cadernos de filosofia alemã (14) - usp (tem traduções do nachlass de kant)

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CADERNOS de FILOSOFIA ALEMÃ CNPq FFLCH Programa de Pós-Graduação Área de Filosofia

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Cadernos de

FILosoFIa aLeMÃ

CNPqFFLCHPrograma de Pós-Graduação

Área de Filosofia

Cadernos de

FILosoFIa aLeMÃ XIV

Publicação semestral do Departamento de Filosofia – FFLCH-USP

Indexado por

The PhilosoPher’s index e Clase

Jul.-dez. 2009

São Paulo – SP

ISSN 1413-7860

Cadernos de FilosoFia alemã é uma publicação semestral do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

Editores ResponsáveisMaria Lúcia MeLLo e oLiveira caccioLa

ricardo ribeiro Terra

Comissão Editorialbruno nadai, cauê cardoso PoLLa, Fernando cosTa MaTTos, FLaMarion caLdeira raMos, igor siLva aLves, Marisa LoPes, Maurício cardoso KeinerT, Monique HuLsHoF, rúrion soares MeLo

Conselho EditorialaLessandro Pinzani (uFsc), andré de Macedo duarTe (uFPr), danieL Touri-nHo Peres (uFba), deniLson Luís WerLe (uFsc/cebraP), eduardo brandão (usP), ernani PinHeiro cHaves (uFPa), gerson Luiz Louzado (uFrgs), Hans CHristian Klotz (UFsM), ivan raMos Estêvão (Mackenzie), João carLos saLLes Pires da siLva (uFba), JoHn abroMeiT (Universidade de Chicago), José PerTiLLi (uFrgs), José rodrigo rodriguez (Fgv), JúLio césar raMos esTeves (uenF), Luciano nervo codaTo (UNIFESP), Luís Fernandes dos sanTos nasciMenTo (uFscar), Luiz rePa (UFPR/CEBRAP), Márcio suzuKi (usP), Marco auréLio WerLe (usP), Marcos nobre (Unicamp), oLivier voiroL (Universidade de Lausanne), PauLo roberTo LicHT dos sanTos (uFscar), Pedro PauLo garrido PiMenTa (usP), rosa gabrieLLa de casTro gonçaLves (uFba), sérgio cosTa (Frei Universität), siLvia aLTMann (uFrgs), soraya nour (Centre March Bloch), THeLMa Lessa Fonseca (uFscar), vera crisTina de andrade bueno (Puc/rJ), vinicius berLendis de Figueiredo (uFPr), virginia de araúJo Figueiredo (uFMg), Yara FratEsCHi (Unicamp)

Universidade de são PauloReitora: sueLy viLeLa

Vice-reitor: Franco Maria LaJoLo

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências HumanasDiretora: sandra Margarida nitrini

Vice-diretor: ModEsto FlorEnzano

departamento de FilosofiaChefe: Moacyr ayres novaes FiLHo

Vice-chefe: Caetano Ernesto PlastinoCoordenador do Programa de Pós-graduação: Marco Antônio de Ávila Zingano

diagramaçãoMicroart – Editoração Eletrônica Ltda.

CapaHamilton Grimaldi e Microart – Editoração Eletrônica Ltda.

ImpressãoCromosete Gráfica e Editora Ltda.Tiragem: 800 Exemplares

©copyright departamento de Filosofia – FFLCH/UsPAv. Prof. Luciano Gualberto, 315 – Cid. UniversitáriaCEP: 05508-900 – São Paulo, BrasilTel: (011) 3091-3761Fax: (011) 3031-2431E-mail:[email protected]º 14 – jul.-dez. 2010ISSN 1413-7860

Sumário

Editorial 9

Artigos

Minando ouro: utilizando o Nachlaβ e as preleções de Kant como fonte para sua filosofia política 11Frederick Rauscher

No limiar do mundo: a posição de Heidegger sobre a diferença entre animais e humanos 31Fernando Rodrigues

Intersubjetivismo versus subjetivismo? Algumas considerações sobre a controvérsia Habermas-Henrich a partir das “Doze teses contra Jürgen Habermas” 55Fernando Costa Mattos

Traduções

O que é metafísica? – o que é modernidade? Doze teses contra Jürgen Habermas, de Dieter Henrich 83Traduzido por Fernando Costa Mattos

Reflexões, de Immannuel KantApresentação e tradução de Bruno Nadai, Cauê Cardoso Polla, Fernando Costa Mattos, Monique Hulshof e Nathalie de Almeida Bresciani 119

Resenhas

Arte e Filosofia no Idealismo Alemão, organizado por Marco Aurélio Werle e Pedro Fernandes Galé 147Mario Videira

Viagem de um alemão à Itália, de Karl Philipp Moritz 153Luís Fernando dos Santos Nascimento

6

Cadernos de Filosofia Alemã – Sumário nº 14 – p. 5-6 – jul.-dez. 2009

Lançamentos 157

Índice em inglês 159

Instruções para os autores 161

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Fruto de uma iniciativa conjunta dos Grupos de Filosofia Alemã do Departamento de Filosofia da USP, os Cadernos de Filosofia Alemã, publicados desde 1996, pretendem constituir um espaço para a publicação de textos, ligados à filosofia e ao idioma alemães, que colaborem para o desenvolvimento de um diálogo filosófico vivo, capaz de fazer jus ao mote, entre nós consagrado, da filosofia como “um convite à liberdade e à alegria da reflexão”.

9

Editorial

O presente volume dos Cadernos de Filosofia Alemã está articulado em dois eixos principais: as Reflexionen de Kant sobre moral, política e direito – tematizadas por Frederick Rauscher no artigo de abertura ao número e tendo alguns excertos traduzidos para o português, com apresentação em formato bilíngue, na seção de traduções – e o texto “Doze teses contra Jürgen Habermas”, de Dieter Henrich – também apresentado na seção de traduções e tematizado no artigo de Fernando Costa Mattos, que o traduziu – sobre a controvérsia Habermas-Henrich dos anos 1980. Completam o volume um artigo de Fernando Rodrigues sobre a diferença entre homens e animais em Heidegger e duas resenhas – uma de Mario Videira sobre o livro Arte e filosofia no idealismo alemão, organizado por Marco Aurélio Werle e Pedro Fernandes Galé; e outra de Luís F.S. Nascimento sobre a tradução de Oliver Tolle da obra Viagem de um alemão à Itália, de Karl P. Moritz .

O artigo de Rauscher, que, como dito, abre o número, tem o sugestivo título “Minando ouro: utilizando o Nachlaβ e as preleções de Kant como fonte para sua filosofia política”. Principal responsável, ao lado de Paul Guyer, pela tradução das Reflexionen de filosofia prática que a Cambridge vem publi-cando nos Estados Unidos, como parte da Cambridge Edition of the Works of Immanuel Kant, Rauscher reflete nesse texto – que também apresentou na USP, em forma de conferência, no último mês de agosto – sobre o trabalho de quem se envolve com o Nachlass de Kant em busca de textos que possam acrescentar algo à compreensão do pensamento kantiano.

O artigo de Fernando Rodrigues, intitulado “No limiar do mun-do: a posição de Heidegger sobre a diferença entre animais e humanos”, procura contrapor-se à leitura habitual dos comentadores, entre os quais Peter Sloterdijk – tomado aí como interlocutor –, e mostrar que a reflexão de Heidegger sobre o assunto não seria nem conservadora muito menos superficial, havendo diversas nuanças importantes a considerar, por exemplo, em textos como Ser e tempo e Conceitos fundamentais da metafísica.

Fecha a seção de artigos o texto de Fernando Costa Mattos sobre a controvérsia entre Jürgen Habermas e Dieter Henrich, havida nos anos 1980, acerca do lugar da metafísica no pensamento contemporâneo. Pro-curando assinalar uma significativa diferença no modo como os autores compreendem a metafísica, Mattos sugere que o conflito entre eles não seria tanto entre um pensamento metafísico e outro pós-metafísico, mas entre

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uma metafísica subjetivista, de inspiração kantio-fichtiana (Henrich), e uma metafísica intersubjetivista, de inspiração hegelo-marxista (Habermas).

Abrindo a seção de traduções, temos então o texto com que Dieter Henrich rebateu as críticas feitas por Habermas, numa resenha, ao seu livro Fluchtlinien (Linhas de fuga), de 1982. Como Henrich defendesse, neste livro, a possibilidade de um retorno à metafísica, Habermas saiu em defesa dos “motivos modernos de pensamento”, entre os quais o aban-dono da metafísica. No texto aqui publicado, Henrich procura então atacar os alicerces do pensamento habermasiano, de modo a mostrar como Habermas não consegue, no fim das contas, sair ele próprio de um pensa-mento metafísico, implicando isto que não seria possível fazer filosofia sem um mínimo de metafísica.

Em seguida ao texto de Henrich, é apresentado um pequeno con-junto das Reflexionen de Kant, com o objetivo de mostrar ao leitor um pouco desse material, inédito em português, e chamar a atenção, fazendo eco ao artigo de Rauscher, para o quão interessante podem ser esses textos para quem se interessa pelo pensamento de Kant. Além disso, a apresentação dessas Reflexões serve para divulgar um trabalho em andamento, do grupo que assina as traduções, cujo objetivo é traduzir, em um ou dois volumes, uma série de textos do Nachlass sobre filosofia prática (moral, política, história, direito). Submetendo esses textos ao público, os Cadernos estariam colabo-rando para favorecer o diálogo entre tradutores de Kant para o português, o que poderá enriquecer o referido projeto.

Na seção de resenhas, por fim, Mario Videira assina um comentário ao livro Arte e filosofia no idealismo alemão, organizado por Marco Aurélio Werle e Pedro Fernandes Galé, e Luíz F.S. Nascimento faz a resenha do livro Viagem de um alemão à Itália, de Karl Philipp Moritz, em edição traduzida e apresentada por Oliver Tolle.

Se, ao contrário dos anteriores, este número dos Cadernos de Filosofia Alemã optou por articular-se em dois eixos temáticos principais, esperamos que isto não desfavoreça os objetivos de estimular o estudo e a reflexão a partir da filosofia alemã. Muito pelo contrário: por tratar-se de dois cam-pos de estudos, embora diversos, bastante férteis e atuais – somente agora o Nachlass kantiano começa a ser traduzido sistematicamente para outras línguas, e uma série de publicações recentes começa a repensar o lugar da metafísica na filosofia contemporânea –, imaginamos que isso possa atrair um interesse ainda maior pelo muito que esses temas, somados à sempre atual herança heideggeriana, têm hoje a nos dizer.

Cadernos de Filosofia Alemã – Editorial nº 14 – p. 9-10 – jul.-dez. 2009

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Minando ouro: utilizando o Nachlaβ... e as preleções de Kant como fonte

para sua filosofia política

Frederick RauscherProfessor da State University Michigan

I: A filosofia política1 de Kant

Na história da humanidade, o ouro tem sido símbolo de po-der, riqueza, prestígio e beleza. Aqueles que o têm, cuidam dele. Aqueles que não o possuem, lutam por ele. É muito difícil de ser obtido: deve-se encontrar uma fonte provável, e para se chegar até ela uma mina deve ser cavada, o minério extraído da terra e o ouro purificado pela separação do minério bruto. A tarefa é difícil, mas a recompensa é enorme.

Gostaria de fazer do ouro não somente um símbolo de poder, riqueza, prestígio e beleza, mas também um símbolo das melho-res passagens nos escritos inéditos de Kant sobre filosofia política. Temos montanhas de papéis para pesquisar, devemos escavar as seleções mais valiosas, e precisamos avaliá-las para encontrar os argumentos puros escondidos entre a escória. Mas quando se en-contram estas pepitas, elas podem valer o esforço.

O trabalho inédito de Kant sobre filosofia política que so-breviveu se apresenta em três tipos, como três montanhas que es-condem ouro em sua massa. Cada uma destas fontes tem um uso diferente e diferentes restrições em seus valores. Os três tipos de fontes são a) preleções b) as notas de Kant para as preleções e outras reflexões em geral c) rascunhos para livros e ensaios espe-

1. Na apresentação deste trabalho feita em Agosto de 2009 na Universidade de São Paulo, quando indagado sobre o uso da expressão “political philosophy”, o autor explicou que ela é usada aqui num sentido amplo, que abarca o que chamaríamos separadamente de filosofia do direito e filosofia política. (N. do T.)

Cadernos de Filosofia Alemã nº 14 – p. 11-30 – jun.-dez. 2009

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cíficos. Como graus diferentes do minério do qual o ouro deve ser extraído, estas diferentes fontes precisam ser avaliadas pelo seu valor e pelas ideias puras que elas contém.

Como um exemplo da utilidade destas fontes inéditas, foca-rei no tópico da punição. Mostrarei como algumas delas podem lançar luzes sobre a visão de Kant publicada acerca da punição. Também mostrarei como este tópico se relaciona com a idéia de contrato social de um modo que ilumina tanto a idéia de contrato, como a justificativa da punição. O resultado, eu espero, mostrará como o ouro extraído destas fontes vale tanto quanto o ouro que Kant incluiu em seus livros.

Primeiramente, farei uma retomada dos três tipos de fontes.

II: O materialAs Preleções

As preleções de Kant eram extremamente populares, parti-cularmente suas preleções anuais sobre Antropologia e Geografia Física, que ele considerava como material introdutório. Estas pre-leções eram transcritas pelos estudantes, que em geral contratavam copistas para fazer cópias das notas da preleção a fim de vendê-las a outros estudantes, naquele ou nos próximos semestres. Vários destes escritos póstumos (Nachschriften) sobreviveram e estão publicados na Kants Gesammelte Schriften, volumes 24-29.2

Naturrecht3 (direito natural, ou, de um modo mais amplo, filosofia política) aparentemente não era ensinado com muita fre-quência. Os registros que sobreviveram indicam que Kant ofere-ceu o curso somente uma dúzia de vezes entre 1767-1788, e não

2. Kant, I. Kants Gesammelte Schriften. Herausgegeben von der Königlich Preussischen Akademie der Wissenschaft. 29 Vols. Berlin: Walter de Gruyter, 1902 e ss. Somente em 2009 o conjunto ficou completo com a publicação do volume 26, Preleções sobre Geografia Física, editado por Werner Stark. [Esta edição é comumente conhecida pelo nome de Edição da Academia, e será assim referida no texto daqui em diante. (N.do.T)]

3. Traduz-se por direito natural. (N. do. T)

Frederick Rauscher Minando ouro: utilizando o Nachlaβ...

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mais depois desta data.4 De acordo com as regras da universida-de, quando lecionava, Kant era obrigado a escolher e seguir um manual. Ele nunca se utilizou de nenhum de seus próprios livros para este propósito, mas sempre selecionava textos tradicionais tais como Metaphysica de Alexander Baumgarten. Para o curso Naturrecht ele utilizou o Jus Naturaes de Gottfried Achenwall, publicado em 1763. O livro de Achenwall era uma revisão de um texto anterior muito popular, Elementa Juris Naturae que ele havia co-escrito com Stephan Pütter em 1750.5 Ambos eram professo-res na Universidade de Göttingen, Pütter na faculdade de direito e Achenwall na faculdade de filosofia, e haviam se encontrado 10 anos antes quando eram estudantes em Halle.6

Sabe-se que apenas dois conjuntos das transcrições das pre-leções de Kant sobre filosofia política sobreviveram. Um deles, anotado por Friedrich von Gentz, foi perdido bem antes de po-der ser publicado.7 O outro, anotado por Gottlieb Feyerabend,

4. Informações sobre as preleções de Kant estão disponíveis em Arnoldt, E. Gesammelte Schriften. Band V Teil II. Berlin: Verlag Bruno Cassirer, 1909. Há também dois websites: http://web.uni-marburg.de/kant/, a fonte onli-ne do Arquivo Kant da Universidade de Marburg, e www.manchester.edu/kant, um site criado por Steve Naragon dedicado a “Kant na Sala de Aula”.

5. Achenwall, G., Jus Naturae. 5a. edição. Gottingen, 1763. A primeira edição é Achenvall, G.; Pütter, S. Elementa Juris Naturae, Gottingen, 1750. Esta edição foi traduzida para o alemão por Jan Schröder como Achenvall, G.; Pütter, S. Anfangsgründe des Naturrechts. Trad. por Jan Schröder. Frankfurt: Insel Verlag, 1995; a edição de Achenwall que foi usada por Kant permane-ce sem tradução.

6. Começando com a terceira seção de seu livro, Achenwall trabalhou sozinho na atualização do texto já que os interesses de Pütter mudaram da filosofia política e teoria legal para o direito positivo. Dado que Pütter contribuiu apenas com uma fração do material da edição original, as edições posterio-res do livro levavam somente o nome de Achenwall e era já naquela época, e continua sendo hoje, considerada como sendo um trabalho de Achenwall.

7. Gentz (1763-1832) matriculou-se na Universidade de Königsberg em 26 de abril de 1784. Seu único Nachschrift é o Naturrecht. É mencionado em Stargardt, KAT 234 (uma antiga casa de Berlin que trabalha com livros autografados e manuscritos antigos), como estando em posse particular, e do qual atualmente não se tem notícia. Informações sobre o estado destes manuscritos estão disponíveis no website de Margburg mencionado na nota

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foi publicado no volume 27.2.2 da Academia. Nada se sabe de Feyerabend além da sua matrícula na universidade (6 de maio de 1783) e seu nome escrito nas notas. O manuscrito original se encontra atualmente na biblioteca central de Gdansk, Polônia. Uma reprodução do manuscrito está disponível nos Arquivos Kant de Marburg.

O primeiro quarto das preleções não se refere ao texto de Achenwall, funcionando antes como uma introdução ao tópico. Este material é talvez o mais claro sumário das fundações de sua filosofia prática em geral, e fornece um conjunto detalhado das distinções entre seus componentes, filosofia política (Recht) e vir-tude (Tugend); estas discussões são extremamente importantes dada sua datação relativa a Fundamentação e a segunda Crítica, que geralmente são consideradas como fundamentando apenas a virtude. O restante das notas da preleção segue relativamente de perto o texto de Achenwall. Com frequência, Kant cita frases do manual em latim antes de fazer seu próprio comentário. As refle-xões de Kant sobre direito internacional na parte final do curso ocupam apenas algumas páginas, e diferentemente de partes ante-riores do manuscrito, ele dispensa a discussão e fornece uma lista de princípios para o direito internacional e para o direito de guer-ra; considero isto como uma evidência de que ele estava ficando sem tempo para tratar de todos os tópicos que ele queria tratar em suas preleções.

Quando se utilizam as preleções como fonte, é preciso to-mar cuidado. Primeiramente, o estudante que tomou as notas deve ser acreditado como tendo registrado corretamente os pen-samentos de Kant. Em segundo lugar, o copista deve ser acre-ditado como tendo copiado de modo diligente frases e palavras do manuscrito original. Por último, o editor deve ser acreditado como tento percebido todos os problemas e variações importan-tes no manuscrito.

acima e também em Stark, W. Nachforschungen zu Briefen und Handschriften Immanuel Kants. Berlin: Akademie Verlag, 1993.

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O Nachlaβ

Kant não redigiu anotações específicas para suas preleções, baseando-se antes nas notas que escreveu nos manuais. Um de seus alunos assim descreve suas preleções:

Suas preleções eram completamente livres. Em muitas aulas ele nem se servia de um caderno, ao contrário, ele tinha algumas ano-tações nas margens de seus manuais para servir como fio condutor. Em geral ele trazia consigo apenas um pequeno pedaço de papel, no qual ele tinha registrado seus pensamentos numa escrita dimi-nuta e sucinta. (Reinhold Jachmann)8

É sabido mesmo que Kant, algumas vezes, mandava impri-mir os manuais que utilizava com páginas em branco entre cada página impressa para ter espaço suficiente para suas notas. (Não é este o caso do livro de Achenwall). Com o passar dos anos, os manuais de Kant acumulavam camadas de notas de períodos di-ferentes. O mais talentoso editor da Edição da Academia, Erich Adickes, foi capaz de datar estas notas usando a cor da tinta e outros fatores para distinguir aquelas que provinham de diferentes períodos do desenvolvimento de Kant.

A cópia de Kant do texto de Achenwall utilizado nas suas preleções foi perdida na Segunda Guerra Mundial, mas nesta épo-ca as transcrições de suas notas feitas nas margens e nas folhas em branco intercaladas já haviam sido publicadas no Volume 19 da Academia. As Reflexões sobre Filosofia do Direito consistem em material do próprio manual de Kant, mais um pequeno núme-ro de folhas soltas (Lose Blätter) identificadas pelos editores da Academia dedicadas primordialmente aos mesmos tópicos. Estas reflexões revelam o grande e duradouro interesse de Kant pelo

8. Citado da coletânea Malter, R (ed.). Immanuel Kant in Rede und Gespräch. Hamburg: Felix Meiner, 1990, p. 217. [As traduções foram feitas todas a partir do texto em inglês. Foram conferidos os originais a fim de guiar nossa tradução. A escolha de traduzir tudo a partir do inglês visou manter a coesão do texto. Quando os textos já haviam sido anteriormente traduzidos para o português, optou-se por utilizar as traduções existentes. (N.do T.)]

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pensamento político, e também sua própria evolução. As notas mais antigas datam de aproximadamente 1766, logo após a trans-formação que o próprio Kant descreveu acerca de si mesmo em reação as obras de Rousseau. As últimas notas incluem algumas que datam de 1797, isto é, depois da publicação da Doutrina do Direito.

Nós podemos supor que as notas escritas na sua cópia do livro de Achenwall eram usadas por Kant em seus cursos. Em alguns casos elas são meros sumários do texto de Achenwall. Em outros, elas poderiam ser argumentos fornecidos por terceiros em defesa dos mesmos pontos. É certo que muitas delas mostram a visão de Kant. Mas deve-se ser cuidadoso ao atribuir qualquer argumento específico a Kant. Se a reflexão não se parece com algo que ele diz em outros lugares, então é sábio não prestar atenção a ela.

Os Rascunhos

Poucos manuscritos de livros e rascunhos de en-saios (Vorarbeiten) de Kant para obras importantes como a Fundamentação sobreviveram, porém mais de duzentas páginas de rascunhos da Metafísica dos Costumes estão disponíveis. Estes ras-cunhos fornecem um tratamento extenso, de várias páginas, acer-ca de tópicos específicos, conforme Kant registra várias versões propostas de argumentos e discussões de seus próprios trabalhos. Este material para a Metafísica dos Costumes e outros materiais re-lacionados estão reunidos no volume 23 da Academia. (Rascunhos similares para a Crítica da Razão Pura estão integrados às Reflexões nos Volumes 17 e 18)

A doutrina do direito em particular demandou muito esforço de Kant. Mais de 63 páginas de rascunhos lidam exclusivamen-te com o tópico da propriedade. Dado que o contrato social está intimamente ligado à proteção da propriedade de cada um – e dado que uma característica única do contrato social de Kant é a reivindicação de que a propriedade enquanto tal só é possível com base em um contrato social – este material lança muita luz no pensamento político de Kant. Outro material importante inclui as introduções, tanto para a Metafísica dos Costumes como um todo,

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como para a Doutrina do Direito e a Doutrina da Virtude em par-ticular – que estabelece os parâmetros básicos da filosofia política em sua relação com a ética, mas a distingue da ética propriamente dita (virtude), rascunhos sobre Direito Público que concernem à soberania, à punição, à desobediência civil e outros tópicos.

O volume 23 da Academia também contém rascunhos de alguns dos ensaios políticos de Kant. O ensaio conhecido como Teoria e Prática9 contém um sumário da filosofia política de Kant que enfatiza a liberdade, a igualdade e a independência, e também discute o progresso internacional; Para a Paz Perpétua10 fornece o argumento de Kant a favor de uma federação de Estados; há tam-bém um fragmento anotado que parece ser da cópia enviada ao impressor mostrando as mudanças finais no manuscrito (pp. 175-92); Está a raça humana progredindo constantemente?11 centra-se na história, mas enfatiza a natureza política do progresso.

Utilizar estes rascunhos ajuda a traçar a gênese dos trabalhos publicados de Kant. No caso da Crítica da Razão Pura, uma dé-cada de trabalho – a famosa “década silenciosa” – foi preservada e fornece uma boa quantidade de informações sobre os vários argu-mentos nos quais Kant trabalhou, as diversas estruturas do livro que ele considerou, e, é claro, os tópicos chaves do livro conforme ele se desenvolveu.12

Os perigos de se apoiar muito sobre os rascunhos é que, cer-tamente, Kant decidiu não levar a público precisamente aquele argumento, fraseado ou tópico contido no rascunho, mas não

9. Kant, I. Kants Gesammelte Schriften. Herausgegeben von der Königlich Preussischen Akademie der Wissenschaft. Vol. 23, pp. 127-43.

10. Kant, I. Kants Gesammelte Schriften. Herausgegeben von der Königlich Preussischen Akademie der Wissenschaft. Vol. 23, pp. 155-75.

11. Kant, I. Kants Gesammelte Schriften. Herausgegeben von der Königlich Preussischen Akademie der Wissenschaft. Vol. 23, pp. 455-62.

12. Como resultado, eu acredito que a organização da versão final publicada não deve ser tomada tão a sério, já que ela reflete apenas uma tentativa de Kant de juntar as várias partes do todo em desenvolvimento. Diz-se que o Chanceler Alemão Otto Von Bismark teria dito que “leis são como sal-sichas, é melhor não vê-las sendo feitas”. Acredito que talvez pudéssemos adicionar os livros de filosofia a esta lista.

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na versão publicada. Entretanto, pode haver muitas razões pelas quais Kant não levou a público este material. Trabalhando nos-sas idéias, geralmente tentamos diferentes modos de expressar a mesma coisa, e quando definimos um modo para a publicação, nem sempre rejeitamos os modos de expressão anteriores. Além disso, com o tempo, costumamos mudar de opinião sobre os ar-gumentos e idéias que publicamos. Ao traçar o desenvolvimento do pensamento, fontes publicadas e inéditas podem ambas revelar argumentos que podem ter sido atraentes em algum momento an-terior, tendo sido, talvez, rejeitados. Não se pode excluir a possibi-lidade de que, tendo relido estas notas, Kant poderia ter decidido publicar partes delas.

Com todas estas fontes inéditas – notas de alunos, reflexões e rascunhos – nós precisamos lembrar que estamos abordando este material nós mesmos enquanto filósofos, e não apenas como historiadores. Enquanto historiadores da filosofia, nós queremos preservar o registro dos pensamentos de Kant e torná-lo disponí-vel a outros (é por isto que embarcamos em projetos de tradução). Como historiadores da filosofia, nós queremos estar capacitados para entender e avaliar as afirmações feitas por Kant. Se decidi-mos, em nosso juízo, que uma idéia ou argumento não publicado é superior a um publicado, nós deveríamos incorporá-lo em nossa avaliação sobre Kant. Deveríamos, ao menos, nos sentir livres para utilizar o material inédito a fim de iluminar o material publicado, talvez fazendo conexões que Kant não faz explicitamente neste último. Para retornar a metáfora do ouro, nós queremos refinar o minério que encontramos para o transformas em um ouro utilizá-vel. Agora proponho uma tentativa de mostrar este processo.

III: Punição e o Contrato Social

Em meu exemplo, examino uma afirmação específica que Kant faz em seus argumentos que foram publicados sobre a justi-ficativa da punição, em particular da pena de morte. O contexto da sua afirmação é um argumento contra a pena de morte dado pelo jurista italiano Cesare Beccaria, que advogava em favor de uma reforma penal. A resposta de Kant a Beccaria invoca a idéia de um contrato social. Examinando esta passagem à luz de algumas

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fontes não publicadas, mostrarei o quanto elas aprofundam nossa compreensão das asserções de Kant tanto sobre a punição quanto sobre o contrato social.

O livro de Beccaria, Dos Delitos e Das Penas (1764)13 adota uma estrutura do contrato social. Os indivíduos se combinam em uma sociedade para o seu bem individual próprio, sendo que as leis “deveriam ser pactos entre homens livres”.14 Para obter a felicidade que eles podem ter, os indivíduos concordam em sacrificar parte da sua liberdade para a ordem, e assim “poderem gozar o restante com segurança e tranquilidade”.15 A liberdade é vista mais como um meio para a felicidade individual do que como tendo valor em si mesma. Todos concordam em abrir mão de uma parte de sua liberdade – presumivelmente a parte correspondente a cada um, embora Beccaria não seja específico – e o poder correspondente a essa liberdade constitui o poder do soberano. O soberano, portan-to, goza de um repositório de liberdade que poderia ser utilizada para obter a felicidade, mas que os indivíduos voluntariamente sa-crificaram para maximizar a sua felicidade realmente alcançável.

As punições estão incluídas no contrato social do seguinte modo. “Para prevenir o espírito despótico de cada homem de re-submergir as leis da sociedade no caos antigo”, motivos sensíveis são fixados: “estes motivos sensíveis são as penas estabelecidas contra os infratores da lei”.16 Mas estas punições estão sujeitas às limitações originais de um contrato, já que cada cidadão cede vo-luntariamente “a mínima porção possível, apenas a que baste para induzir os outros a defendê-lo”.17 O direito do governo de punir é, portanto, limitado ao tanto de liberdade contida naquele conjunto das menores quantidades possíveis consistentes com a manuten-ção da ordem na sociedade sob leis.

13. Beccaria, C. Dos delitos e das penas. 3ª ed. Trad. Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

14. Beccaria, C. Dos delitos e das penas, p. 39.15. Idem, p. 41.16. Idem,ibidem.17. Idem, p. 43.

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Ao determinar o conteúdo da “mínima porção possível” de liberdade a ser cedida pelos indivíduos, deve-se levar em conta o que é racional para uma pessoa ceder18. No caso específico da pena capital, Beccaria argumenta que é absurdo acreditar que os indiví-duos voluntariamente cederiam suas próprias vidas ao soberano:

Mas quem será o homem que queira deixar a outro o arbítrio de matá-lo? Como pode haver, no menor sacrifício da liberdade de cada um, o do bem maior de todos, a vida? E, se assim fosse, como se coaduna tal princípio com o do outro, de que o homem não pode matar-se? Não deveria ele ter esse direito se pôde atribuí-lo a outrem ou à sociedade inteira?19

Dois pontos são sustentados nesta passagem. Primeiro, que o direito de tirar a própria vida não pode racionalmente ser dado ao soberano por um indivíduo que entra em sociedade para maxi-mizar sua felicidade possível, porque a vida mesma é precondição para toda felicidade. Alguns podem replicar que a pena capital pode ser racionalmente incluída num contrato social porque ela é a dissuasão mais efetiva contra o crime; isto Beccaria contra-argumenta que uma perda permanente de liberdade pela servidão involuntária durante toda a vida seria um obstáculo muito mais eficiente (Beccaria, 68;99). O segundo ponto desta passagem é que, se se argumentasse que é racional dar o poder sobre a vida de alguém ao soberano, ainda assim seria impossível fazê-lo, pois ninguém possui o direito a ter poder sobre sua própria vida, dada a proibição moral contra o suicídio.

18. Beccaria se utiliza deste embasamente para argumentar de modo geral con-tra as punições excessivas. Ele sustenta que o caráter extremamente severo de algumas punições vai além do tanto requerido para “ao bem comum e ao próprio fim de impedir os delitos e o objetivo de desencorajar crimes” (Idem, p. 45) e é por isto injusto. As punições devem ser direcionadas de modo a prevenir que o criminoso cometa outros crimes. As punições deveriam ser “selecionadas de tal modo a causar a mais eficaz e duradoura impressão nos espíritos dos homens com o mínimo de tormento ao corpo do condenado”.Idem, p. 31. Este é um ponto distinto de seu argumento sobre a pena capital e não será tratado aqui.

19. Idem, p. 94.

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Na “Doutrina do Direito” (parte da Metafísica dos Costumes) Kant menciona diretamente Beccaria na seguinte passagem:

O marquês Beccaria, na base do sentimentalismo de um humani-tarismo afetado (compassibilitas), estabeleceu a sua tese da ilicitude de toda a pena de morte: dado que ela não poderia estar contida no contrato civil, originário; pois que, neste caso, cada membro do povo haveria que ter consentido em perder a sua vida se matasse qualquer outro (membro do povo); mas este consentimento é im-possível, porque ninguém pode dispor da sua vida. Tudo sofística e cavilação.20

A primeira vista parece que o argumento de Beccaria não deveria ser rejeitado tão rápido por Kant. Ele mesmo concor-da que ninguém tem o direito de dispor de sua própria vida.21 Também se supõe que para Kant o contrato social é uma questão da vontade. Se a pena capital fosse parte do contrato social, en-tão não teria Kant que concordar que ninguém concordaria por sua própria vontade com aquele contrato, porque isto significaria desejar a possibilidade da sua própria morte? Kant avança ainda mais ao notar que toda punição é definida como um dano à pessoa feito contra a vontade daquela pessoa. (“quando a alguém acon-tece aquilo que quer não existe punição, e é impossível querer ser

20. Kant, I. Metafísica dos costumes. In: Kants gesammelte Schriften. Herausgegeben von der Königlich Preussischen Akademie der Wissenschaft. Vol. 6, pp. 334-5. Referências às obras de Kant serão dadas pelo volume e página da Edição da Academia. Estas páginas são dadas na margem das traduções para o inglês. Para as traduções em inglês, eu utilizo: Kant, I. Practical Philosophy. Trad. de Mary Gregor. New York: Cambridge University Press, 1996. As traduções do Nachlaβ e das Preleções de Kant são minhas. [Utilizaremos as traduções em português para as obras citadas pelo autor que tiverem tradução. Nos demais casos, traduziremos diretamente do inglês, colocando a versão ingle-sa em nota de rodapé, por já se tratar de uma tradução feita pelo autor. Cf. Nota 8. Para as Reflexões de número 7914, 7917 e 8037, as traduções foram feitas diretamente do alemão (a tradução completa consta neste volume dos Cadernos de Filosofia Alemã). Kant. I. Metafísica dos Costumes. Trad. de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 214-215]

21. Kant, I. Metafísica dos costumes. In: Kants gesammelte Schriften. Herausgegeben von der Königlich Preussischen Akademie der Wissenschaft. Vol. 6, p 422.

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punido”22). Como pode, então, qualquer punição, e mais ainda a pena capital, ser incluída num contrato social que supostamente cada cidadão quer?

Kant inclui o argumento de Beccaria nas suas próprias notas à margem de sua cópia do texto de Achenwall:

Se o direito à pena capital devesse ser considerado como prove-niente de um pacto do povo inteiro com cada indivíduo, então se diria, mais precisamente, que não se poderia aplicar a pena de mor-te. Pois, se a nação não fizesse isto, então ela daria aos indivíduos, por assim dizer, a autorização para tirar suas próprias vidas (isto é, não os impediria), o que ninguém está autorizado a fazer.23

E na transcrição do curso de Kant feita por Feyerabend, ele apresenta o argumento de Beccaria do seguinte modo:

Beccaria diz: todas as leis devem ser vistas como se elas proviessem da vontade unânime do povo. Eles poderiam acarretar punições, impostos, etc, a si mesmas, mas eles não tem autoridade para dis-por {disponiren} sobre suas vidas. De acordo com estes mesmos princípios, não se poderia consentir na prisão perpétua. Porque é claro que não se pode dispor {disponiren}de sua própria liber-dade. O açoite jamais poderia ser aprovado porque ele desonra a humanidade.24

Kant, é claro, rejeita estes argumentos como “sofística e ca-vilação”. Para fazer isto, ele tem que mostrar que o modo como os indivíduos querem o contrato social é distinto do modo como estes mesmos desejam o ato específico da punição sob o contrato social. Eis como ele apresenta o argumento na versão publicada da Doutrina do Direito:

Dizer: quero ser punido se matar alguém não significa senão dizer que me submeto juntamente com todos os demais às leis penais.

22. Idem, p. 335.23. Kant, I. Kants Gesammelte Schriften. Herausgegeben von der Königlich

Preussischen Akademie der Wissenschaft. Vol. 19, p. 553.24. Kant, I. Kants Gesammelte Schriften. Herausgegeben von der Königlich

Preussischen Akademie der Wissenschaft. Vol. 27, pp. 1391.

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Eu, enquanto colegislador que dita a lei penal, não posso ser a mes-ma pessoa que, enquando súbdito, é punida de acordo com a lei; porque, enquanto tal, quer dizer, enquanto criminoso, não posso ter um voto na legislação (o legislador é sagrado). Portanto, quanto formulo uma leia penal contra mim, como criminoso, é a razão pura juridicamente legisladora em mim (homo noumenon ) que me submete à lei penal, como capaz de cometer crimes, por conse-guinte, como uma outra pessoa (homo phaenomenon) em conjun-to com todas as outras na associação civil. Por outras palavras: não é o povo (cada indivíduo em si mesmo) que dita a pena de morte, mas o tribunal (a justiça pública), alguém distinto do criminoso, portanto, e no contrato social não está de modo algum contida a promessa de permitir ser punido, dispondo, assim, de si próprio e da própria vida.25

Em suma, o argumento de Kant diz que Beccaria confundiu razão com vontade. É verdade que ninguém pode querer ser puni-do pois ninguém pode ter um desejo de ser inflingido com o so-frimento ou perda da liberdade acarretada pela punição. Contudo, ao mesmo tempo, enquanto ser racional, é se capaz de endossar a punição. Neste segundo sentido, pode-se desejar a punição.

Como podem estes dois sentidos de vontade operar simulta-neamente sem contradição? Kant emprega a linguagem do idea-lismo transcendental quando identifica homo noumenon e homo phaenomenon, e quando afirma que são pessoas distintas. Por “homo noumenon” Kant não quer dizer aqui a pessoa como uma coisa em si mesma, considerada idependemente da pessoa empí-rica de carne e osso que comete o crime.26 Antes, Kant identifica homo noumenon com a razão pura em mim. Razão pura é a fonte

25. Kant, I. Metafísica dos costumes. In: _____. Kants gesammelte Schriften. Herausgegeben von der Königlich Preussischen Akademie der Wissenschaft. Vol. 6, p 335. Kant, I. Metafísica dos Costumes, p. 215

26. Samuel Fleischacker nota, de modo acertado, os problemas que resultam quando alguns comentadores tentam interpretrar esta passagem utilizando um “duplo si”. Em sua própria interpretação, Fleischacker não enfatiza, como eu o faço, a distinção entre razão e vontade. Fleischacker, S.”Kant’s Theory of Punishment”. In: Williams, H. L. Essays on Kant’s Political Philosophy. Chicago: University of Chicago Press, 1992, pp. 191-212, especialmente pp. 195-8.

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do princípio do direito e, em última instância, de todos os deveres legais a priori. Isto inclui o direito de entrar em um contrato social e a autorização da coerção para manter a liberdade. A razão pura pede que eu endosse a prática da punição como exigência para sustentar o princípio do direito. Isto pode incluir a pena capital. Ao mesmo tempo, tenho uma vontade que escolhe endossar de-sejos particulares, que nós podemos chamar de vontade voluntá-ria. Naturalmente, esta vontade voluntária não escolhe e não pode escolher (sem contradição) negar a si mesma com sua morte, e assim não endossa a pena capital. Esta vontade voluntária também deseja evitar qualquer perda de felicidade e liberdade.

Para que este argumento contra Beccaria funcione, a concep-ção de Kant do contrato social precisa ser tal que associe o endos-so do contrato social pela razão e não pela vontade voluntária. Em outras palavras, deve haver um sentido no qual o endosso do con-trato social não é uma opção para o invíduo, para ele escolher ou abster-se de escolher. O contrato social deve ser válido indepen-dentemente da vontade voluntária, o que significa independente-mente das razões que normalmente alguém daria para escolher alguma coisa. A razão faz o endosso do contrato social. Olhemos agora algumas passagens das suas Reflexões, cursos e rascunhos para a Doutrina do Direito a fim de compreender a relação entre razão e vontade em relação ao contrato social e a punição.

O primeiro lugar a se olhar é em Naturrecht Feyerabend. A passagem que citei acima continua com a resposta de Kant a Beccaria:

Mas um ser humano não precisa assentir a punição, ele não disse: Eu quero muito ser punido. Ele assente apenas à lei penal e ele pensa que pode se safar dela.27

O assentimento à lei penal mencionada aqui é similar a as-serção na Doutrina do Direito de que eu sou “um colegislador que dita a lei penal”, com a diferença de que Kant usa a palavra “assen-timento”, o que faz do endosso do sistema uma questão relaciona-

27. Kant, I. Kants Gesammelte Schriften. Herausgegeben von der Königlich Preussischen Akademie der Wissenschaft. Vol. 27, pp. 1391

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da à vontade. Kant deve também ter em mente a vontade voluntá-ria na frase “Eu desejo sofrer a punição”. Há uma diferença entre assentir à lei penal pela vontade voluntária e o assentimento não voluntário ao contrato social pelo mesmo tipo de vontade que é equacionada com a razão. Mas como Kant faz esta distinção?

Uma passagem dos rascunhos de Kant para a Doutrina do Direito faz esta distinção em termos de vontade geral como oposto a vontade particular:

Justiça penal: a vontade de todos não pode impor uma punição a um indivíduo já que outros que não o indivíduo (que nunca con-corda com sua pena) não constituem todos; do contrário, a vontade geral que é abstraída de cada indivíduo [pode impor a punição], isto é, a lei sob a qual cada indivíduo se coloca.28

Na Doutrina do Direito que foi publicada Kant não invoca a vontade geral nas suas passagens sobre punição. Nesta passagem, a vontade geral é invocada como a fonte de autorização para punir, em contraste com a vontade voluntária. A vontade geral é abstra-ída da vontade particular de cada pessoa. Dada a abstração, cada pessoa está em posição de colocar-se a si mesma sob a lei, isto é, de endossar as leis. O que precisamente é abstraído?

Mais a frente, nos rascunhos da Doutrina do Direito, em meio a mais discussão sobre a punição, Kant invoca novamente a vonta-de geral de um modo que pode ajudar a responder a questão:

A vontade geral do povo não é a vontade de todos sobre um caso dado, mas antes, aquela que meramente conecta estas várias vonta-des, isto é, a vontade comum que decide por todos é, pois, a mera idéia de unidade civil. 23:335

A vontade geral é entendida como sendo a idéia da unidade civil, não uma reunião de vontades voluntárias particulares. Aqui, a “vontade de todos” é tratada como um conjunto de vontades voluntárias. É dito desta vontade geral que ela “conecta” ou “une” (verknüpft) as vontades particulares. Isto parece indicar que o que

28. Kant, I. Kants Gesammelte Schriften. Herausgegeben von der Königlich Preussischen Akademie der Wissenschaft. Vol. 23, pp. 330.

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é abstraído é algo relacionado a particularidade da perspectiva individual.

Observando-se as reflexões, outra nota sobre Beccaria tam-bém nos dá uma indicação que o que é abstraído é algo relaciona-do com individuos particulares:

O cidadão não cedeu ao soberano, como acredita Beccaria, o direito sobre sua vida, nem fez um contrato ilegal e nulo, no qual o sobe-rano não possa dispor sobre sua vida; pelo contrário, não depende de modo algum da preferência de cada um, se ele quer ser punido, antes, ele perde o statum civilem [estado civil] e é um fora da lei.29

O termo chave nesta reflexão é “preferências” (Belieben). E ela aparece novamente em outra reflexão:

Se uma sociedade se reúne em vista de um fim preferido, então ela não pode se obrigar à pena de morte. Mas, se ela se reúne em vista do fim de fundar uma sociedade civil, o que é necessário mediante a natureza, é necessária a obrigação de todos, entre outras penas, também à pena de morte.30

Aqui, a “preferência” está relacionada com um fim ou propó-sito para a formação da união civil. Nesta duas reflexões Kant está argumentando que um contrato social não pode ser baseado em preferências individuais. As preferências individuais, eu suponho, são desejos individuais e esperanças individuais de felicidade. É claro que indivíduos irão preferir permanecer vivos e fora da pri-são, portanto, prefeririam evitar punições. Kant está observando que estas preferências não podem ser a base de um contrato social, pois, se o fossem, ninguém concordaria em permitir punições, em especial a pena capital. Logo, o que indivíduos devem abstrair ao assumir a perspectiva da razão são suas preferências particulares, isto é, seus objetivos particulares de felicidade.

Agora somos capazes de juntar estes fios de pensamento e ver como eles iluminam o argumento que Kant sustenta contra

29. Kant, I. Kants Gesammelte Schriften. Herausgegeben von der Königlich Preussischen Akademie der Wissenschaft. Vol. 19, pp. 551-2.

30. Kant, I. Kants Gesammelte Schriften. Herausgegeben von der Königlich Preussischen Akademie der Wissenschaft. Vol. 19, pp. 558.

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Beccaria na versão publicada da Doutrina do Direito. Naquela descrição Kant argumentou que a justificação da pena capital vem da razão mais do que da vontade voluntária. Como pode se dar isto, que o contrato social possa ser entendido como sendo independente de qualquer necessidade de endosso pela vontade voluntária? A resposta é que o contrato social não está baseado na felicidade, mas, do contrário, apenas na liberdade. Fosse o contrato social baseado na luta dos indivíduos pela felicidade, então eles te-riam que avaliar a relação específica das leis e dos atos individuais do Estado em relação as suas próprias preferências e desejos. É por isto que punições severas como a pena de morte não seriam endossadas sob tal contrato social. Entrar ou não num contrato social seria uma questão de calcular a preferência de cada um e determinar se a felicidade esperada seria maior em um estado civil ou em um estado de natureza.

Contudo, o contrato social não é baseado em expectativas de felicidade. Para Kant, o contrato social é uma questão de direito, determinado antes e independentemente de qualquer preferência individual. Em suas obras publicadas, ele raramente se refere ao contrato social deste modo. O mais próximo a que ele chega é em Teoria e Prática, quando ele assevera que o direito, enquanto base do Estado, deve ser independente da felicidade.31 Entretanto, neste caso, seu argumento principal não está relacionado com as consequências desta visão para a coerência do contrato social, an-tes, é baseado na natureza do direito como a priori. Uma vez que questões do direito são a priori, ele afirma que questões empíricas tais como fins particulares ou concepções de felicidade não podem desempenhar nenhum papel na determinação do direito.

A discussão da relação entre punição e o contrato social, en-tretanto, iluminou outro aspecto desta separação entre direito e fe-licidade. Os efeitos desta concepção de contrato social são mostra-dos em detalhe nos argumentos de Kant sobre a punição. Somente uma concepção de contrato social que é baseada na abstração das preferências individuais, mesmo abstraindo da preferência geral

31. Kant, I. Teoria e prática. In: _____Kants Gesammelte Schriften. Herausgegeben von der Königlich Preussischen Akademie der Wissenschaft. Vol. 8, pp. 289-90.

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pela felicidade, é coerente com a instituição da punição. Pois, se um contrato social fosse baseado em preferências e felicidade, Beccaria estaria correto em dizer que não se concordaria com a pena capital enquanto parte do contrato social. Este é o ponto ao qual Kant está se referindo na Reflexão 8037 citada acima.

Portanto, o contrato social não pode ser baseado na felicidade ou outros tipos de preferências. A vontade que endossa o contrato social deve ser abstraída daquelas preferências. A vontade geral faz exatamente isto. Nós vimos que a vontade geral é tal que difere de qualquer vontade particular e também difere do conjunto das vontades particulares (a vontade de todos). A vontade geral é, para Kant, a razão prática ela mesma. Enquanto razão prática, a vonta-de geral é a base para o consentimento individual ao contrato so-cial. E a vontade geral, como sustentou Kant, insiste na instituição da punição como necessária para a existência do Estado.

Nas preleções Feyerabend, Kant sumariza de modo eloquen-te a relação entre felicidade, justiça e o propósito do Estado:

O bem-estar da república [Salus reipublicae] não consiste no con-forto de cada indivíduo [Individui], porque o estado de natureza não é um estado de desconforto, mas de injustiça. Em consequên-cia, a condição civil [status civilis] deve ser um estado que deve prevenir a injustiça. A condição republicana [Status reipublicae], é, portanto, liberdade, e sem dúvida como liberdade pública, e isto deve ser a meta do soberano supremo [imperantis summi]. Cada um deve ser tão feliz quanto possível: mas o dever do soberano {impe-rantis} deve ser o de estabelecer a justiça pública.32

A natureza do contrato social de Kant é iluminada por esta discussão. Para Kant, o contrato social se origina da razão pura prática, não de algum acordo contingente entre vontades volun-tárias. É enganoso pensar que, para Kant, os acordos particulares em um contrato social são opcionais e dependentes de vontades voluntárias particulares. Eles são, antes, o produto da razão pura como expressado através da vontade geral.

32. Kant, I. Kants Gesammelte Schriften. Herausgegeben von der Königlich Preussischen Akademie der Wissenschaft. Vol. 27, pp. 1383.

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Como se mostrou no exemplo da punição e do contrato so-cial, as fontes inéditas da filosofia política de Kant fornecem outra perspectiva sobre as obras publicadas. Nelas, o argumento contra Beccaria se insere num contexto mais amplo e recebe um tratamen-to mais aprofundado do que resulta se tomarmos apenas a Doutrina do Direito. Minerar esta fonte pode ser muito recompensador e va-lioso, e dos minérios das idéias brutas de Kant pode advir algum polimento para as barras de ouro das suas famosas obras.33

Tradução de Cauê Cardoso Polla

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33. Este trabalho foi apresentado na Universidade de São Paulo em Agosto de 2009. Gostaria de agradecer ao professor Ricardo Terra e seus alunos pela discussão extremamente proveitosa sobre estes tópicos durante minha visita.

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_____. Teoria e prática. In: _____Kants Gesammelte Schriften. Herausgegeben von der Königlich Preussischen Akademie der Wissenschaft. Vol. 8. Berlin: Walter de Gruyter, 1902 e ss.

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No limiar do mundo: a posição de Heidegger sobre a diferença entre animais e humanos

Fernando RodriguesMestre em Filosofia pela Universidade Federal do

Paraná – UFPR e doutorando em Filosofia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

da Universidade Estadual de Campinas – IFCH/UNICAMP

Resumo: A posição de Heidegger quanto à diferença entre o animal e o homem é muitas vezes tomada por não científica ou conservadora. Essa é também a posição de Peter Sloterdijk em seu opúsculo Regras para o parque humano. Neste artigo, argumenta-se que um entendimen-to correto da posição de Heidegger sobre este tema depende da com-preensão adequada dos conceitos de transcendência, mundo e formação de mundo, tais como explicitados em Ser e tempo (1927) e nos Conceitos fun-damentais da metafísica (1929/30). Assim procedendo, mostra-se que a descrição oferecida por Sloterdijk em suas Regras tende a simplificar o complexo horizonte de proble-mas por onde Heidegger transita ao enunciar uma diferença radical entre o animal e o homem, mostrando-se assim como restrita do ponto de vis-ta interpretativo.

Palavras-chave: Heidegger. Sloterdijk. Dasein. Animalidade. Mundo.

Abstract: Heidegger’s position on the difference between man and ani-mal is often taken as non-scientific or even conservative. This is also Peter Sloterdijk’s view, as defended in his essay Regeln für den Menschenpark. In this paper we intend to show how a due understanding of Heidegger’s statements depends on a proper understanding of the concepts of transcendence, world and world-for-ming, as explained in Being and Time (1927) and in his The Fundamental Concepts of Metaphysics (1929/30). By doing so, we may prove that the description offered by Sloterdijk in its Regeln tends to simplify the com-plex horizon of problems wherein Heidegger moves when he defends a radical difference between man and animal, and thus we intend to show how Sloterdijk’s interpretation of Heidegger is in itself restricted.

Keywords: Heidegger. Sloterdijk. Dasein. Animality. World.

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1. Introdução

Depois que Charles Darwin (1809-1882) publicou A origem das espécies, em 1859, pode parecer temerário afirmar, na universi-dade e demais ambientes comprometidos com o saber e a ciência, que há uma diferença radical entre os animais e o homem. Em ge-ral, tal posicionamento é considerado reacionário: tratar-se-ia ou bem de simples cegueira ou bem de algum tipo de dogmatismo de cunho filosófico ou religioso. Farta de evidências, a história natu-ral da evolução das espécies e da subseqüente diversidade da vida na Terra instituiu uma visão revolucionária de mundo. Nela, a na-tureza do mundo é reinterpretada em diversas direções e algumas de suas proposições, como a assunção da comum ancestralidade de todos os viventes, faz reaproximar de modo peculiar o animal e o homem, superando antigos abismos e colocando-os lado a lado como parentes ora mais próximos ora mais distantes. Num con-texto como este, um questionamento sobre a diferença básica entre os animais e o homem não passaria de mera reformulação do dis-curso humanista tradicional.

Poucos pensadores detiveram-se tão obstinadamente quan-to Martin Heidegger (1889-1976) num questionamento sobre a diferença peculiaríssima dos humanos. Desde Ser e tempo (1927), Heidegger marca o caráter especial da reflexão filosófica sobre a essência do homem, o Dasein, o ente que compreende ser.1 Na me-

1. Ainda que o objetivo de Ser e tempo não seja o de elaborar uma antropo-logia filosófica, seria temerário negar que a analítica existencial, momento decisivo da dupla tarefa a ser cumprida com vistas ao empreendimento da questão sobre o sentido do ser em geral, põe o homem em questão de um modo radical. Ademais, ainda que a questão do ser (Seinsfrage) de fato se configure como a mola propulsora e o fio condutor da vida de pensamento de Heidegger, há de se observar que tanto em Ser e tempo quanto em sua Carta sobre o humanismo (1946), por exemplo, publicada duas décadas depois da aparição do opus magnum, é o homem o ente por primeiro interpelado na reflexão que visa ao questionamento do ser. Em Ser e tempo, porque Dasein, o homem, é compreensão de ser. Na Carta, porque aquilo que se consuma na linguagem é o nexo de pertencimento do homem ao ser, isto é, o que se con-suma no pensar da linguagem é a imbricação da verdade do ser e da essência do homem. A despeito da centralidade da questão do ser, neste trabalho nos interessa o problema da diferença peculiaríssima do homem.

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dida em que suas teses, entretanto, não pressupõem as de Darwin, senão que, de certo modo, colocam-nas em questão justamente no que concerne à sua sustentabilidade enquanto proposições funda-mentais sobre a essência do homem, não é de estranhar que sua obra seja simplesmente tomada por não científica ou conservadora quanto às suas posições acerca da diferença entre o modo de ser de animais e humanos.

É assim que Peter Sloterdijk (1947-), por exemplo, compre-ende a posição de Heidegger.2 Em seu opúsculo Regras para o par-que humano, texto de uma polêmica conferência pronunciada em julho de 1999 na cidade de Elmau, Sloterdijk tornou explícito o seu pathos anti-heideggeriano ao caricaturar o autor de Ser e tempo como um “anjo colérico com espada em riste”, como se Heidegger não fizesse senão caminhar entre o animal e o homem com o fim de “impedir qualquer comunhão ontológica” entre eles.3 Entretanto, o fato de Heidegger abdicar resolutamente de um questionamen-to acerca da origem das espécies não é fator suficiente para torná-lo um pensador reacionário ou um neo-humanista.

No presente texto, mostra-se que um entendimento cor-reto do posicionamento de Heidegger acerca da diferença entre animais e homens depende da adequada compreensão de sua interpretação do fundamento do existir humano, a transcendên-cia (Transzendenz). Veremos que a compreensão da posição de

2. Nascido em 1947, na cidade de Karlsruhe, Alemanha, Peter Sloterdijk ga-nhou projeção internacional com a publicação, em 1983, de sua Kritik der zynischen Vernunft (Crítica da razão cínica – ainda sem tradução para o por-tuguês), um livro sobre o cinismo enquanto fenômeno social da história eu-ropéia. Sloterdijk leciona filosofia e estética em Karlsruhe e em Viena e seu trabalho não se deixa rotular com facilidade. É costumeiramente descrito como um dos pensadores e ensaístas alemães mais instigantes e originais da atualidade. Na última década veio a público sua produção monumental, Esferas, descrita por ele próprio como sua obra mais fundamental. De inser-ção midiática, um filósofo das mídias, Peter Sloterdijk apresenta o programa de televisão “Das philosophische Quartet”, no canal alemão ZDF, ao lado do também filósofo e escritor Rüdiger Safranski.

3. Sloterdijk, P. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. Trad. de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2000, p.25.

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Heidegger quanto à essência da transcendência é a condição para a correta apropriação de sua afirmação de que o homem, e somente ele, é formador de mundo. Dada a centralidade da noção de forma-ção de mundo, clarifica-se brevemente aqui também o conceito de mundo (Welt) em Heidegger, tal como formulado no período de publicação de Ser e tempo. Este esclarecimento é pressuposto para a compreensão de sua afirmação de que o animal é pobre de mundo (Weltarmut). Percorrido este caminho, obtém-se a fixação concei-tual do sentido adequado da proposição heideggeriana quanto à diferença entre animais e humanos, bem como fica claro que a descrição do problema tal como oferecida por Peter Sloterdijk em suas Regras é insuficiente para uma crítica interna dos posiciona-mentos de Heidegger, na medida em que se revela como restrita do ponto de vista interpretativo.

2. O animal é pobre de mundo, o homem é formador de mundo

Na preleção do semestre de inverno de 1929/30, Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo – finitude – solidão, Heidegger defrontou-se diretamente com o problema de determinação da diferença entre o animal e o homem. Absolutamente avesso à tese tradicional, segundo a qual a racionalidade é a diferença específica do homem, Heidegger tampouco pode aceitar que esse questio-namento se deixe pautar numa teoria da evolução das espécies, justamente por haver diagnosticado que toda teoria deste gênero já pressupõe determinações prévias tanto do que seja o homem como também do que seja o animal. A questão sobre se o ho-mem descende ou não dos símios, por exemplo, já pressuporia uma diferença entre eles, ainda que não se proponha a pensá-la. Do mesmo modo, a afirmação de que essa diferença consiste na racionalidade não chega, para Heidegger, a questionar a essência da racionalidade.4

4. Para se compreender o que Heidegger tem em vista ao falar em essência (Wesen), é fundamental ter claro que seu pensamento opera uma superação radical da tradição essencialista. Essência, em Heidegger, nunca diz de um quê, de um quid (Was), mas refere-se ao como (Wie) do essenciar-se (acon-tecer, aparecer) de um ente, diz respeito ao traço peculiar do seu modo de ser

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Com sua investigação fenomenológico-hermenêutica, por seu turno, Heidegger visa a uma determinação da animalidade do animal, e quer empreender uma investigação cujo ponto de partida seja o próprio animal, e não o homem. Ou é assim, ou não se poderá dar expressão à diferença previamente determinan-te em toda distinção entre animalidade e humanidade. A promis-sória que Heidegger assinará aqui é a seguinte: a apreensão em caracteres ontológicos do que seja a animalidade depende de se poder enunciar o que perfaz a vitalidade do vivente em geral, em sua distinção ante o sem-vida, ante a pedra, por exemplo. Para Heidegger, a zoologia morfológica, mesmo que posteriormente acrescida de uma psicologia animal, não dispõe dos meios neces-sários para uma enunciação da essência da animalidade. O mais das vezes, ela sequer chega a perceber que a animalidade encerra vitalidade, ainda que a proposição “o animal vive” seja um de seus pressupostos. Donde o caráter mais originário, no que concerne à investigação do modo de ser do animal, da questão sobre o que seja a vida (Leben).

Mas qual o procedimento metodológico adequado com vis-tas à determinação do que seja a vida em geral? Qual o caminho a ser percorrido com vistas à fixação conceitual da vitalidade do vivente? Pois é pouco provável que possamos esperar que ad-venham dos animais relatos a seu próprio respeito, a respeito do seu modo de ser. Entretanto, ao menos para nós, enquanto intérpretes, o animal de alguma forma se mostra em seu modo de ser, concedendo uma ou outra informação sobre si, na medi-da em que se expressa por certos movimentos, sons ou ruídos.

(Seinsmodus). Como se lê no § 7 de Ser e tempo, “apreender o ser dos entes e explicar o próprio ser é a tarefa da ontologia”. Ora, uma vez que a onto-logia de Heidegger é fenomenológico-hermenêutica, os conceitos hauridos da tradição, de cuja análise ele por vezes se vale, precisam ser pensados numa tal base. “A expressão ‘fenomenologia’ significa, antes de tudo, um conceito de método. Não caracteriza a qüididade real dos objetos da investigação filosó-fica, o quê dos objetos, mas o seu como, o como dos objetos. [...] O conceito fenomenológico de fenômeno propõe, como o que se mostra, o ser dos entes, o seu sentido, suas modificações e derivados”. Heidegger, M. Sein und Zeit. Achtzehnte Auflage. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 2001, p. 34-9.

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Uma exegese da vida animal parece dispor, de certo modo, de um ponto de partida. Valendo-se disso, Heidegger vai pressupor três teses, ou uma tese tripartite, a fim de poder aceder a uma caracterização da essência da vida: 1) a pedra é sem mundo; 2) o animal é pobre de mundo; 3) o homem é formador de mundo.5 Esta pressuposição, que pretende mobilizar um questionamento sobre a essência da animalidade ao tocar no problema da determinação da vida em sentido geral, há de permitir também uma confir-mação de mundo como a estrutura fundamental e distintiva do homem, como o ente capaz de compreender e interpretar o ente como tal e no seu todo.

Com a tese “o animal é pobre de mundo”, Heidegger tem em vista a apreensão da essência da animalidade enquanto tal, logo, a tese não diz respeito a este ou àquele animal em específico, mas à totalidade do gênero animal. Na medida em que pretende apre-ender pelo recurso ao método fenomenológico-hermenêutico o traço mais básico da animalidade, esta tese é pressuposição de toda zoologia. Porém, qual é o critério de medida e verdade de uma tese como essa, essencialmente ontológica, filosófica? Heidegger surpreende: ainda que tal proposição não provenha da zoologia, ela tampouco pode ser legitimamente discutida sem um recurso atencioso às pesquisas empíricas desta ciência. Não nos depara-mos, então, com uma ambigüidade? De fato. Mas Heidegger tem claro, neste momento de sua reflexão filosófica, que a relação entre metafísica e ciência positiva ainda precisaria ser pensada em sua ambigüidade característica. Caberia, inclusive, uma delimitação mais distinta da relação da filosofia, do questionamento filosófico,

5. Faz parte das regras do jogo fenomenológico-hermenêutico que teses pos-sam ser pressupostas, a fim de que a sua comprovação seja averiguada no próprio decurso e empreendimento da investigação. Este, aliás, é o sentido básico do círculo da compreensão, também chamado círculo hermenêutico, cuja apresentação se dá no § 32 de Ser e tempo. O compreender é sempre um ter prévio (Vorhabe), uma visão prévia (Vorsicht), uma concepção prévia (Vorgriff). A tarefa hermenêutica básica consiste justamente em poder sub-meter tudo o que se sabe como prévio (vor) a um exame e revisão detidos, seja com vistas à sua confirmação ou à sua denegação.

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com a zoologia e, do mesmo modo, com a biologia, entendida como ciência do vivente em geral.

Mas antes de proceder a qualquer conclusão, é urgente clari-ficar aqui o sentido da expressão pobreza de mundo, a fim de que se tenha claro que ela não faz senão apontar para uma diferenciação modal, para a especificidade de um modo de ser, e não tem nada que ver com um juízo valorativo de caráter depreciativo. Pobre de mundo quer dizer: o animal tem e não tem mundo. Heidegger in-siste reiteradamente que a noção de pobreza não diz de um menos em relação à riqueza de outro ente, ou do baixo com relação a um alto. Para o autor, permanece altamente problemático o falatório acerca de um caráter mais elevado do homem em relação aos ani-mais. Razão pela qual o seu esforço, com as três teses interpreta-tivas, é tão-somente o de poder descrever, pelo recurso ao método fenomenológico-hermenêutico, as diferenças modais que se expli-citam nos distintos modos de ser nelas considerados, o ser-pedra, o ser-animal e o ser-homem.

Vê-se, com isso, que o conceito de pobreza tem uma signi-ficação muito específica, cuja compreensão depende do esclareci-mento do modo de estar imbricado com o mundo que é próprio ao animal: ter e não ter. A tese de Heidegger é a seguinte: ser pobre significa ser privado. E este ser-privado tem o sentido, no caso dos animais, de um ser privado de acesso ao ente no seu como. A pedra, di-ferentemente do animal, é de tal modo que sequer pode ser ou não ser privada de acesso: a pedra é sem mundo, e isso é expressão de uma total ausência de acessibilidade. Como pura pedra, ela perten-ce ao contexto da natureza física material e de suas leis. O animal, ao contrário, na especificidade de seu modo de ser, estabelece de-terminados vínculos com o seu círculo envoltório (Umring), com o seu alimento e com sua presa, com seus inimigos e predadores, com seus parceiros sexuais etc. Mas isso não implica dizer que o animal os compreenda como algo, como entes, como sendo isso ou aquilo, dessa ou daquela maneira.

Permanece essencial, porém, determinar o isso a que o ani-mal acha-se ligado. Do mesmo modo, o questionamento filosófico precisa apreender o sentido, na vida animal, da sua ligação com

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um entorno. De modo mais direto: é necessário ter clareza sobre a característica peculiar do ambiente dentro do qual o animal de-sempenha suas aptidões. Para Heidegger, é inegável que a anima-lidade e a vida em geral são marcadas pelo acesso (Zugang) a isso em meio a que o ser-vivo se acha. Sua interpretação se desenvolve no seguinte sentido: o animal conecta-se com o seu entorno e tem assim o seu ambiente (Umgebung; Umring). Durante a sua vida, no entanto, o animal encerra-se aí, em seu mundo-ambiente, como um mundo que não se estreita nem se amplia. Naturalmente, há sempre a possibilidade da fuga ou do rapto, ou do simples ser retirado de seu ambiente, mas isso sempre implica menos-vida ou não-mais-vida, isto é, morte.

É por considerar esta restrição ou aprisionamento do ani-mal a um círculo envoltório delimitado que Heidegger enuncia a proposição: o animal tem e não tem mundo. Esta tese, para além da contradição lógica a que dá expressão, aponta para dois ex-tremos: ausência de mundo e formação de mundo. Na preleção do semestre de inverno de 1929/30, ela serve como o fio condutor capaz de conduzir à compreensão do fenômeno do mundo: a aber-tura (Offenbarkeit) do ente como ente no seu todo.6 Além disso, o que

6. É preciso observar que a palavra portuguesa “abertura”, aqui empregada para a alemã Offenbarkeit, não traduz todos os aspectos do fenômeno designa-do pelo termo original, permanecendo deficitária. A simples tradução por “abertura” oblitera o aspecto de possibilidade próprio dos adjetivos alemães terminados em –bar, tais como erkennbar, manipulierbar, verwechselbar e o próprio offenbar – além de inúmeros outros – de onde advém, por derivação, o substantivo Offenbarkeit. Boa tradução para este termo talvez fosse um dos seguintes neologismos: aberturidade, abertureidade ou aberturabilidade, os quais, entretanto, por si só contribuiriam pouco para a elucidação do fe-nômeno em questão. Também não nos parece que manifestidade, tal como sugere a tradução para o inglês de W. McNeill e N. Walker de Offenbarkeit por manifestness, esteja livre de complicações – ainda que na fala alemã co-tidiana, de fato, o adjetivo offenbar designe aquilo que está manifesto, no sentido do que é por si mesmo claro, evidente ou óbvio (cf. Wahrig Deutsches Wörterbuch) –, por conta de seu comprometimento com as tradições teo-lógica e gnosiológica. Mas há ainda um outro complicador: o leitor da única tradução de Ser e tempo disponível em língua portuguesa, publicada pela brasileira Editora Vozes, tende a associar “abertura” à expressão ale-mã Erschlossenheit (esp. Aperturidad; ing. Disclosedness; fr. Ouverture), termo

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ela diz é de significação essencial: o animal, em seu modo de ser, é determinado pelo fato de dispor de acessibilidade a... Este é um traço que o animal, aliás, compartilha com o homem, a acessibili-dade (Zugänglichkeit), entendida como a capacidade – do animal e do homem – de ter acesso a algo. Toda a diferença entre o animal e o homem, porém, repousa numa distinção fundamental entre os modos de acessibilidade a algo que lhes são característicos.

O animal é caracterizado por um ser-aberto, por ser-aberto no seu interagir [Benehmen] com isso que chamamos de círculo envoltório. O animal carece da capacidade de apreender como um ente aqui-lo para que ele está aberto. Todavia, [...] ao homem pertence um ser-aberto para... que se configura de tal modo que este ser-aberto para... tem o caráter do apreender algo como algo. A este modo de ligar-se ao ente denominamos comportamento [Verhalten], distin-guindo-o do interagir dos animais.7

Vê-se que nesta preleção de 1929/30 acessibilidade é algo que caracteriza também o modo de ser do animal. Nos domínios do círculo envoltório que o circunda, o animal desfruta de um tipo de acessibilidade que se entende sob os termos do ter e não ter mundo. Seu modo de ser, entretanto, é a catividade ou o estar-absorvido (Benommenheit). Vitalidade, animalidade descrevem, assim, um ser-impelido-em-direção-a... cujo caráter é, de certo modo, o de um lançar-se para fora de si. Mas neste lançamento, entretanto – ao

empregado em Ser e tempo para designar a constituição básica do aí (Da) do Dasein, a própria clareira (Lichtung), e que, do mesmo modo, ainda que por razões diversas, bem se poderia traduzir pelos neologismos propostos nesta nota. Agora, tanto Offenbarkeit quanto Erschlossenheit vêm à tona, em seus contextos específicos, numa vinculação essencial com o conceito de mun-do (Welt), conceito chave na reflexão de Heidegger no período que vai de Ser e tempo aos Conceitos Fundamentais. É desta vinculação que nos valemos aqui para traduzir, um tanto indistintamente, ambos os termos por abertu-ra, recorrendo ainda às formulações dos tradutores brasileiros. Este recurso, entretanto, não deve nos desobrigar da investigação específica dos motivos subjacentes à modificação terminológica operada por Heidegger, pesquisa com a qual, por ora, necessitaremos permanecer em débito.

7. Heidegger, M. Die Grundbegriffe der Metaphysik: Welt – Endlichkeit – Einsamkeit. In: _____. Gesamtausgabe. Band 29/30. Frankfurt-am-Main: Vittorio Klostermann, Zweite Auflage, 1992, p. 443.

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ouvir ou ao capturar sua presa, por exemplo – o animal não faz se-não desempenhar uma aptidão (Fähigkeit), de tal modo que o seu estar-ligado com o que se dá ao seu entorno é um estar-absorvido por um círculo de desinibições (Enthemmungskreis).

Assim, não se dá para o animal uma abertura do ente como ente, do sendo enquanto sendo. O ente, ao contrário, é que o retém absorvido e o cativa numa tal absorção, e isso possibilita o seu modo de ser como um interagir (Benehmen), um desempenho de aptidões (Benehmung): “a vida não é nada além da luta do animal com o seu círculo. Através desta luta ele é absorvido, sem jamais estar junto a si mesmo em sentido próprio”.8 No Dasein humano, porém, toda acessibilidade se funda numa abertura do ente como tal e num todo, isto é, todo comportamento (Verhalten) face ao ente se funda na abertura de mundo que caracteriza essencialmente o homem, donde a tese: o homem é formador de mundo. Pelo expos-to, extrai-se que a compreensão de Heidegger sobre o que seja propriamente comportamento (Verhalten) é bastante singular, uma vez que dela depende o entendimento da diferença básica entre animais e humanos. Além disso, o comportamento se dá sempre como um comportar-se com o ente como ente na totalidade. Donde a necessidade de que, no que segue, esta definição de comportamen-to seja elucidada.

3. Transcendência, mundo e comportamento humano

Logo no § 1 de Ser e tempo, observou Heidegger: “Todo mun-do compreende: ‘o céu é azul’, ‘eu sou feliz’ e coisas semelhantes. Esta compreensibilidade comum, entretanto, não faz senão demonstrar uma incompreensibilidade. Ela torna manifesto que em cada comportar-se e ser com o ente enquanto ente um enigma subjaz já sempre a priori”.9 Embora sucinta, esta sentença torna explícito que, para Heidegger, o modo de ser mais básico do ser humano consiste num ser-aberto para a possibilidade de ser e comportar-se com o ente enquanto

8. Idem, p. 374.9. Heidegger, M. Sein und Zeit. Achtzehnte Auflage. Tübingen: Max Niemeyer

Verlag, 2001, p. 4, grifo meu.

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ente. Assim, a própria analítica existencial, cujo empreendimento é apresentado na introdução de Ser e tempo como exigência de uma investigação sobre o sentido do ser em geral, envolve e mobiliza de saída um questionamento sobre o problema básico da condição de possibilidade do comportamento humano em sentido geral, isto é, do comportamento que é possível, para o Dasein humano, travar consigo mesmo, com o outro e com o ente que é distinto de si.

Ora, uma das teses básicas que perpassam Ser e tempo é a de que toda tematização deste enigma sempre inserido a priori em cada comportamento do Dasein com os entes não é nada se-não uma investigação sobre a essência da abertura de mundo que se consuma com a transcendência da existência.10 Deste modo, o conceito fenomenológico-hermenêutico de mundo elaborado por Heidegger no período de Ser e tempo visa justamente a dar expres-são ao fenômeno a partir do qual o comportamento humano se faz possível. Em Ser e tempo, é o vigor do fenômeno do mundo o que explicita a condição de possibilidade do comportamento humano e da descoberta do ente como ente11. Mundo, por sua vez, enten-dido como instância de conformatividade (Bewandtnis) e signifi-catividade (Bedeutsamkeit), é o horizonte ou o na-direção-de-quê (Woraufhin) da transcendência, ou, em terminologia propriamente

10. Não por acaso, o conceito de abertura (Erschlossenheit) em Ser e tempo reme-te sempre a uma abertura de mundo: “a descoberta do ente intramundano funda-se na abertura de mundo”. Heidegger, M., Sein und Zeit, p. 220. Não por outra razão é que “o compreender pode colocar-se primariamente na abertura de mundo, ou seja, o Dasein pode, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, compreender-se a partir de seu mundo”. Idem, p. 146. Pois “enquanto abertura do aí (Da), o compreender sempre diz respeito a todo o ser-no-mundo. Em todo compreender de mundo, a existência está compreendida e vice-versa”. Idem, p. 152. E ainda mais: “com o ser do Dasein, o mundo já se abriu de modo essencial; com a abertura de mundo, já se des-cobriu o “mundo”. Idem, p. 203.

11. Em minha dissertação de mestrado propus-me explicitar o modo como o conceito fenomenológico-hermenêutico de mundo elaborado no período de Ser e tempo dá expressão ao fenômeno a partir e por meio do qual irrompe a possibilidade do comportamento humano ou, em termos da tradição, da descoberta do ente. O texto acha-se disponível no seguinte endereço eletrô-nico: http://www.filosofia.ufpr.br/docs/diss_fernando_rodrigues2007.pdf

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heideggeriana e aqui ainda carente de elucidação, é o signo do ultrapassamento do ente, do vigor da diferença entre ser e ente, a diferença ontológica.

Compreender a peculiaridade da noção heideggeriana de mundo é condição para uma apropriação adequada de sua tese sobre a diferença entre animais e humanos. O que argumenta-mos aqui, de modo a encaminhar nossa avaliação da posição de Sloterdijk, é que este conceito de mundo, por sua vez, somente se deixa elucidar de modo preciso enquanto referido ao acontecimen-to da transcendência, o ultrapassamento do ente. Para Heidegger, transcendência é a constituição primordial do Dasein, do ente que, na medida em que existe, é já ele mesmo um ultrapassar, uma ultra-passagem.12 Transcendência não é um comportamento do sujeito, nem tampouco diz intencionalidade, mas é, antes, a condição de possibilidade de toda e qualquer modalidade de comportamento do ser humano, seja consigo mesmo, seja com os entes distintos de si.

Aquilo que o Dasein ultrapassa na transcendência não é uma bre-cha ou uma fronteira “entre” ele mesmo e os objetos. Os entes, ao contrário, entre os quais o Dasein também está facticamente, é que são ultrapassados pelo Dasein. Os objetos são previamente ultrapassados; mais exatamente, os entes são ultrapassados e po-dem, então, tornar-se objetos. O Dasein é lançado, fáctico, com-pletamente em meio à natureza por meio de sua corporeidade, e transcendência consiste no fato de que os entes, entre os quais o Dasein está e aos quais ele pertence, são ultrapassados pelo Dasein. Em outras palavras, enquanto transcendência, o Dasein está além da natureza, muito embora, enquanto fáctico, ele permaneça envol-to pela natureza. Transcendendo, isto é, enquanto livre, o Dasein é estranho à natureza. 13

12. Cf. Heidegger, M. Metaphysiche Anfangsgründe der Logik im Ausgang von Leibniz. In: _____. Gesamtausgabe. Band 26. 2., durchgesehene Auflage. Frankfurt-am-Main: Vittorio Klostermann, 1990, p. 210. Cf. também Heidegger, M. Vom Wesen des Grundes. In: _____. A essência do fundamento. Edição bilíngüe. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 32.

13. Heidegger, M. Metaphysiche Anfangsgründe der Logik im Ausgang von Leibniz. In: _____. Gesamtausgabe. Band 26. 2., 212. É importante ressaltar

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Com a transcendência da existência, o próprio ente é o ul-trapassado, e isso numa totalidade. O ultrapassado, o ente mesmo, desvenda-se, descobre-se, e aí pode vigorar mundo. A transcen-dência, assim, dá-se na direção de mundo, tem o mundo como seu horizonte, como seu na-direção-de-quê (Woraufhin). Na me-dida em que o Dasein mesmo, por sua vez, é o transcendente, o transcendendo ou a ultrapassagem em sua acontecência própria, o comportamento humano se faz possível. De tal modo que com o título ser-no-mundo, Heidegger não faz senão apreender con-ceitualmente a estrutura fundamental de sustentação do Dasein, deste ente em cujo ser – transcendência – se dá a possibilidade da descoberta (Entdecktheit) do ente num todo, isto é, com o Dasein abre-se o mundo e, desde o mundo, a possibilidade do comporta-mento. É porque vige mundo que o Dasein pode retornar ao ente, comportando-se. Mundo é o enigma sempre inserido a priori em cada jogo de ser e comportar-se do Dasein com o ente enquanto ente na totalidade. E não é a outro resultado que Heidegger che-gará na sua preleção do semestre de 1929/30, ainda que por cami-nhos bastante distintos: mundo é a abertura (Offenbarkeit) do ente como tal e no seu todo. E justamente de um tal modo de abertura é que o animal achar-se-ia privado.

4. A estrutura-como e a formação de mundo

No que segue, ainda necessitamos esclarecer brevemente o sentido preciso da expressão “abertura do ente como ente na totali-dade”. Num curso proferido em Marburg no semestre de inverno

que o problema da transcendência na reflexão de Heidegger não se dei-xa compreender no sentido tradicional, ou seja, ora sob os termos de uma relação entre sujeito e objeto, ora como relação entre o ente humano con-tingente e o deus incondicionado. Com o conceito de Dasein, Heidegger implode as noções de imanência do sujeito e de contingência do ente criado e, conseqüentemente, o problema da transcendência passa a ser situado num terreno mais originário que aqueles por onde transitam a gnosiologia e a teologia. Para Heidegger, “transcendência é a ultrapassagem que possibilita algo como a existência em geral” (Heidegger, M. Vom Wesen des Grundes. In: _____. A essência do fundamento, 1988, p. 35), a tal ponto que ela diz da própria constituição básica e essencial do Dasein, não se referindo nunca a alguma modalidade comportamental do sujeito ensimesmado.

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de 1925/26, intitulado Lógica, a pergunta pela verdade, Heidegger já afirmava: “a estrutura do ‘como algo’ é, portanto, a estrutura hermenêutica fundamental do ente que denominamos existência (vida humana)”.14 Ou, de outro modo: “o ‘como algo’ é a estrutu-ra que corresponde à compreensão enquanto tal, à compreensão que necessita aqui ser entendida como um modo fundamental do ser de nossa existência”.15 Estes extratos iluminam o que diz Heidegger em Ser e tempo, ao afirmar: “o ‘como’ constitui a estru-tura de expressividade de um compreendido; o ‘como’ constitui a interpretação [Auslegung]”.16 Como já fizemos notar, é este como justamente o que permanece recusado ao animal. Para Heidegger, o como firma o seu lugar como uma estrutura formal que se man-tém circunscrita ao Dasein do homem, como um momento estru-tural de sua própria abertura (Offenbarkeit), como ele se expressaria em 1929/30.

Não temos condições de percorrer aqui as exposições de Heidegger sobre o problema do como, da estrutura-como, empreen-didas, em ambas as preleções citadas, por meio de uma discussão do conceito de logos ou, mais especificamente, da sua condição de possibilidade. Entretanto, é necessário ter claro que sua obstinação por alcançar a dimensão originária do como tem em vista o empre-endimento de uma discussão de princípio com a tradição da lógica e com a metafísica que a fundamenta, e justamente porque de tal discussão dependeria não só o destino da metafísica, mas, sobretu-do, o destino do próprio homem.17 É sobre tais bases que se justi-fica, por exemplo, toda a tematização heideggeriana do problema da proposição enunciativa. Aqui, na medida em que aquilo que se intenta é contribuir com a clarificação da posição de Heidegger sobre o problema da diferença entre o animal e o homem, precisa-

14. Heidegger, M. Logik: Die Frage nach der Wahrheit. In: _____. Gesamtausgabe. Band 21. Frankfurt-am-Main: Vittorio Klostermann, Zweite Auflage, 1995, p. 150, nota 6.

15. Idem, ibidem.16. Cf. Heidegger, M., Sein und Zeit, p. 149.17. Cf. Heidegger, M. Die Grundbegriffe der Metaphysik: Welt – Endlichkeit –

Einsamkeit. In: _____. Gesamtausgabe. Band 29/30, p. 468.

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mos nos restringir ao tratamento da seguinte questão: o que sig-nifica comportar-se face ao ente como tal? E falar disso já é falar a respeito de algo que o animal, segundo Heidegger, essencialmente não pode.

Já no curso de 1925/26, Heidegger apresentava sua temati-zação da originariedade (Ursprünglichkeit) do como-hermenêutico (hermeneutisches Als) face ao como-apofântico (apophantisches Als), o como que se desvenda no juízo, na proposição. Esta discussão seria decisiva em Ser e tempo.18 A tese de Heidegger pode ser sin-tetizada nos seguintes termos: todo encontro do Dasein humano com o ente se dá por meio de um comportamento ocupacional, e a estrutura-como descreve a determinação e configuração das bases desde as quais tal comportamento se faz possível. Heidegger diz:

O nosso ser orientado às coisas e aos homens se move nesta es-trutura: algo como algo – resumindo: tem a estrutura do como. Tal estrutura-como não é, por isso, recebida da predicação. Em cada ter-de-haver-se-com [Zu-tun-haben] algo, não estou realizando nenhum enunciado tematicamente predicativo sobre esse algo. Donde a necessidade de insistir expressamente no caráter ante-predicativo da estrutura-como. [...] A predicação tem a estrura-como, mas somente de uma maneira derivada.19

Há que se precaver aqui de uma compreensão do comporta-mento ocupacional sob os termos de um produzir (Herstellen). Na chave da práxis fundamental pensada em Ser e tempo, o compor-tamento ocupacional diz sempre de um deixar-ser (Seinlassen) o ente, e isso de modo casual, segundo o que se dá neste ou naquele momento, num jogo muito parecido com o brincar das crianças.20 Comportar-se é, assim, empreender um jogo exploratório das pos-sibilidades, daquilo que é possibilitado pela significância do mun-do. Todo comportar-se e ser do Dasein face ao ente como ente

18. Cf. Heidegger, M. Sein und Zeit, § 32.19. Heidegger, M. Logik: Die Frage nach der Wahrheit. In: _____. Gesamtausgabe.

Band 21, p. 144.20. Cf. Loparic, Z. Ética e finitude. 2ª edição revista e ampliada. São Paulo:

Editora Escuta, 2004.

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caracteriza-se sempre, deste modo, como uma simples possibilidade de ser. Mundo, assim, não é senão o horizonte de possibilidades do Dasein21, e o como (Als), por sua vez, explicita não somente o modo característico a partir do qual o ente pode vir ao encontro do Dasein – irromper na cena do mundo, fazer-se intramundano (innerweltlich) –, mas, sobretudo, a estrutura possibilitadora do encontro, o mundo mesmo.

Para o Dasein, o ente é sempre um já-interpretado, e isso quer dizer, interpretado na sua possibilidade. O que faz do ente um ente intramundano é justamente o seu já-ser-interpretado pelo Dasein, o fato de ele não ser nunca “um puro dado encerrado sobre si”.22 O ente vem à presença por meio da estrutura-como, e esta o articula de tal ou tal modo, sempre segundo um como. A este poder (können) de articulação, Heidegger chamou sentido (Sinn). Sentido, por sua vez, é sempre sentido de ser do ente, entendendo-se por isso o âmbito da articulação ontológica das possibilidades ônticas no ente. O ente sempre vem ao encontro do Dasein como um já-intepretado, e interpretado por meio de seu sentido de ser.

Heidegger descreveu o modo de ser do animal como um es-tar-aprisionado no ambiente onde ele desempenha suas aptidões. Para o animal, tal ambiente, como vimos, é o círculo de desinibi-ções. Na medida em que a própria vida é descrita sob os termos de uma luta ou de um esforço para a manutenção do círculo, ela se distingue essencialmente da abertura característica do homem, a formação de mundo. Num desdobrar-se pulsional peculiar, todo o interagir (Benehmen) animal com seu mundo ambiente se acha marcado por uma essencial dependência com relação ao elemen-to desinibidor, donde seu estar-aprisionado (Genommenheit). Não chega a irromper no animal – o atesta o seu modo de ser – uma abertura para o ente no seu como, capaz de possibilitar-lhe uma apropriação interpretativa do ente, na chave de um sentido pro-jetado. Para o homem, como Dasein, o ente que vem ao encontro

21. Cf. Paisana, J. Fenomenologia e hermenêutica: a relação entre as filosofias de Husserl e Heidegger. Lisboa: Editorial Presença, 1992, p. 130.

22. Idem,p. 131.

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é já sempre inserido criativamente na trama significativa que se faz e deixa tecer ali onde vigora uma dimensão de sentido, ali onde se dá testemunho do ultrapassamento do ente, da transcendên-cia. Ainda que, dada a herança, nem tudo seja factível ao homem, permanece-lhe aberta, de modo essencial, a possibilidade do novo.

5. Peter Sloterdijk e a história natural da clareira do ser

A posição de Heidegger sobre a diferença entre o animal e o homem constitui motivo de indignação para Peter Sloterdijk, autor do opúsculo Regras para o parque humano: uma resposta à car-ta de Heidegger sobre o humanismo.23 Para Sloterdijk, a enunciação, por parte de Heidegger, de uma diferença radical entre o modo

23. Acurado diagnóstico dos dilemas que assolam o homem contemporâneo ante o avanço das técnicas de intervenção artificial na matéria viva, o li-vreto Regras para o parque humano, de Peter Sloterdijk, muito mais a ata de um pronunciamento público do que propriamente um ensaio filosófico, permanece incompreendido. Os próprios círculos filosóficos o têm ignorado resolutamente. Os motivos para isso são os mais diversos, mas ao menos dois se fazem dignos de menção: 1) o caráter aparentemente panfletário do texto, aliado à periculosidade da matéria em pauta, a saber, o colapso do humanismo como mídia domesticadora e humanizadora e a subseqüente necessidade – dada a inevitabilidade da manipulação do material genético dos humanos e da assunção definitiva por parte do homem do controle dos mecanismos de seleção que determinam os rumos da espécie – de se pensar regras para o parque humano; 2) o teor das interpretações filosóficas ali em-preendidas, e muito especialmente a interpretação de Heidegger, filosófico a quem o texto de Sloterdijk é endereçado sob a forma de uma carta-resposta, como se lê no subtítulo de seu livro: “Uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo”. Vale observar também que o texto em questão serviu de ponto de partida para um acirrado debate público entre Sloterdijk e Habermas, o qual teve lugar especialmente na mídia impressa alemã durante os meses de setembro e outubro de 1999. Marques analisa os pormenores da recep-ção do texto de Sloterdijk na Alemanha, fazendo observar que “mais do que às conseqüências éticas da aplicação da genética à seleção e determina-ção das características da espécie, a polêmica se relaciona a um movimento mais profundo de distensão das férreas diretrizes político-intelectuais que governam, desde o pós-guerra, a interpretação da história alemã recente”. Marques, J. O. “Sobre as Regras para o parque humano de Peter Sloterdijk”. Natureza Humana. Revista Internacional de Filosofia e Práticas Psicoterápicas, São Paulo, 4 (2), 2002, p. 363.

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de ser do animal e do homem não passa de confirmação do seu “pathos antivitalístico” e “antibiológico”, única explicação possível para o tom “quase histérico” do seu posicionamento.24 Partindo de uma interpretação de trechos difíceis e realmente pouco elu-cidados da Carta sobre o humanismo, Sloterdijk apresenta ao leitor um Heidegger hiper-humanista, um filósofo “cripto-católico” e de “temperamento provinciano”, um homem incapaz de perceber e admitir a tangibilidade – e as evidências de tangibilidade – da “saída dos seres humanos para a clareira”.25

Faz-se necessário compreender aqui o contexto teórico-filosó-fico em que se gesta a crítica de Sloterdijk a Heidegger, a saber, sua declarada intenção de empreender uma caracterização da clareira extática no homem – o aí (Da) da compreensão de ser – por meio de um recurso à história natural. Para Sloterdijk, há de se contar a “his-tória natural da clareira”, há de se reconstruir os mecanismos por meio dos quais se fez possível, na história da espécie humana, o ficar dentro (Hineinstehen) ou estar-preso-dentro (Hineingehaltensein) do ser humano na clareira. Sloterdijk propõe uma “história real da clareira”, como ponto de partida de “qualquer reflexão aprofunda-da sobre o ser do homem que pretenda ir além do humanismo” (Sloterdijk, 2000, p. 33). Uma história natural da clareira, assim, como reflexão aprofundada sobre o ser humano26. Naturalmente, há motivos pontuais pelos quais Sloterdijk julga imprescindível re-construir a história natural da clareira do ser. Para ele,

O ficar-dentro ou estar-preso-dentro do ser humano na clareira do ser não é de nenhuma maneira uma relação ontológica primitiva,

24. Sloterdijk, P. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo, p. 25.

25. Idem, p. 33.26. Em entrevista concedida à Folha de São Paulo, publicada em 10 de outubro

de 1999, ele chegou a afirmar: “A questão ‘o que é o homem?’ coloca-se agora com uma seriedade nunca antes vista na história da humanidade. Por isso, mais uma vez chegou a hora da filosofia: só ela é capaz de refletir na profundidade certa o alcance de uma questão como esta”. Sloterdijk, P. apud Pondé, L. F. Zoopolítica. Peter Sloterdijk defende um código de planejamento biogenético do homem. Folha de São Paulo, São Paulo, 15 out. 1999.

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insuscetível de qualquer exame posterior. Existe uma história – re-solutamente ignorada por Heidegger – da saída dos seres humanos para a clareira: uma história social da tangibilidade do ser humano pela questão do ser e uma movimentação histórica no escancara-mento da diferença ontológica.27

Uma reconstrução detalhada das linhas mestras pré-deline-

adas por Sloterdijk com vistas ao cumprimento da narrativa his-tórico-natural da clareira do ser excede os limites do presente tra-balho. Aqui, basta dizer que a história natural da clareira consiste em duas narrativas maiores. À primeira delas, uma história natural da “aventura da hominização”, também denominada “história na-tural da serenidade”, caberia a tarefa de explicitar os mecanismos da chamada “revolução antropogenética”, o processo que, partindo de uma ruptura com o nascimento, em sentido estritamente bio-lógico, leva a espécie humana ao ato de vir-ao-mundo, à entrada na clareira compreensiva do ser. A esta narrativa dever-se-ia asso-ciar ainda uma segunda, a história da domesticação humana, do ingresso humano no modo de vida sedentário e da subseqüente construção de casas e cidades, solo político das decisões quanto aos rumos da espécie. Ambas as narrativas convegem num direcio-namento ou meta comuns, a saber, “a explicação de como o animal sapiens se tornou o homem sapiens”.28

O projeto de Sloterdijk, caracterizado aqui em suas linhas gerais, merece atenção. A reconstrução da clareira do ser por meio de um recurso à história natural, de fato, talvez seja exigência que se imponha nos dias de hoje, face aos desafios peculiares de nossos tempos, tais como a manipulação da matéria viva, a realidade da produção da vida em laboratório, situação que faz colapsar para-digmas interpretativos seculares, tais como a tradicional distinção entre natureza e cultura, por exemplo. Entretanto, cabe perguntar criticamente: como é possível mobilizar um questionamento sobre o homem, por meio de uma reconsideração do papel da natureza

27. Sloterdijk, P. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo, p. 32.

28. Idem, p. 33.

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em sua história, sem incorrer em nenhum reducionismo do tipo naturalista? Aqui, esbarramos em questões bastante delicadas, di-fíceis. Não só porque acabamos por nos defrontar com o problema de uma relação possível entre discurso filosófico e fazer científico, mas sobretudo porque nos vemos confrontados com dilemas que, como notou Stein, já incomodavam a Kant em sua Antropologia do ponto de vista pragmático, tais como a questão referente à possibili-dade ou impossibilidade da admissão de uma simbiose entre uma antropologia filosófica e uma fisiologia.29

Como se não bastasse essa dificuldade, há de se notar que o homem de Sloterdijk é, por assim dizer, um homem heideggeriano. Ou não é curioso que Sloterdijk, ao formular suas críticas, fale jus-tamente de uma clareira (Lichtung), preservando o conceito cunha-do por Heidegger, já em Ser e tempo, para designar a irrupção ou abertura, no ente, da brecha compreensiva, a transcendência? Ora, é forçoso reconhecer que nas Regras para o parque humano Sloterdijk já pressupõe – ao propor a reconstrução da história natural da cla-reira do ser e ao compreendê-la como o caminho adequado de qualquer reflexão profunda sobre o que seja o homem – que o ser-homem do homem determina-se por seu ser-no-mundo, ou por seu estar-na-clareira. Já no decurso de seu esforço narrativo-reconstrutivo da história do homem, Sloterdijk diz: “o homem é o produto de um hiper-nascimento que faz do lactente (Säugling) um habitante do mundo (Weltling)”.30 E o seu esclarecimento do que seja a linguagem, por sua vez, acentua que tal estar-no-mundo é um êxtase (Ekstase): “as linguagens tradicionais do gênero huma-no tornaram capaz de ser vivido o êxtase do estar-no-mundo, ao mostrar aos homens como esse estar no mundo pode ser ao mes-mo tempo experimentado como estar-consigo-mesmo”.31

29. Cf. Stein, E. Exercícios de fenomenologia: limites de um paradigma. Ijuí: Editora Unijuí, 2004, p.178.

30. Sloterdijk, P. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo, p. 34.

31. Idem, p. 35.

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Estas nos parecem indicações suficientes de que também Sloterdijk admite uma diferença essencial entre o animal e o ho-mem. A inquietação que movimenta a argumentação aqui em-preendida é, contudo, justamente a seguinte: ainda que Sloterdijk defina o homem como “a criatura que fracassou em seu ser-animal (Tiersein) e em seu permanecer-animal (Tierbleiben)”32, ele deixa em segundo plano qualquer consideração ontológica mais deta-lhada sobre o modo de ser da própria animalidade, bem como não investe numa tematização da diferença enquanto tal, justamente o que faz Heidegger, por exemplo, em sua preleção de 1929/30 (cf. seção 2). Além disso, Sloterdijk parece resolutamente ignorar o sentido da distinção operada por Heidegger entre os domínios ôntico e ontológico de averiguação. Para Heidegger – Sloterdijk tem razão – a diferença entre o animal e o homem é mesmo uma di-ferença ontológica.33 O que ele não observa, e aqui situamos mais pontualmente nossa avaliação crítica, é que uma diferenciação de cunho ontológico, em Heidegger, não diz respeito a distinções de configuração ôntica, de propriedades qüididativas (materiais, físi-co-químicas, cognitivas, anímico-espirituais, etc), mas restringe-se tão-somente às especificidades dos modos de ser, refere-se a uma diferenciação modal, e somente isso.34

Dito de outra maneira: as acusações de Sloterdijk a Heidegger, segundo as quais um pathos antivitalista e antibiológico operaria na proposição, por parte deste último, de uma diferença radical entre o animal e o homem, não levam em conta, com a abrangên-cia necessária, a peculiaridade do discurso ontológico de Heidegger, essencialmente voltado à apreensão do modo de ser dos entes. Por essa razão, argumentamos que a despeito da relevância do projeto de Sloterdijk – cuja exeqüibilidade e proficuidade caberá ao tem-po julgar propriamente – suas considerações tendem a simplificar

32. Idem, p. 34.33. Idem, p. 25.34. Cf. Beelmann, A. Heideggers hermeneutischer Lebensbegriff. Eine Analyse

seiner Vorlesung “Die Grundbegriffe der Metaphysik. Welt – Endlichkeit – Einsamnkeit”. Würzburg: Königshausen & Neumann, 1994, p. 15.

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o complexo horizonte de problemas por onde Heidegger transi-ta ao enunciar uma diferença radical entre o animal e o homem e ao propor-se a e enfrentá-la filosoficamente. Para Heidegger, qualquer investigação acerca do fundamento da compreensão de ser e da condição de possibilidade do comportamento humano é de cunho essencialmente ontológico. No decurso de um questio-namento desta natureza, trata-se de apreender e fixar conceitual-mente o modo de ser de um ente cujo ser se caracteriza por uma diferença peculiaríssima, a saber, o caráter de formação de mundo (Weltbildend), marca de sua radical finitude. Uma arbitrariedade de Heidegger? De modo algum.

Para o autor de Ser e tempo, o que está em jogo na defesa do discurso ontológico é o asseguramento das condições filosó-ficas não-metafísicas para o empreeendimento de uma investiga-ção condizente com o modo de ser do Dasein, segundo método próprio. Pois, conforme expusemos anteriormente (cf. seção 3), a transcendência da existência, a partir da qual o homem pode existir como ser-no-mundo e como formador de mundo, descreve um âmbito ou território peculiaríssimo, inacessível ao método ob-jetificante da ciência moderna e absolutamente distinto daquele em que se dá o desdobramento da perturbação animal, o círcu-lo de desinibição. O onde do desdobramento fático de um exis-tir humano chama-se mundo e constitui-se como um horizonte de sentido compartilhado, possível na base da estrutura-como, a estrutura básica da compreensão de ser (cf. seção 4). Assim exis-tindo, o homem é um projeto-lançado, sempre e essencialmente finito, carente de explicações e fundamentações últimas. O que difere o homem do animal, e para isto não atenta Sloterdijk em seu texto, é um peculiar tipo de ter-de-ser (Zu-Sein) que já sempre o mobilizou num exercício de formação de mundo. Todo o ente que vem ao seu encontro é já interpretado na dinâmica própria da estrutura de sentido que é o mundo, o aí (Da) onde o homem se compreende, onde ele é o que é. E este âmbito do existir fáti-co dos humanos não se deixa compreender – é esta, em suma, a posição de Heidegger – senão por meio de um discurso filosófico, fenomenológico-hermenêutico.

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Bibliografia

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STEIN, E. Exercícios de fenomenologia: limites de um paradigma. Ijuí: Editora Unijuí, 2004.

Intersubjetivismo versus subjetivismo? Algumas considerações sobre a controvérsia

Habermas-Henrich a partir das “Doze teses contra Jürgen Habermas”*

Fernando Costa MattosDoutor em filosofia pela USP, desenvolve atualmente pesquisa de pós-doutoramento, com bolsa da FAPESP, junto ao Núcleo Direito e Democracia do CEBRAP

Do ponto de vista bibliográfico, a relação entre Jürgen Habermas e Dieter Henrich pode ser retraçada até 1974, ano de publicação do opúsculo Zwei Reden (Duas conferências).1 Encontram-se nele as falas proferidas por ambos quando da en-trega, em janeiro de 1974, de um prêmio oferecido a Habermas pela cidade de Stuttgart – o Hegel-Preis de 1973. Responsável pela laudatio ao homenageado, Henrich faz uma espécie de balanço da trajetória do ainda jovem intelectual (aos 44, Habermas estava a sete anos de publicar a Teoria do agir comunicativo) e, à parte os acalorados elogios – o homenageado só perderia em importância, no cenário alemão contemporâneo, para ninguém menos do que Martin Heidegger2 –, Henrich observa na reflexão filosófica sobre

* “O que é metafísica? O que é modernidade? Doze teses contra Jürgen Habermas”, traduzido por mim do original alemão “Was ist Metaphysik? – was Moderne? Zwölf Thesen gegen Jürgen Habermas” (In: Henrich, D. Konzepte. Essays zur Philosophie in der Zeit. Frankfurt-am-Main: Suhrkamp, 1988) e publicado a seguir, na seção de traduções deste número dos Cadernos de Filosofia Alemã.

1. Uma boa reconstrução do debate entre os dois autores pode ser encontra-da em Heider, P. Jürgen Habermas und Dieter Henrich. Neue Perspektiven auf Identität und Wirklichkeit. Freiburg, München: Alber, 1999, pp. 29-37. Também Antônio Martins desenvolve uma interessante análise sobre o tema na apresentação à tradução portuguesa do Pensamento pós-metafísico, livro em que Habermas publicaria, juntamente com outros textos, seus dois artigos contra Henrich: Habermas, J. Pensamento pós-metafísico. Tradução de Lumir Nahodil. Coimbra: Almedina, 2004.

2. Habermas, J.; Henrich, D. Zwei Reden. Aus Anlass des Hegel-Preises. Frankfurt-am-Main: Suhrkamp, 1974, p. 22.

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a linguagem, de um lado, e na análise sociológica das complexida-des modernas, de outro, as principais características e virtudes de Habermas.3 O que não lhe daria ainda, contudo, a marca da origi-nalidade teórica: submetido desde o princípio, segundo Henrich, à influência da “antropologia de seu mestre [Erich Rothacker]”, ele estaria “somente agora, depois de um longo caminho, iniciando uma teoria própria”.4

Sem levar em conta, naturalmente, a nada lisonjeira ob-servação de seu homenageante, Habermas ocupa-se em sua conferência da questão-título “Podem as sociedades complexas desenvolver uma identidade racional?”. Tendo por base, como sempre, os diagnósticos sociológicos que desde Weber apontam para uma crise da racionalidade nas complexas sociedades mo-dernas, Habermas trata de discutir nesse texto o quanto isso teria inviabilizado a formação de uma identidade coletiva racional no sentido que este termo tinha na tradição, muito particularmente na filosofia hegeliana.5 É numa menção a Hegel, por sinal, que Habermas se refere pela única vez a Henrich, chamando o seu testemunho de comentador para atestar o elemento totalizante que, na obra do filósofo, permitiria conciliar necessidade e li-

3. Idem, pp. 20-1.4. Idem, p. 21. Nas “Doze teses” – já, portanto, depois da publicação de Teoria

do agir comunicativo e Discurso filosófico da modernidade – Henrich insistirá, curiosamente, nesse argumento de que Habermas não se teria libertado da influência de seu “primeiro mestre”, Erich Rothacker. Rothacker foi orien-tador de Habermas em Bonn, durante o doutoramento sobre Schelling que este concluiu em 1954. Tendo-se ocupado, no plano teórico, sobretudo com a “antropologia cultural” e a “filosofia da vida”, Rothacker é mais conheci-do, no entanto, por ter colaborado ativamente com o regime nazista. Como chefe de uma divisão do Ministério da Propaganda, foi um dos principais responsáveis pela queima de livros de 1933. Em 1934, escreveu um livro so-bre filosofia da história (Geschichtsphilosophie) em que defende a teoria racis-ta do nacional-socialismo. Durante a Segunda Guerra Mundial, participou do projeto nazista “Kriegseinsatz der Geisteswissenschaften” (“Princípio de guerra das ciências do espírito”). Com o fim da guerra, perdeu suas funções, mas já em 1947 retomou a carreira docente na Universidade de Bonn e lá permaneceu até 1956, ano em que se tornaria Professor Emérito. Cf. verbete “Erich Rothacker”, in: www.de.wikipedia.org.

5. Habermas, J.; Henrich, D. Zwei Reden. Aus Anlass des Hegel-Preises, p. 25.

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berdade (contingência).6 Como que antecipando, consciente ou inconscientemente, um dos pontos cruciais da futura polêmica, Habermas se vale desse comentário para afirmar a incompatibili-dade da metafísica com as sociedades modernas, onde o acúmulo de “outras contingências” inviabilizaria, em princípio, a formação de um pensamento identitário do todo social.7

Embora não possa negar, face às transformações por que passaram as sociedades capitalistas nos últimos duzentos anos, a imensa dificuldade envolvida na tarefa de pensar hoje um sentido “totalizante” para o mundo, a aposta de Henrich é contrária à de Habermas: em seu livro Fluchtlinien (Linhas de fuga), escrito em 1981,8 ele dirá que o caminho para enfrentar essa dificuldade está não no abandono, mas, muito pelo contrário, no revigoramento da metafísica moderna, cuja “compatibilidade” com as socieda-des atuais estaria enraizada em nossa própria natureza humana subjetiva.9 Afinal, por mais que as pesquisas empíricas tenham apontado descritivamente, no correr do século XX, para a origi-nariedade cronológica da intersubjetividade relativamente à sub-jetividade, isso não teria tirado a esta a sua função lógico-filosófica de locus mental onde o indivíduo humano capaz de pensar e falar – aquele, portanto, que em seu desenvolvimento cognitivo já se

6. Idem, p. 48. Cf. idem, pp. 78-9.7. Idem, p. 48.8. Henrich, D. Fluchtlinien. Philosophische Essays. Frankfurt-am-Main:

Suhrkamp, 1982. Este livro foi o primeiro em que Henrich, até então tido “apenas” como um dos mais respeitados estudiosos de Kant e do idealismo alemão, se lançou à filosofia propriamente dita. Como observaria o próprio Habermas na resenha ao livro, “o autor fala pela primeira vez em seu próprio nome”. Habermas, J. Nachmetaphysisches Denken. Philosophische Aufsätze. Frankfurt-am-Main: Suhrkamp, 1988, p. 272. Além da já mencionada edi-ção portuguesa, esse livro também foi traduzido para o português como: Habermas, J. Pensamento pós-metafísico. Tradução de Flávio B. Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002 (2ª. ed.).

9. Veja-se a descrição que faz Henrich da filosofia, logo na frase de abertura ao livro: “Todo homem filosofa. E as questões que o impulsionam a esse pensamento, que ele mal consegue colocar em palavras, dá à tradição do pensamento explícito fundado pelos gregos o seu direito de existência e a sua dignidade.” Henrich, D. Fluchtlinien. Philosophische Essays, p. 7.

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<?>. ∗∗ Doutor em filosofia pela USP, desenvolve atualmente pesquisa de pós-dou-toramento, com bolsa da FAPESP, junto ao Núcleo Direito e Democracia do CEBRAP.

percebe distinto da mãe10 – identifica aquilo que seria o seu “eu” e, para falar nos conhecidos termos de Kant, as representações que o acompanham.11

Descabendo aprofundarmo-nos por ora nesse texto de Henrich, cujos argumentos retomaremos adiante, essa brevíssima descrição de sua posição teórica terá bastado para produzir escân-dalo em qualquer defensor da teoria crítica. E permite imaginar desde logo o teor da reação habermasiana, manifesta numa resenha de 1985, publicada na revista Merkur sob o título “Rückkehr zur Metaphysik: Eine Tendez in der deutschen Philosophie?” (“Retorno à metafísica: uma tendência na filosofia alemã?”).12 Como falar ain-da em “natureza humana”?! Em “subjetividade”?! “Locus mental”?! “Indivíduo humano”?! “Representações que acompanham o eu”?!... É como se Dieter Henrich ignorasse, dirá Habermas nesse texto, tudo o que se passou na filosofia desde Hegel: numa atitude que faz lembrar um Jaspers mais metafísico do que o próprio admitiria,13 os esforços de Henrich, juntamente com os demais defensores da

10. Como é sabido, Habermas se vale fortemente da teoria do desenvolvimen-to cognitivo de Piaget, aliada às análises de Mead a respeito da formação da identidade subjetiva a partir da relação com o outro, para dar sustenta-ção à crítica da filosofia do sujeito. Para Henrich, é fundamental distinguir esse ângulo psico-sociológico, empírico, do ponto de vista lógico-filosófico, de modo a impedir a redução deste àquele. Cf. idem, pp. 134-51. Quanto à importância de Mead para o modo como Habermas pretende superar a filosofia do sujeito, cf. Henrich, Daniel. Zwischen Bewusstseinsphilosophie und Naturalismus. Zu den metaphysischen Implikationen der Diskursethik von Jürgen Habermas. Bielefeld: Transcript Verlag, 2007, pp. 50-5.

11. Cf. Henrich, D. Fluchtlinien. Philosophische Essays, pp. 134-51.12. Sob o título “Rückkehr zur Metaphysik? Eine Sammelrezension”, o texto

foi republicado, como apêndice, no já livro: Habermas, J. Nachmetaphysisches Denken. Frankfurt-am-Main: Suhrkamp, 1988, onde Habermas incluiria também a sua resposta às “Doze teses” de Henrich, à qual voltaremos adiante.

13. “Henrich fala de uma ‘análise desveladora de formas de vida’. Isso lembra Jaspers. Este, porém, havia compreendido o deciframento do ‘envolvente’ como um negócio pós-metafísico. Também ele havia desacoplado a auto-compreensão filosófica da pesquisa e da ciência objetivante, mas de tal modo que dela não se exigisse ter de exceder a pretensão teórica das ciências. (...) Mas Henrich se coloca a paradoxal tarefa de permanecer nas condições da consciência moderna e, ao mesmo tempo, justificar a iluminação filo-

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Rückkehr,14 não passariam de uma tentativa desesperada e extem-porânea de salvar para a filosofia “os direitos inatos de um auto-esclarecimento metafísico da vida consciente”.15

Os motivos especulativos que Henrich por boas razões gostaria de salvar determinam de fato o destino da filosofia. Para poder con-vencer, porém, eles têm de ser validados na ciência ou em conexão com ela. De nada adianta: filosoficamente, nós continuamos sen-do contemporâneos dos jovens hegelianos. Desde então, a filosofia busca passar a outro meio: Karl-Otto Apel fala de uma ‘transfor-mação’. O título de um livro organizado por Thomas McCarthy é emblemático dessa situação: After Philosophy. O volume forne-ce um panorama dos princípios mais sérios de um pensamento pós-metafísico nos Estados Unidos e na Europa: de Davidson a Putnam e McIntyre, de Gadamer a Ricoeur e Apel.16

sófica como metafísica, como uma forma de teoria que supera as ciências.” Habermas, J. Nachmetaphysisches Denken, pp. 273-4.

14. Além de Henrich, Habermas tem em vista, nesse contexto, autores como Rüdiger Bubner, Robert Spaemann, Reinhard Löw e Michael Theunissen. Num contexto mais recente, poderíamos mencionar, entre outros, os seguin-tes autores, todos eles procurando questionar a “morte por decreto” da meta-física: Volker Gerhardt (cf., p. ex., Gerhardt, V. Individualität. Das Element der Welt. München: C.H. Beck, 2000); Manfred Frank (cf., p. ex., Frank, M. Auswege aus dem Deutschen Idealismus. Frankfurt-am-Main: Suhrkamp, 2007); Reiner Wiehl (cf., p. ex., Wiehl, R. Metaphysik und Erfahrung. Philosophische Essays. Frankfurt-am-Main: Suhrkamp, 1996); Gunnar Hindrichs (cf. p. ex., Hindrichs, G. Das Absolute und das Subjekt. Untersuchungen zum Verhältnis von Metaphysik und Nachmetaphysik. Frankfurt-am-Main: Vittorio Klostermann, 2008); Richard Schaeffler (cf., p. ex., Schaeffler, R. Ontologie im nachmetaphy-sischen Zeitalter. Geschichte und neuer Gestalt einer Frage. Freiburg, München: Verlag Karl Alber, 2008); Christian Thies (cf., p. ex., Thies, C. Der Sinn der Sinnfrage. Metaphysische Reflexionen auf kantianischer Grundlage. Freiburg, München: Verlag Karl Alber, 2008). Este último, inclusive, menciona Dieter Henrich como um “preparador de terreno” para o retorno às questões meta-físicas “em bases kantianas” justamente por ter enfrentado o argumento da morte da metafísica no momento em que ele se encontrava consolidado (de-pois dos anos 1960 e 70). Cf. Habermas, J. Nachmetaphysisches Denken, p. 168.

15. Idem, p. 273.16. Idem, p. 277. Habermas se refere aí ao livro: Mccarthy, T. et alli. After

Philosophy. End or Transformation? Boston: Massachusetts Institute of Technology, 1987.

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Como se vê, e este é um dos argumentos que de fato mais uti-liza na polêmica com Henrich, Habermas procura apontar aí para aquela que seria a grande tendência da filosofia contemporânea, iniciada já no século XIX com Hegel, Marx e Nietzsche e radicali-zada no XX com a teoria crítica, de um lado, e a virada linguístico-analíitica de outro: desfeitas as ilusões de um acesso direto à verdade “em si”, seja do mundo seja da subjetividade, ter-se-ia inviabilizado aquela atitude clássica do filósofo que, declarando-se independente das ciências particulares, acreditava poder refletir sobre o homem em geral, a vida em geral ou o mundo em geral sem levar em con-ta as condições concretas do presente. E a menção a Jaspers, por seu turno, faz lembrar as críticas de Adorno a Heidegger: embora pretendendo superar a metafísica, o provinciano Heidegger, isolado na floresta, postulava ainda uma necessidade ontológica do homem que o cosmopolita Adorno, antenado com os últimos resultados das pesquisas sociais, não aceitaria jamais.17

Henrich, contudo, parece preferir a trilha de Heidegger. E terá portanto, como ele, de justificar sua opção pelo universal: não o universal do “Ser enquanto tal”, que o último acreditava poder atingir com o “des-encobrimento” da verdade, mas o universal da-quela mesma subjetividade mental com que os modernos, talvez não tão ingênuos, simplesmente estabeleciam a sua desconfiança em relação ao primado dos sentidos. É esse, com efeito, o desafio mais geral com que Henrich se vê defrontado nas “Doze teses contra Habermas”: contra a suposta evidência da “morte do su-jeito” – também perpetrada, em grande medida, pelo serial killer Nietzsche (mais conhecido pela “morte de Deus”) –, ele tem de mostrar tanto a possibilidade como a necessidade, face às próprias questões colocadas pelo mundo moderno, de seguir recorrendo a essa tão controvertida noção. Tratar-se-ia de mostrar, em outras palavras, que o homem moderno não apenas pode como precisa

17. A crítica de Adorno a Heidegger se expressa sobretudo em dois textos: no Jargão da autenticidade. Sobre a ideologia alemã; e na primeira parte da Dialética negativa (“Relação com a ontologia”). Ambos estão reunidos no vo-lume 6 das obras completas editadas pela Suhrkamp: Adorno, T. Gesammelte Schriften, Bd. 6. Frankfurt-am-Main: Suhrkamp, 2003.

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recorrer à metafísica, em sua acepção moderna – essa que tem por base de sustentação o sujeito, não o mundo –, para pensar de ma-neira consistente a sua própria condição humana, sua relação com o outro, sua relação com o mundo e assim por diante. Ao ver de Henrich, portanto, é o próprio destino da filosofia que está em jogo quando se discute a morte da “metafísica”.

Começando, pois, por relativizar a questão do nome “metafí-sica”, ambíguo desde a origem e propenso a suscitar as mais gros-seiras caricaturas, Henrich propõe nas “Doze teses” que tenhamos em mente as preocupações teóricas habitualmente associadas a esse, diz ele, “não-título”. E que o façamos com a consciência – tão velha quanto a primeira Crítica kantiana, diga-se de passagem –, de que tais preocupações não se deixam resolver, à maneira dogmática, sob aquele “conceito forte de teoria” que, segundo Habermas, acompa-nharia todo e qualquer empreendimento metafísico.18 Já em Kant, com efeito, cuja tentativa de sistematizar a história desse campo filosófico seria “a mais rica de consequências”,19 podemos encontrar uma reflexão bastante elaborada sobre o significado do tão temido termo: dividindo-a em, de um lado, investigação das condições de possibilidade do conhecimento e do agir, e, de outro, abertura para

18. Cf. Habermas, J. Nachmetaphysisches Denken, pp. 36-40 (“Aspekte meta-physischen Denkens”). Nesse texto, Habermas aponta quatro marcas fun-damentais no pensamento metafísico: pensamento identitário, idealismo, conceito forte de teoria e filosofia da consciência (esta última como um elemento específico à metafísica pós-cartesiana). A esse respeito, conferir também o já citado livro de Henrich, D.: Zwischen Bewusstseinsphilosophie und Naturalismus, pp. 19 e ss. Já Dieter Henrich afirma que “a justificação da metafísica não decorre da pretensão a uma teoria infalível ou do direito de falar ex catedra em nome daqueles pensamentos últimos cuja força ela leva em conta”. Henrich, D. “O que é metafísica?” O que é modernidade? Doze teses contra Jurgen Habermas”. In: Cadernos de Filosofia Alemã, nº 14, São Paulo, 2009, p. 87. _____. Konzepte. Essays zur Philosophie in der Zeit, p. 14. Ao citar o texto “O que é metafísica? O que é modernidade? Doze teses contra Jürgen Habermas”, referir-me-ei a ele como “Doze teses” e indicarei a página correspondente no texto publicado abaixo, acrescida da página no original alemão (Konzepte).

19. Henrich, D. “O que é metafísica?” O que é modernidade? Doze teses con-tra Jurgen Habermas”. In: Cadernos de Filosofia Alemã, nº 14, p. 84. _____. Konzepte. Essays zur Philosophie in der Zeit, p. 12.

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“temas e caminhos da reflexão” voltados a dotar de “completude” a nossa compreensão do mundo, Kant teria possibilitado enxergar a metafísica não mais como um saber daquilo que estivesse “além da física”, mas sim como um saber daquilo que, “aquém da física”, nos permitiria agir e pensar independentemente da física.

É claro que essa nossa capacidade (em vocabulário kantiano diríamos “faculdade”) não pode ser “provada”, no mesmo sentido em que, por exemplo, verificamos a existência de um objeto em nosso campo de visão. Mas a igual impossibilidade de refutá-la de-veria bastar, conforme a célebre lição kantiana, para conter o ím-peto dos materialistas mais apressados – ansiosos por esquartejar outra vítima – e garantir, assim, a hipótese de sua operacionalidade enquanto base de nosso viver consciente (em vocabulário kantiano “razão pura prática”). Não porque assim o queiram os nossos, diga-mos, “caprichos contemplativos”: para Kant, como para Henrich, é a razão, enquanto propriedade distintiva do homem, quem exige esse ponto de apoio na consciência, sem o qual não se poderia falar em liberdade – nem do agir nem do pensar. E isso não porque a razão constitua a nossa “essência suprafísica”, eterna e atemporal: ao escrever a “História da razão pura”, como fecho à “Doutrina transcendental do método” e à própria Crítica da razão pura, Kant deixou suficientemente claro o caráter histórico da razão ou, por outra, o modo histórico de sua reconstrução. Ao contrário do que pintam os seus caricaturistas, a razão não está pendurada nas nu-vens, à espera do filósofo que saia da caverna para contemplá-la: firmemente enraizada na história das manifestações culturais humanas, ela se vem constituindo há pelo menos dois milênios e meio, e segue a constituir-se. Mais simplificador do que projetá-la num céu estrelado, metáfora perfeitamente perdoável por quem não tenha parti pris, é circunscrever a sua história a essas poucas décadas de despotismo da linguagem a que parece condenar-nos o grande gesto do linguistic turn.

Não à toa, é justamente ao questionamento dessa “virada”, responsável por aquilo que Habermas denomina “mudança de paradigma”, que Henrich dedica boa parte de seus esforços nas “Doze teses”. Não se trata, naturalmente, de recusar valor às inves-tigações teóricas resultantes dessa “reorientação da teoria funda-

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mental rumo à comunicação linguística”,20 entre as quais “a teoria dos signos, em especial sua semântica (sua teoria dos significados”, que Henrich estudou a fundo21 e que, segundo ele, aportou

novos meios para o aclaramento de velhas questões e tarefas te-óricas da filosofia. Questiona-se apenas se esse impulso teórico pode ser interpretado como uma mudança histórica de paradigma, graças à qual a autoconsciência, até então manipulada numa posi-ção teórica oculta, mas agora tendo de ser vista como infundada e questionável também enquanto forma de vida, poderia obter a sua redenção por meio da passagem à comunidade comunicativa de um mundo da vida comum.22

É curioso, de fato, que Habermas aceite tão tranquilamente o “hábito” de “transpor à história da filosofia o conceito de paradig-ma, oriundo da história da ciência, e adotar uma divisão aproxi-mativa das épocas com base em ‘ser’, ‘consciência’ e ‘linguagem’”,23 sem estranhar que à primeira correspondam quase dois mil anos, à segunda trezentos e à terceira, de que ele próprio é ainda parti-cipante, apenas umas poucas décadas. Ora! Sem o mínimo distan-ciamento temporal, soa inverossímil, sobretudo em se tratando da filosofia, postular o fim de uma época histórica: embora desejando dissociar-se de certos “revolucionários epistemológicos” da filoso-fia, como Nietzsche e sobretudo Heidegger, Habermas se vale do mesmo anúncio messiânico para, ainda que de maneira retorica-mente contida e numa direção supostamente inversa, fomentar o abandono daquela tradição filosófica que o criticismo kantiano,

20. Idem, p. 102; Idem, p. 29.21. Cf., p. ex., Henrich, D. “Wohin die deutsche Philosophie?”. In: _____.

Konzepte. Essays zur Philosophie in der Zeit, pp. 66-75. Como aponta o pró-prio Habermas, Henrich passou, antes de lançar-se à defesa da metafísica, por uma fase de, segundo ele, maior comedimento, na qual compreendia que “os verdadeiros filósofos (...) tiveram de portar-se de modo receptivo – ou seja, adotar uma atitude de aprendizado em relação à filosofia analítica”. Habermas, J. Nachmetaphysisches Denken, p. 267.

22. Henrich, D. “O que é metafísica?” O que é modernidade? Doze teses contra Jurgen Habermas”. In: Cadernos de Filosofia Alemã, nº 14, p. 103; _____. Konzepte. Essays zur Philosophie in der Zeit, p. 30.

23. Habermas, J. Nachmetaphysisches Denken, p. 20.

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alicerçado na história da razão, pretendera blindar contra os ata-ques tanto do ceticismo como da superstição e do misticismo.

É certo que Habermas também pretende, prima facie, salva-guardar o núcleo racional do Iluminismo dessa cruzada irraciona-lista que, alimentada pela vaga nietzschiana, teria acabado por en-golir até mesmo a primeira geração da sua Escola de Frankfurt.24 Segundo Henrich, porém, a hipótese de uma ruptura paradigmá-tica em relação à noção moderna de subjetividade – leia-se kantio-fichtiana – implicaria necessariamente a ruína da razão e, com ela, daquilo a que Habermas costuma denominar “projeto moderno”.25 Deste ponto de vista, Heidegger e os pós-modernistas seriam bem mais coerentes com o espírito da “revolução linguística” do que a filosofia comunicativa habermasiana,26 cuja noção de racionalida-de, transferida integralmente da consciência para a intersubjeti-vidade, acabaria por aproximá-lo perigosamente de uma posição cético-positivista ou, no contexto do debate ora em questão, do assim chamado “naturalismo”.27

24. Refiro-me à conhecida crítica de Habermas à Dialética do esclarecimento, desenvolvida sobretudo em Habermas, J. Discurso filosófico da modernidade. Trad. de Luiz Repa e Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 169 e ss.

25. Basta lembrar a frase de abertura ao Discurso filosófico da modernidade: “‘Modernidade – um projeto inacabado’ era o título de um discurso que pronunciei em setembro de 1980, quando recebi o Prêmio Adorno. Esse tema, controvertido e multifacetado, não mais me deixou.” (Idem, p. 1) Vale salientar a circunstância, também enfatizada por Habermas, de Henrich ser, dentre os defensores modernos da metafísica, um dos poucos a não criticar a modernidade, sendo antes um seu defensor. Nisto ele se distanciaria signi-ficativamente de nomes como Carl Schmitt, Leo Strauss e Arnold Gehlen (Habermas, J. Nachmetaphysisches Denken, p.20).

26. Cf. Henrich, D. “O que é metafísica?” O que é modernidade? Doze teses contra Jurgen Habermas”. In: Cadernos de Filosofia Alemã, nº 14, p. 111; _____. Konzepte. Essays zur Philosophie in der Zeit, p. 25.

27. Segundo Daniel Henrich, o “naturalismo mitigado” de Habermas se dis-tingue do naturalismo forte, que seria próprio ao positivismo, porque, entre outras coisas, procura operar uma “união de Kant e Darwin, e não a redu-ção de Kant a Darwin”. Henrich, Daniel. Zwischen Bewusstseinsphilosophie und Naturalismus. Zu den metaphysischen Implikationen der Diskursethik von Jürgen Habermas, p. 10.

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O que está realmente em jogo, portanto, é o quanto a no-ção de razão, enquanto núcleo desse amplo projeto cujo “poten-cial emancipatório” tanto Habermas como Henrich pretendem conservar, depende da noção de consciência ou subjetividade, tal como entendidas no contexto da filosofia kantiana e do idealismo alemão, para funcionar como, digamos, princípio condutor do pro-gresso humano, seja este entendido como aprimoramento de nos-sas instituições sociais (preocupação dominante em Habermas), seja como base de sustentação para o amadurecimento “espiritu-al” do indivíduo humano (preocupação dominante em Henrich). Para Habermas, como se sabe, inexiste um tal vínculo: reservada a subjetividade para caracterizar o aspecto instrumental da razão – um aspecto necessário mas desprovido de elementos emancipa-tórios –, é na intersubjetividade que ele pretende, amparando-se na mencionada autoridade do linguistic turn, ancorar o aspecto comunicativo da razão, que abarcaria então o potencial emancipa-tório contido (mas irrealizado) na tradição iluminista.

Nesse quadro, torna-se fundamental compreender então o que Habermas entende por intersubjetividade, e por que a intersubje-tividade é preferível à subjetividade no sentido de “fundamentar” a razão em seus aspectos genuinamente iluministas. Simplificando bastante o argumento, o que Habermas nos diz, quando explica ou justifica a mudança de paradigma, é que a linguagem se tornou o objeto preferencial da filosofia – em seu trabalho conjunto com as ciências sociais – por ser apreensível a partir da observação empí-rica, ensejando assim a constituição de disciplinas – como a teoria dos signos e a sua própria teoria do agir comunicativo – capazes de estudá-la com elevado grau de rigor.28 E é a partir desse estudo da linguagem, entendida esta em seu sentido mais amplo (suas várias formas possíveis), que poderíamos formar uma compreensão ade-quada da intersubjetividade, ao passo que da subjetividade, se feita abstração da linguagem, só poderíamos formar vagas conjecturas e imagens, caindo então nas mais complicadas aporias.29

28. Cf., p. ex., Habermas, J. Nachmetaphysisches Denken, pp. 14 e ss.29. Cf. idem, p. 18: “...a virada linguística colocou o filosofar sobre uma base

metodológica mais segura e o livrou das aporias das teorias da consciência”.

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Ora! Se o que torna a intersubjetividade preferível à subjeti-vidade, enquanto base da filosofia, é a sua maior cognoscibilidade do ponto de vista empírico, então começamos a entender uma das principais acusações de Henrich nas “Doze teses”: ainda que a noção habermasiana de empiria, marcada tanto pelo alargamento do âmbito das ciências naturais como pela compreensão teórico-crítica das ciências sociais, seja bem mais elástica do que aquela que vigorava no positivismo,30 salta aos olhos a semelhança no modo como a filosofia se subordina ao ponto de vista científico.31 E com isso a eventual vantagem do “naturalismo”, que o próprio Habermas por vezes assume,32 em relação ao positivismo torna-se irrelevante: de certo modo, aquele é apenas uma versão mais “consciente” do último, já que a opção pela natureza se mostra como opção, e não como “verdade” (algo que, é claro, o “falibilismo” habermasiano não comportaria).

Habermas alega que a opção, no caso, não é uma mera arbi-trariedade, como o seria uma crença subjetiva qualquer, mas sim o fruto de um processo histórico em que o naturalismo se teria fir-mado como “verdade” para a nossa época, o que segue à risca a velha

30. Cf. idem, p. 14.31. Cf. idem, p. 26: “Os critérios de validade segundo os quais o saudável enten-

dimento humano poderia hoje iluminar-se por meio da filosofia não estão mais à disposição da própria filosofia. Ela tem de operar sob condições de racionalidade não escolhidas por ela mesma. Por isso ela não pode, mesmo na função de intérprete, reclamar para si, perante a ciência, a moral e a arte, um acesso privilegiado a intuições essenciais, e dispõe apenas de um saber falível.”

32. Cf. p. ex., idem, p. 30. Segundo propõe Daniel Henrich, “a crítica de Jürgen Habermas à metafísica encontra expressão em uma estratégia na-turalista de argumentação cujos traços se deixam seguir até os seus escri-tos de juventude”. Henrich, Daniel. Zwischen Bewusstseinsphilosophie und Naturalismus. Zu den metaphysischen Implikationen der Diskursethik von Jürgen Habermas, p. 9. Em seu livro, com efeito, Daniel Henrich se esfor-çará em demonstrar a importância do naturalismo, ainda que mitigado, como visto, sob a forma de um schwachen Naturalismus, para a posição de Habermas relativamente à metafísica, sendo particularmente marcan-tes, a esse respeito, as influências de Quine e sobretudo Mead. Cf. idem, pp. 61 e ss. (“Das darwinistische Modell der Einstellungsübernahme: Naturalismus statt Metaphysik”)

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lição frankfurtiana de que a verdade é essencialmente histórica.33 Antes mesmo de nos perguntarmos se a afirmação “a verdade é histórica” é ela própria histórica, em lembrança ao bom e velho paradoxo do relativismo, vale notar por ora que, a favor ou contra o vento do progresso, o naturalismo constitui uma franca tomada de posição (Heidegger falaria aqui numa “decisão historial”)34 relativa-mente ao que deve – e o que não deve – valer como objeto da refle-xão filosófica.35 E a subjetividade, como de resto a liberdade, o in-condicionado, o cosmo etc, devem ficar de fora da lista porque não se prestam a uma análise empiricamente verificável ou falseável,36 conduzindo antes a tergiversações prolongadas e inúteis.

33. Cf. Horkheimer, M. “Teoria tradicional e teoria crítica”. In: _____.; Adorno, T. Textos escolhidos. (Coleção Os pensadores, vol. XIV.) São Paulo: Abril Cultural, 1982.

34. Pensando em termos heideggerianos, mas incorporando o próprio Heidegger à história da metafísica de que ele se pretendia um superador, poderíamos dizer que a virada linguística inaugura uma nova época dessa história, a lin-guagem ocupando o lugar do antigo sujeito e a intersubjetividade consti-tuindo a nova determinação ôntica do ser. E Habermas seria uma espécie de Kant da nova era, já que nele essa “decisão metafísica” se expressa de maneira particularmente clara e autoconsciente.

35. Quanto à circunstância de o naturalismo constituir uma visão monista do mundo, por oposição ao dualismo de matriz platônica, lembra-nos Henrich: “(...) pode-se chamar também a esse naturalismo, com todo direito, uma me-tafísica. Pois a metafísica, enquanto tal, não é necessariamente antinaturalista, como bem o mostram os exemplos de Aristóteles, Spinoza e Nietzsche. Ela é, de todo modo, algo diverso de uma teoria científica. Aquele naturalismo, po-rém, que se vincula de fato aos resultados da física, afirma a opinião, em geral solidária com a teoria física, de que ele seria uma descrição exata da realidade, e não um instrumento da dominação teórica do conhecimento por experiên-cia. Mas ele é, em seu resultado, uma extrapolação das disciplinas científicas, e, em sua estrutura, uma síntese das mesmas – e, enquanto tal, não pode ser ele mesmo o resultado de pesquisas. Com isso, ele corresponde amplamente ao conceito kantiano de uma metafísica da completude. E corresponde também à compreensão moderna de metafísica, na medida em que pretende ser uma compreensão última sobre o conjunto dos modos da experiência e formas dis-cursivas diferentes entre si.” Henrich, D.“O que é metafísica?” O que é moder-nidade? Doze teses contra Jurgen Habermas”. In: Cadernos de Filosofia Alemã, nº 14, p. 96-7; _____. Konzepte. Essays zur Philosophie in der Zeit, p. 24.

36. Como se sabe, o princípio do falibilismo, importado de Popper, não opera com comprovações ou verificações. O que define o caráter científico de uma

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Em relação a tais assuntos, portanto, o filósofo deveria per-manecer indiferente: dada a pluralidade de visões de mundo, con-cepções de bem e de vida, que proliferam nas sociedades moder-nas, cabe a cada um, individual ou coletivamente (no interior de uma religião, por exemplo),37 pensar o que quiser sobre eles, ou en-tão abster-se de pensar. Ou seja: exatamente aquilo que pregava o “indiferentismo” do século XVIII, duramente combatido por Kant – “que tinha de divulgar sua obra numa época não tão embevecida com as hiperteorias metafísicas, mas antes marcada pela ironia e o escárnio em relação à metafísica”38 – e oportunamente lembrado por Henrich nas “Doze teses”:

Contra tal opinião [do indiferentismo], a veemente objeção de Kant, tão enraizada quanto possível nas convicções fundamentais de que brotou sua filosofia, diz o seguinte: ‘Por mais que aqueles preten-sos indiferentistas pretendam tornar-se irreconhecíveis também por meio das mudanças na linguagem escolástica, eles recaem inevitavel-mente, na medida em que simplesmente pensam algo em geral, nas afirmações metafísicas contras as quais dirigiam tanto desprezo.’39

Segundo Henrich, a afirmação de Kant cai como uma luva para Habermas porque também este, procurando esconder-se nas

teoria é, na verdade, a possibilidade de ela ser refutada ou falseada, dando lugar a uma teoria mais bem sucedida na explicação de um determinado leque de problemas. Cf. Popper, K. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1975, pp. 28 e ss.

37. É curiosa a importância dada por Habermas à religião, em detrimento da filo-sofia, enquanto possível espaço para o tratamento dessas questões: “Destituída de suas funções formadoras de mundo, a religião continua a ser, observada de fora, insubstituível para um modo normalizador de lidar com aquilo que é extraordinário no dia-a-dia. Por isso também o pensamento pós-metafísico coexiste ainda com uma prática religiosa. (...) Enquanto a linguagem religiosa trouxer consigo conteúdos semânticos inspiradores, e mesmo indispensáveis, que escapam (por ora?) à força de expressão de uma linguagem filosófica e seguem à espera de uma tradução para discursos fundamentadores, a filosofia, mesmo em sua figura pós-metafísica, não poderá substituir ou desalojar a reli-gião.” Habermas, J. Nachmetaphysisches Denken, p. 60.

38. Henrich, D. “O que é metafísica?” O que é modernidade? Doze teses con-tra Jurgen Habermas”. In: Cadernos de Filosofia Alemã, nº 14, p. 88; _____. Konzepte. Essays zur Philosophie in der Zeit, p. 15.

39. Idem, ibidem. A citação de Kant foi extraída do prefácio à primeira edição da Crítica da razão pura (KrV, A X).

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“mudanças da linguagem” (!) de nosso tempo, acaba por recair na metafísica na simples medida em que “pensa algo”: conforme sugerido há pouco, escolher a intersubjetividade como princípio supremo da filosofia implica, mesmo tendo por base pesquisas empíricas de amplo respaldo na comunidade científica (como as de Piaget e Mead), e mesmo admitindo explicitamente a possibi-lidade de tais teorias virem a ser falseadas por teorias posteriores, uma decisão teórica com consequências metafísicas.40 Passa-se, por exemplo, a ver o homem como um ser essencialmente intersubjeti-vo, constituindo a subjetividade um fenômeno secundário, deriva-do e analisado a partir daquela. E isso de um modo tão extremo que, no limite, o adversário teórico poderia ser desqualificado com base numa espécie de diagnóstico clínico: assim como Nietzsche zombava dos homens gregários por não serem suficientemente profundos (à diferença do filósofo solitário, muito mais próximo do “ser”), o “filósofo tradicional” (uma caricatura tipicamente niet-zschiana, diga-se de passagem) pode ser visto como alguém que, por problemas, digamos, na relação com a mãe, desviou-se do pa-drão saudável de sociabilidade, fechou-se em si mesmo e, quiçá isolado na floresta, passou a alimentar-se da ilusão de que seus pensamentos solitários seriam mais do que meras expressões de sua patologia.41 Enquanto isso, o filósofo comunicativo, urbano e

40. Também Volker Gerhardt, num artigo em que comenta a polêmica Habermas-Henrich, afirma que, mesmo concedendo razão a Habermas nas críticas que faz à concepção henrichiana de subjetividade, isso nada aportaria contra a me-tafísica em si. “Pelo contrário: já com a sua crítica ao dualismo e ao princípio da subjetividade move-se Habermas no âmbito da metafísica. Mesmo que sua a reconstrução linguístico-pragmática da autoconsciência fosse bem sucedi-da, permaneceriam atuais as perguntas acerca do estatuto e do alcance dessa teoria. Além disso, com a reconstrução não seriam eliminadas as funções ele-mentares da autoconsciência humana no contexto do agir e do saber. Nós se-guiríamos tendo de contar com a circunstância de que ela vale para todos nós.” Gerhardt, V. “Metaphysik und ihre Kritik. Zur Metaphysikdebatte zwischen Jürgen Habermas und Dieter Henrich.” In: _____. Zeitschrift für philosophische Forschung. Bd. 42, Hft. 1, jan-mar.1988, p. 60.

41. A estratégia do deboche sociologicamente embasado é típica da tradição frankfurtiana, tendo sido bastante explorada por Adorno no Jargão da auten-ticidade. Ainda que mais contido, Habermas faz algo similar com Henrich e

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saudável, aproxima-se da “verdade” à medida que se mostra capaz de compartilhar o trabalho reflexivo com seus pares, sempre a partir de pesquisas empíricas, e assim estabelecer “diagnósticos” cujo sucesso se deixará medir pela recepção junto à comunidade científica.42

Casos clínicos à parte, o argumento de fundo, empregado tanto por Kant como por Henrich – e a fortiori por Nietzsche –, aponta para a circunstância de a visão de mundo do filósofo refletir-se inevitavelmente em seu pensamento: se há algo de ingênuo na “tradição”, esse algo é a crença na neutralidade do próprio discur-so, habitualmente importada da ciência por filósofos sem nenhuma “paciência do conceito”. Ora! Pois não foi justamente para escapar dessa atitude ingênua que a modernidade inventou o sujeito? O co-gito cartesiano não resultou de uma radicalização da dúvida? A coisa em si kantiana não tem por fim precaver-nos contra a tentação de falar em nome das coisas mesmas?... Fora do reino das caricaturas, o “sujeitão” moderno nada mais é do que essa consciência do elemen-to subjetivo necessariamente presente em todo discurso, segundo nos ensinou o processo histórico efetivo da reflexão filosófica – um processo tão palpável quanto a linguagem cotidiana contemporânea, desde que nos disponhamos a levar Platão, Agostinho e Descartes pelo menos tão a sério quanto, digamos, as “autodescrições” dos indivídu-os comuns sondados hoje pelas pesquisas estatísticas de opinião.43

Desse ponto de vista, é preciso refletir com mais cuidado sobre a posição ocupada pelo conceito de sujeito na filosofia mo-

os defensores da metafísica, por exemplo em Habermas, J. Nachmetaphysisches Denken, pp. 270-1.

42. Para as “ciências experimentais modernas e a moral que se tornou autônoma”, confiantes apenas na “racionalidade de seu próprio procedimento”, “o caráter racional dos conteúdos se volatiliza na validade dos resultados”, de modo que “passa a valer como racional não mais a ordem das coisas encontrada no pró-prio mundo, projetada pelo sujeito ou mesmo surgida do processo de forma-ção do espírito, mas sim a solução de problemas que se consegue quando a realidade é manipulada de maneira correta”. Idem, pp. 42-3.

43. Para a crítica das “autodescrições”, cf. Henrich, D. “O que é metafísica?” O que é modernidade? Doze teses contra Jurgen Habermas”, tese 3 (“Autodestruições”). In: Cadernos de Filosofia Alemã, nº 14, p. 89-90; _____. Konzepte. Essays zur Philosophie in der Zeit, pp. 15-7.

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derna, em especial naqueles filósofos que acabaram por cons-tituir o ápice das investigações em torno dele, a saber, Kant e Fichte. Quando este afirma, por exemplo, que “Eu = Eu”, é pre-ciso ter claro, em que pese a obviedade da lição, que “Eu” não corresponde aí àquilo que habitualmente designamos por essa palavra: trata-se antes de uma noção que permite apenas dar à fórmula lógica “A = A” um sentido efetivo, já que a noção de “Eu” diz respeito à percepção de algo como um foco de atividade vital que, de resto inexplicável, parece constituir para nós um “lugar” interior.44 E tanto nosso “pensamento” como nosso “discurso” pa-recem emanar desse “lugar”, independentemente de ele ter sido configurado nas relações intersubjetivas, estar inscrito no código genético ou ter sido concebido por Deus: por mais que a vida social prevaleça sobre a individual, como seria o caso em socie-dades coletivistas (à parte a idealização hegeliana da eticidade grega perdida), há algo que identificamos como um “eu” e que é distinto do “nós”, assim como do “tu” e do “ele”. Mas o que Fichte pretende designar com o seu “Eu” do “Eu = Eu” não é esse “eu” propriamente dito: ele apenas parte dessa nossa percepção, de algo ativo produzindo movimento a partir de dentro, para propor um princípio supremo minimamente compreensível ali onde, de outro modo, ele teria simplesmente de dizer “X = X”. Há algo que “põe”, há algo que “gera”: o grau de indeterminação é tanto que soa bizarro, para dizer o mínimo, vincular essa refle-xão à razão instrumental do indivíduo que só pensa nos próprios fins (em que pese o sucesso de público da bravata, sobretudo no caso da Dialética do esclarecimento).

Seja como for, a função do “Eu” ou do sujeito, nesse esque-ma, seria simplesmente a de marcar esse foco de movimento que

44. “[O princípio absolutamente primeiro, Eu=Eu] deve exprimir aquele es-tado-de-ação que não aparece nem pode aparecer entre as determinações empíricas de nossa consciência, mas que, muito pelo contrário, está no fun-damento de toda consciência e é o único que a torna possível.” Fichte, J.G. A Doutrina-da-ciência de 1794. In: _____. A Doutrina-daciência de 1794 e outros escritos. Seleção e tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1984 (2ª. edição), p. 83. Cf. tb. Henrich, D. Fluchtlinien. Philosophische Essays, pp. 136-8.

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percebemos como ativo em nós por oposição a tudo aquilo que percebemos passivamente como coisas cujo foco de movimento não está em nós, mas nelas mesmas – donde o “não-Eu” fichtiano e a “coisa em si” kantiana. E insistamos no grau de indetermina-ção: há algo que “põe” versus há algo que “é posto”; há um vetor que aponta “de dentro para fora”, outro que aponta “de fora para dentro”.45 Nada impede, por exemplo, que nos valhamos dessa oposição para, em um nível menos abstrato da reflexão, pensar a humanidade, de um lado, e a natureza, de outro: o “Eu”, nesse caso, equivaleria a um grande “Nós” que, por meio de uma (nobilíssima) ficção teórica, seria tratado como um. E assim por diante: uma so-ciedade, um grupo minoritário, um movimento social, uma famí-lia... todos esses complexos coletivos podem ser pensados a partir dessa oposição X-Y, em que X diz respeito a “por em movimento” e Y a “sofrer a ação de um movimento”.

A essa altura bem se poderia perguntar, impaciências do con-ceito à parte, qual a “utilidade” dessa oposição e, se ela for mesmo constitutiva do pensar filosófico (como quer Henrich), qual a “uti-lidade” da filosofia em geral (ou dessa filosofia teimosa que, ao con-trário do que quer Habermas, recusa-se a “casar” com as ciências sociais). E à pergunta bem se poderia responder com outra per-gunta, bem ao gosto dos “filósofos tradicionais”: o que entendes tu por “útil”, meu caro Trasímaco? A qualquer resposta que este nos desse, Sócrates trataria então de demonstrar que a atribuição do valor de utilidade a determinadas coisas, em detrimento de outras, pressupõe uma atividade valorante que, sob pena de contradição

45. Com relação aos dois sentidos em que o ‘eu’ tem de ser tomado, diz Henrich: “Com a referência à expressão linguística para autoconsciência, o ‘eu’, pode-se marcar a dupla negação de identidade a ele ligada do seguinte modo: a primeira pessoa do singular distingue aquele que a utiliza, segun-do a sua identidade, de dois modos: na medida em que o ‘eu’ se relaciona diretamente ao ‘ele’ ou ao ‘tu’, enquanto pessoa entre pessoas; mas na me-dida também em que o ‘eu’ se relaciona diretamente ao elemento neutro da terceira pessoa (dem ‘es’ der dritten Person neutrum), enquanto sujeito entre todas as entidades e estados de coisas conjuntamente tomados. Nós nos compreendemos originariamente como ao mesmo tempo um entre os outros e o Um em relação ao mundo inteiro.” Henrich, D. Fluchtlinien. Philosophische Essays, p. 138.

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(performativa?), não pode ser igualada às próprias coisas valoradas: na relação de valoração, estas últimas funcionaram como “não-Eu” (ou como Y), enquanto o responsável (ou os responsáveis) pela va-loração funcionaram como “Eu” (ou como X). Desse modo, todo ser humano que pretende emitir juízos de valor deveria admitir uma tal oposição e, assim, reconhecer a utilidade da filosofia. Somente aquele que lograsse viver em permanente suspensão do juízo, como propunham os antigos céticos – uma possibilidade altamente duvi-dosa –, estaria autorizado a rejeitá-la.46

Como esse, porém, não parece ser o caso de Habermas, ca-beria então verificar, como sugere Placidus Heider, até que ponto ele não opera implicitamente com essa oposição,47 repetindo assim os passos de seu filósofo preferido, Hegel, cuja intenção antidua-lista, anunciada com grande pompa, acabaria por enfraquecer-se sob a inesperada distinção Wirklichkeit-Realität.48 Que Habermas pretenda salvaguardar, além do descritivo, também o elemento normativo do projeto moderno, é sabidamente um dos principais motes de sua empreitada teórica, como ele próprio não se cansa de frisar:

Caso não deva permanecer arbitrário, esse conteúdo normativo pre-cisa ser obtido e justificado a partir do potencial racional imanente à práxis cotidiana. O conceito de razão comunicativa, introduzido de maneira provisória e que aponta para além da razão centrada no

46. Cf. Henrich, D. “O que é metafísica?” O que é modernidade? Doze teses con-tra Jurgen Habermas”. In: Cadernos de Filosofia Alemã, nº 14, p. 87-8; _____. Konzepte. Essays zur Philosophie in der Zeit, pp. 14-5.

47. Ao contrário de Daniel Henrich, que tende a sublinhar os aspectos dis-tintivos do naturalismo habermasiano face à posição de Dieter Henrich, Placidus Heider procura apontar para convergências entre os dois auto-res, sobretudo no modo como compreendem e defendem a racionalidade. Cf. Heider, P. Jürgen Habermas und Dieter Henrich. Neue Perspektiven auf Identität und Wirklichkeit. Freiburg, München: Alber, 1999, pp. 101-3.

48. A metacrítica kantiana é aqui um tanto elementar: se realidade e razão de-veriam coincidir, de modo a evitar-se o terrível monstro kantiano da cisão subjetividade-natureza, como admitir essa súbita entrada em cena de uma dualidade efetividade-realidade, segundo a qual apenas “uma parte” da reali-dade (a efetiva) é racional?

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sujeito, deve conduzir para fora dos paradoxos e dos nivelamentos de uma crítica auto-referencial da razão.49

Coerente com o princípio do “primado da prática”, por ele advogado desde os textos de juventude,50 Habermas parece sugerir aí um vínculo forte entre um de seus conceitos teóricos primor-diais – a razão comuncativa – e o propósito de “adquirir e justifi-car” o conteúdo normativo que seria próprio ao “discurso filosófico da modernidade”, orientando assim a sua filosofia à possibilidade de pensar a sociedade moderna na dupla dimensão dos pontos de vista descritivo e normativo, de “facticidade e validade”.51 De espí-rito aparentemente kantiano, visto operar com esse “duplo ponto de vista”, a proposta tende a enredar-se em complicações, no en-tanto, justamente quando se mostra dominante o viés hegeliano da sua compreensão da modernidade: tendo de limitar ao máxi-mo essa “dualidade” da oposição descritivo-normativo, sob pena, como sempre, de recair nos braços da “velha rainha”, a explicação habermasiana do elemento normativo terá de vincular-se constitu-tivamente ao descritivo, i.e. à própria “realidade em movimento”, para falar em termos hegelianos. Em outras palavras, ele terá de fazer brotar do próprio real, na forma de tendências que se deixa-riam ler na interpretação reconstrutiva dos movimentos sociais,52 o tal conteúdo normativo cuja finalidade, por seu turno, seria dar regras e critérios a esse mesmo real.

49. Habermas, J. O discurso filosófico da modernidade, p. 473.50. É essa, como se sabe, a perspectiva dominante em Conhecimento e interes-

se, de 1968. Cf. Habermas, J. Erkenntnis und Interesse. Frankfurt-am-Main: Suhrkamp, 2007.

51. Refiro-me, naturalmente, ao título daquela que é, certamente, a obra mais importante de Habermas nos anos 1990, e que opera justamente a partir dessa dupla perspectiva: Habermas, J. Faktizität und Geltung. Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats. Frankfurt-am-Main: Suhrkamp, 1992.

52. Acerca do significado que tem a reconstrução no modo como Habermas en-tende a filosofia, cf. Repa, L. A transformação da filosofia em Jürgen Habermas. Os papéis de reconstrução, interpretação e crítica. São Paulo: Singular/Esfera Pública, 2008, pp. 135 e ss.

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E assim acabaríamos por, agora sim, recair naquele círculo vicioso que, talvez irrelevante do ponto vista das (genuínas) in-tenções emancipatórias, nos impediria contudo, segundo a mais elementar metacrítica kantiana, de estabelecer uma fundamenta-ção filosófica – tanto faz se “fraca” ou “forte”, se “semi-” ou “pleni-” transcendental – das normas morais e jurídicas: conforme Kant, do fato de algo ser assim ou assado não se segue que algo deva ser assim ou assado; nem do fato de algo apontar para isso ou aquilo (uma tendência) se segue que algo deva ser isso ou aquilo. A menos que se introduza, como fez Hegel, uma distinção ontológica vio-lenta entre dois “tipos” de real – um que apenas é (Realität), outro que é porque deve ser (Wiklichkeit) –, ficaremos de mãos amarra-das frente à efetividade do mundo ou, que seja, dos movimentos sociais. Nos anos 1930, isso significaria assistir tranquilamente às manifestações da juventude nazista e, se possível, reconstruir a sua lógica interna de modo a deduzir, como tendências inscritas no real, o conteúdo normativo a ser seguido por todos. De certo modo, era justamente isso o que Heidegger andava fazendo na época.53

Se não queremos, porém, associar a esse obscurantismo fi-losófico a empreitada habermasiana, cujo fim é levar adiante os ideais iluministas que esse mesmo Heidegger pretendia sepul-tar, então devemos identificar os elementos positivos com que Habermas, ao arrepio de suas próprias declarações de intenção,

53. Nas preleções sobre Nietzsche dos anos 1936 a 40, reunidas no primeiro volume de seu Nietzsche, são muitas as passagens de tom profético em que Heidegger se refere, a partir das tendências que observa como próprias da época, o “grande acontecimento” que estava por vir, a “grande decisão” com que o povo alemão tinha de defrontar-se etc. Tome-se como exemplo a se-guinte: ”Essa semblância permanece enquanto ninguém tiver ainda conse-guido pressentir e, antes de tudo, enquanto ninguém tiver ainda avaliar em sua amplitude que, apesar da preponderância da técnica e da “mobilização” universalmente tecnicizada do globo terrestre, ou seja, a partir de um pre-domínio muito determinado da natureza capturada, irrompe um poder do ser totalmente diferente: a história que não é mais representada pela histo-riografia como seu objeto.” Heidegger, M. Nietzsche, vol. I, Trad. de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 351. Cf. tb., p. ex., idem, p. 418 e idem, pp. 468-9

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acaba por preencher de conteúdo o “lado racional” do mundo ou, nos termos há pouco sugeridos, o lado “subjetivo” da oposição “Eu- não-Eu”. E esse lado, na verdade, acabou de no-lo mostrar o próprio Habermas, com a idéia de uma razão comunicativa que, por oposição à instrumental, ocupa um lugar lógico idêntico ao da razão prática kantiana, relativamente à teórica: onde uma ope-ra mecanicamente com com causas e efeitos, não importando os meios para atingir os fins visados, a outra opera segundo uma lógi-ca própria na qual o ser humano não é nunca tratado como meio, seja porque é visto como membro de uma comunidade de seres racionais, seja porque é visto como participante da comunicação cuja situação tem de ser isonômica em relação aos demais.

Se não interpretarmos literalmente as metáforas kantianas (reino dos fins, mundo inteligível etc), então o que temos, num caso como no outro, são simplesmente dois pontos de vista a partir dos quais podemos considerar-nos ora como meios, inseridos numa série de causas e efeitos – ou como peças na engrenagem dos sis-temas dinheiro e poder, para falar nos termos de Habermas –, ora como fins em si mesmos – ou como membros de uma comunidade racional comunicativa com direito à igualdade de participação nos processos argumentativos. E que este último ponto de vista tenha um caráter assumidamente “ideal”, i.e. que funcione como idéia reguladora em relação ao “mundo da vida” e o desenvolvimento das instituições, é algo perfeitamente aceitável do ponto de vista daquela oposição X-Y que, segundo a leitura kantio-henrichiana, é constitutiva de todo filosofar.

Nesse ponto, aliás, é emblemática a atitude de Karl-Otto Apel, conhecido por ser co-fundador da ética do discurso ao lado de Habermas: para ele, o modelo teórico que serve de base à fun-damentação filosófica, em regime contemporâneo, é o modelo kantiano, funcionando a “comunidade ideal de fala”, em alguns momentos abraçada pelo próprio Habermas,54 como o fundamen-

54. Habermas não fala tanto em “comunidade”, mas em “situação ideal de fala”. Segundo nos mostra Luiz Repa, Habermas adotou esse conceito ostensi-vamente, com a função de uma idéia reguladora, até o momento em que, aceitando a crítica de Wellmer – segundo quem o “ideal” tem de ser dado

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to transcendental da nova ética.55 Embora também se pretenda “pós-metafísico”, por crer que teria escapado à filosofia do sujeito,56 Apel não resistiria por muito tempo ao ataque henrichiano, sen-do fácil vincular esse caráter transcendental da comunidade ideal àquela ampla corrente da filosofia contemporânea que, conforme sugerimos há pouco, poderia ser descrita como uma metafísica da intersubjetividade – uma corrente que, segundo Henrich, teria em Rousseau uma espécie de precursor, devido à sua visão negativa do indíviduo, e se firmaria a partir de então com os

diversos esforços intelectuais e movimentos políticos reformistas visando reconquistar, para os indivíduos depravados pela desunião, uma comunidade acolhedora ou uma vida política em que o ‘sujeito’ possa libertar-se e tornar-se ‘cidadão’ ou ‘camarada’.57

A esses esforços estariam vinculados, num primeiro momen-to, os nomes de Jacobi, “segundo o qual cada ‘eu’ teria seu comple-mento num ‘tu’”, e do jovem Hölderlin, cuja Vereinigungsphilosophie teria intuito similar. Em seguida viriam o Fichte da “filosofia so-cial do reconhecimento”, Feuerbach e Marx, com a “antropologia do homem como ser essencialmente social”, e mais tarde

a teoria da intersubjetividade de Husserl, o conceito lukácsiano de consciência de classe e o tratado de Martin Buber sobre a originariedade da dimensão que institui, entre ‘eu’ e ‘tu’, a abertura de um para o outro.58

concretamente, na própria situação real de fala –, atenuou a noção e deixou de tê-la como um elemento central de sua “fundamentação” da ética do dis-curso. Repa, L. A transformação da filosofia em Jürgen Habermas, pp. 96 e ss.

55. Cf. Apel, K-O. Diskurs und Verantwortung. Das Problem des Übergangs zur postkonventionellen Moral. Frankfurt-am-Main: Suhrkamp, 1988, pp. 50 e ss.

56. Cf. Apel, K-O. “Disursethik als Verantwortungsethik. Eine postmetaphy-sische Transformation der Ethik Kants”. In: Schönrich, G.; Kato, Y. (orgs.) Kant in der Diskussion der Moderne. Frankfurt-am-Main: Suhrkamp, 1997, pp. 24 e ss.

57. Henrich, D. “O que é metafísica?” O que é modernidade? Doze teses con-tra Jurgen Habermas”. In: Cadernos de Filosofia Alemã, nº 14, p. 110; _____. Konzepte. Essays zur Philosophie in der Zeit, p. 37.

58. Idem, ibidem.

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Depois seria a vez de Heidegger, “determinando esse ‘entre’ como linguagem”, e em seguida a onda do pragmatismo ame-ricano, cujas semelhanças com a “filosofia do homem como ser linguístico” seriam logo notadas e dariam origem à “doutrina da originariedade dos jogos de linguagem, concebida em inglês por Wittgenstein”.59 E logo, como se pode imaginar, seria a vez de Apel e Habermas com a ética do discurso, a refletir em nova cha-ve – cujos elementos kantianos, há pouco sugeridos, Henrich não parece todavia levar suficientemente em conta60 – essa mesma ten-dência geral a pensar o mundo a partir não mais da subjetividade, mas agora da intersujetividade ou da comunicação.61

Descartada por ora a hipótese de um movimento dialético da filosofia contemporânea cujo ponto de culminância fosse a filosofia de Habermas, o que parece desenhar-se nessa perspectiva é antes a convivência – em regime de concorrência – de dois pressupostos filosóficos distintos, um remontando a Rousseau-Hegel-Marx, o outro a Kant-Fichte: de um lado as filosofias da intersubjetivdade, de outro as da subjetividade. Com a importante diferença de que aquelas, ainda nas ilusões da “juventude”, acreditam representar a superação de todo o passado filosófico, ao passo que as últimas, para sobreviver, não têm outra opção senão admitir sua filiação ao velho vício do “amor à sabedoria”. É bem verdade que alguns dos “intersubjetivistas”, menos radicais, procuraram vincular os seus

59. Idem, ibidem.60. No texto “Agir comunicativo e razão destranscendentalizada”, Habermas

acolhe as idéias kantianas da razão em sua filosofia pós-metafísica – ou no horizonte da “razão destranscendentalizada” – num sentido não muito dis-tante do sugerido por Henrich. Esse é um texto que permitiria pensar em Habermas não como um filósofo pós-metafísico, mas como um metafísico pós-kantiano – assim como o próprio Henrich. Cf. Habermas, J. Entre natu-ralismo e religião. Estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, pp. 36-7.

61. O título da nona tese de Henrich sintetiza o modo como ele questiona essa substituição de “paradigmas”: “Comunicação em vez de subjetividade?” (Kommunikation statt Subjektivität?) Henrich, D. “O que é metafísica?” O que é modernidade? Doze teses contra Jurgen Habermas”. In: Cadernos de Filosofia Alemã, nº 14, p. 103; _____. Konzepte. Essays zur Philosophie in der Zeit, p. 34.

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esforços pensantes aos esforços da tradição, marcando sua dife-rença menos pela “novidade” do que pelo modo novo de enfrentar as velhas indagações: sem falar no próprio Hegel, cuja grandeza filosófica (no sentido pleno do termo) é indiscutível, temos em Heidegger – sobretudo em Ser e tempo – o grande exemplo recen-te, constituindo a “analítica do Dasein” um projeto análogo à ana-lítica kantiana no qual o “ser-no-mundo”, também dito “ser-com-o-outro”, ocupa o lugar que era antes do sujeito transcendental.

Sabe-se que o próprio Heidegger rejeitaria posteriormente a sua “analítica”, por julgá-la ainda “metafísica”.62 Mas o exemplo é oportuno, assim como aquele de Apel, justamente por isso: ele nos ajudar a ilustrar essa interpretação da cena filosófica contemporâ-nea como um grande embate entre esses dois modelos metafísicos – o subjetivista e o intersubjetivista. E não nos importa por ora to-mar posição: a grande vantagem dessa perspectiva é simplesmente evitar a ilusão de que a vitória do intersubjetivismo seria inexorá-vel e, mais ainda, de que ela implicaria o fim da metafísica. Esta persiste, segundo procuramos mostrar, na simples medida em que persista a necessidade humana de valorar: quer interpretemos o polo ativo da relação valorante como “sujeito”, quer como “comu-nidade de fala”, em ambos os casos temos de distingui-lo do polo valorado, cujo nome, a rigor, também não importa (se coisa, obje-to, mundo etc). Kantianamente falando, o que importa é garantir essa dualidade perspectiva, pois somente assim se evita que um dos polos acabe por engolir o outro, resultando ou num idealismo desvairado que faz tábula rasa da sensibilidade, ou num realismo hipertrofiado que elimina a possibilidade da moral.

Pois é isso o que está verdadeiramente em jogo, como vimos, quando se defende a metafísica da modernidade: se Habermas tem razão no que diz respeito ao primado da prática sobre a teoria como um “motivo do pensamento moderno”, Henrich parece ter

62. Em termos heideggerianos: em vez de ir direto ao “Ser enquanto tal”, como faria a poesia em sua fase pós-Kehre, Sein und Zeit teria tentado determinar o “Ser do ente enquanto tal”, incorrendo assim na tendência encobridora típica da metafísica ocidental. Cf., a esse respeito, Nunes, B. Passagem para o poéti-co. Filosofia e poesia em Heidegger. São Paulo: Ática, 1992, pp. 134 e ss.

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razão quando vincula a possibilidade desse primado à autonomia do ponto de vista (inter-?) subjetivo frente à abordagem descritiva das teorias de base empírica. Mesmo que se queira dar a maior voz possível às ciências sociais, seguiria sendo necessário distinguir o nível em que estas atuam, propondo descrições da subjetividade adequadas ao contexto histórico, daquele em que a reflexão filosó-fica, fazendo abstração do contexto para pensar a consciência em geral, “reconstrói” o conteúdo normativo da racionalidade humana a partir não do movimento limitado de umas poucas décadas, mas daquilo que se entende por razão desde que os primeiros filósofos se puseram a pensar o mundo, dois mil e quinhentos anos atrás. Sem uma perspectiva capaz de transcender o estreito campo da observação empírica, todo esse patrimônio vai por água abaixo, e o que ainda se ousar chamar de filosofia não será sequer uma pálida sombra daquilo que ela foi e ainda pode ser.

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O que é metafísica? – o que é modernidade? Doze teses contra Jürgen Habermas1

Dieter Henrich

Durante o tempo em que a filosofia pôde compreender-se como um sistema doutrinal lastreado numa base segura, “metafísi-ca” foi o nome de uma disciplina filosófica especial. É sabido, po-rém, que a sua pré-história é tão ambígua quanto a história de sua recepção é uma seqüência de equívocos. Originalmente, ela desig-nava tão somente um conjunto de preleções de Aristóteles que, em suas obras completas, foram ordenadas após as preleções sobre física. “Metafísica”, portanto, é apenas algo que guardou lugar para um nome de investigações que até hoje permaneceram sem título e às quais muito se associou e muito se deixa ainda associar. Já por aí se percebe como é fácil lançar em obscuras vizinhanças aquele que não apenas se debruça criticamente sobre algo que poderia estar sob esse não-título, mas a isso associa, ainda hoje, as tare-fas do pensamento. Mas ao não-título estão ligadas recordações também de movimentos essenciais do entendimento, não apenas de profundidades vazias ou esforços para além e contra a corrente da história. É importante fazer justiça, pois, ao conteúdo que em nosso tempo tem de ser ligado ao não-título.

Jürgen Habermas lançou uma interrogação sobre o tema num ensaio em que discute tendências do retorno à metafísica na filosofia alemã.2 Ele pretende mostrar que todas essas tendências

1. Título original: “Was ist Metaphysik? – was Moderne? Zwölf Thesen gegen Jürgen Habermas”. In: Henrich, D. Konzepte. Essays zur Philosophie in der Zeit. Frankfurt-am-Main: Suhrkamp, 1987, pp. 11-43. Agradeço ao Grupo de Filosofia Alemã pelas valiosas sugestões, e a Fernando Rodrigues pela minuciosa e enriquecedora revisão da tradução. (N. do T.)

2. “Rückkehr zur Metaphysik – Eine Tendenz in der deutschen Philosophie?” In: Merkur, n. 439/440, 1985, pp. 898 e ss. (N. do A.) Tal texto seria publi-cado, com acréscimos, como anexo ao livro: Henrich, J. Nachmetaphysisches Denken. Frankfurt-am-Main: Suhrkamp, 1988. Há pelo menos duas versões desse livro em português: Henrich, J. Pensamento pós-metafísico. Tradução

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devem ser consideradas obsoletas e que, em todo caso, conduzem para fora do projeto moderno, cuja continuação Habermas defen-de com justa ênfase. O presente conjunto de teses é uma resposta a seu artigo. Elas devem elucidar um conceito de metafísica que está ligado ao projeto moderno. Elas devem mostrar ao mesmo tempo que Habermas, em sua própria empreitada teórica, acredita erroneamente poder prescindir de tarefas do pensamento para as quais ainda hoje não temos à disposição uma palavra-título me-lhor do que “metafísica”.

1. Determinação do lugar da metafísica

Na época da estabilidade dos sistemas filosóficos doutri-nais, havia pelo menos um conjunto de conteúdos associados ao não-título. Sob ele eram arroladas investigações cujo fundamento de classificação não era evidente a partir da própria lista: inves-tigações, por exemplo, sobre o que faz de uma coisa algo auto-subsistente, sobre possibilidade e necessidade, sobre a natureza de um espírito, sobre o conceito de um mundo e sobre um primeiro princípio tanto para formas como para modificações. Os pontos de inserção dessas investigações são tão esclarecedores quanto é intransparente o seu agrupamento sob o não-título.

A isso se vincula a circunstância de que ao não-título, herda-do da tradição, também está ligada uma longa série de tentativas no sentido de encontrar em sua origem os rastros desse amon-toado de perguntas sem título, assim como no de ordenar corre-tamente as investigações nele compreendidas, libertando-as das conclusões que as caracterizam como modos estranhos, equivo-cados ou despropositados de colocar os problemas. A mais rica de conseqüências, dentre essas tentativas, foi para nós aquela de Immanuel Kant. Quem hoje enxerga como ligada ao não-título a possibilidade de trabalhar com pensamentos comprováveis tem ao menos de voltar-se, de modo não meramente formal, à tentativa

de Lumir Nahodil. Coimbra: Almedina, 2004. Henrich, J. Pensamento pós-metafísico. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002 (2ª.ed.). (N. do T.)

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Dieter Henrich O que é metafísica? – o que é modernidade?

kantiana de lançar luz sobre a situação da empreitada herdada de Aristóteles. Isso não vale menos, aliás, para o crítico que se apóia em Kant e, no entanto, lança contra a empreitada metafísica, e as esperanças a ela relacionadas, apenas aquela tão antiga acusação de inutilidade.

Kant dividiu as investigações que demandam uma metafísica em dois grupos, e explicitou esta divisão por meio de uma clas-sificação: de um lado se encontram as investigações que dizem respeito ao esclarecimento dos modos de operação do intelecto. Elas são “metafísicas” na medida em que analisam não a constru-ção mesma dos modos de operação, mas sim as pressuposições a serem levadas em conta [in Anspruch zu nehmenden] com vistas aos conteúdos que neles devem ser deduzidos. Há uma metafísica, portanto, que está ligada ao conhecimento de determinação dos objetos, desde que se possa mostrar que esse conhecimento traz consigo pressuposições acerca de uma constituição fundamental de todos os objetos que não podem ser confiadas à averiguação pela experiência e pela pesquisa metódica. E há uma metafísica “dos costumes” desde que se possa mostrar que já a distinção entre “bem” e “mal” se refere não apenas a proposições normativas, mas envolve suposições sobre sua condição de validade, sobre aquele que age, portanto sobre pessoas, e sobre as possíveis motivações de seu agir.

O outro grupo é formado por temas e caminhos de reflexão de significância inteiramente diversa. Eles não pertencem ao do-mínio em que os enunciados normativos e de determinação de objetos têm o seu ponto de partida e sua primeira parada, não são pensamentos elementares, mas sim pensamentos de uma com-pletude. A esses pensamentos de completude (Abschlussgedanken)3

3. A expressão Abschlussgedanken é central nas teses de Dieter Henrich. Decidimos traduzi-la por “pensamentos de completude” porque, como se verá em seguida, eles se opõem aos modos incompletos (unvollständige) do conhecimento ordinário. Não se trata, naturalmente, de uma completude dogmática, que afirmasse a totalidade do conhecimento, mas de uma com-pletude problemática, de matriz kantiana, que é buscada justamente para compensar, como uma espécie de idéia reguladora, o estado de incompletu-de em que nosso conhecimento se encontra naturalmente. (N. do T.)

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está ligado o interesse por essa empreitada cujo não-título é meta-física: um interesse que não é profissional, mas se encontra latente em todo homem. Tais pensamentos são irrecusáveis por duas ra-zões, as quais se pressupõem reciprocamente: (1) os modos ele-mentares de conhecimento conduzem a resultados insuperáveis, incompletos e, além disso, em contradição uns com os outros. (2) Mas nem a razão nem uma vida orientada pela razão podem sim-plesmente permanecer nessa incompletude e em tais contradições. A metafísica da completude não é, portanto, um empreendimento temerário que estivesse simplesmente entregue àquela disposição de que derivamos nossos programas teóricos. Ela não é, como tal, nem um assunto da ciência, portanto um produto da curiosidade teórica, nem tampouco uma faculdade construtiva a que pudésse-mos recorrer por uma pura necessidade vital. Ela é um assunto da razão e, enquanto tal, da humanidade. Devido a esta sua origem, a racionalidade exigida pela metafísica da completude não está com-prometida com que seus pensamentos tenham de ser justificados segundo um procedimento científico de prova. A razão está em operação mesmo ali onde se pondera sobre qual a melhor respos-ta, isto é, a mais abrangente e mais coerente consigo mesma, para uma determinada problemática em que se entrecruzam diversos âmbitos de problemas, a demandar cada qual para si o emprego de um método distinto, o qual por sua vez também não pode ser reduzido a um conceito metodológico superior. Compreensão e interpretação pertencem ao sentido da razão (Vernunftsinn) para além daquilo que se pode assegurar por meio de provas, do mesmo modo como prova e crítica também pertencem. Somente quando desprovida de crítica, e de uma abrangente ponderação dos prós e contras, é que a explicação dos pensamentos de completude se torna um empreendimento temerário, à mercê do arbítrio e da desmesura.

2. Hiperteoria ou ceticismo?

É importante deixar claro que a nova determinação kantiana da metafísica, inteiramente moderna, originou-se de uma asso-

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Dieter Henrich O que é metafísica? – o que é modernidade?

ciação com o pensamento que se manifesta em cada homem e que, embora voltado à autocompreensão, não se desvincula nem se deixa desvincular de seus esforços para dar a esta vida uma for-ma e não deixá-la simplesmente acontecer, mas “conduzi-la” de modo consciente. Tendo tal associação em vista, deve-se dizer que a metafísica se origina da “vida consciente” e, para falar nos ter-mos de Kant, de sua “espontaneidade”. Tal associação com a vida é característica da metafísica tanto no seu começo platônico como na nova determinação de sua essência na filosofia moderna. A “metafísica” se forma no pensamento espontâneo de cada homem, previamente a todas as suas possíveis enunciações na linguagem da teoria. Antes de mais nada, a filosofia tem de compreender as suposições fundamentais de tal pensamento (na metafísica do elementar), bem como seus desdobramentos (na metafísica da completude), e fazê-los valer contra as hiperteorias que, se nele vigentes, acabariam por deformar essa mesma vida. Tais teorias provêm, com efeito, de uma ciência de fundo que procura anteci-par-se a todo pensamento efetivo e que, como a instituição fixa, alheia e praticamente invisível de um certo uso conceitual, tem de opor-se à vida espontânea da razão e bloquear-lhe os movimen-tos. Nessa medida, Habermas erra o alvo ao objetar à metafísica, assim compreendida, que ela feriria o princípio da revisibilidade, um princípio que já não pode ser descartado da compreensão mo-derna de ciência. De fato: toda teoria sobre a seqüência numérica natural é falível. Mas daí não se segue qualquer argumento contra a formação espontânea da própria seqüência numérica. De modo semelhante, a justificação da metafísica não decorre da pretensão a uma teoria infalível ou do direito de falar ex cathedra em nome daqueles pensamentos últimos cuja força ela leva em conta.

Quem quisesse imputar essas conclusões equivocadas a todas as metafísicas da pré-modernidade européia teria de recorrer em seguida, portanto, a um novo artifício, de modo a pelo menos di-vidir os desdobramentos da metafísica da completude a partir da espontaneidade da própria vida consciente: na medida em que tais desdobramentos não são capazes de verdade, teria de ser também possível renunciar a eles e submeter a própria vida a uma orienta-

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ção fundamental caracterizada pela modéstia. Mas também esta objeção é tão antiga quanto a própria metafísica, em cada uma de suas formas. Ela está ligada àquele ceticismo da suspensão do juízo que quer ser não apenas crítica teórica, mas também um conjunto de recomendações relativas à conservação e organização da vida. Nunca é demais lembrar, por sinal, que a própria filosofia moderna não se originou menos da defesa contra esse ceticismo do que da defesa contra as hiperteorias profissionais. E por meio de sua bem sucedida luta em ambas as frentes de batalha se deixam esclarecer sua formação, sua estrutura interna e seu efeito histórico.

Quem pensava encontrar facilidade nesse segundo lance de-veria, antes de mais nada, lembrar-se da posição de Kant, que tinha de divulgar sua obra numa época não tão embevecida com as hi-perteorias metafísicas, mas antes marcada pela ironia e o escárnio em relação à metafísica. O contemporâneo que ele via fazer escola não era Leibniz, mas Voltaire. E a este corresponde a opinião de que, com relação àquele empreendimento a que se tinha ligado o não-título “metafísica”, as investigações necessárias à humanida-de sob as condições modernas poderiam permanecer indiferentes. Contra tal opinião, a veemente objeção de Kant, tão enraizada quanto possível nas convicções fundamentais de que brotou sua fi-losofia, diz o seguinte: “Por mais que aqueles pretensos indiferen-tistas pretendam tornar-se irreconhecíveis também por meio das mudanças na linguagem escolástica, eles recaem inevitavelmente, na medida em que simplesmente pensam algo em geral, nas afir-mações metafísicas contras as quais dirigiam tanto desprezo.”4 Mostraremos adiante que a teoria de Habermas pode ser tão bem analisada hoje, à luz desse princípio, quanto o modo de pensar que Kant apontou há duzentos anos em seus contemporâneos.

4. Krv, A X. (N. do A.) Conforme a praxe, Henrich faz a citação de acordo com a edição original da Crítica da razão pura (Kritik der reinen Vernunft), dividida em A e B conforme se trate da primeira ou da segunda edição (1781 e 87, respectivamente). Tais referências são mantidas na edição da Academia: Kant, I. Kritik der reinen Vernunft. In: Kants gesammelte Schriften. Herausgegeben von der Königlich Preussischen Akademie der Wissenschaft, vol. I. Berlim: W. de Gruyter, 1900. (N. do T.)

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3. Autodescrições

Por que, porém, Kant sustenta ser inevitável a autocontradi-ção da pretensa indiferença, por meio de uma metafísica oculta, na simples medida em que algo seja pensado, com relação a qualquer problemática fundamental efetiva? Podemos extrair uma indica-ção do que é essencial em seus argumentos a partir de uma prele-ção que só foi publicada recentemente: “Não podemos desabitu-ar o entendimento de suas questões... Elas são tão enraizadas na natureza da razão que não podemos abandoná-las. Mesmo todos os desprezadores da metafísica, que querem se dar a aparência de uma grande elevação intelectual, têm eles próprios, Voltaire inclu-ído, a sua própria metafísica. Porque cada um tem de pensar algo a respeito de sua própria alma.”5 O discurso sobre a “alma”, aqui, é apenas o lugar vazio para todas as respostas a perguntas que a ra-zão nos faz, inevitavelmente, acerca de nós mesmos: como tu pen-sas, afinal, sobre ti mesmo, quando, tendo em vista tudo aquilo que te é conhecido e que tu sabes diferenciar – o que te dá autoridade a esse respeito – perguntas o que e quem tu efetivamente és? Esta é precisamente a questão na qual Kant reuniu, sob proposições pertencentes aos bens culturais universais, todas as questões da filosofia – as quais, porém, estão longe de ter um significado trivial se tomadas nesse sentido de constituir uma síntese das questões delas derivadas e dos princípios para respostas provisórias a elas: “o que é o homem?” Por meio de uma reformulação, ela pode ser transferida também para o interior da linguagem semântica da filosofia de nosso tempo, onde ela, então, assim se expressa: qual autodescrição, deste que é capaz de um discurso racional, conse-gue afinal permanecer de pé, frente a tudo que sabemos sobre ele e a todas as pressuposições, para ele irrenunciáveis, das diversas autodescrições?

Caso o sentido sintético da questão seja desconsiderado, en-tão ela pode ser satisfeita com respostas antigas e em parte tri-viais: o homem é um ser vivo capaz de rir e pensar; é homo faber, inventor de suas relações vitais; é um agente responsável; ele é

5. Kants gesammelte Schriften, XXIX, 1.2, p. 765. (N. do A.)

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um ser social, portanto interator em instituições; é um homem gregário (Mitmensch), um ego direcionado ao alter porque com-passivo (mit-leidend); e ele é (do ponto de vista da semântica isto seria um progresso em relação à suposta trivialidade das demais respostas): um falante (ein Sprecher). Cada uma dessas respostas se prende, evidentemente, a uma determinada perspectiva teórica, a partir da qual elas podem adquirir um formato filosófico. Se elas são diretamente dadas, porém, então elas partilham uma carac-terística essencial que as faz desconhecer o sentido da questão: pretendendo dar o seu veredito a partir de um primeiro e único ângulo da autodescrição, elas ignoram que a candência da questão está justamente em tratar-se de uma síntese. Com isso impõem ao homem uma unidimensionalidade que é estranha à sua efetiva autocompreensão e, por isso mesmo, privam-se do pensamento que na verdade já está em ação nessa autocompreensão. Para este pensamento o não-título “metafísica”, de acordo com sua nova determinação na modernidade, tem, mesmo no domínio teórico, de guardar um espaço. Na palavra-título, de resto, não há nada contido. Ela poderia ser substituída por outra, mas os mais signi-ficativos seguidores de Kant não o fizeram.

4. Conflito no início

Fica assim indicado, ex negativo, o ponto de partida para a colocação do problema da filosofia relativamente à metafísica, que se colocou como tarefa, em seu decurso, auxiliar a consciência moderna a atingir expressão e clareza. Ela reconheceu, como um achado que não repousa em ilusão ou equívoco, que a autocompre-ensão do homem conduz a um conflito entre as duas autodescri-ções aparentemente evidentes daquele que, seja por meio de pres-suposições incontornáveis, seja numa reflexão espontânea, chega a conceitos que se aplicam a ele mesmo. Nós somos a cada vez diferentemente assumidos ou interpelados, conforme colocamos à prova os fundamentos da verdade de certas afirmações; confor-me não apenas reconhecemos, mas tomamos como critérios para nossas ações determinadas normas que não se deixam reduzir aos interesses da conservação da vida; ou ainda conforme não apenas nos comunicamos francamente com um outro, mas nele deposi-

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tamos confiança. Já com essas autodescrições somos colocados em conflito com nós mesmos. Pois é muito significativo, com relação a isso, que tenhamos de reconhecer normas para as quais não pode-mos fornecer fundamentos definitivos. E a confiabilidade, na qual uma vida se liga à outra, exclui a possibilidade, em situações es-pecíficas, de compreender a relação como submetida a normas de estrita universalidade. Por si sós, esses conflitos nos forçam a pen-sar em algo mais abrangente, algo em que os conflitos pudessem ser enfim solucionados e que permitisse atingir uma dimensão da autodescrição em que as autodescrições primárias fossem reunidas sob uma só. Essa ampliação se verifica, de fato, quando os homens têm de conduzir conscientemente as suas vidas. Um pensamento que a isso inclui, e que pondera as razões que aí poderiam ter mais força, não se encontra sob a obrigação de demonstrar que as suas ponderações poderiam sustentar-se definitivamente numa teoria científica.

As três autodescrições mencionadas, que correspondem aos grupos mais gerais de autodescrições primárias, podem ser dife-renciadas, de fato, segundo tipos de atos lingüísticos e as preten-sões de validade neles incorporadas. Caso se conclua daí, porém, como faz Habermas, que a simples análise desses atos lingüísticos, enquanto tais, abre uma perspectiva e uma dimensão em que as autodescrições da vida consciente se mantêm em harmonia, então estamos comprometidos com um princípio que renuncia a tomar em consideração os conflitos e o modo como, independentemente de qualquer teoria, originam-se em nossa vida. Com isso, porém, já nos distanciamos também da consciência da modernidade e das formas teóricas que caracterizam o seu discurso filosófico.

“Mundo da vida” é um termo que denuncia claramente esse distanciamento. Pois ele esclarece o ponto de partida irredutível de todo ato lingüístico referindo-o a uma totalidade em princípio harmônica. Também Habermas, com efeito, quer com ele preser-var o legado dos pensamentos fundamentais com que a filosofia moderna construía seus sistemas – até o ponto, pelo menos, em que este não se tenha perdido nas ilusões de uma hiperteoria. Mas tal termo foi posto em circulação pelos renegados de uma imedia-tidade há muito perdida. E os déficits dessa origem não podem

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ser dele retirados, por meio de simples medidas teóricas auxilia-res, remetendo-se à possibilidade de uma teoria da sociedade. O pensamento de Habermas permanece no âmbito de influência do modo de pensar de seu primeiro mestre, Erich Rothacker – a des-peito de todos os esforços e realizações que o levaram além dele.

5. Distância e síntese

Quanto mais nos detenhamos sobre ele, mais nos assegura-mos de que “reflexão” é um termo fundamental no pensamento da modernidade. Pelo menos duas brilhantes descobertas estão nele reunidas. Primeiramente, a consciência das diferenças entre os modos de compreensão que se formaram na espontaneidade da vida consciente. Quem reflete compreende que a vida não se resume a habitar um mundo e nele crescer ininterruptamen-te. “Reflexão” significa então, em segundo lugar, uma tomada de distância em relação às tendências primárias, seja dos modos de compreensão seja das autodescrições, e de um modo tal que com ela se abre então uma dupla possibilidade quanto a encontrar para os fatos primários de nossa vida consciente uma posição estável, a qual certamente não conduz à abstinência frente a pensamentos últimos: ou bem os modos do conhecimento e do comportamento conduzido por idéias, e sobretudo os conceitos de mundo neles pressupostos, deixam-se reunir num todo sob o reconhecimento de suas diferenças – para o que se exige um pensamento integra-dor que não se encontra à disposição em nenhum dos ângulos primários; ou então se deve ver como ilusão aquilo que orienta os discursos primários e aquilo que é neles pressuposto – uma ilusão, portanto, em tudo aquilo que serve de base às suas pretensões de correção e, sobretudo, ao seu suposto caráter definitivo. Os dois membros dessa alternativa são rigorosamente opostos um ao ou-tro. Vale igualmente para ambos, porém, que da reflexão no se-gundo sentido se deve seguir uma prontidão para não tomar as convicções que se ligam aos discursos primários por completas ou definitivas – ou bem as transformando, assim, num outro contexto, no qual elas podem ao mesmo tempo ser preservadas, ou bem as afastando inteiramente e, num conhecimento que a elas se opõe, suspendendo o seu valor. Dessa problemática partiu o pensamento

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moderno, em todas as suas cunhagens essenciais. Dela se esquiva, porém, uma linguagem teórica como a de Habermas, a qual, in-voluntariamente como sempre, opta pela imediatidade na medida em que quer, sem mais, tornar válidos, como se fossem definitiva-mente seguros, os recursos do mundo da vida.

É importante assegurar-se que também essa alternativa, que provém do segundo sentido de reflexão, não pode ser exigida da vida consciente, digamos, por meio de instruções da profissão fi-losófica ou pelo progresso científico. Também ela se desenvolve, espontaneamente, numa consciência anterior a toda teoria e in-terpretação. A filosofia moderna se apresentou apenas nessa al-ternativa e assim, ao mesmo tempo, subordinou-se àquilo sobre o que fala.

E é também importante deixar claro que as realizações do pensamento moderno, que se apresentam abertamente como me-tafísicas, responderam justamente a essa problemática. A metafí-sica moderna foi uma seqüência de esforços do pensamento para resolver no sentido da primeira alternativa a problemática que emergiu da reflexão sobre as condições de valor e os conflitos de valor. Assim, o sistema de Leibniz não é senão a busca por uma síntese teórica na qual os diferentes conceitos de mundo – do ma-terial, do orgânico, do mental e dos mundos formais – deveriam reunir-se numa ontologia unitária. Nessa síntese dos conceitos de mundo também as autodescrições do homem a partir de seu con-flito se deixaram traduzir em um contínuo. Pode-se reconhecer com mais facilidade ainda que a metafísica de Spinoza serviu à tarefa de compreender e fundamentar o conceito antropológico fundamental da autoconservação, no qual Hobbes havia fundado sua teoria política, de um modo tal que, com o conceito de um conhecimento puro e, portanto, esquecido de si mesmo, ele não caísse num conflito insuperável. Também os pensamentos meta-físicos fundamentais da filosofia clássica alemã se originaram de tentativas desse tipo. Eles ajudaram a formar e deram sustentação à consciência de uma época inteira. Quer deva carregar o não-título “metafísica” ou não, qualquer pensamento contemporâneo que, para além de todas as transformações, ainda esteja a ela as-sociado, teria de assumir e levar a cabo essa mesma tarefa. Jürgen

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Habermas, porém, só consegue reconhecer nisso a expressão da pretensão de conhecimento, equivocada e hipertrofiada, de um grupo elitista deslocado. Insistamos novamente, de pronto, que o não-título “metafísica” indica, para a filosofia moderna e igual-mente para a vida moderna, um modo de chegar a pensamentos últimos de determinação da vida, na medida em que se pauta por critérios de legitimidade distintos daqueles que funcionam para o progresso científico. É verdade que esclarecer uma tarefa ainda não assegura, de fato, que ela seja solucionável. E é também verda-de que aquele que pretende, em relação à racionalidade específica da ciência, distinguir um outro modo de pensamento, tem de ser capaz de satisfazer à exigência de fundamentar critérios diversos de legitimidade e se colocar numa relação, também fundamenta-da, com a racionalidade da ciência. Somente assim se deixa con-servar a unidade do sentido da razão com que se comprometeu a metafísica moderna – à diferença de desconexos modos enfáticos de fala. Há uma outra forma de apresentar o propósito e o alcance da metafísica, porém, pela qual ambas as tarefas têm de apare-cer, de antemão, como desprovidas de esperança e sucesso, como um atrevimento sem sentido. E assim procede Habermas. Mas tal desconhecimento e reducionismo podem ser combatidos, se nos lembrarmos bem, com base na própria forma estrutural dos projetos da metafísica moderna.

6. Naturalismo no fim das contas?

Para o restante da história da modernidade, porém, foi a ou-tra possibilidade da distância reflexiva em relação às tendências primárias da vida quem forneceu o verdadeiro princípio condutor: a solução dos conflitos primários através do discernimento das ilusões, de cuja aceitação eles são inteira ou essencialmente de-pendentes, e, portanto, de uma descrição naturalista do mundo. Ela encontra apoio, por seu turno, numa autodescrição do homem que tem seu impulso não tanto em formas discursivas e em suas pretensões de valor, mas antes na experiência cotidiana do ho-mem – nas circunstâncias de geração e morte, hereditariedade e doença, nas observações sobre a continuidade das espécies, que incluem a espécie humana, e então também nos conhecimentos a

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respeito de sua filogênese e da longa pré-história de suas culturas mais elevadas, conhecimentos estes adquiridos apenas na primeira metade do século XIX. Um naturalismo como teoria, que reú-ne tais experiências aos fatos que desde Platão haviam preparado o terreno para um naturalismo consequente segundo o modelo de Demócrito, só chegou a desenvolver-se na segunda metade do nosso próprio século [XX]. Esse naturalismo é um produto das novas culturas regionais, surgidas nos antigos domínios coloniais da velha Europa. Mas ele só pode ser compreendido como respos-ta invertida às tentativas, das quais a Fenomenologia de Hegel foi apresentada como um exemplo, de descobrir a conjuntura própria e uma síntese última das formas discursivas elementares.

Um tal naturalismo serve-se dos meios para a análise das formas do discurso que já haviam sido preparados pela teoria dos signos, a qual, por sua vez, foi a realização de um século XIX já em ocaso. Nessa medida, ele é uma perspectiva que tinha de ser levada em conta porque está incorporada nas concepções linguís-tico-teóricas que, de fato, viriam a tornar-se meios indispensáveis, na filosofia de nossa época, para o esclarecimento de problemas filosóficos fundamentais. Esse naturalismo analisa as formas dis-cursivas primárias como modos do uso regulado dos signos. As pressuposições relativas a homem e mundo contidas nos discur-sos são reduzidas às condições de uso dos signos linguísticos. E assim se abre a possibilidade de esclarecer o uso dos signos em uma teoria do procedimento linguístico que, por seu turno, pode ser novamente reduzida às leis da ocupação sucessiva de pontos espácio-temporais do mundo material. Os pré-julgamentos liga-dos aos discursos primários, e que pressupõem fundamentos de validade e uma razão auto-evidente do uso linguístico, são deixa-dos em suspenso por esse procedimento de prova em várias etapas: ele funciona bem, mas, se analisado mais de perto, percebe-se que todas as suas pretensões de saber e a auto-suficiente inteligibilida-de são formas de interação contrabandeadas.

As mais fortes formulações de tal naturalismo remontam ao americano Quine. Suas teses, e com elas a perspectiva naturalista, impregnaram por muito tempo a filosofia da linguagem e se re-formaram face aos seus desdobramentos em Frege e Wittgenstein.

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Assim se deixou dominar, sobre o pano de fundo da pergunta pela validade ou não-validade da redução naturalista, aquela tão di-fundida discussão acerca de como devem ser compreendidos os significados linguísticos e as convenções neles incorporadas.

A recepção alemã dos métodos filosófico-linguísticos foi até pouco tempo atrás caracterizada por uma falha crucial: a da indi-ferença frente à problemática naturalista. Tal indiferença se deixa reconhecer no fato de que os termos “semânticos” fundamentais, como “significado”, “verdade” e “relação ao objeto” das expressões linguísticas, foram colocados em uso de maneira inteiramente acrítica e, portanto, como se se explicitassem por si mesmos. Essa inocente auto-segurança caracteriza em grande medida a teoria do agir comunicativo de Habermas. Ela lhe permite ampliar sem mais, num sentido universalista, os métodos de esclarecimento semântico dos atos de fala, que só se deixariam adotar com gran-de cautela e as correspondentes ressalvas, e assim lhe permite, do mesmo modo, introduzir o conceito de mundo da vida como uma grandeza fundamental e última da comunidade comunicativa, e deixá-lo valer sem maiores tentativas de esclarecimento ou jus-tificação. A mesma indiferença também o impede de ver quais-quer problemas em confiar amplamente na teoria dos atos de fala de Austin. Ela se desenvolveu num meio conservador imunizado contra o naturalismo. Mesmo o americano Searle, que a havia sis-tematizado, para Habermas, num formato mais facilmente apli-cável, julgou impossível, no meio tempo, exigir uma justificativa, relativa ao sentido de intencionalidade que está ligado aos atos de fala, daqueles que adotam a perspectiva naturalista e foram con-vencidos de sua validade.

7. A alternativa

Assim, pode-se chamar também a esse naturalismo, com todo direito, uma metafísica. Pois a metafísica, enquanto tal, não é necessariamente antinaturalista, como bem o mostram os exem-plos de Aristóteles, Spinoza e Nietzsche. Ela é, de todo modo, algo diverso de uma teoria científica. Aquele naturalismo, porém, que se vincula de fato aos resultados da física, afirma a opinião, em geral solidária com a teoria física, de que ele seria uma descrição

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exata da realidade, e não um instrumento da dominação teórica do conhecimento por experiência. Mas ele é, em seu resultado, uma extrapolação das disciplinas científicas, e, em sua estrutura, uma síntese das mesmas – e, enquanto tal, não pode ser ele mesmo o resultado de pesquisas. Com isso, ele corresponde amplamente ao conceito kantiano de uma metafísica da completude. E correspon-de também à compreensão moderna de metafísica, na medida em que pretende ser uma compreensão última sobre o conjunto dos modos da experiência e formas discursivas diferentes entre si.

Esse naturalismo se distancia do projeto da metafísica mo-derna, porém, por meio de um traço que lhe é verdadeiramen-te constitutivo: ele contribui para o autodistanciamento da vida consciente. Ele não a transforma num modo de experiência em que ela pudesse conservar-se e reunir-se e, portanto, não pode ser desmentido, sobretudo em pensamentos últimos – “idéias” – ou por meio deles. A dinâmica, que tem seu ponto de partida em seus conflitos e em suas conflitantes pretensões de validade, só pode ter, para ele, um único desfecho capaz de fundamentação e comprova-ção: aquele do conhecimento da unidade e da abrangência univer-sal das leis da natureza. A vida humana é um agir e interagir, com o auxílio de signos e sons, inteiramente determinado por essas leis. E nós podemos, segundo esse modo de ver as coisas, entregar-nos a ela com alegria e serenidade – sem quaisquer pretensões a uma ampla compreensão do mundo, mas também inflexíveis e inteira-mente fechados a elas, onde quer que sejam levantadas. Também o naturalismo, portanto, que sempre se recusa aos “pensamentos últimos”, acaba por ter as suas próprias consequências políticas.

Nós temos, assim, de diferenciar o naturalismo no interior da metafísica do naturalismo verdadeiramente moderno, que é o redutivo. Junto a eles também um terceiro poderia ser listado: o naturalismo do senso comum, sem pretensões teóricas profundas. Quem, no entanto, se mostra apenas indiferente ao naturalismo especificamente moderno (de Holbach a Quine), e não obstante propaga um universalismo teórico fundamentado com meios fi-losóficos, move-se fora do pensamento contemporâneo e se torna incapaz de assumir e levar adiante, convincentemente, o projeto moderno. Se justamente a teoria da linguagem, de que Habermas

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extrai os argumentos para o seu universalismo, favorece hoje, em grande medida, o naturalismo, e se Habermas, no entanto, igno-ra o duplo solo dessa sua argumentação, poder-se-ia facilmente lançar contra ele o escárnio daqueles que se representam como “pós-modernos” – desde que eles não se dêem conta do fortíssimo aliado a contragosto que poderiam aí conseguir.

Poder-se-ia lembrar também, com efeito, uma outra variante “pós-moderna”: aquela da modéstia teórica, que se limita, como em Montaigne, a verdades parciais e tarefas de vida. Mas então cairia por terra o universalismo da pretensão teórica. Também se poderia dar o primado a uma teoria da sociedade e a ela for-necer as melhores conceptualizações das formas e dos processos sociais. Isso exigiria, porém, uma teoria moderna específica, com um grau de generalidade comparável ao da física ou da economia, mas também com o monte de problemas evidentes de classifica-ção e fundamentação que lhes são característicos, e que teriam de permanecer expressamente intangenciados. E então a abordagem concomitante de problemas filosóficos e sociológicos, característi-ca da obra de Habermas, teria de desaparecer.

Com isso não se vêem desmerecidos nem o universalismo de Habermas, nem os seus esforços para colocar os melhores meios de fundamentação filosófica a serviço de tal universalismo. Mas deveria ficar claro que a tarefa de fundamentá-los exige um es-forço a mais, no sentido de atingir uma maior amplitude. E a cir-cunstância de que Habermas afasta o naturalismo – esta silhueta invertida no espelho da metafísica moderna – de todas as suas considerações deve poder iluminar a ligeireza com que coloca a metafísica moderna sob suspeita e a exclui do âmbito das ponde-rações racionais. Tal suspeição corresponde, de maneira comple-mentar, ao desalojamento do naturalismo.

Dever-se-ia mostrar também que o naturalismo tem suas melhores chances num tipo de fundamentação baseado na teoria da linguagem, e que ambos se convertem numa mesma e única perspectiva. Não se deve afirmar, novamente, que com esse gesto ele tenha ficado com a última palavra. E, se ele não ficou, é apenas porque se pode opor a ele, no horizonte mesmo da metafísica, uma

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perspectiva que, sem uma tal afirmação, não pode ser divorciada do projeto filosófico da modernidade.

Já se tornou claro que o empreendimento de elaborar pen-samentos últimos e, portanto, unificadores, por meio dos quais a vida consciente se compreende a si mesma, não pretende superar a ciência com os meios que lhe são próprios, não aspira a uma teoria da fundamentação e não está comprometido com o esta-belecimento de um além-mundo. A esta seqüência de critérios negativos podem ser acrescentados ainda outros – por exemplo este: que o sucesso do empreendimento não depende de que se possa justificar o realismo no conhecimento do “mundo exterior”, nem tampouco de que sua completude se encontre em um co-nhecimento das coisas em seu ser em si. “Substância”, “liberdade”, “vida” e “espírito” já foram um dia os conceitos fundamentais da metafísica em sua configuração moderna. Sua admissão é inteira-mente dependente de uma tese de realidade, mas de uma tese tal que abarca o movimento do discurso, desde o princípio, naquilo que ela estabelece como real. O verdadeiro mundo dos metafísi-cos modernos não foi nenhum além-mundo, nem tampouco um mundo da objetividade face ao qual o conhecimento, enquanto tal, permanecesse não interpretado.

Como tais conceitos de mundo se deixam justificar ou deter-minar com maior precisão, e o que poderia corresponder-lhes no pensamento contemporâneo, é algo que mal podemos aqui acom-panhar. Isto constitui um verdadeiro e lamentável déficit destas doze teses. Afinal, àquilo que contesta, a todo pensamento em continuidade com a tradição moderna da metafísica, o seu direito e a sua possibilidade, poderíamos combater melhor com a pro-va de resistência que também nos processos judiciais enfraquece substancialmente esse tipo de reclamação: colocando em cena ou desenvolvendo tal pensamento na forma que lhe é própria. Contra as teses abstratas e principiais contidas no protesto de Habermas, porém, a apologia e a polêmica são igualmente necessárias. Nelas predominam outras condições atmosféricas, e também uma falta de espaço, que tornam impossível às considerações de um tal pen-samento entrar no movimento que lhes é próprio.

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A determinação do lugar da metafísica moderna, porém, que foi dada anteriormente, pode dar a impressão de que por meio dela estivesse predeterminado, a cada pensamento de completude, não poder ser mais do que uma projeção ou um ídolo baconiano. Ele recuaria sempre, desse modo, da reflexão às suas condições, à qual, por seu turno, já seria dado com isso todo o direito. Com relação a isso, mostremos ao menos aquilo que é mais formal na estrutura de uma possível fundamentação para pensamentos últi-mos: num primeiro movimento, devem ser trabalhadas as hetero-geneidades internas aos conceitos primários de mundo e às auto-descrições, bem como os conflitos entre elas, os quais devem ser subseqüentemente traduzidos em conceitos; num segundo movi-mento, deve-se mostrar ainda que tais pensamentos de comple-tude não são ficções, mas sim capazes de verdade segundo todos os critérios de validade aplicáveis a esse domínio;6 num terceiro movimento, deve-se então reconstruir, a partir de seu ponto final, a sequência completa de certificações, de tal modo que aquilo que parecia um desfecho (Abschluss) possa ser compreendido ao mes-mo tempo como uma abertura (Ausgang).7 Assim, uma teoria que começou como análise de uma dinâmica presente no interior de nossos discursos transforma-se em um pensamento que, daqui por diante, também parte dos pensamentos de completude e de seus conteúdos nesses discursos. E assim ele se transforma em um pen-samento sobre nossos discursos em geral, um pensamento que se subordina também a si mesmo àqueles conteúdos que antes eram deduzidos como pensamentos de completude. É na estrutura do sistema kantiano que uma tal figura de pensamento se mostra pela

6. Cf. Henrich, D. “Versuch über Fiktion und Wahrheit”. In: Henrich, D., ISER, W. Funktionen des Fiktiven (Poetik und Hermeneutik X). Munique, 1983, pp. 511 e ss. (N. do A.)

7. Aqui optamos por traduzir Abschluss por “desfecho”, em vez de “completu-de”, tanto para enfatizar a ação de finalizar, concluir, completar, fechar, como para assinalar a contraposição com Ausgang, que traduzimos por “abertura”, não por “saída”, para dar essa idéia de que, ao fechar um “sistema”, o pen-samento metafísico encontra ao mesmo tempo um novo horizonte. Nesse ponto fica claro, por sinal, em que medida os “pensamentos de completude” não são dogmáticos. (N. do T.)

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primeira vez. Ela só pode manter-se contemporaneamente, po-rém, se for desvinculada das pretensões a um saber que outrora se autodescrevia como “absoluto”. Ela deve atrelar-se, assim, a deter-minações do sentido do saber que – sob pressuposições inteira-mente diversas – se tornaram atuantes nos esforços pensantes de Wittgenstein e Heidegger.8

Isso talvez baste para desfazer a impressão de que uma de-finição da metafísica moderna deveria, de saída, colocar-se sob um princípio que jamais poderia livrar-se das aspas da suspeita de ficção. De resto, tais explicações abstratas são pouco elucidativas. Apenas o conceito da própria metafísica moderna, a situação a que ela corresponde e algumas condições de sua possibilidade pude-ram, portanto, ser esclarecidos com suficiente clareza.

8. Mudança de paradigma?

Chegamos ao ponto, assim, em que a compreensão acerca do que seja a constituição da metafísica, no contexto do pensamento moderno, deve entrar em alguns esclarecimentos relativos à pro-blemática da “autoconsciência”. Habermas atribui à fixação na au-toconsciência, como campo de investigação e meio para a solução de problemas, a hipertrofia que ele descobre em toda a metafísica e que desta passaria ao projeto da modernidade. Com esse diagnós-tico de um desenvolvimento equivocado, ele faz coro à crítica da velha teoria crítica. Ela, por seu turno, inspirou-se no esboço feito por Heidegger de uma história de decadência do pensamento, a qual deveria ter culminado na auto-referência, tornada universal, da consciência em sua crise final. Como prova dessa patologia mo-derna são oferecidos teoremas sobretudo de Fichte. À diferença de seus informantes, porém, Habermas não gostaria de ver a crise redirecionada, por meio de uma transformação, para um modo de pensar inteiramente novo. Para ele é suficiente em parte constatar, em parte promover uma mudança do “paradigma” teórico. A partir

8. Esboços disso se encontram no volume resenhado por Habermas: Henrich, D. Fluchtlinien. Frankfurt-am-Main: Suhrkamp, 1982, pp. 125 e ss.; e em _____. All-Einheit. Wege eines Gedankens in Ost und West. Stuttgart: Klett-Cotta, 1985, pp. 33 e ss. (N. do A.)

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de tal mudança, os mesmos problemas que os clássicos da mo-dernidade, orientando-se pela autoconsciência, apenas tangencia-vam numa superestilização desesperada do pensamento, poderiam agora receber uma solução tão fácil quanto bem-sucedida.

Esse novo paradigma resulta da reorientação da teoria fun-damental rumo à comunicação linguística. Habermas acredita que ela também já poderia ter sido realizada pelos clássicos da moder-nidade. Nisso ele se mantém apegado à sua velha tentativa, inspi-rada em Benjamim, de descobrir no jovem Hegel vestígios de um pensamento promissor, porém perdido e reprimido. A linguagem e os modos de interação, que se consumam na linguagem, valem para ele, portanto, também como o ponto de fuga para o qual estão orientados todos os desenvolvimentos teóricos verdadeiramente modernos. E assim, embora apenas em 1900 tenham aparecido em métodos de pesquisa auto-suficientes, eles podem servir-lhe como fundamento de sua teoria da modernidade, cujo projeto quer salvar e a cujo discurso quer dar continuidade.9 Na história inicial da modernidade – é isso o que ele tem de argumentar –, um pensamento que ainda não tinha suficiente clareza sobre si mes-mo deu origem, a partir da interação linguística, ao momento da autoconsciência, dele inteiramente dependente, e este cresceu até o ponto de tornar-se uma dimensão auto-suficiente e solitária. Ele foi então, teoricamente, massacrado pelos antimodernistas. E as-sim se explica que Habermas queira vincular a esperança na salva-ção e renovação do pensamento moderno à ascensão de uma velha e reprimida concepção ao estatuto de novo paradigma teórico.

Seja feita, de passagem, a ressalva de que sobre a dinâmica da história teórica moderna se lança muito pouca luz com essa figura de argumentação, que só esclarece uma mudança revolucionária de paradigma a partir do abandono de um erro teórico. Dever-se-ia saber pelo menos quais as razões que os clássicos da modernidade

9. As considerações a seguir se aplicam, em grande medida, também ao livro: Habermas, J. Der philosophische Diskurs der Moderne (Discurso filosófico da mo-dernidade). Frankfurt-am-Main: Suhrkamp, 1985. E também, em seguida, ao seu Theorie des kommunikativen Handelns (Teoria do agir comunicativo). Frankfurt-am-Main: Suhrkamp, 1981. (N. do A.)

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tiveram, a partir de seus próprios projetos teóricos, para não sub-meter-se ao já disponível e recém-adotado neoparadigma. Dado que esses pensadores, como já foi mostrado, pretendiam descobrir as tendências vitais do ser racional, escondidas sob a linguagem teórica pré-moderna, e liberá-las de suas contradições, não seria absurdo supor que eles não conseguiam ver, com razão, como os diversos conceitos primários de mundo, bem como as autodescri-ções neles pressupostas, poderiam ser esclarecidas e sistematizadas por meio da análise da linguagem e da interação.

Ainda assim, é sem dúvida necessário reconhecer que a teoria dos signos, em especial sua semântica (sua teoria dos significados), abriu novos caminhos para o aclaramento de velhas questões e tarefas teóricas da filosofia. Questiona-se apenas se esse impul-so teórico pode ser interpretado como uma mudança histórica de paradigma, graças à qual a autoconsciência, até então manipulada numa posição teórica oculta, mas agora tendo de ser vista como infundada e questionável também enquanto forma de vida, po-deria obter a sua redenção por meio da passagem à comunidade comunicativa de um mundo da vida comum.

9. Autoconsciência e forma linguística

Partindo dessa questão, lembramo-nos logo de Kant: embora tenha sido, certamente, um dos primeiros responsáveis por vincu-lar as esperanças da teoria a um princípio de “autoconsciência”, ele passou longe de considerar essa autoconsciência como algo sui-suficiente ou solitário. De fato, ele a tomou no uso teórico como princípio, mas como um princípio ao mesmo tempo fungível em um contexto mais amplo. Nem as formas lógicas fundamentais, nem os modos de fundamentação da ciência e da metafísica, nem as normas fundamentais do agir se deixam dele deduzir como im-plicações simples. A autoconsciência só lhes precede na medida em que eles perdem seu sentido, seu uso ordenado e o fundamen-to de sua legitimidade, se seres autoconscientes não puderem ser pressupostos como anteriores a eles. É apenas neste sentido pre-ciso que a autoconsciência constitui o ponto de sustentação de todo uso da razão e, no que diz respeito às normas, sua garantia de validade – não apenas sua morada.

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Tudo isso demandaria uma maior elucidação. Mas o ponto crucial também se torna claro com o seguinte: se a autoconsciência não é assumida como fundamento universal e auto-suficiente, então a esperança teórica nela depositada não se torna obsoleta apenas por-que se verificou que a semântica da forma proposicional e da forma normativa demanda um esclarecimento no âmbito de uma teoria do significado linguístico. O que realmente conta é que se estabeleceu a tese, bem mais forte, de que a autoconsciência se reduz à interação linguística e pode, portanto, ser dela inteiramente deduzida.

É dessa tese, portanto, que depende também o sucesso do na-turalismo semanticamente fundado, no âmbito mais amplo de sua estratégia fundacional. E era também contra ela que eu argumen-tava já há tempos, quando a teoria da linguagem se mantinha sob o domínio do interacionismo simbólico. Em um ponto, sobretudo, coloca-se o problema mais geral de como a autoconsciência pode ser adequadamente descrita, e talvez mesmo compreendida, sem tal redução. A princípio apenas teórico, tal problema se liga então dire-tamente, porém, àquele outro problema, mais amplo, de saber o que é a vida consciente ela mesma. Pois essa vida já não pode prescindir de adquirir uma autodescrição estável. E assim se esclarece também o contexto que vincula a perspectiva metafísica incorporada no pro-jeto moderno à problemática de uma teoria da autoconsciência.

Se hoje temos razões para falar de uma “virada”, no estilo filosófico e no estado da discussão, não é porque se teria anunciado uma mudança de paradigma que a tudo transforma. Também não se deve permitir ao investigador de conservadorismos Habermas, com suas listas intermináveis, manipular ao seu bel-prazer cada mudança nas circunstâncias teóricas, e portanto no clima teórico, que soprem o vento contra o seu teorema da interação, como se fossem prenúncio de filisteísmo político e confusão cultural.

Eu já disse uma vez que me é simpático o desenvolvimento que está no centro da discussão anglossaxã.10 Ele chegou ao resul-

10. Cf. pp. 66 e ss. (N. do A.) Henrich se refere ao artigo “Wohin die deutsche Philosophie?” (“Para onde vai a filosofia alemã?”), que também faz parte do livro Konzepte. (N. do T.)

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tado de que os problemas da auto-remissão, e portanto da auto-consciência, não mais podem ser previamente decididos a favor do interacionismo linguístico – não previamente decidido, portanto, também no sentido de uma autoconservação teórica que pode-ria interessar ao naturalismo moderno, que como sombra segue e continuará a seguir a metafísica moderna. Seria certamente fora de lugar entrar aqui na apresentação dos detalhes teóricos. Mas al-gumas indicações são imprescindíveis: Thomas Nagel já tentou há muito mostrar que a “subjetividade” exige um esclarecimento in-teiramente diverso daquele que pode ser dado por meio do modo de uso, na linguagem, da primeira pessoa do singular. A semântica dos demonstrativos e das modalidades chegou então à conclusão de que deve ser atribuído um papel-chave à auto-referência, no uso predicativo, para o esclarecimento de todo uso da linguagem (H. N. Castañeda, John Perry, David Lewis e outros). Esta percepção se inscreve numa constelação de que também fazem parte outros conhecimentos, segundo os quais a relação ao objeto (denominada “referência”) pressupõe um modo diferenciado de auto-remissão e, portanto, também de autoconsciência (Sidney Shoemaker). E a essa constelação pertence também a percepção adicional de que o uso inteiramente desenvolvido do conceito de verdade envolve a possibilidade da auto-referência: quando afirmo de algo que ele é verdadeiro, não pretendo apenas que, enquanto tal, ele me pareça ser “tal e tal” (Roderik Chisholm e outros).

Pode-se certamente não aceitar com tanta facilidade que esses teoremas sejam verdades atemporais. Também é bastante compli-cado classificá-los adequadamente, uns em relação aos outros, num campo de problemas cuja peculiar dificuldade foi novamente re-conhecida. Também é perfeitamente possível acolhê-los e encaixá-los no âmbito de uma doutrina naturalista aperfeiçoada e refinada. Embora eles já tenham servido, agrupados de maneira assistemá-tica, à reabilitação dos mais especulativos dentre os metafísicos (E. Anscombe, com restrições, o fez com Descartes, e R. Nozik o fez com Fichte), a sua atualidade não está em fornecer uma licença de fundamento para a metafísica, como se ela pudesse, de agora em diante, deles deduzir-se sem rodeios. A sua atualidade está em rom-per o dogma da precedência auto-suficiente da interação linguística

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frente à autoconsciência, que teria, por seu turno, de deduzir-se in-teiramente daquela. Juntamente com outras flexibilizações da cena teórica, esses teoremas ajudam a impedir que as formas de constru-ção conceitual e esclarecimento contidas nos motivos de pensamen-to da metafísica moderna continuem a ser vistas, como o eram antes deles, como mergulhadas na obsolescência.

Cada vez que surge um novo e frutífero método, aqueles que o colocaram em prática tendem a crer que estão em posse de algo como a pedra da sabedoria. A isso logo se liga a expectativa de que, a partir de agora, se possa captar numa teoria universal aquilo que até aqui resistia à compreensão. Habermas associa essa es-perança, que no meio tempo se tornou ultrapassada no interior da semântica, também ao princípio de sua teoria da sociedade, que ele bem mais cedo havia apresentado como inteiramente su-bordinada a “propósitos práticos” (in praktischer Absicht).11 Mesmo numa expectativa tão abrangente, porém, logo aparece, como ob-jeto de reflexão, uma outra questão. Não é preciso deixar sucum-bir o impulso que emergiu do ponto de partida metodológico, e isso de fato não ocorre. Mas é preciso abandonar a auto-segurança prematura que vê num paradigma aparentemente revolucionário o caminho seguro para uma teoria universal. Uma tal situação per-mite também, então, que se consiga compreender e manter atu-ante o projeto moderno de um modo mais eficaz do que a partir daqueles princípios teóricos que, se tivessem sido antes seguidos com coerência, a teoria da sociedade e a teoria da linguagem, se-gundo Habermas, também teriam antes ocupado o espaço de um saber fundamental que seus predecessores haviam deixado vazio. Os pensadores da modernidade, por boas e, como sempre, insufi-cientemente esclarecidas razões, privaram-se dessa perspectiva e, com freqüência – foi o caso de Hegel, por exemplo –, dela expres-samente desistiram.

11. Já há muito tempo, em minha Laudatio (discurso de saudação) a Jürgen Habermas, eu suspeitava que ele chegaria a uma tal associação (“Kritik der Verständigungsverhältnisse” (“Crítica das relações de entendimento”). In: Habermas, J., Henrich, D. Zwei Reden (Duas conferências). Frankfurt-am-Main: Suhrkamp, 1974, p. 20. (N. do A.)

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10. Comunicação em vez de subjetividade?

Na chamada de testemunhas contra a alegação de sobre-vivência da metafísica na modernidade, Habermas aceita prati-camente qualquer um, desde que ele esteja disposto a confirmar inequivocamente o primado da comunidade da interação e, por conseguinte, a afastar-se ou blindar-se, de maneira suficientemen-te eficaz, contra a “filosofia da subjetividade” e a metafísica. Ele não apenas fez com que sua obra inteira dependesse dessa tese. Esta parte dos motivos verdadeiros, e seguramente muito pessoais, que de fato o levaram à filosofia e o tornaram um teórico.12 Com o questionamento de sua sustentabilidade, não está em jogo decidir apenas sobre se uma mudança de paradigma do pensamento ultra-passa de fato, com a precedência do agir comunicativo sobre toda subjetividade, a decisiva fronteira do tempo. De acordo com a di-visão de lados por ela estabelecida, os mancos de todos os gêneros, na marcha progressiva da modernidade, devem ficar junto com as diversas variações do pensamento conservador, enquanto do outro lado fica a comunidade de testemunhas chamadas por Habermas. Nesta associação de testemunhas pode-se até falar em “absoluto”, desde que, ao mesmo tempo, também se fale claramente contra o conceito de sujeito e o termo “metafísica”. Também está em jogo, com essa demarcação de fronteiras, decidir se o pensamento de Habermas tem origem em suficientes ou enganosas opiniões pre-estabelecidas sobre uma vida que tem de ser conduzida racional-mente. Quem quer que se coloque em relação com sua obra tem de chegar a alguma clareza sobre esta questão.

Já foram dadas, anteriormente, suficientes indicações acerca das diversas razões pelas quais o tema “autoconsciência” foi redu-zido à análise do uso da linguagem. A partir do tipo de redução aí

12. Cf., p. ex., Habermas, J. “Erläuterungen zum Begriff des kommunikati-ven Handelns” (“Esclarecimentos sobre o conceito de agir comunicativo”). In: Vorstudien und Ergänzungen zur Theorie des kommunikativen Handelns (Estudos preparatórios e complementos à teoria do agir comunicativo). Frankfurt-am-Main: Suhrkamp, 1984, p. 605, linhas 20 e ss. Este capítulo de 1982 traz, de resto, importantes elucidações aos conceitos fundamentais da Teoria do agir comunicativo, de 1981. (N. do A.)

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efetuada, pode-se agora obter um indício de como resolver a ques-tão. Pois é evidente que o funcionamento da comunicação linguís-tica contém uma relação do falante consigo mesmo – como uma de suas condições constitutivas, tão originárias quanto a forma da proposição com sujeito e predicado. Com isso não se retoma a tese que Habermas simplesmente imputa à “filosofia do sujeito”, a sa-ber, que a comunicação somente acontece quando sujeitos solitá-rios entram em comunicação uns com os outros. Tal opinião seria a mera inversão da hipótese explicada e seguida por Habermas, segundo a qual o mundo da vida, linguisticamente organizado e auto-suficiente, é a fonte de onde brotam as auto-relações e, com elas, as identidades dos falantes. E ela estaria em condições ex-cepcionais, de fato, para compreender e descrever a linguagem e a comunicação.

Em vez disso se deve dizer que a capacidade de fala somente se pode desenvolver conjuntamente, em um mesmo e único processo, com a origem espontânea da relação do indivíduo consigo mesmo. Esta origem, por seu turno, demanda um esclarecimento próprio em que temos de falar numa auto-relação implícita que já nasce ou se funde no curso da aquisição elementar da linguagem. Pois a aquisição da capacidade de usar a primeira pessoa do singular (o pronome “eu”), no curso da aquisição da linguagem, só se dá relativamente tarde. Se a auto-relação dependesse e se constituísse por meio da aquisição dessa capacidade específica, então a tese da precedência da interação teria um caminho fácil pela frente; ela seria, de fato, uma verdade tão trivial quanto ilimitada.

Se puder ser mostrado, porém, que já o domínio dos de-monstrativos, o uso correto do nome próprio, o uso desenvolvido da negação e, assim, uma condição elementar do entendimento da verdade, só podem ser compreendidos sob a pressuposição da auto-relação, então se revela uma situação bem diferente. Deve-se partir do princípio, então, de que o comportamento linguístico se realiza num contexto complexo de capacidades inteligentes que, por seu turno, não estão dadas, uma ao lado da outra, numa se-quência linear. Quanto a capacidades linguísticas mais elevadas, como o domínio da identidade e dos pronomes relativos, é certo que só podem ser adquiridas por meio de impulsos nos quais di-

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versas funções são aprendidas “num só golpe”, de maneira similar ao modo como se aprendem movimentos duplos difíceis no traba-lho manual ou no esporte. Eles certamente podem ser ensinados, mas não de modo gradativo, e sim por meio de tentativas espon-tâneas – mesmo que com base em um modelo –, nas quais a com-preensão se junta por fim, espontaneamente, à habilidade. Tudo indica que também os primeiros passos de aquisição da linguagem têm de ser vistos como inseridos nessas estruturas complexas de interdependências.

Mesmo que isso seja reconhecido, nós ainda estamos longe de obter uma licença para pensar em uma metafísica que se or-ganize a partir da auto-relação da vida consciente. Na verdade, aproximamo-nos bem mais do naturalismo, num ponto que lhe é fundamental. Pois ele tem de partir justamente do princípio de que as operações comunicativas, e todas aquelas que, em geral, envolvem um “entendimento” de “significados”, são concebíveis, em última instância, como processos funcionais do córtex cerebral. Mesmo que a sua forma só se converta em capacidade de fala em seres vivos socializados, ela é, enquanto tal, a base individual de to-das as suas ocorrências e de todo o seu uso efetivo. E nós devemos aproveitar o ensejo para notar que nela os processos funcionais correspondem às operações complexas e multifárias que podemos observar no desenvolvimento da inteligência.

Mas nenhuma idéia de uma metafísica moderna adquirirá confiança se não puder relacionar-se com os dados a partir dos quais se formula o naturalismo. Quem, portanto, vê como um mesmo e único processo o surgimento da auto-relação e da capacidade de fala, não deve temer esse ponto de contato entre o seu argumen-to e aquele do naturalismo. Permanece o problema de mostrar, no detalhe, como os dados do naturalismo devem ser reconhecidos, de modo que ele não se veja ratificado juntamente com eles.

11. Esperança e pressa

À problemática de como deve ser determinada a posição da auto-relação no agir linguístico corresponde diretamente, num nível bem mais elevado, uma outra problemática: como pode a so-

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ciabilidade do homem ser compreendida, sem redução, no estágio de desenvolvimento da inteligência da humanidade que é capaz de um elevado grau de cultura. A ela pertencem tanto a relação ínti-ma da co-humanidade, que não pode ser desvinculada dos grupos sociais, como a auto-realização em associações estabilizadas com base no intercâmbio de argumentos – ou seja, a relação eu-tu de Buber e a “esfera pública” de Habermas. Também aqui, onde nas-cem os primeiros motivos de pensamento – pessoais e, portanto, efetivos – de Habermas e de muitos outros interacionistas, está em jogo e em questão decidir como a auto-relação da vida consciente, de um lado, e a sua integração na co-humanidade13 e na troca co-municativa, de outro, podem ser, de maneira adequada, pensadas conjuntamente.

O mundo moderno não produziu apenas experiências de ne-gação e de sofrimento com o isolamento. Ele logo as tornou em tema de sua teoria, sob o forte impulso inicial de Rousseau, tam-bém sob títulos como “alienação” e “cisão”. Surgiram rapidamen-te, então, diversos esforços intelectuais e movimentos políticos reformistas visando reconquistar, para os indivíduos depravados pela desunião, uma comunidade acolhedora ou uma vida política em que o “sujeito” possa libertar-se e tornar-se “cidadão” ou “ca-marada”. Os primeiros esforços do pensamento contra o espírito tornado solitário foram a doutrina de Jacobi, segundo a qual cada “eu” teria seu complemento num “tu”, e a filosofia da unificação (Vereinigungsphilosophie) do jovem Hölderlin. A elas se seguiram a filosofia social do reconhecimento, de Fichte, bem como a antro-pologia do homem como ser essencialmente social, de Feuerbach e Marx. Depois da Primeira Guerra Mundial essas fontes conver-giram para uma grande corrente. A teoria da intersubjetividade de Husserl, o conceito lukácsiano de consciência de classe e o tratado

13. Aqui Henrich escreve Mit-menschlichkeit com hífen, ao contrário do que fizera linhas antes, na primeira menção ao termo (Mitmenschlichkeit). Como a língua portuguesa exige o hífen, mantivemo-lo nas duas ocorrências. Mas é interessante notar a diferença estabelecida por Henrich: é possível que ele queira denunciar o caráter arbitrário da ligação conceitual operada por Buber, na esteira de Heidegger. (N. do T.)

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de Martin Buber sobre a originariedade da dimensão que institui, entre “eu” e “tu”, a abertura de um para o outro, foram em sua época as ondas mais fortes dessa corrente. Esse “entre” foi então, no pensamento de Heidegger, determinado mais precisamente como “linguagem”. Era de esperar-se, assim, que entre a filosofia do homem como ser linguístico, a ele associada, e o princípio do pragmatismo americano, com sua teoria da interação social, fos-sem notadas semelhanças, às quais logo se juntaria a doutrina da originariedade dos jogos de linguagem, concebida em inglês por Wittgenstein.

Onde quer que, na síndrome que assim se formava, tenha sido dada a dominância, implícita ou explícita, aos motivos que remontam a Rousseau, infiltraram-se também convicções, nas es-peranças ligadas à teoria da intersubjetividade, segundo as quais uma vida humana só pode atingir sossego e completude se, em sua práxis de vida, ela se reencontra na comunidade que lhe pre-cede, nela se relativiza a si mesma ou, nos termos de Hegel, nela se abandona a si mesma e se deixa absorver. Esta convicção pode tornar-se a motivação fundamental no pensamento de um ho-mem. E ele encontrará a sua determinação última atingida se essa convicção houver ocupado, em uma teoria, a posição-chave sobre a qual a inteira estrutura se assenta. Mesmo déficits teóricos ma-nifestos podem parecer-lhe então insuperáveis. Embora o esforço intelectual de Habermas certamente não seja tão estreito, essa mo-tivação vital para a teoria se deixa perceber claramente por toda parte. Mas a orientação, no seu caso, não é para a forma íntima de comunidade que encontra correspondência na teoria do “amor” do Hegel de Frankfurt, no “tu” de Jacobi e Buber ou em teorias do diálogo e da comunicação “essencial”. Ele ascende à comunidade política e, nesse sentido, não está voltado para o diálogo, mas para a discussão, não para o entendimento íntimo, mas para o agir co-municativo. Por isso a sua filiação rousseauísta pode permanecer disfarçada sob a referência teórica ao americano Peirce e à teoria da linguagem anglo-saxônica.

Eu estou longe de lançar a objeção, contra os problemas e pensamentos que se manifestaram no rousseauísmo e no pragma-tismo, de que eles sejam apenas imaginários. Teríamos tão pouco

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motivo, para isso, quanto houve para assegurar, por meio da afir-mação de que a forma lógica e a forma da linguagem seriam dela dedutíveis, a irredutível posição da autoconsciência. Esta não é a ocasião, de resto, para caracterizar mais detidamente as formula-ções do dialogismo e do interacionismo, ou para perseguir a ques-tão acerca de um conceito sustentável acerca da natureza social do homem. Mas há duas considerações que podemos fazer, a partir da localização do motivo habermasiano de pensamento na histó-ria dos motivos da modernidade, que dizem respeito, diretamente, à natureza de sua objeção contra a metafísica, em especial contra aquela que parte da dinâmica da autocompreensão.

Pensa apressadamente quem conclui que, onde quer que seja dada prioridade à comunidade linguística, frente à auto-relação, também se poderia encontrar sustentação para os seus motivos, que abandonam o pensamento a uma comunidade humana da ra-zão e da vida. Já foi mostrado que o descobrimento do uso dos sig-nos, enquanto um sistema auto-subsistente, serve para ajudar na disseminação do naturalismo. Que a interação linguística funciona de maneira fluida, que os jogos de linguagem estão enraizados no agir cotidiano, e também que a “discussão”, numa cultura política, desenvolve-se de maneira estável e se torna decidível a partir do aprendizado de regras: tudo isso pode constituir razão suficiente para que toda pretensão a um conceito racional universalista seja expulsa para o reino dos sonhos, do qual há muito acordamos; mas com ela também toda idéia de auto-realização, na qual não apenas deve ser suprimida a necessidade do sujeito como um todo, mas devem igualmente ser “preenchidas” as suas autênticas esperanças e a sua própria natureza. Quine causou impressão com a tese de que a fluidez de um modo de uso linguístico não diz absoluta-mente nada sobre a realidade das opiniões e dos modos “internos” da consciência ligados a tal uso linguístico. Uma das experiências que possibilitaram a reflexividade da consciência moderna mostra, além disso, que justamente a estabilidade dos modelos de intera-ção oferece o ensejo de colocá-los sob suspeita de ficção. A poesia de nosso tempo já objetou há muito ao rousseauísmo, inebriado da linguagem, que continuar a falar pode ser o modo pelo qual a

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consciência se articula e extravasa a insuficiência de todas as pala-vras. E as verdadeiras palavras da poesia se situam na fronteira do silenciar, mesmo ali onde, segundo Wittgenstein, tudo que pode ser essencial para a vida tem seu lugar.

Quem reconhece a metafísica como pertencente à moderni-dade, e mantém aberto um futuro para ela, não pode ficar nessa conclusão como se fosse a última. Ele deve confiar também uma linguagem ao pensamento e, com isso, a possibilidade de fala e compreensão à subjetividade. Ao mesmo tempo, ele vive em co-munidade com aqueles que se movimentam na corrente do rous-seauismo. Se é também verdade, porém, que a subjetividade só se constitui ali onde os homens como tais se comunicam, então é igualmente verdadeiro que um diálogo digno deste nome só ocor-re ali onde os inter-atores não são os dramaturgos e “falantes” da teoria semântica fundamental e da teoria do agir comunicativo. Alguém tem de conter-se e ser capaz da “meditação” que permite dizer algo a um amigo. E esta capacidade para conter-se em si mesmo não se deixa compreender como um dos estágios inter-mediários de que o entendimento talvez necessite. Ela se cons-titui com base naquela auto-relação que está intimamente ligada à capacidade de fala enquanto tal. É necessário, além disso, que alguém tenha entrado em entendimento consigo mesmo para, numa discussão, poder realizar um movimento em direção à me-dida e à verdade. Duzentos anos antes de nós, Herder objetou à jovem filosofia da unificação que o ‘amor’, como algo distinto do excesso sentimental, pressupõe a “ipseidade” do amante. Hegel levou essa objeção tão a sério quanto Hölderlin. E a partir de en-tão o pensamento de ambos se voltou a pensar em conjunto, sem reduções, a liberdade plena do indivíduo e a unidade total da vida, inclusive a política. Somente assim podem ser compatibilizadas as experiências da modernidade que não devem ser abandonadas e as esperanças da humanidade em uma sociedade livre mas não instrumentalizada. Ambos sabiam que precisavam da metafísi-ca para isso. Quem não o enxerga, recai no círculo de gravitação da política aristotélica, que sabidamente também foi separada da metafísica.

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12. A recusa do pensar

Habermas não é inteiramente avesso a essa verdade. Mas ela não tem força no modo como ele construiu sua teoria. Isso se mos-tra no seu conceito desestruturado de “mundo da vida”; mostra-se na facilidade com que ele (apoiado em Mead) deixa as auto-rela-ções se deduzirem das comunicações; e se mostra também no seu conceito vazio de um “mundo subjetivo” que deve encaixar-se nas ações dramatúrgicas e proposições “expressivas” das comunicações. Sobretudo este último teorema (tomado de E. Tugendhat) mere-ceria ser dissolvido em seus elementos e, assim, tornado transpa-rente em suas fraquezas. Quem fala em “autocompreensão” e em uma vida consciente que, enquanto tal, se organiza por meio de auto-relações tem, de fato, que distanciar-se desse teorema de ma-neira expressamente fundamentada. Nós não podemos, por fim, simplesmente saudar, salvar e compreender o discurso da moder-nidade, com o abandono desse teorema, numa vida esvaziada em nossa linguagem teórica. Mas há de ser suficiente termos indicado o lugar do teorema no contexto das antecipações conceituais com que Habermas pretende ter superado, de um só golpe, a subjetivi-dade e a metafísica.

Cabe acrescentar ainda a seguinte observação: já foi lembra-do que Hegel teve de elaborar uma forma conceitual da metafísica moderna à medida que via ser necessário conjugar subjetividade e sociabilidade sem reduzir um lado ao outro. Essa metafísica não é ainda aquela em que a autocompreensão da vida consciente pôde por fim encontrar-se a si mesma – não ainda, portanto, a meta-física da completude. Ela lhe serve como uma estrutura teórica pré-ordenada. Na linguagem técnica dos antigos metafísicos, ela pertence ao âmbito que eles chamavam de “ontologia”. A fraqueza estrutural da linguagem conceitual de Habermas já foi salienta-da no que diz respeito a seu conceito de “mundo da vida”. Sob a pressão de questões que demandam um esclarecimento acerca do estatuto de “mundo” em relação aos indivíduos, ele se mostra tão inexplicado quanto o primeiro conceito de mundo de Heidegger. Desse esclarecimento, porém, dependem questões acerca do mé-todo da sociologia que são difíceis de decidir. E Wittgenstein, para

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mencionar apenas um, dedicou-se ao longo da vida a encontrar um modo adequado de fazer da “forma de vida” um tema. Na teo-ria de Habermas, os conceitos fundamentais, a despeito do escla-recimento de que o mundo da vida é “holisticamente” constituído, permanecem na indeterminação e, portanto, em oscilação quanto ao conteúdo. E esta oscilação se esclarece não pela indecidibilida-de, mas pela cegueira decisória em relação a um problema funda-mental da teoria social: é apenas no comportamento interativo dos indivíduos, e nos fundamentos complexos neles atuantes, que se baseia a formação do conceito de “mundo da vida”? Ou é necessá-rio trazer ao primeiro plano as formas de associação anteriores aos indivíduos, as quais sem estes não poderiam existir, mas são de-les independentes, do ponto de vista de seu estatuto “ontológico”, na medida em que determinam o seu comportamento social do mesmo modo como o espaço newtoniano determina as posições dos corpos em seu interior? Por acaso as instituições também são entidades desse tipo? Se é constituída segundo uma orientação filosófica, a teoria social tem de ponderar sobre essas alternativas. Pode-se até deixá-las de lado – por meio de um retorno em nova chave, por exemplo, a argumentos inspirados na filosofia trans-cendental e no pragmatismo –, mas somente depois que os prós e contras de ambas tenham sido examinados a fundo. Depois de passar por isso, poder-se-ia reconhecer, na clareza ampliada e no cuidado das construções conceituais da teoria social, a renovação de uma perspectiva baseada na limitação do conhecimento.

Na teoria de Habermas, porém, salta aos olhos a facilida-de com que ele pretende chegar a uma teoria da sociedade “em dois níveis” por meio de um empréstimo volumoso junto a seu adversário sociológico mais perigoso, a teoria dos sistemas. Como funciona um sistema, e como se deve entender que ele se forme a partir do “mundo da vida” e do agir comunicativo, para deles então “apartar-se”, permanece tão inexplicado quanto a constituição do “mundo da vida” à luz dos problemas há pouco mencionados. E “mundo da vida” e “sistema” são conceitos incomensuráveis segun-do sua própria concepção, não podendo, assim, ser alinhados como “níveis” um ao lado do outro. A não realização de tais considera-ções salta aos olhos, assim como o trabalho de Habermas se des-

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taca por uma extraordinária amplitude de orientação e aceitação de literaturas que possam ser significativas ou aproveitáveis para a construção de uma teoria social.

Se nos distanciamos dessa investigação e passamos ao campo de problemas a que podemos chamar “ontologia”, pode-se compre-ender como é difícil, em geral, identificar a posição de Habermas frente a questões fundamentais da filosofia que, enquanto tais, são questões da modernidade por excelência. Se nos perguntamos até que ponto ele estaria disposto a opor-se ao naturalismo, não sabe-mos como ele responderia ou teria de responder. É evidente, por certo, que o naturalismo não pertence ao âmbito de suas intenções teóricas. Mas é igualmente difícil notar, de sua parte, algum es-forço consistente para a ele contrapor-se. E as luzes evanecentes, que pertencem às razões pelas quais lhe parece possível satisfazer-se com a defesa de uma racionalidade comunicativa, também lhe dão a impressão de poder, com facilidade e sem qualquer prejuízo, retirar a metafísica do paradigma da modernidade.

Com essa observação fecha-se um círculo que nos lembra o lúcido diagnóstico de Kant, a respeito dos indiferentistas, do qual havíamos partido para determinar corretamente o conceito de uma metafísica na modernidade. Com o propósito de mostrar como mera pretensão a serena superioridade que os indiferentistas apresentavam como estilo de sua auto-apresentação, Kant objetou que eles tinham todos a sua metafísica secreta: “na medida em que simplesmente pensam algo em geral”. O sentido desse comple-mento se revela mais ainda em seu significado duradouro: a teoria de Habermas recusa o pensar justamente nas perguntas que são as mais decisivas para aquele pensamento que Kant defende – e que é a própria filosofia. Contra uma proposta teórica sociológica isso não seria uma objeção. Mas nós não tínhamos de discutir o protesto de um sociólogo contra a possível modernidade da meta-física. Os caminhos imprescindíveis da vida consciente não devem ser estreitados, ensombrecidos ou, no fim das contas, obstruídos com o desânimo – por meio de uma teoria filosófica da liberdade que, em sua configuração e enquanto tal, deve ser tida em alta conta, mas que, ao mesmo tempo, permanece na indeterminação e

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Dieter Henrich O que é metafísica? – o que é modernidade?

empobrece conceitos como os de vida e liberdade, negligenciando seus traços mais essenciais.

Essa discussão tem de ser aqui encerrada, se possível, apenas por ora. À guisa de conclusão, devo dizer algumas palavras de ou-tro feitio. Ninguém se esforçou tanto quanto Habermas para que o debate reencontrasse o seu lugar na cena teórica alemã. Ele o conduz com explícito interesse por aquilo que nele se produz, e com uma energia sem igual – a mesma que se mostrou na cons-trução de sua obra e que a fez, com justiça, atrair um interesse generalizado sobre si. Ninguém, nem mesmo Habermas, pode ter idéias e pensamentos, capazes de reestruturar a problemática, que sirvam perfeitamente a todos. Necessitamos da concorrência, em que cada um chega até seus limites e o pensamento avança, cada vez mais desimpedido. E deve-se aprender justamente com Habermas, com a sua forma aberta de debater, o quanto o trabalho pode subordinar-se a um assunto que, se por um lado não nos per-mite entrar em cena, por outro nos entusiasma a servir-lhe. A esse assunto, que é praticamente o único a que ele dá valor na arena do debate, e que se aproxima do tema fundamental da subjetividade que se liberta de si mesma, juntam-se também estas minhas teses, ainda que em quase todo o resto o contradigam: a defesa da mo-dernidade contra os eruditos dentre seus desprezadores. Mesmo neste assunto, porém, a unanimidade não é frutífera. Uma mo-dernidade que só falasse em um mesmo tom, ou através de uma única voz, estaria condenada a extinguir-se. E assim o dissenso de fundo, face a ela ou sobre ela, não é desmentido algum de sua incessante força.

Tradução de Fernando Costa Mattos

Reflexões

Immannuel Kant

Apresentação

Apresentamos a seguir a tradução de algumas Reflexões (Reflexionen) de Kant, a maior parte delas extraída do volume XIX da edição da Academia, que reúne escritos esparsos sobre moral, direito e religião. Trata-se do início de um projeto mais amplo em que pretendemos traduzir uma quantidade significa-tiva dessas reflexões, bem como de outros textos póstumos, iné-ditos em português, que, embora localizados em outros tomos da edição da Academia, versem sobre assuntos ligados aos temas da moral, da política, da filosofia da história e do direito. É o caso do Direito Natural Feyerabend (Naturrecht Feyerabend) e da Filosofia Moral Collins (Moralphilosophie Collins), ambos cons-tituídos a partir de notas de alunos, que julgamos interessante incluir na seleção.

Uma importante fonte de inspiração para nosso projeto fo-ram os volumes de póstumos que vêm sendo lançados pela edito-ra Cambridge, como parte de sua edição das obras de Kant (The Cambridge Edition of the Works of Immanuel Kant), coordenada por Paul Guyer e tendo Frederick Rauscher (Univ. of Michigan) à frente da tradução das reflexões sobre moral, política e di-reito. Também nos valeremos do cotejamento com a tradução do Naturrecht Feyerabend para o italiano, atualmente em curso sob os cuidados de Gianluca Bordoni (Universitá di Teramo), a tradução de algumas reflexões sobre moral e política feita por Monique Castillo (Paris-XII) para o francês (publicadas como apêndice a seu livro Kant et l ’avenir de la culture), bem como ou-tras traduções de que tomemos conhecimento. Estaremos aten-

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Cadernos de Filosofia Alemã nº 14 – p. 119-121 – jun.-dez. 2009

tos, ainda, às pesquisas de Werner Stark (Universität-Marburg), que vem trabalhando nos manuscritos de Kant há algum tempo e propõe uma importante rediscussão dos critérios adotados por Erich Adickes, responsável pela organização desses textos para a edição da Academia na virada do século XX.

Embora não seja nosso intuito, evidentemente, entrar no mérito dessa discussão mais específica, tais referências serão im-portantes para a tomada de decisões relativas tanto à tradução de passagens difíceis como à seleção das reflexões a traduzir. Em princípio, a idéia é escolher aquelas que sejam mais aptas a con-tribuir para a compreensão do pensamento kantiano sobre esse conjunto de temas que vai da moral ao direito, passando pela política e pela história. Além do volume XIX da Academia, tam-bém os volumes XV (Reflexões sobre Antropologia) e XXVII (em que se encontram a Filosofia Moral Collins e o Direito Natural Feyerabend) estarão entre nossas principais fontes. Nada impede, contudo, que selecionemos alguns textos de outros volumes dos póstumos que nos pareçam interessantes com vistas ao objetivo geral do projeto.

Estas primeiras reflexões traduzidas, que apresentamos a seguir, visam não apenas divulgar o projeto, suscitando o apare-cimento de sugestões e eventuais contribuições, como submeter um pouco desse trabalho de tradução ao público, na expectativa de que também possam suscitar críticas e novas idéias. Além disso, elas se juntam ao texto de Frederick Rauscher, publicado na seção de artigos deste mesmo número, como forma de incen-tivar a leitura e a reflexão a partir das Reflexionen kantianas, bem menos conhecidas do público brasileiro do que suas principais obras.

Elas estão divididas em pequenos blocos temáticos: o pri-meiro reúne reflexões que tratam da universalização e publici-zação das máximas (6733, 7818-19); o segundo envolve priori-tariamente a idéia do contrato social como fio condutor para o funcionamento do Estado (7734, 7737-38); o terceiro contém as

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Reflexões : Apresentação

reflexões citadas por Rauscher em seu artigo, tematizando a pena de morte (7914, 7917, 8037); os textos do quarto bloco tratam dos alcances e limitações do poder do soberano (7983-89, 8003); o quinto envolve a questão da miséria e da fome como algo que fere a dignidade humana (8000-01); e o sexto bloco, por fim, constituído de uma reflexão mais longa (1499) – a única extraída do volume XV da Academia –, trata da história sob a ótica da destinação do ser humano.

Bruno Nadai, Cauê Cardoso Polla, Fernando Costa Mattos,

Monique Hulshof e Nathalie de Almeida Bresciani

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Cadernos de Filosofia Alemã nº 14 – p. 122-145 – jun.-dez. 2009

Refl. 1499 AA XV 781-785 σ? (ρ?) L Bl. Ha 51.

S. I:

(s Jedes Thier erreicht einzeln seine Bestimmung. Beym Menschen erreicht die Gattung nur in einer Folge von Zeugungen ihre Bestimmung als Vernünftig Geschopf. Endliche Entwikelung aller Anlagen, sowohl der Talente als der Denkungsart. Anfang: physische Gleichheit; Ende: moralische Gleichheit und Einheit der Gesellschaft.

Viele Völker schreiten vor sich selbst nicht weiter fort. Grönlander. asiater. Aus Europa muß es kommen. Amerikaner ausgerottet. Fortschritt von Grichen an.)

(s Ein iedes Geschopf hat seine Bestimmung und erreicht sie.)

(s Die Geschichte der Menschheit ist von der der Menschen unterschieden. Die Menschheit gewinnt oder Verliert.)

(s 1. Naturauswikelung, 2. freye.)

Die Bestimmung des (g einzelnen) Menschen: 1. in Ansehung der Thierheit; 2. in Ansehung der Menschheit (g des Menschlichen Geschlechts). /782/

In Beziehung auf die Thierart ist keine Best nicht vorausgesetzt worden, daß er sich durch Vernunft regiren lasse; in Ansehung der

Reflexionen

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Imannuel Kant Reflexões/Reflexionen

Reflexões

Lista de Abreviações

AA = Akademie-AusgabeRefl. = Reflexão(g ) = palavras acrescentadas por Kant na mesma época(s ) = palavras acrescentadas por Kant posteriormenteHa =Pr = Exemplar de Kant do Inicia philosophiae praticae primae de

BaumgartensJ = Exemplar de Kant do Juris naturalis pars posterior de

Achenwalls

Refl. 1499 AA XV 781-785 1773-77? (1773-1775?) Pag. solta Ha 51.Pag. I(s Cada animal alcança individualmente sua destinação (Bestimmung). No ser humano, a espécie alcança sua destinação enquanto criatura racional apenas em uma série de gerações. Desenvolvimento final de todas as predisposições, tanto dos talentos quanto do modo de pen-sar. Começo: igualdade física; final: igualdade moral e unidade da sociedade.

Muitos povos não progridem por si mesmos. Groenlandeses. Asiáti-cos. Isso tem de vir da Europa. Americanos exterminados. Progresso a partir dos gregos.

(s Toda criatura tem sua destinação e a alcança.)

(s A história da humanidade é diferente da dos homens. A humani-dade ganha ou perde.)

(s 1. Desdobramento natural, 2. livre.)

A destinação do ser humano (g individual): 1. No que se refere à ani-malidade; 2. No que se refere à humanidade (g do gênero humano). /782/

Em relação à espécie animal não é pressuposto que ele se deixe reger pela razão; no que se refere à humanidade, isto é, à perfeição segun-

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Cadernos de Filosofia Alemã nº 14 – p. 122-145 – jun.-dez. 2009

Menschheit, d.i. der Vollkommenheit nach Gesetzen der Vernunft, ist die Thierheit gänzlich der Vernunft überliefert worden.

Der Mensch ist ein Thier, was der einer disciplin durch die Vernunft bedürftig und fähig ist. Folglich ist er nach der bloßen Natur böse Ein roher Mensch ist: der keine disciplin der Ver empfangen hat, ein böser: der die disciplin der Vernunft nicht annimmt.

(s Sind alle aus einer Familie. Eine Geschlechtsfolge dient zur Verbesserung der andern. Die MenschenGattung schreitet fort.

Die Thierheit verliert im Anfange, aber endlich muß alles damit stimmen. Stammgattung unbekannt. Moscati. Racen. Americaner. Weisse. Unterschied. Griechen. Fortschritt.)

(s Ursprung der Entwikelung des Geistes. epoche. Stillstand asiatischer Völker.)

Die Bestimmung der Thierheit ist Fortpflanzung* und Ausbreitung, weil er vor alle Weltgegenden bestimmt war. Die der Menschheit: die Entwikelung aller talente und, Nutzung der gesamten Natur und die Größte Achtung vor Einheit Zusammenstimmung und Regeln.

*(g Nothwendigkeit des bürgerlichen Zwanges Gesetze durch das Böse der Menschen. Mistrauen zu einander macht den obrigkeitlichen Zwang möglich (s und fortdaurend). (s Gewaltthatigkeit macht den bürgerlichen Zwang nothwendig.) Der Gesellschaftliche Zwang. Der Zwang der Gewissenhaftigkeit: moralisch. (s Die Hauptwirkung des bürgerlichen Zustandes ist der Zwang zur Thätigkeit.))

Verfeinerung. Schwächung der Thierheit. Weib. Luxus. Geschmak. Ehrenwahn.

Nothwendigkeit der Künste.

Ungleichheit der Stände. Bürgerlicher Zwang.

Streit wieder die Natur (s Gewalt angethan): 1. in Ansehung der verschiedenen natürlichen durch die Natur bestimmten Alter des Lebens /783/ und des bürgerlichen; 2. des Misverhältnisses der Wissenschaft zu dem Alter Leben des Menschen.

(s Der Mensch ist ein Thier, das Unterweisung (Cultur), das Zucht, das einen Herrn und eine sittlichkeit nothig hat.)

Alter der Kindheit. Des Jünglings. Mannes. Rousseau: vom Stande der Natur.

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Imannuel Kant Reflexões/Reflexionen

do leis da razão, a animalidade foi deixada inteiramente a cargo da razão.

O ser humano é um animal que necessita e é capaz de a uma disci-plina por meio da razão. Por conseqüência, ele é mau segundo a mera natureza Um homem rude é: aquele que não recebeu nenhuma disci-plina da raz; um mau: aquele que não aceita a disciplina da razão.

(s Todos são de uma mesma família. Uma série de gerações serve para o melhoramento das outras. A espécie humana progride.

A animalidade perde no início, mas por fim tudo tem de concordar com isso. Tronco originário da espécie desconhecido. Moscati. Raças. Americanos. Brancos. Diferença. Gregos. Progresso.)

(s Origem do desenvolvimento do espírito. Épocas. Estagnação dos povos asiáticos.)

A destinação da animalidade é a reprodução* e a dispersão, por que ele foi destinado a todos os cantos do mundo. A da humanidade: o desenvolvimento de todos os talentos e, utilização de toda a natureza e o maior respeito pela unidade concordância e pelas regras.

*(g Necessidade de coação civil leis por meio do mal do seres huma-nos. A desconfiança recíproca torna possível (s e duradoura) a obriga-toriedade da coação. (s A violência torna a coação civil necessária.) A coação social. A coação da consciciosidade: moral. (s O efeito princi-pal do estado civil é a coação à atividade).

Refinamento. Enfraquecimento da animalidade. Mulher. Luxus. Gosto. Ilusão de honra.

Necessidade das artes.

Desigualdade dos estamentos. Coação civil.

Luta contra a natureza (s violência causada): 1. No que se refere às diferentes idades naturais da vida determinadas pela natureza /783/ e às da vida civil; 2. À desproporção da ciência relativamente à idade vida do ser humano.

(s O ser humano é um animal que tem necessidade de instrução (cul-tura), disciplina, de um senhor e uma moralidade.)

Idade da infância. Da juventude. Do homem. Rousseau: do estado de natureza.

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Cadernos de Filosofia Alemã nº 14 – p. 122-145 – jun.-dez. 2009

(g ob es nothig sey, in die Wälder zurük zu kehren? Der natürliche Mensch ist physisch vollkommener (g als Thier, auch glüklicher, freyer); aber der bürgerliche moralisch in Ansehung der Menschheit überhaupt*. Laster und Elend.)

*(g er ist im Fortschreiten zu der Vollkommenheit, welche vom Ganzen auf ieden Theil abgeleitet wird.)

Wissenschaften gehören nicht zur Bestimmung einzelner Menschen, aber des Menschlichen Geschlechts, um dieses zu verfeinern und die durch den luxus überhand nehmende übel zu verbessern.

(s Die Naturbestimmung in Ansehung der Thierheit nach Rousseau streitet mit der in Ansehung der Menschheit; daher alles Böse.)

S. II:

Die Absicht der Vorsehung war, daß sich zwar Völker bilden, aber nicht zusammenfließen solten. Daher Nationalstoltz, Nationalhaß und patriotische Eifersucht. Die Unmöglichkeit, große Staaten lange zu erhalten.

Juden und Türken aus Religionsstoltz. Indianer aus Religionspflicht. Franzosen aus dem Wahn und Spanier aus Character und Gebrauche. Dieses ist ein mechanismus, der sich auf instinct gründet und den die Vernunft mäßigen muß. Kriege.

Die letzte Vollkommenheit: Völkerbund.

(g Ge Staatskorper. Der einzelne Mensch verliert, aber gewinnt als ein Glied im Ganzen, ist ietzt im Fortschritt zur Vollkommenheit.)

Der Gesetzliche Obrigkeitliche Zwang entwikelt talente (g und tugenden) und verfeinert die Sitten. woraus ein 2. Zwang der Anständigkeit entspringt (aesthetisch) (g Sitten). Die letzte dritte Bestimmung /784/ des Menschen ist, daß ein Moralischer (g äußerer) Zwang entspringt durch die gereinigte Meinung anderer von der wahren Ehre, indem man ohne Rechtschaffenheit kein Amt, kein Weib, ja gar nicht umgang erlangen kann. Gute Erziehung und richtige Begriffe der Geistlichkeit. Es ist nur nöthig, daß die Gewonheit überhand nehme, öffentlich nur der tugend Achtung zu beweisen, e.g. dem Prediger. Das Herz braucht nicht besser zu werden, sondern das sentiment. Die obrigkeit fragt nicht nach Tugend. Das Urtheil darüber

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Imannuel Kant Reflexões/Reflexionen

(g Se é necessário retornar às florestas? O ser humano natural é fisica-mente mais completo (g como animal, também mais feliz, mais livre); porém o civil é moral no que se refere à humanidade em geral*. Vício e virtude.)

*(g Ele está em progresso em direção à perfeição, a qual é derivada do todo para cada uma as partes.)

As ciências não pertencem à destinação dos seres humanos individu-ais, mas à destinação do gênero humano, com o intuito de refiná-lo e sanar os males que o luxo torna insuportáveis.

(s Segundo Rousseau, a destinação natural relativa à animalidade conflita com a destinação relativa à humanidade; daí todo o mal.)

Pag. II:

A intenção da providência foi, de fato, que povos se formassem, mas não que devessem misturar-se. Daí o orgulho nacional, o ódio nacio-nal e a ciúme patriótico. A impossibilidade de manter grandes Esta-dos por muito tempo.

Judeus e turcos por orgulho religioso. Índios por dever religioso. Fran-ceses pela ilusão e espanhóis pelo caráter e usos. Este é um mecanismo que se funda no instinto e que a razão tem de moderar. Guerras.

A última perfeição: confederação de povos (Völkerbund).

(g O corpo estatal. O ser humano individual perde, mas ganha en-quanto um membro do todo, está agora em progresso ruma à per-feição.)

A coação pela autoridade segundo leis desenvolve os talentos (g e virtudes) e refina os costumes. Donde surge (esteticamente) uma 2. coação da decência (g costumes). A terceira última destinação /784/ do ser humano é que uma coação moral (g externa) surge por meio da opinião purificada de outrem sobre a verdadeira honra, segundo a qual sem retidão não se pode obter nenhum cargo, nenhuma esposa nem quaisquer relações. Boa educação e conceitos corretos por par-te do clero. É necessário somente que se torne inaceitável mostrar publicamente respeito apenas pela virtude, por exemplo, ao pastor. O coração não precisa se tornar melhor, apenas o sentimento. A au-

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Cadernos de Filosofia Alemã nº 14 – p. 122-145 – jun.-dez. 2009

ist in den Händen des publici. Man kan iemand Achtung entziehen, ohne ihn zu beleidigen. Wir richten gerne einander. Die moralitaet ist ietzt isolirt. Bäume nothigen sich einander, gerade zu wachsen. Der beste ist der Zwang durchs Gewissen.

Die Zwischenzustände.

Von wo die Besserung Anfangen werde. 1. Völkerbund. 2. socialcontract. 3. Erziehung.

––––––––––

Wie weit muß die Erziehung mechanisch seyn. disciplin. Cultur.

Ich glaube festiglich, daß alle Keime des Guten noch entwikelt werden sollen. Sie liegen in uns; der Mensch war vor das Gesellschaftliche Ganze geschaffen. Dieses muß einmal die Größte Vollkommenheit erlangen und darin jeder einzelne. Alsdenn dauert sie immer.

––––––––––

Was auch der erste Zustand der Menschen gewesen seyn mag, so entspr bringt es ietzo die Ordnung der Natur so mit sich, daß das Gute aus dem Bösen entspringe oder, richtiger zu reden, daß die verborgen liegende treibende Kraft, welche die verborgen liegende Keime des Guten nothigt sich zu entwikeln, in dem Bösen liege und daß ohne dessen Antrieb sie auf immer verstekt bleiben würden. So ist es mit den Menschen als einer Thierart bewandt.

––––––––––

1. Das Besondere der Menschheit ist, daß (g er Erziehung bedarf ) sie alles Gute sich selbst erfinden und durch Freyheit verschaffen soll. (Mangel der Kunst instincten.)

2. Daß er zur Gesellschaft gemacht ist und sich darin bildet.

3. Daß die ganze Art in Vollkommenheit fortschreitet. /785/

4. Daß er aus der Unmündigkeit aller Art zur Mündigkeit schreitet.

5. Endliche Entwikelung aller Anlagen der Natur. Unzufriedenheit mit sich selbst: ideal.

__________

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Imannuel Kant Reflexões/Reflexionen

toridade não pergunta pela virtude. O juízo sobre isso está nas mãos do publici. Pode-se privar alguém de respeito sem o ofender. Nós gostamos de nos julgar uns aos outros. A moralidade está atualmente isolada. As árvores necessitam umas das outras para crescer correta-mente. O melhor é a coação por meio da consciência.

Os estados intermediários.

Por onde o aperfeiçoamento começará. 1. Confederação de nações (Völkerbund). 2. Contrato social. 3. Educação.

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Até que ponto a educação tem de ser mecânica. Disciplina. Cultura.

Acredito fortemente que todos os germes do bem devem ainda se desenvolver. Eles estão em nós; o ser humano foi criado antes do todo social. Este tem de alcançar a maior perfeição e, dentro dele, cada um individualmente. Assim ela dura para sempre.

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Qualquer que tenha sido o primeiro estado dos seres humanos, a ordem da natureza o traz hoje consigo de um tal modo que o bem surge do mal ou, pra falar corretamente, que a força motriz latente, que força os germes latentes do bem a se desenvolverem, reside no mal e sem o seu impulso eles permaneceriam para sempre ocultos. Assim ocorre com os seres humanos enquanto pertencentes a uma espécie animal.

1. O particular da humanidade é que (g ele carece de educação) ela deve criar todo o bem por si mesma, deve gerá-lo por meio da liber-dade. (Falta de instintos artísticos)

2. Que ele é feito para a sociedade e nela se forma.

3. Que a espécie toda progride na perfeição. /785/

4. Que ele avança de todo tipo de minoridade para a maioridade.

5. Desenvolvimento final de todas as disposições da natureza. Insa-tisfação consigo mesmo: ideal.

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Ref. 6733 AA XIX 144 ξ--ο? ρ? φ? Pr 27.

Was unmöglich ein Gegenstand einer gemeinschaftlichen Willkühr seyn kan, ist ungerecht; was, wenn es auch ein Gegenstand derselben wäre, doch nach Gesetzen der Willkühr unmöglich ist auszuführen, ist Unrecht.

Refl. 7734 XIX 503 ρ--σ? ω?? J 76.

(g Der socialcontract ist die Regel und nicht der Ursprung der Staatsverfassung.)

Der socialcontract ist nicht das principium der Staatserrichtung sondern der Staatsverwaltung und enthält das ideal der Gesetzgebung, Regirung und öffentlichen gerechtigkeit.

Frägt man nun, welches ist das principium obiectivum der staatserrichtung, so antworte ich: in einer Vereinigung frey handelnder Wesen, die doch alle als den Zwangsgesetzen unterworfen betrachtet werden sollen, ist die zwingende Gewalt nothwendig ausser ihnen und es ist kein principium obiectivum der Staatserrichtung möglich. Vor iedem Zwangsgesetze geht die Gewalt vorher. Diese Gewalt, wo sie nicht natürlicher Weise dem beyrechnet, der auch das Recht der Gesetzgebung hat, so kann sie gar nicht rechtlich errichtet werden. Denn weil seine Gewalt an die Bedingung gebunden ist, daß sein Wille recht sey und ihm auch nur nach Regeln des rechts solche zu theil werden soll, wer zwingt ihn darnach zu verfahren. Überdem, wer ein an sich zufälliges Recht wozu hat, muß nach einem Zwangsgesetze verbunden werden können, damit er nur durchs Recht und nicht durch willkühr seine Gewalt habe. Nun ist aber denn keine Gewalt mehr, die ihn zwingen könne.

Das recht der Gesetzgebung ist beym Volk originarie aber beym monarchen derivative. Das der Regirung kann nur derivation seyn, weil die execution zwey opponirte Persohnen voraussetzt, da keiner in Ansehung des andern ius originarium hat.

Refl. 7737 XIX 504 ρ? κ?? μ?? J 76.

Die idee des socialcontracts ist nur die Richtschnur der Beurtheilung des Rechts und der Unterweisung der prinzen imgleichen einer

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Imannuel Kant Reflexões/Reflexionen

Refl. 6733 AA XIX 144 1772-73? 1773-75? 1776-78? Pr 27.

Aquilo que não pode de modo algum ser o objeto de um arbítrio co-mum é injusto; aquilo que é impossível ser realizado, mesmo se fosse um objeto deste arbítrio, é incorreto.

Refl. 7734 AA XIX 503 1773-77? 1790-1804?? J 76.

(O contrato social é a regra e não a origem da constituição civil)

O contrato social não é o principium [princípio] do estabelecimento do estado, mas da administração do estado e contém o ideal da legis-lação, governo e justiça pública.

Ora, se questionassem qual é o principium objectivum [princípio ob-jetivo] do estabelecimento do estado, eu responderia: em uma união de seres que agem livremente, os quais ainda devem ser considerados todos como submetidos às leis de coerção, o poder coercitivo lhes é necessariamente externo e não é possível nenhum principium objec-tivum do estabelecimento do estado. O poder é anterior a toda lei coercitiva. Se esse poder não é atribuído, de maneira natural, àquele que também tem o direito de legislar, então ele não pode de modo algum ser estabelecido juridicamente. Pois o seu poder está vinculado à condição de que sua vontade seja justa e de que deva se tornar, de acordo com as regras do direito, parte daquele que o coage a proceder de acordo com essas regras. Além disso, aquele que tem para isso um direito contingente, tem de poder ser obrigado segundo uma lei coercitiva, de maneira que ele tenha o seu poder apenas pelo direito e não pelo arbítrio. Pois não há, todavia, um outro poder que possa coagi-lo.

O direito de legislar é originarie [originário] no povo, mas derivative [derivativo] no monarca. O direito de governar pode ser somente de-rivativo, pois a execução pressupõe duas pessoas oponentes, nenhuma tendo um ius originarium [direito originário] em vista de outra.

Refl. 7737 XIX 504 1773-75? 1769?? 1770-71?? J 76

A ideia do contrato social é somente o fio de prumo do julgamento do correto e da instrução dos príncipes assim como de um possível

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Cadernos de Filosofia Alemã nº 14 – p. 122-145 – jun.-dez. 2009

möglichen Vollkommenen Staatserrichtung, aber nach dieser idee hat das Volk nicht wirkliche rechte.

Es scheint nichts natürlicher, als daß, wenn das Volk rechte hat, es auch eine Gewalt habe; aber eben darum, weil es keine rechtmäßige Gewalt etabliren kann, hat es auch kein strictes recht sondern nur ein ideales.

Refl. 7738 XIX 504 ρ? κ? μ,?? J 77.

Contractus originarius als die Richtschnur, principium, exemplar des Staatsrechts. Es muß aus ideen nicht aus factis auch nicht aus den Gründen des flores eines Staats, d.i. dem Wohlstande, hergeleitet werden.

Refl. 7818 XIX 525-526 ρ? (υ?) κ?? μ?? J 236.

Das Völkerrecht beruht auf diesem eintzigen Probierstein. Wenn meine Unternehmung zu beschaffen ist, daß die Maxime derselben als öffentlich bekant kan angenommen werden, ohne daß dieses ihr wiederstreitet, so ist sie recht. Dagegen ist die Handlung unrecht, deren maxime, wenn sie öffentlich bekannt wäre, sich natürlicher weise allgemeinen Wiederstand verursachen müßte.

Die allgemeine Gewalt wird als irresistibel angesehen. Weil aber jedermann, der an das Recht gebunden ist, sich auch auf sein Recht muß verlassen können, so folgt daraus eine Verbindlichkeit des Völkerrechts jedem, dem eine deutlich offenbare Gewalt geschieht, beyzustehen.

Wenn jemand also blos die Vorteilhafte Gelegenheit wählt, um einen andern Staat zu unterdrüken, so muß er sich vorstellen, daß diese maxime öffentlich bekannt wäre; folglich ein jeder urtheilen könnte, daß an ihn auch die Reihe kommen könne.

In einer Sache, die ich vor gerecht halten kann, öffentlich die maxime zu äußern, daß ich öffentliche Gewalt brauchen wolle, ist der Natur der Sache gemäß. Dagegen Angriffe ohne Kriegsankündigung (dazu gehören nicht die capereyen), Giftmischen, Meuchelmord, angestiftete Verrätherey, Bestechen der Diener des Andern, falsch

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Imannuel Kant Reflexões/Reflexionen

estabelecimento perfeito do estado, mas segundo essa ideia o povo não tem direitos reais.

Nada parece mais natural do que, tendo o povo direitos, tenha ele também um poder; mas precisamente por isso, porque ele não conse-gue estabelecer nenhum poder conforme ao direito, ele também não tem nenhum direito estrito, mas somente um direito ideal.

Refl. 7738 XIX 504 1773-75? 1769? 1770-71?? J 77.

Contractus originarius [contrato originário] enquanto fio de prumo, principium, exemplar do direito público. Ele tem de ser derivado de idéias e não de factis [fatos], tampouco dos fundamentos do flores [florescimento] de um estado, isto é do bem-estar.

Refl. 7818 XIX 525-526 1773-75? (1776-78?) 1769?? 1770-71?? J 236

O direito das gentes tem como base essa única pedra-de-toque. Se meu empreendimento é tal que sua máxima pode ser admitida como publicamente conhecida sem que isso a contradiga, então, ele é correto. Em contrapartida, é incorreta a ação cuja máxima, causaria de modo natural uma resistência geral se ela fosse publicamente conhecida.

O poder geral é considerado como irresistível. No entanto, porque todo mundo que está vinculado ao direito tem também de poder contar com seu direito, segue-se uma obrigatoriedade do direito das gentes de dar assistência a todos que sofrem uma violência clara ma-nifesta.

Se, portanto, alguém simplesmente aproveita a oportunidade vantajosa para subjugar outro Estado, então ele tem de representar para si mes-mo que essa máxima seria publicamente conhecida; desse modo, cada um seria capaz de julgar que também poderia chegar a ele sua vez.

Expressar publicamente a máxima de que pretendo fazer uso de força pública em uma questão que eu possa considerar como justa, é con-forme sua natureza. Em contrapartida, os ataques sem declaração de guerra (nestes não estão incluídas as piratarias), o envenenamento, assassinato em segredo, a incitação à traição, o suborno ao criado de

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Geld müntzen, auf maximen sich gründen, die man sich nicht äußern kan. Der Verlust vergeblich. Wenn der Nachtheil, der mir aus der Bekanntmachung meiner maxime zuwachsen würde, größer wäre, als der Verlust meiner Absicht seyn kann, so ists unmöglich, sie als bekannt anzunehmen. Nun sind alle tückische Handlungen von der Art. /526/ Handlungen, deren maxime nothwendig dissimulirt werden muß, sind unrecht. Die maxime aller rechtmäßigen Handlungen muß öffentlich seyn und von der Art, daß sie von jedem wenigstens angenommen werden kan.

Refl. 7819 XIX 526 ρ? (υ?) κ?? μ?? J 236.

Man muß solche maximen zum Handeln haben, als nur allein möglich sind, wenn Wir solche öffentlich declariren müsten. Man muß sich des Vortheils, geheim zu seyn, begeben und handeln vor den Augen von jedermann. Die ethische maximen, wenn sie öffentlich bekannt seyn sollen, können nicht lieblos seyn, weil sie uns aller Liebe berauben würden, auch nicht unnatürlich, weil wir uns dadurch von der Menschheit absondern.

Refl. 7914 XIX 551-552 υ--χ? ψ? J 180.

Der Bürger hat nicht, wie Beccaria glaubt, das recht über sein Leben /552/ an den Souverain abgetreten und da er hierüber nicht disponiren kann, einen unerlaubten und nichtigen Vertrag gemacht, sondern er verliert es kommt gar nicht auf sein Belieben an, ob er wolle gestraft werden, sondern er verliert den statum civilem und ist vogelfrey.

Refl. 7917 XIX 553 υ--χ? ω? J 183.

Wenn das Recht am Leben zu strafen als von einem pacto des Ganzen Volks mit jedem einzelnen betrachtet werden sollte, so würde man vielmehr sagen, es könnte nicht als gerade die Todesstrafe verhängen. Denn thäte die Nation es nicht, so würde sie anderen gleichsam die Erlaubnis geben (d.i. sie nicht hindern), ihr Leben zu rauben, welches niemand befugt ist. Denn eine jede andere Strafe als die Todesstrafe

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Imannuel Kant Reflexões/Reflexionen

outro, cunhar dinheiro falso, se fundam, em máximas que não pode-mos expressar. A perda é em vão. Se tornar pública a minha máxima originasse maior desvantagem do que pode ser a perda do meu pro-pósito, então é impossível admiti-la como pública. Ora, são desse tipo todas as ações traiçoeiras.

Ações cujas máximas tem de ser necessariamente dissimuladas são incorretas. As máximas de todas as ações conformes ao direito têm de ser públicas e de tal modo que possam ser ao menos admitidas por todos.

Refl. 7819 XIX 526 1773-75? (1776-78?) 1769?? 1770-71?? J 236.

Deve-se ter essas máximas para a ação enquanto elas são possíveis apenas na medida em que tivéssemos de declará-las publicamente. Deve-se renunciar às vantagens de fazer segredo e agir diante dos olhos de todo mundo. As máximas éticas, se devem ser publicamen-te conhecidas, não podem ser indiferentes, porque nos privariam de todo o amor, tampouco não naturais, porque desse modo nós nos separaríamos da humanidade.

Refl. 7914 XIX 551-552 1776-79? 1780-89? J 180.

O cidadão não cedeu ao soberano, como acredita Beccaria, o direito sobre sua vida, e nem fez um contrato ilegal e nulo, no qual o sobera-no não possa dispor de sua vida; pelo contrário, ele perde não depen-de de modo algum da preferência de cada um, se ele quer ser punido, antes, ele perde o statum civilem [estado civil] e é um fora da lei1.

Refl. 7917 XIX 553 1776-79? 1790-1804? J 183.

Se o direito à pena capital devesse ser considerado como provenien-te de um pacto [pacto] do povo inteiro com cada indivíduo, então

1. vogelfrey – um “exilado”, literalmente “um pássaro livre”. Kant utiliza o termo em outras Reflexões , tais como 7666, 7668, 7913 das Reflexões sobre a Filosofia do Direito e na Reflexão 516 das Reflexões sobre Antropologia. (N. do T.).

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ist gerade dem Werthe, den jeder in ein Object setzt angemessen und die einzige gerechte, weil aus Gefängnis einer mehr als aus dem Tode der andere weniger macht. Also läßt man das letztere in dubio und übt das Recht der Wiedervergeltung, das gar keinem Zweifel ausgesetzt ist, aus.

Refl. 7983 XIX 572 ψ3--4. J 99.

Was ein Volk nicht thun kann, das kan auch ein jeder Souverain nicht thun. Er kan nicht administriren und richten, weil ein Theil über den anderen alsdenn beschließen könnte und also unrecht thun könnte, dennoch aber keiner über demselben ist, der jedem sein Recht sicherte. Er kann Gesetze geben, mehr nicht. Das andere ist unter seiner Majestät.

Das Volk aber kann einzelne Personen zu Ämtern ernennen unter der Bedingung, sie ihnen zu nehmen, wenn es ihm beliebt, aber es kann nicht strafen und richten. Denn im ersten Falle kann der Beammte selbst einwilligen, im Zweyten nicht.

Refl. 7984 XIX 572 ψ3--4. J 99.

Die Regirung und der Richter sind verbunden, nach Gesetzen zu regiren und zu sprechen. Daher sind sie unter den Gesetzen, also kann der souverain weder regiren noch richten. Er hat aber potestatem instituendi und inspiciendi.

Refl. 7985 XIX 573 ψ3--4. J 99.

Der nicht unter dem Gesetze steht, ist entweder externus, ein wildfremder, exlex und gehört nicht zum Gemeinen wesen, oder er gehört dazu, also nur als Gesetzgebend und nicht als Glied des gemeinen Wesens, das wiederum den Gesetzen unterworfen ist. Der vom Gesetz überhaupt unabhängige kann nur ein einziger seyn,

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Imannuel Kant Reflexões/Reflexionen

diría-se, mais precisamente, que não se poderia aplicar como a pena de morte. Pois, se a nação não fizesse isto, então ela daria aos indi-víduos, por assim dizer, a autorização para tirar suas próprias vidas (isto é, não os impediria), o que ninguém está autorizado a fazer. Pois qualquer outra punição que não a pena de morte é diretamente proporcional ao valor que cada um fixa para um objeto, e a única jus-ta, pois um considera mais a prisão do que outro considera a morte. Assim, deixa-se o último in dubio2 e se exerce o direito de retaliação, não sujeito a dúvida.

Refl. 7983 XIX 572 1785-89. J 99.

O que um povo não pode fazer também não pode ser feito por ne-nhum soberano. Ele não pode administrar e julgar, pois uma parte poderia então decidir sobre a outra e, desse modo, praticar injustiça, mas ainda assim não há ninguém, acima dele mesmo, que assegure a cada qual o seu direito. Ele pode legislar, e nada mais. O outro está sob sua majestade.

O povo pode, no entanto, nomear pessoas individuais para cargos públicos, sob a condição de retirá-los deles se lhe aprouver, mas não pode condenar e julgar. Pois no primeiro caso o funcionário pode ele mesmo consentir, no segundo não.

Refl. 7984 XIX 572 1785-89. J 99.

O governo e o juiz são obrigados a reger e sentenciar segundo leis. Por isso eles estão sob as leis e o soberano não pode, portanto, nem reger nem julgar. Ele tem, porém, potestatem instituendi e inspiciendi [poder de instituir e inspecionar].

Refl. 7985 XIX 573 1785-89. J 99.

Quem não se encontra sob a lei é ou externus [externo], um completo estranho, exlex [fora da lei] e não pertencente à comunidade, ou ele

2. Em latim no texto: in dubio pro reu quer dizer “na dúvida, a favor do réu”. (N. do T.).

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denn viele (aristocraten) müssen ein Recht unter sich haben. Der Monarch muß für sich allein keine Gewalt haben, der Volkswille muß ihm wiederstehen können. Er muß daher nicht das Gesetz geben können.

Refl. 7986 XIX 573 ψ? υ--χ? ρ?? J 99.

Die Potestas exsecutoria (das Staatsoberhaupt als Regirer) ist das Recht desselben, daß nach den Gesetzen ein staat bestehe, folglich der den Staat seiner Einrichtung nach den Gesetzen conform macht, d.i. die Verfassung oder den Zustand desselben so einrichtet, daß den Gesetzen gemäs einem jeden (g auch dem Staat selbst) das seine bestimmt und erhalten werden könne, oder welcher Macht hat, den Zustand des gemeinen Wesens (den Staat) so einzurichten und zu erhalten, daß er als nothwendig ist, damit die Gesetze darinen ihre Wirkung haben. – Potestas iudiciaria ist die Macht, welche den Gesetzen gemäßen Effect in (g Ansehung der Glieder des Gemeinen Wesens gegen einander bestimmt) vorkommenden einzelnen Fällen bestimmt.

Also 1. die Substanz des Staats in den Gesetzen, 2. dieser ihre Caussalität, 3. die Gemeinschaft.

Refl. 7987 XIX 573 ψ? υ--χ? J 100.

Die Gesetzgebung muß ex voluntate communi hergenommen seyn und nicht ex arbitrio qvodam privato et in favorem.

Wenn der summus imperans ein allgemein Gesetze giebt, so handelt er wie ein souverain; wenn er decrete giebt, die Befehle aber nicht allgemeine Gesetze sind und doch als souverain nicht von ihm appellation entweder auf ein wirklich Gesetz oder überhaupt auf allgemeine Gesetzgebung erlaubt, so handelt er als despot.

Refl. 7988 XIX 574 ψ3? J 101.

Zu der maiestät des summi imperantis wird erfodert, daß er nicht unrecht thun könne, weil er sich selbst den Unterthanen gleich macht.

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Imannuel Kant Reflexões/Reflexionen

pertence a ela apenas como legislador e não como membro da comu-nidade que, por seu turno, estivesse submetido às leis. Quem inde-pende da lei em geral só pode ser um único, pois muitos (aristocratas) têm de ter um direito entre si. O monarca não pode ter nenhum poder apenas por si mesmo, a vontade do povo tem de poder opor-se a ele. Ele não deve, portanto, poder legislar.

Refl. 7986 XIX 573 1780-89? 1778-1779? 1773-1775?? J 99

A Potestas exsecutoria [poder executivo] (o soberano do Estado como regente) é o direito do mesmo a que exista um Estado segundo as leis, portanto o direito que torna um Estado conforme às leis no que diz respeito à sua organização, i.e. no sentido de organizara sua cons-tituição ou seu estado de tal modo que a cada qual (inclusive o pró-prio Estado) possa ser determinado e assegurado aquilo que é seu em conformidade com a lei; ou então aquele que tem o poder de assim dirigir e assegurar o estado da comunidade (o Estado), que ele tal como é necessário para que as leis produzam seus efeitos em relação a isso. – Potestas iudiciaria [poder judiciário] é o poder que determina o efeito conforme às leis (em vista dos membros da comunidade, uns em relação aos outros) em casos particulares que venham a ocorrer.

Portanto: 1. a substância do Estado nas leis, 2. a esta a sua causalida-de, 3. a comunidade.

Refl. 7987 XIX 573 1780-89? 1778-1779? J 100.

A legislação tem de ser extraída ex voluntate communi [da vontade comum], e não ex arbitrio qvodam privato et in favorem [do arbítrio privado e em favor de alguém].

Se o summuns imperans [governante supremo] emite uma lei univer-sal, então ele age como um soberano; se ele emite decretos, que são ordens mas não leis universais, e como soberano, no entanto, não permite que se apele a ele nem por meio de uma lei efetiva, nem por meio da legislação universal em geral, então ele age como déspota.

Refl. 7988 XIX 574 1785-88?. J 101.

Exige-se da majestade do summi imperantis [governante supremo] que ele não possa praticar injustiça, pois ele mesmo se iguala aos

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Er kann also Gesetzgeben und regiren aber nicht administriren und richten. Das erste durch minister und magistraete gouvernement, das zweyte durch magistrat und richter.

Refl. 7989 XIX 574 ψ3--4. J 102.

Im Staat muß eine einige potestas legislatoria seyn; diese muß zugleich die höchste irresistible Gewalt haben. Nun kan sie zwar aus mehreren Personen oder Theilen bestehen, die alle einen Antheil an der Gesetzgebung und Gewalt haben, aber nicht aus solchen, die zwar gesetzgebend aber nicht gewalthabend*1 seyn, weil sie sonst keinen durchs Gesetz obligiren können, indem sie nicht zugleich dabey schützen können. Es kan aber der, so die Oberste Gewalt hat,

J 103: *(g Der Staat muß einen einzigen Souverain (g Beherrscher [Selbstherrscher],

Herrscher – ist er einzeln Selbstherrscher) haben, der allein Gesetzgebend und auch allein Gewalthabend ist. Nun kann keiner den Souverain in Ansehung der Gesetze einschränken, also muß es ein Theil des Souverains seyn, der den andern einschränkt und dazu auch volle Gewalt hat. Denn wäre das nicht, so hätte dieser Theil zwar Gesetzgebendes Ansehen aber nicht eine ihm Gemäße Gewalt. Der Souverain aber, dessen Gesetzgebung eingeschränkt wird, hat nicht das Ganze Gesetzgebende Ansehen, und da ohne dasselbe und ohne das Recht auch keine Gewalt seyn kan, wür-de ihm Gesetzmäßig auch nicht alle Gewalt zukommen, d.i. er wäre kein Souverain. Wenn er nun aber ein solcher ist aber unter pactis constitutionali-bus der Einschränkung auf die Einstimmung anderer vom Volk, so hat des-sen Privilegium nicht gesetzgebendes Ansehen sondern nur das Recht der remonstration, welches kein Recht ist zu wiederstehen sondern zu implo-riren, welches kein strenges Recht ist, und vom Souverain auch genommen werden kann.

XIX575: Die Unterthanen werden selbst durch die resistentz gegen den souverain

in ihrer Sicherheit laedirt, denn diese ist der Grund ihres pacti civilis und bey dessen Veränderung seiner Gewalt, und daß er resistibel wird, sind sie nicht gesichert. Selbst ein vsurpateur, wenn er einmal alle Gewalt hat, thut zwar dem Kronprätendenten Unrecht, aber das Volk hat kein Recht zu re-sistiren, [weil es entweder alsdenn sich selbst] denn es hätte entweder alle dazu gehörige Gewalt aber ohne Abdankung des Souverains bekommen, so wären im Augenblick zwey Souveraine, oder es hätte sie nicht, so wäre kein völliger Gesetzgeber, weil die Gewalt vor dem Gesetz vorher geht.

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Imannuel Kant Reflexões/Reflexionen

súditos. Ele pode, portanto, legislar e reger, mas não administrar e julgar. O primeiro por meio de ministros e um governo de magistra-dos, o segundo por meio de magistrados e juízes.

Refl. 7989 XIX 574-575 1785-89. J 102-103

No Estado deve haver uma única potestas legislatoria [poder legisla-tivo]; esta tem de possuir ao mesmo tempo o mais alto e irresistível poder. Ela realmente pode, pois, constituir-se de várias pessoas ou partes, que possuem todas uma participação na legislação e no poder, mas não daqueles que sejam de fato legisladores, mas não dotados de poder3, pois neste caso eles não poderiam obrigar ninguém por meio da lei, já que não poderiam também proteger ninguém com a lei. Pode acontecer, no entanto, de aquele que tem o maior poder

3. O Estado tem de ter um único soberano (senhor, senhor de si, go-vernante – ele é o único senhor de si) que seja ao mesmo tempo le-gislador e dotado de poder. E ninguém pode impor limites ao sobe-rano em vista da lei, de modo que tem de ser uma parte do soberano aquela que limita a outra, e que tem também poder total para isso. Pois, se assim não fosse, essa parte teria uma aparência legislativa, mas não o poder correspondente. O soberano, porém, cuja atividade legisladora seja limitada, não tem a aparência legislativa completa, e, como sem esta e sem o direito nenhum poder pode existir, também não lhe caberia o poder completo em conformidade com a lei, i.e. ele não seria soberano. Se ele, no entanto, é um soberano, mas sob pactis constitutionalibus [pacto constitucional] de vinculação ao consenti-mento de outrem do povo, então o privilegium [privilégio] deste não tem aparência legislativa, mas apenas o direito de demonstração, que não é um direito de resistir, mas de implorar, e não é um direito em sentido estrito, podendo também ser retirado pelo soberano.

/576/ Por meio da resistência contra o soberano, os próprios súditos são lesados em sua segurança, pois esta é a base de seu pacti civilis [pacto civil] e, sendo este mudado em seu poder, e tornando-se assim resistível, eles não estão seguros. Mesmo um usurpateur [usurpador] a partir do momento em que ele possui todo o poder, mesmo come-tendo injustiça em relação ao pretendente à coroa, o povo não tem direito de resistir, porque neste caso ou bem em si mesmo pois neste caso ou bem ele teria todo o poder necessário para isso sem que o soberano tivesse renunciado, de modo que haveria no momento dois soberanos, ou bem ele não o teria e, assim, não seria inteiramente legislador, já que o poder precede a lei. (N. do A.).

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Unrecht thun, indem er sie ganz an sich reißt, aber, weil er nun das Oberhaupt der Gerechtigkeit ist, so thut jedermann unrecht, der wieder ihn Gewalt braucht. Also hat er als Staatsoberhaupt immer recht, obzwar als Mensch unrecht.

Refl. 8000 XIX 578 ψ3--4. J 117.

Armenanstalt. Hülflose Arme müssen ernährt und, wenn sie Kinder sind, gepflegt werden. Warum? weil wir Menschen und nicht Bestien sind. Dieses folgt fließt nicht aus dem Rechte der Armen als Bürger sondern aus ihren Bedürfnissen als Menschen. Nicht schuldfreye; denn da würden es wenige seyn. Wer soll sie ernähren? Es ist nicht die Frage, ob der Staat oder der Bürger, Denn wenn sie der Staat ernährt, so ernährt sie auch der Bürger, sondern nur, ob es vom freyen Willen des Bürgers oder vom Zwange abhängen soll – als Geschenk oder als Contribution (Steuer). Das letztere bringt Concurrenz der Candidaten zur Verpflegung hervor: es ist ein Modus acqvirendi und auch ein titulus der Ansprüche. Wer aber soll die Hülflosigkeit bestimmen? Der Magistrat, der seine Bürger kennt? Und der Beytrag geschieht durch collecten durch die, welche selbst hiebey am freygebigsten sind. Die Aufmunterung und Verweise im Allgemeinen durch Geistliche. Alles Privatwohlthun kann bleiben, aber es wird von Magistrat und Geistlichen ignorirt. Es sind opera supererogationis.

Refl. 8001 XIX 578-579 ψ3--4. J 117.

Es ist die Frage, ob durch einen Fonds oder durch jedesmalige Beyträge. Ein jedes Zeitalter muß seine Armen ernähren, weil sonst zuletzt derer, die genährt werden und die darin beqvemer leben, als das Zeitalter es im Stande ist, zu praestiren. Die Armuth entspringt oft aus Mangel des Fleißes oder der Sparsamkeit, und so muß auch die Austheilung unter Armen geschehen. Aus einem Fonds aber würde eine disproportion des |

XIX579 Wohllebens der Armen und der wohlhabenden entspringen. Es ist wie mit dem Getränke, welches wohlfeil gegeben wird. Es wird eben so viel als sonst verzehrt.

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Imannuel Kant Reflexões/Reflexionen

cometer uma injustiça, na medida em que busca apoderar-se de tudo, mas, uma vez que ele é agora o soberano da justiça, age injustamente quem usa o poder contra ele. Portanto, ele tem sempre razão como soberano do Estado, ainda que não a tenha como ser humano.

Refl. 8000 XIX 578 1785-89. J117.

Instituição para os pobres. Pobres desamparados têm de ser alimen-tados e, se forem crianças, têm de receber cuidado. Por quê? Porque somos seres humanos e não bestas. Isso não se segue decorre do direi-to dos pobres enquanto cidadãos, mas de suas necessidades enquanto seres humanos. Não os inocentes; pois neste caso existiriam poucos. Quem deve alimentá-los? Não se trata de perguntar se é o Estado ou os cidadãos, pois se o estado alimenta, então os cidadãos também alimentam, mas antes se deve depender da vontade livre dos cida-dãos ou da coerção – como doação ou contribuição (imposto). O úl-timo origina concorrência dos candidatos aos alimentos: é um Modus acqvirendi [modo de aquisição] e também um titulus [título] da rei-vindicação. Mas quem deve determinar o desamparo? O magistrado, que conhece seus cidadãos? E a contribuição ocorre mediante coletas feitas por aqueles que são eles próprios os mais generosos. O encora-jamento e a repreensão, em geral, pelo clérigo. Toda ação beneficente privada pode permanecer, mas será ignorada pelo Magistrado e pelos clérigos. São opera supererogationis [obras supererrogatórias].

Refl. 8001 XIX 578-579 1785-89. J117.

Coloca-se a questão se é por um fundo ou por contribuições caso a caso. Cada época tem de alimentar os seus pobres, pois do contrário no fim aqueles que são alimentados vivem mais confortavelmente do que a época pode sustentar. A pobreza se origina freqüentemente da falta de esforço ou de economia e, assim, a distribuição entre os pobres também tem de ocorrer. De um fundo se originaria, porém, uma desproporção entre a boa vida dos pobres e a opulência. É como a bebida que é distribuída a preço módico. Ela é consumida tanto quanto antes.

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Refl. 8003 XIX 579 ψ? χ? J 119.

Der summus imperans kan keine religion gebieten und verbieten, weil darüber selbst der privatwille des subditi nicht disponiren kan. Er kan auch die öffentliche Bedienungen nicht auf die Bedingung einer gewissen religion setzen (außer wenn diese einen imperantem hat, der vom summo imperio exionirt ist), denn die Unterthanen haben, wenn sie nichts verbrechen, ein recht auf Bedienungen des Staats. Man sieht, er muß nur darauf sehen, daß Gelegenheit da sey, alle Religionskentnisse zu erwerben. Allgemeiner Friede der Lehrer derselben und Anhänger und es den Unterthanen selbst überlassen oder den Wissenschaften, die Religion zu bestimmen. Der souverain mengt sich sonst in Geschäfte, die unter ihm sind.

Refl. 8037 XIX 588 ψ? χ? J 180.

Wenn eine Gesellschaft um eines beliebigen Zwekes willen Zusammen tritt, so kann sie sich nicht zu Lebensstrafen verbinden. Tritt sie aber zu dem durch die Natur nothwendigen Zwek zusammen, eine bürgerliche Gesellschaft zu stiften, so ist die obligation zu allen unter andern auch Todesstrafen nothwendig.

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Imannuel Kant Reflexões/Reflexionen

Refl. 8003 XIX 579 1780-89? 1778-79? J119.

O summus imperans [governante supremo] não pode ordenar ou proibir nenhuma religião, porque não pode dispor sobre a vonta-de privada dos subditi [súditos]. Tampouco pode colocar uma deter-minada religião como condição para os servidores públicos (exceto quando a religião possui um imperantem que é desvinculado do sum-mo imperio [governo supremo]), pois os súditos possuem, se não são criminosos, o direito de servir o estado. Observa-se que ele tem de ver nisso a oportunidade de adquirir todo conhecimento de religião. A paz universal dos professores e seguidores da religião e deixar aos próprios súditos ou às ciências determinar a religião4. Caso contrário o soberano se envolve em assuntos que lhes são inferiores.

Refl. 8037 XIX 588 1780-89? 1778-79? J 180.

Se uma sociedade se reúne em vista de um fim preferido, então ela não pode se obrigar à pena de morte. Mas, se ela se reúne em vista do fim de fundar uma sociedade civil, o que é necessário mediante a natureza, é necessária a obrigação de todos, entre outras penas, tam-bém à pena de morte.

Tradução de Bruno Nadai, Cauê Cardoso Polla, Fernando Costa Mattos, Monique Hulshof e

Nathalie de Almeida Bresciani

4. Deixamos a primeira oração sem verbo tal como está no original. (N. do T.)

RESENHA. Arte e Filosofia no Idealismo Alemão, organizado por Marco Aurélio Werle e Pedro Fernandes Galé. (São Paulo, Barcarolla, 2009)

Mario VideiraDoutor em Filosofia (FFLCH-USP)

“A arte [...] consegue para a intuição justamente aquilo que a mais alta filosofia consegue

através da especulação”1

Numa carta de 06 de janeiro de 1795, Schelling escreve a Hegel: “A filosofia ainda não chegou ao final. Kant deu os resulta-dos: faltam ainda as premissas”. E conclui: “Nós precisamos seguir adiante com a filosofia!”.

Um dos principais problemas herdados pelos filósofos pós-kantianos foi o da passagem entre filosofia teórica e filosofia prá-tica. A exigência do incondicionado, indicada por Kant no § 76 da Crítica do Juízo foi profundamente sentida pelos pensadores pós-kantianos, para os quais o problema do Absoluto se resolveria, de certa forma, no âmbito da arte.

Desde o chamado “O mais antigo programa de sistema do Idealismo Alemão” já se indicava que a unificação entre teoria e prática deveria ser efetuada através da beleza:

Por último, a Idéia que unifica tudo, a Idéia da beleza, tomada a pa-lavra em seu sentido superior, platônico. Pois estou convicto de que o ato supremo da Razão, aquele em que ela engloba todas as Idéias, é um ato estético, e que verdade e bondade só estão irmanadas na beleza. O filósofo tem de possuir tanta força estética quanto o po-eta. Os homens sem senso estético [ästhetischen Sinn] são nossos filósofos da letra. A filosofia do espírito é uma filosofia estética [...]

1. Schlegel, A. W. Die Kunstlehre. Hg. E. Lohner. Stuttgart: W. Kohlhammer, 1963, p. 72.

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Cadernos de Filosofia Alemã nº 14 – p. 147-151 – jun.-dez. 2009

A poesia adquire com isso uma dignidade superior, torna-se outra vez no fim o que era no começo – mestra da humanidade; pois não há mais filosofia, não há mais história, a arte poética sobreviverá a todas as outras ciências e artes.2

A união entre necessidade e liberdade, a passagem entre fi-losofia teórica e prática será consumada por meio da arte. Para alguns autores, a arte fornece de maneira imediata – isto é, através de uma intuição estética – aquilo que, no âmbito da teoria só pode ser concebido como uma “aproximação infinita”. No “Sistema do Idealismo Transcendental” (1800) de Schelling, o belo será consi-derado como sendo o infinito exposto finitamente [das Unenedliche endlich dargestellt]. Para ele, a intuição estética nada mais é do que a intuição intelectual que se tornou objetiva: “aquilo que para o filósofo já se divide no primeiro ato de consciência, e que é, de ou-tra forma, inacessível a qualquer intuição, resplandece através do milagre da arte, a partir de seus produtos”.3 Daí a tese, defendida por Schelling, de que a arte seria o único e verdadeiro órganon e, ao mesmo tempo, o documento da filosofia.

A partir dessas considerações pode-se perguntar: como foi possível que a arte alcançasse essa autonomia e dignidade? De que maneira a arte representa, a partir desse momento, um cam-po privilegiado para a afirmação do absoluto? Estas são algumas das questões investigadas na coletânea de ensaios intitulada “Arte e filosofia no Idealismo Alemão” que acaba de ser publicada pela Editora Barcarolla. Esse livro é resultado do colóquio internacional “Estética no Idealismo Alemão”, promovido pelo Departamento de Filosofia da USP em outubro de 2007, e reúne nove textos de importantes pesquisadores brasileiros e estrangeiros.

Como os organizadores ressaltam logo na introdução ao vo-lume, o livro não pretende ser uma apresentação sistemática de todos os temas do Idealismo Alemão. Ao invés disso, procura-se

2. Schelling, F.W.J. Obras escolhidas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1984, pp. 42-3.

3. Schelling, F. W. J. Ausgewälhte Schriften I. Frankfurt-am-Main.: Suhrkamp, 2003, p. 693.

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Mario Videira RESENHA. Arte e Filosofia no Idealismo Alemão

tratar a estética desse período “como uma questão aberta, sobre-tudo como um desafio ao pensamento e que comporta diferentes enfoques” (p. 11). Com efeito, a variedade de enfoques e temáticas dos ensaios dão uma mostra da complexidade das relações entre arte e filosofia no Idealismo, que é certamente um dos períodos mais ricos da filosofia alemã. Os ensaios concentram-se princi-palmente no exame das filosofias de Kant, Schelling e Hegel. No campo da literatura, o autor-chave é Goethe.

A temática do gênio, central para a reflexão filosófica do pe-ríodo, é examinada num ensaio do professor Ubirajara Rancan de Azevedo. Trata-se de um estudo bastante específico, que por meio do confronto com outros textos de Kant (como alguns fragmen-tos das Preleções sobre Antropologia), busca examinar a definição kantiana do gênio como “inata disposição de ânimo (ingenium) pela qual a natureza dá regra à arte”, tal como exposta no § 46 da Crítica do Juízo. A temática da experiência estética em Kant e Schiller é examinada num ensaio de Christian Hamm, que pro-cura mostrar em que pontos a concepção schilleriana difere da kantiana e como “a instauração da nova perspectiva estética im-plica alterações absolutamente essenciais em quase todos os com-ponentes da constelação original kantiana”, como por exemplo, na função sistemática do juízo (p. 72). Além disso, Hamm mostra de que maneira a interpretação (moral) da atividade estética do sujeito permite a Schiller o desenvolvimento de sua proposta de uma educação estética do homem.

A relação entre monismo e filosofia da arte em Schelling é estudada num excelente artigo de Christian Klotz, que examina a teoria da forma de representação simbólica exposta particularmen-te na parte geral das preleções sobre Filosofia da Arte (1804/05). Klotz defende a tese de que essa teoria seria uma transformação da concepção kantiana de idéia estética, motivada pelo ponto de vista monista de Schelling (p. 107). Além disso, Klotz procura mostrar de que maneira as transformações da estética kantiana levadas a cabo por Schelling, de certa forma, podem ser consideradas como uma antecipação de elementos da estética de Hegel.

O artigo de Eduardo Brandão procura traçar alguns parale-los entre as filosofias de Schelling e de Schopenhauer, a partir da

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Cadernos de Filosofia Alemã nº 14 – p. 147-151 – jun.-dez. 2009

noção de “ideia”. Segundo Brandão (p. 15), o Mundo como Vontade e Representação de Schopenhauer “repõe no interior da metafísica da Vontade o problema clássico que se arma em torno da noção de ideia e que é enfrentado por Schelling”.

A filosofia de Hegel é trabalhada nos ensaios de Javier Dominguez Hernández, de Klaus Viehweg e de Marco Aurélio Werle. O professor Klaus Viehweg examina a superação da orien-talidade e do classicismo pela arte moderna, bem como o tema do “fim da arte” na Estética de Hegel. Um ponto interessante para o qual Viehweg chama a atenção do leitor é a atualidade da filosofia de Hegel. Segundo ele (p. 159), Hegel “fixou linhas fundamentais, forneceu alicerces sobre os quais uma filosofia da arte atual pode ser construída”. O tema do caráter pretérito da arte em Hegel é examinado também no artigo de Javier Hernández. Segundo ele, a definição da arte levada a cabo por Hegel é feita a partir de sua tarefa na formação do espírito e cultura humanos. Dessa forma, a função histórica da arte na cultura moderna não seria tanto de con-teúdo, ou seja, “não se trata de uma formação substancial (substan-tielle Bildung), mas sim de uma formação formal (formelle Bildung)” (p. 84). Tal como Viehweg, também Hernández critica uma inter-pretação classicista da estética de Hegel, que impede que se perceba “a atualidade de suas exposições” (p. 90). O artigo de Marco Aurélio Werle explora o tema da subjetividade artística em Goethe e Hegel. Partindo de uma análise do final da primeira parte dos Cursos de Estética (mais especificamente, do subcapítulo sobre o artista), Werle defende que Hegel dialoga com Goethe e o toma como referência central em sua argumentação, de modo que Goethe seria, de certa forma, o protótipo da subjetividade para Hegel. Segundo Werle, “Goethe se apresenta, para Hegel, como um exemplo acabado da única possibilidade que resta para a arte na época moderna: seguir a via da interioridade subjetiva e reflexiva, priorizar os desdobramen-tos autônomos do sujeito em suas manifestações” (p. 188).

Se Werle examina principalmente exemplos da produção lírica de Goethe nesse confronto com a estética de Hegel, o pro-fessor Vinícius de Figueiredo analisa o romance Os sofrimentos do jovem Werther, procurando assinalar um ponto de contato entre essa obra e a primeira Crítica de Kant. Segundo ele, “tanto Goethe

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Mario Videira RESENHA. Arte e Filosofia no Idealismo Alemão

quanto Kant edificam um modelo de crítica da positividade, que se legitima pelas prerrogativas literárias e especulativas atribuídas à indeterminação – seja do narrador, como no caso do Werther, seja da atividade reflexiva, como no caso da Terceira Seção da Analítica Transcendental da Crítica da Razão Pura” (p. 39).

Também o artigo escrito por Franklin de Matos está voltado para uma análise do Werther. Mas aqui, o foco está mais no exame da forma literária adotada por Goethe, a saber: o romance epistolar, tão em voga no século XVIII. Matos compara as soluções adotadas por Goethe com aquelas adotadas por autores como Montesquieu, Rousseau e Laclos, e mostra de que maneira a forma do romance epistolar seria a fórmula romanesca que mais se aproxima do dra-ma – pois, excetuando-se os prefácios, advertências ou notas de um editor fictício, são os próprios personagens que tomam a palavra. Por meio de uma análise exemplar, concisa e elegante, Franklin de Matos aponta a “notável destreza” de Goethe ao lidar com “as faces lírica e narrativa do gênero epistolar” (p. 147).

Através deste breve resumo da temática trabalhada em cada um dos capítulos, pode-se notar que os mesmos constituem uma contribuição valiosa para a compreensão de aspectos relevantes desse período decisivo da filosofia alemã. Embora o nível de de-talhamento de alguns dos ensaios possa torná-los potencialmen-te mais úteis para os especialistas na área, parece-nos que o livro como um todo também pode ser de grande interesse para um pú-blico mais amplo, especialmente no que diz respeito ao exame das conexões entre a filosofia e a literatura.

Bibliografia

SCHELLING, F.W.J. Obras escolhidas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

_____. Ausgewälhte Schriften I. Frankfurt-am-Main: Suhrkamp, 2003.SCHLEGEL, A. W. Die Kunstlehre. Hg. E. Lohner. Stuttgart: W.

Kohlhammer, 1963, p. 72.

RESENHA. Viagem de um alemão à Itália, de Karl Philipp Moritz. Tradução, introdução

e notas de Oliver Tolle. (São Paulo, Humanitas – Imprensa Oficial, 2008)

Uma Itália em alemão

Luís F. S. NascimentoProfessor do Departamento de Filosofia da UFSCar

Publicado entre os anos de 1792 e 1793, a Viagem de um alemão à Itália de Karl Philipp Moritz ganhou recentemente uma bela versão em português, feita por Oliver Tolle. Se não informa tudo, o título deste vo-lume diz algo importante acerca de seu conteúdo e do modo como ele é apresentado: estamos diante da obra de alguém que, desde o início, assu-me a posição de um estrangeiro. Sabemos que Moritz não é o primeiro nem o último que se encanta por esse lugar: Shaftesbury, Winckelmann, Herder, Goethe1, Nietzsche e tantos outros, a lista de artistas, eruditos e literatos “estrangeiros” que viveram, escreveram ou refletiram sobre a Itália parece infinita. Por que, podemos sempre nos perguntar? Qual é o motivo desse encanto? O que tem o solo italiano que tanto fascina e faz com que os habitantes de outros países se interessem por ele? Sua beleza, ou antes, a beleza que ele nos permite vislumbrar, respondemos de pronto. Se é assim, então em que medida a visão da beleza da Itália que Moritz pretende nos apresentar já pressupõe o fato de ela ser con-templada por um olhar estrangeiro?

Escrito em uma forma que lembra a do diário, o livro é composto de várias notas que por vezes registram a data em que foram compostas. Na expressão do tradutor da edição brasileira, são fragmentos organi-zados por rubricas, tais como Pérsio, Os arabescos na loggia de Rafael, Alegoria, Michelangelo etc. Em uma dessas partes de seu livro, denomi-nada O belo é uma língua mais elevada, Moritz nos diz o seguinte:

1. Vale lembrar, como faz o tradutor da versão brasileira, que Moritz conheceu Goethe e Herder na Itália.

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Cadernos de Filosofia Alemã nº 14 – p. 153-156 – jun.-dez. 2009

Onde a harmonia do todo recebeu um nome, ali foi desvelado o belo; o nome podia ser Apolo, Júpiter ou Minerva; o belo podia elevar-se suavemente na coluna coríntia ou causar a impressão de resistir, com força rochosa, à pressão do alto na coluna dórica; ele podia se revelar na constituição delicada dos membros da beleza feminina mais elevada ou no peito e nas costas de um Hércules. (p. 160, destaques nossos)

Todas as vezes em que uma certa variedade de elementos se apresenta como sendo uma unidade, onde quer que se ofereça “nos objetos mais diversos um ponto de vista principal para o todo” (p. 187), há aí o que Moritz chama de belo. A beleza pode se mani-festar de modos distintos e ganhar vários nomes: Apolo, Júpiter, Minerva ou Hércules são exemplos desses lugares ou momentos nos quais a beleza “se desvela”, como dizia Moritz no trecho acima citado. Cada um deles pode ser dito belo na medida em que são totalidades nas quais as partes formam um único e mesmo todo – uma “multiplicidade na unidade” (p. 10). Pois bem, se é verdade que o nome Itália é ele mesmo uma totalidade que unifica um certo número de elementos diversos, se podemos conferir ao solo italiano o atributo belo, então é lícito perguntar: como pensar a multiplicidade que esse nome (Itália) encerra? O que nos levaria a uma segunda indagação: qual seria o “ponto de vista” que possibi-litaria a visão da união das partes que formam esse todo?

Com relação à primeira questão, podemos dizer que de um modo geral o livro de Moritz nos apresenta três “Itálias” que se complementam e formam uma só: a antiga, a renascentista e a do final do século XVIII. Por todo o seu texto vemos aproximações e diferenças entre um passado longínquo, um outro mais recente e o presente. Se em alguns momentos Moritz afirma não haver da Antiguidade “mais nenhum vestígio” (p. 103), em outros nos lem-bra que a Roma antiga vive em provérbios repetidos por italianos setecentistas, tais como “ ‘Il Romano non é vinto, se non é sepolto’, ‘o romano só é sobrepujado pelo túmulo’” (p. 194) ou quando as mulheres dessa cidade dizem: “ ‘Io sono Romana!’” e, assim, “tal como as antigas romanas, elas conservam a sua cabeça erguida” (p. 219). Muitas coisas mudaram na Itália ao longo dos séculos, mas essa mudança que brota de suas ruínas continua a expressar,

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Luís F. S. Nascimento Viagem de um alemão à Itália

a partir de diferentes nomes, a mesma unidade: Marcial, Rafael, Michelangelo, Ticiano, assim como a descrição das cidades, ruas e costumes de outrora e de hoje podem ser vistos como dife-rentes imagens ou partes de uma mesma beleza chamada Itália. Entender essa dinâmica que liga em um todo elementos distintos e, sob certos aspectos, opostos, é condição sem a qual não se pode compreender o que torna esse país belo:

Das ruínas brotou a figueira selvagem e, por meio do seu crescimen-to ininterrupto, ela separa uns dos outros os encaixas mais firmes. Mas mesmo com esse crescimento a vista das ruínas é pictórica e bela – e constitui o mais encantador contraste ver brotar o verde mais jovem das pedras modernas e das fendas da muralha caída, lançando suas sombras sobre esses restos veneráveis da Antiguidade; e o pintor de paisagens encontra aqui sempre uma colheita rica, pois vê unificado na natureza aquilo que a imaginação mais viva não poderia reunir de modo tão romântico. (p. 137, grifo nosso).

A questão agora é: o que é preciso para que se chegue a esse olhar? O que temos de fazer para ascender a essa posição capaz de ver a mais harmônica das combinações em um conjunto tão díspar de elementos, tal como uma paisagem que reúne antigui-dade e modernidade, arte, imaginação e natureza? Um trecho no qual Moritz comenta a beleza do trabalho de Ticiano é bastante esclarecedor a esse respeito:

Para considerar, contudo, uma pintura de Ticiano em sua beleza, o olho deve primeiro se acostumar a ser inteiramente olho, a se com-portar com passividade, a não espreitar e não investigar demasiada-mente, mas permitir que a impressão do todo atua gradualmente sobre si, a fim de que se procure o belo, que está aqui imediatamente diante dos olhos, não muito longe da fantasia ou mesmo do pensa-mento./ Para cada obra autêntica deve-se despertar primeiro uma espécie de sentido mais alto, e certamente é falso afirmar que é uma prova do belo autêntico agradar tanto à massa ignara quanto ao especialista, mostrando o seu efeito logo ao primeiro olhar. (p. 35, grifo nosso)

Há algo de paradoxal no trecho acima e que, por sua vez, mos-tra a complexa atividade do modo como Moritz pensa a contem-plação da beleza. Se, desde o primeiro momento, a totalidade do

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Cadernos de Filosofia Alemã nº 14 – p. 153-156 – jun.-dez. 2009

objeto belo está dada diante dos olhos, isso não exclui um trabalho ou atividade que busca acomodar o olhar àquilo que ele julga. Nesse sentido, a tarefa é a de procurar ou desvendar o que já é evidente, o que significa aprofundar-se no conhecimento das relações que fa-zem do belo uma evidência. Em outras palavras: o olho não deve passar a ver outra coisa quando investiga o objeto que tomou como belo, ele apenas o vê melhor à medida que se acostuma a ser olho e se acomoda ou se familiariza à beleza que contempla:

O colorido de Ticiano não surpreende propriamente, mas exerce muito mais uma atração suave – e apenas quando contemplado com maior demora descobre-se a riqueza e a diversidade infinita no simples. (p. 35, grifo nosso)

Talvez encontremos aqui o ponto de vista pelo qual seria pos-sível desvendar alguns dos infinitos elementos que tornam a Itália tão simples e interessante quanto bela aos olhos de um Moritz: trata-se daquela visão que identifica na beleza de seu objeto uma atração suave que não a surpreende por completo, mas que ainda assim a fascina, pois sabe que há ali segredos a serem desvendados e, nesse sentido, alguma estranheza capaz de manter sua atenção. Daí a importância de se ater às diferenças e às diversidades: elas confirmam e enriquecem a unidade. É curioso notar como em alguns momentos dessa obra a multiplicidade de aspectos a partir dos quais Moritz apresenta a sua Itália acaba por compreender a Alemanha. Ao comparar provérbios italianos com ditos alemães, quando estabelece relações entre os modos de pensar e falar dos dois povos, o autor põe lado a lado o olho e o seu objeto: nesse ins-tante, o seu ponto de vista estrangeiro e a paisagem italiana que ele admira são elementos complementares. Por certo, as estranhezas e as diferenças entre esses dois pólos persistem, mas já temos aqui alguma unidade, o suficiente para que se possa descrever, julgar ou apresentar (darstellen) uma Itália em alemão.

Lançamentos Da teoria à liberdade: a questão da objetividade em Kant, de Fernando Costa Mattos. São Paulo, AM Editora, 2009.

Dossiê Nietzsche, de Daniel Rodrigues Aurélio. São Paulo, Digerati, 2009.

O Jovem Hegel: Formação de um sistema pós-kantiano, de Joãozinho Beckenkamp. São Paulo, Edições Loyola, 2009.

O jovem Nietzsche e a história: como ser intempestivo e duelar com o seu tem-po, de Helio Sochodolak. São Paulo, Annablume, 2009.

Marx: Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica, de José Chasin. São Paulo, Boitempo Editorial, 2009.

Moralidade e educação em Immanuel Kant, de Claudio Almir Dalbosco. Ijuí, Unijuí, 2009.

Nietzsche, um francês entre franceses, de Scarlett Marton. São Paulo, Editora Barcarolla, 2009.

Traduções

Deplatzierungen: Aufsätze zur Ästhetik und kritischen Theorie, de Rodrigo Duarte. Tradução de Christoph Türcke. Weimar, Max Stein Verlag, 2009.

Os deuses no exílio, de Heinrich Heine. Tradução e organização de Marcio Suzuki e Marta Kawano. São Paulo, Iluminuras, 2009.

Historia da filosofia - de Tomas de Aquino a Kant, de Martin Heidegger. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis, Vozes, 2009.

A idéia do bem em Platão e Aristóteles, de Hans-Georg Gadamer. Tradução deTito Livio Cruz Romão. São Paulo, Martins Fontes, 2009.

Introdução à filosofia, de Martin Heidegger. Tradução de Marco Antonio Casanova. São Paulo, Martins Fontes, 2008.

Lógica - a pergunta pela essência da linguagem, de Martin Heidegger. Tradução de Irene Borges Duarte. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.

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Cadernos de Filosofia Alemã nº 14 – p. 157-158 – jun.-dez. 2009

Marcas do caminho, de Martin Heidegger. Tradução de Enio Paulo Giaghini, Ernildo Stein e Marco Antonio Casanova. Petrópolis, Vozes, 2008.

Nietzsche asceta, de Mauro Araújo de Sousa. Ijuí, Unijuí, 2009.Nietzsche e o pós-modernismo, de Dave Robinson. Tradução de Fernanda Gurgel. Rio de Janeiro, Pazulin Editora, 2009.Nietzsche – O Rebelde Aristocrata: Biografia intelectual e balanço crítico, de Domenico Losurdo. Tradução de Jaime A. Clasen. Rio de Janeiro, Revan, 2009.

O único e sua propriedade, de Max Stirner. Tradução de João Barrento. São Paulo, Martins, 2009.

Summary

Editorial 9

Articles

Mining for Gold: Using Kant’s Nachlaß and Lectures as a Source for Political Philosophy 11Frederick Rauscher

On the threshold of the world: Heidegger on the difference between animals and human beings 31Fernando Rodrigues

Intersubjectivism versus subjectivism? Some reflexions on the Habermas-Henrich controversy in view of “Twelve theses against Jürgen Habermas” 55Fernando Costa Mattos

Traslation

What is metaphysics? What is modernity? Twelve theses against Jürgen Habermas, Dieter Henrich 83Translated into Portuguese by Fernando Costa Mattos

Reflections, Imannuel KantPresented and translated into Portuguese by Bruno nadai, Cauê Cardoso Polla, Fernando Costa Mattos, Monique HulsHoF and natHalie de alMeida BresCiani 119

Reviews

Arte e Filosofia no Idealismo Alemão (Art and Philosophy in German Idealism), organized by Marco Aurélio Werle and Pedro Fernandes Galé 147Mario Videira

Viagem de um alemão à Itália ( Journeys of a German in Italy), Karl Philipp Moritz 153Luís Fernando dos Santos Nascimento

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Cadernos de Filosofia Alemã nº 14 – p. 159-160 – jun.-dez. 2009

Releases 157

Summary 159

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