cadernos de jornalismo n.° 01 2008

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aqui dentro reconstituição do fim do timor português em rio de onor, na tourada e com os novos hippies teatro de tchékhov e kowalski gabriel garcía márquez e truman capote revisitados

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Publicação de 2008

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aqueles para quem o presente

são as coisas presentes

nada conhecem

do tempo em que vivem

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n0108

instituto de estudos

jornalísticos

colégio de s. jerónimo

e-mail: [email protected]

www.uc.pt/iej

cadernosdejornalismo.uc.pt

imprensa da universidade de coimbra

rua da ilha

3001-451 coimbra

e-mail: [email protected]

www.imp.uc.pt

Reportagens

Na sombra da bandeira . 2

Nostálgica utopia . 10

Os novos "hippies" . 14

Com o cavalo entre as pernas

e os toiros no coração . 22

Jornalismo e Literatura

Um misto de sensações . 29

Um sangue que asfixia . 30

Crónica de uma literatura

em jeito de jornalismo . 31

Elogio ao vulgar e ao absurdo . 32

Bloco de notas

média e diálogo intercultural

o papel da educação . 34

tratar o inimigo com respeito . 36

Best of

Géneros e Secções

Uma fusão . 40

Por falar em [ Teatro ]

A arte maior de Tchékhov . 48

Simplesmente Tchékhov . 49

[Entrevista]

Andrzej Kowalski . 50

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que força é essa a dos jornais no tal verão quente . 54

ANA RITA FARIA

Costa Nova, 2007

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Uma.Duas.Três.Quatro.Cincobalas.Quatroparaafamília,umaparaosuicídio.Sãooescape,aporta dos fundos. A saída daterraparaondenãoqueriavoltar.Semescalas.AdrianoGominhodáàcostadameia-ilhanumdosderradeirosdiasdeAgostode�96�.Pisa-lheas águas transparentes antesdelhe sentir a terra. E sobre elamarchaantesdeaadministrar.Trouxe-odeAlcântaraumnavioTimorapinhadodemilitares.A guerracolonialrebentara-lhepela rádio dois anos antes e,aos �� anos, é agora mais umpeãono tabuleiro imperial.Naterraondepelaprimeiravezoarroçaraos seuspulmões,Cabo--Verde,AmílcarCabralminaojogodeSalazar.Quediaera?“DiadeS.Barco”,ironiza. “Quando chegava umbarcoeraferiado”.Outros feriados chegamepar-tem. �96�, �964, �965, �966.EstánacompanhiadeTaibesse,entãonasredondezasdacapital,comosseuspavilhõesamarelosdealvenaria,coroadosporchapasserpenteantesdezincovermelho.Umacercadearamefarpadores-gata-aàmataeaosmacacos.Nãoháguerra,masnãohápaz.Ameia-ilhadapontado impé-rio consome-lhes o corpo. Osisolamentosnamata,provoca-dospelascheiasqueasmonções

acicatam, cariam-lhes amente.Oralocaudaldecorrespondên-cia fazumaespingarda roçar acabeçadeumdossoldados.Saídade emergência.Ouve-seo tiro.Perfura-lhe apele.Esfarela-lheopescoço.

Timorcheiraàterraqueachuvagrossa lambe.Dez,onzehoras.Ouve-se ao longe, a chocalharno tecal. Não tarda tinirá notelhado de zinco, limpando apoeiraquenevasobreascasasesobreoscorpos.E Timor cheira à s formigasvoadorasdasprimeiras chuvas.Abremburacos, evadem-sedassuassepulturasnaterraalagada.Vivemaoentardecer.Perdemasasasànoite.Aoamanhecerjazemnasluzeselogoserãoralacarnetapandoosossosdopovo.Ouve-seozumbidodosmosqui-tosqueserpenteiampelavaranda.Malosolfendeocéunegrodamadrugada, ecoa o canto dotoquê,umlagartoquevivenosrespiradourosdascasas.“Toquê”,brame tantas vezes quantos osanosqueasuaexistêncialeva.�968. Lospa los é a inda umpovoadoderuassemnomeedecasassemtimorensesa�48qui-lómetrosaestedacapital.Da casa cor de tijolo do capi-tão JoséSimõesnão seavistaoquartel. O quilómetro que osentremeiaépontilhadoporárvo-

resde teca eporpalhotas tomde terra empoleiradasnas suaspernasatrofiadasdedoisoutrêsmetros de altura. A habitaçãoarregaçada foge às cobras queesquiam pela erva esverdeadaqueatapetaochão.Ospésnusdos t imorenses sa lt itam porentre os degraus da escada demadeira.Maldesaparecemporentreasfolhasdepalmeira,estasome-se tambémpela aberturaporondeentraram.Umveiodeterrabatidadeum jipede lar-guraondulapor entreLospala,apovoaçãodispersados locais.Desaguanoquartel,comosseuspavilhõesrectangularesbrancos,encimados por um chapéu dezincoacinzentado.Acompanhiatemumacentenadehomens.Ostimorensesdão--se àbandeira.Équea carneéopão eopão é as armas.Seteanosvolvidoseumcapitãopor-tuguêsconduzi-la-áaDíli.Équeopoderéopãoeéasarmas.Eéorastilhodaguerra.

É por esses dias que AdrianoGominhorepisaochãodameia--ilha. Os pulmões enchem-senova mente com o odor d aterrahúmidatemperadocomocheiro adocicadodas árvores edaspétalas.PassaporErmeraeViqueque,masacabaporsefixaremAileu como administradorconcelhio.

A casa apalaçadaqueo acolheenrosca-senum jardim relvadorecheadode árvoresde fruto eroseiras,aquieacolápolvilhadodegravilha.Paralásedebruçamvarandasalcatifadasdetijoleiravermelha,ondeécostumebebe-ricar-seochá.Ummurode60ou70centíme-trosde altura aparta a vivendaocredaruaprincipal,oequadortérreodavila,comasuabainhade caneleiras.Avia segueparaDíli,47quilómetrosasul.AscercadedezmilpessoasquepovoamAileudistribuem-sepelascasasrasteirasdealvenariaqueaestradaatraiepelaspalapasqueborrifam a paisagem quandoas primeiras escasseiam. Já osmetropolitanos não excedemem número os dedos de duasmãos.Aguerra colonial dá-se-lhenoéter. bbc.RádioAmérica.VozdaAustrália.Austrália,América,bbc.Osdedosnãodãodescansoàs ondas.Desf ilede estações.O Phillips de campanha grita-lhe o desmoronar do império.Brameoaluimentodevidas.NaGuiné, “o assunto” está “per-dido”. Quanto tempo restaráparaquesedesentrelaceapontanascentedapátria?Abrildesponta.Estoura a von-tadede regressar àmetrópole.Papelada tratada,malas feitas.

texto: Catarina Prelhaz

Mascam.Mascam.Maisumavez.Eoutra.Eoutra.Enxotama fomeque lhes consomeos corpos e lhesdesenhanapeleo esqueleto.Mascam.Maisumavez.Eoutra.Ouve-seosdentesealínguacomprimindoamisteladenozdeareca,colaecalqueumafolhadebételeamortalha.Exorcizamoinstintoqueosmantémvivos.Oslábiosestãorubros.Overmelhosanguedevora-lhesosdentesamarelados.Eadançadosmaxilaresnãocessa.Queixoacima,queixoabaixo.Ospésriscadosporgretas,negrosdepeleepretosdeterra,nãoousamviolá-la.Vogamaolargo,aocompassodospassoseàcadênciadavida.Nãosepisaasombradabandeiranameia-ilhadofimdomundo.Elarasgar-se-ácomoImpérioesobrarãoapenascinzasdeestórias.Estóriasqueaslabaredasdamemóriajáceifaram.EstóriasparaaHistóriadoTimorPortuguês.

Na s o m b ra d a b a n d e i r a

Reportagem

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Opretexto: asprimeiras fériasaofimdequatroanos.Omedoé o motor. A esperança é nãovoltar.Portugalestáprenhederevolu-ção.O�5deAbrilnasce-lhenoregresso. Do Minho a Timor,as colónias estrebucham. Noverão,umavisodoMinistériodoUltramar:doissubstantivos,umnúmero.Exoneraçãoouregresso.Em48horas.Aoultimatosegue-seDíli.Correo�5deSetembro.“TimorparaosTimorenses!”.“Fora!”.Orefrãoesguichadasgoelasdosrapazes.NavarandadapensãoMiHapo,a atençãodeAdrianodetêm-senosolhoslampejantesdosmani-festantes,ilhasbrancasnosrostostingidosdevermelho,amareloepreto.Oshomens sãoa teladabandeiradaFrenteRevolucioná-riadoTimor-LesteIndependente(Fretilin).Easvozesoseumani-festo.Volta a Aileu com a mulher eo trio de f ilhos. É a terra quea lberga o quartel-general dascoresqueviunacapital.Onovo regimeportuguês con-vulsa-se. A �8 de Setembro, aMaioriaSilenciosaspinolistavêos seus intentos conservadoresmalogrados.Ea��deMarçodoanoseguinte,olemedabarcaçagovernativaguinaumavezmaisparaaesquerda.Aanimosidademedra adubadapelasacçõespartidárias.Poressesdias(amemóriajálevouadatadocalendário),atensãodispara.Umpanoesbranquiçadopendeatodoocomprimentodoportãodeferrodacasadoadministra-dor.“Seucolonialista!Vaiparaa tua terra!E a tua esposaqueváensinaremPortugal!”,dese-nhamanegroasletrasgarrafais.Assina-oumfretilin:“m.a.”.“m.a.”.“Mari”.“Alkatiri”,soletraagoraporsílabas.Resgata,àvez,os nomes do ruído da músicagritadapelosaltifalantesdocen-tro comercia l. A dois temposcompõeonomedoantigopri-meiro-ministrotimorense.

Junho.Osrumoresdoadensardarevoltarepercutem-senasbocasdo povoado. Não vai esperarmais.Corre aopaioldaAdmi-nistraçãoeesventra,umaauma,as�50espingardasMauserqueestãosobasuaresponsabilidade.Ospercutoresextirpadosamon-toam-senumacaixade cartão.Sem eles, os projécteis jazerãoinertesnocano,asarmasserãoinúteis e os t iros apenas umdesejo.Osolde6deAgostonãobrotouaindadalinhadohorizonteejáAdrianoGominho, amulher eostrêsfilhosestremecemcomobamboleardoLand Rover.OjipecalcorreiaaestradadeterraquetememDíliasuafoz.Nobancoda frente, agarradoaovolante,ocondutor saltitaao ritmodossolavancosdocaminho.Omotorroncapelamadrugada.O administrador vai no lugardopendura.Partilha o espaçocom a pistola-metralhadora etrêscartuchosde�5balascada.Cinco delas são, a pedido damulher,opontodefugadailhaedomundo.Subitamente,aviaestacadiantede uma pi lha de t roncos demadre-del-cacau. O nevoeiroabafaavisãodabarricada,plan-tadajuntoaumcafezal.Porentreavegetação,escorremindivíduosenfaixados em camuf lados doexército português, de g3 namão.Ospescoçosescurosgiramascabeçasparao jipeespecadonocaminho.Adrianovêosolhosbrancos de um deles deambu-landopelasletrasdaplacalateraldo veículo: “Estado Adminis-traçãodoConcelhodeAileu”.Reconheceodonodosolhos eeleoocupantedojipe.São f ret i l ins os obreiros doa ç ude i mprov i s ado . Pa r t i -lharam com o administradormesas de negociação. A mãoque foi momentaneamente àpistola-metralhadora afasta-senovamente.Osfaróisencadeiamos vultos esguios. “Nós vamos

abriraestrada”,assentem.Àcata-nada rompem a barragem depauedãopassagemaojipe.Aorugirdomotor,cerra-seopunhodeumdossoldadosemjeitodecumprimento.Desejaemsurdinaboaviagem.

Uma.Duas.Três.Quatro.Cincobalas.O fimadiado.Osdedosjá lhes perderam o rasto, masa memória não. E o si lênciogermina agora nas juntas daspalavras.

Opaláciodogovernadorrepousasobreaencostaqueseergueemdirecçãoasul.Àmedidaquesesobepelavertente,atemperaturadesce um par de graus e umabrisaafagaocorpoantesamar-rado pelo ar húmido tropical.Da varanda colonial bordadaemtornodacasa,sobranceiraàcidadeeaomar,contempla-seos�05quilómetrosquadradosdailhadeAtaúro.Nãotardaráqueavistaseinvertacomooespelhofazàscoisas.EspectadordeAbril edos seuscravos,MárioLemosPires foidelegadoda JuntadeSalvaçãoNaciona l e, depois, chefe degabinetedoministrodaDefesaNacionalatéo�8deSetembrodesalojarAntóniodeSpínoladaPresidênciadaRepública.Masaproximidade aogeneral, comquemviveu a guerranaGuinéde69a7�,nãooexiladopoder.Novembrotraz-lheumconviteeumamissãoa�6milquilómetrosdedistância:governarumTimorquearevoluçãodesassossegou.“Porqueéquemevêmchamaramimparaumcargoderesponsa-bilidade?”,questiona-se.AchamadaguerranoVietnameestáprestes a extinguir-se,masnãoantesdeesventrarentre�e5,7milhõesde vidas.O temordeumaonda comunista sitia adiplomaciaocidental.AIndoné-sia, que sedesamarraradeumregimevermelho,estreitarelaçõescom os eua, mas vê jorrar nametadedailhadeTimorquenão

domina uma ideologia radicaldeesquerdapelasmãosebocasdospartidáriosda fretilin.EodonodaquelepedaçodeterradotamanhodeumAlentejoalém--marbaloiçarapara a esquerdaemSetembro.“Olhavam com muita descon-f iança em relação aPortugal eestouconvencidoqueanomea-ção de alguém conotado coma esquerdamarxista era aquelaque menos aceitação teria nomundoocidentale,portanto,naIndonésia.Por issoconvidaramummoderado”,justifica.Ninguémlhedizparair.Masvai.Imbui-oodesejode“fazerobraútil”eadimensãodo“desafio”.Inteira-sedaempreitadaelançapara amesa a listadas exigên-cias.�. Quer governa r, ma s nãosubjugar-se ao poder militar.Tornam-noentãocomandante--chefedoMovimentodasForçasArmadas(mfa)noterritório.�. Aceita ser responsável pelasegurança interna , mas nãopela externa,opondo-se aoquelhe dita a carta de comando.“Não tenho hipóteses nenhu-mas. Ainda por cima entre aAustráliaeaIndonésia”.OPre-sidentedaRepúblicaeChefedoEstado-MaiorGeneraldasForçasArmadas,CostaGomes,assumeoencargo.�.Querhelicópterosenaviosdeguerra,masissoé“vamosver”.4.Quer�0milcontosparasal-darascontasemTimor.“Omfa dissesimsenhoreeufui”.

Asombradabandeiraportuguesaestira-se do Minho a Timor.TrintaetrêsanosvolvidoseumFranciscoLopesdaCruzembai-xadordaIndonésiafalaráaindadePortugalcomaprimeirapes-soadoplural.Eosignoverdeevermelho pelo qual combateuem Moçambique enquanto ascolóniasseencapelavaméagoraapedradoaneldeouroquelhetorneiaodedodaaliança.Masrebobine-seafita.

Reportagem

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Francisco Lopes da Cruz vemaomundoemMaubara,TimorPortuguês, a � de Dezembrode�94�.Apolíticanavega-lheao largo do pensamento até arevoluçãodoscravosserpentearnasuadirecçãoporumaEmis-soraNacionalquecospepalavrasentremeadas com ruído. NostemposdeÁfrica,ouviraaquelesalferes,agoracapitãesdeAbril,ventilaremideiasrevolucionárias,porémnãoacreditaraqueoseuTimorrasgariaasuabandeira.MasPortugalgritadescoloniza-ção.AconsciênciapolíticaescalaatiçadapelosmilitaresqueagoraaspiramvoltaràmetrópoleepelogotejardeestudantesdaCasadeTimoremLisboa.Éentãoque,àsmãosdeFranciscoLopesdaCruz,nasceumpartido:aUniãoDemocráticaTimorense(udt).A��deMaio,soaomanifesto:audtalmeja“umaautonomiapro-gressiva,materializadaatravésdeumaparticipaçãocadavezmaiordostimorenses…massempreàsombradabandeiradePortugal”.“Matebanderahum”. “À som-bra da bandeira portuguesa”.O tempo, esse, encarregar-se-áde mudar as vontades, comoCamões escrevera, e as novasvontadestransformarãoaHistó-ria.Eassimsurgirá,naauroradeumnovoséculo,TimorLorosae.Mas essa é História de outrasestórias.

��horas,�0deAgostode�975.Nopaláciodaencosta,ogoverna-dorMárioLemosPiresaguarda.Ocomandantedapsp,otenente--coronelMaggioloGouveia,saiufazmeiahora comordemparadefenderoquarteldapolícia.Osmilitares, esses, estão apostosparadefenderaguarnição.Eram cerca de cinco da tardequandoMaggioloGouveia lhedeuanotíciadogolpeiminente.TinhaacabadodechegardeLos-palos,ondeempossaraaprimeiracomissãoadministrativademo-craticamenteeleitaederadecarascomumgrupodosseusmilitares.

Entreeles,oseucunhadoechefedoEstado-MaiordoExército,ogeneralMartinsBarrento.Que-riam contar-lhe “aquiloque jámecheirava”.

“Aquiloquejámecheirava”dá-sepelamãodaudt.AFretilin,ambicionandoainde-pendência total do território,recusa sistematicamente sentar--seàsmesasdenegociaçãocomaAssociaçãoPopularDemocrá-ticaTimorense (Apodeti), queaspiraaintegraçãonaIndonésia.ACimeiradeMacau,destinadaaconfeccionaradescolonização,nãoéexcepção.EmMaiocaiauniãode Janeiro udt/Fretilin,pela qual lutara o governadorLemosPirescomvistaàforma-çãodeumgovernodeunidadenacional.ContaLopesdaCruzqueéporessesdiasquearededeinforma-çõesda udtpesca anotíciadequeopartidovermelhopreparaum golpe para �5 de Agosto.TerãoencontradonoaviãoquetrouxeradeMaputoopresidentedaFretilin,FranciscoXavierdoAmaral(candidatoàspresiden-ciaisde�007),umdocumentoradiografandoarevolta.Oplanopreviaque “todosos líderesdaudtedaApodetiiriamserliqui-dados para formaruma frenteúnicapara a independênciadeTimor”, af irma o então presi-dentedaudt.OautodogolpechegatambémaosouvidosdogovernadorLemosPires,“emaisqueumavez”.Porisso, estáde sobreaviso.Prontoparareagir.AHistóriaéuma,masasestó-riasnão.“Mentira!”,arremessaàversãodeLopesdaCruzosecre-táriocoordenadordaFretilinemPortugalatéàindependênciadeTimor, Abílio Serreno. A vozcavernosatragaossilênciosqueespaçamasprimeiraspalavras.“Porquê fazerumgolpe?Nãotinha lógica”, assegura. “Quemtinharazõesparaissoeraaudt,porque sabiaque tantoopovo

comoasforçasarmadas,dossar-gentosparabaixo, apoiavamaFretilin. Foi só um pretexto”,lança.Masseaintençãonãoeraarevo-lução,comosejustificaadecisãode abandonar as conversações?“Foiumgrandeerronãotermosaceitadoasnegociações”,admiteAbílioSerreno.Avozgravecon-tinua f irme. “ConsiderávamosaFretilinaúnica representantelegítima do povo de Timor”,justifica.

Zerohorasde��Agostode�975.A udt está prestes a espoletar“ummovimento revolucionárioanticomunista”.LopesdaCruzeoseucomitécentralestãoreu-nidosnumacasaemPalapasso,nas imediações do farol. Dílié o a lvo, mas querem marcarpontos em todosos concelhos.Aideiaéque“todososelemen-tos comunistasdaFretilin edaApodeti”sejamescorraçadosdoterritório“paraconvenceraIndo-nésiadequenãotínhamosnadade comunismo”. Visam aindaqueogovernoportuguêsexpulseosprofessores “vermelhos”quetrouxeradametrópoleparafazerareformaeducativa.Os partidários da udt, com acumplicidadedeMaggioloGou-veia, invadem a sede da psp eapoderam-sedasarmas.Cercamopaláciodaadministração.Seisdiasdepois, o capitãoLinodaSilva chegará à capital comascompanhias de Lospalos e deBaucau a f imde se juntar aossublevados.Eisque se refoga aguerracivil.

OgovernadorLemosPiresestáaindanopalácio.Ascomunica-çõestelefónicasforamcortadas.Esperaalguém.Éentãoquelheapareceumapatrulha.Dera-seogolpeanunciado.Pergunta seháalgum líderdossublevadosquequeiraconversar.Háocomandantedomovimento,JoãoCarrascalão,sobeàencostacom“maisdoisoutrês”elemen-

tos.Esgrimemargumentos,maso“não”érotundo.Nãovaicederepontofinal.Maslogoperderáo controlo, conforme as suasprópriaspalavras,epartirá.

“Se a Fretilin f izesse o golpe,eureagiapelaforça.Haviaumalógica,que era infringir contraogoverno.Todaagenteestariadeacordo:Portugal,osEstadosUnidos viriam ajudar. Mas oqueaudtfazévirtercomigoedizer-me‘Nósnãoestamoscontraosenhor,nósvimosapoiá-loparaprenderaFretilin’”,lançahojeogeneralMárioLemosPires.Nãogesticula.Estásentado.Ascostasfazemumângulo recto comoassentodacadeira.Há��anosnãoreagiu.

A �9 de Agosto, um dia antesdocontra-golpe,ultimam-seasposiçõesnoxadrezdaguerracivilqueentãosedesenha.LopesdaCruzrumaaErmeraedaíaAileucomarmasemuniçõesdeduascompanhiaseumcontingentede�45pessoas“maltreinadas”.Entreelasháapenasdoismilitares.Vãopara a fronteira para comprararmamento,“masaIndonésianãoquervender”.Mandaráapenasosprimeiros voluntários quandoalinhavado o acordo de inte-gração.Édaliqueassisteaoestoirardaguerra.E édali que a vê fugiraoseucontrolo.EmDílireinaasinfoniados tirosdemetralha-doraeocompassodosmorteiros.Osmúsicosdacontendanãosãohomens,masrapazes.Interessao“acertei”.O“nãoacertei” inte-ressamenos.Tente-seoutravez.Osolhosvêmumbandodepes-soas em fuga, amira também.Não há partidos nem ideias,há lados. Nem inimigos, masalvos.

“Todos temos culpasno cartó-rio”, reconhecehojeFranciscoLopesdaCruz.Enquantodesem-baraçaosfiosdamemória,saltitana poltrona da Embaixada daIndonésiaemLisboa.

Reportagem

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Qual foi o seu erro? “O errodomeupartido foi, talvezporfaltadematuridadepolítica,nãomedirmosbemasconsequênciasdo movimento revolucionáriode �� de Agosto”. Encolhe osombros. Confessa que se dei-xouafastarintencionalmentedogolpe.“Depoisquandoviramacoisamalparada e sabiamqueeupercebiada tropa jádiziam‘vailácomandaralgumacoisa’”.Efoi.

MárioLemosPireséoúltimoaembarcar.Antesdesubirabordo,cruza-secomosolhosarregaladosdeumfurrieltimorensepró-Fre-tilinqueestacounocais.Faz-lhecontinênciaevolta-lheascostas.Fogeao“ridículo”desermoedadetrocadasfacçõesquesedigla-diam.Comeleseguemcercadecempessoas,entremilitaresdoEstado-Maior,duasdezenasdemarinheiros edoispelotõesdepára-quedistasA retirada foi desenhada emsegredoao fimdamanhã,comoavaldeLisboa.Umdosbarcosque jazia no cais foi fretado aMacau pelo capitão dos Por-tosdeTimor,JoséLeiriaPinto.QuandoLemosPires lhopediuafimdeexecutarumamanobradediversão,o responsávelpelamarinha timorense ainda lheatirou um “O senhor é gover-nadorde toda a gente”.Masoapelofoivão.��h�0.AlanchadefiscalizaçãoTibarcortaagoraoazuldomarqueesculpeacosta.LevaPortu-galparaailhaquedantesseviadopalácio.Nohorizonte,Ataúroagiganta-se como escorrerdosminutos desta tarde de �6 deAgosto.EDílivaimirrandonoquadrodapaisagem.

Ofuzilamentoéafactura.Ades-contar nos portugueses que alanchanãolevou.HorasdepoisdeaTibarzarparem direcção à ilha, �9 milita-res dametrópole, desarmados,deixam Bobonaro, na zona da

fronteiracomaIndonésia.Emba-lados em três unimogs (jipestodo-o-terreno),juntamentecomamulher e a f ilha adolescentedoprimeiro-sargento,dirigem--se aoportoda aldeia costeiradeBatugadépara embarcaremrumoaDíli.Assenhorasvãoàfrenteporcausadachuvadepóqueosunimogsbafejam.Curva,contracurva.Osjipesoscilam.OalferesAntónioCabral vainodomeio.Acadasinuosidadedocaminho,ouni-mogdafrentefogeaoseucampode visão.Ao f imdemaisumacurva,avistaoprimeiroveículodacomitiva.Estáparadoecin-tadoportimorensesarmados.Os sitiantes tomam as rédeasda excursão e escoltam-nos atéBatugadé, com paragem numrestaurantechinêsparaorepasto.Àchegada,vêemumcaudaldeudt’s agitando-se ao longodacosta.RecuamperanteoavançodaFretilinqueosvaiencostandoàfronteira.Noprimeirodia, a esperanãodá f rutos . Pa ssam a noite adormitar no chão, debaixo depalmeirasespetadasa�00metrosdapraia.Namanhãseguinte,arádioconta-lhesquealanchaqueaguardavamandara a trasladarogovernoparaAtaúro.Outrosdiaspassam,doisoutalveztrês,enada.Éentãoqueumabarcaçadesliza até Oecusse, o enclaveportuguêsnoTimorOriental,pararesgataracompanhialocale,noregresso,aportaremBatu-gadé.Acertaaltura,osmilitaresavistam a sua presença quasefantasmagóricaaolargo,maselanãoseaproxima.

Énoite.OsargentoquecomandaabarcaçaenviadapeloCapitãoLeiria Pinto olha o tremelicardasluzesnapraiadeBatugadé.Nãotemarmas.Sabequeagentedaudt jamaisconsentiráa suapartida.“Eleteveanoçãodeque,sefosselá,entravamdoisoutrêscapangas e estava frito”,dispa-rará��anosdepoisoresponsávelpelosportosdeTimor.

A�deSetembroosmilitaressãolevadospara o forteda aldeia.A eles juntam-semais tardeoscincoquehaviampermanecidoemBobonaro e quedias antestentaramnegociar a libertaçãoameaçandobombardear a sededa udtnaMaliana.Os líderesdopartido,incluindooCapitãoLinodaSilva,vãoatéláparaosinterrogar,contarãomaisdetrêsdécadasdepoisAntónioCabraleLuísCarvalho,outrodosoficiaiscativos.Masescapar-se-lhes-áaverdadeporentreosdedoseoslaivosdamemória?LopesdaCruzcontaráumaestó-riadiferente. Segundoo entãodirigenteda udt, os elementos“mais extremistas” do partidoclamam por um ju lgamentosumáriodos of iciais rematadopelo seu fuzilamento.Amortecomopreçodaretirada.Olíderdaudtdecide intervir.“Vamos primeiro enfrentar oinimigo. Estes já estão sob onossocontrolo.OuentãovamosaAtaúroresolveroproblemacomogovernoportuguês”.Aposiçãoproduzdecepção,masnãovoltaatrás.Oscativospoderãoserútilmoedadetroca.Osinterrogatórioscessamquandoaguerraroçanelespelaprimeiravez a��deSetembro.Doisoutrêsfretilins,enfiadosnumalan-chadotamanhodeumbarcoaremoscomabandeiradaCruzVermelha,soltamumachuvadademorteirosquesalpicaasime-diações do forte.Dentrodele,osmilitaresmergulhamparaosolo.Osgritos agudosda f ilhadoprimeiro-sargentogolpeiamotroardosdisparos.Encomendaentregue,barcoapartado.Masnafortalezatodosescapamilesos.Épreciso fugir à investida.Osudt’spegamnelesedebandamaté à linhaque talha a ilha emdois.Acampamnumamatadecoqueiros que entretanto des-bastam.Passamosdiasacomerarrozquecozinhamnaáguadomarounaáguadecoco.Osgrãossaltamdo sacopara apanela e

a espuma que o desinfectanteproduz tem de ser removida àcolherada.Onzediasdepois,aFretilinapo-dera-sedeBatugadéemarchaemdirecção à fronteira.Os udt’seos seus cativos saltampara aIndonésia e refugiam-senumavalaabertajuntoàestrada.Das7h�0aomeio-diaficamsobumtectodeprojécteisquecruzamoar.Quandoo fogo cessa, reto-mamocaminhodeterrabatidae são entregues aumelementodaCruzVermelhaInternacionalque, por sua vez, os conf ia àpolícia.Masnãoantesdeveremosmilitares indonésiospisaremo solo que não lhes pertence.Entranham-seemTimor,74diasantesdainvasãoqueoslivrosdeHistóriairãocontar.

ApolíciaenjaulaosmilitaresnoesqueletocorroídodeumantigopresbitérioholandêsemAtapupo,com o exército indonésio porcapataz. Dormem sobre umaespéciede esteirasque cobrempartedochãodepedra, aqui eacoláriscadopelaluzdosoloupelobrilhobaçodalua.Juntoaosleitosimprovisados,amontoam--seasmalascastanhasquenuncaabandonaram.Poralirepousamtambémpedrasetravesdemadeiraqueoedifíciolargouetrês imagensdesantosaninhadasno solo junto aumcrucifixo.E,dequandoemvez,avistam-seescorpiõesporentreasfolhasdemangueiraqueoventoparalásopra.Jogampaciências, king,bridgee sueca.Tiram fotografias.Ba-nham-seno riachoquepor aliserpenteia.Cortamlenha.Con-fraternizam com os captores.Não sãomaisqueumadezena.Maisfotografias,comelesecomassuaspistolastambém.OuvemàsescondidasnorádioabbceaVozdaAustrália,poucoparanãogastaremaspilhas.O f luxodecomidavaiestancandoàmedidaqueaverbaquelhesédestinadase esgotanahierarquiamilitar

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indonésia,masnãopensamemfugir.“Paraonde?”,interrogar--se-ámaisdetrêsdécadasdepoisAntónioCabral.A7deDezembro,comoestou-rarda invasão,pingam feridosno hospital de campanha queentretantoaliseinstalou.Eumdiadepois,arádiosussurra-lhesaliberdade.Ojornalistaaustra-lianoperguntaaoMinistrodosNegóciosEstrangeirosindonésiopelos portugueses detidos. “Jáforam libertados”, escutam. Anotíciarodaosolhoscativosparaocaminho.Emvão.EmJunho,embalam-nosemcar-rinhas multicolores, daquelasque andam mergulhadas numfrenesimdegalosegalinhasquepulamecacarejamaosabordosmeandrosdocaminho,edespe-jam-nosnumnovocativeiro,emAtambua. A cela é agora umacasa de a lvenaria cintada poruma cerca de pau e arame. Játêmcolchõesebelichesdeferroe,diasmaistarde,piscina.Aliberdadechegaráa�7deJulhode�976,quandoos rapazesdaforçaanticomunistaqueosente-souram,enfiadosnassuasfardasazuis-celeste recém-costuradas,osentregaremàCruzVermelha,choramingando por não iremtambém.

“A Indonésiapor forçadas cir-cunstânciasserviu-sedelesparasalientar mais o abandono dogoverno português e ter umaplataformapara ‘negociar’ comPortugal”,admitehojeoembai-xadorindonésioemLisboa.Masnuncafoiaprisãoquelhesrevolveuaalma.Foiodesleixo.“Eununcamesentiprisioneiro.Senti-mefoiabandonado!”,arre-messahojeAntónioCabralantesdeoruídodaruaestrangularosilêncioqueentãonasce.Maggiolo deixa a obscuridadedacela.Fiadasdesangueentre-laçam-senobrancodosolhos.Aceita fa lar, mas é parco naspalavras.Enãoquer amiradacâmaraapontadaàconversa.

A rtp foi o primeiro e únicoórgãodecomunicaçãoportuguêsaaterrarnumTimorencrespado.Fê-lonodealbardeOutubropelamãodorepórterAdelinoGomesedetrêselementosdasuaequipatécnica,quasedoismesesapósoiníciodashostilidades.Agora,a��deOutubro,estáali,naprisãodoquartel-generaldeumaDíliestriadaporrastosdebalas.Enquantovagueiampelopátio,o jornalista tenta expugnar osilêncio.Fala-lhenossogros,queeram amigos. Dá-lhe nomes edataselocais.“Seosenhorqui-serescreveralgumacartaparaafamília, eu levo-lha”,promete.Masnafacedotenente-coronelnãosedesenhaumsorriso,nemnaspalavrasumacerteza.O ex-comandante da psp estáemtronconu.Acabaporcontarque os fretilins o espancaramdias antes e confessa o crimequeoencarcerou.Repeteoquedisseàrádioantesdocativeiro.Entregara-seaogolpeporamoraTimor.Epelo actopassionalreceberá,por alturasdoNatal,ofuzilamento.Ummêsdepoisdavisita,Ade-linoGomesregressaàprisãodaFretilin.PerguntasehácartasdeMaggiolo.Nãohá,ouverespon-der.Neminsiste.Jáéjornalistahánoveanos,desdeos��,porém,admitirá décadas depois que,naquelemomento, esqueceum“princípiojornalísticoessencial”:a “dúvidametódica”,o “nuncaacreditar”.

Dias antes de se cruzar comMaggiolo,artpestánaraia.AFretilin vai arrancandoTimoràs armasda udt e apenasumaaldeia resiste ao seu controlo:Batugadé.AdelinoGomesquerf ilmar a reconquista, agendadapara ameia-noite.Masháumproblema.Acâmaranãovênoescuro.Artpnegoceiacomosargento.Tenta convencê-lo a esperarpelo sol. Às três da manhã omilitar cansa-se. “Não vamos

esperarmais”,declara. “Esperemaisumbocadinho”,pedinchao repórter.Vence.Aguardarãoatéàaurora.Quando f ina lmente a luz seespelhanos corpos, já se avis-tamhelicópterosparaos ladosdafronteira.Éagoraoununca.“Nãopodeser!”,vociferaojor-nalista. Uma gota de orvalhoalojara-seno interiorda lente.Nãodápara f ilmar.Enaquelemomento, uma rajada de pro-jécteis cai de chofre em tornodeles.

Artpsaidafronteiradecâmaraa abanar. Adelino Gomes nãotemosminutosdeacçãoqueochefe de redacção exigira. Porisso,decidevoltar.A��deOutubroestáemBalibó,no forte construídopelospor-tugueses.Dali vê-seomarquelapida a praia de Batugadé, oúltimo redutoda udt.Osdiaspassam e a câmara continuaesfaimadadepeleja.Nada.“Nósvamosembora”,comunicaaos cinco jornalistas australia-nos que entretanto chegam.“Mas, sehouver invasão, époraqui?”, pergunta omaisnovo,GregShackleton.AdelinoGomesassente.Os australianosdecidem f icar,porqueprecisamdecaptardoisoutrêsminutosdecombate.Masorepórterdartpnãoquerespe-rarmais.Dáorestodaslatasdeconservaàequiparecém-chegadaerumaemdirecçãoaBobonaro,ondeouviradizerque se formauma companhia militar femi-nina.Nocaminho,páranumacolinasobranceiraàMalianaondeestáoColégioInfantedeSagres,diri-gidoporumpadreportuguês.Tomabanhono tanque, comeumarefeiçãoquenteevaidormir.Às��h�0,acordacomoopera-dorde som.“Nãoestáaouvir?Jácomeçouainvasão!”.Trovejam tiros de canhão. Atempestadedeprojécteis está a�ou4quilómetrosdedistância.

Aoinício,umminutoentremeiacadadisparo.Como f luir dashoras,oritmoescalaeoribom-baraproxima-se.“Osaustralianosjátêmosminutosdeles”,pensaAdelinoGomes.Etêm.SegundoLopesdaCruz, as chamasqueumabazuca atiçadevoram-nosenquanto espreitamo conf litodedentrodeumacasa.Opipocardoscanhõesprossegueatéaonascerdosol.Éentãoque,debaixodasprimeirasfarripasdeluz,orepórtersetorna,peranteacâmara,nociceronedaguerra.

“Os jornalistas [australianos]estavamlácomasforçasdaFre-ti l in sem o conhecimento daudt, Apodeti, [e dos partidosminoritários]kotaeTrabalhistae dos voluntários da Indoné-sia”, insisteLopesdaCruz.Osubstantivo“voluntários”repete--se.Nãosabenúmeros.Mas,aocontrário da versão of icial deJacarta, o embaixador indoné-sioeex-dirigentedaudtcontaqueos“cincodeBalibó”–GregShackleton,TonyStewart,GaryCunningham,MalcolmRennieeBrianPeters –pereceramnofogocruzado.

Osponteirosdo relógio rasamomeio-diade�6deOutubro.O conf lito está a esgotar-se.Adelino Gomes e a equipa def i lmagem da rtp continuamplantadosnacolinaqueespreitaas redondezas. Querem caçarmaiscombate.Éentãoqueavis-tam um avião C��0. Roça apistadeterrabatidadaMaliana.Apontam-lheacâmaraArrif lex.Zoomaomáximo.Osbeligerantesnão têmmeiosaéreosounavais.Oshelicópterosqueaequipaviranosdiasante-riorespairavamjuntoàfronteira.Eosnaviosestrangeirosquecon-templaramapenasseesfregavamnacosta.Masaqueleaviãomili-tarbeijaumTimor a7kmdeumaIndonésiaque,pelavozdoministrodosNegóciosEstrangei-ros,AdamMalik,negaquaisquerpretensõessobreoterritório.

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Elesvêem.AArrif lexfilma,masseráquevê?“QuandochegámosaPortugal e fomosver as ima-gens foiumadecepção,porquequalquerpessoadiriaqueoaviãoeraumamoscaapassaràfrentedacâmara”, zombao jornalistaporentreumesgar.Odiscursoembriaga-sedoverbo“ver”. “Euvi”. “Vi”. “Eu tinhavisto”.Avozeleva-seenquantoasmãosesfaqueiamoar.Eleviu,acâmaranão.Porém,paraAdelinoGomesainvasãonasceuali.Nãoaferros,masafogo.

Aguerracivilpauta-sepeloritmodasmarés.Avanços,recuos.udt,kota e Trabalhista marchamatracadosàsforçasdevoluntáriosindonésios.Enfrentam-se.Mor-rem.Umaumpingamna listade�000pessoas que, segundoo relatóriode�005daComis-são de Acolhimento, Verdadee Reconciliação, perecerão naguerracivil.Masa�8deNovembro, aFre-t i l in, que cont rola a qua setotalidadedameia-ilha,proclamaa independência da RepúblicaDemocráticadeTimor-Leste.E,nodia seguinte,na recém-con-quistada fortalezadeBalibó, audtfirmaoacordoqueenlaçaráTimoràIndonésia.Portugalressacaaindadogolpemilitarque,doisdiasantesdesa-

lojaradopoderaesquerdaradical.Oconf litoemTimorexplodiraempleno“verãoquente”epassaao largodeumpaís imersoemquerelasinternas.MinistrodaCoordenaçãoInter-territorialnosprimeirosquatrogovernosprovisóriosapósoscra-vos,AntóniodeAlmeidaSantosreconhecehojequeTimorfoiumterritório“sempremuitoesque-cidoemarginalizado”nasombradeumabandeirailuminadaporoutra s colónia s. E , segundoafirma, foiessaaamarraqueoimpediude internacionalizaroprocessodedescolonização.“OsmovimentosdaGuiné,AngolaeMoçambiquenãoqueriame seo f izéssemos tínhamosproble-masmais gravesnesses locais”,garante.Reclina-sena cadeira.Asmãosentrelaçadasestãopousadasumpalmoabaixodopeito.“Dialo-gámos e dialogámos. QuandoaFretilin invadiuoquarteldapolícia e roubou as armas, ogovernadordeviaterchegadolácomos pára-quedistas e pren-didomeiadúziadeindivíduos”,reprova.Masuma reacçãonãoseriamal recebidapelasoutrascolónias então emdescoloniza-ção? “Verdade seja que se temreagido à força e morto meiadúziade tipos,quantas críticasnãoteriarecebido.Compreendo,

masdesejariaquenãotivessesidoassim”,confessa.Já depois do f imdomandato,em Agosto de �975, AlmeidaSantosaindafoiaTimora fimdeapaziguaroconflitoqueentãose ateava. A Indonésia exigiaintervençãoimediata.“Nósdis-semos que sim, mas com umaforça internacional de Portu-gal,da Indonésia,daAustráliaeCapacetesAzuis,quepediaosecretário-geraldaonuequeelemedeu”,mas Jacarta recusou.“Propuseram‘sónósePortugale quem comanda somos nós’.Nãopodiaaceitarisso.Estava-semesmo a ver que eles queriamcomandarparamatarenóspagá-vamosaconta”,ironizaenquantoumsorrisolhesulcaorosto.

A 7 de Dezembro, mal o pre-sidente dos eua la rga o seusolo, a Indonésia guilhotina aindependência declarada porXavier doAmaral.Reimorto,rei posto. Toma Timor. TomaAtaúroquandoPortugal abalaparaDarwin.E eisque aban-deira verde e vermelha, comoseu mundo recém-perdido aocentro, desliza pelo poste quecoroava.Tombouefoisepultada.Jaz numa caixa em Alcanena,nacasadoembaixadordaIndo-nésia.

A reconstituição dos acontecimentos relatados baseia-se em entrevistas realizadas ao tenente-coronel José Simões, militar em Lospalos e à esposa, Leonilde Simões; a Maria de Lurdes Veríssimo, professora em Same, Viqueque, Baucau, Maliana e Díli; a Adriano Gominho, mili-tar e administrador no Timor Português, e à esposa, Maria Teresa Gominho, professora no território; a António Cabral e a Luís Barata de Carvalho, militares cativos da guerra civil ; ao Embaixador da Indonésia em Portugal, também fundador da udt, Francisco Lopes da Cruz; ao general Mário Lemos Pires, o último governador portu-guês; ao então capitão dos Portos de Timor, José Leiria Pinto; ao jornalista Adelino Gomes, na época enviado da rtp a Timor ; ao ex--secretário coordenador da Fretilin em Portugal, Abílio Serreno e ao então Ministro da Coordenação Interterritorial, António Almeida Santos.

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EmDílireinaasinfoniadostirosdemetralhadoraeocompassodosmorteiros.Osmúsicosdacontendanãosãohomens,masrapazes.Interessao“acertei”.O“nãoacertei”interessamenos.Tente-seoutravez.Osolhosvêemumbandodepessoasemfuga,amiratambém.Nãohápartidosnemideias,hálados.Neminimigos,masalvos.

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RiodeOnor,divididapelorioepelaraia,omarcoqueseccionaolugarentreEspanhaePortugal,nestesprimeirosdiasdePrima-vera, emerge solitáriapor entreosmontes. Sobre ela, f lutuamcirroserrantesedispersosquesedestacamnocéuazulanil.

Ne s te luga r apa rentementeabandonadoeaomesmotempoenc a nt ador, o s habit a nte s ,quando surgem, parecem per-sonagens saídas dos contos deMiguelTorgapara actuar,nasv iela s deserta s, como espec-tros fulgurantes. Eles surgeme somem rapidamente, qua lvultosantecipadosdeumlugarcondenadoaodesaparecimento.Sãorostosidososmarcadospelalabutano campo, cujos olhos,expressivamentevagosetristes,lançam, àqueles que os f itam,odesafiodeconheceroqueosinquieta,oqueosaf lige.

E o que os dei xa a s sim tãomelancólicos, assim tãodesen-cantadoscomavida,éasaudadedavidacomunitária.Dotempoemque a agricultura f lorescia,emqueosjovensnutriamaforçade trabalho e em que as pes-soas conviviam e ajudavam-semutuamente. Saudade daque-les momentos em que o sinoda igreja tocava, anunciando areuniãodopovo,na rua, paratraçarosrumosdodiaearotinados homens. Nostalgia de um

tempoemquetodasasquerelaseram resolvidas comaVaradaJustiça, onde eram marcadas,comtraçosfortes,asinfracçõese,depois,pagavam-seasmultasemvinho,posteriormentebebidoportodos,nosdiasdetrabalhoemconjunto.

Mas este povodeolhos tristesjánãodecidemaisnadajunto,jánãoseentendecomoantes.Dopassado memorizado, f icaramapenasalgunsresquíciosdeumavidaconstruídaemcomum.

Daagricultura, já sórestaumapequena “colcha de reta lhos”estendida àbeirado rio, cujosdiminutos rectângulos verdesrepresentamas terrasdequemjá não cultiva e onde as ervaspuderamcresceratéaolimitedosrectânguloscastanhos,comcordeterrafértilecultivadosaindapor alguns.Chamamà colcharetalhadadeFaceira,um lugarpartilhadoindividualmenteporalgunsdoshabitantes,mascul-tivadoemconjunto, jánãoporvontadeesimporconveniência,pois ela só temuma entrada econvém não pisar no terrenodosoutros.

Aforçadetrabalhonoscamposjánãoébraçal,amáquinaparalavrar a terra repousa solitáriaem cima da colcha, como umhomemnoseuleitodedescanso.Ela veio substituir o trabalho

colectivo e, consequentemente,asrelaçõespessoais.

OsfrutosproduzidosnaFaceira,apesardebeloserobustos,jánãochegamparaoconsumodiário.Agora há comida ambulante,vendidapeloshomensdascarri-nhas,paraquemantesplantouecolheuosprodutosdeumtraba-lhoemcomum.

O toque a lto e insistente dasirenedestescarrosambulantesquebracomfrequênciaosilêncioda aldeia e, para os desconhe-cidos, chegamesmoa assustar.Oshabitantes jáo conhecemàdistância,sabemoqueelesigni-f ica: a comida chegou. São oscarrosquetrazemnumdiapão,nooutrofruta,nooutrocarneeatémesmoraçãoparaasquatrovacasecercade��0ovelhasqueaindarestam.

Nestemomento,aaldeiapareceganharalgumavida.Osaldeõessaemcomassacolasnasmãoseodinheironosbolsos,acompa-nhados por cães pachorrentose cambaleantes, rumoao carrododia.Caminhamlentamente,ao ritmo que as pernas velhase cansadas lhesdá.Chegamaocarro,compramacomidaepar-temnovamentecadaumparaoseuclaustro.Vãosatisfeitospor-quelevamalimento,mastristesporque não são produzidos cána terra,porqueagora têmque

pagar. “Agente agora temquecomprartudo.Trazemtudoaquipara vender. Nós compramos,masodinheiroque recebemosdaspensões épouco”, lamentaosenhorManuelRodrigues,de86 anos, gesticulando com osbraços e lançando para o ar ainsatisfaçãoqueoconsome.

As carrinhas fornecedoras decomidaexistemporquenãosevêumúnico jovemnaaldeiaparalavraraterraecuidardogado.Aagriculturaeopastoreiojánãosão actividadesque agradamàjuventude.Foramtodosembora,deixandopara trásospais eosavóscheiosdesaudadesepreocu-pações.“Quemtempernasfoge,quem não tem f ica para trás”af irma a senhora Maria LuísaRodrigues,de8�anos.

Osfilhosvoltamdequandoemquandoparaumavisitapassa-geira, trazendonotíciasdeummundodistanteedesconhecidoqueosmaisvelhosdizemapenasveratravésdatelevisão.Grandepartefoiembora,ficaramapenasosidososreceptivosesimpáticose alguns jovensdesconfiados eesquivos.

De tão poucos habitantes querestaram,nãomaisque7�pes-soas, sobreviveram sobretudodois clãs familiares: osPreto eosRodrigues.Paraquemchegaeperguntaonomedaspessoas,

No s t á l g i c a u t o p i a

texto e fotografia: Uliana Castro

Paraquemchegapelaestradaqueserpenteiaporentreosmontes,aaldeiasurgerepentinamentecomoumaaveemplenopousosorrateiro,nomeiodovalemontanhoso.Aprincípio,parecenãohaverninguém.ApenasorioOnoracorrerlivreesonolentorumoàfoz;ascasastípicasda região, cobertas com telhadosde lousa e emparedadaspor ardósia,queparecemabandonadas; as ruas estreitas edesertas,cheirandoapastoparaogado;osgatosvadiosaolharemcuriososedesconfiadosparaosdesconhecidos;aigrejasilenciosaedeserta;umacasatotalmenteisolada,noaltodeummonte;eobarulhodospássaros,doventoedaáguaacomporamelodiasemprepresentenolugar.

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parece que pertencem todos auma só família. E, no fundo,per tencem, são todos rostoshumanoscomasmesmasexpres-sõesrudes,comomesmoolharvago,comomesmoandarlentoedesalinhado, comasmesmasrecordações,sãotodosdafamíliados esquecidos, dos solitários,dossobreviventes.

Semcriançasesemjovenssufi-cientes tambémnãohá escola.A única existente encontra-seabandonada,lánoaltodomonte.Estáentregueaotempo,isolada,parecendoumfaroldesactivadoqueoutrora vertia luz sobreoshabitantes. Nas suas janela senferrujadasepartidaspuseramplásticos enormes que, com osoprofortedovento,oscilamdeum ladoparaooutro, fazendoumbarulhoparecidocomodasvelas das caravelas portugue-sasqueconquistaramoimpérioultramarinotãomajestosamenteestampadonomapa,aindapen-duradoaoladodoquadronegro.Omapa,representandoo“Por-tugalnãoépequeno”deSalazar,encontra-secomidopelastraças,estáprestesasucumbireadeixarde existir, assimcomoo impé-rio,assimcomoosalunosquejánãoocupamasvelhas carteirascorroídas.

Naaldeia,aescolanãoéaúnicaconstrução desabitada, abun-damascasasabandonadas,que

aparecemcomooprenúnciodoquerestará.AsminiaturasdestascasasestãoàvendanaCervejariaPretoparaos turistas levarem.Atrásdelas,opapelescritopeloartesão Luís Pires sentencia :“Estassãoascasasdequetodosgostamosequetodosestamosadeixarperder.Nãovemlongeodiaemqueestasserão,apenasesó,ascasasdanossamemória”.Masenquantoasruínasinsistemem f icar de pé, ainda existemparaalémdamemória.Ascasasaindaláestão,cheirandoaofenoeàcarqueja.Équeagora,jádesa-bitadas, servemparaguardar acomidadogadoearmazenarosgrandes feixesde carqueja,quesãousadosparaacendero fogoqueaqueceos aldeões,duranteo Inverno rigorosodasmonta-nhas.

Nestelugaremruínas,ondehátantos gatos como habitantes,apenasumsítioparecedarvidaealegriaaosaldeões:aAssociaçãoCulturaleRecreativadeRiodeOnor.Umedifíciopequeno,comumcafé aconchegante,ondeaspessoaspassamparalembrarosvelhos tempos. Contam-se ashistóriasdopassado,cumprimen-tam-seosvizinhosereclama-setambémdoisolamentoedafaltade entreajuda. “Odinheiro e atelevisãoestragaramtudoisso”,lastimaasenhoraVitória,de7�anos.Ali,oambientecomunitáriodopassadoparecequererressus-

citarporum instante, abrindoumesboçode sorrisono rostodospresentes.Mas,pormaisquetentemrevi-ver o passado com efémerosmomentosdeconvívio,docomu-nitarismojásórestaomoinho,aforja,o lavadouroeopastoreiodasovelhas.Omoinhodeágua,pousadoàbeira-rio, estáprati-camente desactivado e pareceapenasmoeradoreasolidãodosquealivivem.Aforja,instaladanumacasinhadepedracomumaportademadeira robusta,masenvelhecida, guarda lá dentroocheirodascinzaseocalordofogo.Estãoláofole,omarteloeabigornaparaquemquiseraven-turar-senasartesdeferreiro.Nolavadouro,nãohámãoslavandoroupas, já foram substituídaspelasmáquinas.Existe apenasumacolchavelhapenduradanumcordão,balançandoaosabordovento.

Opastoreiodasovelhaséamarcamaissignificativadoquerestoudavidacomunitária.Cadaaldeãopastoreia as ovelhas de todos,numnúmerodediascorrespon-dente às cabeças de gado quepossui.A igualdade e a justiçaparecem ainda resistir. São aspequenasovelhasqueconseguemseroelocomunitário,duranteodiaenocomeçodanoite,entreoshabitantesdapequenaRiodeOnor.

Quandoa luzdo sol rareia eomanto negro da noite começaa estende-se sobre a aldeia, oshabitantesficamlogoàespreita.Passadoumtempo,jáestãotodosàportadecasa,esperandocadaqual pelas suas ovelhas, cujasvidasmarcama rotinadosquetrabalham.Delonge,ouve-seoberrodorebanho.Lávêmelas,comoumaglomeradodelãdesa-linhado.Cadauma sabeo seudestino,jánãoprecisamsertan-gidas.Quandopassam,osdonoséquevãoatrásdelas.Nestelugar,osanimaiséqueparecemguiaroshomens.

Depoisdeopovo e as ovelhasrecolhidos, a a ldeia torna-sedeserta,silenciosaetriste.Apenaslhedávidaobarulhodaságuasa esvair-sepor entre aspedras,o ventoque sopramais forte ealgunspássarosnocturnos,quevoamassustados,quandopassaalgumcarrorompendoosilên-ciocombarulhosdacivilização.O manto da noite já cobriucompletamente o lugar, comoumacortinanegraquesefechouperanteumpalco semespecta-dores, cujos actores principaisvivemcomamorte à espreita.RiodeOnorconheceentãooseufuturofantasmagórico,quandojánemosespectrosdeixamrastrosde vida.Nomeiodosmontes,ficamsóosquase50quilómetrosquadradosdenostálgicautopiaesolidão.

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Costa Nova , Aveiro. 9 horas da manhã. Na tenda de circo aberta balançam corpos f rené-ticos, agitam-se braços no ar, os olhos semicerram-se para “cur-tir” melhor o som (ou a “moca”). “Aquela personagem ‘tá em quase todas as festas, e sempre assim a rodar”. A saia colorida até aos pés não atrapalha os movimentos deste trancer, que passa horas a girar sobre si próprio sem parar. Ton-turas não as sente, passa-as para quem o vê. Uma túnica azulão com motivos hindus, dois piercingsamarelo f luorescente em forma de pico que exibe na cara e anéis em todos os dedos completam a “perso-nagem”, mas o toque final é dado por um chapéu à Joker. Fora, na areia da praia, estendem--se os corpos cansados; mantém-se o charro na mão, ou o copo de bebida. Alguns preferem caminhar para lá das dunas, para perto do mar, e divagar sem rumo certo. Para longe do som caminham outros, concentram-se junto aos carros a fumar o seu charro, a dormir, a fazer malabarismo com swings. Aqui partilha-se. Parti-lham-se experiências e histórias de outras festas, partilha-se a ganza, a comida, a bebida. “Queres expe-rimentar fazer [malabarismos com swings]? Eu ensino-te”. Um miúdo, não mais de seis anos, rebola-se na terra com o cão. Os cabelos loiros--loiros e os olhos azuis-azuis não traem aquilo que as palavras do

pai, gritadas da auto-caravana, vêm confirmar: são estrangeiros.Carlos Alexandre, 19 anos, de Car-regal do Sal, também já tentou ir para junto do carro descansar, mas não conseguiu. Sentado na areia, voltado para a tenda, o estudante de medicina veterinária em Coim-bra pergunta aos conhecidos que vê passar se têm um comprimido para dormir. “’Tou a bater mal, quero ir dormir”. Range os dentes, tem o olhar perdido e receoso de quem embarcou numa bad trip por “mandar” ácidos. Da bolsa de pano que traz a tiracolo retira um saco de plástico cheio de bolotas [haxixe]. “30 euros cada uma”.

Realizam-seempraias,mastam-bémem f lorestas,herdadesoumatos.Recantosnaturaisremo-tos,escondidos,resguardadosdosolharespúblicos.Algumas têm500pessoas oumenos, outrasmaisdetrêsmil.Ninguémsabequantasdecorremporano,sendocertoque é comumhaverduasou mais num mesmo f im-de--semana, sobretudonosmesesdecalor.Éomundopsicadélicodas festas trance, omundodosomhipnóticodamúsicatrance, dadecoraçãof luorescenteedasluzesnegras,doambienteestilo“hippie”.Ummundoqueacolhepessoasdeidadesdiversas,vindasdos cantos mais distantes dopaíseatédefora.Nasuamaio-ria,os trancers vivemumavidadupla, e énas festasque têma

oportunidade para viajar parafora das imposições do quoti-diano.Aajudara“viagem”surgeo consumo vulgar de drogas.Acannabiseosseusderivados,o ecstasy, o lsd ouos cogume-losmágicos [ver caixa] vêmaoencontrodosfrequentadoresdefestas.Bastaperguntarporelas,ounemisso.SimãoSilva,maisconhecidoporSimon,vaiafestastranceháseteanosetemporhábitomisturarhaxixe com lsd.Aos �� anos,trabalha como vidrador numafábricanoRojãoGrande,SantaCombaDão.Tímido,evasivonaspalavras,láacabaporconfessarquetinhaboasnotasnaescola,mas que não valia a pena tercontinuado a estudar.Apartirdomomentoemqueopaifale-ceu, Simon começou a “andarnumade apanharmocas [estarsob efeito de drogas]”. “Sabiaquesefosseparaauniversidadesómeiaperdereestourarnota”.Apreferênciapelos ácidos já olevouaexperiênciasousadas,querecorda comum sorriso triun-fante:“umaveztomeilsdparairaumjantardeempresa,tinhadesabercomoerafazê-loeestarnasociedade”.Simonjáiaafestashouseetecnho(doisoutrostiposdemusicaelec-trónicadedança) antesde ir afestastrance,masfoidaincursãoporestasúltimasqueherdouos��piercingsquetemespalhadospelocorpoerostoeasduastatu-

agensnosbraços.Agora,pensagastartrêsmileurosparatatuarnocorpoquase todoa imagemdeumdragão comgarras, emhomenagemaoclubedefuteboldocoração.Hojeemdia,Simonnãovaitãofrequentemente a festas trance por “umaquestãopsicológica”.“A certa altura, não me sintobem,apetece-meestaremtodosos sítiosmenos ali; a cabeça jánãoestáabaterbem,eatrofio”,confessa.Quandoissoacontece,fogeparaumsítioondesesinta“fixe”,para“curtiramocasozi-nho”.Questionadosobrearazãodecontinuarairafestasmesmoassim,Simonencolheosombros,esboçaumsorrisoinquieto.Res-pondequenãoquer estragar anoite ao restodopessoal equenãogostadamúsica comercialdosbaresediscotecas.Seantesia às festas por causa do purodivertimento,hoje admitequeé a música que o impulsiona.A paixão pelo trance fez comqueSimoncomeçassetambémaproduzirmúsicaprópria, tendojáidoafestaspassaro“seusom”.Umsomque se identif ica como dark trance, que geralmentese ouve à noite e que “é maisactivoparao cérebro epara asmocas”, por contraposição aofull on (mais comercial), que étocadoduranteodia.Odark tranceétambémoprefe-rido de João Isidoro e MarinaRamos,ambosde�9anos.Natu-

O s n o v o s " h i p p i e s "

plur,étudooquepedem…Ouseja,“Peace,Love,Unity,Respect”.Foramaosanos60buscarumafilosofiadevidaedesejaramfazer--seàsua imagemesemelhança.Pura ilusão.Vivememfunçãodepequenosmomentos,as festas trance.Precisamdesentirossentidosalterados,redimensionadosporesseuniversofantástico,psicadélicoeesotérico.Novos“hippies”,talvez,masdefim-de-semana.Asideiasactivistasdemudaromundotambémjálávão.Agoraéprecisofugiraele.Fomosconhecerosprotagonistas,osvaloreseosexcessosdestarealidadeàparteedeumasubculturaque,apoucoepouco,secomeçaasentirdividida.

texto e fotografia: Ana Rita Faria

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ra l do Caramulo, Marina foiestudarpara a terrade João, eacaboupor f icarpor lá.ÉporSantaCombaDãoqueosdoisjovens levamavida.EnquantoMarinatrabalhacomumautista,Joãoajudaoirmãonasestufas.Aos�5 anos,Marina foi à suaprimeira festa trance. Não selembra onde foi, só se lembraque “bateu” muito mal, masJoão recorda-a: “Foi emNelas,fostecomigo”.JáaprimeirafestatrancedeJoãorecuaatéaosseus��anos,emMontemor-o-Velho.Desdeentão,nãopararam.Nas festas trance, Joãoprefereconsumir lsd, “a droga paraquem tem espír ito” como adef ine, embora já tenha expe-rimentadoquase todosos tiposdesubstâncias.JáparaMarinaaescolharecainomdma,“p’ratarnaboa”.Àmedidaqueatempe-raturadocorposobeeocoraçãodispara, Marina sabe que nãosente calor, frio ou fome,peloquepodedançarhoras ehorasseguidas.Para eles, o espírito das festastrance é único. “É ‘peace andlove’; se dizes a a lguém quetens fomeouquequeres qual-quer coisa, essa pessoa dá-te”,afirmaMarina.Joãocorrobora:“se alguém te vir a bater malnochão,nãocagaparaticomonoutrossítios”.Vivendonummeiopequeno eenfrentandojáomundodotra-balho, JoãoeMarinavêemnasfestas uma oportunidade parafugir à realidadee à sociedade.“Como tenhopiercings e calçasao fundodocu,passonaruaeaspessoaspensam:olhaaqueladrogada”, lamentaMarina. Sónasfestasnãosesentediscrimi-nada, e sim“umapessoa comoasoutras”.

Uma filosofia de vida

Veteranadasfestastranceétam-bémInêsDoroteia.Dosseus��anos,osúltimosnoveforampas-

sadosemfestas.AprimeirafoinaMarateca,nachamada“f lorestamágica”que aindahoje é con-siderada o santuáriodo trance em Portugal. De facto, entre�995e�004,aentãopioneiraeprincipalprodutorade eventostrance nacionais – Goodmood–organizou cercade70 festasnaHerdadedoZambujal,pertodaMarateca.Inê s lembra a t ípic a f igu ra“hippie”do séculoxxi.Prefereroupaslargasecoloridassobreocorpomagroecostumaapanharassuasrastaslongas,oquerealçaosorrisoabertonafaceeosolhosquebrilhampordetrásdeunsarosredondos.VivenarepúblicadeestudantesBaco,emCoimbra,com o f ilho de �8 meses, quetencionalevarcomelaàpróximafesta. O quarto, que se tornapequenoparaosdois,transbordadecarrinhos,peluches, jogos…e cd’s de música trance. Paradistrairo f ilho,que insiste emverumdvddedesenhosanima-dos, Inêspõea tocarmúsica…trance,claro.Actualmente,Inêsnão trabalha e está a estudarpara entrarnoensino superior,emagriculturabiológica.Quandovaiafestastrance,Inêsnão tem por hábito consumirdrogas, a não ser “fumar unscharros”,emborajátenhaconsu-midováriostiposdesubstâncias.“Amúsicaporsisójátransportapara uma frequência muito àfrente,asdrogassãoapenasumcaminhomaisfácilparaisso”,fazquestãode sublinhar.Segundoela, o próprio estímulo físicodadança,quandoefectuadodeum modo repetitivo e prolon-gado,podecontribuirparaumestadode transe. Inês acreditaque,quandovai a festas, tomaconsciênciadaquiloque é edoque os outros são. “Às vezesesqueço-meque tenho corpo”.Escondidanasmotivaçõesqueaimpelemairafestastranceestáa crença, retomada do ideáriohippie, de conseguir mudar arealidade. “Voua festasporque

estasfazem-meacreditarqueumarealidadealternativaépossíveleque,setodaagentetrabalharemconjunto,podemudar-sealgumacoisa no mundo em que vive-mos”,anseia.Júlio César, �� anos, e TiagoFilipe,��anos(quepreferiramnãoreferirosapelidos),sãocom-panheiros das incursões pelomundo trance.Ambos foramàsuaprimeirafestatrance quantotinham�5anos,mas enquantoTiagovaimaisocasionalmente,Júlio “costuma ir regularmente,f im-de-semana sim, f im-de--semana não, fim-de-semanatambém”. Segundo Júl io, onúmerodefestasaquecadaumfoitraduz-senomodocomocadaumvê as festas trance. SeparaTiago estão muito ligadas aoconsumodedrogaseao“curtiravida”,Júlio insere-sena ideo-logiados“veteranos”dotrance, acreditandoqueestemovimentodedança electrónicao levou amuito conhecimento interior eà expansãodos seus interesses.Àsemelhançadeoutrostrancers, Júlioencaraasfestascomoumarealidadealternativa,“ummundoàparte”.“Quandovenhocáp’raforaéomeu‘matrix’:ésójogosnomundoreal.Tenhodeenca-rarumsistemaque‘tátodomale emquenos fodemosuns aosoutros”.Júlio,queestáaestudarem Penacova juntamente comTiago, confessaque temmuitomedo de ir trabalhar, porquesabeoqueo espera.Enquantoisso não acontece, Júlio apro-veitaparairafestas,arranja“unstrocos aqui e ali” ou entra “àmitra”pelomeiodomatoparanãopagar.

“Queimar” a cabeça

Júlio já experimentou muitasdrogas (lsd, mdm a, cogume-losmágicos…), já fezmisturasde substâncias, já percorreu o“mundodefantasia”queasdro-gascriam.Actualmente,f ica-sepelos charros, em festas e fora

delas, porque o fazem sentir“relax”.Decorpofranzino,“sem-precheiodespeed,comamerda[haxixe]naalgibeira”,Júliofazlembraro“ChicoFininho”can-tadoporRuiVeloso.Deixoude ladooutrasdrogas,“porqueo excessode consumodeixaaspessoasabatermaldacabeça”. Júlio recorda amigosquecomeçarama ir a festasnamesmaalturaqueeleequehojeestão“queimados”, istoé,afec-tadosmental e cognitivamentedevido ao consumo de drogassintéticas, sobretudo alucino-géneos. “Há muita gente quepensa que mundo acaba ama-nhã e depois...”, lamenta. Omesmoacontece comInês,quetemalguns amigos internados,ou com Marina e João, queconhecempessoasque f icaram“abatermal”. “Ficamburros”,exclama Marina, que justif icaesses casos com um consumomaioremaisregulardesubstân-ciaspsicactivas.Maspara Joãonão é preciso consumir mais.Por vezes, depende do “f ilmecomquesefiqueabatermalnamoca”,istoé,asbad trips(“másviagens”)derivadasdoconsumodealucinogéneos.Frequentemente associado aoscasos de “queimados”, está oconsumodedrogasadulteradas,apelidadasdeestrikinaouestri-quenina.O inspector-chefedaSecçãoRegionaldeInvestigaçãodo Tráf ico de Estupefacientes(srite)daPolíciaJudiciária(pj)deCoimbra,FerreiraGonçalves,chama a atençãopara a quan-tidade de lotes adulterados deecstasy que chegamaPortugal,provenientesdecentrosdepro-dução localizados sobretudonaHolandaeBélgicae,maisrecen-temente,tambémnaEuropadeLeste. “Tal como a heroína, omdmaécortadoomáximopossí-vel,porquequantomaiscortadofor,maislucrotemotraficante”,realça.NoseugabinetedapjdeCoimbra, Ferreira Gonçalvestem pendurado na parede umbilhetedoFestivalBoom�006

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[ver caixa], omaior eventodetrance emPortugal, onde foi atítulopessoal.

O coleccionador de trance

DajaneladoquartoquedáparaapequenapovoaçãodeSarzedo,Arganil,vemumsomhipnótico,provavelmente israelita, o seupreferido.Naporta doquartocoloucartazes, f lyers (folhetos)defestastranceeimagenspsica-délicas.Pelasparedes,espalhoucoresintensaseformasdistorci-das, onde f iguras edivindadeshindus,ameríndiasoupagãscon-vivemcomalienígenasdomundodaficçãocientífica.Nabase,ummesmouniversoeconstelaçãodevalores:otrance.Aos�7anos,BrunoSousa(nomefictício) jáaprendeuàsuacustaque a vida não é um mar derosas.Filhodepaisdivorciados,Brunodesleixou-sedosestudos,tendo apena s completado o5.º anodeescolaridade.Comoconsequênciade alguns furtos,foiinternadonumcentroeduca-tivo.“Máscompanhias”,censuraamãe.Está ládesdeJaneirode�006 mas regressa a casa emJunho deste ano, tencionandocontinuarosseusestudosnumaescolaprofissional.Quandovemacasanosfins-de-semana,Brunopreferepassarodia reclusonoquarto,aouvir tranceoumetal(“nãogostodemaisnada”)ouembrenhadoem jogosde com-putador (“no colégio há umaplaystationmasestáestragada”).Mas ànoite, semprequepode,vai ouvir trance para as festas,porquenãogostadediscotecas.Desdeos�5anos é assim,masagoraqueoseugrupodeamigosorganiza algumas festas trancena região o estímulo é aindamaior.Confessa que já fumouunscharros,masnãoquerfumarmais, “não vale a pena”. Sabequeospaisnãogostamqueeleváafestas,“têmmedoporcausadasdrogas”.Brunojáconvidou

amãemaisqueumavezparaircomele.Elahesita,masdizquequalquerdiavai,para lhe fazera vontade. “Ele achaque se eufornãolhevoumaisatazanaracabeça”,dizbrincando.Brunonãoéde tantaspalavrascomo a mãe, mas fa la com oolhar. À medida que vai mos-trandoasfotografiaseimagensque temguardadasno compu-tador, os seus olhos ainda decriançacomeçamabrilhar,afacedescontrai-se,oslábiosdesenhamum sorriso ténue. Sucedem-se,intermináveis, momentos defestas trance eternizados numf la sh ; atropelam-se os f lyer s das festas aqueBruno já foi equeaindaplaneiair.“EstaédoBoom!”.Pastasparafotografias,para f lyers, logótipos,desenhospsicadélicos ou cd’s de trance “sacados”daInternet.A decoração das festas trance fascina-o. Timidamente, abreapastaondeguardaalgunsdosdesenhosquecostuma fazernocentroeducativo.“Estouatentarinventar decoração de trance, para depois comprar t inta s,pintar e pendurar na parede”,explica. No pensamento, umdesejoque repete semcessar equecausaarrepiosnamãe:“Paraoanohei-deiraoBoom”.AindanãosabeelaqueBrunoquerfazerrastas…

Sair do trance

Catraia de Seixos Alves, perto de Tábua. 2 horas da manhã. Carlos Alexandre está eufórico, mas não mais do que o amigo Nelson de Almeida, que trabalha como ven-dedor em Carnaxide. Resolveram sair um bocado da festa trance que decorre na discoteca ali ao lado e dirigem-se para o carro. Dizem que querem ser entrevistados. Nel-son, ou o “ f lecha”, nome por que é conhecido, tem 25 anos e brinca declarando que hoje se vai “ des-virginar”, que é a primeira festa a que vai. Mas, na verdade, iniciou

o seu percurso pelo trance há seis anos, “quando havia a boa onda, que hoje já não há, do ‘peace and love, just smoke and relax’”.De copo de whisky na mão, Car-los, o “puto”, nome por que já foi conhecido, afirma que não bebe álcool nas festas,” só água ou algo parecido com muita água” (refere--se a mdma em pó). Vai a festas porque duram até as 23 horas. “Do dia a seguir, claro, porque nunca chego antes da meia-noite”, brinca. Nelson interrompe-o: “quero um cartão em condições que dê para partir a merda do md”. À falta de cartões, pega no bloco de notas da entrevista, e pouco depois está pronto a “snifar”. Manda um risco e passa de seguida a Carlos para fazer o mesmo.“Fora a heroína, não há nenhuma droga que eu não tenha experi-mentado, mas sinto-me mal com isso. Sou completamente contra as drogas. Agora quase já não mando drogas, mandei este risco agora nem sei porquê”, confessa Carlos. Nelson retoma o assunto, afirmando: “toda a gente diz ‘ai eu não me agarro! ’ mas, quando te vês com dinheiro na mão e ‘tás numa fase frágil da tua vida, é a desgraça”.

CláudiaDiasnãodeixouascoi-saschegaremaessepontodequeNelsonfala.Soboefeitodelsd,chegouaver tropasavoaremecombateremnoar,oucrocodilosna água. Hoje, aos �� anos, ajovemnaturaldeMassamácon-fessaque iaa festas trance “porcausadadroga”.“Apesarde terconhecido o mundo do trance damesmaformaquequemviveparaeleconhece,euviviaparaomundodadroga,porinf luênciados meus amigos”, reconhece.Aindaficacomafacecoradaaoenumerarasdrogasquehabitual-menteconsumianasfestaseforadelas.ActualmenteafrequentaroquartoanodeDireitonaUni-versidadedeCoimbra,Cláudiajánãovaiafestasháquatroanos.Tomouadecisãodeabandonar

esse mundo quando chumbounoprimeiro anoda faculdade.“Enveredeiporoutro caminhoporterobjectivosaalcançarnaminha vida”. A jovem admiteque, se tivesse continuado a irfestas,nãoestarianestemomentoaestudar.“Asdrogascomem-nosmuitoocérebro”,refereCláudia,confessandoque sódehádoisanospara cá começoua sentir--semelhor. “Aminhamemóriaestavamuito fraca,não conse-guiamanterumraciocíniológicodurantemuitotempo,começavaa perder-me e só queria estarcalada”, recorda. Hoje, aindase cruzade vez emquandonaruacomamigosdostemposdotrance, “que não fazem nada,não seguiramestudosnenhunsecontinuamairafestas”.

A caixa de Pandora

Quando o trance psicadélicosurgiu emPortugalhá��anos(aprimeira festa teve lugar emEstremoz, em �994), apresen-tava-se como uma espécie de“segredobemguardado”,prati-camenteexclusivodeumgrupodejovensprovenientesdaclassemédiaemédiaaltadeLisboaePorto.Aomesmo tempo, af ir-mava-se como um movimentoalternativoedeoposiçãoàcenamusical do techno e do house, considerados como fenómenosmaiscomerciaiseondeseviviaummauambiente,pontuadoporcrescentesepisódiosdeviolência.Hoje,abriu-seacaixadePandoraque guardava o “segredo”, e omundo do trance parece estaramudar.De facto, a expressão “mauambiente” passou agora a serusadapormuitos trancers paracaracterizar a atmosfera queactualmente se vive nas festastrance. Associadoa isso, estáomultiplicardonúmerodefestasqueserealizam,ocrescentecon-sumodedrogasnessescontextoseaindústriaqueseformouàvoltadeummovimentoquenasceu

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Embora não se possa falar deuma a s soc iação obr igatór iaentre festas trance e drogas, oconsumodesubstâncias ilícitasnessescontextosnãoparece serodesvioànorma,masapróprianorma.Parapercebermelhorestefenómeno,contactámosdiversosprofissionais, entrepsiquiatras,psicólogoseinvestigadores,queidentificaramasprincipaisdro-gasconsumidasnocontextodasfestastrance,asmotivaçõespordetrásdessesconsumoseosris-cosassociados.

Que substâncias?

Segundo Vasco Gi l Ca lado,invest igador do Inst ituto daDroga e Tox icodependência(idt),éprecisoentenderoscon-sumosdedrogasnasfestascombasenouniversode valoresdasubcultura trancer.OautordoestudoDrogas Sintéticas: Mundos Culturais, Música Trance e Cibe-respaço apontaparadeterminadastendênciasdoconsumodedrogasnasfestas.Porumlado,etendoem linha de conta o contextofestivoecolectivo,VascoCaladoconsideranormalqueo ecstasy seja consumido e va lorizado.Por outro, o fascínio enormequeo lsd exerce é, segundooautor, justif icadopelaprocuradeparaísos artif iciais e fuga àrealidade,domesmomodoquea valorizaçãodo contacto coma natureza explica a preferên-ciapelassubstâncias“naturais”,comooscogumelosmágicos.Porúltimo,oinvestigadordestacaarejeiçãodaheroínanesteuniversoemqueohedonismoéumvalordeterminante.Lurdes Lomba, professora daEscolaSuperiordeEnfermagemdeCoimbra,corroboraestaideia,acrescentandoque aheroína éa ssociada a uma imagem dedecadência, ao “arrumador de

automóveis”. “Ora, não é essaa imagemqueo jovemdehojequerpassar,esimumaimagemdebeleza,porissoasdrogascon-sumidassãoestimulantes,enãodepressoras como a heroína”,conclui.Juntamentecomopsi-cólogoFernandoMendesecomopsiquiatraJoséRelvas,LurdesLomba assinou a investigaçãoNovas drogas e ambientes recrea-tivos, que pôs em evidência opoliconsumo como tendênciagera l do consumo de drogase o facto de esse consumo de“novasdrogas” (as drogas sin-téticas, comoo ecstasy eolsd)seprocessarsobretudoemcon-textos recreativos. Segundo aenfermeira, “o estereótipo doconsumidorde ecstasy adançarfreneticamente comgarrafinhadeáguajánãoseaplicahojeemdia”.Omitodequeeraperigosaaassociaçãodoálcooleecstasy“jálávai”,e“osjovensdehojemis-turampastilhascomálcool,eatécomcocaína,porquesabemqueissoaumentaaestimulação.Nof inaldanoite,quandoqueremacalmar,misturamcomhaxixe.Se querem dormir, misturamcomsedativospara conseguir”,explica.Embora tenha chegado a con-clusões idênticas,VictorSilva,psicólogodaComunidadeTera-pêuticadoNorte, levoua caboumestudodiverso.EmTechno,House e Trance : uma incursãopelasculturasdadance music,oautorassociouacadaumades-sas culturas musicais públicosdiferentes,deorigensdistintasecompadrõesdeconsumodife-renciados.“Enquantoosadeptosdotechnopreferemaspastilhaseosdohouseacocaína,osadeptosdo trance preferemos ácidos”,resume Victor Silva. Comuma todas as culturas da dance music, é o policonsumo, peloque à droga “rainha” de cadasubcultura se associamoutras,comoacannabisouoálcool.

livre,comunitárioeanti-sistemacomercial.Paralelamente, apa-receramnovospúblicosparaasfestas trance que, segundo os“veteranos”,estãoadesvirtuaraideologia evalores associados aestasubcultura,criandodivisõesnoseuseio.“Estáaestragar-seoespíritodasfestastrance,porquecomeçamaserdominadaspelodinheiro epelonegóciodadroga”, afirmaInêsDoroteia.Ajovemcriticaabanalizaçãodo ritual associadoaotrance,censurandoaspessoasquevãoparafestascomoobjec-tivode“engataremeterdrogas”.Apesardo“mauambiente”comqueàsvezessedepara,Inêsconti-nuaair,porquenãoquer“entregaraquiloaosbichos”.ParaCláudiaDiaso“mauambiente”teve inícioquandoogrupodosdreadscomeçouafrequentarfestastrance. “Inicialmenteeramsóosrastafariqueiam,masentretantocomeçaramairosdreadseentãocomeçaramosassaltos,osroubos,a violêncianas festas”, af irma.Cláudiaexplicaaaf luênciadessenovo grupo ao trance dizendoque,“aocontráriodosrastas,osdreads vão sobretudoàprocuradas drogas (nomeadamente oecstasy,enquantoosrastas,prefe-remosácidos),porquenasfestaspodemconsumirlivremente”.“As festas começarama serummeio impulsionadordo tráf icodedroga”, consideraNelsondeAlmeida,criticandooambientede degradação que se vive nasfestas. “Euvouparauma festap’ramedivertir, enãop’ramecomeremomiolo.Filmes já eulevocomosmeusclientes,comomeupatrão,osmeuspais…”,comenta.TambémJúlioCésar sente essamudançanoambientedasfestas.“Antes,nãosemetiadrogasparaandara lixaropessoal”, refere.Júlio recordaumabad trip emque começou a chorar por ver“um gajo chamar preto a umbacano”.“Numafestatranceissonãosevia”,conclui.

Malveira da Serra, Sintra. 4 horas da manhã. Quase duas horas para encontrar o sítio da festa, de tão escondida que estava dos olha-res alheios. A batida acelerada e repetitiva do trance psicadélico invade o ar frio da noite. Junto às tendas de campismo, acenderam--se fogueiras onde se concentram muitos corpos em busca de calor. No dance f loor, o aquecimento faz-se de outra maneira: a dança. À luz proveniente da decoração psicadélica junta-se a da chama dos isqueiros que, de onde em onde, alumiam as actividades da venda ou da partilha de ganza e erva. A mesma chama que derrete a bolota e que depois acende o seu produto final, o charro.Algum tempo depois de chegar à festa, Tiago Filipe confessa que sente “mau ambiente”. “Parece que as pessoas estão a arranjar maneira de lixar os outros”. Mas o importante é curtir, pois a viagem foi longa e a entrada foi 10 euros. Não passou muito tempo até que Júlio César aparecesse a noticiar o acontecido: um miúdo tinha sido espancado e devia ser por causa dos “mitras”, nome pelo qual são conhecidos os vendedores de speed(anfetaminas), e também consumi-dores. É fácil identificá-los: regra geral, envergam um blazer branco, sapatilhas de marca, brincos e anéis e bonés com a pala virada para o lado.7 horas da manhã. Quase duas horas depois do acidente, chega uma ambulância de Alcabideche. Fora-lhe difícil encontrar o cami-nho e agora era difícil passar pela estreita estrada de terra batida, onde os carros tinham estacio-nado ao acaso. Entretanto, passam pessoas a vasculhar debaixo das viaturas, por detrás dos arbus-tos, nos cantos mais improváveis. “Assaltaram um carro, roubaram 300 euros”. Não se conseguiu per-ceber se havia relação com o miúdo espancado. O sol despontava no céu e continuavam a chegar pessoas para a festa.

Uma cUltUra de drogas

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Aindaassim,“comparandoostrêsgrupos,oquetinhaumconsumomaisadequadoeplaneadoeraodotrance”,sublinhaopsicólogo.Associadoaestefactopodeestaro próprio perf il dos trancers : “pessoasmaisde classemédia,comumnívelculturalquecon-sidero elevado, emquemuitossão estudantes universitáriosligadosàáreadashumanísticas(filosofia,belasartes).Etambémmuitagentemaiscontra-cultura,com ideologias de esquerda elibertárias”,conclui.

Que motivações?

“Soucapazderesistiratudo,massóporbrevesinstantes”.LurdesLombarecordaestafrase,queviunumf lyerdeumafestatrance, paraexplicaraprocuradeesti-mulaçãonasdrogas.Segundoadocente,agrandemotivaçãoparao consumo de substâncias nocontextodasfestastrancepareceserafugaàrealidade.VascoGilCaladopartilhadamesmaopi-niãoaopôremdestaqueo“valorutilitário”dasdrogasnumafestatrance.“Elascontribuemparaaviagemsensorial,paraadispersãodossentidos”,explica.Para a psicóloga clínica ClaraAbrantes,“osjovensdehojecon-frontam-se diariamente com anecessidade de ir à escola, detirarboasnotas,docorresponderàs expectativasda família”.Asfestas trance acabamassimporfuncionarcomoum“contrapontoatodoumsentimentodefragili-dade,deincongruênciasocialede insatisfaçãoque a realidadelhestraz”,conclui.

Cla ra Abrantes t raba lha noCentrodeAtendimentoàToxico-dependência(cat)deCoimbrahácercade�4anos.Jáacompanhoucasosde consumidores regula-resde“novasdrogas”, inclusiveno contexto das festas trance, e recorda que habitua lmentelhe descreviam este ambienterecreativo como “uma espéciedeparaísoperdido”.“Aspessoasfalamdasensaçãodetranquili-dadeedepacificaçãointernaquea experiência das festas trancelhesproporciona,equenãopassaobrigatoriamentepeloconsumodasdrogas”,explicaClaraAbran-tes.Apsicóloga acrescentaque“sóofactodeiràfesta,deestarcomdeterminadas pessoas, departicipardeumadeterminadafilosofiadeexistência,jáproduzumefeitotranquilizador”.

Que riscos?

Faceàatitudededespreocupaçãoqueosconsumidoresdas“novasdrogas”assumem,osespecialistasadvogamqueéprecisorejeitaraideiadequesóas“drogasduras”sãoperigosas. “Asdrogas levestêmriscoseperigos”,alertaJoséRelvas. O chefe do serviço dePsiquiatria dos huc avisa quehá riscosdepsicoseassociados,por exemplo, ao consumo dehaxixe,que é consideradoumadrogaleve.“Os consumidores fa lam elesprópriosdos riscosdessasdro-gas:asmásviagens,asbad trips, alucinações,quepodemcausarmedos e depressões”, sublinhaLurdes Lomba, que mencionaaindaoriscodedanoscerebrais,aoníveldamemóriaedascapa-

cidades cognitivas, associadoa esses consumos. Segundo adocente,“daquiaduasdécadas,vamosterosconsultóriosdepsi-quiatriacheiosdepessoasde�0ou40anos compseuso-alzhei-mers, problemas de memória,distúrbios de sono e atenção,causadosporestasdrogas”.ClaraAbrantespõetambémemdestaque a espécie de “monta-nha-russa”queo estilodevidae consumodedrogas ligadoàsfestas trance desencadeia. “Se,porumlado,oconsumodestassubstâncias permite momen-tosde alta, quando se regressaà vida terrena, deixa de haveraquela pacif icação e poder deresistência”, realça apsicóloga.Emcontrapartida,“háumapros-traçãofísicaepsicológicamuitosignificativa,umsentimentodefragilidade,umsonoquepareceque nunca mais se recupera”,explica.ClaraAbrantes chamaainda a atenção para o perigoda idealização que se faz dosmomentos passados em festasousobefeitodedrogas. “Apes-soa sabe que há um local, ouuma situação, emque se senteabsolutamenteplena,ecompararqualquermomentodavidarealcomissoésempreumacompara-çãoqueficaaperder”,conclui.Finalmente,LurdesLombades-tacadoisoutrosriscosassociadosaoconsumodedrogassintéticas.Porum lado, essas substânciaspodemser,paraalgumaspessoas,um motor de arranque para oconsumodeoutrasdrogasquecausam dependência, como acocaínaouaheroína.Poroutro,a sensaçãodeeuforia e adimi-nuiçãodos receios provocadasporessassubstânciaspodemtor-

naraspessoasmaispredispostasa adoptar comportamentos derisco(relaçõessexuaissempro-tecçãoadequada,actosviolentosouirresponsáveis,comoconduzirsobefeitodesubstâncias).

Que prevenção?

AexperiênciaclínicanocatdeCoimbradiz aClaraAbrantesque o conhecimento dos efei-tos das drogas não funcionageralmentecomofactordesmo-bilizador,mesmonosindivíduosqueestãoinformados.Segundoapsicóloga,“istoequivaleadizerque trabalharpreventivamenteneste âmbito, através de cam-panhas informativas, têm umefeito reduzidíssimo, paranãodizernulo”.Fernando Mendes, presidentedo irefreaPortugal (InstitutoEuropeudeInvestigaçãodosFac-toresdeRisconaCriançaenoAdolescente),partilhadamesmaopinião, preferindo substituirumaprevençãopoucofuncionalporuma lógicade “reduçãoderiscos ediminuiçãodedanos”.O ideal é,portanto, “estarnasfestas trance com uma equipaatenta,queaconselhaosconsu-midores:descanse,bebaágua,váatéaochill out[geralmenteumatendaondesedescansaaosomdemúsicamaisrelaxadora]”.OpsicólogoVictorSilvavaimaislonge,considerandoque“jáqueas pessoas vão consumir, queconsumamdeumaformaomaissegurapossível”.Nessesentido,defendeostestesàspastilhas,quepermitemidentificarsubstânciasadulteradas.“Éumaquestãodesaúdepública”,justifica.

Reportagem

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AsorigensdotrancepsicadélicoremontamaGoa,naÍndia.Nosfinaisdosanos60doséculoxx,começaram a chegar à cidadeindiana sucessivos f luxos dejovens ocidenta is, sobretudohippies desiludidos com o f imdalove generationedossonhosdasuacontracultura.À medida que esta geração seestabeleciaemGoa,foicriandouma cultura a lternativa pró-pria,assentenaharmoniacomanaturezaeligadaaumambientemusicalparticularvividoemfes-tas.Énadécadade90queestegéneromusicalfeitonaspraiasdeGoaseencontracomosritmosquereinavamnaEuropa(tecnho, acid house, dub).Nasce,assim,otrancepsicadélico(inicialmentechamadode“GoaTrance”),que,aospoucos,foisendointroduzidonaEuropa.Édoencontroentreacontra-cul-turaocidentaleomisticismodoorientequeresultaaimagemdemarca do trance : um mundocultural exótico e psicadélicocaracterizadopelaalusãoareli-giõesefilosofiasorientais,peladefesada ecologia ede valoresalternativos epela apologiadesubstânciaspsicoactivas expan-sorasdaconsciência.

O Festival Boom

Dedoisemdoisanos,sempreemépocadeluacheia,aHerdadedoTorrão,próximodeIdanha-a--Nova,CasteloBranco,recebeomaiorfestivaldemúsicaelectró-nicanacional,sobretudotrance, oFestivalBoom.Numrecintode cinquenta hectares decora-dos com cores f luorescentes e

motivospsicadélicos,constrói-seuma mini-cidade : parques deestacionamento,sanitários,zonasde duche, tendas, lojas, zonasde convívio e restauração.Nasediçõesmaisrecentes,surgiramoutrasactividades,comocinema,conferências,workshops,galeriasde arte,performances e teatro.Paralelamente,ofestivalentroutambémna rotade sensibiliza-çãoparaaecologia,implantandoalgumaspráticasdesustentabili-dadeecológica.Nestaespéciedeplanetaàparte,emqueéprecisotrocareurospor“dinheiroboom”,o trance tocatoda anoite, e o silêncio só sefazsentirentreas�6he�9h.Acannabis fumadaultrapassa emmuito aquantidadedo tabaco,aomesmotempoquesecomprae vende todoo tipodedrogasilícitas.Aolongodasseisediçõesrealiza-das,oFestivalBoomconstituiu-secomoummarcofundamentalnaevoluçãodotranceemPortugal.Apartirde�997,anodoprimeiroBoom(sóapartirdaediçãode�998équesecomeçouarealizardedoisemdoisanos),o trance propagou-serapidamentee,empoucoanos,afirmou-secomoumdosgénerosdemúsicaelectrónicade dança com mais adeptos eeventosrealizadosanívelnacio-nal.Seem�997oBoomcontouapenas,segundodadosdaorga-nização,comcincomilpessoas,em�006aestimativasobeparaas�5mil, sendo frequentequeonúmerodeestrangeirosultra-passeodevisitantesnacionais.Só na edição do ano passado,passarampeloBoompessoasde6�nacionalidadesdiferentes.

Cannabis

Daplantadacannabis,derivamos seguintes produtos estupe-facientes : a l iamba (tambémconhecida por erva, maconhaou marijuana), o haxixe (queé o derivadoda cannabismaisconsumido em todoomundo)eoóleodehaxixe.A liambaéconstituídapeloaglomeradodaspartes componentes da planta(f lores, folhas, caules tenros,e por vezes sementes) secas emaceradas, que se fumam emmortalhas de papel, mistura-dasounãocomtabacooucomhaxixe(“charro”,“ganza”).Este,por sua vez, é obtido a partirda resinaouda seivadaplantado cânhamo, seca emisturadacom palha, liamba e até comcera,cozidanofornoeprensada.Daí se obtêmblocos ou table-tescomcercademeioquilodepeso,destinados à exportação.Em relação aoóleodehaxixe,é produzido através da resinada planta, misturada com umsolvente, resultandonumóleoespessodecorpretaesverdeada.Éconsumidoenroladoemmor-talhasedepoisfumado.

Alucinogéneos

Entreosalucinogéneos(tambémconhecidosporácidos)deorigemnatural,masquetambémpodemserproduzidosde forma sinté-tica, destacam-se apsilocibinaemescalina.Enquantoestatemorigemnumcacto(existentenaAméricaCentraledoNorte),apsilocibina(queéquimicamentesemelhanteao lsd)temorigemnumcogumelodesignadopsilo-cibo,consideradosagradopelosindígenasdaAméricaCentral.

Os cogumelos mágicos, nomeassociadoa este tipodedroga,sãosubstânciasalucinogéneasoupsicadélicas,quegeralmente seingeremcrus,secos,cozinhadosouemformadechá.Dos alucinogénos sintéticos omais conhecidoéolsd. Intro-duzido no circuito comercia lilícitonadécadade60,tornou--se umadrogamuito emvoganospaísesdaEuropadoNortee Estados Unidos, sobretudoligadoà culturadoshippies. Olsd produz-se, mediante umprocesso sintético, apartirdosfungosquesurgemnaespigadocenteio, sendodepois vendidossobvariadas formas: gelatinas,comprimidos com dimensõesmuitoreduzidasecomdiversosformatosecores,ouautocolantescomdesenhosvariados,ondeadroga vemembebida, e que seconsomemlambendoasfigurasexpostas.Éconsideradoomaispoderoso alucinogéneo conhe-cido.

Ecstasy

Àsemelhançadasoutrasdrogasdesíntese,oecstasy éumderi-vado anfetamínico com umacomposiçãoquímicasemelhanteàdamescalina (alucinogéneo).Assim, o mdm a (inicia is donomequímicodo ecstasy) temacçãoalucinogénea,psicadélicae estimulante. É, geralmente,consumidoporviaoral,emborapossa tambémser injectadoouina lado. Surge em forma depastilhas,comprimidos,barras,cápsulasoupó.Podeapresentardiversos aspectos, tamanhos ecores,deformaatornar-semaisatractivoecomercial.

Um PoUco de História as drogas do trance

Reportagem

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À entrada da Praça AmadeuAugusto dos Santos o cenáriohumano é variado.A f ilaparaasbilheteirasmostraqueatou-radanão temumpúblico-alvo.Compram entradas homens emulheres, idosos e jovens.Paisacompanhamcrianças de colonumaprovade que a tradiçãotauromáquica está assegurada.LuísCastanheira,que trabalhanapraçahá anos, vendebilhe-tes a pobres e ricos, urbanose rurais, aos homens que vêmcoma esposa eos f ilhos, e aoshomensquevêmcomosamigosdaslides.Já comosbilhetes,da empresaBravuraeTradição,Lda.,com-prados,os futuros espectadoresdirigem-se às roulottesparaoscomes e bebes sem os quais afestanãovive.“OBifanão”éoestabelecimento mais concor-rido. Aqui o assador não páraenquantohouvertouros.OGrupodeForcadosAmado-resdaTertúliaTauromáticadoMontijochegaao localquandoainda faltamduashorasparaoinícioda festa.“Háquechegarcedo,beberumcopodevinho,rezaraNossaSenhora…Enfim,preparar a pega”, explica umdos muitos homens de ca lçaspretas justas, sapatosde courocomberloquesecasacasgarridas,bordadas a vermelho, verde eamarelo-ouro.Enquantooshomensdaspegaspassam, um grupo de amigoscomardequemandadepraçaempraçaaépocainteira,expli-

cam uns aos outros porque éque preferem esta tourada “àoutra”, que acontece à mesmahora, noCartaxo. JoséAndré,de64anos,fazpartedogrupo.É um homem encorpado queusasamarraalentejanaepatilhasquelhedescempelorostoatéàalturados lábios,grossos comoosdedosdasmãos.JoãoPontetem54anoseveiodepropósitodeÉvoraparainaugu-rar a épocanoMontijo.Quemovênarua,percebelogoqueéum homem “das lides”. Vestecasacodecourocastanho,calçasdegangaecamisaaosquadradoscoloridos.Deboinanacabeçaecamisadentrodascalças,presasporumcintodepele,Joãohojeveiocomos“amigosdostoiros”,mas tambémcostuma trazer afamília.Osfilhosvêmcomopaiàtourada.“Unsporquequerem,outrosporquesãoobrigados”.QuemtemomesmosanguedeJoãoPonte está fadadopara aslides porque a tourada é umaherança cu ltura l e genét ica .Como d i r i a Á lva ro Guer raquandofalavaemtauromaquia,aaficiónaostoiroséumacoisadefamília,umcasodedinastia.Queméfilhodeumaficionadovaiserpaideumaficionado.Quando são confrontados coma opinião dos que consideramque a tourada não é mais doque um acto de barbaridade,onde os direitos dos animaisnão têm lugar,os amadoresdetauromaquiamudamdetom.Obrilhodeemoçãoquelhesvidra

o olhar quando falamda festabrava transforma-se em brilhoderaiva.João Ponte aconselha quem écontraatourada“avirvercomosprópriosolhosoespectáculolindodostoiros,porqueistonãoénadadoqueelesdizem”.JoséAndréémaisradicalegarante:“eurenegoessagentecomosendoportuguesa, isso é gente quenãosabenada!”.JoséeJoãosãoirmãosnestaluta,têmomesmodiscurso e asmesmasposições.Asseguramqueotoiroéumani-malbravo,umabesta.Garantemqueobichosesentehonradoemlutar contra o homem, com aconvicçãodequemjáouviuumtoirodizeristo.No interior da praça há umacapela. A guarda, Maria Jeró-nimo, assegura que tanto ostoureiroscomoosforcadoseosbandarilheirosvãosemprerezarantesda lide.Pedemprincipal-mente “para f icarbem”.Quemandanestavidanãopensamuitonamorte.Éoriscoqueosmove.Naculturamarialvatemvaloromaiscorajoso,portantoomedodamorte eoperigode enfren-tarotourosãotemastabuparaquemandanaslides.Quandoasportasseabremparareceberosaficionadoscomeçaoespectáculodacor,do som,dopovo.Naarenaentramprimeiroosforcados,seguidospelostou-reirosepeloscampinos,devaranamãoebarreteverdenacabeça.Por fimentramoscavaleiros jáemcimadoscavalos.Atouradaé

umafestafeitademuitasregras,jogosdeforçasehierarquias.Oscavaleiros tiramos chapéuse dão a volta à arena a saudaropúblicoqueos recebe,depé,com uma ovação. Na plateiadois adolescentes avaliamqualocavalomaisbonitodacorrida.Osanimais,comosepercebessema competição secreta,batemaspatasnumsapateadoguiadopeloritmodopasso doble,queseouvedesdeaaberturadoscurros.Aarenaécomoapaletadeumpintor.Astábuassãovermelhasebrancas,aterraéocre.Osfor-cados,assimcomooscavaleiros,podemtertodasascores,desdequesejamfortesegarridascomoafesta:amarelo,vermelho,verde--escuro e azul-turquesa são ascoresquepredominamnosfatos.O rosa, que atrai o touro, e oamarelo,queorepeledoscapotesdostoureiros,sãoasduascoresprincipaisdapintura.Quando os curros se abrem obichodemoraasair,comosesou-besseoqueoespera.Ocavaleiroendireita-se, em cima da sela,para recebero rival.Dequeixoerguido,umamãoagarranaban-darilhaeaoutraé colocadanacintura, sobre as ancas, numapose provocadora. O públicoagita-secomaespera.Dentrodapraçaumminutoparecemdez.Ouvem-seoscoicesqueotoiroatiracontraastábuas,vindosdedentrodocurrosituadoentreosector7eosector5dapraça.Eeisquedotúneldeescuridãosaiemziguezagueotoiropreto.

Com o cavalo entre a s pernas e o s to iro s no coração

DoladodeforadaMonumentaldoMontijocheiraafebrasassadas,coiratos,cervejaebosta.Oscheirosquesemisturamnoarsãotãodiferentescomoaspessoasquesejuntam,àesperadomesmoespectáculo.Dosaltifalantesdeumamotorizadavelha,quecirculaàvoltadapraça,saiumavozdehomemaprometertouros“puros”quevãomostrar“raça,valentiaebravura”.

texto: Martha Mendes

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Com ele, o animal traz senti-mentos ambíguos e incoerentesaquemobservao espectáculo:medo,paixão, emoção, repulsae admiraçãomisturam-senesteinstante.Aofimdedezminutosde corrida a respiração agitadado animal sente-se através dadançadodorso,quesobeedescenummovimentoprovocadopelarespiraçãoofegante.Otouroganhaalgunspontosaocavaleiroquandoroçaoscornospelapernadocavalo,queame-aça cair.O animalque entroubranco às manchas cinzentastem,agora,umanovacor.Ver-melho.Opúblicotemeopioreatira comentáriospara a arena,comoos“treinadoresdebancada”fazemno futebol.Uns roemasunhas, outros emocionam-se.Algunsgritampalavrõeseman-dam sairo cavaleiro.Aplateiapedenovabandarilha, incenti-vando quem está em cima docavaloe,acreditam,incentivandootoiro.Opasso dobleecoamaisumavezeagoraosespectadoresacompanham a melodia compalmas.“Otoironãoinveste,orapaztemdeinsistir!”,gritaumdosentendidosdebancada.Acaba o tempo do cava leiro.Entram os forcados. A pega édedicadaaGonçalodaCâmaraPereira,presenteentreaaudiên-cia. O fadista aceita o barrete

como prova de que recebe aofertaeabraçaoforcado,agra-decido.Atouradaeofadoforamsemprebonsamantes.O toiro é bravo e segundo ocomentário de um espectador“temumaarmaçãomáp’ápega”.O animal vence, pelo menos,trêsforcadosquesaemdapraçaemmacaeinconscientes,masogruponãodesiste.Asmazelassão para quem pega como ascondecoraçõesparaosveteranosdeguerra.Descrevemcadaumadelascomorgulhoepormenor.Se tiveremcicatrizes levantamas camisas paramostrá-las empúblico.Vêemosossospartidoscomo uma prova do seu amor“àarte”.Nofimdalideocavaleirodáavoltadehonraàarenaacompa-nhadoporum toureiro e peloforcado que pegou de caras,ou seja o primeiro da f i la deforcadosnumapega. Senhorasmorenasefemininas,deardis-tinto, vestidas comcasacosdepele e ca lçadas com botas demontar,aplaudemdepéavoltade honra. Nas mãos seguramramosde f lores que atiram aocavaleiroquandoestepassa emfrenteàbancada.Outrasatirampeçasde roupaqueo cavaleirobeijaedevolve.No f im da volta, o cava leirocoloca-se no centro da arena,

onde roda sobre si mesmo debraço erguido, com o chapéunamão,asaudaraplateiaumaúltimavez.Ohomemquegirana arena tem apenas �7 anos.“Ostoirosestão-menosangue,aminhafamíliasempretevetradi-çõestaurinas”,explicaorgulhosoTomásPinto.O segundocavaleirodo espec-táculo é uma mulher. JoanaAndradetambéméjovem.Tem�9 anos e estuda EngenhariaZootécnica.Emcimadocavaloatira gritos ao animal, para oatrair, com uma voz grossa edeterminada. Sentada na sela,Joana evita sermulher porqueconsidera que “ainda é muitodifícilentrarevencernestemudode machos”. Ajeita-se, livre esolta,emcimadocavaloquetementre aspernas, comomesmoà-vontadedos colegasmasculi-nos.Traz o longo cabelo loiroamarradonumapanhadorígidoeotrajequeenvergaéigualaodoshomens.Osúnicosindíciosde feminilidadeque sepermitesão uns brincos de oiro, comardeherançade família, eumligeiro toque de maquilhagemsobre os olhos grandes e bri-lhantes. Para além do sorrisorasgado, de mulher, com quesaúdaaaudiência.Oshomensquevão àpraçahámais tempo, aindadesconfiam

quando vêem uma mulher atourear. “’tás aqui, ‘tás a arre-f in f á- l a s ! Não te a r r i sque stanto!”,gritaumaficionadodaplateianumtomqueJoanasabeque um colega homem jamaisvaiouvir.De tanto arriscar, a cavaleirafalhaumferroedesequilibra-senocavalo.Depoisdoincidente,Joanasaiparatrocardemontadaporque este éummundo feitodefé,mastambémdecrençasesuperstições.O espectácu lo da tourada étransversal ao tempo, às ideo-logiaseàsmodas.Éigualdesdesempre.Talveztenhaconhecidoumaúnicamudança: a entradadasmulheresnaarena.À sa ída da Monumenta l doMontijo está uma pintura naparede,doladodireitodaporta.Opainel éuma réplicadocar-tazdaprimeiraépocarealizadanestapraça,quecomemorouemAgosto o seu cinquentenário.Em �957, a primeira touradada temporadaabria comDavidRibeiro Telles e os preços dosbilhetesvariavamentreos��eos75escudos.Tirandoainflação,atradiçãopermaneceinalterada.Agoraqueafestaacaboujánãocheira a pet iscos e a carvão.Oodorabosta intensificou-se.Respira-sesuoresangue.

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I lustração • Maria Inês Murta, 2007

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J O R N A L I S M O E L I T E R A T U R A

SantiagoNasareHolcomb.Umhomemeumespaçoseparadospormilharesdequilómetros,masvizinhosnodestinotrágicodamorteporassassínio.GarcíaMarquezeTrumanCapotedesenhamatravésdasuaescritavirtuosarostos,comportamentos,pequenascomunidades,atitudesdefinitivas.A"Crónicadeumamorteanunciada"e"Asanguefrio",revisitadasnaspáginasqueseseguem,alimentamadúvida,controversaemuitoantiga,seojornalismopodeserliteraturaumséculoemeiodepoisdeVictorHugoterditoque"nãoexistequalquerincompatibilidadeentreoexactoeopoético".

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JornalismoeLiteratura

Ummistodesensações

sangue frio.Queinterpre-taçãosugereotítulo?AolerestaobradeTrumanCapote,queopróprio designa por “romancenão-ficção”,percebiqueotítulopoderiatertrêsinterpretações.Umadelaséosanguefrioqueoleitorprecisadeter.Adescriçãodoespaçoedosfactosébastantepormenorizadaetransporta-nospara a cenado crime como se,nóspróprios,estivéssemosavivertoda aquela tragédia. QuandoCapotedescrevecomrealminúciaadisposiçãoeestadodoscorposdasvítimasaoseremencontradas,osanguedoleitorgela.Peranteisto,eletorna-separteintegrantedahistóriaereconhece-senumaounoutrapersonagem,oquefazcomqueseenvolvacadavezmaisnatrama.Assim,tambémoleitortemdesejodevingança.A f r ie za da s expressões dosassassinosdeixaqualquerpessoapetrificadae,inclusive,amedron-tadacomoquepoderáviraler,por se tratar de uma históriaverídica,decontornostãohorripi-lantes:“aténasparedeshavemosdedeixar cabelos agarrados”.Éimpossível f icar indiferente àdescrição impressionantequeoautorfaznahoradaexecuçãodoscondenados: “(…) até se ouviro estalidoque fazumacorda aquebrarosossosdopescoço”.

Uma segunda interpretaçãodizrespeito à monstruosidade doassassínio da família Clutter,naque l a mad r u g ad a do d i a�5 de Novembro de �959, emHolcomb,Kansas.AformacomoPerrymatouasquatropessoas,enquanto Dick assistia a tudosemcontestar,mostraumafriezainterior que não lhes permitiaref lectir e,muitomenos,pararcomaquelaatrocidade.Noentanto, aodescobrirmos ahistóriadevidadePerry,háumsentimentode tristezaquenosatravessa enos faz sentir penadaqueleassassinodesprovidodesentimentos.AfamíliaClutterfoioalvoda raivaquePerry tinhade tudo ede todos,pois comoele próprio referiu: “Talvez osClutters estivessemdestinadosapagarpelosoutros”.Aatitudeque mais me surpreendeu emPerry,comaqualeuconcordo,foi o facto de ele assumir quesentia repulsadepessoas comoDick,quenãosesabiamcontro-larsexualmente.Comomulher,impressionou-me a suapronti-dãoemenfrentarDickquandoeste tencionava violar Nancy:“Está bem, mas antes terás deme matar.”. Todavia, é difícilcompreender comoéquePerryimpediuaviolaçãodeNancyeamatouemseguida.

A terceira acepção refere-se aograndeenvolvimentoqueoautormantevecomasfontesdeinfor-mação,osanguefrionecessárioparaouvirospormenoressórdi-dosdos assassinospresentesnaobra e para reconstruir toda ahistória.ÉnotávelcomoCapotedescreve,exaustivamente,todososdetalhes,mesmoosmaissan-grentos e cruéis, fazendo-nos“ver” todo aquele cenário ater-rorizador.Oautoraproximou-se,interessadamente,dosassassinosparaconseguirobterasinforma-çõesnecessárias àproduçãodolivro. Por outro lado, o modocomo conta a vida de Perry, alinguagemutilizada,arevelaçãodospensamentosdaspessoasquecontactaramcomPerry,tudoistoéumatentativaparaotentarmosdesculpabilizarporumcrimequenãotemdesculpapossível.Aconstruçãodotextorevela-sebastanteinteressante,namedidaemquenosvamosapercebendodoque se vaipassando comasvítimasecomosassassinos,tal-vezumamaneiradecontraporaboavidaqueosprimeiros leva-vam e a vida miserável que ossegundosdesprezavam,aumen-tando,assim,oclímaxdahistóriaemantendo-oatéaofim.

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Catarina Ferreira

JornalismoeLiteratura

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JornalismoeLiteratura

Umsanguequeasfixia

morte é o f io condutordetodasashistórias, sejaaquefoicontadaporTrumanCapoteou a história quenós própriosvivemos. Todos sabemos qualvaiseronossofinal,sónãocon-seguimos descortinar é comovamoschegaraessefinal.PoiséissomesmoqueTrumanCapotefazna suaobra,A Sangue Frio.O jornalista norte-americanoleva-nospelamãoaté ao assas-sinatodafamíliaCluttere,maistarde,atéaomomentodamortedos assassinos. Na rea lidade,oque interessanão é sóoqueacontecemas, sobretudo, comoacontece.Para isso,TrumanCapoteusauminstrumentoessencialaqual-quer narrativa, a descrição. Olivrovivedegrandesmomentosdescritivos, que têmumpodervisualizador, permitindo criaroefeitodereale,também,umafunção dilatória, mantendo osuspensedaacção.Assim,Capotecriaumcertosufoco,deixaqueoleitorpercebaoquevaiaconteceredepoisquasequeotorturaatérevelar adescriçãocompletadetodosos factos.Ospormenoresdecada situação são fornecidosapoucoepouco,oquefazcomque a leiturado livro seja feitaempermanenteagonia.Ora, para estamanutençãodosuspense contribui também aestratégia narrativa usada emgrandepartedaobra.Semseguiraordemcronológicadosaconte-

cimentos,TrumanCapote criaduasrealidadesparalelas,quesealternamaolongodanarrativaequeacabamporsecruzar.Porumlado,avidadosassassinos,PerrySmitheDickHickock,poroutrolado,oquotidianodeHolcombnogeraledafamíliaClutteremparticular,quedepoisdocrimedãolugaràdescriçãodoprocessodeinvestigação.Apenasoúltimocapítulodo livro, “O ‘Canto’”,difereligeiramente,umavezqueécentradona longacaminhadadePerryeDickatéàforca.A narração que encontramosao longodaobra éo resultadode um profundo traba lho deinvestigação.Durante4/5anos,TrumanCapotemergulhounapequena a ldeia de Holcomb,perdida no estado do Kansas,comoobjectivodedeslindaroscontornos daquele misteriosoassassinato, que nos primeirostempos dava sinais de ser umcrime perfeito. Para construira história e seguindo uma dasregras do jornalismo, Capoteprocuroufalarcomtodasasfon-tes, que pudessem acrescentaralgodenovoaocaso.Talcomoopróprioautordiznumadecla-raçãoque antecedeo iníciodanarrativa,omaterialdolivro“foicolhidoemrelatosoficiaisouéfrutodeentrevistascompessoasenvolvidasno caso, entrevistasessas na sua maioria bastantedemoradas”.

TrumanCapoterefere-se,então,aestaobracomoum“romancenão-ficção”,colocandonotítuloque se trata deuma “narraçãoverídicadeumquádruploassas-sínio e suas consequências”. Étendoemcontaumanovaformade reportar o real que A San-gue FriopodeseraexpressãodeumNew Journalism,surgidonadécadade60.Nofundo,trata-sede uma obra jornalístico-lite-rária, naqualTrumanCapotetentoumanter-sefielàrealidade,usandoduranteasuaescritaumconjuntode técnicas literárias.Ora,apartirdestaideiasurgemnaturalmente um conjunto dedúvidas.Asdescrições,que emmuitas cenas envolvem ínfimosdetalhes,atéquepontosãoleaisàrealidade?Nãoexistemquais-querfalhasnareconstruçãodosdiálogos? Qual a proximidadecriadacomafontes?Verificamos,assim,quenãoédifícil colocaremcausaaveracidadedequefalaTrumanCapote.Noentanto,A Sangue Friovale,sobretudo, por transcender osfactos que descreve, leva-nosnão só a uma ref lexão sobre ocruzamentode géneros (jorna-lísticoeliterário),mastambéma ref lexões de outra natureza,nomeadamentesobreaviolênciaamericana e sobre a polémicaquestãodapenademorte.Pelas certezas reveladas epelasdúvidassuscitadas,édifícilnãoterminar este livro comumnónagarganta.

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Raquel Carvalho

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JornalismoeLiteratura

Crónicadeumaliteraturaemjeitodejornalismo

Sandra Ferreira

possívelunir jornalismo eliteratura?GabrielGarcíaMár-quezmostraquesim,aindaquefaçaapenasliteratura.Crónica de uma morte anunciadaéumaobradeficção.Dissoparecenãohaverdúvidas.Noentanto,aestóriadeGarcíaMárqueztrans-pirajornalismo.Semdeixardeser(boa)literatura.Vejamos:emCrónica de uma morte anunciadatemosumnarradornãoidentif icado e, aparentemente,imparcial,areconstituirumepi-sódioque sepassouhámaisdevinte anos.Até aqui tudonor-mal.Anovidade équeonossonarradorquebrao suspense logona primeira linha do livro, aoanunciarodesfechodaestória:Santiago Nasar vai morrer. Anovidadenúmerodois,équetudooque sabemos sobre o trágicoincidenteéoquenosérelatadopelaspersonagens.Lembram-sedonarradorqueadivinhaoqueaspersonagenspensamoufazem?Esqueçam.EmCrónica de uma morte anunciada não há lugarparavidentes.

Maspassemosaumbreveresumodo enredo: SantiagoNasar eraumjovemricoesolteiro,aquem,aparentemente,avidaiacorrendobem.Atéqueumdia,depoisdeuma infeliz noite de núpcias,a recém-casadaÂngelaVicarioé devolvida aos pais. Motivo:hámuitoqueameninaVicariotinhaprescindidoda sua casti-dade.Comoseriadeesperar,ospaisdeÂngelaexigemumrostoparaadesgraçada filha.Eéaíque entra onomede SantiagoNasar.Ora,Nasarnão sonhava ver-seenvolvidonestedramafamiliar,atéporque,tudoindica,nãofoieleoculpadopelatempestadequeseabateusobreafamíliaVicario.Porisso,ojovemiafazendoasuavidanormal,enquantoosirmãosdeÂngela planeavammatá-lo.A ironia da estória, é que, defacto,nãopoderiahavermortemaisanunciadadoqueesta.Derepente, toda agente sabiaqueSantigoNasariamorrer.Todos,exceptoopróprioNasar.

Eé aíque reside, afinal,o sus-pensedaobradeMárquez.ComtantagenteapardodestinodeNasar,começaaserdifícilacre-ditarqueninguémfaçanadaparaimpediratragédia.Alémdisso,páginaapóspágina,overdadeiroculpadopeladesonradeVicarioteimaemnãoaparecer.Anarrativavai-sedesenvolvendoaumritmoalucinante.Surgempersonagensemaispersonagens(ou deveríamos chamar-lhes“fontes”?),que, aospoucosnosvãopermitindo reconstituir osacontecimentosdasúltimashorasdevidadeNasar.Eonarradorlimita-se a inserir as palavrasdas (muitas) personagens, semguardarespaçoparadivagaçõesou juízosdevalor.Comosedeumverdadeirojornalistasetra-tasse.Depois,háoGarcíaMárquezdocostume:textosenvolventes,por-menorzinhos sociaisdeliciosos,personagens bem caracteriza-das,cenascaricatas.Masa issoos leitoresdeMárquez já estãohabituados.

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Elogioaovulgareaoabsurdo

álivrosquecheiramassim,alivro.Cheiramapapelbrancoqueninguémdesfolhou,à tintadasletrassalpicadaspelaspáginasqueaquiealisurgemaindacola-das.Háoutroslivrosquetambémcheiramalivro,masalivrovelho.Cheiramàsfolhasamarelas,algu-mas carcomidas nas bordas, eao fedorbolorentodas estantesondehámuitoforamsepultados,esperandoocompradorquenãovinha.Ehálivros,poucos,comoCrónica de uma Morte Anunciada,deGabrielGarcíaMárquez,quecheiramatudo.Esabematudo.Emostramtudo.Hálivrosquesãosóisso,livros.Há outros que pretendem sertelas, emvão.Eoutrosnão sãomais que papel e letras empi-lhados ao sabor de mãos e dedesejos.MasolivrodeMárquezépautadeumasinfoniaquecantaaessênciadasgentesedascoisas.O refrão éumcrime, tambori-ladoininterruptamenteatéatintaestacar.Easnotas sãoasvozesqueoecoamedesenham,amal-gamadasnumhinoaovulgar eaoabsurdo.A matéria-prima que fabrica ahistória é amesmaque insuf la

cantosdejornaisquenadapre-encheu. É comum e grosseira,mastemoodordahumanidade.Cheira a nós, aos corpos e àsconsciênciasqueseespreguiçamperante a evidênciaquenão sequerolhar.O crimeque o livro esfarela éridículo. As letras metamor-foseiam-se nas entranhas quependemsobreocadáveradiado.Etransformam-seempelereta-lhadapelamétricadas facadasedodever.E aspalavras sãooincessanteesbracejardosautoresdoquadromacabro,debatendo--se contra a inevitabilidadedoderradeiroacto.Easfrasessomosnós,perpetuamentemergulhadosnojogodoquefazemos,doquedeveserfeitoedaquiloquenãoéumacoisa,neméoutra,masquecingeonossoquerer.NestaCrónica,grita-seaesqui-zofreniasurdadasociedadeedasuamiríadede regrasomnipre-sentes e antagónicas, parasitasda vontade.Apregoa-se a fata-lidade, que se desembaraça deumemaranhadode intençõesedepotencialidades.Seháhistóriasquetêminícioefim,estaéentãoumasemi-recta

aocontrário.Temdesfecho,masnão principia: o culminar é oseucomeçoeasuaexistência.Eenquantoo leitor sebanqueteiacom a f luidez da composição,sobre ele se debruça continua-mente o e spec t ro do f i na lanunciado.Comoperigo(ouaaventura?)de, subitamente, seracometidoporumaepifania: ade se tornarnumdaquelesquesoubedocrime,masquenãoquisacreditar, folheandoaspáginasembuscadeumaalternativa.Hálivrosquesedão,outrosquesugam.Esteédossegundos.Nelea trivialidade torna-semúsica.Ohomicídioquerlavarahonradeumanoivamaculada,masosassassinos não. Todos sabem,porém,todosenjeitamanotícia.Sóovisadopermanece sobumasfixiantehalodeignorância.Apovoaçãochoca-secomamorteanunciada,todavia,ospreceitosdatradiçãoreclamam-na.Há livros que são monólogos.Outrosnão.E esta Crónica de uma Morte Anunciada não ésenão um diálogo cantado dasociedadeconsigomesma,numapelejaparaexorcizarassuasincoe-rênciaseassuasfrustrações.Semmoral.

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Catarina Prelhaz

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blocodenotas

mediaediálogointercultural:opapeldaeducação

Clara Almeida Santos

Qual o papel dos media na promoção do diálogo intercultural?

Estafoiaperguntafundamentalaque,durantedoisdias,jornalistaseinvestigadores,membrosdeongeresponsáveispolíticosprocura-ramrespondernoâmbitodoencontroMediaediálogointercultural,quetevelugarnasededoConselhodaEuropaemParis,emJunhopassado.Oobjectivodoencontrofoireunircontributosparaadiscussãopública,naalturanasuarectafinal,anterioràredacçãofinaldoLivroBrancosobreDiálogoIntercultural.

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Otemaéquente:�007foioanoeuropeudaigualdadedeoportuni-dadesparatodos,�008éododiálogointercultural,umdostemasfortesdaagendadapresidênciaportuguesadaue,queterminounofinalde�007efoiprecisamenteainterculturalidade,nomeadamentenasuarelaçãocomasmigraçõesinternacionais.

Odiálogointercultural,conformeapresentadonoLivroBranco,éconfiguradoemcincodimensõesessenciais:agestãodemocráticadadiversidade,aeducação–formaleinformal–paraascompetênciasinterculturais,oreforçodacidadaniaeuropeiaedainteracçãoentreminoriasemaiorias,acriaçãodeespaçosdediálogointerculturaleoseudesenvolvimentonasrelaçõesinternacionais.

Poder-se-ádizerqueaactuaçãodosmediapoderáterrepercussõesemtodasasáreasdescritas,separtirmosdopressupostodequeestesseconstituemcomointermediáriosentretodososactoresemcenanopalcodainterculturalidade.

Existem,narealidade,jáváriasrecomendações,dispersasporumasériededocumentos,quepretendemorientarosmediaparaafaci-litaçãododiálogo intercultural.Algumasdasqueforamtidasemconsideraçãopara a elaboraçãodedocumentosprévios aoLivroBrancoafirmamprincípiosfundamentaiscomo:• promoçãopelosmediadeumaculturadetolerância;• condenaçãode todas as formasde“discursodeódio” (racismo,

xenofobia,anti-semitismo,etc.);• circulaçãotransfronteiriçadeproduçõesaudiovisuais;• promoçãodopluralismonosmedia,sobretudoatravésdosserviços

públicosderadiodifusão;• promoçãodadiversidadedeexpressõesculturais;• utilizaçãouniversaldenovosserviçosdecomunicaçãoeinforma-

ção;• protecçãodosutilizadorescontraciberconteúdosilegaisoudano-

sos;• missãodoserviçopúblicodepromoveracoesãonacionalintegrando

comunidades,grupossociaisegerações;• desenvolvimentodeumterrenoondepossamgrassarmedianovos,

dotipolocal,comunitário,social;• fomento,porpartedoserviçopúblico,daacessibilidadedecon-

teúdosemnovasplataformas;• promoçãodocontributodemocráticoesocialdadifusãodigital.

Dos princípios às práticas

Enunciadas estasboas intenções, cumpriu ao grupode trabalhoreunido tentar encontrar fórmulaspráticasdeasmaterializar.Aofimdosdoisdiasdetrabalhofoielaboradoumdocumentoemqueseapresentaramalgumaspropostasconcretas.Noâmbitodaeducação,consideradapelospresentescomoprioritária,entendeu-seque a formaçãode futuros jornalistaspara adiversi-dadeseriaessencial.Masnãosó.Osjornalistasnoactivodeveriamtambémsercontempladosnaeducaçãoparaadiversidade.Assim,dever-se-iampromoveracçõesdeformação,nasuniversidadesenosinstitutos,mastambémnasempresasdemedia.Parapotenciarestaaprendizagem,umadassugestõesapresentadasfoiaorganizaçãode

intercâmbiosentretrabalhadoresdemediaditosmainstream(gene-ralistasnosconteúdosedirigidosàpopulaçãoemgeral)edemediadadiversidade.Estecontactoestimulariaoconhecimentorecíproco,não sóaoníveldas identidades individuaismas tambémaoníveldaspráticasprofissionais.A educaçãoparaosmedia foi tambémcontemplada,tendoospresentesidentificadocomoalvoosestudanteseasongquelidamcompotenciaisactoresdenovosmedia.Aonívelda regulamentação, foram sugeridas algumasmedidas atomar, taiscomoacriaçãodeumorganismoindependenteencar-reguedeanalisaraformacomoosmedialidamcomtemasligadosaointercultural.Essaentidadeteriatambémcomomissãoestudara composiçãodas redacçõesdosórgãosde comunicação social eavaliaroimpactodasacçõeslevadasacabo.

A realização de estudos de recepção e de práticas de consumoseria tambémimportante,namedidaemquepoderiamostraraosprodutoresdaindústriamediáticaemquemedidaasváriascomuni-dadesseconstituemtambémcomoconsumidorescomnecessidadesespecíficas.

Osconteúdosforamtambémobjectodaatençãodogrupodetrabalho.Aesterespeito,umadasprioridadesseriacriarumaplataformanaInternetparaquepudessemocorrertrocasdecompetências,produtosemarketing entremediadadiversidade.Esta acçãopoderia con-duziràrealizaçãodeumdosprincípiosmuitoouvidosnareunião:mostraradiversidadedadiversidade.Umoutrotipodeplataformaseria importantepara reuniroutro tipodedados, comoqueixas,discussãoacercadeboasemáspráticasjornalísticas,questõeséticas,etambéminformaçãorelativaàáreacomercialque,comojásepodeinferir,foiconsideradacomoessencial.

Aprofissionalizaçãodosmediadadiversidadeseriaumadasprincipaismetasdasváriaspropostas.Paraquetalsejapossível,umamedidanecessáriaseriacriarumfundodeapoioaosmedia,nomeadamenteparafinanciaroarranquedeprojectosquedeveriamtornar-seeco-nomicamenteviáveis.

Emresumo,para tornaradiversidadenumarealidadenosmedia,dandomaterialidadeaoprojectointercultural,aeducaçãodosfuturosjornalistasconstitui-secomoessencial.Essaeducaçãodeveincidirnão sónos conteúdos eboaspráticasda informação aproduzir,mastambémnaconsideraçãodenovospúblicos,novasaudiências,novos suportes.Educação tambémpara conseguirorganizarpro-jectos sustentáveis a todososníveis epara conseguir alavancá-loseconomicamente.

A educação formal e não formal são essenciais para o diálogointerculturalefectivo,nassalasdeaula,mastambémemacçõesdeformaçãoforadelaeatravésdapromoçãodocontactoentreaspessoasafimdepromoveroencontroentretodasasfacetasdadiversidade.Auniversidadeélocalprivilegiadoparatrilharcaminhosquelevemaumasociedademaispluralemaisdiversa,ref lectidaeampliadapelosprofissionaisdosmedia.

Maisinformaçõesem:http://www.coe.int/t/dg4/intercultural/whitepaper_EN.asp

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Prinefoimarinenofinaldosanosoitenta,estevenaprimeiraguerradoGolfo,depoistornou-serepórterdeguerraecobriuumasériedeconf litos,principalmenteemÁfrica.Noanopassado,eapesardesercontraaguerra,sentiuodeverpatrióticoeaceitouvoltaraserincorporado.RegressouaoIraquecomomilitar:«fiqueisurpreendidoquandome chamaramporque sempre tiveuma relaçãobastanteproblemática comoPentágono, sempredivergimosnuma sériedeassuntos».Pudera.Prineficouconhecidoanívelnacional,enãosó,por ter investigadoa faltade segurançadas instalaçõesnuclearesnorte-americanas.Pôsanucomoseriamaisdoquepossível e atéfácil um atentado terrorista de consequências catastróf icas.Empontos-chave,pretensasfortificaçõesdesupostasegurançamáxima,emépocadelutacontraoterrorismoglobal,orepórterconseguiuentrarocultoedeixourecadosdogénero:«estiveaqui,contactem--meparaonúmerotal».Incorporadodenovonoexércitonorte-americano,acabouporirpararaoIraque:«estiveláoitomeses,pertodeFallujah,naverdadeeraaregiãomaisviolentadopaís,atrabalharcomoexércitoiraquiano.Houvediasde combatemuito intenso»,mas reconheceque semaviolênciadeconf litosquecobriucomo jornalista emÁfrica.Asguerrasesquecidasdasluzesdomundoedaespumadosdias.CarlPrine temsobreaguerrano Iraqueumavisãoqueconsideraser aquelaquemuitos americanospartilham: «tenho sentimentoscontraditóriossobreaguerra;porumlado,livrámo-nosdeSaddamHusseinqueeraumdéspotahorrível,poroutrolado,questionasalegitimidadedeestaresali».Parasemearademocracia?«Mascomo,senãoestamosaajudarosiraquianos,antesatentarimporummodelo?Eamaioriadospaísesdomundonãosãodemocráticos,parece-meumbocadohipócrita».E,peranteoquefoidivulgadodepoisdaocupaçãodo Iraque,CarlPrinepõeodedona ferida consciêncianacional:«comoéquepensamquenos sentimosquandoouvimos,vemoselemosoqueaconteceuemAbuGrahib,nabase aéreadeBagramouemGuantanamo?Osamericanosgostamdeser lembradosporfazerembemàspessoasenãoporpraticaratortura»,nãoporestesacontecimentosque «põememcausaosvaloresquedefendemos».

OrepórterdeumdosmaioresdiáriosdoestadodaPensilvânianãoacredita«numavitóriamilitarnoIraque,umavitóriapolíticaseriapossível,nãoumavitóriamilitar»,admitindoquearetiradagradualdastropasseriaomelhorafazer.Háumdiaqueojornalistanãoesquecerátãocedo:«��deMarço.Saímosnumapatrulhadeseisefiqueisemtrêsdoshomens,entremortos e feridos com gravidade. Fomos atingidos por bombasartesanaiseatacadoscommetralhadoraspelos insurgents, tivemosquetomardeassaltoaposiçãoinimiga.Perdiumbomamigonessedia,outroficouferidoesofredestressepós-traumáticodeguerraenuncamaisseráomesmo.Nuncamais».Paraalémdasmarcasnamemóriaquevãocertamenteperdurar,ojornalistaamericanotemmarcasnocorpo:«fuiatingidocincovezes.Aindaestouarecuperardealgunsferimentos.Etenhotrauma».Surpreendidoechocadocomafaltadeconhecimentodaculturalocalqueosseuscamaradasdearmasdenotavamnoteatrodasoperações,parautilizaralinguagemmilitar (sempre tão codificada e carregadade siglasqueobrigamo jornalista, especialmenteode rádio, a trocarpormiúdos comelevadafrequência),CarlPrinedáumexemplodecomo,apesardopatriotismoousobretudoporcausadele,osamericanosnãodeveriamesquecerosvaloresmorais…mesmonaguerra: «estavaaguardarumpreso,um sniper que tinhamortovários americanos e falavacomele emárabe.Eosmeus colegasnãocompreendiamcomoéqueeuopodiafazer.Apesardenãofumar,conseguiaarranjar-lhecigarros,deixava-oouvira bbcqueelegostavabastante.Nãoéramosamigos,masconseguiafalarcomele,comohomemdeguerra.Eissoperturbavabastanteosmeuscamaradasamericanos,especialmenteporque eu até sou judeu. Mas não podemos esquecer os nossosvalores.Mesmoquesejaalguémquetenhamatadoosteusamigos,podessemprefalarcomeleetratá-lobem».Exemplodeintegridadeenquantocidadãodomundo,defensordapaz apesardepatriota,jornalistaquequestiona,ref lecte,duvida,investiga,Prineterminaa conversa comumprofundo lamento: «perdi amigosno Iraque,tantoamericanoscomoiraquianos».

trataroinimigocomrespeito(comoumjornalistapodesermilitarsemdeixardeserrepórteremuitomenoscidadão)

Ricardo Alexandre

Comasecretáriacheiadepapelada,«estavamesmoaquiaarrumarunspapéis»,masentusiasmadocomatentativa–algomuitocarac-terísticoenãomenosutópiconaprofissão–deorganizarasuamesadetrabalho,falacomatranquilidadedosquesabemquearazão,omérito,oreconhecimentoentreospares,nãoestãosubmetidosàlógicadoaltovolumeedasfraseschocantes.CarlPrineérepórterdeinvestigaçãodoPittsburgh Tribune Reviewerecebe-menaminhatemporáriaqualidadedebolseirodoGerman Marshall Fund of the United States,umaorganizaçãonão-governamentalamericanaquepromoveacooperaçãotransatlântica.

JornalismoeLiteratura

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cadernosdejornalismo 01 �7JornalismoeLiteratura

IRvING PENN

Duas Guedras, Goulimine, Marrocos, 1971

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�8 cadernosdejornalismo 01

Best OfUmlugarmarcadoparaomelhor

dainvestigaçãoacadémicadealunos.

Apartirderelatóriosdeestágio,

detrabalhosdesemináriooudeoutros

quevenhamasurgir.

Comtempoeespaço.

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jERRy UELSMANN

sem título, 1964

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40 cadernosdejornalismo 01

Aindabemqueesterelatórionãoé uma notícia, porque, se fos-se, não saberia como começar.Tambémseiquenãoéumdiário.Nãoposso,porém,dedeixardeabrircomalgumasconsideraçõespuramentepessoaisquenemseibem se interessarão a mais al-guém. Fiz estágio no Público,umdiáriodereferênciafundadohá�6anos.O Público tem duas redacções:umaemLisboaeoutranoPorto,mas eu acabeipor fazer estágionumadelegação.Fi-lonadelega-çãodeCoimbraeobalançodesseperíodo é claramente positivo:esforcei-me,mostrei-me sempredisponível, fartei-me de escre-ver,errei,fuicorrigida,aprendi.Trabalheiepubliqueiartigosqua-setodososdias.Devodizerquetivemuitasdúvi-dasquandosetratoudeescolherolocalparafazerestágio.Aminhamédiadecursopermitia-me teressasdúvidas, tinhaboasnotas,porisso,podiaescolher.Confessoque,noprincípio,mesentiaatraí-daporLisboa.Aideiadeirparaacidadeondequasetodasascoisas

acontecemedefazerjornalismona cidade onde quase todas ascoisassedecidemeramuitoali-ciante.Porém, à medida que fui con-versando compessoas domeio– jornalistas eprofessores– co-mecei a ver amesma realidadesobmaisdoqueumaperspectiva,como,deresto,eladevesempreserencarada.CertamentequeumestágioemLisboa,numagranderedacção, também tem as suasvantagens,masumestágionumadelegação, comoadeCoimbra,temoutras.Tendoemcontaqueestamosafalardeestágio–deumperíododeaprendizagem–umadelegação tem desde logo umaenormevantagem:escreve-sedetudo, sobre tudo,para todas assecções.Naalturaemqueestamosaaprender,éumaoportunidadefantástica.Porisso,achoqueaminhaexperi-ênciafoibastanteenriquecedora.Porque fiz de tudo um pouco,de reportagens a reuniões deCâmara…AprimeiravezquefuifazerumareuniãodeCâmara,fuiacompa-nhadapelaGraçaBarbosaRibeiro(jornalistadoPúblicoquetraba-lhanadelegaçãodeCoimbra)aquem só tenho que agradecer,por muitas coisas. Porque foiincansável.Corrigia-me textos,dava-meconselhos,preocupava-seemdar-metrabalhoparaasmãos,entremuitasoutrascoisas.Oam-bientenadelegaçãodeCoimbraé,deresto,óptimo:trabalha-se,mastambémseconvive.

Portersidotãoricoomeuestá-gio,profissionalehumanamentefalando,équemefoitãodifícilescrever este relatório. Por teraprendido com jornalistasmaisexperientes,porterescritotanto,foi-me complicado escolher osmomentosmaismarcantesdestaetapaprofissionaldaminhavida,apenasoinício.Decidi,então,realizarumtraba-lhomaisamplonoseumodelo,que me permitisse simultanea-mentedebruçar-mesobreumououtrocasoespecíficoquemarcouomeuestágioesobreojornalis-moemgeral.Devo confessar, ainda, que háoutra razão que esteve na basedaescolhapelomodelo seguidonesterelatório–maisummodelode reflexão sobreo jornalismo,em jeitode crónica e partindodaminhaexperiênciapessoal–eque se prende com a distânciaqueseparouodiadofimdomeuestágio com o da escrita destetrabalho.ComeceiaestagiarnoPúblicoemOutubrode�004.EmJaneirode�005,deveriateracabadooestá-giocurricular.Prolonguei-omaisummês.EmFevereirode�005,maisconcretamentenodia�deFevereirode�005,acabou,então,omeuestágio.Nessemesmodia,abrifichadecolaboraçãocomojornalecontinueiatrabalharnor-malmente.Nãonoteidiferença,nãopareiemnenhummomento.Aúnicadiferençatraduzia-senopagamentopelosmeustrabalhos.Otempo,otrabalho,adedicação,

Uma fusão

Relatório de Estágio

realizado na delegação

de Coimbra do

Público.

Orientado por

João Figueira

e Graça Barbosa Ribeiro.

Géneros e Secções

Maria João Lopes

“Não deixes de te interrogar,de perguntar aos outros.Não tenhas vergonha de reconhecera tua ignorânciase tratas de acumular conhecimentos”

JuanLuísCébrianCartas a um jovem Jornalista

Bestof

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tudo isso semanteve.Nodia4deFevereirode�005, estava atrabalhar normalmente. E atéhojenãoparei.Sendo o mais sincera possívelnesterelatório,tenhoqueadmitirqueestetrabalhoparaconcluiralicenciatura foi sendo,por isso,adiado.Chegavaa casa ànoite,anotavaalgumasideiasnocom-putador,recortavaalgunsartigosdojornal,masfaltava-mesempreofôlegoparalevaresterelatórioatéaofim,deformaorganizadaesistematizada.Sóoconseguifazernasprimeirasquefériasquetive.Apenasquandopude sentar-mealgunsdiasseguidosemfrenteaocomputadoréqueconseguiescre-verumcapítuloatrásdooutro.Nestaaltura,porém,muitasdaspequenas memórias que tinhaguardadodomeuestágiojánãofaziam tanto sentido, tinhade-corridomuitotempodesdeentão–nofundo,jáestouatrabalharháquasetrêsanos,nofundo,jánãoéamesmamãocomquatromeses de experiência que, emFevereiro de �005, deveria terescritoestetrabalho.Assim,dividiorelatórioemcincocapítulos:Jornalismo:umanovae diferente rotina; Jornalista atempo inteiro; “Um jornalistadeveria,pois,chamar-seum‘ins-tanteísta’ouum‘imediatista’”;Aresponsabilidadedeseserjorna-lista; Informar emconsciência.Em cada um deles tentei uti-lizar a minha experiência parareflectir sobrequestões teóricasrelacionadas com a actividadejornalística.

Jornalismo: uma novae diferente rotina

Sóquandoinicieioestágioéqueme apercebi do espaço que osbloguesconquistaram,noespaçopúblico, nos últimos tempos.Não tinha real consciência dopesoqueosbloguesocupamnaactual sociedadeda informaçãoe da comunicação até ter co-meçadoa trabalhar.Osbloguestransformaram o jornalismo,transformaram os hábitos e asrotinasdoprópriomeio.Podemnãoserjornalismo,euachoquenão são,masadiscussãoacercadestepontoespecíficojáselevan-tou.Sejacomofor,mexemcomojornalismoecomosleitoresdeumaformageral.Pessoalmente, gosto de blo-gues.Masnãogostodebloguesanónimosnemde comentáriosanónimos.Consideroque,muitasvezes–ou algumas vezes– emvezdefomentaremacidadania,a intervenção, a crítica e o co-nhecimento,fomentamaintrigaeoboato.Refiro-me sobretudoacomentários/bloguesanónimosque dizem respeito a questõespolíticas enão tanto abloguespessoais.Digoemcimaqueconsideroquenão é jornalismo o que fazem– embora a discussão já estejahoje em dia lançada – porquedesdelogo,muitasvezes,nãoháqualquer verificaçãodos factosehámuitaespeculação.Sóque,apesardetudoisso,mexemcomaesferadaopiniãopúblicaees-

crutinamoquesefaznosjornais,oquejáéumagrandemudançanostemposquecorrem.Hojeainformaçãocirculaaumatal velocidadeque a velha fór-mula segundo a qual “a rádioanuncia, a televisãomostra eojornalexplica”parecenãofazeromesmosentido.Hojeoscomen-tadoresqueescrevemnosjornaistêmblogues,hojeoonline podeanunciaremostrarepôros lei-toresadiscutirosassuntos,tudonomesmodia.Hoje,osleitorespodemaliásabordarospróprioscomentadoresnosblogues.Apropósitodeblogues, trans-crevo aqui umexcertodeumaentrevista aCarlosLeone, quefoi publicadana revista 6ª, noDiário de Notícias,nodia�8deAgostode�006.CarlosLeoneélicenciado emFilosofia e dou-torado em História das Ideiaspe la Univers idade Nova deLisboa. Manteve colaboraçõesnaimprensa,emjornaiscomooExpresso eoDiário de Notícias, emrevistascomoaLer enositeCiberkiosk. ÉdirectordarevistaPrelo.Tradutor,professor,críticoliterário,publicouvários livros.Aentrevistatevecomomotivoasuadissertaçãodedoutoramento,Portugal Extemporâneo. “Acríticanãomorreu.Oqueperdeufoiarelevânciaque temnumasocie-dademoderna. Isto é, a críticatornou-seumdiscursomarginal.No sentidodemarginália:umacoisaescritaàmargem.Efaz-sehoje mais nos blogues do quepropriamentenaimprensa.(…)

Nãomudeideopinião relativa-mente aosblogues.Achoque amodadosblogues,queestavanoseuaugequandoeuescrevi isto(em�00�), reproduziu sobumnovoformatomuitosdospioresvíciosanti-críticos.Ocomentárioanónimo,acanalhice,amentira.OEsplanar veda àpartida isso.Alininguémmeteumcomentárioanónimoporquenãoépossível.Aliescrevecomonomeporbai-xo.Éanegaçãodaquiloqueeudescrevono livro relativamenteaos blogues. Quando disse hábocadoqueacríticahoje se fazmaisnos blogues, é porqueháumaliberdadequeéumaliber-dademuitoimportantenacrítica,queéa liberdadedeedição.Eunãomudodeopiniãonoessen-cial,nãodigoque tenhade serassim.Hábloguesquenão sãoassimeeuesperoquehajacadavezmais.”Como já disse atrás, gosto deblogues.Achoque contribuemparaodebatepúblicoemmuitosaspectos,mascomportamriscos,claro.Háo riscodoboato, dadifamação,da “canalhice”.Masnãoosencarocomdesconfiança.Nemacredito,oudefendo,quesedevavoltarascostasaodesa-fio,aindaqueeletenhatantodeincómodo comode fascinante.Asnovastecnologias–etudooqueelaspermitem–revoluciona-ramaformacomolemos,comoestudamos, como escrevemos,comofazemosjornalismo,comoaprendemos,comopesquisamos.Revolucionaram toda a esfera

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públicae,mesmo,privada.Aindaa este propósito, e na mesmarevista,encontreiumaentrevistaaohistoriadorRuiTavares quetambémtranscrevo.“Nãohánadadeintrinsecamentedissonante entreo intelectual eos media, bem pelo contrário.Entre as sucessivas declinaçõeshistóricasquefoitendoafigurado intelectual (como erudito,filósofo,pensador,professor,pes-quisador,etc.)conta-seadeserum intermediáriodeopinião econhecimento.Seruminterme-diáriodeopinião,ouseja,estarnomeio,– entre asdisciplinas,entreosseuscontemporâneosouconcidadãos, entre instituiçõese indivíduos – exige familiari-dadeecompreensãodosmedia.Sempre foiassim:aaltivezcomque alguns intelectuais tratamhojeosmass mediaouosnovosmedia não seriam entendidasporMontesquieueVoltaire,quetratavamo romance e o teatroportu,emuitomenospelosin-telectuaisdo século xix no seufulgurantecasodeamorpelaim-prensa(quefazlembrar,emcertamedida, o sucessodos bloguesnopanoramaactual).Deveantesdizer-sequeadimensãomediáticacompletaoucumpreplenamenteointelectual,convertendo-oemintelectualpúblico.”Osbloguespermitiram,écerto,queos especialistas,ouopinion makers, seaproximassemdopú-blico emgeral.Tornaram tudomais íntimo,mais rápido,maisfácil,mais acessível.Masoquerealmenteimpressionaéofactodeos blogues terempermitidoquemuitagentetivesseopiniãosobremuitacoisa.Emtudo,háaspectosbonsemaus.Serátalvezdemasiadocedoparajulgarestaera,masjánãoaimaginodeoutraformae intriga-me, espanta-mee fascina-me ouvir jornalistasmaisvelhosfalaremdostemposemqueoofíciosefaziasemeste“admirávelmundonovo”.Oemailéapenasmaisumexem-plo.O editordoLocalCentroestánoPorto.Todososdiaslhe

mandamos inúmeros textos,sempreporemail. Umavez,lem-bro-medequefaltouaInternetduranteaproximadamentemeia-hora na delegação. Foi o caos.Parasermaiscorrecta,nãofoiocaos,porqueaindaeram�6h00ou�7h00,mas entrámos todosempânico.Apropósitodoemail, transcrevoumexcertodo livro“CartasaumJovemJornalista”,deJuanLuísCébrian,acercadoaparecimentodestanovatecnolo-giaque,nofundo,parecetambémterrecuperadoumcertopassadoperdido. “O aparecimento dotelefone e a sua extensãoquaseuniversal ameaçaram, duranteumcertotempo,asobrevivênciadogéneroepistolar,querecuperaagoraespectacularmentegraçasaocorreioelectrónico.Esteé,nãohádúvida,umdos contributosdaciberculturaparaomelhoramentodanossaqualidadedevida.”A Internet veio revolucionartudo, até as relações de traba-lho. Hoje falo com colegas detrabalho por Messenger, todososdias.Sãocolegasde trabalhoquenuncavie,noentanto,falocomelesesobreelescomosedefactoosconhecesse.Atéacabamosporfalardecoisasqueultrapas-samamera esferaprofissional,masnuncaosvi.Vivemosnummundo diferente: mais veloz eeventualmentemais eficaz,masvirtualemmuitosaspectos.Efoiumsalto,umsaltorevolu-cionário,dadoempoucotempo.VejamosoqueJuanLuísCébrianescreveu,hámenosde�0anos,e o que já mudou entretanto:“Outrosanunciamque,tambémdentrodenãomuito tempo, àmedida que avancem as inves-tigações sobreomelhoramentodos ecrãs de cristal líquido, oscomputadores poderão ser fa-bricados com material flexívele relativamente pouco pesado.Nãoexcluemapossibilidadedequenospossamosmeternacamacom um computador, como ofazemosagoracomumlivroouum jornal, e realizarnomesmotodootipodeoperações–desde

ler a escrever,passandoporverumfilme.Aminhaignorânciaéabsolutaaesterespeito,eaceitosemdiscussão todas as grandesantevisõesquenospropõeatéc-nica.Mascontinuoapensarqueexistirãobarreiras fundamentaisqueimpeçamasubstituiçãodasfunções muito diversas que ojornalaindacumpre.Negroponteinsistenanecessidadedequeoscomputadoresdofutu-rosejamsensíveise interactivoscomtodosossentidoshumanos.Istoéalgoqueosdiáriosvêmafazerjádesdeasuafundação.Ojornalnão só se lê, senãoqueéumobjectosingular,quesetocaesecheira–demomentonãoseouveexceptosealguémolêporeparanós.Aimportânciadotáctilnacomunicaçãodosdiáriospassacom frequência despercebida.Contudo, o formato, a quali-dadedopapel, e asmarcasqueasuatintadeixeestarãosempreentre asmotivaçõesde compradoleitor.”Quantasvezesnãolevámosjáocomputadorparaacama,paraverfilmes,porexemplo?Eandamossemprecomoportátilàscostas,paraondequerquevamoseatéficamosnervosossenosdesloca-mosdurantemuitosdiasparaumsítioondenãoháInternet.Pessoalmente, sinto-mealheada,sintoquepodeaconteceralgumacoisa e preciso de ter Internetali,àmãodesemear.Nãoposso,porém,deixardeconcordarcomJuanLuísCébriannoqueserefereaoprazerde folhearum jornal.Vejo filmesno computadornacama, levoo computadorparatodoolado,escrevonele,econ-sultobloguesesitestodososdias.Masissonãosubstituioprazerdelerojornal.OpróprioCébrianoanteviu,epressentiu, quando escreveu olivro:“(…)Passarámuitotempoantesdequeestapossasubstituirafacilidadedeleituradeumjor-nal–desdeosimplesfolheardomesmoatéàimersãonosartigosdefundo–acapacidadedeirevirsobreassuaspáginas,deama-

chucá-lasoudeproteger-secomelasdosol.Eestasvantagens,ain-daqueaparentementemínimas,continuarão a ser importantes.(…) Mas quando as novas ge-rações se tiveremacostumadoatrabalhar adequadamente comosnovossistemaselectrónicosdeinformação,talvezsejairremediá-velocaosproduzidopreviamentepelosmilhõesdeutilizadoresquepenetremneles sem aprepara-ção nem o critério suficientes.Mas a existência destes riscosnão evita a aceitaçãodosdesa-fios.Aúnica coisa certa éque,emrelativamentepoucotempo,os leitores e assinantes vão teracessoàsmesmasbasesdedadosqueutilizamos redactores nosjornais.Emcertamedida,vãoserelestambémjornalistasaomesmotempo que leitores, vão poderparticiparactivamentenabuscaeordenaçãodasinformaçõesquelhesinteressem.Eonossopapelseráfacilitar-lhesatarefadequeapliquemoseuprópriocritério,enãotratardeosuplantar.”Conheçopessoasquelêemaver-sãoempdfdo jornal impresso,por exemplo.Não éde todoomeucaso.Não leioo jornalnocomputador,anãoseremcasosextremos,oqueleioéoPúblico online. Não é a mesma coisa.Háumtempo,umavelocidade,mesmo na escrita das própriasnotícias, que é diferente e quepassa,obviamente,paraotempodaleitura.Apenas mais uma nota, nestecapítulo, e que ainda se refereaoexcertodeJuanLuísCébrian,atrás citado. Cébrian tambémprevê já a (con)fusão que, nanova era,haverá,ounão, entreospapéisdeleitoredejornalista.“Emcertamedida, vão ser elestambém jornalistas ao mesmotempo que leitores, vão poderparticiparactivamentenabuscaeordenaçãodasinformaçõesquelhesinteressem.Eonossopapelseráfacilitar-lhesatarefadequeapliquemoseuprópriocritério,enãotratardeosuplantar.”

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Jornalista a tempo inteiro

Umadas ideiasque retenhodoiníciodaminhavidaprofissionalé a de que a profissão é extre-mamente absorvente.Raras sãoasvezesemquesedesligatotal-mentedaprofissão,porqueser-sejornalistaéestar-senomundoeolharemredorereparareanotaraquiloquenoschamouaatenção,nemquesejamentalmente.Um jornalista tem que estaractualizado e estar actualizadonão passa só por ler jornais erevistas.Passaporiraocinema,por estar apardas estreias,porirao teatro,porouviramúsicaquesevai fazendohojeemdia.Éumfrenesimquedeveserain-dacomplementadocomalgumaculturageral:éprecisolerlivros,ouviramúsicamaisantiga,ter--se referências amuitosníveis,históricaseartísticas,mesmodeoutros tempos. Não estou, deforma alguma, a dizer que é omeucaso.Bemmeesforço,mastodososdiassãodiasemquesaiovencida.Nuncativetempoparafazertudooquequeria.Também é preciso ouvir asconversas nas mesas dos cafés,perceberoque está a interessaràspessoas,perceberoqueéqueandamadiscutir, que assuntososmotivameintrigam,queres-postasprocuram,oqueandamaver, a ler…Quantas vezes,nãome surgiram,assim, ideiasparatrabalhos.Interessa-me,porexemplo,per-ceberonde éque aspessoasdacidade e das cidades vizinhasgostammaisde iràsextaouaosábadoànoite,sepreferemiraoteatro veruma estreia, ao con-certorockouàdiscotecaverumqualquer dj internacional quepisapelaprimeiravezsololuso.Estas coisas interessam-me, atéporquecomecei logonoestágioaescolherosdestaquesculturaisdaRegiãoCentroque saemnapáginaHoje– aúltimapáginadolocalCentro.

É algo que me dá muito gozofazer,masficosempreapensarse,narua,nocaféouemqualqueroutro local, ouço alguémdizerqueaqueleespectáculoqueestáanunciadonojornalédesinteres-santeequenessediavai todaagenteveroutracoisaqualqueràqual,naalturaemqueescolhioque saíaounão,nãodeimuitaimportância.Neste campo, entramos obvia-mentena subjectividade.Claroque aobjectividade éumvalorsagradodapráticajornalista,masquandoseestáafalardeescolherdar destaque a este ou àqueleespectáculoestamos,claro,aen-trarnocampodasubjectividade.Rejo-mepor critériosdequali-dade,noque respeita à escolhadosespectáculosadestacar,quesão sempre discutíveis.Tenho,às vezes, dúvidas enão achooactodeduvidar, enquantopro-cesso,mauemsimesmo.Ébomquestionar.Comecei por dizer, no iníciodeste relatório, que tive muitasortenomeuestágioporquemederam trabalhopara asmãos eporquepude aprender, fazendotodososdias.Basicamenteconti-nuoaconsiderarquesãofactoresessenciaisparasefazerumbomestágio, porquenãohámelhorpara aprenderdoque fazer, doqueir-sefazendo.Nãohámelhorformadeaprenderdoquepoderfazer-seassimnumdiaemelhornodiaseguinte.Terquecomeçarlogonoestágioa gerir tempo, a elaborar umaagendadecontactoséumaópti-maaprendizagem.Devo,porém,dizer que, na minha modestaopinião,umestágiodetrêsmeseséinsuficiente.Devíamoscomeçarlogoafazerestágiosaolongodosvários anos da faculdade. EmItália,ondefizoterceiroanoaoabrigo do programa Erasmus,erafrequenteosalunosinscreve-rem-seemestágiosdeVerãoemjornais ao abrigodeprotocoloscomasfaculdades.Pensoquesóteríamosaganhartentandofazeralgosemelhante.

Ao longo do meu percursoestudantil, escrevi no JornalUniversitário de Coimbra A Cabra,participeimais tardenoprojectoonline e ainda fizpro-gramasnaRádioUniversidadedeCoimbra.Éverdadequeestasactividadesme“roubaram”tempoaosestudos,masnãoestounadaarrependida.Não quero com isto dizer quepenso que a componente teó-rica é secundária.Longedisso.Achoqueacomponenteteóricaé importantíssima (talvez até sedevesse incentivaros alunosdejornalismoafazer,emregimelivreouopcional,maiscadeirasdeou-traslicenciaturasdafaculdadedeLetras,deDireito,deEconomiaoumesmodeSociologia).

“Um jornalista deveria, pois, chamar-se um ‘instanteísta’

ou um ‘imediatista’”

Quandochegamosàs redacçõeslevamosnapontada línguaosvalores notícia, mas, depois,quandotodososdiasnoschegamcentenasde emails às caixasdocorreio,équeatarefaseadensa.De repente, parece que aqueleemail pode dar uma notícia eooutrooutra,masdepois lê-semelhor e afinalnão é tãonovocomoissoedepoissóháespaçopara algumas coisas e, enfim,odia-a-dia marca um ritmo queditaescolhasnemsemprefáceis.Asnovastecnologiassomadasaosmediatradicionaispermitiramacirculação de uma quantidadediária de informação verdadei-ramenteimpressionante.Aminhaexperiênciaprofissionalé ainda escassa, mas por maisquecaminhe,aolongodosanos,dificilmente perceberei o queeratrabalharnoutrascondições.Paramimestarpermanentementecontactável e emcontacto como mundo é essencial. Mas háaspectosperversosnesta sobre--informaçao. IgnacioRamonetaborda-osnolivroA Tirania da Comunicação:“(…)osistemade

informação encontra-se actual-mente sujeito auma revoluçãoradical com o advento do di-gital e do multimédia, de quealgunscomparamaimportânciaàda invençãoda imprensaporGutenberg,em�440.(…)Desdesempre,oconceitodecensurafoiassociado aopoder autoritário,doqualelaé,efectivamente,umelementofundamental.Significasupressão,interdição,proibição,corteeretençãoda informação,considerandoprecisamenteaau-toridadequeumatributofortedoseupoderconsisteemcontrolaraexpressãoeacomunicaçãodetodosaquelesqueestãosobasuatutela.Éassimqueprocedemosditadores,osdéspotasouosjuízesdaInquisição.Vivernumpaíslivreéviversobumregimepolíticoquenãopra-ticaestaformadecensuraeque,pelocontrário,respeitaodireitode expressão, de impressão, deopinião,deassociação,dedebate,dediscussão.Estatolerância,vivemo-lacomoum milagre, de tal forma quenem reparamos que uma novaformadecensurasurgiusubrep-ticiamente,aquiloquepodemosdesignarpor‘censurademocráti-ca’.Esta,poroposiçãoàcensuraautocrática, já não assenta nasupressãoounocorte,naampu-taçãoounaproibiçãodedados,masnaacumulação,nasaturação,noexcessoenasuper-abundânciadeinformações.O jornalista é literalmenteasfi-xiado,sente-sesoterradoporumaavalanchededados,de relatos,de processos – mais ou menosinteressantes–queomobilizam,oocupam,preenchemtodooseutempoe,talcomoosengodos,odistraemdo essencial.Alémdomais,issoencorajaasuaprópriapreguiça, pois já não tem queprocurarainformação,estavemtercomelesemesforço.(…)Issofoi tambémcompreendidopelopoder,queaproveitaadistracçãodaaldeiaglobal, entretida a se-guirapaixonadamenteumgrande

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‘drama’dainformação,paralevara cabo qualquer acção criticá-vel. Chama-se a isso o ‘efeitobiombo’:umacontecimentoserveparaocultaroutro;ainformaçãoescondeainformação.(…)”Porfim,IgnacioRamonetlevantaumadasquestõesquemaistemassoladoodebate em tornodopapeldosmediaedosjornalistas,nosúltimos tempos: “Então, secadacidadãosetornaumjorna-lista,querestaráespecificamenteaosjornalistasprofissionais?Estainterrogação, esta dúvida, es-tãonocentrodaactualcrisedosmedia.(…)etimologicamente,apalavra‘jornalista’significaefec-tivamente ‘analistadeumdia’.Presume-se,pois,queeleanalisao que se passou nesse própriodia,aindaquesejajánecessáriosermuitorápidoparaconseguirfazê-lo.Mas,nosnossosdias,como directo e a difusão em tem-poreal,oqueéprecisoanalisaré o momento. O instanteísmotornou-seoritmonormaldain-formação.Umjornalistadeveria,pois,chamar-seum‘instanteísta’ouum‘imediatista’.”

A responsabilidade dese ser jornalista

Maisdonunca,nasociedadedaimagem, da informação veloz,da sobre-informação, é precisoquehajajornalismoejornalistas.Jornalistas que saibam distin-guiroqueénotíciadoquenãoé, jornalistas que façam maisperguntas do que nunca, jor-nalistas conscientes e atentos aqualquertentativademanipula-

ção,deomissão,deexagero.Osjornalistas são responsáveispelainformaçãoqueveiculam.Quando,atrás,insistinaimpor-tânciadepublicarnãoquis,detodo,defenderaimportânciadonomeemsinapáginadojornal,porumaquestãodevaidade.Nãoénadadisso,bempelocontrário.Aconteceque,naminhaopinião,aresponsabilidadequesentimosquandofazemosumanotíciaquevai ser publicadanum jornal édiferentedaresponsabilidadequesentimosquandoseentregaumanotíciaaumprofessor.Quando entreguei as minhasnotícias ao meu professor dejornalismo escrito, fui semprehonesta.Simplesmente,sealgu-macoisaestivessemalfeitaousealgumprocedimentojornalísticonão estivessebemcumprido, omáximoquemepodiaacontecererareprovar.Quandosepublicaamesmanotícianum jornal, ocasomudade figura.Epodemacontecermilcoisas:podealguémsentir-selesado,porqueasdecla-raçõesnão forambemaquelas,porqueo jornalista interpretoumalosfactos,porqueasdatasnãoeramessas,porquenãoouviuto-dasaspartes,entremuitasoutraspossibilidades.Aquioque estáemcausaéainformaçãoquevaiserlidapormuitaspessoas.Eessaconsciência é fundamentalparao exercício da profissão. Saberpesar-secadapalavra,saberouvirtodaagente,saberdistanciar-sequando épreciso e envolver-sequandotambémoépreciso,saberdefender-se,sabernãodeixarquenos tentemmanipular e tentarnuncamanipular,claro.Achoquenuncadeixeidedormirdepoisde entregarumtrabalhonafaculdade,mas,quandocome-ceiapublicarnotíciasnoPúblico,houvenoitesquepasseiembran-co,sódepensarquedeterminadanotíciamaisoumenospolémicasairianodiaseguinte.Porque,nodiaseguinte,nãoéumchumbonapauta,nãoéanegativadeumasópessoa,éarepercussãodetoda

umainformaçãoqueseveiculou.Sabergeririssoéumaaprendiza-gemlongaemuitopoucasvezesfácil.Depoisdesepublicarumanotícia,tudopodeacontecer:lei-toresquequeremacrescentaralgoaoque já foidito,quequeremcorrigiralgumainformação,quetêmmais histórias para contarou, simplesmente, quequeremagradecereelogiaranoticia.Lembro-medeterficadoconten-tequandorecebiumfaxdosos Estudante (linha telefónica deapoiodaAssociaçãoAcadémicadeCoimbra,sustentadaporvo-luntários,dirigida a estudantesemriscodesuicídio),aagradecerumartigoqueeu tinha feito sóa dizer que estavam abertas asinscrições para os interessadosnovoluntariado.Oartigoeratãopequeninoeeufiqueiadmiradaquandoliofaxquechegouàre-dacção.Aresponsávelpelalinhadiziaque,depoisdeanotíciatersidopublicada,tinhamaparecidomuitosjovensacandidatar-seàsvagas.Daraosestagiáriosahipó-tesedetrabalharedepublicaréamelhorformadenosdeixaremaprender.Aprender a sério, as-sumindoaresponsabilidadeportudooquecorrebemeportudooquecorremal.Lembro-medainsegurançaquandocomeceia trabalhar, lembro-medeumacertaingenuidadediantedetudo,lembro-medeumain-quietaçãoconstante.Hojejánãoébemassim,hoje aprendiqueparatudoénecessárioumacertadosede confiança ededescon-fiança.Aindamesinto inquietadiantedanovidade, aindaolhoparaela,éprecisosemprefazer-lheperguntas.Escrevoereescrevoantesdemandarotextoaoeditor–quandotenhotempoparaisso–,mascresciemalgumascoisas.Jálávãocercadedoisanos–qua-tromesesdeestágioeorestantetempodecolaboraçãodiáriacomo jornal–,masainda sintoqueestouaaprender.Umavez,numqualquer traba-lho, um jornalista mais velho

deoutroórgãodecomunicaçãosocialestavaafalarcomigosobreos estágios, sobre a faculdade esobreoqueeramaisimportantepara aprofissão.A certa alturadisse-mequeumestágiodetrêsmeseseramaisdoquesuficientepara se aprender tudooque sedeve para aprender. Disse-meque se, ao fimde trêsmeses, ojovemestagiárioaindanãosabefazerumleadentãoomelhorerapensarbemnavida.Na altura, eu estava no iníciodo estágio e nem sabia bem oquepensaracercadaquilo.Hojediscordo. Claro que saber fa-zerumleadéfundamental,masjornalismonãoé só fazer leads. Há muitas outras coisas paraaprender.Emuitasdelasnãoseaprendemem trêsmeses.Nemsei se algumavez algum jorna-listapoderádizer,adeterminadaaltura, que já aprendeu tudooquetinhaaaprender,quejásabetudooprecisaparadesempenharbemaprofissão.E,depois,umacoisaéeficácia,outraéacriati-vidade.Porissoéqueconsideroestaprofissão simultaneamentetãodesgastanteetãoestimulante,porquenuncanosdádescanso.

Informar em consciência

Uma das ideias que retive deumaentrevistaquefiz,noúltimoanodocurso,paraa cadeiradejornalismoescrito, aoescritor ejornalistaMárioZambujal foiadeque,pordetrásdeumjorna-lista,estáumapessoaequeesteprincípio é fundamental paraquestões de ética profissional.MárioZambujal é umhomemde palavras francas e directas.É despretensioso, como a suaescritabemoespelha.Falávamosde ética e eledisse-mequenãohavia jornalistascomprincípiosejornalistassemprincípios,maspessoas. O jornalista é semprea pessoa que o é, disse-me naaltura.Nuncamaismeesqueci.E,aindahoje,semprequetenho

“Os jornalistas, e aí reside a sua responsabilidade, participam nacirculação de mensagens subliminares.”

PierreBourdieu,Questiondemots,inLes Mensonges de la Guerra du Golfe, Arléa-ReporterssansfrontièresCartas a um jovem Jornalista

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dúvidasemrelaçãoadeterminadoprocedimento,pensosemprecomaminhaconsciência.Atéporqueuma das piores coisas que mepodia acontecer,nodecursodaminhavidaprofissional,eraacu-sarem-mededesonestidade.Lembro-mede ter tidodúvidasumavezedeaindahojenãoteracertezaseprocedibemounão.Umamanhã, fui fazeruma re-portagemàLousã sobre estilosde vida alternativos. Fui às al-deiasdeXisto, àVaqueirinhoeaoCaterredoredevodizerque,de facto, aquilo éummundoàparte.Tenteidescreveromelhorquesabiatudooquesepassaláemcima,naserra,mastivemuitasdificuldades.Areportagemnãosaiumal,mashojeteriaescritotudodeformadiferente. Na altura, era maismedrosaemaisinseguranascon-sideraçõesque tecia, temiaquetodasas impressõesedescriçõesfossem interpretadas como sen-dodemasiadosubjectivas.Hoje,porém,parece-mequeuma re-portagem semesse cunho, semoolhardequemviu,nãoéumaboa reportagem.Sinto,mesmocomo leitora,queuma reporta-gemintensaéaquelaemquesesentequeojornalistamergulhounaquela realidadede tal formaqueécomoseoleitorláestivessetambém.Aestepropósito,encontreialgu-mascoisasinteressantesnoLivrodeEstilodoPúblico,reeditadoemMarçode�005(equesemantém,neste aspecto, igual à ediçãode�997):“Observação – O rigor da in-formaçãotemcomocontrapontoindispensávelaartedaobservação.Uma informação tecnicamen-te rigorosa perde sugestão eagressividade jornalística senãocomportaraargúciadaobserva-ção sobre aspessoas e as coisasou sobre o clima que envolvesituaçõeseacontecimentos.Umanotícia à primeira vista banalpodeganharumadimensão es-timulantee,eventualmente,rica

de implicações, se o jornalistaestiverdisponívelpara captaroimprevisto.”Naquelamanhã,quandochegueiàs aldeias serranas, por voltadas �0h00 ou das ��h00, fuidirectamenteaumbar,chamadoFantasia.Umbarmuitopeculiar,difícil de caracterizar, rústico eétnico,comumapitadadereaggee de rock, e sobretudo muitafantasia àmistura.Onomeeraderestomuitoapropriado.Ládentro,fuiatendidaporumasenhora, de vestido azul, comdois enormesmalmequeresnasorelhas.Pedi-lheumcaféefui-mesentar na única mesa ocupadado bar àquela hora da manhã.Ouvia-se reagge e o rapaz quelá estava sentado cantarolava,enquantobebiaumcopodelei-te e enrolavaumcharro.Tinhaum bom início para a minhareportagem,nãofosseasenhoradosmalmequeres e o rapaz te-remcomeçadoporpediràCarlaCarvalhoTomás(fotojornalista)paranão fotografar os charros.Depois,foiavezdeelemepedirpara não escrever que estava afumar,porqueissopodiacausarproblemas àspessoasda aldeia.Eahistóriarepetiu-secomtodasasoutraspessoascomquemfalei,todas se queriam proteger dosproblemas quepoderiam advirdofactodeaquelainformaçãoserpublicada.Alifuma-seàvontade,todaagentefumadrogasleves.Oproblemadelesnãoeraassumiremqueaquelehábitofazpartedeumestilodevida,oproblemadeleserateremapolíciaaintrometer-senavidaqueelesasseguravamserpacatanaquelasaldeias.Descobri,maistarde,queafinalnão era tão pacata assim, masissojáfoimuitodepoisdomeuestágio,quandoassassinaram láumhomem.Nodiaemqueesseepisódioaconteceu,eunãoestavaatrabalharefoioutrocolegaqueescreveu sobreo assunto equetrouxeàluzdodiaumapacatezafinalfrágil.Edaqual,naaltura,nãomeapercebibem.

Naaltura, aquelespedidosparanãoescreversobreoscharrosfun-cionaram,paramim,comoumaespéciedeoffthe record,algoqueteria que respeitar.E respeitei,nãoescreviumapalavra.Vejamos o que diz o livro deestilo(asduasversõescoincidemmaisumavez):“Off-the-record – 1. Afontepodenão autorizar a divulgação dainformação que presta – é ochamado off-the-record. Mas oanonimato eooff-the-record sóexistemparaproteger a integri-dade e a liberdade das fontes,porissoojornalistadevesempreconfrontarafontequeexigeumououtrocomarealnecessidadedesserecurso,nãoaceitandocomfacilidade a evocaçãopréviadetaiscompromissossobreassuntosemqueafontenadatematemer.E,semprequeconsiderarestaraserobjectode algumcondicio-namento, deve recusar receberinformaçõesnão atribuíveis ouoff-the-record. As informaçõesfornecidascomqualquerembargodevemsersemprereconfirmadase discutidas previamente como responsável do sector. 2. Aojornalista cabe respeitar escru-pulosamenteocompromissodeoff-the-record,masasuaobrigaçãoé informaropúblico.Por isso,deveprocuraroutraspistase“fu-rar”noutrasdirecções,desdequenuncaponha emcausa a fontede origem. 3. Numa entrevis-ta formal é ao entrevistadoquecabeprecisaros limitesdooff edo on-the-record. Tais limites,porém,carecemdeumentendi-mentopréviosobreoobjectivodaentrevista;seexistiroriscodede-masiadosoff porememcausatalobjectivo,é legítimomanifestarao entrevistadoa eventualidadede,apósrevisãodomaterialreco-lhidoepublicável,seoptarpelanãopublicaçãodaentrevista.”Nãoseise,hoje,teriaprocedidoexactamente da mesma forma.Não teria, claro, posto nomealgum, mas provavelmente te-riadito,pelasminhaspalavras,

que ali se fumam drogas levesà vontade.Na altura, acrediteiingenuamentequeaquelasaldeiaseramrealmentepacatas equeofactodeeuescreveraquilopodiaestragar a vida àquelaspessoas.Hoje,achoquemeenganei.Fuiingénua.Nãoqueofactordrogaslevessejaimportanteemsi.Oquetransparecianaminhareportagemerauma tranquilidadeque, afi-nal,sereveloufrágil.Efoideste‘outrolado’quenãofalei.Este foi apenasumexemplodeingenuidadeededeslumbramentoqueme ficou,daalturaemqueeraumaestagiária.Não escreviuma única mentira na minhareportagem. Só que a verdadetemsempreoutraface.Efoiessafacequemefaltou.Ficou-medeaviso.Sóépenaéquenãohajaumdiaemquesomosestagiárioseingénuoseoutroemquedeixa-mosdeoser.Essafronteiranãoexiste.Nãosefazemtrêsmesesdeestágioejáestá,deixa-sedeerrar.Continueiaaprender,atéhoje.Destaquei,aolongodaspáginasqueconstituemesterelatóriodeestágio,areportagemquefiznoTalasnal,porquemepareceuuminteressante exemplode algumdeslumbramento e imaturidadeprópriosdeuminíciodeapren-dizagemprofissional.Nãoéemtermos formais que a reporta-gem peca, mas em termos deousadia.Haveria,porém,muitosoutros exemplos sobreosquaismepoderiadebruçarnesterela-tório,porque, comodissenesterelatório,omeuestágiofoiricoediversificadoemexperiências.Escreviváriaspeçassobreosmaisvariadosassuntos:muitosartigosdecultura,depolíticaeducativa,depolítica local, artigosde so-ciedade,peçasrelacionadascomdesempregonaRegiãoCentro,reportagens sobreasRepúblicasemCoimbra,notíciassobrepro-gramas, protocolos, iniciativaspara aBaixada cidade, fotole-gendas sobre a co-incineraçãoemSouselas...

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Portersidotãopositivaaapren-dizagemquefizduranteoestágio,porterpassadoportantassitua-ções, por ter aprendido tanto– terapia de choquequase, fuiimediatamente lançadaàs feras,comosecostumadizer–éque,passado tanto tempo sobre ele,setornoudifícilescolherapenasalgunsmomentossobreosquaismedeveriadebruçarparaanalisarcriticamente.Aminhamemória éumpoucodifusaneste campo, tiveque irconfirmaralgumasdatasaosar-quivosdo Público,porquejánemsabiabemsetinhafeitodetermi-nadotrabalhoduranteoestágiooudepoisdele.Estamossempreaaprendereaminhaatitudenãomudousóporqueacabeiquatromeses de estágios. As dúvidas,as incertezas, as interrogaçõesfazemparte demim edomeudia-a-dia.Pensoque resta apenas reiterarqueconsideroqueomeuestágiofoibastantepositivo,nãoporquefiztrabalhosdeprimeirapáginaquemaisninguémfez,maspor-queaprendi.Eestaéaprincipalfunçãodeumestágio:aprender.Orestoéumaeternaeincessanteprocuraqueestásempreemaber-to.O restodessa aprendizagemcontinuoafazê-latodososdias,cada vez que escrevo um novoartigoparaojornal.Findo, então, este relatório, su-blinhandocomofoi importanteparamimter feito estágionumjornalquemeacolheu,quemedeu trabalhopara asmãos,quemedeixou trabalhar, semmedodosmeuserrosedaminhaima-turidade.Quemedeixoucrescer.O ambiente na delegação deCoimbradoPúblico,queéópti-mo, tambémcontribuiu, claro,para o balanço claramentepo-sitivoque façodomeuestágio.Como jádisse antes, aGraça éincansável com os estagiários.

Trabalhei emostrei-me sempredisponível, mas fui apoiada,corrigida, estimulada, criticada.Terfeedbackdosjornalistasmaisvelhos sobre os trabalhos quefazemosébom,suponho,durantetodaavida,massobretudonestafase.Porqueestamosàsescuras,emboracheiosdevontade.TambémoÁlvaroVieirameleuecorrigiudezenas(centenas?)deartigos, como, de resto, aindahojecontinuaafazer,semprequelhe peço. Depois, há o AníbalRodrigues,quetambémmeaju-dousemprequepôde.EaSusanaRibeirodoonline que tambémmeajudousemprequeprecisei.E depois há a Carla CarvalhoTomás, a fotógrafa com quemconversava bastante durante oestágio(eaindahojeofaço)sobrefotografia.Fazia-lheperguntas,ela explicava-measdificuldadesdoofício, enfim,curiosidades equestõesquenão tiveoportuni-dadedeaprofundarnafaculdade,porque fotojornalismo simples-mentenãoconstavadoprogramacurricular, o que também mepareceumagrande lacuna (nãosei se já consta).Acho, franca-mente,imprescindívelestudar-sefotojornalismo,hoje,numcursode jornalismo,não sóporque éuma formade jornalismocomoasoutras,masporqueaimagemassumiuumpapelmuitoimpor-tantena sociedade actual.Felizouinfelizmente.Mas, no jornalismo, estamossempre a tempodemudar.Oumelhor,temosmesmoquemudar,comotempo,muitoeemmuitosaspectos.Easmudançasjáestãoa acontecer. Seja como forquesedesenheo futuro, apenasháumacoisaquesei:“Éatravésdashistórias que travamosonossocombateparaentenderomundo”(PaulAuster,Experiências com a verdade)

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por falar em [ T E A T R O ]

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A arte maior de Tchékhov

Absolutamentetchekhoviana,apeça“Tchékhoveaartemenor”éocartãodevisitaaoambientearistocratadaRússiaoitocentista.Numa

atmosferaintimista,eaproveitandoaspotencialidadesdaOficinaMunicipaldoTeatro,osactoresdesabafamcomopúblico.Àmedidaque

assituaçõessedesenrolam,tudoaquiloqueaparentaserperfeitamenterisível,ganhacontornosmelodramáticos.

Numprimeiroacto,umtrágico à forçadesabafaavidainfamenoseiodaaristocracia.Alamentávelexistênciadeser,deservirafutilidade,que

levaàloucura.Odramaturgorussofazumretratodeliciosamenteirónico,aomesmotempodramáticodeumaclassequevivenummundo

umbiguista,incapazdeolharparaoqueorodeia.Tchékhovtemodomdenostransportarparaacena,denosfazerrirdenóspróprios

–Oh vida infame,adetodosnós:acorreriadoquotidianoedostransportespúblicosatulhadosdegente.

Fala-setambémdeluto.Olutodeumamulherquediztermorridoparaomundodepoisdamortedoseumarido.Derepente,essadoré

surpreendidapelavisitadeumhomem–ummacho,urso,sexoforte–quepretendecobrarasdívidasdofalecido.Tchékhovretrataojogo

desedução,aredençãodeumhomemaosexofemininoquemalseapercebedopoderquetem.Maséaquandodopedido de casamentoque

aatmosferaenvolvetotalmenteoespectador.Osofrimentoeaincapacidadedeexpressarsentimentosprovocampalpitaçõesecentelhasnos

olhosnãoapenasdoactor.AexcelenterepresentaçãodeMiguelMagalhãesexaltaopúblicoquesevêenvolvidonadiscussãogeradaemtorno

dasuavisitaacasadasuaamada.Durantebrevesminutos,opretendentevê-seincapazdeexpressaroquesenteedepedirNatáliaStepánova

emcasamento.Oactorsofreeporfimdeclara-se.Faz-seumapausaefesteja-secomchampanhe.

Apósointervalo,numactometateatral,oactordialogaconsigomesmo.Tchékhovespelhaassimoadeusdaprofissãodeactorqueseconfunde

comaprópriavida.Chama-lheoCanto do Cisne,metáforaparaasúltimasrealizaçõesdapessoa.Oactorfalasobreaartederepresentar,

confronta-secomavelhice–nopalcoenavida–elembraamemóriafugazdopúblico.

Duranteumdiscurso–“comfins filantrópicos”–acercadosMalefícios do tabaco,discute-seumavezmaisosexo fraco. IvanIvanóvitch

Niúkhinvive, sempreviveu, à sombrado sucessoedinheiroda suamulher.Éumhomemfrustradocomavida e consigopróprio,por

nuncaterconseguidorealizarnadasozinho.Umcobarde“altruísta”quedesabafacomopúblico,emvezdediscursarsobreostaismalefícios.

Tchékhovapresenta-ocomoumcondenadoquepedeajudaàplateiaqueassisteàpalestra.

Porfim,ojubileu.Oaniversáriodobancodáomoteaumaencenaçãogradualmentefrenética.Aparentemente,tudoestáquaseprontopara

acelebração:odiscursoestápraticamenteacabado,eossóciosdobancoachegar.Aprimeiracontrariedadeaparececomachegadadaesposa

easuaconversacompletamentefútil.Aliás,aolongodetodaapeçaosdiálogosgiramemtornodafutilidade.Eesteésemdúvidaoacto

maistchekhovianodetodaapeça,ondeaimportânciadoparecersuplantaoser,enofinaltudoédesmascarado.Apeçaacabacomosactores

aespezinharemofraque,o“espartilho”daaltasociedade.

NãoéaprimeiravezqueaEscoladaNoiteencenapeçasdodramaturgorusso.Em�004, teveemcena“OCerejal”.Contudo,estaéa

verdadeirahomenagemquefazaoteatrodeTchékhov.Comesteconjuntodepequenaspeçasemumacto,aEscoladaNoitemostraaogrande

públicoomelhordeTchékhov,peçasmenoresapenasdetamanho,mascomtodaagenialidadedasuaartemaior:oteatro.

Ana Filipa Oliveira

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Sandra Ferreira

Simplesmente Tchékhov

Umtapete,umbanco,umamesa,umcandeeiro.Adereçossuficientesparasereadaptarseisvezesesurpreenderopúblicoaolongodetrês

horasdeteatro.

Em“Tchékhove a artemenor”, aEscoladaNoite apresenta seispeças emumacto,deAntonTchékhov.Sãopeçaspoucoconhecidas,

esquecidasoutidascomopartedaobramenordodramaturgorusso.MasacompanhiadeteatrodeCoimbratrata-ascomoobras-primas.E

nadamelhorpararealçarovalordeumapreciosidadedoquedespojá-ladeelementosdesnecessários.

Ocenáriode“Tchékhoveaartemenor”é simples, talcomosão simplesas situações retratadasnaspeças:umdesabafoentreamigos,a

cobrançadeumadivida,umpedidodecasamento,oaniversáriodeumbanco,…Noentanto,por trásdesta simplicidade, escondem-se

problemasexistencialistasquepreenchemoquotidianodamaioriadaspessoas(asdefinaisdoséculoxix,contemporâneasdeTchékhov,e

asdoséculoxxi),caricaturadosatéaolimitedoridículo.

Aalternânciaentretragédiaecomédiadá-sedeformatãorápidacomoaalteraçãodoslugaresdaplateia.Éque,acadapequenointervalo,o

públicoéliteralmentetransportadoparaoutropontodasala,semsequerprecisardeselevantardacadeira.Umapequenaviagemquemarca

amudançadepeçaeaproximaespectadoreseactores.

AEscoladaNoitetiraomáximopartidodaspotencialidadesdaOficinaMunicipaldeTeatro.Nãohápalco:háumacarpeteondesedesenrola

aacção.Nãoháumaplateiaperdidanaescuridão:háquatrobancadaspróximasquerodeiamosactoreseondeéfácilverquemsorri,quem

choraarirouquem(quaseninguém)fazumesforçopornãoadormecer.

Osactoressurgemdadireita,daesquerda,docanto,detrásdasbancadas,…Eopúblico,comospescoçosnoar,vaitentandoperceberde

ondevêmasvozes,arriscando-seolharparaumadasparedesnegras,àesperadeveraparecermaisumapersonagem.

Depois,em“palco”,tudofunciona.Eximiamentecaracterizados,oscincoactoresdaEscoladaNoitevãomudandodepersonagemsemque,

nalgunscasos,consigamosperceberquemestápordetrásda“máscara”.Odesempenhoétambémnotável.Monólogosfascinantes,caricatas

barafundasàsquaiséimpossíveldesviaroolhar,diálogosrepletosdeamarguraesaudosismo…tudoaculminarnumaapoteóticaloucura

final,logocortadapelaternurentacalmadaspersonagensde“OcantodoCisne”.

Averdadeéque,nestaproduçãoaparentementesimples,tudoestápensadoaopormenor.Cenário,actores,público,timings,música,luzes,

tudoestáemperfeitaharmonia,deformaavalorizarotrabalhodosactoreseoenvolvimentodaassistêncianoespectáculo.

Esseenvolvimentocomeçaaindaantesdoiníciodapeça,quandoalgunsactoresvestemaspersonagensesepasseiampelobardoedifício.

Continuaàentradadasala,ondemeiadúziade“seguranças”,defato-macacoazul,nosrecebem.Prolonga-seaointervaloemantém-semesmo

depoisdeoespectáculoterminar,aoapercebermo-nosdequeasparedesnegrasdesaparecerameestamosagoradentrodasaladeensaios,ou

dearrumos(outalvezambasascoisas)daOficinaMunicipaldeTeatro.

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Que motivações o trouxeram a Portugal?Estive em7�numa ilhamuitobonita no meio do Adriático,numfestivaldeteatro,enquantoestudante.Evipelaprimeiraveznavidaumaportuguesa.Passadoscincodiasdissequeiacasarcomela.Elariu-se.Passadosdoisanoscasei.Nofinaldosanos70viemospara Portugal. Uma razão tãobanaletãobonitacomoesta.

Quando é que surge a sua ligação ao teatro?Tinhaseteanosquandocomeceiafazercinemaeteatro.Apartirdaí, tudo o que fazia, tirando

do caminho a EscolaTécnicadeConstruçãodeMinas,eranaperspectiva de uma mais-valiaparaoquegostavade fazer.Nauniversidade,dediquei-memaisaoteatroporqueeraumadaspartesobrigatóriasdocurso.Edentrodo teatro académico formámosa“CenaPlástica”,umgrupoqueestábastantenaberra.

Na altura em que chegou a Portu­gal, qual era o panorama que se vivia?Vim pela primeira vez em 74,logo depois do �5 de Abril,e de vez, passados dois anos.Foi um grande movimento de

descentralização, havia muitamovimentação. Nos primeirosanos,trabalheiparafaoj,actualCasa da Cultura da Juventudede Leiria. Funcionava comoanimador teatral, de cinema efotografia. E realmente haviateatroquenuncamais acabava.Posso dizer que na região deLeiria,em78,quandoeucomeceia trabalhar,havia80gruposdeteatroamadorcomespectáculos.Haviaumadinâmicaterrível,nobomsentidodapalavra.Oúnicosenãoéqueera,aomesmotempo,umteatrobastanteafunilado,oqueeranaturalnestaaltura.OndeBrecht era quase obrigatório,

ondeoteatrotinhanaturalmentetodaumacomponenteideológica,e ainda bem, porque Portugaltinha que romper com algunsmaushábitosanteriores.Quandocheguei visionava-seum teatromilitante até aos ossos, depoisvoltou ao seu normal. É umasituação que já não vivi naPolónia,emquetambémhouveesteperíodode teatromilitanteou quase ideológico. Onde sediziaque “Romeue Julieta”ou“MacBeth”erampeçassobrealutadeclasses.Masindiferentementedestafase,nãohádúvidanenhumaque foi um grande período demovimentaçãoemPortugal.

“Se f i c a r s a t i s f e i t o , r e f o r mo -me , nã o va l e a p ena ”

Foisentadoàmesahabitual,dorestaurantehabitual,queencontrámosAndrzejKowalski,depoisdeumamanhãadaraulasemMontemor-o-Velho.Relaxadoduranteocafé,falasobreoseupercursoenquantoencenador,realizador,actoretraçaopanoramadoteatroportuguês.Debarbaescuraedeolhosclaros,emAndrzejKowalskiapenascontrastaodiscurso,entreoassertivoeoempolgante,entreotransparenteeoenigmático.Deresto,tudoéuniforme.Aocontráriode“Antígona”,nãohánadadeameaçadornossilênciosdeKowalski.Naausênciadepalavras,sorrisos.Opanovaibaixandoàmedidaqueoponteiroacelera,porquedeoutraforma,aconversadarialugaraumsegundoacto.Destavez,AndrzejKowalskifalousempalmaseparaumsimbólicopúblico.

Dos trabalhos que realizou até hoje, quais destaca?Nãoéfácilresponder,hávários.DostrabalhosquefizemPortugaleemÁfricasuponhoqueoquememarcoumaisultimamente foiotrabalhoquefiznaprisãocentraldeCoimbra,“Sóentraquemvieràs fatias”. Foi o processo maismarcanteparamim,tantoanívelhumano comoartístico.Outroquememarcoubastante, enãoestou a falar só de qualidade,masdoprocessodecriação,foioprimeirotrabalhoemÁfrica,naGuiné-Bissau.Agora,dizerqualmemarcoumais...

Estou ainda como espectáculo“Namanha Makbunhe” emLisboa, tambémcomafricanos.É evidente que ainda estouagarradoaele.Qualquertrabalhoquefaçomarca-menomomento.Depo i s , g anhando a l gumadistância,unsmarcam-menumsentido,outrosnãomedeixamsaudades.Nãome envergonhodotrabalho,masnãopossodizerquememarcou.Apartirdecertomomento,istotorna-setambémum pouco rotineiro, emboratentenãoganharrotina,porquequalquer espectáculo é sempreumdesafio.Faço relativamentepoucosespectáculos,umoudois

porano,nomáximo.Nemquerofazermais.Estesdoismarcaram--memuitohumanamentee,emtermosartísticos,estousatisfeito.Umoutro,tambémemCoimbra,dequegosteimuito,foio“PutadeVida”,comaBonifrates.

Referiu que a produção teatral em Portugal tinha uma vertente militante. Qual é a realidade hoje em dia?Achoqueagoraénormal.Éumtrabalhoprofissional,comoodeum músico, de um pintor, deumescultoroudeumbailarino.Neste momento, o teatro artenunca vai poder deixar de ser

militante, porque só devemosfalarsetivermosalgoparadizer.Só devíamos fazer qualquercoisaporquequeremospartilharqualquercoisaquenostoca.Cadaumdenós tema sua ideologia,comoé evidente, e cadaumdenós vai criar coisas de acordocom a sua ideologia. Mas istonãoquerdizerqueestaideologiaseja comum, o que aconteceuumpouconofinaldosanos70,princípiode80, emquequaseeraobrigatóriaparatodaagente.O que a arte tem de bonito éprincipalmente isso: cadaumécomoé, cadaumédiferente, enestadiferençaéqueestáabeleza

Qualquer trabalho que faço marca-me no momento (...), outros não me deixam saudades

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Diana do Mar, Marta Poiares e Tiago Pimentel

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doserhumano.Háaquelafrase,“todosdiferentes, todos iguais”,eeucostumofazerumaoutraapartir dela: “Todos diferentes,graçasaDeus”.Nestemomento,penso que o teatro tem a suaposiçãonormal.Hápessoasquetrabalham,quevivemdisso,quetêmdeterespaçoparacriar,paratrabalhar.Nomeiodistotudo,hácriaçõesmaisoumenosartísticas.Não me perguntem o que istoquerdizer.Tenhopena,masnãoéumapenaque eunãodurmapor causadisso.Omovimentoteatral-estouafalardeamadores– edepúblico inclusivé, está aesmorecer.Masnãoseiseémuitopreocupante.Cada época, cadatempo, temas suas coisas.Nãomepareceserumdrama.

Por falar em drama, pensa que por esta altura as produções art íst icas que se fazem em Portugal aludem aos grandes dramaturgos ou ficam­se por jovens experiências de actores amadores?Suponho que não se f icam.O grande problema do teatroe, atenção, não é só do teatroportuguês,odramaéumpoucoesse. O teatro tem medo de iràs jovens experiências. O queé que isto significa? O teatroé uma arte cara.Há realmentefalta de novas experiências.Digo eu, porque trabalho commalta nova e acontece-me noscastingso actornovo,que saiudaescola,perguntar-mequanto

vaiganhar...Háduasrazõesparaisto. A primeira é que a maltanovanão temmuitascondiçõespara arriscar.Têm o problemado espaço,dapublicidade edemostrarotrabalhoparafora.Ejánemfalonestadialécticanaturaldegeraçãoparageração.Éevidenteque nós cotas também temosquedefenderonosso espaço,oque énatural.Nistonão tenhoproblemasdeconsciência,porqueapoiomuitoamaltanova.Masrealmentenãohápossibilidadenenhuma para quem começa.Nãoháespaço,nãotemcondiçõespara experimentar, para ter odireitodeseespalhar,inclusivé.Talpassaporumapolíticamuitomais abrangente: uma política

cultural. Suponhoqueo teatroestáviradoparaoqueestámaisoumenosestabelecido.Nãoqueriachamara isto conservadorismo,porquetambémsouumbocadoconservador quando escolhotextos já escritos.Sóqueé raroescolher um texto escrito, éraro ir a um Shakespeare ou aum grego qualquer. Privilegioescrever o texto ao longo dosensaios. Por exemplo, nesteespectáculo agora em Lisboa,“NamanhaMakbunhe”,partimosde “MacBeth”. Está bastanteadaptado, embora a estruturacontinueadeShakespeare.Passaporoquecadaumprocura.Souencenador,nãosouescritor.

Que tipo de textos procura?Procuro textos, eventualmente,embora a minha escola, nemsequertextotivesse,erasempa-lavras.Oqueconheço,econheçopouco,emrelaçãoadramaturgianova, não digo que seja bomoumau,porquesuponhoqueéigualatudo.Nãoprocuroteatrocommuitodiálogo,muitopaleio,muito blá blá blá, tripas parafora,etc.,queéumpoucooqueadramaturgianova tem.Masoque conheço é umpoucoumatendênciadeirlámexerdentroaumcertoegocentrismo,dapartedoprópriodramaturgo.Interessa-memuitomaistocaroespectadorcom algumas coisas que achoquepodemsercomunsenãomeocuparmuitocomigo.Éevidentequehácoisasdequefaloporquemetocam,mastocam-meamimporque tocam-mede foraparadentro,enãodedentroparafora.Tocam-mede foraparadentro,edepoiseumastigoissoedeitoparaforadeacordocomomeuinterior,lógico.Oprocessoéeste.Suponhoqueteriadificuldadeempegarnumtextoquereconheçocomo literariamentebom,mas

issonãomeestimulamuitoemtermosteatrais.Paramim,oteatroémuitomaisquetexto.Éimagem,somecorpo.

Por falar em experiências com gente jovem, teve vários trabalhos em Coimbra com grupos de teatro de estudantes. Como é que foram estas experiências?Tive experiências com o teuc(TeatroExperimentaldaUniver-sidade de Coimbra) e o citac(Curso de IniciaçãoTeatral daAcademiadeCoimbra)nofinaldosanos80,queforamumpoucodiferentesdestaúltimaque tiveagoracomoteuc.Apropostaquelhesfizfoiapartirdeumtexto,o “Antígona”deSófocles, criaralgumacoisanossa/vossa.Foiumasurpresabastanteagradável.Noprincípiohouveumaresistência,mas rapidamente esta barreirafoiquebrada.Conseguimoscons-truiroespectáculojuntos,noseuconjunto,tantoactorescomoeu,um espectáculo que era muitomaisnossodoqueumaencenaçãodoensaioSófocles.Istodeixa-meoptimista.Apesardasmudançastodas de gerações, naturais e

saudáveis,hámomentosemqueaspessoascontinuamaencontrar--se,quandoháalgumacoisaparadizer.

Que falhas aponta ao Teatro Universitário? Parece­lhe que há uma espécie de mimetismo relativamente ao teatro profis­sional?Acho que o erro do teatrouniversitário é tentar imitarouandaratrásdoteatroprofissional.Oteatroprofissionaltemassuascondições,osseusfinanciamentos,oseupúblico,enquantooteatrouniversitárioéoteatroporexce-lênciadaexperimentação.Porqueéuniversitário,porque émaltaque está a experimentar, enãotemde fazercontas.Aliás, tudooque saiudemais importantedo teatro europeu e americanopartiu do teatro universitário,porque aí experimentava-se àvontade.Pergunto-me:entreumactor com�0 anosde carreira,quetemexperiência,temtécnica,e um jovem, mesmo da escoladeteatro,nãofazmuitosentidofazerteatrodeactor.Oteatrodeactor temque ter texto,nãohá

hipótese. Agora um actor semescola, por exemplodaprisão,ouuniversitário, temalgomaisquetécnica.Temcoisasládentroquenão são estranguladaspelatécnica.E agradou-me este úl-timo trabalhocomoteuc pelaabertura da malta que entrounestegrupo.

Parece­lhe que falta público ao teatro ou falta teatro para o público?Faltateatroparaopúblico.Nãopodemos esquecerque amaiorpartedopúblico émaltanova.A vossa geração e aminha sãodiferentesno sentidodehábitodevercoisas.Porisso,onatural,normalesaudáveléqueosvossoshábitosdever coisas emaneiradevercoisassejamdiferentesdosnossos.Adispersãoémuita.Acho que o teatro ficou quasequenocaminhodaópera.Éumaartenobre,masescassa.Suponhoqueémuitocomplicadofalardepúblico.Érelativo.Oteatronãochegaparapúblico.Agora,nãopodemosafirmarqueoteatrotemomesmopesoquetinhahátrintaanosatrás.Nãovaiter.

Interessa-me muito mais tocar o espectador

porfalarem[]

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5� cadernosdejornalismo 01

Em Portugal , há pessoas a lamentar que tenha deixado de passar teatro na televisão...Issopassapela educação em si.A escola leva normalmente osalunosparaumGilVicente,inde-pendentemente de como estáfeito.NaPolónia,porexemplo,oteatrotelevisivoéumdosmaisfortes e commaior públicodeaudiência.Passapela educação,mastambémporpolíticacultural.

Epassapornós todos.Omaisfácil é dizer “o público não seinteressa por teatro”, mas eutambém não me interesso porheavy-metal,eeledeixadeexistir?Mas acredito que há público,tenhoprovas.

Parece­lhe que em Portugal existe uma falta relativamente à formação, isto é, no sentido em que existem poucas escolas

de teatro profissionais fora de Lisboa?Não, não. A Polónia tem 40milhões de habitantes e temduas escolas de teatro. Só quesão escolas a sério. Portugaltambém tem pelo menos duasa sério. Não quer dizer queas outras não sejam a sério. Anívelde escolas soudaopiniãode concentrar, mas concentrarpelasqualidadesquetemosenão

desperdiçar.Omercadoémuitopequeno.Quantosactores saemdo Conservatório em Lisboa etêmtrabalhologo?Embora,comas telenovelas, isso estejamuitomelhor do que há alguns anosatrás. Não me parece que sejapreciso mais escolas de teatro.Acriaçãoartísticanãopassapormuitasescolasartísticas,passaporalgumasboas,issosim.

Referiu o problema da política cultural. Que soluções aponta para esse problema? Qual é o papel das câmaras e dos teatros municipais?Éproporcionaroquedemelhorsefazporaqui.Enãosepreocupartantocomabilheteira.Masistoé evidentemente controverso equalquervereadordaculturamevaicontradizerlogo.Adificuldadeestánoequilíbrioentreoqueépopulareoqueémenospopular.OFilipeLaFeriatemasmultidõesquetemeachomuitobem.Omu-sicaldeleépopularucho,substituium bocado o Parque Mayer, arevista portuguesa. Só que háproduções cujoobjectivonãoéencherosespectáculos,sãoapenasum movimento. E a políticaculturalpassaprecisamenteporestabeleceresteequilíbrio.Umadas figuras mais emblemáticas

doteatromundialdoséculoxx,JerzyGrotowski,durantedezanostinha entredez a vintepessoasnopúblico.Sóquedurantedez,doze anos tinha subsídiosparatrabalhar.Até aomomento emque estivena filade esperaumano para ver um espectáculodele.EmNovaIorquepagavammil dólares por bilhete. É uminvestimentoquesefaz.Apolí-tica cultural é um pouco isso,criar espaço e condições parapodermos experimentar,pura esimplesmente.

Depois de ter vindo para Portugal, nunca mais pensou em voltar para a Polónia?Vou lápelomenosduasou trêsvezesporano.Devezemquandovoulátrabalhar,comespectáculos.Tenho contacto constante comaspessoas comquem trabalhei

quandoerajovem.MasoessencialaníveldetrabalhoprofissionaléaquiemPortugaleemÁfrica,queultimamente é aminha apostaforte.

Porquê essa paixão por África?Áfricaépiorquedroga.Éviciante.Omeuprimeiro contacto comÁfrica foi através do cinemadocumental.Fuifazerváriosdocu-mentários,oprimeirofoimesmonomato. Edepoisopessoal éespectacular. São registos queaquinãotemos,sãoexperiênciaseespiritualidadescompletamentediferentes.Nomeu trabalho,oquemeinteressaéexperimentarcoisasnovas.Devezemquando,perguntam-me: “Está satisfeitocomoseuúltimoespectáculo?”,e eu costumo dizer: “Se ficarsatisfeito reformo-me,nãovaleapenamais”.

Qual é a próxima experiência que tem no horizonte?Umaconcretaéfazerumespec-táculoaindaem�008,emFaro.Vai ser uma espécie mista demusicalapartirdeDomQuixote,com o meu amigo cenógrafopolaco.Vaiserassimumacoisaumpoucoesquisita,óperaeventual-mente.Esteéoúnicorealmenteconcreto. Concreto é quandoestreamos, no teatro nunca sesabe até aofim.Depoishá trêsouquatroprojectosquesãoissomesmoprojectos.AlgunssãoemÁfrica,outroénoBrasil,outronaDinamarca.OsdiasemquedouaulasemMontemor-o-VelhoeemLeiria, permitem-meparar umbocadoepensar,paranão ficarcotamuitorapidamente.

A política cultural é (...) experimentar, pura e simplesmente

porfalarem[]

Quem é Andrzej Kowalski?

NasceunaPolóniaem�95�,mas foiemPortugalque seestabeleceueporÁfricaque seapaixonou.Asua formaçãopassoupelaEscolaTécnicadeConstruçãodeMinase,posteriormentepelocursodeFilologiaPolacacomespecializaçãoemTeatrologiaeFilmologia.Pelocaminhodesenvolveuactividadesnocampodafotografiaexperimental,nomeadamentenoLaboratórioCentraldeFotografiadauniversidadeCatólicadeLublin,aindanaPolónia.FoidirectordoTeatroAcadémicodamesmauniversidade,queincluíaseisgrupos,representantesdasdiversasconvençõesteatrais.Numdeles,o“CenaPlástica”,acabamesmoportrabalharsimultaneamentecomoactoreencenador.Em�976,vemparaPortugal.EmLeiriaficaresponsávelpelaanimaçãoteatral,cinematográficaefotográficadodistrito.Dedicou-seaindaaoTeatroExperimentaldeLeiria(tela)comoencenador,tendosidoumdosfundadoresdacompanhia.Posteriormenteabandonao“tela”eparticipanaformaçãodeumnovogrupo:O“TeatrodasQuatroEstações”.Paraalémdeencenador,directorartístico,actorerealizadorexerceaindaaactividadededocenteemLeiriaeemMontemor-o-Velhonasáreasdeexpressãodramática,derealizaçãovideo-cinematográficaedemeiosetécnicasaudiovisuais.Desde�000,émembrodaDirecçãodaCenaLusófonaetemorientadovárioscursos,workshops,ateliersdeteatroedevídeonaAlemanha,Cabo-Verde,Guiné-Bissau,ex-Jugoslávia,PolóniaePortugal.Dosseusprincipaisespectáculosdestacam-se“Macbeth”e“Hamlet”deShakespeare,o“Fausto”deGoethecomocitac,“PutadeVida”coma“Bonifrates”-Coimbraentreoutras.Dascolaboraçõescomoteucderealçar“D.Quixote”deCervantes,eo“EnsaioAntígona”apartirdeSofócles.Emcena,maisumavezShakespearecom“NamanhaMakbunhe”,uma“espéciedeMacbethafricano”.Jánocampodosfilmes,odestaquevaiparaosdocumentáriosrealizadosessencialmentenaGuiné-Bissau.Doslivrospublicadosencontram-sesubstancialmentemanuaisdireccionadosparaosaspirantesaomundodaarteteatral.

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cadernosdejornalismo 01 5�

Nos bastidores de Fausto

CITAC 1990

Andrze j Kowal sk i

[na pr imei ra f i la , te rce i ro a contar da esquerda]

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54 cadernosdejornalismo 01

wwwww [sĩkud bliuʃ ]a´

Prémio Jovem JornalistaEuropeu

ADirecção-GeralparaoAlargamento

daComissãoEuropeiaeaEuropean

YouthPresspromovemoPrémio

JovemJornalistaEuropeu.As

inscriçõesestãoabertasaté�5de

Marçopararepórteresentreos�7e

os�5anosoriundosdos�7estados-

-membrosedosoitopaísescandidatos

àUniãoEuropeia.

Sãoaceitesartigossobreo

alargamentoeuropeupublicadosentre

�deJaneirode�007e�5deMarço

de�008emórgãosimpressoseonline,

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Otextopodeserescritoemqualquer

daslínguasoficiaisdos�7estados-

-membrosoudosoitopaíses

candidatosàUniãoEuropeia,mas

aquandodainscriçãoosconcorrentes

devemdisponibilizarumresumode

�00palavraseminglês.

Asinscriçõespodemserfeitasatravés

dosítiooficialdoprémioouenviadas

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cópiasdeartigosimpressosporcorreio

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�0�79Berlin,Germany.

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Curso “Justiça e o Jornalismo Judiciário”

OSindicatodosJornalistas,o

MovimentoJustiçaeDemocracia,

aUniversidadeCatólicaeoCenjor

organizamocurso«AJustiçae

oJornalismoJudiciário»,como

objectivodeaproximarosuniversos

daJustiçaedaComunicação

Social.Ocursodecorrede�de

Abrila�5deJunhoedestina-sea

jornalistas,licenciadosef inalistasde

ComunicaçãoSocialedeDireito.

Ocursotemumaduraçãode66

horas,divididaspordoisseminários

de��horascada,cominícioa�de

Abrilef ima�5deJunhode�00�.

Ocursodecorreàs�.ase5.asfeiras,

das�8h00às��h00.

Assessõesteóricasefectuar-se-ãona

UniversidadeCatólicaPortuguesa

CampusdePalmadeCima,emLisboa

PráticasnoCenjor

R.JúliodeAndrade,n.º5,emLisboa.

[maisinformaçãoem

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III Jornadas Internacionais de Jornalismo

�4deMarçode�008–Auditórioda

UFPeSalãoNobre

AsIIIJornadasInternacionaisde

Jornalismo,organizadasporum

grupodepesquisadoresedocentes

dejornalismodaUniversidade

FernandoPessoa,pretendemser

umespaçoprivilegiadoparase

apresentaremediscutiremideiase

resultadosdepesquisasnocampo

dosEstudosJornalísticos,bemcomo

paraselançaremasbasesdeprojectos

comuns.

OtemadasIIIJornadasInternacionais

deJornalismo,“Jornalismoe

DemocraciaRepresentativa”,promete

colocarpolíticos,marketeers,

professores,jornalistas,estudantes

dejornalismoedemaisinteressadosa

debaterassemprecomplexasrelações

entreaesferadapolítica,aesferado

jornalismoeaesferadoscidadãos.

Informaçõesesecretariado

Prof.DoutorJorgePedroSousa

CentrodeEstudosdaComunicação

E-mail:[email protected]

Ou

Dra.PaulaDias

GabinetedeComunicaçãoeImagem|

UniversidadeFernandoPessoa

Telefone:��.507.��.55

E.mail:[email protected]

[inforetiradadehttp://www.ufp.

pt/events.php?intId=�0046]

II Conferência Europeia de Comunicação da ecrea

PolíticasdaComunicaçãoeCultura

naEuropa•Barcelona,�5-�8de

Novembrode�008

Aecrea(EuropenaCommunication

ResearchandEducationAssociation)

encarregouaUniversidadeAutónoma

deBarcelona(uab)daorganização

dasuaIIConferênciaEuropeiade

Comunicação,atravésdaFaculdadede

CiênciasdaComunicaçãodauabedo

InstitutodaComunicação(InCom-

-uab).

[maisinformaçãoem

http://www.ecrea�008barcelona.org/

esp/home.asp]

Envie informações para [email protected]

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cadernosdejornalismo 01 55

queforçaéessaadosjornaisnotalverãoquente

Ricardo Alexandre

Adaptadapara livro, adissertaçãodemestradodo jornalista JoãoFigueirapreencheessalacunaatodosaquelesquedesconhecememabsolutooquefoioVerãoQuentede�975,aomesmotempoqueforneceumaquantidadesubstancialdefactos,históriaseinterpreta-çõesatodosaquelesquejápossuemalgunsconhecimentosobreestetempoemqueosjornaiseram,verdadeiramente,«actorespolíticos».FigueirarecordaSaramago,àépocadirector-adjuntodeumDiáriodeNotíciasmuito“colado”aogovernodoentãoprimeiro-ministroVascoGonçalvesqueteráafirmadoaJacquesFrémontier:«estamosemplenalutadeclasses.Éumabatalhadevidaoudemorteentreelesenós».Eraassim.Nóseeles.Vidaemorte(talvezumexagero).Compoucasintermitênciasemenosreticências.OExpressodeclaravaoseuinequívocoapoioaoGrupodosNoveeoJornalNovotinhaóbvias ligaçõesumbilicais aoPartidoSocialistadeMárioSoares.Oautorprocura,commaisdoquerazoávelsucesso,respostasparaperguntascomo«Quepaíspolíticonosmostravaecontavaodn,oExpressoeoJornalNovo?»ou,comoafirmaoautor,talvezmelhor:«quepaísdesejavacadaumdos jornais eporquemodelo social epolíticolutavam?».

No prefácio de «Os Jornais como Actores Políticos : O Diário de Notícias, Expresso e Jornal Novo no Verão Quente de 1975»AdelinoGomesconcluidizendoque «éumaprovade coragemacadémicaehonestidade jornalística».Estebreve texto sobre aobrade JoãoFigueirapoderiaacabaraquieestariatudodito.Ouquase.Origormetodológicoeaseriedadecomqueoautoranalisaumtempoemqueopaísassistiaà«práticadeumjornalismocheiodeideologia,em

queapolíticaéumaurgência,após48anosdeditaduraeausênciade liberdadedeexpressãoedepensamento», sãoexemplares.Estelivrodáquepensar,quandoreferênciasapráticasdeumdosjornaisem�975,nocasooExpresso,nãosãomuitodiferentesdaquiloaqueassistimos todososdias e semanasno jornalismoportuguêsmaisdevinteanosdepois: «o recursoa fontesnão identificadas éumapráticanormalecorrenteneste jornal(…)oautordostextoseasfontesnãoidentificadassãoamesmapessoa?Querazõesimpedemojornalistadeidentificarasfontes?Seasopiniõesdasfontes(nãoidentificadas)sãoidênticasàsdojornalistaporqueéqueestenãoasassume(…)?».Eraassim,nãoé?Nemtodasasvontades(oupráticasouautomatismosprofissionais)mudamcomamudançadotempo.Tantomaisqueestetempo,onosso,odehojeeagora,ficaamuitasmilhasdedistâncianaentrega,paixãoeatérasgoecriatividadecomqueoofícioeraexercido.Umaenormemais-valiado livro são as entrevistas,no f inal, aosdirectoresdos três jornais–LuísdeBarros (DiáriodeNotícias),FranciscoPintoBalsemão(Expresso)eArturPortelaFilho(JornalNovo)–,confrontadoscomdeclarações,práticaseposiçõestomadasnaqueleinesquecívelVerãode75.

Figueirarecorreaumclássiconoiníciodoprimeirocapítulo,citandoCícero:«Ignoraroqueaconteceuantesdenascermosépermanecersempre criança». Invocoaquiodireito,naturalmente excessivo, aumapersonalizaçãododito:ignoraroqueaconteceuquandoéramoscriançaépermanecerpornascer.Estelivroajuda-nosacrescer.Comojornalistas, provavelmente.Comocidadãos, com toda a certeza.

Aperguntapoderiaserfeitapormuitosdaquelesquechegamàuniversidadeparaaprenderjornalismomas,paramaldosnossosnãoparcospecados,poderiaigualmenteserfeitapormuitosemuitasdaquelesquejáandamnaprof issãoháumamãocheiadeanoseduasdesobranceriaetrêshouvesseseriaparaampararovedetismotãoreinantequantofugaz,tãoespectacularquantoinconsequente.É,naverdade,inquietante,oquaseabsolutodesconhecimento,aoníveldaclasse,entreaquelesque(aindacomoeu),têmmenosdequarentaanosdeidade,apesardosdezoitodeprof issão,sobreumperíodomarcantedanossahistóriacontemporânea.

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56 cadernosdejornalismo 01

C r é d i t o s f o t o g r á f i c o s

Capa:©MariaInêsMurta

Página�8:©MuseuAmonCarter,FortWorth,Texas

Página�4:ManualdeIntegraçãoparaDecisoresPolíticos

eProfissionais,ComissãoEuropeia©RubenTimman

Página�7:Vougue©IrvingPenn

Página�9:©Jerr y Uelsmann

Página47:©Леонтий_Усов

Página5�:Cortesiacitac

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(Página deixada propositadamente em branco)

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aqueles para quem o presente

são as coisas presentes

nada conhecem

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