada pelos insurrectos, enquanto a ISAF aguarda pela validação da informação.

São raras as situações em que a ISAF consegue proporcionar aos media uma resposta detalhada e

precisa num curto espaço de tempo. Esta desvantagem é fatal, acabando por prevalecer a competição

pelo scoop, a qual cria as condições ideais para que os insurrectos tenham vantagem na batalha da

informação.

O YouTube tornou-se para os insurrectos um novo campo de batalha da Guerra no

Afeganistão, sendo capazes de difundir vídeos uma hora após a ocorrência dos acontecimentos.

Manuseando as câmaras de vídeo como armas são capazes de carregarem na internet as imagens dos

seus ataques com uma extrema rapidez utilizando-as, entre outras coisas, para elevar o moral dos seus

apoiantes.

Apesar de não ser fácil, esta situação de desvantagem pode ser revertida e o rumo dos

acontecimentos pode ser alterado. Mas isso requer uma abordagem nova que se coadune com as

limitações próprias de se trabalhar no quadro de uma organização internacional, e que permita

descredibilizar o rol de mentiras dos insurrectos. Isso passa, pela relutância das agências noticiosas em

disseminarem, na primeira oportunidade, as declarações intencionalmente enganadoras dos

insurrectos. Isto exige dos responsáveis a marcação da agenda mediática com o seu próprio ciclo de

resposta, em vez de tentarem competir com os insurrectos.

Dezembro de 2008Nº 1

Cadernos do IDN

23

(...) uma abordagem

nova que se coadune

com as limitações

próprias de se trabalhar

no quadro de uma

organização

internacional, e que

permita descredibilizar o

rol de mentiras dos

insurrectos (...)

eleição de uma interface tensa entre os A região geral do Mar Negro parece-

'impérios centrais' Austro-Húngaro, Russo e nos remota e distante. Não o é. Tem sido um

Turco. Na Grande Guerra constituiu a frente de lugar decisivo na maioria das mudanças

contacto entre os impérios Alemão, Russo e estruturais que o sistema internacional de

Otomano. Na Segunda Guerra Mundial foi-o Estados e a própria ordem internacional têm

entre Aliados e o Eixo e, para os primeiros, sofrido no último século e meio. Mesmo uma

constituiu uma zona de atrito entre leitura cursória o mostra à sociedade. Em

Bolcheviques e Britânicos. Durante a Guerra 1854-1855, no cerne da Guerra da Crimeia, o

Fria formou um dos espaços de tensão entre o Mar Negro foi palco do Cerco de Sebastopol,

Pacto de Varsóvia, que aí incluía toda a costa que contrapôs britânicos, franceses e turcos às

Norte e Leste, então soviética, e o seu litoral tropas russas imperiais. Em

Oeste, com a Roménia e a 1915, Winston Churchill teve

Bulgária - e a contrapunha um desaire em Galipoli contra

à NATO, nele representada os Otomanos, uma derrota

apenas pela Turquia. Com o inesperada que o arredou

fim da ordem bipolar a efectivamente da política

situação pareceu tender a activa até muitos anos depois,

uma inversão: com a quando se ouviram as salvas

i m p l o s ã o d a U n i ã o iniciais do segundo conflito

Soviética, o Mar Negro vê-mundial. Tal como fora o caso

se repartido por seis no primeiro, durante esse

E s t ados , t r ê s de l e s segundo conflito 'global' tal

membros da A l iança centralidade manteve-se: em

Atlântica, a Turquia, a Fevereiro de 1945, teve lugar a

Bulgária e a Roménia, dois Conferência de Yalta, na

outros candidatos a uma adesão a essa Crimeia, que juntou Franklin Delano

aliança, a Ucrânia e a Geórgia, e uma Rússia Roosevelt, Winston Churchill e Josef Stalin, e

reduzida a uma exígua linha de costa. que tão decisiva foi. Agora, em 2008, é a

Irei dividir a minha apresentação em Geórgia a adquirir uma importância decisiva no

três partes. Numa primeira, abordo as litoral Leste do Mar Negro e que põe na ribalta

alegações 'legalistas' que uma aparente líderes como Mikhail Saakashvili, Vladimir

sabedoria convencional sobre o conflito que a Putin, George W. Bush, e Nicolas Sarkozy. Em

desinformação, a propaganda e as manobras termos geopolíticos macro, depois de 1815 o

psicológicas, têm tornado moeda corrente; o Mar Negro tornou-se na frente geográfica de

meu esforço é aí de desconstrução. Numa

O Conflito na Geórgia

Dezembro de 2008Nº 1

(...) com a implosão da União

Soviética, o Mar Negro vê-se

repartido por seis Estados,

três deles membros da

Aliança Atlântica, a Turquia, a

Bulgária e a Roménia, dois

outros candidatos a uma

adesão a essa aliança, a

Ucrânia e a Geórgia, e uma

Rússia reduzida a uma

exígua linha de costa (...)

Cadernos do IDN

25

Armando Marques Guedes

Prof. Doutor

eleição de uma interface tensa entre os A região geral do Mar Negro parece-

'impérios centrais' Austro-Húngaro, Russo e nos remota e distante. Não o é. Tem sido um

Turco. Na Grande Guerra constituiu a frente de lugar decisivo na maioria das mudanças

contacto entre os impérios Alemão, Russo e estruturais que o sistema internacional de

Otomano. Na Segunda Guerra Mundial foi-o Estados e a própria ordem internacional têm

entre Aliados e o Eixo e, para os primeiros, sofrido no último século e meio. Mesmo uma

constituiu uma zona de atrito entre leitura cursória o mostra à sociedade. Em

Bolcheviques e Britânicos. Durante a Guerra 1854-1855, no cerne da Guerra da Crimeia, o

Fria formou um dos espaços de tensão entre o Mar Negro foi palco do Cerco de Sebastopol,

Pacto de Varsóvia, que aí incluía toda a costa que contrapôs britânicos, franceses e turcos às

Norte e Leste, então soviética, e o seu litoral tropas russas imperiais. Em

Oeste, com a Roménia e a 1915, Winston Churchill teve

Bulgária - e a contrapunha um desaire em Galipoli contra

à NATO, nele representada os Otomanos, uma derrota

apenas pela Turquia. Com o inesperada que o arredou

fim da ordem bipolar a efectivamente da política

situação pareceu tender a activa até muitos anos depois,

uma inversão: com a quando se ouviram as salvas

i m p l o s ã o d a U n i ã o iniciais do segundo conflito

Soviética, o Mar Negro vê-mundial. Tal como fora o caso

se repartido por seis no primeiro, durante esse

E s t ados , t r ê s de l e s segundo conflito 'global' tal

membros da A l iança centralidade manteve-se: em

Atlântica, a Turquia, a Fevereiro de 1945, teve lugar a

Bulgária e a Roménia, dois Conferência de Yalta, na

outros candidatos a uma adesão a essa Crimeia, que juntou Franklin Delano

aliança, a Ucrânia e a Geórgia, e uma Rússia Roosevelt, Winston Churchill e Josef Stalin, e

reduzida a uma exígua linha de costa. que tão decisiva foi. Agora, em 2008, é a

Irei dividir a minha apresentação em Geórgia a adquirir uma importância decisiva no

três partes. Numa primeira, abordo as litoral Leste do Mar Negro e que põe na ribalta

alegações 'legalistas' que uma aparente líderes como Mikhail Saakashvili, Vladimir

sabedoria convencional sobre o conflito que a Putin, George W. Bush, e Nicolas Sarkozy. Em

desinformação, a propaganda e as manobras termos geopolíticos macro, depois de 1815 o

psicológicas, têm tornado moeda corrente; o Mar Negro tornou-se na frente geográfica de

meu esforço é aí de desconstrução. Numa

O Conflito na Geórgia

Dezembro de 2008Nº 1

(...) com a implosão da União

Soviética, o Mar Negro vê-se

repartido por seis Estados,

três deles membros da

Aliança Atlântica, a Turquia, a

Bulgária e a Roménia, dois

outros candidatos a uma

adesão a essa aliança, a

Ucrânia e a Geórgia, e uma

Rússia reduzida a uma

exígua linha de costa (...)

Cadernos do IDN

25

Armando Marques Guedes

Prof. Doutor

segunda parte, reconstruo racionalmente o que de facto sabemos sobre as dinâmicas dos processos

político-militares em curso. Num terceiro e último segmento, teço algumas considerações sobre os

impactos geopolíticos da invasão e reconhecimentos russos e sobre o papel que a União Europeia tem

logrado ter face a processos que a afectam profundamente mas que escapam a um seu controlo

efectivo.

Nas inúmeras tomadas de posição que ocorreram desde Agosto passado têm sido suscitadas

várias discussões que me parecem de pôr de lado. Uma delas diz respeito às 'culpas', ou às

'responsabilidades', na eclosão do conflito. Tanto os russos, como as autoridades da Geórgia, como

georgianos da oposição, como alguns dos Estados membros europeus envolvidos na “mediação” do

conflito, têm vindo a esgrimir narrativas e argumentos neste espírito. Caracteristicamente, tais

discussões versam a questão de saber quem atirou a primeira pedra.

As numerosas discussões e narrativas têm tido, por norma, um cariz jurídico e adversarial.

Uns argumentam que terão sido os russos a desencadear o conflito. Outros, insistem que a

responsabilidade deverá recair sobre o Presidente Saakashvili, que terá atacado antes. Há também os

que argumentam que se tratou de “uma armadilha” russa em que um Presidente georgiano incauto

tropeçou, urdida por Vladimir Putin, a que um analista britânico chamou “the capo di tutti capi della

Cosa Nostra Rusiana”. Outros, ainda, que foram as acções “genocidas” dos artilheiros

governamentais georgianos aquilo que deu início à guerra.

A discussão parece-me estéril e irrelevante. A esterilidade decorre, por um lado, da

impossibilidade em apurar factos e dados, sempre susceptíveis de distorções instrumentais e que

desde o primeiro dia o têm sido. Resulta, por outro lado, de se tratar de uma questão estruturalmente

irresolúvel, dado o caminho que tomou de 'regressão permanente': com efeito, a argumentação tem

vindo a recuar no tempo no que diz respeito à atribuição de responsabilidades, que ora terão sido dos

russos, que invadiram a Geórgia, ou dos georgianos, que tentaram atacar de maneira brutal e

decisiva a Ossétia do Sul, ou de novo dos russos, que os provocaram e atiçaram, ou dos georgianos

que desde 1992 têm forçado os russos, contrafeitos, a intervenções pacificadoras. Esta linha de

discussão é, também, irrelevante - note-se que aquilo que move a argumentação é o desejo,

manifestado por ambas as partes conflituantes e até pelos Estados membros da União Europeia, de

ver a guerra aferida no quadro do Direito Internacional, de modo que um dos lados se veja

responsabilizado. As autoridades russas têm tentado ancorar a invasão em quadros defensivos e

“humanitários”, enquanto a Geórgia tem sublinhado os seus direitos soberanos.

Note-se, em todo o caso, que esta argumentação tem também sido incompleta.

Curiosamente, a Administração russa invocou culpa do Governo georgiano no que toca à Ossétia do

1

Uns argumentam que

terão sido os russos a

desencadear o conflito.

Outros, insistem que a

responsabilidade deverá

recair sobre o Presidente

Saakashvili, que terá

atacado antes.

Cadernos do IDN

Dezembro de 2008 Nº 1

26

Sul; que este terá “atacado”, justificando, nesses termos, a invasão, mas, no que diz respeito à Abcásia,

nenhum argumento russo foi avançado para a intervenção que teve lugar. Mais, a linha de

argumentação russa é insuficiente para justificar o reconhecimento da independência da Ossétia do Sul

e da Abcásia que se lhes seguiu, pouco mais de duas semanas depois da sua entrada militar na Geórgia.

Esta incompletude radica numa segunda linha de argumentação russa, que diz respeito à 'obrigação' de

uma efectiva protecção de minorias indefesas, à consequente aplicabilidade do Direito de Ingerência,

ou do Direito Internacional Humanitário, ou até do Direito de “autodeterminação” invocado pelas

autoridades moscovitas ou, melhor ainda, o Direito resultante do “precedente” instaurado pelo “caso

do Kosovo”.

A surpresa que muitos manifestaram relativamente a este tipo de argumentação das

autoridades moscovitas não resulta, tão-só, da manifesta aplicação de dois pesos e duas medidas ou

seja do facto de que a Rússia nunca aceitou reconhecer o direito à 'autodeterminação' de ninguém

desde as independências coloniais; tal como a China e a maioria dos membros da Assembleia Geral das

Nações Unidas, a Rússia tem sempre insistido na importância primordial do princípio da 'inviolabilidade

das fronteiras soberanas'; e a Rússia de Vladimir Putin foi, seguramente, o Estado que com maior

veemência e firmeza se opôs, e continua a opor, a uma independência do Kosovo, invocando a

soberania sérvia. Parece estranho, por isso, que a Rússia mantenha essa posição e, em simultâneo,

defenda as independências da Abcásia e da Ossétia do Sul - mas fê-lo, a 26 de Agosto, passando sem

apoios internacionais que não a Nicarágua 'sandinista' de Daniel Ortega, o Hamas e o Hezbollah.

As analogias aventadas por Moscovo para justificar tais invocações têm também pouco

cabimento em si mesmas: a invasão da Geórgia foi muito diferente dos ataques da NATO aos sérvios no

caso do Kosovo, em 1999, que se seguiram a meses de tentativas goradas de resolver a questão num

quadro negocial e no âmbito de organizações internacionais como as Nações Unidas . Os

reconhecimentos que se sucederam, a partir de inícios de 2008, deram-se apenas depois do fecho

formal, a 10 de Dezembro de 2007, de nove anos de negociações infrutíferas. Ao invés, não houve, no

caso da incursão russa na Geórgia, em inícios Agosto de 2008, e dos reconhecimentos das

independências da Abcásia e da Ossétia do Sul, a 26 desse mesmo mês, quaisquer tentativas de

envolver nos processos nenhuma das organizações internacionais. A operação russa na Geórgia, em

Agosto de 2008, em nome dos direitos das minorias, foi muitíssimo semelhante à invasão nazi, levada a

cabo também pela via de um Blitzkrieg unilateral e fulgurante, dessa feita sobre a Sudetenland

checoslovaca, em 1938; e foi empreendida com justificações aduzidas muito semelhantes à 'libertação'

das minorias aí instaladas e oprimidas.

Um último grupo de argumentos esgrimidos por fontes próximas da Administração russa é

mais interessante, e centra-se em alegações de que a invasão terá sido resultado de um misto de

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Agência Lusa

segunda parte, reconstruo racionalmente o que de facto sabemos sobre as dinâmicas dos processos

político-militares em curso. Num terceiro e último segmento, teço algumas considerações sobre os

impactos geopolíticos da invasão e reconhecimentos russos e sobre o papel que a União Europeia tem

logrado ter face a processos que a afectam profundamente mas que escapam a um seu controlo

efectivo.

Nas inúmeras tomadas de posição que ocorreram desde Agosto passado têm sido suscitadas

várias discussões que me parecem de pôr de lado. Uma delas diz respeito às 'culpas', ou às

'responsabilidades', na eclosão do conflito. Tanto os russos, como as autoridades da Geórgia, como

georgianos da oposição, como alguns dos Estados membros europeus envolvidos na “mediação” do

conflito, têm vindo a esgrimir narrativas e argumentos neste espírito. Caracteristicamente, tais

discussões versam a questão de saber quem atirou a primeira pedra.

As numerosas discussões e narrativas têm tido, por norma, um cariz jurídico e adversarial.

Uns argumentam que terão sido os russos a desencadear o conflito. Outros, insistem que a

responsabilidade deverá recair sobre o Presidente Saakashvili, que terá atacado antes. Há também os

que argumentam que se tratou de “uma armadilha” russa em que um Presidente georgiano incauto

tropeçou, urdida por Vladimir Putin, a que um analista britânico chamou “the capo di tutti capi della

Cosa Nostra Rusiana”. Outros, ainda, que foram as acções “genocidas” dos artilheiros

governamentais georgianos aquilo que deu início à guerra.

A discussão parece-me estéril e irrelevante. A esterilidade decorre, por um lado, da

impossibilidade em apurar factos e dados, sempre susceptíveis de distorções instrumentais e que

desde o primeiro dia o têm sido. Resulta, por outro lado, de se tratar de uma questão estruturalmente

irresolúvel, dado o caminho que tomou de 'regressão permanente': com efeito, a argumentação tem

vindo a recuar no tempo no que diz respeito à atribuição de responsabilidades, que ora terão sido dos

russos, que invadiram a Geórgia, ou dos georgianos, que tentaram atacar de maneira brutal e

decisiva a Ossétia do Sul, ou de novo dos russos, que os provocaram e atiçaram, ou dos georgianos

que desde 1992 têm forçado os russos, contrafeitos, a intervenções pacificadoras. Esta linha de

discussão é, também, irrelevante - note-se que aquilo que move a argumentação é o desejo,

manifestado por ambas as partes conflituantes e até pelos Estados membros da União Europeia, de

ver a guerra aferida no quadro do Direito Internacional, de modo que um dos lados se veja

responsabilizado. As autoridades russas têm tentado ancorar a invasão em quadros defensivos e

“humanitários”, enquanto a Geórgia tem sublinhado os seus direitos soberanos.

Note-se, em todo o caso, que esta argumentação tem também sido incompleta.

Curiosamente, a Administração russa invocou culpa do Governo georgiano no que toca à Ossétia do

1

Uns argumentam que

terão sido os russos a

desencadear o conflito.

Outros, insistem que a

responsabilidade deverá

recair sobre o Presidente

Saakashvili, que terá

atacado antes.

Cadernos do IDN

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Sul; que este terá “atacado”, justificando, nesses termos, a invasão, mas, no que diz respeito à Abcásia,

nenhum argumento russo foi avançado para a intervenção que teve lugar. Mais, a linha de

argumentação russa é insuficiente para justificar o reconhecimento da independência da Ossétia do Sul

e da Abcásia que se lhes seguiu, pouco mais de duas semanas depois da sua entrada militar na Geórgia.

Esta incompletude radica numa segunda linha de argumentação russa, que diz respeito à 'obrigação' de

uma efectiva protecção de minorias indefesas, à consequente aplicabilidade do Direito de Ingerência,

ou do Direito Internacional Humanitário, ou até do Direito de “autodeterminação” invocado pelas

autoridades moscovitas ou, melhor ainda, o Direito resultante do “precedente” instaurado pelo “caso

do Kosovo”.

A surpresa que muitos manifestaram relativamente a este tipo de argumentação das

autoridades moscovitas não resulta, tão-só, da manifesta aplicação de dois pesos e duas medidas ou

seja do facto de que a Rússia nunca aceitou reconhecer o direito à 'autodeterminação' de ninguém

desde as independências coloniais; tal como a China e a maioria dos membros da Assembleia Geral das

Nações Unidas, a Rússia tem sempre insistido na importância primordial do princípio da 'inviolabilidade

das fronteiras soberanas'; e a Rússia de Vladimir Putin foi, seguramente, o Estado que com maior

veemência e firmeza se opôs, e continua a opor, a uma independência do Kosovo, invocando a

soberania sérvia. Parece estranho, por isso, que a Rússia mantenha essa posição e, em simultâneo,

defenda as independências da Abcásia e da Ossétia do Sul - mas fê-lo, a 26 de Agosto, passando sem

apoios internacionais que não a Nicarágua 'sandinista' de Daniel Ortega, o Hamas e o Hezbollah.

As analogias aventadas por Moscovo para justificar tais invocações têm também pouco

cabimento em si mesmas: a invasão da Geórgia foi muito diferente dos ataques da NATO aos sérvios no

caso do Kosovo, em 1999, que se seguiram a meses de tentativas goradas de resolver a questão num

quadro negocial e no âmbito de organizações internacionais como as Nações Unidas . Os

reconhecimentos que se sucederam, a partir de inícios de 2008, deram-se apenas depois do fecho

formal, a 10 de Dezembro de 2007, de nove anos de negociações infrutíferas. Ao invés, não houve, no

caso da incursão russa na Geórgia, em inícios Agosto de 2008, e dos reconhecimentos das

independências da Abcásia e da Ossétia do Sul, a 26 desse mesmo mês, quaisquer tentativas de

envolver nos processos nenhuma das organizações internacionais. A operação russa na Geórgia, em

Agosto de 2008, em nome dos direitos das minorias, foi muitíssimo semelhante à invasão nazi, levada a

cabo também pela via de um Blitzkrieg unilateral e fulgurante, dessa feita sobre a Sudetenland

checoslovaca, em 1938; e foi empreendida com justificações aduzidas muito semelhantes à 'libertação'

das minorias aí instaladas e oprimidas.

Um último grupo de argumentos esgrimidos por fontes próximas da Administração russa é

mais interessante, e centra-se em alegações de que a invasão terá sido resultado de um misto de

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Agência Lusa

direitos sobre um espaço pós-soviético sobre o qual a Federação Russa teria responsabilidades

históricas especiais, e um interesse geográfico-político natural, uma espécie de variante russa da

Doutrina de Monroe norte-americana. A Rússia, enquanto Estado teria, de acordo com estes

considerandos, um direito implícito de intervir, num perímetro de segurança correspondente à

profundidade estratégica que lhe é essencial para a sua própria sobrevivência, em nome dos seus

próprios interesses - e.g., a sua Ossétia do Norte, a Ingushétia e a Chechénia estariam a ser

desestabilizadas por causa das tensões e conflitos no Cáucaso do Sul. Tem sido um analista russo,

Sergey Markedonov, quem melhor tem vindo a teorizar esta estratégia argumentativa, e os paralelos

formulados têm-no sido com as intervenções cíclicas de pára-quedistas franceses na África pós-

colonial, com as actuações de Israel no Médio Oriente, ou as da Austrália na Oceânia. Repare-se que

esta derradeira linha de argumentação não tenta legitimar a actuação russa na Geórgia. Ensaia,

antes, justificá-la “encostando-a” a exemplos de power politics de Grandes Potências - o que me

parece ser precisamente o que está em causa: a asserção pública e enfática de um ressurgimento da

Rússia como Grande Potência, que se insere bem na sua necessidade de afirmação como tal, neste

caso, no seu near abroad estratégico.

Volto-me, num segundo segmento mais “construtivo”, para duas questões

interrelacionadas: entre outras coisas, ambas se prendem com questões de facto. Uma primeira,

relativa à preparação da Operação “Forcing Georgia to Peace”, um exercício que envolveu 8 mil

soldados russos junto à fronteira com a Geórgia. Uma segunda, que diz respeito ao alcance e impacto

da tão propalada interdependência económica Rússia-Europa, que esbateria os riscos de uma

escalada nos conflitos.

Começo por observar o óbvio: as autoridades georgianas têm na guerra um fito estratégico,

como o demonstrou a eclosão de conflitos étnicos na Geórgia em 1992, como continuou na Ossétia e

na Abcásia, durante a década de 90, e depois com nitidez, nos conflitos violentos de 2004: o Governo

de Tbilisi quer exercer a sua soberania sobre estas suas duas regiões - a bem ou a mal. Em paralelo,

quero insistir no menos óbvio: também a Rússia tem tido um fito estratégico na região. Sem querer

entrar em pormenores desnecessários, queria demonstrá-lo.

1. Em primeiro lugar, Agosto teve antecedentes “imediatos”. Menos de um ano antes de Agosto,

um míssil russo caiu perto de Tiblisi, a capital georgiana - os números de série foram mostrados

nas televisões. Um par de meses antes, na Primavera, um drone não tripulado georgiano que

filmava movimentos das tropas russas e ossetas secessionistas foi abatido por um MIG-29 - as

...as autoridades georgianas têm na guerra um fito estratégico...

Cadernos do IDN

Dezembro de 2008 Nº 1

28

filmagens, feitas pelo avião robot vieram também a público. Mais, de acordo com dados ocidentais,

entre 75 e 80% dos abcazes receberam passaportes russos nos meses que precederam a invasão

de Agosto, muitos deles pré-datados. Em Setembro, o presidente Mikhail Saakashvili mostrou à

CNN, à BBC e a outras televisões dois passaportes russos emitidos a dois cidadãos georgianos da

Ossétia do Sul - um pré-datado de 2004, outro de 2005.

2. Na madrugada da sábado, 7 de Agosto, um coronel do exército russo de ascendência georgiana,

Mikhail Kachidze, e sete outros oficiais também de ascendência georgiana e um outro, russo,

foram presos pelo FSB (o cada vez mais temido Serviço Federal de Segurança de Moscovo) e

formalmente acusados de “alta traição”. Segundo as agências de notícias de Moscovo, estariam

“há meses” a fornecer informações ao governo georgiano sobre a preparação técnico-militar e a

disponibilidade política russa na Ossétia do Sul. Ao que se pensa, terão sido condutas de

desinformação durante esses “meses”.

3. Mais interessante, como indícios que corroboram a hipótese de uma premeditação russa, foi a

surpreendente capacidade de coordenação das complexas manobras terrestres, aéreas e navais

das forças que entraram na Geórgia.

Vejamo-lo. A invasão russa processou-se em duas frentes. Uma delas teve início a 7 de Agosto, e

contou com 6 a 10 mil homens, em colunas motorizadas que se deslocam da Ossétia do Norte para

a do Sul através do famoso Túnel de Roki, que atravessa a faixa montanhosa que separa a Rússia

da Geórgia. Humint, no terreno, contou-os, imagens de satélite e observadores oficiais da OSCE e

da Human Rights Watch corroboraram-no. As colunas incluíram centenas de tanques, carros

blindados ligeiros, e lança-rockets. O grosso das colunas integraram militares do 56º Exército,

baseado na Ossétia do Norte, a província russa adjacente. A estes juntaram-se, logo no Sábado,

homens da 76ª Divisão de Assalto Aéreo, baseados no Distrito Militar de Leninegrado, então

aerotransportados para a capital sul-osseta, Tskhinvali. Seguiram-se-lhes, a breve trecho, forças

integradas na 96ª Divisão Aerotransportada e do 45º Regimento de Intelligence, provenientes do

Distrito Militar de Moscovo.

Estas colunas entraram na Ossétia atravessando território georgiano “não-disputado” e, a Oeste

do quasi-inexpugnável Gori Pass, fecharam todas as estradas e desmantelaram os caminhos-de-

ferro. Uma vez estacionada a Oeste de Gori, as colunas russas dividiram-se um subgrupo de cerca

de 2 mil homens ocupou rapidamente a capital osseta, Tskhinvali e levaram a cabo as operações

de tiro-ao-alvo e limpeza. Em apoio destas colunas e deste subsequente deployment foram

efectuadas mais de 100 missões aéreas de apoio, que envolveram mais de 300 aviões Sukhoi e

Tupolev, designadamente, caças Su-24, Su-25, e Su-27 e bombardeiros Tu-22. Lembre-se que a

Rússia tem uma série de bases aéreas na região circundante, muitas delas usadas no decurso do

Dezembro de 2008Nº 1

Cadernos do IDN

29

(...) alegações de que a

invasão terá sido

resultado de um misto de

direitos ... uma espécie

de variante russa da

Doutrina de Monroe

norte-americana(...)

2

direitos sobre um espaço pós-soviético sobre o qual a Federação Russa teria responsabilidades

históricas especiais, e um interesse geográfico-político natural, uma espécie de variante russa da

Doutrina de Monroe norte-americana. A Rússia, enquanto Estado teria, de acordo com estes

considerandos, um direito implícito de intervir, num perímetro de segurança correspondente à

profundidade estratégica que lhe é essencial para a sua própria sobrevivência, em nome dos seus

próprios interesses - e.g., a sua Ossétia do Norte, a Ingushétia e a Chechénia estariam a ser

desestabilizadas por causa das tensões e conflitos no Cáucaso do Sul. Tem sido um analista russo,

Sergey Markedonov, quem melhor tem vindo a teorizar esta estratégia argumentativa, e os paralelos

formulados têm-no sido com as intervenções cíclicas de pára-quedistas franceses na África pós-

colonial, com as actuações de Israel no Médio Oriente, ou as da Austrália na Oceânia. Repare-se que

esta derradeira linha de argumentação não tenta legitimar a actuação russa na Geórgia. Ensaia,

antes, justificá-la “encostando-a” a exemplos de power politics de Grandes Potências - o que me

parece ser precisamente o que está em causa: a asserção pública e enfática de um ressurgimento da

Rússia como Grande Potência, que se insere bem na sua necessidade de afirmação como tal, neste

caso, no seu near abroad estratégico.

Volto-me, num segundo segmento mais “construtivo”, para duas questões

interrelacionadas: entre outras coisas, ambas se prendem com questões de facto. Uma primeira,

relativa à preparação da Operação “Forcing Georgia to Peace”, um exercício que envolveu 8 mil

soldados russos junto à fronteira com a Geórgia. Uma segunda, que diz respeito ao alcance e impacto

da tão propalada interdependência económica Rússia-Europa, que esbateria os riscos de uma

escalada nos conflitos.

Começo por observar o óbvio: as autoridades georgianas têm na guerra um fito estratégico,

como o demonstrou a eclosão de conflitos étnicos na Geórgia em 1992, como continuou na Ossétia e

na Abcásia, durante a década de 90, e depois com nitidez, nos conflitos violentos de 2004: o Governo

de Tbilisi quer exercer a sua soberania sobre estas suas duas regiões - a bem ou a mal. Em paralelo,

quero insistir no menos óbvio: também a Rússia tem tido um fito estratégico na região. Sem querer

entrar em pormenores desnecessários, queria demonstrá-lo.

1. Em primeiro lugar, Agosto teve antecedentes “imediatos”. Menos de um ano antes de Agosto,

um míssil russo caiu perto de Tiblisi, a capital georgiana - os números de série foram mostrados

nas televisões. Um par de meses antes, na Primavera, um drone não tripulado georgiano que

filmava movimentos das tropas russas e ossetas secessionistas foi abatido por um MIG-29 - as

...as autoridades georgianas têm na guerra um fito estratégico...

Cadernos do IDN

Dezembro de 2008 Nº 1

28

filmagens, feitas pelo avião robot vieram também a público. Mais, de acordo com dados ocidentais,

entre 75 e 80% dos abcazes receberam passaportes russos nos meses que precederam a invasão

de Agosto, muitos deles pré-datados. Em Setembro, o presidente Mikhail Saakashvili mostrou à

CNN, à BBC e a outras televisões dois passaportes russos emitidos a dois cidadãos georgianos da

Ossétia do Sul - um pré-datado de 2004, outro de 2005.

2. Na madrugada da sábado, 7 de Agosto, um coronel do exército russo de ascendência georgiana,

Mikhail Kachidze, e sete outros oficiais também de ascendência georgiana e um outro, russo,

foram presos pelo FSB (o cada vez mais temido Serviço Federal de Segurança de Moscovo) e

formalmente acusados de “alta traição”. Segundo as agências de notícias de Moscovo, estariam

“há meses” a fornecer informações ao governo georgiano sobre a preparação técnico-militar e a

disponibilidade política russa na Ossétia do Sul. Ao que se pensa, terão sido condutas de

desinformação durante esses “meses”.

3. Mais interessante, como indícios que corroboram a hipótese de uma premeditação russa, foi a

surpreendente capacidade de coordenação das complexas manobras terrestres, aéreas e navais

das forças que entraram na Geórgia.

Vejamo-lo. A invasão russa processou-se em duas frentes. Uma delas teve início a 7 de Agosto, e

contou com 6 a 10 mil homens, em colunas motorizadas que se deslocam da Ossétia do Norte para

a do Sul através do famoso Túnel de Roki, que atravessa a faixa montanhosa que separa a Rússia

da Geórgia. Humint, no terreno, contou-os, imagens de satélite e observadores oficiais da OSCE e

da Human Rights Watch corroboraram-no. As colunas incluíram centenas de tanques, carros

blindados ligeiros, e lança-rockets. O grosso das colunas integraram militares do 56º Exército,

baseado na Ossétia do Norte, a província russa adjacente. A estes juntaram-se, logo no Sábado,

homens da 76ª Divisão de Assalto Aéreo, baseados no Distrito Militar de Leninegrado, então

aerotransportados para a capital sul-osseta, Tskhinvali. Seguiram-se-lhes, a breve trecho, forças

integradas na 96ª Divisão Aerotransportada e do 45º Regimento de Intelligence, provenientes do

Distrito Militar de Moscovo.

Estas colunas entraram na Ossétia atravessando território georgiano “não-disputado” e, a Oeste

do quasi-inexpugnável Gori Pass, fecharam todas as estradas e desmantelaram os caminhos-de-

ferro. Uma vez estacionada a Oeste de Gori, as colunas russas dividiram-se um subgrupo de cerca

de 2 mil homens ocupou rapidamente a capital osseta, Tskhinvali e levaram a cabo as operações

de tiro-ao-alvo e limpeza. Em apoio destas colunas e deste subsequente deployment foram

efectuadas mais de 100 missões aéreas de apoio, que envolveram mais de 300 aviões Sukhoi e

Tupolev, designadamente, caças Su-24, Su-25, e Su-27 e bombardeiros Tu-22. Lembre-se que a

Rússia tem uma série de bases aéreas na região circundante, muitas delas usadas no decurso do

Dezembro de 2008Nº 1

Cadernos do IDN

29

(...) alegações de que a

invasão terá sido

resultado de um misto de

direitos ... uma espécie

de variante russa da

Doutrina de Monroe

norte-americana(...)

2

conflito na Chechénia, entre 1994 e 2000. A guerra propriamente dita durou cinco dias - e por

isso, e em eco do nome dado a uma das mais famosas guerras israelo-árabes, tem vindo a ser

apelidada the five-day war.

Uma segunda frente foi aberta pelos Russos a 8 de Agosto: a frente na Abcásia. O padrão foi

semelhante mas mais complexo. A coordenação, apesar de algumas falhas aqui e ali, tanto a nível

de coordenação táctica como no de equipamentos foi digna de nota: foi fulgurante e precisa. Logo

no dia 8, uma divisão mecanizada de infantaria russa atravessou, em velocidade de cruzeiro, uma

zona da Abcásia sob protecção das Nações Unidas, capturou, com uma força de 2 mil militares, a

localidade de Senaki, e fechou todas as ligações de estrada e de comboio, enquanto uma parte

dos 9 mil soldados russos, já na Abcásia, apoiados por 350 carros de combate, tomaram o Vale de

Kadori, uma localização estratégica. Para além de apoiar este desdobramento e esta força

expedicionária de penetração, de novo intervieram aviões de caça Sukoi, em conjunto com

bombardeiros Tupolev, vindos das bases aéreas norte-ossetas e de Moscovo, S. Petersburgo e

várias outras do interior profundo da Federação. Para além do apoio dado a muitas das operações

terrestres e navais em curso, e da neutralização da pequena Força Aérea georgiana, as

esquadrilhas russas destruíram com rapidez e precisão alvos militares nos arredores de Tbilisi,

fora do perímetro da Abcásia disputada e, a sul, no pequeno porto comercial de Poti. Neste porto,

barcos georgianos foram alvejados e afundados logo no início do conflito e de novo a 14 de

Agosto, o que impediu eficazmente a sua utilização; os bombardeamentos a Poti duraram até à

chegada de forças navais pertencentes à Frota russa do Mar Negro, oriundas de Sebastopol, na

Ucrânia - de onde partiram para a costa abcaze, a 9 de Agosto, mais de vinte navios de guerra,

designadamente uma vintena de navios de apoio logístico de vários tipos, de draga-minas a

navios anti-submarinos, passando por grandes lanchas de desembarque de classe Alligator e

Ropucha e por diversos navios de escolta, liderados pelo Moskva, um cruzador de classe Slava, e

pelo Smetlivy, um destroyer de classe Kashin.

Em boa sincronia, todos as instalações portuárias georgianas, tal como Poti, foram bloqueadas

durante os quatro dias que a acção militar durou, depois de 8 de Agosto. Indirectamente, porém,

a incursão russa manteve-se durante muito mais do que os cinco dias 'oficiais', mesmo fora da

Abcásia e da Ossétia do Sul, e não apenas nas buffer zones ao redor das províncias e check points

bem armados, no interior de zonas não-disputadas do resto da Geórgia, que os militares russos

insistiram em continuar a ocupar até meados de Outubro. A ocorrência de ataques informáticos

maciços sobre servidores oficiais georgianos com picos a 11, 13 e 27 de Agosto, datas

importantes e bem sincronizadas com a convocação de reuniões especiais do Conselho de

Segurança das Nações Unidas para discutir a 'questão georgiana' podem-se-lhes acrescentar.

Cadernos do IDN

Dezembro de 2008 Nº 1

30

Terá tudo isto sido “espontâneo”? É improvável. Um par de meses antes tinham tido lugar grandes

exercícios militares Russos, intitulados Operação “Caucasus 2008”, que simularam uma invasão da

Ossétia do Sul; estes constituíram uma versão sofisticada dos Exercícios “Caucasian Border 2007”

levados a cabo a 7 de Julho. Mas, o recurso a unidades provenientes de uma dezena de bases no

interior da Rússia, foi coisa nova. Como o foi a colaboração de um pequeno grupo de tropas

especiais Chechenas na invasão da Abcásia. A vários títulos, a coordenação-sincronização das

tropas russas foi digna de nota. Pode haver discordância sobre se se tratou de uma “intervenção

humanitária” de emergência, como alegaram Sergei Lavrov, Vladimir Putin e Dmitry Medvedev, ou

se se tratou apenas de uma “invasão brutal de um Estado soberano”, como Mikhail Saakashvili

insistiu. Ninguém terá, seguramente, quaisquer dúvidas quanto à nova capacidade das Forças

Armadas Russas para uma coordenação de acções militares combinadas e complexas. Nem

permanecem quaisquer dúvidas sobre a nova disponibilidade russa em intervir com hard power,

pelo menos no seu near-abroad, ou seja no espaço pós-soviético. O recado foi bem dado.

4. Em apoio à tese de um planeamento-premeditação russos estão os timings da acção militar

russa de cinco dias na Geórgia. O desencadeamento da invasão teve lugar numa madrugada de um

Sábado do início das férias de Agosto, com as Bolsas já fechadas em todo o Mundo, com o

Congresso Democrático que nomeou Barack Obama como seu candidato à porta, e com os Jogos

Olímpicos a começar em Pequim no dia seguinte, estando já na China tanto Vladimir Putin como

George W. Bush. Com a NATO e as forças norte-americanas ocupadas em imbróglios complicados

nos Balcãs orientais, no Iraque e no Afeganistão, e com a crise constitucional europeia a ser

reacendida, a oportunidade foi como que servida num tabuleiro de prata.

A interdependência económica Europa-Rússia minimiza riscos futuros? Com efeito, entre a

Europa e a Rússia vive-se hoje um entrosamento económico profundo e complexo: de acordo com

números oficiais, 48,6% do comércio russo é com a UE; desses, 70% das exportações russas de gás

natural e petróleo são para a União Europeia, e a sua credibilidade joga-se aqui - se é ou não um parceiro

reliable quando vistas as coisas da perspectiva da Europa. Por outro lado, 35% do petróleo e cerca de

40% do gás natural cá consumidos são provenientes da Rússia. Quer isto dizer que não há (ou não irá

haver) problemas, porque o doux commerce de que falava Montesquieu - e o realismo daí decorrente

acabarão por marcar a sua posição? Não, pois a situação é de profunda assimetria. Suponhamos que,

por razões políticas, a Rússia decide suspender fornecimentos (como fez já com a Ucrânia, a Republica

Checa ou a Estónia) digamos à Lituânia, ou à Polónia. Os outros Estados membros ajudam esses dois?

Com reservas estratégicas? E se sim, por quanto tempo? Haverá, em todo o caso, unidade de vontade

política para tanto; há unidade, coesão e coerência suficiente ao nível dos processos de tomada de

Dezembro de 2008Nº 1

A interdependência

económica Europa-

Rússia minimiza riscos

futuros? Com efeito,

entre a Europa e a

Rússia vive-se hoje um

entrosamento

económico profundo e

complexo...

Cadernos do IDN

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(...) A incursão russa

manteve-se durante muito

mais do que os cinco dias

'oficiais', mesmo fora da

Abcásia e da Ossétia do

Sul, e não apenas nas

buffer zones ao redor das

províncias e check points

bem armados, no interior

de zonas não-disputadas

do resto da Geórgia, que

os militares russos

insistiram em continuar a

ocupar até meados de

Outubro(...)

Agência Lusa

conflito na Chechénia, entre 1994 e 2000. A guerra propriamente dita durou cinco dias - e por

isso, e em eco do nome dado a uma das mais famosas guerras israelo-árabes, tem vindo a ser

apelidada the five-day war.

Uma segunda frente foi aberta pelos Russos a 8 de Agosto: a frente na Abcásia. O padrão foi

semelhante mas mais complexo. A coordenação, apesar de algumas falhas aqui e ali, tanto a nível

de coordenação táctica como no de equipamentos foi digna de nota: foi fulgurante e precisa. Logo

no dia 8, uma divisão mecanizada de infantaria russa atravessou, em velocidade de cruzeiro, uma

zona da Abcásia sob protecção das Nações Unidas, capturou, com uma força de 2 mil militares, a

localidade de Senaki, e fechou todas as ligações de estrada e de comboio, enquanto uma parte

dos 9 mil soldados russos, já na Abcásia, apoiados por 350 carros de combate, tomaram o Vale de

Kadori, uma localização estratégica. Para além de apoiar este desdobramento e esta força

expedicionária de penetração, de novo intervieram aviões de caça Sukoi, em conjunto com

bombardeiros Tupolev, vindos das bases aéreas norte-ossetas e de Moscovo, S. Petersburgo e

várias outras do interior profundo da Federação. Para além do apoio dado a muitas das operações

terrestres e navais em curso, e da neutralização da pequena Força Aérea georgiana, as

esquadrilhas russas destruíram com rapidez e precisão alvos militares nos arredores de Tbilisi,

fora do perímetro da Abcásia disputada e, a sul, no pequeno porto comercial de Poti. Neste porto,

barcos georgianos foram alvejados e afundados logo no início do conflito e de novo a 14 de

Agosto, o que impediu eficazmente a sua utilização; os bombardeamentos a Poti duraram até à

chegada de forças navais pertencentes à Frota russa do Mar Negro, oriundas de Sebastopol, na

Ucrânia - de onde partiram para a costa abcaze, a 9 de Agosto, mais de vinte navios de guerra,

designadamente uma vintena de navios de apoio logístico de vários tipos, de draga-minas a

navios anti-submarinos, passando por grandes lanchas de desembarque de classe Alligator e

Ropucha e por diversos navios de escolta, liderados pelo Moskva, um cruzador de classe Slava, e

pelo Smetlivy, um destroyer de classe Kashin.

Em boa sincronia, todos as instalações portuárias georgianas, tal como Poti, foram bloqueadas

durante os quatro dias que a acção militar durou, depois de 8 de Agosto. Indirectamente, porém,

a incursão russa manteve-se durante muito mais do que os cinco dias 'oficiais', mesmo fora da

Abcásia e da Ossétia do Sul, e não apenas nas buffer zones ao redor das províncias e check points

bem armados, no interior de zonas não-disputadas do resto da Geórgia, que os militares russos

insistiram em continuar a ocupar até meados de Outubro. A ocorrência de ataques informáticos

maciços sobre servidores oficiais georgianos com picos a 11, 13 e 27 de Agosto, datas

importantes e bem sincronizadas com a convocação de reuniões especiais do Conselho de

Segurança das Nações Unidas para discutir a 'questão georgiana' podem-se-lhes acrescentar.

Cadernos do IDN

Dezembro de 2008 Nº 1

30

Terá tudo isto sido “espontâneo”? É improvável. Um par de meses antes tinham tido lugar grandes

exercícios militares Russos, intitulados Operação “Caucasus 2008”, que simularam uma invasão da

Ossétia do Sul; estes constituíram uma versão sofisticada dos Exercícios “Caucasian Border 2007”

levados a cabo a 7 de Julho. Mas, o recurso a unidades provenientes de uma dezena de bases no

interior da Rússia, foi coisa nova. Como o foi a colaboração de um pequeno grupo de tropas

especiais Chechenas na invasão da Abcásia. A vários títulos, a coordenação-sincronização das

tropas russas foi digna de nota. Pode haver discordância sobre se se tratou de uma “intervenção

humanitária” de emergência, como alegaram Sergei Lavrov, Vladimir Putin e Dmitry Medvedev, ou

se se tratou apenas de uma “invasão brutal de um Estado soberano”, como Mikhail Saakashvili

insistiu. Ninguém terá, seguramente, quaisquer dúvidas quanto à nova capacidade das Forças

Armadas Russas para uma coordenação de acções militares combinadas e complexas. Nem

permanecem quaisquer dúvidas sobre a nova disponibilidade russa em intervir com hard power,

pelo menos no seu near-abroad, ou seja no espaço pós-soviético. O recado foi bem dado.

4. Em apoio à tese de um planeamento-premeditação russos estão os timings da acção militar

russa de cinco dias na Geórgia. O desencadeamento da invasão teve lugar numa madrugada de um

Sábado do início das férias de Agosto, com as Bolsas já fechadas em todo o Mundo, com o

Congresso Democrático que nomeou Barack Obama como seu candidato à porta, e com os Jogos

Olímpicos a começar em Pequim no dia seguinte, estando já na China tanto Vladimir Putin como

George W. Bush. Com a NATO e as forças norte-americanas ocupadas em imbróglios complicados

nos Balcãs orientais, no Iraque e no Afeganistão, e com a crise constitucional europeia a ser

reacendida, a oportunidade foi como que servida num tabuleiro de prata.

A interdependência económica Europa-Rússia minimiza riscos futuros? Com efeito, entre a

Europa e a Rússia vive-se hoje um entrosamento económico profundo e complexo: de acordo com

números oficiais, 48,6% do comércio russo é com a UE; desses, 70% das exportações russas de gás

natural e petróleo são para a União Europeia, e a sua credibilidade joga-se aqui - se é ou não um parceiro

reliable quando vistas as coisas da perspectiva da Europa. Por outro lado, 35% do petróleo e cerca de

40% do gás natural cá consumidos são provenientes da Rússia. Quer isto dizer que não há (ou não irá

haver) problemas, porque o doux commerce de que falava Montesquieu - e o realismo daí decorrente

acabarão por marcar a sua posição? Não, pois a situação é de profunda assimetria. Suponhamos que,

por razões políticas, a Rússia decide suspender fornecimentos (como fez já com a Ucrânia, a Republica

Checa ou a Estónia) digamos à Lituânia, ou à Polónia. Os outros Estados membros ajudam esses dois?

Com reservas estratégicas? E se sim, por quanto tempo? Haverá, em todo o caso, unidade de vontade

política para tanto; há unidade, coesão e coerência suficiente ao nível dos processos de tomada de

Dezembro de 2008Nº 1

A interdependência

económica Europa-

Rússia minimiza riscos

futuros? Com efeito,

entre a Europa e a

Rússia vive-se hoje um

entrosamento

económico profundo e

complexo...

Cadernos do IDN

31

(...) A incursão russa

manteve-se durante muito

mais do que os cinco dias

'oficiais', mesmo fora da

Abcásia e da Ossétia do

Sul, e não apenas nas

buffer zones ao redor das

províncias e check points

bem armados, no interior

de zonas não-disputadas

do resto da Geórgia, que

os militares russos

insistiram em continuar a

ocupar até meados de

Outubro(...)

Agência Lusa

decisão na Europa dos 27? Haverá um nível de cooperação política que viabilize aí medidas de

'solidariedade de emergência'? E, se sim, como é que cada um dos Estados membros justificará aos

seus eleitorados que há que apertar o cinto pela Lituânia ou Polónia?

Note-se que a Rússia não está sujeita com a mesma intensidade a esses tipos de

constrangimentos. Os mecanismos de tomada de decisão são em Moscovo muito mais centralizados e

coesos do que na UE, e a accountability democrática da Administração russa face ao seu eleitorado é

muitíssimo menor. Presumir uma simetria é falsear a equação: num braço-de-ferro desse tipo, a

Rússia ganhará quase sempre. É claro que o enviado russo junto da União Europeia, o Embaixador

Vladimir Chizhov, afirmou que tudo irá “correr bem”, já que “a interdependência conduz a Rússia e a

Europa a uma parceria”. Torna-se difícil não ver neste tipo de declarações pouco mais do que bem

executadas manobras político-diplomáticas.

Muitos são os que têm proposto à União um papel decisivo no Cáucaso e algum papel ela tem

tido, como o demonstrou a rápida reacção de Nicolas Sarkozy. Sarkozy e Dmitry Medvedev

encontraram-se a 12 de Agosto e acordaram um plano de cessação de hostilidades com seis pontos,

nessa mesma noite assinado

t a m b é m p o r M i k h a i l

Saakashvili, depois de este ter

tentado, sem sucesso,

introduzir alterações 'técnico-

políticas' aos dois últimos dos

pontos negociados. Uma delas impunha uma limitação temporal de seis meses até à plena retirada

dos russos para as posições anteriores a 7 de Agosto, mas Medvedev não a aceitou; a outra submetia

a progressão do debate internacional sobre o futuro da Ossétia do Sul e da Abcásia a decisões das

Nações Unidas e da OSCE, o que também foi recusado pelo Presidente russo.

Qual tem sido a reacção da Europa? Invocando o especial soft power da União Europeia, uma

mão-cheia de analistas, alegando que a invasão constituiu um “momento-charneira” na progressão

pós-bipolar do sistema internacional, tem vindo a sublinhar a abertura de uma “janela de

oportunidade” que tudo isto constituiria para a Europa dos 27. Dimitrios Triantaphyllou, o Secretário

Executivo do International Centre for Black Sea Security, uma entidade orgânica do Black Sea

Economic Council, foi um deles. A ideia é tentadora para um qualquer europeu que se preze; não me

parece esta, todavia, uma argumentação convincente. Falar nas virtualidades efectivas do soft power

europeu num momento de conflito, releva de um forte idealismo - a Bósnia Herzegovina, o Kosovo, e o

Médio Oriente são bons contra-exemplos. “Potências herbívoras” como Ivan Kraster e Mark Leonard

apelidaram, em 2007, o poder que se reporta a “countries not widely perceived as military

...Muitos são os que têm proposto à União um papel

decisivo no Cáucaso e algum papel ela tem tido,

como o demonstrou a rápida reacção de Nicolas

Sarkozy...

3

Cadernos do IDN

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superpowers”, são entidades fascinantes, sem qualquer dúvida; e tendo em mente o reconhecimento

de uma eficácia do soft power, porventura como efeito secundário das novas sociedades e tecnologias

de informação, há decerto que repensar o papel das pequenas e médias potências, tradicionalmente

arrumadas a um canto como meras “potências civis”. No entanto, soft power sim, mas seguramente

não durante um conflito: no meio de uma refrega ele não é seguramente mais do que uma forma

residual de poder. É decerto pena que assim seja, e o Mundo seria sem dúvida um melhor lugar se tal

não fosse o caso. Mas é.

Esta primeira família de respostas não segue, para além do mais, uma qualquer linha

estratégica bem definida; trata-se, por norma, de propostas sem grande unidade, formuladas a

quente, nas primeiras semanas após a madrugada de 7 e no dia 8 de Agosto. Tem havido analistas que

entreviram na invasão uma oportunidade para a afirmação da Europa como um contrapeso aos Estados

Unidos, no quadro de “uma ordem internacional multipolar emergente”. Outros, menos preocupados

com reacções “anti-hegemónicas” e mais apostados num fortalecimento da Europa, têm vislumbrado

no que se passou um bom pretexto para cristalizar a PESC e a PESD, ou até para acelerar a projecção de

missões de paz e, por essa via, o soft power europeu. Os mais realistas têm encarado estas reacções

como pouco sólidas e progressivamente têm vindo a tentar complementar as suas declarações iniciais

de intenção com passos concretos. As opiniões, neste âmbito, dividem-se: aos que insistem em

investimentos públicos, directos e maciços a propósito da reconstrução das infra-estruturas

georgianas, juntam-se-lhes outros que preferem pôr a tónica num reforço das suas Forças Armadas;

outros há que vêem como mais urgente garantir a viabilidade económica tanto da Geórgia como do

Azerbaijão e da Arménia, ora através de uma reconstrução económica, ora de uma reestruturação

política e militar de fundo, ora de uma extensão das vias de escoamento de trocas comerciais -

designadamente, por intermédio de uma diversificação de linhas de caminho de ferro, pela reabertura e

alargamento de portos como o de Poti, a sul da Abcásia ou, ainda, pelo reforço de gasodutos como

Baku-Tbilisi-Ceyphan e uma ambiciosa extensão do Blue Stream até plataformas centro-europeias de

distribuição. Quase todos aqueles que preferem esta linha de actuação da União Europeia propõem

fórmulas compósitas que incluem um pouco de tudo - embora naturalmente o façam em doseamento

variável.

A estes pacotes de medidas, os defensores de tais estratégias proactivas e concretas de

intervenção no processo, tendem a insistir na importância da manutenção de comunicação de canais

bem abertos com a Rússia. A França e a Alemanha têm sido os principais arautos dessa postura de

diálogo, embora, de início, os alemães tenham insistido, tal como os britânicos, que a condução de

business as usual com Moscovo iria doravante ser “impossível”. Embora seja arriscado prever seja o que

for, com o andar das semanas alguma coisa tem vindo a mudar de maneira radical e talvez numa

direcção mais prudente.

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Agência Lusa

decisão na Europa dos 27? Haverá um nível de cooperação política que viabilize aí medidas de

'solidariedade de emergência'? E, se sim, como é que cada um dos Estados membros justificará aos

seus eleitorados que há que apertar o cinto pela Lituânia ou Polónia?

Note-se que a Rússia não está sujeita com a mesma intensidade a esses tipos de

constrangimentos. Os mecanismos de tomada de decisão são em Moscovo muito mais centralizados e

coesos do que na UE, e a accountability democrática da Administração russa face ao seu eleitorado é

muitíssimo menor. Presumir uma simetria é falsear a equação: num braço-de-ferro desse tipo, a

Rússia ganhará quase sempre. É claro que o enviado russo junto da União Europeia, o Embaixador

Vladimir Chizhov, afirmou que tudo irá “correr bem”, já que “a interdependência conduz a Rússia e a

Europa a uma parceria”. Torna-se difícil não ver neste tipo de declarações pouco mais do que bem

executadas manobras político-diplomáticas.

Muitos são os que têm proposto à União um papel decisivo no Cáucaso e algum papel ela tem

tido, como o demonstrou a rápida reacção de Nicolas Sarkozy. Sarkozy e Dmitry Medvedev

encontraram-se a 12 de Agosto e acordaram um plano de cessação de hostilidades com seis pontos,

nessa mesma noite assinado

t a m b é m p o r M i k h a i l

Saakashvili, depois de este ter

tentado, sem sucesso,

introduzir alterações 'técnico-

políticas' aos dois últimos dos

pontos negociados. Uma delas impunha uma limitação temporal de seis meses até à plena retirada

dos russos para as posições anteriores a 7 de Agosto, mas Medvedev não a aceitou; a outra submetia

a progressão do debate internacional sobre o futuro da Ossétia do Sul e da Abcásia a decisões das

Nações Unidas e da OSCE, o que também foi recusado pelo Presidente russo.

Qual tem sido a reacção da Europa? Invocando o especial soft power da União Europeia, uma

mão-cheia de analistas, alegando que a invasão constituiu um “momento-charneira” na progressão

pós-bipolar do sistema internacional, tem vindo a sublinhar a abertura de uma “janela de

oportunidade” que tudo isto constituiria para a Europa dos 27. Dimitrios Triantaphyllou, o Secretário

Executivo do International Centre for Black Sea Security, uma entidade orgânica do Black Sea

Economic Council, foi um deles. A ideia é tentadora para um qualquer europeu que se preze; não me

parece esta, todavia, uma argumentação convincente. Falar nas virtualidades efectivas do soft power

europeu num momento de conflito, releva de um forte idealismo - a Bósnia Herzegovina, o Kosovo, e o

Médio Oriente são bons contra-exemplos. “Potências herbívoras” como Ivan Kraster e Mark Leonard

apelidaram, em 2007, o poder que se reporta a “countries not widely perceived as military

...Muitos são os que têm proposto à União um papel

decisivo no Cáucaso e algum papel ela tem tido,

como o demonstrou a rápida reacção de Nicolas

Sarkozy...

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superpowers”, são entidades fascinantes, sem qualquer dúvida; e tendo em mente o reconhecimento

de uma eficácia do soft power, porventura como efeito secundário das novas sociedades e tecnologias

de informação, há decerto que repensar o papel das pequenas e médias potências, tradicionalmente

arrumadas a um canto como meras “potências civis”. No entanto, soft power sim, mas seguramente

não durante um conflito: no meio de uma refrega ele não é seguramente mais do que uma forma

residual de poder. É decerto pena que assim seja, e o Mundo seria sem dúvida um melhor lugar se tal

não fosse o caso. Mas é.

Esta primeira família de respostas não segue, para além do mais, uma qualquer linha

estratégica bem definida; trata-se, por norma, de propostas sem grande unidade, formuladas a

quente, nas primeiras semanas após a madrugada de 7 e no dia 8 de Agosto. Tem havido analistas que

entreviram na invasão uma oportunidade para a afirmação da Europa como um contrapeso aos Estados

Unidos, no quadro de “uma ordem internacional multipolar emergente”. Outros, menos preocupados

com reacções “anti-hegemónicas” e mais apostados num fortalecimento da Europa, têm vislumbrado

no que se passou um bom pretexto para cristalizar a PESC e a PESD, ou até para acelerar a projecção de

missões de paz e, por essa via, o soft power europeu. Os mais realistas têm encarado estas reacções

como pouco sólidas e progressivamente têm vindo a tentar complementar as suas declarações iniciais

de intenção com passos concretos. As opiniões, neste âmbito, dividem-se: aos que insistem em

investimentos públicos, directos e maciços a propósito da reconstrução das infra-estruturas

georgianas, juntam-se-lhes outros que preferem pôr a tónica num reforço das suas Forças Armadas;

outros há que vêem como mais urgente garantir a viabilidade económica tanto da Geórgia como do

Azerbaijão e da Arménia, ora através de uma reconstrução económica, ora de uma reestruturação

política e militar de fundo, ora de uma extensão das vias de escoamento de trocas comerciais -

designadamente, por intermédio de uma diversificação de linhas de caminho de ferro, pela reabertura e

alargamento de portos como o de Poti, a sul da Abcásia ou, ainda, pelo reforço de gasodutos como

Baku-Tbilisi-Ceyphan e uma ambiciosa extensão do Blue Stream até plataformas centro-europeias de

distribuição. Quase todos aqueles que preferem esta linha de actuação da União Europeia propõem

fórmulas compósitas que incluem um pouco de tudo - embora naturalmente o façam em doseamento

variável.

A estes pacotes de medidas, os defensores de tais estratégias proactivas e concretas de

intervenção no processo, tendem a insistir na importância da manutenção de comunicação de canais

bem abertos com a Rússia. A França e a Alemanha têm sido os principais arautos dessa postura de

diálogo, embora, de início, os alemães tenham insistido, tal como os britânicos, que a condução de

business as usual com Moscovo iria doravante ser “impossível”. Embora seja arriscado prever seja o que

for, com o andar das semanas alguma coisa tem vindo a mudar de maneira radical e talvez numa

direcção mais prudente.

Dezembro de 2008Nº 1

Cadernos do IDN

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Agência Lusa

Aos poucos tem-se ido ainda mais longe. Assim, alguns dos mais centrais actores políticos da

Europa, de Gordon Brown a Angela Merkel e a Nicolas Sarkozy, têm vindo a insistir, com base em analogias

tiradas de experiências históricas, na urgência de um reatamento pleno de uma cooperação político-militar

mais realista entre os Estados membros da União e entre estes e os Estados Unidos. Esta posição é aquela que

tem tido mais ecos nos Estados Unidos. O que subentende tal consenso parece ser a convicção partilhada de

que estamos perante uma Rússia ressurgente e, por conseguinte a fórmula “clássica”, bem testada, seria a

melhor. É curioso notar que mesmo Europeístas mais “americano-cépticos” convergem neste sentido geral de

um reatamento e reforço da ligação Transatlântica. Compreensivelmente, os Estados da new Europe aplaudem

a fórmula, tal como a larguíssima maioria dos Estados associados à Política Europeia de Vizinhança e as elites

democráticas daqueles que se vêem relegados a uma oposição dolorosa e difícil, em regimes cada vez menos

“abertos”, na Bielorrússia e na própria Federação Russa. Embora pondo o acento tónico na resposta europeia,

hoje, a maioria dos europeus encara o papel a preencher pela Europa na Geórgia como complementar do da

NATO e dos Estados Unidos - e todos insistem num reposicionamento mais firme da aliança.

Vejo, para tanto, motivos internos difíceis de contornar, dinâmicas geopolíticas de fundo cujas

pressões me parecem irem ver-se intensificadas, uma espécie de inércia institucional internacional que

também não deixará de nos fazer sentir um reforço da Aliança como a solução “menos arriscada” e “mais

sensata”. Internamente, na sua esmagadora maioria, os Estados membros dispostos ao longo do eixo vertical

que vai de Murmansk a Atenas, passando por Helsínquia, Estocolmo, Talin, Riga, Vilnius, Varsóvia, Brno, Viena,

Budapeste, Sófia, Ljubljana ou Bucareste, têm insistido que só com a NATO e os Estados Unidos se sentem de

(...) hoje, a maioria dos

europeus encara o papel a

preencher pela Europa na

Geórgia como

complementar do da NATO

e dos Estados Unidos e

todos insistem num

reposicionamento mais

firme da aliança. (...)

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facto seguros. Nisso, o projecto do Tratado de Lisboa dá-lhes amparo, as suas instituições militares

afirmam-no alto e bom som - e, para além do mais, as rotinas instaladas tornam-no praticamente

inevitável. De uma perspectiva mais geopolítica, por outro lado, pressões regionais múltiplas têm vindo

a acentuar-se e a dar alento a esta postura. A conjuntura tem estado a endurecer contornos. A Frota

russa do Mar Negro está a aumentar e a modernizar com rapidez os seus efectivos e equipamentos; a

pressão tem vindo a crescer na Transnístria e na Crimeia; e os acordos militares russos com a Síria,

com o anúncio da reactivação de uma antiga base naval soviética em território deste país com o intuito

de aumentar a presença russa no Mediterrâneo Oriental, fizeram soar alarmes. Tudo isto a acrescentar

aos movimentos de uma reorientação e de um realinhamento cada vez mais nítido de uma Turquia

cada vez mais ambivalente e mais apostada numa ligação histórica especial à Ásia Central, ao seu

surpreendente esboço de rapprochement relativamente à Arménia e à intensificação de laços com o

Azerbaijão, com a Síria e o Líbano.

O que nos espera? Nos séculos XIX e XX, o estabelecimento, ainda que potencial, de um

monopólio russo virtual quanto ao gás oriundo da ex-Rota da Seda e arredores (e do petróleo, embora

este esteja hoje em dia regulado por leis anónimas do mercado, ao contrário do gás natural), constituiriam

um casus belli mais do que suficiente. Com a interdependência complexa em que hoje vivemos já não é,

manifestamente, assim. Mas por quanto tempo se irá manter o standoff, com a crise financeira global que

está a soprar com cada vez mais força?

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Aos poucos tem-se ido ainda mais longe. Assim, alguns dos mais centrais actores políticos da

Europa, de Gordon Brown a Angela Merkel e a Nicolas Sarkozy, têm vindo a insistir, com base em analogias

tiradas de experiências históricas, na urgência de um reatamento pleno de uma cooperação político-militar

mais realista entre os Estados membros da União e entre estes e os Estados Unidos. Esta posição é aquela que

tem tido mais ecos nos Estados Unidos. O que subentende tal consenso parece ser a convicção partilhada de

que estamos perante uma Rússia ressurgente e, por conseguinte a fórmula “clássica”, bem testada, seria a

melhor. É curioso notar que mesmo Europeístas mais “americano-cépticos” convergem neste sentido geral de

um reatamento e reforço da ligação Transatlântica. Compreensivelmente, os Estados da new Europe aplaudem

a fórmula, tal como a larguíssima maioria dos Estados associados à Política Europeia de Vizinhança e as elites

democráticas daqueles que se vêem relegados a uma oposição dolorosa e difícil, em regimes cada vez menos

“abertos”, na Bielorrússia e na própria Federação Russa. Embora pondo o acento tónico na resposta europeia,

hoje, a maioria dos europeus encara o papel a preencher pela Europa na Geórgia como complementar do da

NATO e dos Estados Unidos - e todos insistem num reposicionamento mais firme da aliança.

Vejo, para tanto, motivos internos difíceis de contornar, dinâmicas geopolíticas de fundo cujas

pressões me parecem irem ver-se intensificadas, uma espécie de inércia institucional internacional que

também não deixará de nos fazer sentir um reforço da Aliança como a solução “menos arriscada” e “mais

sensata”. Internamente, na sua esmagadora maioria, os Estados membros dispostos ao longo do eixo vertical

que vai de Murmansk a Atenas, passando por Helsínquia, Estocolmo, Talin, Riga, Vilnius, Varsóvia, Brno, Viena,

Budapeste, Sófia, Ljubljana ou Bucareste, têm insistido que só com a NATO e os Estados Unidos se sentem de

(...) hoje, a maioria dos

europeus encara o papel a

preencher pela Europa na

Geórgia como

complementar do da NATO

e dos Estados Unidos e

todos insistem num

reposicionamento mais

firme da aliança. (...)

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facto seguros. Nisso, o projecto do Tratado de Lisboa dá-lhes amparo, as suas instituições militares

afirmam-no alto e bom som - e, para além do mais, as rotinas instaladas tornam-no praticamente

inevitável. De uma perspectiva mais geopolítica, por outro lado, pressões regionais múltiplas têm vindo

a acentuar-se e a dar alento a esta postura. A conjuntura tem estado a endurecer contornos. A Frota

russa do Mar Negro está a aumentar e a modernizar com rapidez os seus efectivos e equipamentos; a

pressão tem vindo a crescer na Transnístria e na Crimeia; e os acordos militares russos com a Síria,

com o anúncio da reactivação de uma antiga base naval soviética em território deste país com o intuito

de aumentar a presença russa no Mediterrâneo Oriental, fizeram soar alarmes. Tudo isto a acrescentar

aos movimentos de uma reorientação e de um realinhamento cada vez mais nítido de uma Turquia

cada vez mais ambivalente e mais apostada numa ligação histórica especial à Ásia Central, ao seu

surpreendente esboço de rapprochement relativamente à Arménia e à intensificação de laços com o

Azerbaijão, com a Síria e o Líbano.

O que nos espera? Nos séculos XIX e XX, o estabelecimento, ainda que potencial, de um

monopólio russo virtual quanto ao gás oriundo da ex-Rota da Seda e arredores (e do petróleo, embora

este esteja hoje em dia regulado por leis anónimas do mercado, ao contrário do gás natural), constituiriam

um casus belli mais do que suficiente. Com a interdependência complexa em que hoje vivemos já não é,

manifestamente, assim. Mas por quanto tempo se irá manter o standoff, com a crise financeira global que

está a soprar com cada vez mais força?

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