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Cadernos de Ciência & Conservação - Teoria e Contexto - v.1 n.1, jan.2014

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Cadernos de Ciência & Conservação- Teoria e Contexto -

v.1 n.1, jan.2014

CADERNOS DE CIÊNCIA & CONSERVAÇÃO

- Teoria e Contexto -

v.1 n.1, jan.2014

Yacy-Ara Froner

(organização)

© 2014 Centro de Conservação e Restauração; Programa de Pós-Graduação em Artes - EBA-UFMG.

Todos os direitos reservados, nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem citação da fonte e créditos devidos.

O conteúdo e a redação dos artigos é de responsabilidade de seus autores.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Biblioteca da Escola de Belas Artes da UFMG, MG, Brasil)

FRONER, Yacy-Ara org.Cadernos de Ciência & Conservação - Teoria e Contexto. (v1, n.1. : 2014 : Belo Horizonte)

Cadernos de Ciência & Conservação - Teoria e Contexto . Belo Horizonte, jan. de 2014. - Belo Horizonte: PPGA-EBA-UFMG, 2013- 333p. : il. Inclui Bibliografia ISSN

1. Artes, 2. Conservação-Restauração. I. Universidade Federal de Minas Gerais. Escola de Belas Artes. II. Organizador III. Título IV.Série

CDD: 700 CDU: 7

Cadernos de Ciência & Conservação - Teoria e Contexto

Universidade Federal de Minas Gerais

Reitor: Jayme Arturo Ramiíre

Pro-Reitor de Pós-Graduação: Rodrigo Antônio de Paiva Duarte

Escola de Belas Artes

Diretora da Escola de Belas Artes: Maria Beatriz Mendonça

Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Artes: Mariana de Lima e Muniz

Centro de Conservação e Restauração

Diretora do CECOR: Bethânia Reis Veloso

Editora: Yacy-Ara Froner

Comitê científico

Alessandra Rosado

Luiz Antônio Cruz Souza

Willi de Barros Gonçalves

Yacy-Ara Froner Gonçalves

Projeto gráfico: Daniel Monteiro

Realização

Grupo de Pesquisa ARCHE

Grupo de Pesquisa LACICOR

www.eba.ufmg.br/sppgrad

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EditorialO Centro de Conservação e Restauração da EBA-UFMG é uma das mais importantes intituições na área de Conservação-Restauração no Brasil, desenvolvendo desde 1978 importantes pesquisas e trabalhos de referência nesse campo de conhecimento.

A Escola de Belas Artes, ao longo de sua existência, por meio dos programas de graduação e pós-graduação lato sensu e strictu sensu, tem formado inúmeros especialistas, pesquisadores e profissionais na área.

Com o intuito de reforçar a presença desse campo de estudo na UFMG, a proposta de realização de seminários direcionados à projeção das pesquisas científicas na área considera tanto a trajetória do Centro, quanto a formação dos grupos de pesquisa LACICOR – Laboratório de Ciência da Conservação – e ARCHE – Arte, Conservação & História –, ambos nascido sob a égide do programa de Pós-Graduação em Artes – área de concentração em Arte e Tecnologia da Imagem.

A Coletânea Ciadernos de Cência & Conservação pretende, assim, apresentar o conjunto das discussões epistemológicas e históricas que foram debatidas durante esses encontros

Nesta publicação, o campo específico da Conservação-Restauração foi pensado no contexto mais amplo da Ciência, reunindo cientistas, arquitetos, curadores, historiadores de arte, conservadores e restauradores.

A realização dos seminários ocorrem por meio da parceria entre o CECOR – Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis - o LACICOR e o Grupo de Pesquisa ARCHE.

Esperamos, ao longo desta série, contribuir para a consolidação da área de pesquisa da Ciência da Conservação e dar maior visibilidade às ações institucionais.

Dra. Yacy-Ara Froner

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SumárioPrimeira Parte:

CiênCia, TeCnologia e episTemologia

Yacy-Ara Froner - Conservação e restauração: a legitimação da Ciência (09)

Marcus Granato - Teorias da conservação e desafios para acervos científicos (22)

Marilene Correa Maia - Conhecimento científico e restauração: entre análise e mé-todo (38)

Willi de Barros Gonçalves - Arquitetura Contemporânea de museu como espetá-culo: roteiro e atores no cenário da indústria cultural (44)

André Luiz Guedes Martins - A Contribuição da Ciência e Tecnologia à Teoria da Conservação (67)

Ana Paula Silva - Análise de conteúdo e análise de citação: uma metodologia possível para o estudo do patrimônio cultural (79)

Tatiana Duarte Penna - O que nos falta? (98)

Mariana Souza Bracarense - O antipolítico e as políticas de preservação no Brasil (107)

Aloisio Arnaldo Nunes De Castro - Da Arte da Restauração à Ciência da Conservação: a construção histórica e deontológica do profissional voltado à acervos em papel (119)

Segunda Parte:História da Arte Técnica, Arqueologia e Arquitetura

Flávio Carsalade - Teoria e contexto na preservação da Arquitetura (136)

Alessandra Rosado - História da Arte Técnica: uma contribuição no processo de autenticação de obras de arte (153)

Ana Cecilia Nascimento Rocha Veiga - Museus: Conceitos e Reflexões (167)

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Thiago Pinho Botelho e Fábio Donatio - A Pintura de Retrato no Brasil: estu-do de caso de uma obra de Édouard Vienot e François Henri Morisset (184)

Ana Martins Panisset - A Documentação como Ferramenta de Preservação (199)

Ana Carolina Motta, Gerusa A. Radicchi, Giulia Giovani, Marcella Oliveira, Thais Venuto - Paisagem em Branco: protocolos de gestão em conservação (209)

Fabio das Neves Donadio - O uso de novos materiais sobre edificações históricas de terra crua (216)

Valessa Costa Soares - Memorial Minas Gerais (232)

Mônica Elisque do Carmo - Trilhos e memória – preservação do acervo documental do patrimônio ferroviário (243)

Terceira Parte:Arte Contemporânea e Novas Tecnologias

Magali Melleu Sehn - O papel da documentação no contexto da presrvação da arte contemporânea (256)

Carlos Falci - Memórias culturais em construção: novas formas de memória em ambientes programáveis (263)

Anamaria Ruegger - Arte, tecnologia e memória: anastilose informática (272)

Gabriel Mallard - Arte/subjetividade – Ciência/Preservação (287)

Hélio Alvarenga - Hipótese da dupla substituição / duplo registro em um museu-limite (297)

Gabriela de Lima Gomes - Reconhecer o risco - estratégia utilizada no arquivo fotográfico da Rádio Nacional (312)

Arethusa Almeida De Paula - Acervo de Artista: a narrativa de uma memória escondida (324)

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Ciência, Tecnologia e Epistemologia

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Conservação e restauração: a legitimação da Ciência

Yacy-Ara FronerPPGA-EBA-Universidade Federal de Minas Gerais

Resumo

O estabelecimento de uma área que comporte projetos em Conservação/Restauração e Conservação Preventiva é fundamental para o acesso desse campo de conhecimento às instâncias promotoras da pesquisa no Brasil. Sua legitimidade perpassa pela formação em diversos níveis – graduação e pós-graduação –, fortalecimento das associações, divulgação dos estudos por meio de eventos e publicações e a diversificação dos agentes, considerando a interdisciplinaridade e multidisciplinaridade desse campo de estudos. Esse artigo aborda a mudança do paradigma do profissional da área na última década, considerando a necessidade de expansão do ensino, da pesquisa e da extensão e a demanda de uma maior visibilidade social. A prática científica é sedimentada em determinados critérios, necessários ao estabelecimento de competências, ao ingresso tecnológico, à disseminação do conhecimento e acesso aos recursos destinados à pesquisa científica no país. A face do profissional do século XXI começa a ser estruturada nesta década, compreendê-la é indispensável à nossa atuação.

Palavras-chave: Ciência, Conservação Preventiva, Conservação/Restauração

Abstract

The establishment of Conservation/Restoration and Preventive Conservation as a scientific area is fundamental to access researches institutes in Brazil. Its authority requires preparation at various levels – undergraduate and graduate –, stronger associations, dissemination of studies through events and publications and the diversification of agents, basis on interdisciplinary and multidisciplinary studies. This article discusses professional’s model changing in the last decade, considering education expansion, research and extension grow and its demand of social visibility. The scientific practice is made upon specific models, whose are necessary for the establishment of technological skills, knowledge’s dissemination and its access to resources for scientific research in the country. The face of XXI century professional begins to be structured in this decade, and we must understand what it means for our action.

Key words: Science, Preventive Conservation, Conservation/Restore

Introdução

No ano de 2010, a CAPES realizou sua avaliação trienal dos cursos de Pós-graduação no país. Centenas de programas por todo o Brasil, nas diversas áreas de conhecimento, foram submetidos à mais criteriosa análise

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em relação à sua produção de conhecimento, extroversão, formação e inovação científica. Há 40 anos, havia perspectiva de desenvolvimento da pós-graduação no Brasil diferente da que existe hoje. O país já ganhou respeito no exterior na área da produção científica, afirmou o presidente da CAPES Jorge Guimarães durante a sessão que apresentou estes dados ao MEC. “O Brasil está em 13º lugar no ranking da produção científica mundial. A expectativa é alcançar a 9ª ou a 10ª posição nos próximos anos”1. Na comparação entre a avaliação trienal de 2010 e a anterior, 19% dos cursos conseguiram aumento nas notas e 71% a mantiveram; o número de alunos que receberam títulos de mestre e doutor chegou a cento e trinta e nove mil e o total de publicações científicas foi de trezentos mil entre 2007 e 2010.

Hoje, ocupamos a 13ª posição no ranking internacional em produtividade de pesquisa, fato destacado por inúmeros editoriais e estudos publicados em revistas, fóruns e organismos internacionais. Desde a abertura democrática, o investimento em infraestrutura, a contratação de pessoal e a qualificação nas universidades e centros de pesquisa possibilitou que o Brasil saltasse do 37º lugar para a posição atual, além disso, ferramentas e dispositivos sérios de avaliação qualitativa e quantitativa orientados à ascensão de carreiras de magistério e de pesquisa impulsionando a produtividade científica no país.

Ciência da Conservação: a base prática e a base acadêmica do conhecimento

Bem, o que estas questões têm a ver com a área de Conservação- Restauração? Cada um de nós, de uma maneira ou de outra, presta serviços aos órgãos públicos ou é vinculado à arquivos, bibliotecas, museus, universidades ou outras instituições governamentais. Somos, como conservadores e restauradores, cada vez mais cobrados em relação ao nosso nível de qualificação, formação e experiência. Em inúmeros editais, sem um técnico especializado as empresas particulares não podem concorrer à licitação. Em inúmeros concursos públicos, um dos critérios de avaliação é a análise de currículo, o que inclui a apreciação não apenas da produção técnica, mas também da formação e da produção intelectual contemplada por meio de publicações, apresentação em fóruns especializados –

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seminários, congressos, colóquios –, produção e gestão de pesquisas, bem como a atuação em cursos, workshops etc. Estas cobranças asseguram às instituições um profissional capaz de desenvolver propostas direcionadas às redes de fomento, como as Fundações de Amparo à Pesquisa estaduais – FAPESP, FAPERJ, FAPEMIG etc. –, instituições federais – CNPQ, CAPES, MINC, FUNARTE etc. – ou editais desenvolvidos por empresas particulares a partir de leis de incentivo fiscal, bem como a contratação de um conservador/restaurador com perfil de pesquisador e produtor de conhecimento.

O que isso significa? O modelo do profissional da conservação-restauração modificou-se de uma maneira contundente. Não se fala mais de “receitas de bolo” direcionadas à limpeza, consolidação e apresentação estética das obras. Hoje, o profissional deve questionar o desempenho dos procedimentos caso a caso e ajustar percentuais, materiais e metodologias conforme a complexidade do trabalho; esse mesmo profissional deve dialogar de maneira sistemática com profissionais de outras áreas e, por meio da interdisciplinaridade, encontrar mecanismos cada vez mais seguros para sua prática; tem por princípio de formação a compreensão dos paradigmas conceituais que validam a área e suas transformações no campo da teoria do conhecimento. Não basta mais citar Camille Boito2, Brandi3, ou May Cassar4 como personagens deslocados de uma linha de pensamento, nem tampouco as Cartas Patrimoniais ou a Legislação voltada à Proteção do Patrimônio Cultural como fundamentos superficiais. É imprescindível o domínio da epistemologia, saber o lugar do qual emerge o campo teórico do conhecimento científico que sustenta as bases da Ciência da Conservação.

É preciso que cada vez mais nós compreendamos nossa inserção em um universo de trabalho ampliado, para além do atelier ou laboratório, mas potencializado por uma vasta rede de produção de pesquisa, conhecimento, ensino e extensão: a Ciência.

De simples oficiais mecânicos, técnicos subalternos ou mão de obra, passamos a assumir o papel de pensadores, pesquisadores, intelectuais e cientistas. Não é arrogância intelectual ou distanciamento do nosso foco de ação, mas a percepção de que cada vez mais é necessária uma mudança de postura e hábitos, principalmente em uma sociedade altamente tecnológica, instrumentalizada por redes de disseminação de informação

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e que demanda a visibilidade de nossas ações. Todo e qualquer trabalho de conservação e restauro sofre a pressão desta visibilidade: expostos aos olhos críticos da sociedade, nossas ações devem ser amplamente amparadas pelos sistemas de conhecimento, pelas instâncias normativas e pelos fóruns institucionais.

Quantos conservadores/restauradores efetivamente expõem em espaços de extroversão – congressos, simpósios, seminários – os resultados das pesquisas e das práticas desenvolvidas em ateliês e laboratórios? Quantos publicam em periódicos científicos e acadêmicos? Quantos participam de fóruns com competência e visibilidade na área? A invisibilidade da prática a torna invisível para a sociedade. A incapacidade de atuar conjuntamente, por meio de associações reconhecidas, torna o campo de saber incapaz de se instalar em um sistema de forças estruturado.

Bourdieu (1996) define esse campo de forças por meio da compreensão da atividade intelectual construída a partir da elaboração de uma lógica específica, a partir dos sistemas de elaboração e de reprodução social, expressos nos princípios ideológicos e científicos desenvolvidos no campo de atuação, formação e pesquisa. Ele aponta que o espaço social intelectual é um espaço de lutas, disputas e divergências construído através da disposição dos agentes em dados espaços sociais e em tempos distintos.

A área de Conservação-Restauração, compreendida por meio de categorias sociológicas de análise, pode ser examinada a partir das noções de espaço social, espaço simbólico e hierarquia, tornando-se sistemas reconhecidos pela comunidade científica. O desenvolvimento e a evolução desses discursos determinam os princípios geradores de práticas distintas e distintivas, expressões de opiniões semelhantes e diferentes, constituindo uma rede de trocas de capital simbólico.

Lembrar a dimensão social das estratégias científicas não é reduzir as demonstrações científicas a simples exibicionismos retóricos; invocar o papel simbólico como arma e alvo de lutas científicas não é transformar a busca do ganho simbólico na finalidade ou na razão de ser únicas das condutas científicas; expor a lógica agnóstica de funcionamento do campo científico não é ignorar que a concorrência não exclui a complementaridade ou a cooperação e que, sob certas condições, da concorrência e da competição é que podem surgir os controles e os interesses de conhecimento que a

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visão ingênua registra sem se perguntar pelas condições sociais de sua gênese5.

Cada vez mais, práticas e políticas de preservação de acervos demandam uma ação integrada entre pesquisadores de diversas áreas. Nesse sistema, a interdisciplinaridade promove a excelência em todos os níveis, tanto no estudo dos bens culturais e sua contextualização cultural extraindo dele, portanto, as informações necessárias à sua compreensão, quanto em relação à sua integridade física a partir de intervenções subsidiadas por um conhecimento profundo das interações físico-químicas da matéria e do ambiente circundante. Com a introdução de uma metodologia científica oriunda de outros campos de conhecimento, os avanços técnicos e os protocolos de preservação de acervos científicos e artísticos tornam-se cada vez mais determinantes para manutenção da qualidade das pesquisas. Nesse sentido, do planejamento à coleta; do processamento ao estudo laboratorial; da armazenagem à exposição, o campo da conservação também se torna cada vez mais especializado.

Partindo desses princípios, qualquer projeto de Conservação-Restauração e Conservação Preventiva demanda bases metodológicas que sustentem as ações relacionadas às intervenções. Parte da premissa que é indispensável uma pesquisa em torno de publicações que discutam os modelos científicos para o uso de determinados solventes, adesivos, consolidantes e materiais de preenchimento e reintegração cromática, bem como estudos específicos relacionados aos protocolos de processamento, critérios de armazenamento e exposição. O arcabouço metodológico, teórico e conceitual é o aparelhamento normativo, cognitivo e tecnológico necessário à construção de uma práxis respaldada na pesquisa científica.

A demanda por um profissional qualificado por cursos de formação na área – tanto ao nível de graduação quanto em pós-graduação – promove a alteração do perfil profissional no país. Não basta mais a experiência adquirida no atelier ou cursos de formação de curta duração, é indispensável uma formação sustentada pela construção de uma carreira sólida, sedimentada na práxis e na pesquisa, no aprimoramento e na capacidade de extroversão e interlocução.

Essas mudanças vêm sendo sentidas paulatinamente: no Brasil, na entrada do século XXI pouco mais de cinco pesquisadores da área possuíam pós-

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graduação ao nível de doutoramento e os poucos especialistas lato sensu eram formados pelo CECOR – Centro de Conservação e Restauração - da Escola de Belas Artes da UFMG, pelo CECRE – Centro de Conservação e Restauração – da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFBA, ou por cursos no exterior; hoje há mais de setenta pesquisadores cadastrados na Plataforma Lattes do CNPq atuando no campo da preservação com formação em diversas áreas, incluindo Antropologia, Arqueologia, Arquitetura, Arquivologia, Artes Visuais, Educação, Etnologia, Engenharia, Turismo, História, Química, entre outras; cursos de formação em graduação específica foram abertos e vários programas de pós-graduação têm proposto linhas de pesquisa nesta área de conhecimento, além de aceitar projetos de pesquisa relacionados à preservação, conservação e restauração, tanto ao nível de mestrado como doutorado.

A base de formação de especialistas gestada no CECOR-EBA-UFMG (1980) e CECRE-UFBA (1981) possibilitou a diversificação de linhas de pesquisas nos programas de pós-graduação strictu-sensu das instituições de origem desses centros – como a área de concentração em “Conservação e Restauro” do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU-UFBA, com mestrado implantado em 1983 e doutorado em 2000; e a linha de pesquisa em “Criação, Crítica e Preservação da Imagem” do Programa de Pós-Graduação em Artes da EBA-UFMG, com mestrado iniciado em 1998 e o doutorado em 2006 – bem como a introdução de programas específicos, como o Mestrado Profissionalizante do CECRE (2009), dirigidos à construção de pesquisas acadêmico-científicas na área.

Além dos programas específicos, a abertura do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio do Centro de Ciências Humanas e Sociais da UFRJ/UNIRIO/MAST possibilitou um olhar ampliado sobre as práticas museológicas e a gestão patrimonial. Implantado em 2006, este curso tem proporcionado o desenvolvimento de pesquisas na área, entendendo o Patrimônio como um conceito polissêmico e a Museologia como disciplina científica. Por sua vez, inúmeros Programas de Pós-Graduação em Arquitetura, Química, Ciência da Informação, Física e Engenharia têm admitido pesquisas relacionadas ao desempenho de materiais, modelos computacionais de gestão ambiental e sistemas de avaliação estrutural, tanto para bens culturais móveis, quanto bens culturais imóveis.

Nesse mesmo caminho, a Especialização em Patrimônio Arquitetônico,

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oferecida pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, desde 1998 promove pesquisas sobre as bases epistemológicas e estudos dirigidos na área. O Curso de Especialização em Gestão do Patrimônio Histórico e Cultural implantado em 2010 pela UFMG, também responde pela demanda de formação especializada instaurada na última década, junto com os cursos de Especialização em Patrimônio Arqueológico da Amazônia da UFPA (2010), Especialização em Patrimônio Cultural em Centros Urbanos da UFRGS (2003) e o Programa de Especialização em Patrimônio do IPHAN (2000).

Nos últimos anos, cursos de graduação tecnológica foram abertos em todo o país, como o Curso Superior de Tecnologia em Conservação e Restauro do Instituto Federal Minas Gerais, em Ouro Preto (2008), o Curso Superior de Tecnologia em Conservação de Bens Culturais da UNIEURO, em Brasília (2008), e o Curso de Conservação e Restauro do ICH/UFPEL, em Pelotas (2009). Se a graduação tecnológica tem gerado controvérsias, a integralização desses cursos por volta de três anos determina a busca de uma formação sólida e direcionada, definida pela interface do lócus da universidade. Apesar do posicionamento equivocado da ANPUH, desqualificando o caráter científico e a demanda de uma formação qualificada na área, felizmente a Secretaria de Educação Superior do Ministério da Educação e a CAPES têm apoiado os programas instalados, compreendendo a diversidade nos formatos, a idiossincrasia e as especificidades da área6. Algumas correntes da área de História – na qual eu sou formada – alheias às transformações conceituais nos modelos de produção de conhecimento, mantêm a prerrogativa oitocentista da escola positivista, onde o documento triunfa. O seu triunfo, expresso em Fustel de Coulanges (1830-1889), impõe a supremacia das fontes e dos responsáveis por sua interpretação. Dessa prerrogativa, a hierarquia das ciências. Uma hierarquia que não se sustenta em uma sociedade pautada pela rede de trocas, pela interdisciplinaridade, multidisciplinaridade, pluridisciplinaridade, transdisciplinaridade e a demanda diversificada de atuação que todos esses conceitos comportam. A incapacidade de alargar seus horizontes e a incoerência no pronunciamento da Associação ocorrem quando recomenda que a História da Arte, a Arqueologia e a Museologia passem a ser reconhecidas como áreas específicas de qualificação desde a graduação, sem distinguir a especificidade da formação da área de Conservação-Restauração. Inúmeras universidades, museus e instituições

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responsáveis pela gestão de acervos culturais têm perdido profissionais especializados por não entender a expansão desse campo de conhecimento.

A UFMG é exemplo de agenciamento de pesquisas, tanto pela Graduação em Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis, aberta em 2007, como por meio do Programa de Pós-Graduação em Artes da Escola de Belas Artes já citado. As pesquisas de iniciação científica, TCC, mestrado e doutorado desdobram-se nos campos de estudo voltados à Conservação Preventiva, História da Arte Técnica, Análise Científica de Bens Culturais, Arqueometria, e nas pesquisas acerca dos produtos e técnicas aplicadas à prática de Conservação e Restauração. Desde a Especialização do CECOR até a consolidação do strictu sensu na EBA, importantes monografias de especialização, dissertações e teses amplificam discussões relacionadas ao desempenho de materiais, ferramentas de análise, estudos de caso e bases conceituais.

Assim, além da formação e produção de conhecimento científico por meio das pesquisas desenvolvidas no âmbito da graduação e da pós-graduação, a extroversão do conhecimento e da prática produzida pela área demanda espaços específicos de apresentação. A recente divulgação do ranking internacional dos artigos científicos, com mais de vinte mil papers publicados e uma participação de quase 3% no total mundial, contrasta flagrantemente com o desempenho da área. Isto nos impõe uma reflexão: em plena era do conhecimento, quando, mais do que nunca, a riqueza e o crescimento dos países se consubstancia em propriedade intelectual, por que não dispomos de revistas especializadas? Por outro lado, os espaços institucionalizados que respondem por Congressos, Seminários, Colóquios e demais eventos nem sempre resultam em anais ou publicações indexadas, avaliadas pelo sistema Qualis7 e disponibilizadas em formatos ampliados – principalmente o acesso virtual. Enquanto a produção brasileira de artigos científicos cresceu oito vezes entre 1980 e 2006, o patamar de publicações da área de Conservação e Restauração não dispõe de parâmetros quantitativos.

O estudo The Scientific Impact of Nations, publicado em 2004 pela prestigiosa revista Nature, mostra que, entre 1993-97 e 1997-2001, as citações a artigos brasileiros aumentaram 31%, e o crescimento dos “top 1%” (o 1% superior dos artigos mais citados) foi de 72% para o Brasil 8.

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Para Nicolsky, apesar desses dados, falta-nos uma maior visibilidade social. A explicação para isso é a frequente falta de vínculo da nossa pesquisa científica com a vida real. Enquanto a ciência busca respostas, a tecnologia faz perguntas. Se não houver desenvolvimento tecnológico no país capaz de abrir um leque amplo de indagações que instiguem a comunidade científica, as perguntas acabam ficando por conta de cada pesquisador, que passa a estudar aquilo que sua curiosidade individual determina. Bem, esse problema só pode ser resolvido com o estabelecimento de fóruns de discussão, instâncias de divulgação e organismos aglutinadores de área que construam instâncias estruturadas em conformidade com os mecanismos de gestão, visibilidade, legitimação e troca de experiências. A prática da Conservação-Restauração no país é intensa, sistemática e tecnologicamente repleta de questões, dúvidas, preocupações

No caso das publicações, não é mais possível a produção doméstica e assistemática de escritos, artigos, livros e anais. É indispensável a indexação – o ISSN e o ISBN – e a busca da qualificação na comunidade científica pelo sistema Qualis, e por meio da busca de inserção em sistemas de excelência internacional como a plataforma SciELO9. Para que isso ocorra de fato, as instituições são, naturalmente, as instâncias promotoras e produtoras, cabendo a ela essa responsabilidade. No Ranking de Periódicos e Países, o sistema SCImago/Scopus publicou os resultados de seu último relatório de 2008, no qual as universidades mundiais são classificadas pelo impacto de sua produção científica. A área de Artes e Humanidades responde por 0,47% da produção no país, enquanto a área de Ciências Médicas responde por 20,71% das produções científicas. Dos nove periódicos citados na área de Conservação, cinco encontram-se na Inglaterra – Journal of the History of Collections, Journal of Architectural Conservation, Icom News, Museum International, Apollo –, três nos estados Unidos – Journal of The American Institute for Conservation, Art Institute of Chicago Museum Studies, Preservation – e um na Espanha – Reale Sitios10. Estes países também respondem por políticas sólidas de ensino e qualificação profissional, bem como por instituições conservacionistas de renome internacional.

A legitimação internacional demanda esforços nacionais da SBPC, CAPES, CNPq, bem como dos programas de pós-graduação dirigidos à área. Naturalmente, IPHAN, IBRAM, Biblioteca Nacional assumem esse papel de uma maneira ampliada. No nosso caso, ABRACOR, ABER, APCR,

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ACOR-RS têm produzido eventos, contudo, falta a essas associações uma práxis vinculada aos critérios científicos considerados pelas instâncias de pesquisa. Anais indexados, reentrantes e qualificados pelos sistemas de pesquisa nacionais são fundamentais, inclusive para a projeção dessas instituições e sua capacidade de captar recursos junto ao CNPq, à CAPES e às Fundações Estaduais de Pesquisa. Periódicos, jornais científicos e revistas indexadas, preferencialmente bilíngues, também são fundamentais para a visibilidade de pesquisa dos programas de pós-graduação, centros de pesquisas e museus.

A ANPAP, Associação de Pesquisadores em Artes Plásticas, é um modelo de instituição que ao longo de seus vinte e três anos de existência sedimentou sua atuação e hoje conta com um reconhecimento nacional e internacional na comunidade acadêmico-científica. Todos seus anais, indexados, encontram-se disponíveis em sítio eletrônico, o que fornece visibilidade à produção do conhecimento na área e receberam classificação A2 no sistema Qualis da CAPES11. Cabe ressaltar que um dos comitês existentes na ANPAP atende a área de pesquisa em Conservação e Restauração, possibilitando a divulgação de resultados de pesquisas e projetos.

A busca da excelência em nossa prática, como pesquisadores e produtores de conhecimento, potencializa nosso fazer. Portanto, o fortalecimento de nossas instituições representativas, sua legitimação na comunidade científica e sua capacidade de difundir nossa produção intelectual é um dos caminhos para introduzir o campo da pesquisa em Conservação e Restauro no âmbito da produção intelectual, acadêmica e científica.

Retornando às questões anteriormente postas, se exercício profissional imprime as perguntas e a ciência qualifica as respostas, o que temos aqui não é a proposição de uma hierarquia, mas a compreensão de que a apenas criando mecanismos de aproximação entre essas instâncias poderemos ampliar a qualidade de nossas ações.

Ao ampliar a formação, a difusão por meio de publicações especializadas e as associações de área, será possível criar os mecanismos necessários ao estabelecimento da Conservação/Restauração como área de conhecimento científico e, desse modo, reivindicar junto às instâncias científicas sua fixação como campo de saber. O resultado dessa inserção incide no

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apoio financeiro e logístico para a realização de eventos e publicações, além de bolsas de pesquisa e apoio a projetos. Assim, todo o processo é constantemente retroalimentado.

Hoje, no CNPq, Museologia e Arqueologia ampliaram sua ingerência e, dessa forma, o reconhecimento científico. Com isso, o incentivo aos programas de pós-graduação, aos periódicos indexados, ao auxílio e ao fomento de pesquisa – traduzidos no aparelhamento de laboratório e no atendimento da demanda das pesquisas – imprimem qualidade e excelência no âmbito de suas atuações.

Considerações finais

Não basta apenas o reconhecimento profissional, cujos esforços empreendidos nos últimos dez anos são reconhecidamente louváveis, é indispensável o reconhecimento da área como espaço de produção de conhecimento e projeção científica. É imprescindível compreender que o início do século XXI proporcionou as bases para uma nova relação do conservador/restaurador. Nesse contexto, outras instâncias de legitimação são forjadas:

• a constituição de um corpo de profissionais qualificados, em diversos níveis, cada vez mais numeroso e diferenciado: a formação;

• o fortalecimento das instâncias de homologação, difusão e congregação da área – as associações de representação -, pautada por práticas legitimadas – eventos e publicações;

• a constituição de uma área de atuação mais extensa, socialmente diversificado, capaz de proporcionar aos pesquisadores não apenas as condições mínimas de atuação, mas construindo um princípio de legitimação.

Todas estas questões são importantes. Traze-las em um fórum de discussão sobre protocolos de preservação de Arte Contemporânea significa instaurar a prática profissional na contemporaneidade. Assim como a proposição poética da arte fixou novas questões ao sistema da Arte, as transformações no meio social – em especial acadêmico e científico – implicam numa transformação e numa transição no paradigma da prática da Conservação e da Restauração. Compreender o lugar do qual local falamos, para quem falamos, como falamos; ter consciência da transformação do modelo do

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profissional da Conservação/Restauração; fortalecer nossas instâncias de representação e mecanismos de difusão; buscar nossa inserção na comunidade científica. Estes são dispositivos contemporâneos necessários à nossa área.

__________Notas1. Disponível em : http://www.capes.gov.br/servicos/sala-de-imprensa/36-noticias/4074-qualidade-dos-cursos-de-mestrado-e-doutorado-evolui-entre-2007-e-2010. Acesso em: Agosto/2010.

2. Camillo Boito (1836-1914) sedimenta a escola italiana de restauro tendo como base os estudos de Riegl (1958-1905) sobre o valor estético e o valor documental do monumento e da obra de arte. Discute o princípio da originalidade e da autenticidade como base fundamental à intervenção e introduz a questão do restauro filológico, dando ênfase ao valor documental da obra e destacando o valor primordial das edificações enquanto testemunho e documento histórico. Em oposição à “Restauração“ de Eugéne Viollet-le-Duc (1870), escreveu “Os Restauradores” (1884).

3. Cesare Brandi (1906-1988) foi um dos principais teóricos da restauração, fundamentando suas bases nos anos desde os anos 40, contribuindo ainda com a consolidação do Instituto Central de Restauro de Roma. Suas teses, publicadas em Teoria da restauração (1945), defendem a permanência das bases estéticas ancoradas na fenomenologia e nas teorias da percepção: para preservar a imagem (na qual reside uma multiplicidade de valores, sendo o mais importante deles o artístico) e transmiti-la às gerações futuras, é necessário minimizar os processos de degradação que dizem respeito à matéria, reforçando a sua consistência física e restituir, mesmo que apenas potencialmente e naquilo que for possível, o aspecto original ou o que seja o mais significativo da imagem.

4. May Cassar (1955- ), professora da área de Patrimônio Sustentável da UCL-London, é uma das mais importantes teóricas da área de Conservação Prevemtiva, sendo o mais importante Environmental Management: guidelines for museums and galleries (1995).

5. BOURDIEU, 1996, p.86

6. Declaração emitida pela ANPUH, sob a Presidência de Durval Muniz de Albuquerque Júnior. Por fim, consideramos que no caso dos cursos com denominações Conservação e restauração de bens culturais móveis e Tecnologia e conservação de restauro não são cursos que nos pareçam devam ser oferecidos em nível de ensino superior, eles nos parecem cursos mais adequados para serem oferecidos como cursos de formação tecnológica de nível médio, como as próprias denominações permitem supor. No caso do Ministério e desta Secretaria avaliar que eles devem mudar de denominação e convergirem para a nossa área, é fundamental que seja observado se os temas de formação, se os componentes curriculares, se o perfil do egresso correspondem àqueles exigidos para a formação de um profissional de História. Ou seja, consideramos que nestes casos não seria apenas uma questão de convergência de denominação, mas de alteração do perfil dos cursos, se estes querem ser mantidos como cursos de formação superior. Disponível em: http://www.anpuh.org/conteudo/view?ID_CONTEUDO=314. Acesso em: Agosto/2010.

7. Qualis é o conjunto de procedimentos utilizados pela Capes para estratificação da qualidade da produção intelectual, científica e acadêmica, principalmente da pós-graduação.

8. NICOLSKY, Roberto. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/setec/arquivos/pdf2/. Acesso em: Agosto/2010.

9. A Scientific Electronic Library Online - SciELO é uma biblioteca eletrônica que abrange uma coleção selecionada de periódicos científicos brasileiros. O Projeto tem por objetivo o desenvolvimento de uma metodologia comum para a preparação, armazenamento, disseminação e avaliação da produção científica em formato eletrônico.

10. Disponível em: http://www.scimagojr.com/. Acesso em: Agosto/2010.

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11. Disponível em: http://www.anpap.org.br/. Acesso em: Agosto/2010.

ReferênciasASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO CAPES. Qualidade dos cursos de mestrado e doutorado evolui entre 2007 e 2010. Disponível em : http://www.capes.gov.br/servicos/sala-de-imprensa/36-noticias/4074-qualidade-dos-cursos-de-mestrado-e-doutorado-evolui-entre-2007-e-2010. Acesso em: Agosto/2010.

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Teorias da conservação e desafios para acervos científicos

Marcus Granato

Guadalupe do Nascimento Campos

MAST - Universidade Federal do Rio de Janeiro

ResumoO patrimônio cultural material tem um tempo limitado de existência. Para prolongar a sua integridade física, a conservação tem como meta estabelecer estratégias de prevenção e de intervenção. Essas estratégias devem ser fortemente embasadas por uma fundamentação teórica. No presente trabalho foram analisadas em caráter geral, os principais teóricos da conservação e as linhas predominantes em cada período, à partir do século XIX até a atualidade. O artigo em questão, também enfoca os desafios na conservação de acervos científicos, dificuldades que são causadas seja pela quase ausência de profissionais qualificados na área, do número crescente de objetos adquiridos para as coleções ou da própria especificidade do acervo.Palavras chave: patrimônio cultural, teorias da conservação, acervos científicos

AbstractMaterial cultural heritage has a limited time of existence. One of the goals of conservation, designed to prolong the physical integrity of this heritage, involves devising prevention and intervention strategies. These strategies should be firmly rooted in theory. In this work the theoretical principles of conservation are analyzed in broad terms, as are the prevailing approaches adopted at different times, from the 19th century to the present day. The article also focuses on the specific challenges of conserving scientific collections, which are variously caused by the virtual absence of qualified professionals in the area, the growing number of objects acquired for collections and the very nature of the collections themselves.

Key words: cultural heritage, conservation theories, scientific collections

Introdução

As coleções patrimoniais são a base sobre a qual os museus constroem e reforçam o seu papel social e a identidade cultural. Permitem redescobrir os povos, as migrações, os movimentos e as idéias que criaram e deram forma às sociedades e às civilizações. Registram e preservam as suas criações estéticas e científicas e fornecem bases para novos desenvolvimentos. Inspiram um sentimento de pertencimento e compreensão mútuas entre todos os habitantes de um grupo ou país, fornecendo instrumentos para

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entender o passado e as transformações sociais. O desafio consiste em preservar esses conjuntos patrimoniais, de modo a transmitir o passado, enriquecer o presente e construir o futuro.

É importante esclarecer que, como apresentado por Beatriz M. Kuhl: “na concepção contemporânea alargada sobre os bens culturais, a tutela não mais se restringe apenas às “grandes obras de arte”, como ocorria no passado, mas se volta também às obras “modestas” que com o tempo assumiram significação cultural.”(2006)

Complementando esse esclarecimento, o que consideramos como patrimônio cultural material, objeto de interesse da conservação, são aqueles objetos/monumentos que se destacam dos demais por um processo de significação, que se formaliza quando da escolha para que façam parte desse conjunto. O que os diferencia dos demais, na moderna concepção pelo viés da Museologia, inclui a noção de comunicação, que pode traduzir-se de formas diferentes: significância, simbolismo, conotação cultural, metáfora, etc.. Os objetos de interesse da conservação têm, portanto, em comum sua natureza simbólica, todos são símbolos e todos têm o potencial de comunicação, seja de significados sociais, seja de sentimentais.

No entanto, o patrimônio é frágil e, como todos os bens materiais elaborados ou reconhecidos pelo homem, tem um fim inexorável. As causas dessa degradação vão do impacto massivo e terrível das guerras e das catástrofes naturais aos danos provocados pela poluição, insetos, microorganismos, condições ambientais, ações de vandalismo e pelo próprio envelhecimento natural desse patrimônio. A conservação trabalha no sentido inverso de todas essas forças, procurando estender a vida desses bens.

A conservação com base científica inicia-se no séc. XIX. Destacam-se os trabalhos de Sir Humphrey Davy, presidente da Royal Society, a pedido do rei George IV, em 1820, estudando os papiros de Pompéia, realizando estudos sobre as causas de sua degradação; de C. J. Thomson, no Museu Nacional de Copenhague, desenvolvendo técnicas para conservar objetos arqueológicos e com Friedrich Rathgen, em 1888, ao assumir um posto no Museu Real de Berlim. Este último criou um laboratório e desenvolveu uma série de tratamentos de conservação, produzindo, em 1898, um dos primeiros livros sobre o tema (Die Konservierung von Altumsfunden –

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A Conservação de Antiguidades), quando a conservação tornou-se uma disciplina profissional (GILBERG, 1987, p.106). Ainda nesse século, temos o advento da ciência como caminho para a revelação da verdade e para análise da realidade, além da ampliação do acesso público à cultura e à arte. O nacionalismo exalta o valor dos monumentos nacionais como símbolos de identidade, o romantismo consagra o artista como indivíduo especial e exalta a beleza das ruínas e, como resultado, as artes e os artistas têm um reconhecimento especial.

É nesse contexto, também moldado pela Revolução Industrial, na Inglaterra, e pelas guerras Napoleônicas, na França, que despontam os primeiros teóricos da conservação, John Ruskin (1819-1900) e Eugène Emmanuel Viollet-le-Duc (1814-1879). Suas posições, diametralmente opostas, relacionam-se diretamente com esse contexto.

As Primeiras Teorias da Conservação

Ruskin foi um escritor inglês com grande influência sobre os artistas e os amantes das artes. Em 1849, Ruskin publica o livro “The Seven Lamps of Architecture”, e dois anos depois o primeiro volume de “The Stones of Venice”3. Neles, ele defende veementemente os valores e virtudes dos prédios antigos. Seu amor pelo passado era tão apaixonado e exclusivo que era acompanhado por um certo desprezo pelo presente. Aqui a dimensão histórica do patrimônio é considerada a mais importante e talvez única justificativa para a sua preservação. Seu seguidor William Morris (1834-1896) partilhava de suas convicções e achava que entre os agentes perturbadores estavam aqueles que tentavam reconstruir prédios danificados. Criou em 1877 o Movimento Anti-Restauração e a Sociedade para a Proteção de Antigas Edificações (SPAB).

Um dos resultados das guerras napoleônicas na França foi o dano a diversas construções góticas e seu restauro foi considerado uma tarefa nacional. Nesse ambiente, Viollet-le-Duc, arquiteto responsável por muitas dessas obras (Notre Dame de Paris, La Madeleine de Vézelay, Catedral de Amiens, Castelo de Pierrefonds), considerava-se autorizado a preencher as lacunas deixadas pelos danos nas edificações. Para ele a edificação poderia (ou deveria) ser restaurada ao melhor estado possível, para uma condição que poderia nunca ter existido, desde que coerente

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com a natureza verdadeira da concepção original da construção. Em 1866, publica o oitavo volume do seu “Dictionnaire Raisonné de l’Architecture Française du XIème au XVIème Siècle”, onde apresenta sua definição para restauração - “Restaurar um edifício não significa repará-lo, reconstruí-lo ou mantê-lo. Significa restabelecê-lo no seu estado mais completo, que pode até nunca ter existido” (2000, p. 17).

Para Viollet-le-Duc, o estado mais perfeito da conservação é o estado original, o uso e o desgaste o deformavam. Para ele, o estado original não era aquele do momento de sua produção, mas o da sua concepção, a idéia original do artista, não o seu estado material original.

Entre essas duas posições extremadas, vários teóricos apresentaram idéias intermediárias. Entre eles, destacamos o arquiteto italiano Camilo Boito (1836-1914) que estabeleceu alguns princípios que ainda são bem aceitos, por exemplo: a necessidade clara de diferenciações entre as partes originais e as restauradas; a mínima intervenção ou reversibilidade. Boito (2002) foi um entre vários teóricos que tentou encontrar um equilíbrio entre os extremos de Ruskin e le Duc. Reuniu estas idéias contrárias numa teoria intermediária, favorável à conservação dos acréscimos incorporados à obra arquitetônica. Comparou ainda um monumento à crosta terrestre, com as várias camadas superpostas, cada uma representativa de um conjunto de valores a ser respeitado.

Em 1884, realiza-se o Congresso de Engenheiros e Arquitetos, em Roma, e Boito propõe os oito princípios básicos do Restauro Arqueológico, onde se aceita apenas a consolidação e recomposição das partes desmembradas e a conservação para não ser preciso restaurar, afirmando alguns dos princípios de Ruskin e Morris.

O historiador da arte austríaco Alois Riegl, do início do século XX, considerava que o objeto existe enquanto um elemento a ser preservado quando lhe é atribuído um valor histórico, artístico e cultural (CUNHA, 2006). Em 1912, o pensamento evolui com a Teoria do Restauro Científico, de Gustavo Giovannoni, como sendo a operação de tão somente consolidar, recompor e valorizar os traços restantes de um monumento. Gustavo Giovannoni e Luca Beltrami também procuraram encontrar um ponto de equilíbrio entre Ruskin e Viollet-Le-Duc. Avaliavam que os complementos estruturais e as construções adjacentes não eram adequados,

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pois descaracterizavam os edifícios antigos da sua forma original.

Nesse período, as várias teorias sobre a conservação de patrimônio provocavam muitas discussões, gerando muitas divergências e críticas. Para tentar minimizar essas discussões, muitas instituições se debruçaram na tentativa de normalização de procedimentos básicos, que geraram as chamadas “Cartas”, documentos normativos que resultam do acordo entre especialistas e conservadores profissionais. Em 1931, a Conferência Internacional de Atenas normatiza tais critérios, dividindo o restauro em trabalhos de consolidação, recomposição das partes desmembradas, liberação de acréscimos sem efetivo interesse, complementação de partes acessórias para evitar a substituição, e ainda inovação ou acréscimo de partes indispensáveis com concepção moderna.

No rastro da Segunda Grande Guerra Mundial, muitos monumentos e coleções inteiras ficaram muito danificados, gerando um movimento de questionamento dos conceitos do “Restauro Científico” que exigiam postura de quase neutralidade do arquiteto/conservador em relação ao bem cultural. Uma nova postura prevaleceu, o Restauro Crítico, com uma atitude mais flexível por parte dos profissionais, principalmente europeus, face à pressão social e política pela recomposição de monumentos e objetos danificados.

A Teoria de Brandi

Em 1964, durante um congresso em Veneza, os princípios do Restauro Científico voltam a prevalecer, sendo ampliados e revistos na Carta Italiana de Restauro de 1972, por Cesare Brandi. Para Brandi, deve-se “mirar o restabelecimento da unidade potencial da obra de arte, quanto seja possível, sem cometer um falso artístico ou um falso histórico, e sem cancelar os traços da passagem do tempo”.

Nascido em Siena, Brandi foi professor universitário, crítico de arte e musicólogo, assim como primeiro diretor do Istituto Centrale di Restauro, a primeira instituição desse tipo, fundada em Roma em 1939 (PRICE e colaboradores, 1996). Brandi produziu o primeiro sistema de pensamento completo e orgânico na área de restauração. A sua teoria do restauro é inspirada pela filosofia de Benedetto Croce; do historicismo derivou um

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conceito fundamental que continua plenamente válido: o caráter transiente, parcial e relativo de qualquer restauração, mesmo a mais habilidosa, por ser sempre marcada pelo clima cultural no qual é realizada.

Brandi dividia os objetos, em relação à restauração, em dois grupos; os produtos industriais e as obras de arte. Em relação ao primeiro grupo sua teoria é restrita; nela o propósito fundamental da restauração seria restabelecer as propriedades funcionais do produto. Consequentemente, a natureza da restauração estaria exclusivamente ligada à realização desse objetivo (BRANDI, 2005). No entanto, cabe ressaltar que nesse caso também devem ser considerados os aspectos estéticos e históricos desses objetos, que não foram analisados em detalhe pelo autor.

Para obras de arte, mesmo que existam algumas peças que estruturalmente possuam um propósito funcional (como na arquitetura e para os objetos das chamadas artes aplicadas), o restabelecimento das propriedades funcionais representaria um aspecto secundário da restauração, nunca o fundamental. Brandi considerava imprescindível reconhecer a ligação inseparável entre a restauração e a obra de arte, na qual esta condicionaria a restauração e não vice-versa. Tendo isso em mente, definia restauração como: “o momento metodológico no qual a obra de arte é apreciada em sua forma material e dualidade histórica e estética, com uma visão de transmiti-la para o futuro.”

Essa visão humanista, que sublinha sua concepção de restauração, é um aspecto muito valioso da teoria de Brandi. Para ele a restauração não é uma técnica auxiliar, mas um momento de apreciação crítica do objeto; em outras palavras, é um aspecto da pesquisa estética e filológica em direção à sua compreensão. Outro aspecto do pensamento de Brandi especialmente relacionado às relações entre material e imagem parece estar além de sensibilidades contemporâneas. Ele admitia que a imagem coincidisse com o material, mas com hierarquia entre o material diretamente relacionado com a imagem e aquele com papel estrutural ou de suporte. Desde que a intervenção afetasse somente a estrutura e não alterasse a imagem a intervenção era justificável. Delimita-se aqui o primeiro axioma de sua teoria “somente a forma material da obra de arte é restaurada”.

O segundo axioma determina: “a restauração deve ter por objetivo restabelecer a unidade da obra de arte, na medida em que isso é possível

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sem produzir uma falsificação histórica ou artística e sem apagar qualquer traço da passagem do tempo nele deixado”.

Para que a restauração seja uma operação legítima não poderia presumir que o tempo é reversível ou que a história poderia ser eliminada. Além disso, o ato da restauração, a fim de respeitar a natureza histórica complexa da obra de arte, não poderia se desenvolver de forma reservada ou desconectada do tempo. Deveria ser enfatizada como um evento histórico real, desde que seria uma ação humana, e faria parte do processo pelo qual a obra de arte seria transmitida para o futuro.

A restauração recriaria a unidade do objeto perdida pelos efeitos do tempo ou de restaurações anteriores. Para alcançar esses objetivos a restauração deveria concordar com princípios históricos (não destruir os traços da passagem do tempo e da intervenção humana) assim como os estéticos (remover acabamentos errados e alterações inapropriadas). Na prática, as exigências estéticas freqüentemente prevaleciam sobre as históricas no pensamento de Brandi (PRICE e colaboradores, 1996). Publicou em 1963 a Teoria do Restauro, texto que defende a relevância de um fator quase sempre negligenciado na conservação científica: o valor artístico do objeto. Em sua visão, os valores estéticos são da maior importância e devem ser levados em consideração nas decisões sobre a conservação. Brandi é o teórico do restauro estético e considerado o autor do corpo teórico mais consistente da conservação.

Conceitos mais Recentes

A partir da década de 1980, foram criados vários laboratórios de conservação, espalhados por alguns museus. Ainda nesse período, o debate sobe de tom, o arquiteto italiano Paolo Marconi (1988) questiona se o momento presente não tem autenticidade - seria um “falso histórico”, indigno de se incorporar à obra restaurada? Deve uma cidade se reduzir à cenografia arqueológica, apenas um objeto a ser visto, alijando-se a época presente do processo histórico de transformação?

Da Convenção do “Consiglio Nazionale delle Ricerche”, em Roma (1986), nasce a “Carta 1987 da Conservação e do Restauro de objetos de arte e de cultura”, cuja alteração principal das Cartas anteriores funda-se na

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separação metodológica e conceitual do restauro das obras de arquitetura dos demais objetos de arte e cultura, sintetiza-se tal questionamento na proposta de Paolo Marconi de “fazer reentrar a arquitetura em sua história”.

No decorrer do século XX, algumas teorias e concepções sobre a conservação coexistiram. A partir de meados desse século, a visão estética coexistiu com outra contribuição significativa para a conservação, a chamada “Nova Conservação Científica”, que foi mais uma atitude em prol de técnicas e metodologias científicas de conservação do que propriamente uma teoria da conservação. Nenhum esforço teórico foi realizado para validar essa abordagem, mas verifica-se um conjunto de idéias e críticas que a caracteriza e vêm sendo desenvolvidas de forma fragmentada. Nessa concepção, os cientistas e a metodologia científica passam a ser determinantes para o processo da preservação de acervos e, em função dos bons resultados alcançados, essa abordagem torna-se, no final do século XX, a forma reconhecida de lidar com a preservação de acervos.

As últimas décadas do século XX são marcadas pelas teorias de Garry Thomson, que propiciaram a publicação do livro The Museum Environment (1988). São colocados pela primeira vez, de forma sistemática, os problemas referentes à climatização em museus e a importância do controle do ambiente onde estão colocadas as coleções. Segundo esse autor, “um mau restaurador pode destruir uma obra, um mau conservador pode destruir uma coleção inteira”. Também nesse período, Torraca (PRICE e colaboradores, 1996) discute o papel da ciência na área da conservação. Aborda as implicações do confronto entre os cientistas das chamadas áreas exatas e a realidade com que se deparam ao atuar no campo da conservação (poucos dados, nenhuma estatística ou modelos computadorizados), onde tendem a transferir suas experiências e métodos sem considerar as especificidades do bem cultural em análise, causando sérios equívocos.

Salvador M. Víñas (2005), mais recentemente, faz a sistematização e a crítica dessas idéias, classificando todas as teorias sobre a conservação como teorias clássicas. Essas teorias teriam como pressuposto ser a conservação uma operação de imposição da verdade, de relevância apenas para um grupo restrito de formação específica, que acredita estar autorizado a dizer

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como se deve conservar e restaurar. O objetivo da conservação para as teorias clássicas era revelar e preservar as verdadeiras naturezas e condições do objeto enfatizando a sua integridade física, estética e histórica.

Viñas propõe uma teoria contemporânea da conservação onde o interesse primário está nos sujeitos e não mais nos objetos. A objetividade na conservação, fundamento da abordagem científica prevalente a partir do final do século XX, seria substituída por uma forma de subjetivismo.

Nessa “teoria contemporânea” a noção de verdade é substituída pela comunicação. A verdade deixa de ser o critério de orientação da conservação. O conservador não deveria impor a verdade, mas sim facilitar a leitura do objeto para melhor compreendê-lo. A conservação seria feita em função dos significados do objeto, que segundo o autor poderiam variar tremendamente de grupo a grupo. A conservação seria realizada por pessoas para as quais o objeto tem significado. Portanto, esses interesses (necessidades, preferências e prioridades) deveriam ser considerados como o fator mais importante no processo de decisão. Sua autoridade derivaria não do seu nível educacional, mas de serem diretamente afetados pelas ações que outros realizam em objetos que lhe são significativos (GRANATO, 2007). Dessa forma, a “teoria contemporânea” intenciona erradicar os excessos cometidos pelos experts do passado. Faz com que o indivíduo que será afetado pela alteração de um símbolo, o usuário habitual, tenha todo o direito e autoridade de expressar sua opinião a respeito, opinando com fundamento.

Em resumo, como lidar com objetos que podem ter vários significados e vários atores envolvidos e afetados nesse processo de preservação? Como decidir? Viñas propõe trazer a decisão para o consenso do grupo de pessoas que está afetado por aquele objeto. O que é uma árdua tarefa caberia, por outro lado, ao profissional da conservação responder pelas gerações futuras, partícipes nesse processo decisório e que não poderiam estar presentes por motivos óbvios.

A “teoria contemporânea” não recomenda colocar nas mãos do público geral todas as decisões relativas à conservação e ao restauro, mas apenas as pessoas afetadas pelo objeto. Apenas os indivíduos com relação e intimidade com objeto podem opinar com fundamento. A teoria sugere uma democracia conduzida por representantes sociais e profissionais

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qualificados. Estabelece uma relação dialética e não impositiva entre as idéias do conservador, do restaurador, do político, do cliente, cientista e das pessoas afetadas. Normalmente, quando há discussões, entre esses diferentes pontos de vista, o mais poderoso prevalece. Nesses casos, deve-se ter ética na negociação e no diálogo, com a finalidade de se obter um equilíbrio, para harmonizar um maior número de opiniões, contentando mais pessoas.

Do ponto de vista ético, Viñas diz que “uma boa restauração é a que satisfaz um maior número de sensibilidades” (2003, p.177). A conservação e a restauração do objeto devem ser realizadas para os seus usuários, para as pessoas para qual o objeto cumpre uma função essencialmente simbólica, documental e outras. Deverão agradar os gostos e as necessidades intangíveis de usuários futuros. Concluindo, esses objetos são símbolos de aspectos intangíveis de uma cultura, de um grupo social, e devem ser conservados sem alterar a capacidade simbólica (VIÑAS, 2003).

Hoje, no início do século XXI, a conservação preventiva desponta como fator influente na pesquisa científica. Uma abordagem mais crítica do “não tocar” foi desenvolvida, baseada num melhor conhecimento dos problemas de conservação e dos mecanismos de degradação dos objetos, assim como no conhecimento do fracasso de alguns materiais modernos que foram introduzidos nessa área. A pergunta agora é como impedir danos, portanto limitando a intervenção direta nos objetos ao absolutamente necessário. Essa abordagem promove o desenvolvimento de tratamentos de conservação para assegurar, da melhor maneira possível, que nenhum dano ocorrerá (TAGLE, 1999).

As discussões teórico-metodológicas sobre a conservação são determinantes no processo de amadurecimento dos profissionais e possibilitam um crescimento salutar da área no país. Por outro lado, um aspecto parece ser de senso comum, a formação de profissionais da conservação no Brasil é incipiente e normalmente é necessário recorrer a cursos do exterior para obter uma condição mais adequada de conhecimento. Fora algumas poucas iniciativas, como os recém-criados cursos de graduação em conservação da UFMG e da UFPEL e o curso de especialização promovido pelo CECOR/UFMG, a formação de profissionais da conservação no Brasil é ainda uma estrada em construção.

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Os Desafios para a Conservação de Acervos Científicos

A pesquisa científica orientada para as inovações oferece um potencial inesgotável, em resposta à busca pela maior precisão. Os instrumentos científicos, em contrapartida, tornam-se obsoletos cada vez mais rápido e o desaparecimento do seu conteúdo documental pode constituir a perda de uma parte intrínseca do conhecimento. A noção de conservação aparece como uma primeira etapa necessária a garantir a salvaguarda desses instrumentos de caráter histórico.

Esses objetos, essenciais à astronomia, à medicina, à física, à meteorologia, à matemática e demais ciências, apresentam técnica de fabricação geralmente muito complexa e os diversos materiais de que podem ser construídos exigem cuidados bem específicos e diferenciados de conservação. A título de exemplo, a Figura 1 apresenta um instrumento composto de diversos materiais (madeira, couro, metal e vidro). Trata-se de um microscópio composto, de origem alemã, fabricado por G. F. Brander, em 1765 (TURNER, 1991).

Figura 1 – Microscópio composto, coleção do Museo di Storia della Scienza, Florença, fabricado por G. F. Brander, em 1765 (TURNER, 1991).

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Feitos essencialmente de metal (latão e bronze, e prata em menor grau), os instrumentos científicos históricos estão sujeitos à corrosão e a outros problemas associados a objetos metálicos. Além desses metais, muitos instrumentos incorporam o vidro, a madeira, o marfim e couros diversos. Cada um desses materiais exige um tratamento específico. As condições de apresentação e de organização devem se ajustar às exigências de conservação, muitas vezes contraditórias para os metais e outros materiais com os quais vêm combinados.

Outras questões de como conservar artefatos científicos relacionam-se aos componentes químicos, em especial os reagentes antigos, e outros que também envolvem materiais com risco potencial para a saúde humana, como o mercúrio e os materiais radioativos. O que fazer com esses componentes? Separar os reagentes de seus recipientes e neutralizá-los constitui-se em uma ação que descaracteriza e interfere profundamente no objeto científico antigo. Por outro lado, a sua permanência pode determinar riscos para outros objetos e, especialmente, para os profissionais da documentação, da pesquisa e da conservação que os manuseiem. O mesmo se pode dizer em relação a objetos científicos mais recentes, onde a presença de radioatividade pode causar enormes danos, haja vista o acidente com césio-137 (radioativo) em Goiânia.4

A partir de meados do século XX, inicia-se um movimento crescente de introdução de materiais diversificados para a construção de artefatos científicos e tecnológicos. Esses novos materiais, incluindo ligas metálicas em ampla variedade de composições, plásticos e materiais cerâmicos, apresentam novos e grandes desafios. A própria miniaturização dos circuitos internos de muitos instrumentos e equipamentos traz problemas de outra ordem, inclusive de identificação de materiais componentes, geralmente protegidos por patentes e de difícil identificação.

Além de toda essa diversificação de materiais, amplia-se também a variação de modelos e a corrida frenética dos fabricantes pela atualização constante com novos artefatos sendo produzidos com mais rapidez.

Finalmente, nesse contexto, uma pergunta não quer calar. O que devemos preservar para as futuras gerações? Claramente é impossível separar pelo menos um objeto científico que apresente inovação para fazer parte dos acervos de museus de C&T e documentar esse ritmo frenético em

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que vivemos. Especialmente no que tange a espaços de guarda, que são limitados. Aliado a isso, os desafios de conservação de objetos com tal variedade de materiais são aparentemente insuperáveis. Na verdade observamos aqui uma característica de nossa civilização que se reflete também em outras faces, como a enorme produção de imagens virtuais com a popularização do uso das câmeras digitais - a espiral de produção e de consumo rápido que interfere diretamente com a preservação de artefatos para as futuras gerações.

Algumas dessas questões estão presentes também em acervos de outras tipologias e cumpre urgentemente discutir esses problemas e agir de forma articulada, para que as futuras gerações tenham contato não apenas com os vestígios materiais mais antigos, mas também com aqueles produzidos e que sejam representativos da nossa geração.

Considerações Finais

O embasamento teórico para a atividade de conservação de bens culturais é fundamental para seu melhor exercício prático. No entanto, nas últimas décadas, percebe-se pouca discussão e reflexão sobre o tema. Por outro lado, o investimento nas pesquisas e em pessoal, para o desenvolvimento de ensaios e análises que permitam conhecer mais os processos de degradação, os constituintes dos bens a serem conservados e o desenvolvimento de novos produtos para a conservação, é cada vez maior. A tal ponto, que muitas vezes parece que a atividade de conservação consiste apenas em processos objetivos de decisão e escolha. O que não é correto. Todo processo de conservação inclui também decisões subjetivas, das quais o conservador não pode escapar, e sobre as quais tem responsabilidade. Cabe tentar decidir da melhor maneira possível, de preferência articulando vários atores nesse processo decisório.

No caso dos objetos científicos, a sua preservação relaciona-se com a memória científica de um país. Esses objetos têm especificidades, são constituídos de diferentes materiais, o que torna complexa a execução de procedimentos de conservação. A ausência de profissionais capacitados também é um fator limitador. Mas questões teóricas importantes também se colocam para esse tipo de acervo.

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No Brasil, está em desenvolvimento um projeto que realiza um levantamento nacional dos conjuntos de objetos que fazem parte do patrimônio científico e tecnológico.5 O projeto se justifica, em primeiro lugar, pelo valor documental e histórico desse patrimônio; em segundo lugar, por quase nada desse tema ser estudado no país; e em terceiro lugar, por estar muito ameaçado, necessitando ser descoberto e preservado. Em relação aos levantamentos, já foi publicado, recentemente, um texto com resultados iniciais (GRANATO, 2009), mas estudos posteriores mostram que as cerca de 30 instituições ali mencionadas são a ponta de um iceberg.

Para viabilizar o trabalho no amplo território nacional já foram elaboradas parcerias.6 O MAST já finalizou os levantamentos no estado do Rio de Janeiro e debruça-se nesse momento sobre São Paulo. Nesse estado, uma outra parceria, agora com a UNESP de Araraquara7, permitirá fazer o levantamento das escolas secundárias. Outros contatos estão em andamento para viabilizar os trabalhos.

Finalmente, percebe-se um efeito indireto em seu desenvolvimento, durante os contatos e visitas, aparentemente, está acontecendo uma modificação de consciência e olhar dos responsáveis por esses artefatos, que já pensam em preservá-los ao invés de descartá-los.

O conhecimento desses conjuntos permitirá identificar os desafios de conservação que estarão postos e também elaborar critérios que possibilitem a escolha do que deve ou não ser preservado.

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Notas

1. Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), Rua General Bruce 586, São Cristóvão, Rio de Janeiro, RJ; [email protected]. Formado em engenharia metalúrgica e de materiais pela UFRJ (1980), Mestre (1993) e Doutor (2003) em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação da Escola de Engenharia Metalúrgica (COPPE/UFRJ), sendo sua tese sobre Restauração de Instrumentos Científicos Históricos. É Coordenador de Museologia no MAST e, a partir de 2006, torna-se professor do Mestrado em Museologia e Patrimônio (UNIRIO/MAST), onde atua como vice-coordenador. A partir de 2009, assume a coordenação do Curso de Especialização em Preservação de Acervos do C&T, do MAST. Atualmente é Coordenador de Museologia do MAST, pesquisador 1D do CNPq e

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líder de grupo de pesquisa na área de Preservação de Bens Culturais.

2. Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), Rua General Bruce 586, São Cristóvão, Rio de Janeiro, RJ; [email protected]. Possui Graduação em Museologia pela Universidade do Rio de Janeiro (1996), Mestrado (2001) e doutorado (2005) em Ciência dos Materiais e Engenharia Metalúrgica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Consultora em Arqueologia Histórica para a Fundação Roberto Marinho e o Banco Central. Atualmente desenvolve pesquisas a nível de pós-doutorado no MAST sobre a conservação de artefatos arqueológicos metálicos.

3. John Ruskin, Biographical Materials. The Victorian Web: literature, history, culture in the age of Victoria. National University of Singapore. Disponível em http://www.victorianweb.org/authors/ruskin/ruskinov.html. Último acesso em 05/04/2010.

4. A contaminação teve início em 13 de setembro de 1987, quando um aparelho utilizado em radioterapias das instalações de um hospital abandonado foi encontrado, na zona central de Goiânia. O instrumento foi encontrado por catadores de papel, que entenderam tratar-se de sucata. Foi desmontado e repassado para terceiros, gerando um rastro de contaminação que afetou seriamente a saúde de centenas de pessoas.

5. Projeto “Valorização do patrimônio científico e tecnológico brasileiro”, no MAST, dentro do Grupo de Pesquisa em Preservação de Acervos Culturais.

6. Com os Cursos de Graduação em Museologia das Universidades Federais de Pernambuco, Bahia e Pelotas, respectivamente através de seus professores Emanuela Sousa Ribeiro e Antonio Motta de Lima (UFPE), Suely Ceravolo (UFBA) e Maria Letícia Mazzucchi Ferreira (UFPEL). Nesses estados (PE, BA e RS), os grupos formados por professores e alunos ficaram responsáveis pelos levantamentos, integrando o projeto a partir de sub-projetos.

7. Através da Profa. Maria Cristina de Senzi Zancul.

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Conhecimento científico e restauração: entre análise e método

Marilene Corrêa Maia EBA-Universidade Federal de Minas Gerais

ResumoO presente texto procura evidenciar a progressiva apropriação do conhecimento científico pelo ofício da conservação-restauração de bens culturais. A ciência, em suas diferentes especialidades, tem contribuído para o aprimoramento das competências e possibilidades de atuação dos conservadores-restauradores. Os princípios científicos foram incorporados ao quotidiano dos trabalhos de conservação e restauração de bens culturais, para além da introdução de inovações tecnológicas.

Palavras Chaves: Restauração, ciência, método, análise científica, conservação, rreserva-ção do patrimônio

Resumé

Dans ce texte il a été question de mettre en évidence la participation du savoir scientifique para la consevation-restauration du patrimoine. La science, dans ces différentes spécialités, est utilisée en vue du perfectionnement des compétences ainsi que des possibilités d’actuation du conservateur-restaurateur. Les principes scientifiques sont aujourd’hui présents au quotidien dans les travaux de conservation et de restauration de biens culturels au-delà d’avoir apporté des innovation technologique a ce domaine.

Môts-clês: Restauration, science, méthode, analyse scientifique, conservation, préservation du patrimoine

Introdução

Ao longo do século XX, o ofício de restaurar adquiriu expressiva complexidade. Para além das reflexões teórico-conceituais acerca dos processos de intervenção e da definição de princípios éticos, o conhecimento científico transformou-se em base fundamental e estruturante das ações de conservadores-restauradores.

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Perspectiva histórica

Originalmente o ofício de restaurador sempre esteve associado ao fazer artístico. Obras de arte sofriam intervenções mais propriamente denominadas como reparos ou consertos. No caso de pinturas de cavalete, era comum a prática de reenvernizamentos sucessivos para reavivar suas cores e prepará-las para serem apresentadas a públicos seletos. Não era raro que artistas de renome praticassem intervenções em obras de arte. A restauração era, portanto, uma atividade técnica, de caráter artesanal.

Diferentes técnicas aplicadas em processos de restauração derivavam de métodos utilizados na elaboração de obras de arte, principalmente pinturas e esculturas. Tal fato fica evidente quando fazemos um breve levantamento dos materiais empregados habitualmente em ateliês de antigos restauradores, inclusive no Brasil. Dentre eles, poderíamos citar a cera de abelha para reentelamentos e refixação de policromia (MOTTA e SALGADO, 1973), a terebintina na remoção de vernizes, a resina damar para elaboração de verniz (GETTENS e STOUT, 1942), o carbonato de cálcio e as colas animais para a realização de massas de nivelamento.

É no transcorrer do século XIX que identificamos uma aproximação progressiva da restauração e do conhecimento científico. Exemplos notáveis merecem destaque. Em 1850, o físico Michael Faraday é convidado para fazer uma análise sobre processos de deterioração sofridos por pinturas da coleção da National Gallery de Londres (EASTLAKE, FARADAY e RUSSEL, 1850). Em 1863, um químico e higienista bávaro, Max Von Pettenkofer, desenvolveu uma experiência de regeneração de verniz em pinturas de uma coleção de Munique (SCHMITT, S., 1990, 81-84). O método, que ficou conhecido como processo Pettenkofer, consiste em expor a pintura ao vapor de uma mistura de etanol com bálsamo de copaíba para sensibilizar o verniz e solucionar embaçamentos e chancis.

Essas experiências, precursoras de pesquisa científica, visando soluções técnicas para procedimentos de restauração, encontraram terreno propício, de um ponto de vista teórico-conceitual. Na segunda metade do século XIX emerge um esforço de reflexão acerca da prática de intervenções em bens de relevância histórica, artística e cultural. Nesse contexto merece destaque a contribuição do arquiteto francês Eugène Emannuel Viollet

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le Duc, que implementou uma estruturação metodológica de exames como suporte ao seus trabalhos práticos (VIOLLET-LE-DUC, 2000). Um estudo aprofundado, segundo Le Duc, deveria preceder à tomada de decisões do restaurador. Para o arquiteto, a análise prévia da edificação, o levantamento e a identificação das modificações por ela sofridas ao longo do tempo deveriam ser uma condição imperativa para que fosse definido o modo de intervenção. Em que pesem as críticas ao seu trabalho por demais intervencionista, com a seleção de um determinado estilo em detrimento de outros, seu mérito reside efetivamente na sistematização de procedimentos metodológicos de estudo, exame, análise e documentação.

No mesmo período, e em oposição às idéias de Viollet le Duc, o literário e crítico de arte inglês John Ruskin defendia a conservação a todo custo, como forma de respeitar a ação do tempo sobre edificações e monumentos. Tal postura era, portanto, contrária às intervenções diretas (RUSKIN, 2008). Por outro lado e a posteriori, Camilo Boito, arquiteto e escritor italiano, evidenciou a necessidade de serem estabelecidos critérios específicos para diferentes tipos de obras: arquitetura, esculturas, pinturas (BOITO, 2002). O arquiteto partia do princípio de que cada tipo de obra é submetido a exercícios distintos de observação e apreensão por parte do espectador. Sendo assim, deveriam sofrer procedimentos de intervenção compatíveis com suas particularidades. Segundo ele, nem todas as perdas de partes deveriam ser complementadas. No caso das esculturas, por exemplo, a ausência de uma parte não impediria necessariamente a apreciação da obra no seu todo. Boito evidenciou, com efeito, o caráter relativo dos critérios de restauração de bens culturais.

Desta forma, a complexidade do ofício de restaurar evoluiu progressivamente com a introdução de procedimentos metodológicos cada vez mais rigorosos. A pesquisa torna-se necessária a todo processo de intervenção, que deve estar baseada em critérios específicos e guiada por uma orientação ética.

Outros fenômenos devem também ser destacados nesse processo de apropriação do conhecimento científico pela restauração de bens culturais. Entre as últimas décadas do século XIX e inícios do século XX, são criados ateliês em museus europeus, como Staatliche Museen em Berlim, em 1888, e o Museu Britânico, em 1919. No interior da estrutura dos museus, esses

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laboratórios passam a ser locais privilegiados para o estudo dos objetos constituintes das coleções. Alguns deles transformaram-se em referências, no âmbito da pesquisa sobre procedimentos técnicos e materiais aplicáveis a processos de restauração. É o caso dos laboratórios de museus como os da National Gallery de Londres ou de Nova York, do Smithsonian’s Museum Conservation Institute nos Estado Unidos, para citar apenas alguns exemplos.

Participam desse processo, em igual medida, as instituições de caráter internacional ligadas à preservação do patrimônio. Nesse sentido, são relevantes as ações da UNESCO, fundada em 1945 pela Organização das Nações Unidas – ONU, do Conselho Internacional de Museus – ICOM, criado em 1946, e do Centro Internacional para o Estudo da Preservação e da Restauração de Bens Culturais – ICCROM, fundado em 1956. Acrescentam-se a essas iniciativas instituições que visam congregar profissionais conservadores-restauradores e de disciplinas correlatas, tais como o Instituto Internacional de Conservação – IIC, o Instituto Americano de Conservação para Obras Históricas e Artísticas – AIC, ou ainda, no Brasil, a Associação Brasileira de Conservadores-Restauradores - ABRACOR. Tais instituições contribuem para atualizar debates e para a divulgação de inovações e de pesquisas científicas relacionadas à conservação e à restauração de bens culturais. Por outro lado, constituem-se em fóruns de excelência, afirmando princípios éticos que devem nortear as ações de conservadores-restauradores.

A dimensão científica da conservação-restauração vai igualmente ser reforçada pela formação de profissionais em centros universitários. Um exemplo brasileiro pertinente é o antigo Curso de Especialização em Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis, fundado em 1978 pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, e transformado em graduação no ano de 2008.

Apropriando-se do conhecimento científico

É com o auxilio de diferentes disciplinas, tais como a química, a biologia, a microbiologia, dentre outras, que se ampliam as possibilidades de atuação do conservador-restaurador. Este profissional deve possuir um domínio

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de diferentes áreas do conhecimento, para compreender e apreender o objeto na sua multiplicidade e propor soluções adequadas, de forma a respeitar os critérios éticos que definem e regulam as possibilidades de intervenções de restauração.

No que diz respeito a uma estruturação do trabalho quotidiano do conservador-restaurador, a apropriação de princípios científicos contribuiu para a organização metodológica de suas intervenções. O conjunto de estudos preliminares, constituídos por exames técnicos e científicos, permite ao profissional uma aproximação progressiva do objeto. Através do preenchimento de fichas técnicas, é feito todo um levantamento de dados, tais como a procedência, o proprietário, a data de execução, as dimensões, as características físicas da obra. Essas informações permitem a contextualização do objeto e a consequente identificação de seus valores artísticos e históricos, dentre outros. Exames sofisticados podem ser utilizados com este fim. Dentre eles poderíamos mencionar os raios-x, para estudo da estrutura interna de esculturas policromadas ou mesmo de pinturas de cavalete, e as análises microquímicas, para identificação de materiais constituintes de pinturas.

Outros tipos de análises podem ser solicitados pelo conservador-restaurador, que deve desenvolver uma competência para interpretá-las, ou mesmo para discutir com diferentes especialistas, de maneira a potencializar resultados e procedimentos de pesquisa com cientistas de diferentes áreas.

Através de pesquisas científicas, técnicas inovadoras e materiais contemporâneos foram introduzidos em processos de conservação-restauração – como o uso de laser, para a limpeza de pedras, e o de gases inertes, para o desenvolvimento de atmosferas controladas, aplicáveis ao combate de microrganismos e de insetos xilófagos. Poderíamos citar igualmente a apropriação de adesivos sintéticos e semissintéticos de tipo termoplásticos, em processos de restauração, viabilizando, em certa medida, o respeito aos critérios de reversibilidade. Abriram-se, desta maneira, novos horizontes e perspectivas para o trabalho quotidiano de conservação-restauração.

Contudo, merece ser ressaltado que a apropriação de princípios científicos pela conservação-restauração encontra sentido somente a partir do

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momento em que esta é entendida como um meio, um apoio na busca de melhor compreensão das especificidades do objeto a ser restaurado. Na mesma medida, os recursos das ciências humanas, biológicas ou exatas devem estar a serviço do estudo da obra, constituindo-se em suporte à tomada de decisões, assim como à definição de procedimentos de intervenção em bens culturais.

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Arquitetura Contemporânea de museu como espetáculo: roteiro e atores no cenário da indústria cultural

Willi de Barros Gonçalves Doutorando PPGA-EBA-UFMG

Luiz Antônio Cruz Souza (Orientador)

Resumo

Este artigo discute como a Arquitetura contemporânea de museus se insere na lógica da indústria cultural. Apresenta um histórico da evolução dos museus, procurando explicar as origens das questões contemporâneas relacionadas a esse tema. Destaca como as rupturas modernas ainda permeiam a visão de mundo atual e analisa como a construção de museus se tornou um aspecto relevante do desenvolvimento urbano. Finaliza discorrendo sobre possíveis caminhos a serem percorridos pela Museologia no séc. XXI.

Palavras chave: patrimônio cultural, teorias da conservação, arquitetura, museus

Abstract

This article argues as the Architecture contemporary of museums inserts the logic of the cultural industry. It presents a description of the evolution of the museums, explaining the origins of the contemporaries questions related to this subject. It detaches as the modern ruptures still sustain the vision of current world and analyze as the construction of museums if it became an excellent aspect of the urban development. It finishes discoursing on possible ways to be covered for the Museum studies in séc. XXI.

Key words: cultural heritage, conservation theories, architecture, museums

IntroduçãoNo início do século XXI a museologia encontra-se em um contexto de transformação e hibridação. Mudanças significativas acontecem na velocidade em que os bits percorrem incontáveis redes: de fios, de terminais, de satélites, corporativas, relacionais, neurais, conceituais, virtuais. Na Idade da mídia, a multidimensionalidade anunciada pela teoria da relatividade deixou o campo das discussões entre os físicos teóricos para incorporar-se ao cotidiano. O espaço-tempo contemporâneo está comprimido.

No centro dessas mudanças a Arquitetura se coloca ao mesmo tempo como objeto e mediador simbólico das mutações sociais, econômicas, políticas: urbanas. A cidade do século XXI é simultaneamente fato e produto. A

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compreensão do fenômeno urbano não prescinde do prisma da cultura, na acepção antropológica que o termo assume contemporaneamente. Contudo, essa mesma é muito mais produto do que fato em sua face de indústria. A sociedade do espetáculo – termo cunhado por Debord (1997) – instrumentaliza essas esferas com perversos mecanismos de reificação, exclusão e controle social.

A que se propõem as instituições museais em uma época em que os limites entre o real e o simulacro tendem à invisibilidade? Que lugar poderá restar á memória no futuro da museologia? Teria ela forças para resistir à voracidade da história e superar as rupturas modernas? Não há como pensar nessas indagações sem refletir sobre a construção histórica dos museus – sua origem, conceitos, evolução. Tal raciocínio é útil para pensar na problemática que envolve a resignificação presente do passado e a sua extensão para o futuro.

1. Do templo das Musas ao templo das mídias (e das massas) – um olhar sobre a história dos museus

É possível identificar elementos da problemática dos museus contemporâneos bem como de suas relações com os temas da memória, da história e do patrimônio, investigando a raiz etimológica da palavra. O termo museu vem do grego museion passando pelo latim museum e remete aos templos que na Antiguidade foram dedicados às Musas.

Na mitologia, as Musas são representadas por jovens deusas, filhas de Zeus e Mnemosine – a deusa da memória. Durante nove noites Zeus se deitou com Mnemosine, que deu a luz a nove filhas, concebidas para perpetuar e cantar a vitória dos deuses do Olimpo sobre os Titãs, filhos de Urano. As musas cantavam o presente, o passado e o futuro, acompanhados pela lira de Apolo, para deleite das divindades do panteão. A origem do mito estaria associada aos cultos às ninfas dos rios e lagos originários da Trácia ou em Pieria, região a leste do Olimpo, de cujas encostas escarpadas desciam vários córregos produzindo sons que sugeriam uma música natural, levando a crer que a montanha era habitada por deusas amantes da música. Nos primórdios, eram apenas deusas da música, formando um maravilhoso coro feminino. Posteriormente, suas funções e atributos se diversificaram .

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Na iconografia, cada uma delas carrega um símbolo, simbolizando sua arte: Thalia (comédia – máscara cênica); Erato (poesia lírica – lira); Euterpe (música – flauta); Polyhymnia (música cerimonial sacra - figura velada); Calliope (poesia épica - tabuleta ou pergaminho e uma pena para escrita); Urania (astronomia – globo celestial e compasso); Melpomene (tragédia – máscara trágica, grinalda e clava) e finalmente Clio, a musa da história representada com um pergaminho parcialmente aberto.

O museion, na tradição clássica, era mais destinado a discussões filosóficas e científicas, ensino e investigação que a guarda de obras de arte. Essa função era cumprida pelo áditon, onde era depositado o thesauros: oferendas, ex-votos, relíquias, objetos de recordação. – gerenciado e inventariado pelos sacerdotes, que eram remunerados e se responsabilizavam inclusive pela conservação dos objetos. Os locais de guarda do thesauros permanecem até hoje na arquitetura das igrejas católicas.

Segundo Froner (2001), no mundo antigo não se usou a palavra museion para as coleções de obras de arte. Além de thesauros, foi usada a palavra pinacotheca - de pinax –quadro pintado sobre madeira e theke – caixa. Esse nome foi usado por Pausânias para descrever uma coleção de quadros que existia no lado esquerdo do Propileu de Atenas . O museu científico que vai se desenvolver no séc xxx deriva do conceito da “caixa de guardar quadros”.

A primeira aplicação da palavra museion com o mesmo sentido que lhe atribuímos hoje vem do museion de Alexandria. A famosa biblioteca era uma parte integrante dessa instituição, fundada por Ptolomeu Soter, inspirado nos templos das musas, como casa da musica, poesia, escola filosófica e biblioteca . Não chegou a possuir uma coleção de escultura ou pintura, mas reuniu os maiores sábios da época, contando com um parque botânico e um zoológico, sala para estudos de anatomia e observatório astronômico. Embora não tenha sido empregada com esse sentido, a acepção original de museu guarda relação com a idéia de um “lugar onde se cultua a memória dos vencedores”, pela acumulação de um patrimônio e constrói-se sobre a égide da figura mitologia da história (Clio), que tudo registra.

É interessante destacar que originariamente a concepção do “lugar onde se guarda a memória” possui estreita relação com as bases filosóficas

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da Arquitetura Grega. Nela é possível é possível observar a relevância da dimensão espacial, em vários aspectos: na localização e implantação, através das quais remete aos atributos das divindades da natureza a que é dedicada; no rigor com que se aplica a “geometria sagrada” e até mesmo na forma como as sombras se movimentam ao longo do dia. Os templos gregos são lugares de onde se observa a natureza, o mundo e o tempo.

As conexões entre espaço e cultura, centrais na conformação da paisagem urbana contemporânea, são estruturais para a reflexão sobre as dimensões relacional e comunicativa que compõem os museus na atualidade (SPERLING, 2005). Sobre essa dimensão espacial da memória, fundamental para a compreensão do papel que a Arquitetura representa na problemática dos museus contemporãneos, Seligmann-Silva observa que

na antiguidade não só não existia a impressão de livros, como tampouco havia papel tal como nós o conhecemos hoje; daí a importância da memória para o orador. (...) O princípio central da mnemotécnica antiga consiste na memorização dos textos através da sua redução a certas imagens que deveriam permitir a posterior tradução em palavras: a realidade (res) e o discurso final (verba) deveriam ser medializados pelas imagens. Essas imagens por sua vez, deveriam ser estocadas na memória em certos locais (loci) imaginários ou inspirados em arquitetura de prédios reais. (...) a doutrina dos loci afirma uma concepção eminentemente visual/espacial da memória, e é aproximada da noção de escritura. (SELIGMANN-SILVA, 2002, p. 33).

Sobre a forma como os thesauros gregos foram apropriados pelos romanos, escreve Françoise Choay (2006):

Os objetos gregos espoliados pelos exércitos romanos começam por entrar discretamente no interior de algumas residências romanas, mas seu status muda no momento em que Agripa pede que as obras entesouradas no recôndito dos templos sejam expostas á vista de todos, á luz viva das ruas e dos grandes espaços públicos. Desde então... Roma oferece um espetáculo ambíguo, sobre o qual o olhar do séc. XX fica tentado a projetar os valores e atitudes da sociedade ocidental pós-medieval ou mesmo atual. (...) Roma conhece um mercado de arte, especialistas, falsários, corretores, etc.(CHOAY, 2006, p. 33, 34)

Dentre os legados romanos destaca-se a sistematização do direito, inclusive

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no tocante à administração do patrimônio. De acordo com Froner (2001, p. 3) “espaços públicos destinados à exposição ou ao culto de obras de arte não contavam com jurisdição estadual, nem ingerência do Estado, sendo formados a partir da iniciativa privada e gerenciados pelo aeditus, um conservador/inventarista nomeado pelo patronus daquela coleção específica”, função provavelmente derivada do sacerdote que restaurava as oferendas guardadas no áditon grego.

1.1. A resignificação e reutilização da memória na Idade Média

Segundo Campos (apud Froner 2001, p. 4) no milênio que transcorre da queda do Império Romano do Ocidente (476) até a tomada de Constantinopla pelos turcos, os museus estiveram ausentes da civilização ocidental. Os castelos feudais e abadias convertem-se no destino das relíquias recolhidas nas Cruzadas.

Em uma Europa coberta de monumentos e edifícios públicos pela colonização romana, esses séculos causaram uma grande destruição. Dois fatores levaram a isso. De um lado o proselitismo cristão. (...) De outro, a indiferença em relação aos monumentos, que haviam perdido seu sentido e seu uso, à insegurança e a miséria: os grandes edifícios da Antiguidade são convertidos em pedreiras, ou então recuperados e desvirtuados (...) ocupados por habitações, depósitos, oficinas (...) comerciantes (...) fortalezas. (CHOAY, 2006, p.33)

A partir do séc. XI a arte românica busca resgatar elementos clássicos, valorizando o comércio e a circulação de obras e relíquias da Antiguidade.

Para os clérigos do séc. VIII ou XII, o mundo antigo é ao mesmo tempo impenetrável e imediatamente próximo. Impenetrável, pois os territórios romanos ou romanizados tornaram-se cristãos, a visão pagã do mundo não vigora mais, ela não é mais concebível. As expressões literárias ou plásticas pagãs reduziram-se a formas vazias. Próximo, pois essas formas vazias, ao alcance da vista e da mão são imediatamente passíveis de transposição e transpostas para o contexto cristão, em que são interpretadas de acordo com os códigos já conhecidos. (CHOAY, 2006, p. 38)

Froner (2001, p. 4) destaca que (...) sob essa ótica, a igreja medieval oferecia ao olhar uma gama variada de objetos, sendo o único local aberto ao

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público onde era possível observar as coleções antes restritas apenas ao homem de posses. No final do século XII, o cardeal Giordano Orsine – um dos maiores colecionadores do período – criou em Roma um gabinete de antiguidades, atual Museu do Vaticano, que abria uma vez por semana ao público com o intuito de divulgar a superioridade da arte ocidental”. (FRONER, 2001, p. 4)

1.2. Conservação icônica e renovação metodológica: os humanistas e os gabinetes de curiosidades

Cândido (1998) descreve o surgimento, no Renascimento de uma nova tipologia para a guarda dos bens culturais: o gabinete de curiosidades, enfatizando seu caráter elitista:

O Renascimento trouxe consigo os locais de reunião de raridades e preciosidades, organizadas para o deleite das cortes européias preocupadas em demonstrar seu gosto refinado. O ecletismo permanece como marca fundamental por um longo período, onde a quantidade e diversidade de peças é o que chama a atenção. Neste contexto, inúmeras coleções particulares, reunidas nos chamados gabinetes de curiosidades, foram abertas ao público, mas com um certo tom palaciano e aristocrático. Estes museus são como ponto de encontro e reunião dos membros dos grupos privados que em regra os criam. (CÂNDIDO, 1998, p. 26 )

Portanto, o museu, em sua acepção original pode ser pensado como o lugar do mito, do incorpóreo, do imaterial. As rupturas com o mundo antigo que se iniciam no Renascimento e se consolidam nos sécs. XVIII e XIX vão inverter essa percepção, sob uma lógica de objetividade, que se incorporou ao longo dos três últimos séculos às bases filosóficas da museologia e da arquitetura de museus,

os italianos do quatroccento procuraram reconciliar as tradições pagãs da civilização da Antigüidade, adaptando-as ao cristianismo. É nesse período que as grandes famílias burguesas – os Strozzi, Pazzi, Martelli, Capponi, Mancini, Medici, Visconti – ostentam seu patrimônio financeiro por meio da coleção de obras de arte, antigas e contemporâneas. (FRONER, 2001, p.5)

Os objetos passam da condição de relíquia ou maravilha para uma condição significante, de semióforos (objetos de estudo) – objetos da

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antiguidade são colecionados pelos huamanistas, sendo valorizados por sua relação com os textos clássicos. Objetos que retratam outras culturas são coletados em expedições e são valorizados por seu exotismo. Obras de arte contemporâneas do Renascimento são examinadas à luz dos tratados que teorizam acerca do belo. E finalmente, colecionam-se instrumentos científicos, principalmente aqueles ligados á Astronomia, pela sua vinculação com as navegações.

Françoise Choay (2006) aborda o tema da conservação iconográfica que nasce no séc. XVI, o qual nos remete à importância das imagens mentais nos primórdios da mnemônica:

após quase três séculos de estudos dedicados às antiguidades, a forma dominante de sua conservação continua sendo o livro ilustrado com gravuras. (...) O caso da França é típico. A partir do séc. XVI, antiquários e arquitetos estudaram com paixão os vestígios greco-romanos, particularmente os de Provença. Contudo, se à época eles lamentam sua degradação, seu estado de abandono ou sua demolição, apenas uma ínfima minoria se preocupa com sua proteção in situ. (CHOAY, 2006, p.81)

Criada a demanda, o mercado se organiza e negociantes especializados fazem as intermediações. Nesse cenário destaca-se a cidade de Veneza. O trabalho de inventário e conservação passa as mãos de artistas de fama reconhecida, como Donatello, Da Vinci, Michelangelo, e outros. Froner (2001, p. 7) informa que

em 1471, Sixto IV editou uma bula para proibir o êxodo das antiguidades romanas e fundou o Museu de Arte e Antiguidades do Capitólio. Porém, tão inócuo quanto o édito romano que protegia a Coluna de Trajano, a bula papal não evitou que coleções inteiras fossem parar nas mãos de colecionadores particulares de toda Europa.

1.3. Dos museus-mausoléus aos museus monumentais: rupturas modernas

No séc. XVI, a Itália permanece como a grande promotora da valorização da arte e da cultura, através da atuação do papado e das oligarquias a ele ligadas. A origem das rupturas modernas podem ser localizadas no

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pensamento de Francis Bacon (1521-1626) e sobretudo em Descartes (1596-1650), marcado pela noção do “saber como poder”, bem como na crença no progresso da ciência e da técnica para o domínio da natureza.

A dessacralização e desencantamento do mundo inaugurados com as Navegações avançam em termos de ruptura entre sujeito e objeto – entre o novo e o antigo, com grande progresso das ciências naturais. Nesse período surgem os primeiros catálogos de leilões demonstrando a existência de um público suficientemente numeroso interessado em peças de coleções. Ao final do séc. XVII os locais que abrigam coleções se consolidam em duas grandes categorias: os gabinetes de curiosidades e as galerias. A tradição dos gabinetes se reafirma no séc. XVIII e persiste até o séc. XIX e esse período assiste a consolidação da Museologia e Arqueologia como campos delimitados do saber. Em 1727 Nickel publica o primeiro tratado de Museografia, dividindo as coleções em Naturalia e Artificia. A racionalização museológica se traduz em forma de organizar e classificar as coleções durante todo esse período. - período corresponde ao enciclopedismo.

Aliados a uma visão positivista e tecnicista, os gabinetes de curiosidades estabeleceram-se como registro dos avanços da ciência (acervos de paleontologia, botânica, anatomia e arqueologia) e do progresso humano (como o exotismo de culturas atrasadas e objetos artísticos produzidos para a elite). Modelos tridimensionais do conhecimento enciclopédico, estes museus primavam pela abrangência do acervo e detinham-se nas mínimas informações necessárias para provocar o espanto do público”. (CÂNDIDO, 1998, p. 27)

A Revolução Francesa e em seguida o período napoleônico consolidam o caráter documental dos monumentos, anexando a eles o conceito “histórico” e a transformação das coleções particulares em museus que passam a guardar um patrimônio “público”. O primeiro traço característico dos museus modernos é a sua permanência, em oposição à transitoriedade das coleções particulares. Após um período de vandalismo a Convenção Nacional cria quatro museus: o Museu Nacional (Louvre) (1792), o Museu de História Natural (1794), o Conservatório Nacional de Artes e Ofícios e o Museu dos Monumentos Franceses, (1796) com a missão de proteger e resignificar o patrimônio francês, símbolo do poder do Antigo Regime. A Expansão Napoleônica resulta na fundação de diversos museus nacionais.

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Como alerta Gonçalves (2003), “todo e qualquer grupo humano exerce algum tipo de atividade de ‘colecionamento’ de objetos materiais, cujo efeito é demarcar um domínio subjetivo em oposição a um determinado ‘outro’. O resultado dessa atividade é precisamente a constituição de um patrimônio”.

Os gabinetes de curiosidade e os estúdios de leitura preservaram a noção do áditon, e dos primeiros museus renascentistas, por um viés excludente, deixando ao público uma atitude contemplativa e não participante. Esse viés consolidou-se reforçado pelo espetacularismo na arquitetura contemporânea de museus, e constitui um dos paradigmas a serem superados pela museologia no século XXI, conforme se discute adiante.

Também no séc. XVIII, coleções pertencentes à coletividade surgem no seio das universidades, que herdam e passam a ampliar os acervos dos nobres europeus. Em 1661, a Universidade da Basiléia já havia recebido o gabinete completo da família Aubach. Em 1713, é fundado o Ashmolean Museum of Oxford, agregando um laboratório de ciências naturais. Em 1753, o British Museum é criado pelo parlamento a partir da doação do gabinete do Sir Hans Sloane.

No século XVIII os objetos são redistribuídos a partir de critérios científicos e racionais formando coleções vinculadas às disciplinas especializadas: objetos da técnica para os museus sobre a técnica; pedras e borboletas para os museus de história natural; livros para s bibliotecas; objetos exóticos para os museus etnológicos; armas para os museus nacionais. (...) Jóias e objetos finos foram para os museus de arte e os objetos pré-históricos para os museus de arqueologia. Do ponto de vista museográfico, o Louvre introduz inúmeras inovações, como as curadorias, as exposições especiais, as vitrines, que são colocadas no centro das salas, a identificação e a seleção das obras, a criação do conceito de reserva técnica, a preocupação com o espaço e com a iluminação, a restauração, entre outras. Além disso, as obras dos artistas vivos são separadas daquelas dos artistas já mortos, elaboram-se catálogos para serem vendidos a baixo custo. As pinturas são agrupadas estabelecendo relações de identidades, semelhança e cronologia (...) (LARA FILHO, 2006, p. 45, 47)

O séc. XIX assiste a um aprofundamento das descontinuidades entre história e memória, e a consolidação das premissas modernas, traduzidas

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na valorização do tempo e fragmentação do espaço, crença no progresso, busca da inovação e da objetividade.

Os museus se tornam cada vez mais numerosos e embora do ponto de vista do edifício vigore a Arquitetura Neoclássica, o espaço museológico se mostra diversificado, com exposições cobrindo desde a antiguidade à contemporaneidade. Em termos arquitetônicos e urbanísticos a vanguarda nesse período é marcada pelas Exposições Universais, e pela Arquitetura do ferro e do vidro, materiais construtivos que expressam o triunfo da revolução industrial, porém o conteúdo das exposições curiosamente enfoca o pitoresco e o romântico.

2. Os museus no séc. XX - arquitetura do espetáculo no contexto da indústria cultural

As descontinuidades aprofundadas nos sécs. XVIII e XIX trouxeram alterações profundas na escala da relação homem-natureza, mediada pelas inovações tecnológicas em velocidade crescente: eletricidade, mídia e comunicações (telégrafo, cinema, rádio, telefone, cinema, fotografia), transportes (automóvel, trem, navegação a vapor), medicina, etc.

A mudança de inclinação nas linhas do progresso acarretou mudanças radicais na tessitura tempo-espaço válida até então, tanto na vivência cotidiana como na teorização acadêmica (teoria da relatividade).

Posições como Fordismo e Taylorismo num espaço tecido e regido tecnocraticamente por organizações corporativas num cenário em que ocorrem duas guerras mundiais, passaram a multiplicar e reproduzir em série eventos de desumanização e reificação em escala global. Nesse contexto, desenvolve-se o Urbanismo enquanto campo moderno de conhecimento. Na Arte, Cubismo, futurismo e modernismo podem ser pensados como frutos da impossibilidade de representação do mundo novo com as linguagens antigas.

No tocante à prática museológica, rompe-se o paralelismo entre classificação e nomenclatura do período anterior, pois, já não se pode ‘distinguir’ segundo os mesmos critérios e as mesmas operações que exige o ‘denominar’: a ordem das palavras e a ordem dos

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seres já não coincidem senão numa linha artificialmente definida. Classificar, e ordenar não mais se faz a partir do visível mas sim pelas formas de organização e suas funções. Os três ‘reinos’ (animal, mineral e vegetal) são substituídos por dois: o do vivo (orgânico) e do não vivo (inorgânico), e a História Natural dá lugar à Biologia. Assim é que a ordenação e a classificação dos objetos passam a adotar um sistema artificial, desvinculado das árvores do conhecimento, e cuja finalidade é guardar e recuperar. (LARA FILHO 2006, p.52)

2.1. Os museus no cenário da indústria cultural

Para Barbalho (2003, p. 29) a indústria cultural refere-se não a qualquer objeto simbólico que circula no mercado, mas àqueles que são produzidos dentro de uma lógica industrial massiva. A cultura torna-se industrial quando assimila as formas planejadas, racionalizadas, de organização do trabalho. “Através da utilização generalizada da planificação na produção, as indústrias culturais conformam-se enquanto totalidade. (...) Como resultado da atuação planejada do mercado na cultura e da transformação do receptor em consumidor, as produções da indústria cultural não apenas agregam o caráter de mercadoria, mas transformam-se nela integralmente (...) Os produtos da indústria cultural são incorporados pelo mesmo conceito que qualquer bem de consumo possui no mercado. (BARBALHO, 2003, p.13)

A racionalidade positiva construída ao longo da Idade Moderna, sustentada na tecnocracia capitalista estendeu a dessacralização e o desencantamento do mundo a todos os horizontes, terminando por romper, ao fim do século, as poucas fronteiras restantes nos conflitos éticos entre público e privado, sagrado e profano, natural e artificial, real e virtual.

Se a dimensão espacial representa um papel fundamental para a recuperação e uso adequado das memórias do homem, pela sua relação intrínseca com a dimensão temporal ela vem sendo progressivamente pressionada e ameaçada pela compressão / redução / simplificação impostas pela sociedade contemporânea, tecnocrática e imagética. O espaço cede lugar ao tempo comprimido, como medida das coisas. Ao contrário do desejável,

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dessa compressão resultam amnésia e alienação. A aceleração também afetou a velocidade dos corpos que passam diante dos objetos. (...) Para aqueles que se recusam a ser colocados num estado de sono ativo pelo walkman, o museu aplica a brutal tática da superlotação que, por sua vez, resulta na invisibilidade daquilo que se foi ver. A aceleração também está presente (...) no marketing das mostras estampado em camisetas, posters, cartões de natal e reproduções preciosas. (HUYSSEN, 1994, p.44)

Na mesma medida em que a realidade é banalizada pelas imagens, as imagens vendidas pela mídia determinam o que é real. Emerge daí o tema da imagem como simulacro – pretenso registro verídico do real - e ao mesmo tempo o registro de uma realidade inexistente, imaginada. Embaçamento de fronteiras entre razão e imaginação, arte e ciência, saber e informação (considerando-se também aí as conseqüências para as profissões regulamentadas, como a do arquiteto e do museólogo). “Onde o meio é a mensagem e a mensagem é uma imagem fugaz na tela, o real continuará sempre e inevitavelmente bloqueado. Onde a mídia é a presença e apenas presença e a presença signifique uma transmissão ao vivo do noticiário, o passado será necessariamente bloqueado”. (HUYSSEN, 1994, p. 53)

Na era da computação e da implantação do ciberespaço vivemos diariamente as conseqüências das inovações tecnológicas. Essas conseqüências são, na verdade, devastadoras se pensarmos na imagem do homem herdada da tradicional antropologia filosófica.

Nosso corpo – submetido aos ditames dessa tecnologia – também é marcado por essas alterações e, com ele, a nossa visão do ser humano. (...) como evitar uma total reformulação na nossa concepção de homem se agora podemos finalmente construir o nosso Golem, os nossos Franksteins ou os nossos robôs com inteligência artificial? Como traçar o limite entre o natural e o artificial? Se a nossa “humanidade” se torna mais frágil na medida em que é submetida cada dia a uma processo de redesenhamento das suas fronteiras (e da sua “essência”) não é de se estranhar que uma das nossas principais características, a de ser um “homo memor”, ou seja um “ser com memória” no contexto da era do ciberarquivo potencialmente infinito”. (SELIGMANN-SILVA, 2002, p.37)

Trata-se de um processo de alteração da percepção e da sensibilidade,

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conforme observa Sevcenko: (...) a aceleração dos ritmos do cotidiano, em consonância com a invasão dos implementos tecnológicos, e a ampliação do papel da visão como fonte de orientação e interpretação rápida dos fluxos e das criaturas, humanas e mecânicas, pululando ao redor – irão provocar uma profunda mudança na sensibilidade e nas formas de percepção sensorial das populações metropolitanas. A supervalorização do olhar, logo acentuada e intensificada pela difusão das técnicas publicitárias, incidiria, sobretudo, no refinamento da sua capacidade de captar o movimento, em vez de se concentrar, como era o hábito, sobre objetos e contextos estáticos. (SEVCENKO apud ROCHA, 2007, p. 266,)

Nesse contexto, a midiatização da cultura adentra o século XXI como a unanimidade onipresente que nos torna mais homogêneos do que nunca, sendo esse o ponto central da crítica dos teóricos da escola de Frankfurt, registrada nos escritos de Adorno, Horkheimer e Benjamim. A indústria cultural, pelo seu poder de manipulação, bloqueia o exercício da autonomia e da independência nos indivíduos.

A atualíssima convergência tecnológica entre comunicação, telecomunicações e informática remodela o mundo.

Nessa nova circunstância societária, as mídias transformam-se em estrutura e ambiente da sociabilidade. Poderosas, elas perpassam todas as dimensões sociais e deixam nelas suas cruciais marcas. Impossível pensar hoje a cultura sem um enlace vital com as mídias. Não por mera causalidade, o campo de estudos da comunicação tem se tornado, por excelência, um dos lugares mais férteis e adequados para refletir sobre a cultura, e em seqüência, as políticas possíveis de serem formuladas e implementadas nessa área. A submissão da produção cultural ao capital e sua expansão industrial acentuaram de modo crescente a dimensão de entretenimento contida na cultura. Com isso, o esforço exigido pelo trabalho cultural parece dar lugar a uma assimilação leve, e mesmo plena de divertimento, da cultura. A cultura parece convergir para o lazer. Não por acaso, cultura, entretenimento e turismo conformam um amálgama poderoso na situação contemporânea” (RUBIM, 2003, p. 24)

Huyssen (1994) apresenta uma interessante contra-crítica que pondera e amplia a visão negativa da indústria cultural por parte dos teóricos da Escola de Frankfurt. Para ele, a crítica de Adorno sobre a mercadorização

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da memória é incompleta, diante da mudança temporal em nossas vidas, provocada pelas mudanças tecnológicas.

A corrida das massas pela cultura nos museus não deve ser confundida com a reivindicação dos anos 60 pela democratização da cultura. Nem tampouco deveria ser vilipendiada. A censura à velha indústria cultural, hoje dirigida aos velhos guardiões da alta cultura, não contesta apenas a fascinação pelas novas e espetaculares exposições. Ela também esconde a estratificação e heterogeneidade inerentes ao interesse do público e às práticas de exposição. Polêmicas contra a recém-alcançada reconciliação entre as massas e as musas envolvem o tema principal de como explicar a popularidade dos museus; o desejo de se organizar exposições e eventos culturais e as experiências que perpassam todas as classes sociais e os grupos culturais. Isso também evita qualquer tipo de reflexão sobre a maneira de empregar esse desejo e essa fascinação sem entregar-se incondicionalmente a diversões instantâneas e superproduções exibicionistas. Porque o desejo existe, não importa o quanto a indústria cultural estimule, seduza, manipule, atraia e explore. Esse desejo deve ser levado a sério como um sintoma de mudança cultural. É algo que está vivo em nossa cultura contemporânea e que deveria ser inserido de forma produtiva nos projetos de mostras e exposições.(HUYSSEN, 1994, p. 45)

Huyssen (1994) distingue três modelos filosóficos correntes como tentativas de elucidar a mania contemporânea por exposições e museus. Ele os denomina de teoria da compensação, teoria da simulação e teoria crítica sócio-cultural (kulturgesellschaft).

Na teoria da compensação, cujos autores mais representativos Huyssen identifica em Lubbe e Marquard, o museu compensaria a perda de estabilidade contemporânea. Ele oferece ao sujeito moderno instável formas tradicionais de identidade, ao simular que essas tradições culturais não foram atingidas pela modernização.

Os argumentos de Huyssen se alinham aos de Sevcenko acima apresentados, porém, como contra-crítica, ele coloca:

No campo do consumo cultural podemos observar uma mudança na estrutura da percepção e da experiência: o provisório tem se tornado a finalidade da experiência cultural mais solicitada nas exposições temporárias. Mas aí é onde o ponto crucial emerge. O velho conceito de

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cultura, baseado, como ainda o é, na continuidade, na herança, na possessão e no cânone, nos impede de analisar o lado potencialmente produtivo e válido do provisório. (...) deveríamos considerar o provisório como um tipo de experiência cultural sintomática do nosso tempo, que reflete o processo de aceleração do nosso amplo meio e que conta com níveis mais avançados de instrução visual. Seria plausível sugerir que a epifania modernista altamente individualizada se tornou um fenômeno publicamente organizado da cultura pós-moderna do evanescimento? E mais, será que o modernismo invadiu o cotidiano ao invés de tornar-se obsoleto? (...) Será que a epifania do museu pós-moderno também proporciona a sensação de transcendência ou quem sabe apenas abre um espaço para a memória e a lembrança negada fora dos muros do museu? Será que a experiência transitória do museu deve ser compreendida apenas como uma repetição do banal (...)?(HUYSSEN, 1994, p. 47)

Huyssen não seria o primeiro a observar que o modernismo não acabou de verdade. Jan Cejka (1999) concorda com ele, pois em seu quadro sinótico da arquitetura contemporânea até 1992, subdivide-a em várias correntes a saber: romanticismo, pós-modernismo, continuação da modernidade e nova modernidade. Nestas duas últimas correntes esse autor inclui os estilos High-tech, deconstrutivismo e pluralismo, que englobam os exemplos aqui elencados como Arquitetura do Espetáculo.

Sob o prisma da teoria da simulação, que Huyssen aproxima de Badrillard e Jeudy “beirando um já esquecido Marshall MacLuhan”, o museu nada mais seria do que uma máquina de simulação, em nada distinguível da televisão. Segundo ele,

para Baudrillard , a musealização e suas variantes é uma tentativa da cultura contemporânea de preservar, controlar e dominar o real com o intuito de esconder o fato de o real se encontrar em agonia devido à expansão da simulação. A musealização surge como um sintoma terminal de uma época glacial, como um último degrau na lógica da dialética e do esclarecimento, que se move da auto-preservação através da dominação do eu e do outro, em direção ao totalitarismo da extinta memória coletiva d nenhum eu e nenhuma vida. (HUYSSEN, 1994, p. 50 e 51)

2.2. Museus espetaculares: não-lugares na cidade

Frente aos desafios que se apresentam para a museologia no século que se inicia, é importante refletir sobre como a Arquitetura de museus construiu

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suas relações com a cultura de massa ao longo do séc. XX. A partir dessa reflexão é possível destacar os aspectos que a preenchem de elementos espetaculares, carregados de virtualidade e simbolismo, construindo a concepção de que o museu é um “lugar de entretenimento”, entre o parque de diversões e o shopping center. Na home page do Museu de Arte de Milwaukee, há um link informando as regras para a realização de casamentos nas dependências do museu, e informando o mobiliário disponibilizado. Por proceder de maneira semelhante, o nome do Museu Brasileiro da Escultura – MUBE, em São Paulo, por vezes é ridicularizado com a pecha Museu Brasileiro de Eventos. “No atual cenário do museu, a idéia de um templo com musas foi enterrada, surgindo no lugar um espaço híbrido entre a diversão pública e uma loja de departamentos.” (HUYSSEN, 1994, p. 36)

No contexto da racionalidade tecnocrática contemporânea, as premissas do planejamento econômico são transferidas para a esfera do planejamento urbano sob a nomenclatura de planejamento estratégico. Segundo Arantes (2000) esse pensamento insere a cidade no mesmo contexto de conquista de mercados em que se situam as empresas. Mecanismos como isenção de impostos, infra-estrutura, distritos industriais, entre outros, são aplicados nessa disputa, que vislumbra um único objetivo: multiplicação do capital. Trata-se de visão de economia urbana, pautada apenas pelo binômio investimento-lucratividade do capital, e que não gera, sobretudo quando se pensa em empresas multinacionais, nenhum tipo de investimento social efetivo.

Atualmente, é impossível se pensar no crescimento das cidades, sem considerar a associação entre cultura e capital. Como objetos-síntese da mercadorização da cultura e da cidade, fervilham espaços urbanos excludentes, como as áreas vip e os condomínios fechados, destacando-se os museus. As “cidades-negócio”, “cidades-evento”, ou ainda “cidades-ocasionais” (ARANTES, 2000), tornaram-se mercadorias em concorrência mundial por investimentos.

A inauguração de novos museus se traduz na explicitação e movimentação de um capital simbólico, valorizado, disputado e divulgado pelas cidades, através de estratégias de marketing. Trata-se de outra faceta do planejamento econômico imiscuída na cultura, em que se misturam lugar, imagem, identidade e “marca”. No jargão das corporações isso se chama

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“branding” e paradoxalmente há hoje no mercado internacional muitas empresas que não outros produtos a não ser as marcas de outras empresas.

No Brasil, a crescente falência das ações do Estado na manutenção e criação dos espaços públicos – quer sejam espaços urbanos abertos, quer sejam espaços programáticos edificados, como os museus – desloca a ação planejadora e executora do poder público para uma ação normatizadora e legisladora, que se estende do uso do solo até a produção cultural. O espaço público (de praças a museus) nasce por essa via, projetado e gestado por corporações privadas, retornando para elas como ganho em imagem. (SPERLING, 2005, p.3)

Nesse sentido, poderíamos citar como casos exemplares a construção da marca da Estrada Real em Minas Gerais, o Museu de Arte Contemporânea de Niterói, projetado por Oscar Niemeyer (BRUNO, 2002) e o Museu Iberê Camargo, de Porto Alegre, projetado por Álvaro Siza. Curiosamente, em ambos se encontram ecos do Guggenheim de Nova Iorque. O MAC está para Niterói como as orelhas do Mickey Mouse estão para a Disneylândia. A questão amplia-se na temática do turismo cultural, perpassando as discussões sobre a gestão dos espaços urbanos públicos e privados, o efetivo exercício da cidadania e a elaboração de políticas públicas na área cultural.

Os museus passaram de fontes de disseminação cultural a agentes do desenvolvimento urbano. Nesse star system não são somente as cidades que competem entre si. Diante de uma fragmentação das identidades culturais em vários níveis, conforma-se o espaço para a sacralização de ícones-estrelas, também arquitetônicos, mas principalmente de indivíduos, construídos pela televisão e pelo cinema, situação que se estende inclusive ao mundo cultural, intelectual e acadêmico. Essa problemática é ainda mais ampliada e multiplicada quando pensamos nas conseqüências da criação de uma Lista do Patrimônio Mundial e de programas internacionais como o Monumenta.

Se de um lado, monumentos patrimoniais são desmaterializados e estilizados em logotipos governamentais, de outro, os conjuntos de narrativas contemporâneas se convertem no acervo dos museus, em suportes que tendem à virtualidade, ao mesmo tempo em que novas interfaces concorrem para a dessacralização dos objetos do acervo, concomitantemente á sua desterritorialização.

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A desterritorialização implica um novo estado de coisas em livre flutuação, na qual a forma substitui o conteúdo e as características individuais dos objetos são meras construções de marketing. A fluidez necessária à rápida reprodução do capital é transferida à produção, cada vez mais a produção imagética, e aos “objetos”, imagens que parasitam matérias em intervalos de tempo calculados. (JAMESON apud SPERLING, 2005, p. 3,)

Essa busca a qualquer custo por uma imagem contemporânea, por vezes justifica ações governamentais que resultam na completa destruição do passado, na busca pelo “moderno” e pela “inovação”, muitas vezes entendendo-se que o “passado” como um obstáculo ao “futuro” e ao “progresso”. Nessa acepção cabe o impressionante exemplo da conjuntura em torno da construção da Nova Biblioteca de Alexandria, no Egito , em pela era da Internet e dos livros virtuais, o governo egípcio gastou 200 milhões de dólares para construir uma obra que orgulharia aos faraós, com área superior a 85.000 metros quadrados, e continua censurando obras literárias.

Essa distorção é reforçada pelas relações construídas contemporaneamente entre museu e mídia. A figura do museu para se destacar sobre o fundo urbano multiplica imagens, textos e sons, incorporando e sendo incorporada a produtos e processos de comunicação convenientes à cultura de massa. Poderíamos sustentar essa linha de argumentação não só pela observação da multiplicação de instituições museais, mas também pelo apelo publicitário que tem provocado grandes “romarias” ás exposições temporárias, desfocando a atenção sobre os acervos permanentes. Esses últimos estão cada vez mais sujeitos a rearranjos temporários e em contrapartida, as exposições temporárias geram registros em vídeo e opulentos catálogos.

Aflora então a questão da Arquitetura como figura ou como fundo, perante a qual os museus contemporâneos que são eloqüentes por serem concebidos cenograficamente, como espetáculos que vendem a cidade, e não são feitos para expor nada, a não ser a si mesmos, a serem apreciados, antes das obras de arte que porventura venham a abrigar, como síntese das novidades que o mercado disponibiliza num dado momento. Silva (2006) os classifica como subterfúgios. De certa forma, esse aspecto da questão insere-se na tese da simulação, abordada no item anterior.

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As extensas áreas urbanas objeto de especulação dos fluxos de capital já foram apontadas por Jameson como o paradoxo da desterritorialização. Na outra ponta está a construção de super-arquiteturas (quer na grande dimensão, quer na assinatura) para eventos culturais. Como aplicação financeira que coaduna investimento imobiliário e produção do imaginário, a arquitetura é duplamente eficaz quanto aos rendimentos que reciprocamente se produzem: valorização das áreas urbanas do entorno e valoração da produção cultural. (SPERLING, 2005, p. 4)

Na verdade, a fotografia é insuficiente diante da dinâmica visual incorporada aos exemplos mostrados. A busca pelo assombro não se dá apenas ao nível do contraste com a paisagem urbana edificada, pela escolha de materiais construtivos insólitos como titânio ou chapas poliéster acrílico mas também pelo uso de dispositivos e automação com alta tecnologia incorporada, como asas que se movimentam conforme a incidência do sol ou uma fachada multimídia utilizando lâmpadas fluorescentes. Encorajo o leitor a buscar na internet vídeos que demonstrem melhor esse aspecto dinâmico, que remete ao entretenimento, á publicidade, ao ócio, à mise-en-scéne e ao espetáculo .

Esse é um dos lugares aonde conduzem, por vias diferentes, tanto a pretensa neutralidade técnica da arquitetura modernista quanto à prometida inovação tecnológica da arquitetura pós-moderna, em seus tortuosos percursos no século passado.

Outro tema relevante para uma investigação fora do propósito deste artigo é o quanto a Arquitetura espetacular de museus falha em um dos compromissos básicos do museu, que é o da conservação preventiva dos objetos do acervo. De uma maneira geral, materiais construtivos como o aço e o vidro (ou até mesmo o titânio) aumentam o potencial de risco sobre os acervos, ao permitiram uma maior amplitude microclimática no interior dos mesmos.

A construção de um museu é um processo que revela um aguerrido jogo de interesses variados, em que os agentes envolvidos estão também preocupados com a construção da própria imagem, o que, frequentemente, prejudica a própria essência artística e cultural da instituição. Abaixo, são enumerados graficamente alguns exemplos em que as imagens, previamente evocadas como meio e finalidade da concepção e recepção

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arquitetônica contemporânea, ilustram a temática abordada acima.

2.3. Novas funções para os museus no século XXI

A superação das condições levantadas no item anterior coloca, para a museologia e a Arquitetura de museus do século XXI, o desafio de redimensionar a própria experiência museal, possibilitando, pela mediação tecnológica, novas formas de percepção, visibilidades e uma apropriação mais participativa do conhecimento, explicitando o museu como um espaço de ambigüidades e contradições, um espaço para explicitação de conflitos sociais. A Museologia vem demandando museus dinâmicos, cujo desenvolvimento se dê com a participação da comunidade e que mantenham os acervos em seus contextos originais.

Bertotto (2007, p.14) fala em um museu integral: “um novo conceito de ação museológica, que propõe à comunidade uma visão de conjunto do seu meio material e cultural –, para melhor conhecer o universo e a relação das casas museais com as políticas públicas específicas para a área da Museologia”.

Já para Rocha (2007, p. 260), Nos últimos anos, para além dos museus tradicionais, assistimos à emergência de outras instituições de memória, com propostas distintas das que pontuaram grande parte de nosso imaginário social. Presenciamos um novo movimento, que revitaliza o museu como um centro de práticas culturais contemporâneas, a partir da introdução das tecnologias comunicacionais e informacionais. Essas práticas reconfiguram a experiência museal, pois, mais do que possibilitar um redimensionamento nas formas de percepção e visibilidade, viabilizam um processo mais interativo e participativo do visitante. Tal processo é potencializado pelo lúdico, o que, entre outros aspectos, provoca um “reencantamento” pela técnica. (ROCHA, 2007, p 260)

As práticas culturais propostas acima estariam vinculadas às temáticas de interesse do museu, e superam a prática expositiva, abrindo novos espaços de interação, como cursos, oficinas, palestras, etc. A autora destaca, como exemplo de museu emergente neste novo cenário, o Museu da Língua Portuguesa, inaugurado em 2006, em São Paulo.

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Ademais, é necessário repensar o papel dos museus na indústria de turismo cultural para deixar de ser uma mera atividade de lazer, a qual, dentre outros impactos perversos produz o aprofundamento das dicotomias entre o centro e a periferia das cidades, na medida em que normalmente as áreas escolhidas para receberem os investimentos são aquelas que já dispõem de infra-estrutura implantada. Transformadas em balcões, as cidades disputam as fichas na roleta financeira e as hordas de turistas que circulam pelo mundo.

Museus e site museums (...) realizam encenações do passado, que se constituem em atrativos turísticos. Essas encenações muitas vezes estão descaracterizadas pela banalização de rituais, ou apresentam uma visão congelada no tempo de uma história que é, por natureza, dinâmica, ou passam uma visão folclórica (...) esquecendo as penúrias derivadas da pobreza, das doenças e das contradições sociais. (BARRETO, 2004, p.44)

Considerações finais

No contexto de mediação tecnológica, uma questão relevante é a digitalização dos acervos e a preservação dos novos suportes digitais, o que coloca o foco nos problemas de interface, enquanto que para a museologia e a preservação tradicionais, o foco recai sobre os objetos. A própria estruturação da hiper-mídia e do hiper-texto está mais próxima dos mapas e vínculos em redes neurais que construímos para interpretar a realidade, constituindo um avanço na representação dos processos da consciência e da imaginação. Nesta fronteira difusa entre materialidade e virtualidade caminhará a museologia do século XXI.

A arquitetura contemporânea de museus, ação indutora e representação sensível, tem cumprido muito bem sua parte na questão central para a estética idealista, a associação de uma beleza – espetacularizada e normativa - ao desenvolvimento progressivo da história. Para Tafuri, a perda de força crítica da arquitetura marca o final de sua missão; a promessa de resolução dos problemas da cidade é substituída pela promessa de resolução das questões de mercado. E, como aponta Arantes, o arquiteto urbanista conscientemente convertido em ‘urban imagineer’, tem se tornado um dos operadores-chave dessa máquina, reunindo num só personagem o manager (o planejador-empreendedor identificado por Peter Hall) e o ‘intermediário cultural’. (SPERLING, 2005, p. 6)

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Para quem frui a Arquitetura somente pelo sentido da visão, os museus contemporâneos espetaculares são cenários para fotos memoráveis, símbolos da vanguarda, talvez. No entanto, para a população que ambiciona espaços de afirmação, participação e apropriação cultural, eles não dizem muito, ou não dizem tudo o que poderiam.

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Referências

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A Contribuição da Ciência e Tecnologia à Teoria da Conservação

André Luiz Guedes Martins Mestrando PPGA-EBA-UFMG

Luiz Antônio Cruz Souza (Orientador)

Resumo Este artigo pretende refletir acerca de bases filosóficas concernentes à elaboração de modelo de ação gerencial amplo e flexível capaz de comportar as contribuições científicas e tecnológicas ao campo da conservação, buscando estabelecer análise crítica de atuação entre os profissionais originais, como historiadores, historiadores da arte, arqueólogos e arquitetos, com os profissionais da área de conhecimento científico, especialmente físicos, químicos e engenheiros.Palavras-chave: Ciência, Tecnologia, Filosofia, Conservação, Gerência

Abstract This article attempts to reflect about the philosophical basis concerning to build a flexible managerial action that allow the scientific and technical contribution to conservation. The model pursues to settle a critical action among all the practitioners, just as historians, art historians, archaeologists, architects and physicals, chemists and engineersKey words: Science, Technology, Philosophy, Conservation, Management

Introdução

A Carta de Veneza, divulgada em 1964, estabelece que a conservação e o restauro dos monumentos devem recorrer a todas as ciências e a todas as técnicas que possam contribuir para o estudo e para a salvaguarda do patrimônio cultural. A admissão de profissionais da área de conhecimento científico traz um importante questionamento filosófico acerca do modelo gerencial desejável e eficaz para a contribuição das ciências, buscando estabelecer clima propício para abordagem de temas e interação cognitiva sinergética de todos os profissionais envolvidos no novo desenho constitutivo da conservação. Tal é a proposta deste artigo que busca referência teórica em fontes filosóficas variadas e divergentes, porém sólidas e consistentes.

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xtoEstratégias contemporâneas

A Carta Internacional sobre a Conservação e o Restauro dos Monumentos e dos Sítios, conhecida como Carta de Veneza, divulgada em 1964 e adotada pelo ICOMOS em 1965 defende que os monumentos históricos de gerações passadas devem permanecer como testemunha viva de suas antigas tradições e como patrimônio comum a ser salvaguardado na totalidade de riqueza e autenticidade. Destaca que devem ser estabelecidos princípios orientadores de conservação em escala internacional que reconheçam e levem em consideração a história, a cultura e a tradição de cada sociedade envolvida. O documento estabelece no artigo dois que a conservação e o restauro dos monumentos deve recorrer a todas as ciências e a todas as técnicas que possam contribuir para o estudo e para a salvaguarda do patrimônio cultural. O significado da mensagem é claro e admite de maneira ostensiva a introdução da ciência e da tecnologia ao campus da conservação. No artigo dez, afirma que quando as técnicas tradicionais forem inadequadas, deve-se empregar qualquer técnica moderna, cuja eficácia tenha sido demonstrada por dados científicos e comprovada pela experiência. A admissão de profissionais da área de conhecimento científico traz um importante questionamento filosófico acerca do modelo gerencial desejável e eficaz para a contribuição das ciências, especialmente a física e a química, buscando estabelecer praxe sinergética com os profissionais originais, tais como historiadores, historiadores da arte, arqueólogos e arquitetos.Tal é o desafio que agora inicia-se, buscando a colaboração de reconhecido profissional da Química e avançando depois em direção a filósofos e sociólogos que auxiliem na elaboração de um modelo viável, de conformação gerencial, capaz de suportar todos os campi de conhecimento.

Reconheçamos desde o começo que a ciência está aqui para ficar. A busca da ciência e da tecnologia representa uma forte subcultura em nossa sociedade, isto para dizer o mínimo. Ambos artista e historiador da arte têm sido e continuarão sendo por algum tempo apreciavelmente influenciados pela prática e filosofia do cientista e do engenheiro. Considerando esta circunstância, o humanista, tão bem quanto o tecnólogo, devem fazer o melhor

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possível. Devemos utilizar as ferramentas aproveitáveis da ciência e da tecnologia para apoiar as ações rumo às metas que a sociedade considera valiosas. A palavra de ordem é auxiliar. (FELLER em WHITMORE, 2002, p. 620)

A afirmativa inaugural providencia recursos para discussão ideológica proveitosa, que vindo acompanhada de consistente embate de interesses vigorosos, leva a formulações desejáveis, úteis e colaborativas aos objetivos da conservação. O debate inicia-se com a questão conceitual de ciência e tecnologia e como, hoje em dia, sendo tomadas em contínuo, parecem ser coisa única, inseparáveis em gênese e ação. Outro questionamento relevante é a consideração inexorável da representação científica como subcultura, ou melhor, dizendo, nicho de uma cultura dominante. É intrigante, portanto, aprofundar-se nesta análise que certamente é pedra angular de uma ideologia compacta.

Braverman, em sua obra Trabalho e Capital Monopolista, afirma que “a ciência é a última – e depois do trabalho a mais importante – propriedade social a converter-se num auxiliar do capitalismo.’’ Prossegue afirmando que a conexão entre ciência e capital “era indireta, geral e difusa – não apenas porque a ciência não estava ainda estruturada diretamente pelo capitalismo nem dominada pelas instituições capitalistas, mas também devido ao importante fato histórico de que a técnica desenvolveu-se antes e como um requisito prévio para a ciência.” Continua, alegando que “em vez de formular significativamente novos enfoques das condições naturais de modo a tornar possíveis novas técnicas, a ciência, em seus inícios sob o capitalismo, no mais das vezes, formulou suas generalizações lado a lado com o desenvolvimento tecnológico ou em conseqüência dele.’’

Atentando ao pensamento de Braverman encontramos a chave de entendimento para a distinção entre ciência e tecnologia, rompendo o incômodo posicionamento de nexo inquestionável; a tecnologia é algo diverso da ciência e se hoje estão tão intimamente ligadas, isto deve-se à força do capitalismo, pois que a ciência tem origem mais quintessenciada, buscando sua gênese na filosofia, enquanto a tecnologia surge das fontes viscerais da economia. Compreender, pois, tão notável diferença é mais que um dever profissional é um compromisso ético, que deve esmerar-se sempre em reconhecer a diversidade de conceitos e sua implicação,

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principalmente no que refere-se à dignidade humana. Daí pode-se conceber que a ciência, aliada a princípios filosóficos genuínos, possa achegar-se à teoria da conservação como contribuinte solidária e igualitária, respeitando a diversidade de conhecimentos. Quanto à colaboração da tecnologia, independentemente de seu viés capitalista, deve-se considerar sua contribuição, desde que não seja tomada como mandatória de pensamento e ação reducionista.

Ainda resta a questão de análise e compreensão da representação científica e tecnológica como forte subcultura em nossa sociedade atual. Novamente Braverman indica-nos linha de raciocínio consistente ao afirmar que a revolução técnico-científica do final do século XIX tinha um caráter consciente e proposital, transformando a ciência em mercadoria comprada e vendida como outros implementos e trabalhos de produção; a ciência deveria, portanto, ser compreendida, a partir de então, em sua totalidade, como um modo de produção. A ciência, antes tomada como propriedade social, tornou-se propriedade capitalista e passou a marcar sensivelmente a cultura contemporânea como meio de propaganda e de adaptação ao novo estilo acirrado de vivência humana.

A citação inicial encerra-se com a afirmativa de que artista e historiador da arte continuarão algum tempo ainda influenciados pela prática e filosofia do cientista e do engenheiro, que representando o modo pensante fortemente capitalista, causam um desequilíbrio na valorização dos conhecimentos de cada especialidade profissional partícipe; deve-se, pois, após a lembrança deste processo histórico, buscar alternativas de conduta que possibilitem um novo modelo de ação sistêmica e mais dinâmica. É necessário estabelecer a visão e a praxe perenes não apenas para alcançar índices de desempenho, resultantes de algum arbítrio institucional, mas para equilibrar e reconhecer igualmente o poder das forças atuantes, para acordar a objetivos comuns e para esclarecer o sentido da causa conservacionista.

Este é um dos pontos que eu gostaria de indicar: a ciência não é monolítica; há muitos caminhos para sua prática. Além disto, alguns profissionais da equipe estão em melhor posição para assistir ao conservador do que outros. O cientta é apenas mais um membro da equipe; a ciência é

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apenas uma das várias disciplinas que podem ser invocadas. (FELLER em WHITMORE, 2002, p. 621)

A construção de um modelo filosófico básico para sustentação das contribuições científicas e tecnológicas ao campo da conservação é mister para todos os profissionais de áreas de conhecimento que se tornem afim à atividade em questão, desde os colaboradores mais antigos, como historiadores, historiadores da arte, arqueólogos e arquitetos até aqueles ulteriormente chegados, como físicos, químicos e engenheiros. A questão primordial é a construção de um modelo de ação gerencial amplo e flexível capaz de comportar as contribuições individuais e coletivas de cada participante. Aqui, portanto, deve-se atentar ao conceito de habitus, defendido por Pierre Bourdieu, que apresenta uma alternativa ao sentido histórico antagônico sujeito-objeto e também ao conceito estruturalista, buscando a visão criativa e participativa do agente. Habitus é compreendido como: “(...) um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de aspirações e ações – e torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas (...)” (BOURDIER, 1983, p. 65)

Ora, o conceito exposto é bastante valioso, pois estabelece um lugar de alternativa às teorias antagônicas do individualismo, do marxismo e do estruturalismo; busca identificar o indivíduo, depois a sociedade e finalmente a mediação filosófica para a elaboração teórica de cada participante, conciliando a forte oposição entre a realidade solidamente constituída do mundo exterior com as realidades, ou talvez, melhor dizendo, com as percepções e com as ações decorrentes de cada mundo individual e profissional. Este pensamento conduz a elaboração primorosa de coincidência do indivíduo e sua subjetividade ao social e coletivo instituído, ou seja, é o reconhecimento do conjunto percepção-ação que é praticado dialeticamente, conforme as condições estimulantes dos vários campi envolvidos. Pressupõe-se a existência de um elo dialético entre sujeito e sociedade, entre habitus individual e a estrutura de cada campus, socialmente constituído, sendo apenas uma forma de ajustamento ou desajustamento de um sistema aberto e alterado continuamente. Em outras palavras, o conceito de habitus contesta que a ordem social funcione apenas pela lógica da reprodução e defende que sua constituição deve-

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se dar através de estratégias e práticas nas quais os indivíduos reagem, adaptam-se e contribuem para fazer a história. “Eis o porquê que a ciência e a tecnologia foram admitidas (na conservação): na esperança que possíveis benefícios pudessem vir. E note que antes usou-se a palavra auxílio; agora, esperança. Não há garantia de que fazendo-se tudo pelo caminho científico, necessariamente serão feitas da melhor maneira.” (FELLER em WHITMORE, 2002, p. 621)

A admissão da ciência à conservação exige o reconhecimento de um modelo de pensamento relacional, tal como em outras interações semelhantes, capaz de estabelecer a hipótese de existência de homologias estruturais e funcionais entre esses campi de conhecimento. Tal modelo busca uma eficiência heurística, munindo a ciência do sentido de construção do objetivo coletivo junto à conservação, satisfazendo à necessidade de composição do novo campus.

Conforme Bourdieu, a ciência deve apreender a obra de arte na sua dupla necessidade: necessidade interna desse objeto maravilhoso que parece subtrair-se à contingência e ao acidente, em suma, tornar-se necessário ele próprio e necessitar ao mesmo tempo do seu referente; necessidade externa do encontro entre uma trajetória e um campo, entre uma pulsão expressiva e um espaço dos possíveis expressivos, que faz com que a obra, ao realizar as duas histórias de que ela é produto, as supere.(BOURDIEU, 1983, p. 70)

A ciência deve assim tomar consciência de seu papel que não é outro senão aquele de fazer-se integrante da história e em especial de reconhecer a história da arte, em sua autonomia de relações objetivas com outros campi de conhecimento, no passado, presente e futuro. Deve-se aproximar a ciência e também seu aparato tecnológico, mesmo conhecendo sua origem capitalista, do princípio filosófico genuíno.

Pode-se agora retornar a Hegel, citando os seguintes trechos:

Bem sabemos que a ciência parte do sensível individual e pode possuir uma idéia do modo como este particular existe diretamente com a sua cor, sua forma, sua grandeza individuais, etc. Mas este sensível particular não tem qualquer relação com o espírito, porque a inteligência procura o universal, a lei, a idéia, o conceito do objeto e, em vez de o abandonar à sua individualidade imediata,

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sujeita-o a uma transformação íntima no termo da qual o que era um sensível concreto aparece como um abstrato, como uma coisa pensada, totalmente diversa do objeto enquanto sensível. Tal é a diferença que separa arte e ciência. (HEGEL, 1996, p.57)

O pensamento de Hegel aparece claro nestas citações nas quais o conceito de individualidade sensível é marcantemente distinto na arte e na ciência; para a primeira, o sensível constitui-se no aspecto imediato, estético por excelência, podendo ou não avançar além do próprio objeto, já para a segunda, propõe-se à busca da essência e da natureza íntima deste sensível. A distinção indica a necessidade da ciência em revelar a constituição íntima de todas as coisas, buscando na razão a universalidade de conceituação, enquanto o interesse da arte atende aos gostos, sentidos e sentimentos humanos e vai além, buscando o aspecto histórico e os valores estético-artístico e filosófico.

Até o momento, a tentativa de elaboração de modelo gerencial multidisciplinar capaz de comportar as contribuições individuais e coletivas de cada área partícipe tem angariado defesas significativas, mas também alguma controvérsia. A posição de Hegel abre um questionamento acerca da ligação da ciência à arte e para o qual deve-se atentar à inteligência e ao espírito como pontos de união. Tanto inteligência como espírito atêm-se ao contínuo de conhecimento que mantém unidas arte e ciência, através da característica da materialidade, entendida diversamente em exterioridade estética, histórica e filosófica e interioridade constituitiva. Faz-se necessário, pois, também aqui, estabelecer o papel da ciência e equilibrar as ações das variadas disciplinas cooperadoras básicas, nesta expressão de materialidade.

Interessante buscar agora a colaboração de Nietzche, registrada no texto de Flávio Senra. O texto afirma que “a racionalidade científica atua como qualquer religião que exige o sacrifício de si em benefício da investigação. A investigação científica é o fim em si e substitui os antigos ideais ou ídolos, impondo a renúncia a tudo que seja estranho. O sacrifício pedido aos crentes faz com que a ciência seja animada por ideais não-científicos e, portanto, adote o mesmo modo de atuar dos velhos ídolos. A nova fé inaugura um novo estilo que, por sua vez, fundamenta o conjunto das relações dos homens entre si, o que constitui uma maneira

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de compreender-se e de compreender seu estar no mundo.” O artigo apresenta o pensamento de Nietzche, “criticando a cultura de seu tempo, alertando para o significado do abandono das questões fundamentais da existência que são desprezadas em prol da assimilação de uma massa de conhecimentos genéricos e superficiais. Assim, o sopro originário de libertação dos velhos ídolos acaba por transformar-se na repetição do mesmo e velho modo de negação do mundo. A mesma debilidade encontra na ciência sua nova justificação.” Continuando, “denuncia os “senhores” da nova fé, os comerciantes, o Estado e os sábios em sua complacência pelo superficial, utilitário e prazeroso. A nova fé, nascida de uma frustrada desmistificação daquele mundo verdadeiro e sustentada pelas antigas crenças, oculta e vela os sacrifícios idênticos aos da velha fé.” (SENRA, 2008, p. 7)

A intervenção de Nietzche abala os conceitos apresentados até o momento, pois revela os ideais não-científicos da ciência, melhor chamados ideológicos, antes indicados em Braverman. Ao compreender os caminhos da ciência, sempre engajada ao poderio econômico e político, pode-se reconhecer o modo de dominação imposto à sociedade. A ruptura da essência da vida configura-se irrepreensível, abalando a frágil conexão estabelecida entre arte como expressão humana e, em suma, a própria vida e ciência como extensão capitalista. O pensamento de Hegel, visto em ótica diferente, aponta a divergência de princípios de análise dos campi de conhecimento; a arte, com visão exterior, considerando os aspectos individuais do objeto e a ciência, com visão universalizada de conceito, detendo-se em constituição e desempenho. A arte, como expressão humana, ata-se à história e estética, conformações sensíveis de nosso universo dimensional, enquanto a ciência, como tradução da razão e lógica, relaciona-se ao micro-universo, presumível em alguns conceitos e questionável em algumas práticas ainda incertas.

Como então elaborar um modelo filosófico para aporte das contribuições científicas ao campo da conservação já que o embate ideológico consome as tentativas ensaiadas? Parece aceitável, se bem que certamente não seja esta a palavra mais adequada, pesquisar algum conhecimento teórico que assista melhor ao objetivo aqui pretendido. O conceito de habitus, de

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Pierre Bourdieu, parece bastante válido, mas carece de apoio basal, que o possibilite consolidar-se em meio aos conceitos apresentados. É razoável retornar o pensamento à fundamentação filosófica de Aristóteles, certamente um repositório original de idéias, na tentativa de esclarecer e dar consistência às elucidações aqui propostas. Em Ética a Nicômaco, afirma o filósofo:

Sendo a virtude, como vimos, de dois tipos, nomeadamente, intelectual e moral, a intelectual é majoritariamente tanto produzida quanto ampliada pela instrução, exigindo, conseqüentemente, experiência e tempo, ao passo que a virtude moral ou ética é o produto do hábito, sendo seu nome derivado, com uma ligeira variação da forma, dessa palavra. E, portanto, fica evidente que nenhuma das virtudes morais é em nós engendrada pela natureza, uma vez que nenhuma propriedade natural é passível de ser alterada pelo hábito. (ARISTÓTELES, 2007, p. 67)

O apoio cognitivo citado passa a distinguir claramente o sujeito como ator predominante, proporcionando-lhe autonomia excepcional para assumir a condução do processo de elaboração do modelo filosófico de ação gerencial capaz de comportar as contribuições individuais e coletivas de todos os campi de conhecimento envolvidos. Atam-se, portanto, as idéias de Aristóteles, Hegel e Bourdieu em defesa da autonomia do sujeito que deve ter predominância na modelagem da ação gerencial, que deve ser conduzida de maneira descentralizada, sem extremos burocráticos ou excessos pessoais de poder. A colaboração nietzchiana torna-se especial pela relevância da crítica contumaz aos ideais não-científicos da ciência, identificados como ideológicos ou apenas como arroubos personalistas. Esta indicação de descaminhos da ciência, conectada ao modo de dominação social, evidencia a ruptura com a essência da vida humana e conduz à formulação crítica quanto aos seus limites e também aos limites de ação individual.

Há, portanto, uma ação ética a ser erigida e mantida fortemente na atuação da ciência no campus da arte, que passa a ser base para o modelo filosófico e gerencial. Não basta mais simples cognição, exige-se atuação ética que estabeleça virtude no próprio pensamento, antes de consolidá-lo em ações dialéticas pela causa da conservação.

Setton dá consistência à exposição anterior, afirmando:

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Reitero a necessidade de considerar o habitus um sistema flexível de disposição, não apenas resultado da sedimentação de uma vivência nas instituições sociais tradicionais, mas um sistema em construção, em constante mutação e, portanto, adaptável aos estímulos do mundo moderno: um habitus como trajetória, mediação do passado e do presente; habitus como história sendo feita; habitus como expressão de uma identidade social em construção. (Setton, 2002, p. 67)

O modelo de ação gerencial multidisciplinar, flexível e ético almejado para o aporte científico e tecnológico deve refletir a plena autonomia de cada campus e cada habitus, tomados em equipes interdependentes e ligadas ao todo organizacional do campus da conservação, tendo na coordenação da atividade o campus que estiver na posição mais estratégica de negociação tanto com o ambiente interno como com o externo. É importante que seja alcançada a atenuação de hierarquia e o compartilhamento de poder e responsabilidade, com a evidência de valores vivenciados e de comunicação intensiva. A estrutura gerencial de coordenação deve estar constantemente ligada ao meio social originário da atividade desenvolvida no momento, buscando neste manancial os valores e a inspiração para a sinergia de ação.

É certo que concepções rígidas, faceadas a modelos de organização autoritários, quer em aspecto institucional ou mesmo em caráter pessoal, trazem apenas a redução da amplitude de colaboração humanística e profissional de todos os campi envolvidos; os habiti envolvidos deixam a condição de concorrência para se concertarem em objetivo maior que é a conservação de patrimônio cultural.

O alcance deste modelo de ação gerencial está condicionado ao sucesso apenas como expressão clara de uma identidade social, em que todos compartilhem poder e responsabilidade em benefício da causa conservacionista.

Considerações Finais

A admissão de profissionais da área de conhecimento científico traz um importante debate filosófico acerca do modelo gerencial desejável e eficaz para a contribuição das ciências, buscando estabelecer ação sinergética com os profissionais originais da área.

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É necessário atentar ao conceito de habitus, defendido por Pierre Bourdieu, que apresenta uma alternativa ao sentido histórico antagônico sujeito-objeto e também ao conceito estruturalista, buscando a visão criativa e participativa do agente. Este pensamento conduz a elaboração primorosa de coincidência do indivíduo e sua subjetividade ao social e coletivo instituído, ou seja, é o reconhecimento do conjunto percepção-ação que é praticado dialeticamente, conforme as condições estimulantes dos vários campi envolvidos.

A ciência deve assim tomar consciência de seu papel que não é outro senão aquele de fazer-se integrante da história e em especial de reconhecer a história da arte, em sua autonomia de relações objetivas com outros campi de conhecimento, no passado, presente e futuro.

O pensamento de Hegel questiona a ligação da ciência à arte e para o qual deve-se atentar à inteligência e ao espírito como pontos de união. Tanto inteligência como espírito atêm-se ao contínuo de conhecimento que mantém unidas arte e ciência, através da característica da materialidade, entendida diversamente em exterioridade histórica e estética e interioridade constituitiva.

O pensamento de Nietzche afirma que a ciência é animada por ideais não-científicos e, portanto, adota o mesmo modo de atuar dos velhos ídolos. Ao compreender os caminhos da ciência, sempre engajada ao poderio econômico e político, pode-se reconhecer o modo de dominação imposto à sociedade. A ruptura da essência da vida configura-se irrepreensível, abalando a frágil conexão estabelecida entre arte como expressão humana e, em suma, a própria vida e ciência como extensão capitalista.

O apoio cognitivo apresentado no pensamento de Aristóteles distingue claramente o sujeito como ator predominante, proporcionando-lhe autonomia excepcional para assumir a condução do processo de elaboração do modelo filosófico de ação gerencial.

Há, portanto, uma ação ética a ser erigida e mantida fortemente na atuação da ciência no campus da arte, sendo necessário virtude no próprio pensamento, antes de consolidá-lo em ações dialéticas pela causa da conservação.

O modelo de ação gerencial multidisciplinar, flexível e ético almejado para o aporte científico e tecnológico deve refletir a plena autonomia

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de cada campus e cada habitus, tomados em equipes interdependentes e ligadas ao todo organizacional do campus da conservação. É importante que seja alcançada a atenuação de hierarquia e o compartilhamento de poder e responsabilidade, com a evidência de valores vivenciados e de comunicação intensiva.

O modelo concebido reflete a filosofia de valorização do indivíduo e da sociedade, adotando-se os limites da crítica dialética como recurso arbitral, que, mesmo assim, é incapaz de deter as atitudes e procedimentos desviados destes objetivos. Apenas a plena consciência da ética de todos os participantes pode delimitar seguramente a contribuição da ciência e da tecnologia, sem o imperdoável comportamento de exclusividade de conhecimento técnico e de dominação ideológica.

___________

Referências

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Edson Bini. 2ª. ed. São Paulo: Edipro, 2007.319 p.

BOURDIER, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.

BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX. Tradução de Nathanael C. Caixeiro. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Zoar Editores, 1981. 379 p.

HEGEL, G. W. F. Curso de estética: o belo na arte. Tradução de Orlando Vitorino e Álvaro Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 666 p.

SENRA, Flávio. Ética e conhecimento científico. VI Simpósio do ICH PUC Minas, setembro de 2008.

SETTON, Maria da Graça Jacintho. A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura contemporânea. Revista Brasileira de Educação, número 20, p.60 – 69, mai - ago 2002.

WHITMORE, Paul M. Contributions to conservation science: a collection of Robert Feller’s published studies artists’ paints, paper and varnishes. Pittsburgh: Carnegie Mellon University Press, 2002. 665 p.

YOURCENAR, Marguerite. Memórias de Adriano. Tradução de Martha Calderaro. São Paulo: Círculo do Livro, 1974. 296 p.

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Análise de conteúdo e análise de citação: uma metodologia possível para o estudo do patrimônio cultural

Ana Paula SilvaDoutoranda PPGCI-ECI-UFMG

Alcenir Soares dos Reis (Orientadora)

Resumo

A história do conhecimento não se dá de forma linear, ela avança na medida em que os homens produzem conhecimento e os registram. A produção de conhecimento pode ser apreendida através de técnicas e de saberes em que é possível ao homem visualizar qualitativamente e quantitativamente a produção de científica, através de suas publicações e de sua produção intelectual. Através da análise da sua literatura podem-se definir suas características principais a partir de seu corpus. Este trabalho tem como objetivo estabelecer para a área de patrimônio cultural a utilização da análise de conteúdo e de citação, como um meio para delimitar o referencial teórico e possibilitar o entendimento do termo patrimônio e de suas relações como outros campos disciplinares.

Palavras-chave: Patrimônio, análise de citação, análise de conteúdo, conhecimento.

Abstract

The history of the knowledge not if of the one of linear form, it advances in the measure where the men produce knowledge they register and them. The knowledge production can be apprehended through techniques and to know where it is possible to the man to visualize qualitatively and quantitatively the production of scientific, through its publications and of its intellectual production. Through the analysis of its literature its main characteristics from its corpus can be defined. This work has as objective to establish for the area of cultural patrimony the use of the citation and content analysis, as a way to delimit the theoretical referencial and to make possible the agreement of the term patrimony and its relations as other fields to discipline.

Key words: patrimony, analysis citation, content analysis, knowledge.

Introdução

A história do conhecimento não se dá de forma linear, ela avança na medida em que os homens produzem conhecimento e os registram em diferentes registros; com o passar do tempo altera sua estrutura de produção e de organização social. A produção de conhecimento pode ser apreendida através de técnicas e de saberes em que é possível ao homem dimensionar

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qualitativamente e quantitativamente a produção de conhecimentos, através de suas publicações e de sua produção intelectual. Segundo, Rocha e Deusadrá (2005),

com efeito, a constituição de novos paradigmas científicos impõe uma outra dinâmica, qualquer que seja o campo de saber em que nos situemos. De modo geral, as transformações sucessivas por que têm passado as ciências demonstram irregularidades e rupturas, em vez de um movimento contínuo e retilíneo. Sobretudo no que tange às ciências humanas e sociais, o que se dá não é a mera substituição de um caminho enganoso por caminhos promissores de novas verdades. Trata-se antes de novas perspectivas, que vêm participar da cena, de opções teóricas diversas daquela em relação à qual se produz uma ruptura ou do desejo de redimensionar o objeto de estudo.”

A literatura é a materialização de divisão de campos do conhecimento humano, através da análise da sua literatura podem-se definir suas características principais a partir de seu corpus, ou de seu core. A ciência da conservação carece de manter, e fortalecer o seu espaço específico diante dos diferentes campos científicos. Ao se estudar espaços científicos, não muito abertos como a ciência da conservação, a utilização das técnicas de análise de conteúdo e análise de citação, oferecem meios para delimitar o referencial teórico e possibilitar o entendimento do termo e de suas relações como outros campos disciplinares.

Este trabalho tem como objetivo estabelecer uma análise de conteúdo e análise de citação, sobre o tema patrimônio cultural. Tal estudo foi realizado como trabalho final da disciplina “Análises no Processo Classificatório para Sistemas de Recuperação de Informação” ministrada pela professora Lídia Alvarenga, no curso de Pós-graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais em 2009. Naquele momento, pretendia-se analisar a aplicação dos métodos sob o enfoque do patrimônio cultural, tema central da tese, ainda em curso, que possui como objeto de pesquisa a trajetória informacional percorrida por Mário de Andrade, no período anterior ao Anteprojeto de 1936, que seria o documento basilar para a fundação do Instituto do Patrimônio Artístico Nacional (IPHAN) no início do século XX. Tal tema oferece espaço de debate para avaliar os avanços e as transformações que ocorreram no plano das políticas voltadas à proteção do patrimônio cultural. A adequação do trabalho sob o enfoque

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da ciência da conservação, na oportunidade de apresentá-lo na disciplina “Princípios históricos e filosóficos da ciência da conservação” ministrado pela professora Yacy-ara Froner (2º semestre de 2010), possibilitou refletir sua aplicação e utilidade da metodologia, uma vez que a oportunidade de aplicar as técnicas de análise de conteúdo e análise de citação sobre este tema proporciona determinar as categorias existentes dentro do campo em discurso e também a dispersão e a produção do tema em diferentes campos de conhecimento, neste caso sob a luz da ciência da conservação. A seguir apresentamos as definições das técnicas e os resultados obtidos na aplicação das mesmas no conjunto dos artigos selecionados para o experimento.

Análise do Conteúdo

Segundo Laurence Bardin análise de conteúdo é definida como,conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens (BARDIN, 1977).

Análise de conteúdo prevê o estudo das bases epistemológicas da construção dos textos. Nela o objeto é a palavra e analisam-se o aspecto individual (sujeito) da linguagem e o tratamento da informação contida nas mensagens. Operam-se em sua construção análises lexicais e análise de categoria. A aplicação da análise conteúdo pode ser em qualquer tipo de texto permitindo abordagens quantitativas e qualitativas. A análise de conteúdo é considerada uma técnica para o tratamento de dados que visa identificar o que está sendo dito a respeito de determinado tema (Vergara, 2005, p. 15). A finalidade da análise de conteúdo é produzir inferência, trabalhando com vestígios e índices postos em evidência por procedimentos mais ou menos complexos. As fases que fazem parte da análise de conteúdo são três: a pré-análise; a exploração do material; o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação.

Na Pré-análise ou leitura superficial do material e escolha dos documentos:

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nesta fase a Leitura Flutuante requer do pesquisador o contato direto e intenso com o material de campo, em que pode surgir a relação entre as hipóteses ou pressupostos iniciais, as hipóteses emergentes e as teorias relacionadas ao tema. A Constituição do Corpus é a tarefa que diz respeito à constituição do universo estudado, sendo necessário respeitar alguns critérios de validade qualitativa, como a exaustividade, a representatividade e a homogeneidade. A formulação e reformulação de hipóteses ou pressupostos se caracterizam por ser um processo de retomada da etapa exploratória por meio da leitura exaustiva do material e o retorno aos questionamentos iniciais. (MINAYO,2007).

A fase de exploração e análise do material refere-se a codificação, quantificação ou enumeração, e categorização: O investigador busca encontrar categorias que são expressões ou palavras significativas em função das quais o conteúdo de uma fala será organizado. Há o recorte do texto em unidades de registro que podem constituir: palavras, frases, temas, personagens e acontecimentos, indicados como relevantes para pré-analise.

A fase da Interpretação dá-se a partir da categorização, o pesquisador propõe inferências e realiza interpretações, inter relacionando-as com o quadro teórico desenhado inicialmente ou abre outras pistas em torno de novas dimensões teóricas e interpretativas, sugerida pela leitura do material.

Análise da Citação

O conjunto de referências bibliográficas (citações) utilizadas na elaboração de um documento mostra relacionamento de um documento com outro, evidenciando “elos entre indivíduos, instituições e áreas de pesquisa” (Rodrigues, apud, Noronha, 1998). Sua função é dar autoridade e credibilidade para os fatos citados no texto, além de permitir aos pesquisadores da área a oportunidade de conhecer trabalhos que tratam do tema de seu interesse. Assim, a análise das citações de um trabalho contribui para avaliar a informação coletada pelo tipo de literatura utilizada, dirigir o leitor para outras fontes de informação sobre o assunto, além de contribuir para o reconhecimento de um cientista em particular,

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entre os pares.

Segundo LEAL (2005) as citações têm uma relação direta com as condições de produção do trabalho científico, técnico ou artístico. Escolhem-se de maneira simbólica as passagens dos autores para ajudar:

• a refletir sobre a questão proposta; • para legitimar o pensamento;• para dar segurança em passagens polêmicas;• por questões ideológicas;• pelas afinidades com determinados grupos de autores que

têm posições teóricas semelhantes às nossas.As análises de citações podem dar credibilidade e reconhecimento aos autores uma vez que o caminho realizado pelos pesquisadores, através das citações, pode ser refeito por outras pessoas, conferindo a veracidade das informações coletadas. Os estudos tendo a análise de citação como método possibilitam refletir o desenvolvimento de um campo científico, e extrair dados informacionais sobre uma área de conhecimento e sobre um determinado assunto debatido nas comunidades acadêmicas e científicas.

No presente trabalho usamos como base a análise de citações 5 artigos, estes foram selecionados tendo o princípio da diversidade do tema patrimônio cultural. A seguir serão apresentados os materiais e os métodos utilizados.

Materiais e Métodos

Foram selecionados previamente 5 artigos focalizando o tema: patrimônio cultural. Além do assunto central também foi considerado textos que representassem a relevância dos autores no assunto no Brasil, bem como as relações estabelecidas com outros fatores que são inerentes, ou mesmo complementares para a elaboração e o entendimento do conteúdo teórico do patrimônio cultural como domínio do trabalho. Tais artigos deveriam ser relevantes para a compreensão do tema. Os artigos selecionados foram:

1. LEITE, Rogério Proença. Patrimônio e consumo cultural em cidades enobrecidas. Sociedade e cultura, V. 8, N. 2, JUL./DEZ. 2005, P. 79-89.

2. SANTOS, Maria Célia Teixeira M. . A preservação da memória enquanto instrumento de cidadania. Cadernos de museologia

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Nº 3 - 1994.3. SMOLKA, Ana Luiza Bustamante. A memória em questão: uma

perspectiva histórico-cultural. Educação & Sociedade, ano XXI, nº 71, Julho/00.

4. NOGUEIRA, Antonio Gilberto Ramos. Inventário e patrimônio cultural no Brasil. História, São Paulo, v. 26, n. 2, p. 257-268, 2007.

5. PELEGRINI, Sandra C. A.. A gestão do patrimônio imaterial brasileiro na contemporaneidade. História, São Paulo, 27 (2): 2008.

A escolha destes artigos deve-se ao fato de constituir o referencial teórico utilizado na elaboração do projeto de tese. Eles contemplam a discussão a respeito das políticas públicas de proteção ao patrimônio cultural material.

A metodologia de análise de conteúdo

Antes de determinar as categorias e suas definições, foi elaborada uma tabela relacionando os 5 artigos a termos ou palavras-chave contidos no corpo dos textos, a fim de determinar a freqüência ou ocorrência no conjunto da amostra. Este exercício teve como objetivo verificar a diversidade de termos presentes no conjunto e dimensionar quantitativamente o emprego dos termos. Foi construída com o software EXCELL, uma tabela de freqüência. A partir da análise das freqüências determinamos os termos associados ao assunto patrimônio. São os seguintes termos:

1. Bando de dados2. Comunicação3. Conservação4. Cultura5. Cultura coletiva6. Educação patrimonial7. Formação8. Gestão9. Informação10. Inventário

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11. Memória12. Memória coletiva13. Patrimônio14. Patrimônio cultural15. Patrimônio histórico16. Política cultural17. Preservação18. Restauração

A partir destes termos elencamos os mais frequentes, que foram:

Tabela 1: Ocorrências de palavras chave no conjunto dos artigos selecionados

A quantificação das ocorrências orientou a melhor visualização do uso do termo, porém, apenas quantificar as ocorrências no corpo dos textos não constitui análise de conteúdo, foi preciso criar uma tabela que possibilitasse a visualização dada o uso dos termos e suas definições e relacioná-los em categorias.

Em seguida, foi realizada uma leitura completa de todos os artigos, objetivando selecionar as partes mais significativas e que apresentavam definições sobre os termos. O próximo passo foi a realização da leitura flutuante, a fim de obter os termos que expressassem o conteúdo dos documentos. Após esta, foi selecionado dois assuntos: “preservação” e “políticas públicas de preservação”. Estes assuntos estão presentes em todos os artigos e constituem o foco de análise da proposta de estudo da tese.

A organização das categorias é justificada em função da contextualização do tema “noção de patrimônio” e “políticas públicas de preservação do patrimônio”, neste sentido os artigos devem expressar estas dimensões. No que se refere à categoria 1 “patrimônio cultural”, foi proposto a sub-

ASSUNTO OCORRÊNCIAMemória 277

Patrimônio 185Cultura 93

Preservação 61Patrimônio cultural 50

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categoria “bens culturais tangíveis”. Para a segunda categoria “Políticas públicas” foi definida a subcategoria “preservação” pois são um tipo de ação relacionadas ao patrimônio cultural material. Todas estas categorias são compreendidas e encontradas nos artigos e abordam os temas de conceito de patrimônio cultural e as políticas públicas de preservação.

A tabela a seguir apresenta a relação dos termos com os artigos:

Tabela 2. Definição de categoria por artigo

Resultados

No que concernem as categorias e subcategorias apresentadas apresentaremos as percepções de cada autor sobre as mesmas, apresentando as semelhanças de análise e pontos discordantes.

A grande categoria patrimônio cultural, nos artigos selecionados, por definição engloba as noções de memória e cultura. Nos cinco artigos selecionados o conceito de memória advém da área da antropologia cultural e da história, principalmente na nova histórica advogada por Pierre Nora, tal concepção de memória associada ao patrimônio cultural está presente nos textos, podemos fazer a interpretação desta leitura, como o fato de que os autores dos artigos selecionados possuem a mesma contextualização do conceito de patrimônio cultural.

Memória e cultura são assuntos guarda-chuva, pois são orientadoras dos trabalhos voltados à cultura material cultural, linha teórica adotada após a década de 1970 e refletida nos artigos selecionados.

SMOLKA, realiza uma leitura que difere dos outros autores, a autora prioriza que o patrimônio cultural está inscrito na memória coletiva e neste sentido a linguagem é um dos meios que propagam a noção de patrimônio.

ARTIGOSLEITE SANTOS SMOLKA NOGUEIRA PELEGRINI

Categoria 1 patrimônio cultural X X X X X

subcategoria1– Bens culturais tangíveis X X X X

Categoria 2 – políticas públicas X X X X

Subcategoria 2 – preservação X X X X X

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Ela diz: Os lugares topográficos como os arquivos, as bibliotecas, os museus; lugares monumentais como os cemitérios ou as arquiteturas, lugares simbólicos como as comemorações, as peregrinações, os aniversários ou os emblemas; lugares funcionais como os manuais, as autobiografias ou as associações: estes memoriais têm sua história. estes são os lugares de externalização da memória, a memória nas coisas, nas (manifest)ações coletivas. São muitos os sentidos de memória, muitos os sentidos de lugares da memória. Assim, aspectos do que conceituamos como “hitórico-cultural”, “ideológico” podem se tornar visíveis em uma análise da materialidade da língua, que constitui e estabiliza modos de ação e de elaboração mental, como práticas inscritas e instituídas na cultura.

A noção de patrimônio dada pela autora é associada a de memória coletiva estudando os meios, os modos, os recursos criados coletivamente no processo de produção e apropriação da cultura. A autora não apresenta considerações sobre a subcategoria “bens culturais tangíveis”, em função de sua discussão estar relacionada a linguagem ser instrumento da memória em diversos aspectos.

SANTOS realiza uma leitura onde discute a categoria patrimônio cultural, como utilizar a memória preservada, testemunho da História entendida como forma de existência social, nos seus diversos aspectos, econômico, político e cultural, bem como o seu processo de transformação. Para a autora a memória preservada constituindo patrimônio cultura contribui para a formação de cidadãos e tem sido um dos objetivos dos programas de ação cultural desenvolvido no país. A autora apresenta considerações sobre a subcategoria “bem culturais tangíveis” para ela:

O conceito de bem cultural no Brasil, em sua leitura o patrimônio ainda continua muito restrito aos bens móveis e imóveis: Permeando essas duas categorias existe uma vasta gama de bens - procedentes sobretudo do fazer popular - que por estarem inseridos na dinâmica viva do cotidiano não são considerados como bens culturais nem utilizados na formulação das políticas econômicas e tecnológica. No entanto, é a partir deles que se afere o potencial, se reconhece a vocação e se descobrem os valores mais autênticos de uma nacionalidade. Além disso, é deles e de sua reiterada presença que surgem expressões de síntese de

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valor criativo que constitui o objeto de arte.

A categoria patrimônio cultural aparece em todos os textos e está associada às duas vertentes de contextualização: sua noção conceitual e sua inserção como política pública. Entretanto, no que se refere aos objetos protegidos pelo patrimônio cultural como produção material, podemos perceber que todos os textos selecionados referem-se a estes materiais como bens culturais tangíveis, com exceção do texto de Smolka, que trata além deste conjunto de objetos, do patrimônio imaterial, ou seja, das manifestações folclóricas, das celebrações religiosas, dos cantos, costumes alimentares, etc.

Desta forma podemos fazer a categorização de bens tangíveis como sendo: peças, objetos, registros bibliográficos, iconográficos, documentos arquivísticos e coleções de bibliotecas. A todos estes objetos, amplamente denominados bens culturais tangíveis os autores dos artigos, os definem dentro de um grupo denominado patrimônio cultural, já que a inclusão destes objetos como sendo vocacionados e pertencentes ao patrimônio cultural e que sua preservação implica um processo de interpretação da cultura, como produção material e simbólica da sociedade.

LEITE amplia o conceito de patrimônio cultural e bem cultural voltado não apenas às rememorações da memória coletiva, mas também de usos mais pragmáticos da cultura, ele diz que “devemos tentar definir o patrimônio em função do significado que possui para a população, reconhecendo que o elemento básico na percepção do significado de um bem cultural reside no uso que dele é feito pela sociedade” para o autor a sociedade preserva aquilo que tem valor de uso e, portanto só se viabiliza o patrimônio se este uso estiver cercado de valores simbólicos e valores pragmáticos. Sobre a noção de bem cultural ele coloca que:

noção de uso que recupere os sentidos atribuídos pela sociedade aos bens culturais deveria conjugar o “valor efetivo”, que recupera o sentido de “pertença” dos indivíduos, e o “valor pragmático”, que implica o uso qualificado dos bens sem operar qualquer redução a um único uso específico. Negligenciar essa noção ampliada de uso pode contribuir para uma redução do espectro valorativo de um bem cultural, na medida em que o consideraria apenas como uma mercadoria passível de troca, com base em uma necessidade específica.

Para o autor é preciso que haja políticas de preservação que torne a

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assimilação e o entendimento da população aos bens culturais de forma a garantir a preservação do patrimônio. PELEGRINI coloca que numa perspectiva valorativa, o patrimônio cultural do país foi definido como conjunto de bens de natureza material e imaterial (tomados individualmente ou em sua totalidade) portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Entre tais bens se incluem: as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; sítios de valor histórico, urbanístico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. Essa dinâmica acepção de patrimônio, inspirada numa percepção antropológica de cultura, marcou os reptos do “Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial” e concretizou-se a partir do Decreto no. 3551/2000.

NOGUEIRA compartilha do mesmo conceito de contextualização ampla da noção do conceito de patrimônio cultural “Ou seja, é um sentido amplo de cultura que opera a noção de arte patrimonial, daí que a distinção entre o que é material e imaterial não cabe em uma concepção que tem como foco o conhecimento e o processo criativo” para o autor a experiência e a trajetória de vida de Mário de Andrade como precursor da efetiva institucionalização da defesa do patrimônio averiguado com a existência dos inventários de bens culturais e da inclusão do patrimônio cultural imaterial.

Já a categoria “políticas públicas” pode ser uma categoria independente, pois se refere de sobremaneira a algumas ações governamentais adotadas no que tange à proteção do patrimônio cultural brasileiro, incluindo a legislação pertinente. Políticas públicas estão presentes em todos os artigos, para os autores as ações de preservação devem ser alvo de formulação e implementação de políticas, já que são essenciais e devem ser tomada como garantia de preservação de tais objetos e de seu efetivo acesso á sociedade.

O processo de formulação de uma política envolve a identificação dos diversos atores e dos diferentes interesses que permeiam a luta por inclusão de determinada questão na agenda pública e, posteriormente, a

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sua regulamentação, através de publicização e da ação do estado e/ou de instituições que as monitorem e a coloquem na agenda pública, inclusive com dotação orçamentária e etc. As políticas públicas de preservação vão além dos cuidados relativos à estabilização física dos documentos, elas referem-se ao acesso e a guarda dos objetos como forma de manter a memória para a prosperidade.

A associação entre políticas públicas de patrimônio e preservação está presente no texto de SANTOS Para a autora ao debater sobre esta relação devemos, “volta-se a, traçar algumas considerações sobre os pressupostos básicos que têm norteado as ações de preservação, até o presente momento, bem como apontar alguns problemas relacionados com a política de preservação em nosso país, no tocante à participação do cidadão e da preservação da nossa identidade cultural”

Para ela a preservação com um sentido funcional não deve ser uma precondição da democracia e da participação, deve ser parte, fruto e processo da sua construção. Conferir um papel ativo e crítico à preservação e à educação é necessário, buscando assim a construção de uma nova sociedade, onde o homem possa, sem preconceitos, assumir o seu verdadeiro papel como cidadão, sujeito que faz e exerce a política. A relação de preservação e políticas públicas viabiliza-se através de práticas pedagógicas. “A análise do passado, a utilização dos acervos preservados como recurso didático, objetivando a integração do indivíduo em seu meio, de forma dinâmica e reflexiva não tem sido uma prática efetivada por nossas instituições educativas e culturais.” (SANTOS, 1994).

A fim de quebrar o distanciamento da sociedade ao patrimônio cultural a autora defende que é preciso criar uma nova estrutura e uma redefinição da articulação entre os órgãos centrais das áreas da cultura e da educação. Tentando dar um novo sentido às ações culturais e educativas, o propósito, nesse momento, é traçar algumas considerações sobre os pressupostos básicos que têm norteado as ações, até o presente momento, bem como apontar alguns problemas relacionados com a política de preservação no país, no tocante à participação do cidadão e da preservação da identidade cultural.

A subcategoria “preservação” está associada aos métodos de conservação e de restauração, bem como as ações de tratamento informacional como

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os inventários e banco de dados. A subcategoria preservação torna-se um conjunto dependente da categoria políticas públicas, pois ela está diretamente relacionada aos objetos e dependem da estrutura de gestão e de políticas que assegurem tais ações. Para NOGUEIRA, apenas coma instalação do livro de registros onde é possível elencar através dos inventários e dimensionar as ações de preservação e formular políticas mais concretas.

Com exceção de SMOLKA, todos os textos relacionam políticas publicas de patrimônio à preservação. Esta associação dá-se pelo reconhecimento de bem público e, portanto de objeto de custódia e defesa.

A metodologia de análise de citação

A partir dos artigos selecionados foi alimentado um banco de dados, criado pela aluna do Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação Daniela Lucas. A base de dados foi desenvolvida em software ACCESS. A alimentação dos dados deu-se a partir dos artigos apresentados nas referências bibliográficas dos artigos selecionados. As tabelas a seguir apresentam os dados coletados, apresentam-se as 10 primeiras ocorrências de cada consulta, tal decisão foi motivada pelo fato de o universo de artigos ser pequeno e, portanto na aferição constatou-se que ocorreram várias únicas ocorrências. A análise de citação apresenta neste momento dados quantitativos e qualitativos, a respeito dos autores citados e dos assuntos abordados, nas referências e nas citações.

a) Consulta de ocorrência citação de autor

Num total de 117 autores, 89 possuem uma citação. Dezessete (17) apresentam duas ocorrências. A tabela a seguir apresenta a quantificação de ocorrências em relação ao total dos artigos citados.

OCORRÊNCIA NÚMERO DE ARTIGOS5 34 23 92 161 87

total 117

Tabela 3: relação ocorrência número de artigos

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No que se refere à consulta dos autores citados, a consulta apresenta que os autores citados pertencem a textos tradicionais da área de patrimônio cultural. Sandra Pelegrini forma um grupo de estudos voltados para o patrimônio cultural da UNICAMP, ela encabeça junto ao professor Pedro Paulo Funari estudos sobre a arqueologia do Brasil. Mário de Andrade surge em todos os textos, como foi um dos precursores do estudo do patrimônio cultural e principal referência do patrimônio no Brasil.

VYGOTSKY e FREUD surgem apenas no texto de SMOLKA, por tratar da definição de memória e linguagem ampliando o conceito de bem cultural. ADORNO e GIDDENS aparecem no texto de NOGUEIRA, ao debater políticas públicas de patrimônio e direitos do cidadão. Já LEITE e GONÇALVES são autores tradicionais da literatura de patrimônio cultural e são leituras clássicas da área, elas apresentam definições e apresentam a trajetória das instituições de memória do país A presença de referências oficiais é constante, pois são nelas que encontramos as definições oficiais e as determinações legais de proteção ao patrimônio cultural. A Constituição Federal de 1988 (Brasil) é citada no que diz respeito ao conceito de patrimônio cultural no país, em âmbito legislativo federal. A tabela seguinte apresenta a relação entre ocorrências de citação e autor.

Ocorrência Citação AutorNome Completo OcorrênciaSandra Pelegrini 5Mário de Andrade 5L.S.Vygotsky 5Theodor Adorno 4BRASIL 4Rogério Proença Leite 3S. Freud 3Anthony GIDDENS 3J. R. S Gonçalves 3UNESCO 3

Tabela 4 Ocorrência citação-autor

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b) Consulta de ocorrência citação por referência

Ocorrência Citação Referência

Titulo da Referência Ano de Publicação Ocorrência

Produzindo o passado: estratégias de construção do patrimônio cultural 1984 2

Convention on the protection and promotion of the diversity of cultural expressions 2003 1

A arqueologia do saber 1969 1Destradicionalização e imagem da cidade: o caso de Évora 1996 1Declaration of the principles of international cultural co-operation 1966 1

De profundis, valsa lenta 1998 1De Magistro 1984 1Da memória e da reminiscência 1Direito à Memória: patrimônio histórico e cidadania 1992 1Cultura de consumo e pósmodernismo 1995 1

Tabela 5. Ocorrência-Citação-Referência

A ocorrência de maior número cinco (5) está um conjunto de documentos que não possuíam data expressa nas referências. A presença de duas obras de 1984 refere-se ao trabalho de Fonseca, a sua tese “Produzindo o passado: estratégias de construção do patrimônio cultural” é considerado um texto clássico da área. As demais 116 referências só obtiveram uma (1) ocorrência. Entretanto, pode-se agrupar o conjunto por ano e podemos perceber que a dispersão de produção ocorre desde 1934 até 2008, entretanto há um lapso de produção ente 1937 a 1966, tal espaço indica a baixa produção de estudos voltados ao patrimônio cultural, e carecem então de maiores investigações, pois não é possível fazer alguma inferência sobre este fato com esta amostra.

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c) Consulta de ocorrência por ano

Citação anoAno de Publicação Ocorrência

1996 131984 111995 111997 101987 82000 81998 81988 71992 71986 6

Tabela 6 Citação-ano

A maior parte das referências que corresponde a 34 obras é da década de 90, sendo 13 de 1996, 11 de 1995 e 10 de 1997. Outro grande escore é de 1984 com 11 ocorrências. Aliás, podemos perceber que a partir de 1984 há um crescente nas publicações. É possível assegurar que tal profusão de ocorrências seja associada ao processo de democratização do país e as publicações decorrentes de estudos e de encontros que compuseram a organização de grupos que articularam junto à assembléia constituinte e que culminou com a inclusão da proteção ao patrimônio no corpo da Constituição Federal de 1988.

d) Consultas de ocorrência de citação por idioma

Língua ReferênciaIdioma OcorrênciaPORTUGUÊS 130INGLÊS 17FRANCÊS 10ESPANHOL 5

Tabela 7. Língua-referência

A maior parte das ocorrências, 130 títulos, foi publicada em idioma português, seguido do inglês (17 obras), do francês (10) e no idioma espanhol 5 ocorrências.

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Pode-se concluir que as tradições inglesas e francesas são ainda muito elevadas, por serem locais onde estão os maiores centros de pesquisa patrimonial, os maiores museus e as instituições normatizadores da proteção ao patrimônio, como a UNESCO, ICROM e o ICOMOS.

O Brasil tem publicado várias obras no campo do patrimônio, seja de autores brasileiros ou não, em especial os portugueses, principalmente a proteção do patrimônio arquivístico.

e) Consulta de ocorrência de citação por país

Publicação PaísPaís OcorrênciaBrasil 127

França 10Inglaterra 9

Eua 6Portugal 4México 2

Espanha 2Suécia 1Rússia 1

Tabela 8. Publicação País

Esta tabela apresenta algumas conclusões interessantes. Na tabela anterior há 17 publicações em inglês e 10 em francês. Como explicar na relação ocorrência de citação por país, há mais publicações francesas em segundo lugar do que as em inglês. O fato só faz sentido se considerarmos nas ocorrências por língua devem-se somar as ocorrências da Inglaterra e dos Estados Unidos, que somadas dão 15, e as duas restantes são publicações publicadas na Inglaterra, porém em outras línguas. a publicação em o espanhol, é relativa ao autor Nestor Garcia Canclini.

e) Consulta referências por assunto e referências relacionadas

A Análise dos títulos para se fazer referências aos assuntos, não foi possível de realizar, porque infelizmente os títulos são retóricos e poéticos e não expressam os assuntos o qual tratam diretamente no título da publicação na

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referência. Desta maneira seria preciso analisar cada artigo separadamente.

Considerações Finais

Ao realizar a aplicação das técnicas de análise de conteúdo e análise de citação, foi possível criar uma categorização e visualizar as semelhanças de conceitos entre os autores. O assunto patrimônio é diverso tanto quanto os diferentes aspectos de cultura o qual pretende preservar. Entretanto, as relações sobre a condição de objeto de políticas públicas ainda há interpretações que divergem entre a ação junto aos cidadãos e a agenda de política do país. O método se mostrou eficaz, e se não foi possível averiguar outras categorias, foi certamente porque os textos selecionados não contemplarão o todo da noção de patrimônio e, portanto deverá ser aplicado a outro conjunto de documentos;

Como método de pesquisa a análise de conteúdo se mostrou potencialmente eficiente na construção de referencial teórico a fim de determinar com exatidão o corpus ou o domínio a ser analisado. No que se refere à análise de citação o uso das tabelas para quantificar as referências tanto qualitativamente (quando se trabalha as ocorrências de assunto), ou quantitativamente (como nas outras evidências) o método se mostrou eficaz para categoriza e ampliar análise por categorias, (língua, local de publicação, ano de publicação, autoria x citação, referências x citação) mostrando-se útil para ser aplicado em um novo estudo abrangendo um número maior de publicações.

Tal método/estudo poderá contribuir de modo significativo ao corpo teórico do projeto da tese, e servirá de apoio para construção do referencial teórico, norteador das futuras análises que serão incorporadas no trabalho. Por outro lado sua aplicação em outras categorias presentes na área da Ciência da Conservação servirá como mecanismo eficaz para dimensionar e qualificar o corpo de referências e de produção intelectual auxiliando a delimitar o espaço desta ciência possibilitando a visualização de sua evolução e dispersão dos principais assuntos tratados na área.

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LEITE, Rogério Proença. Patrimônio e consumo cultural em cidades enobrecidas. Sociedade e cultura, v. 8, n. 2, JUL./DEZ. 2005, P. 79-89.

MINAYO, M. C. S.; SANCHES, O. Quantitativo-qualitativo: oposição ou complementaridade? , v. 9, supl.1, p. 239-262, 1993.

MINAYO, M.C.S. Pesquisa qualitativa em saúde. 10. ed. São Paulo:HUCITEC, 2007. 406p.

NOGUEIRA, Antonio Gilberto Ramos. Inventário e patrimônio cultural no Brasil. História, São Paulo, v. 26, n. 2, p. 257-268, 2007.

NORONHA, Daisy Pires. Análise das citações das dissertações de mestrado e teses de doutorado em saúde pública (1990-1994): estudo exploratório. Ciência da Informação, Brasília, v. 27, n. 1, p. 66-75, jan./abr. 1998

PELEGRINI, Sandra C. A.. A gestão do patrimônio imaterial brasileiro na contemporaneidade. História, São Paulo, 27 (2): 2008.

ROCHA, Décio; DEUSDARÁ, Bruno. Análise de Conteúdo e Análise do Discurso: aproximações e afastamentos na (re)construção de uma trajetória. ALEA v.3., n.2 JUL/ DEZ.2005 p. 305-322.

SANTOS, Maria Célia Teixeira M. . A preservação da memória enquanto instrumento de cidadania. Cadernos de museologia Nº 3 - 1994.

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O que nos falta?

Tatiana Duarte PennaMestranda PPGA-EBA-UFMGYacy-Ara Froner (Orientadora)

Resumo

Diante de novos paradigmas no campo expandido das artes, com a inserção de novos con-ceitos, premissas e modelos, qual seria o caminho que o campo da conservação-restauração deveria se propor a seguir? Os processos de construção agora fazem parte da obra de arte e como lidar com tais registros? Como conserva-los? Qual seria a melhor maneira de preservar essas memórias para que pudéssemos garantir sua transmissão a gerações futu-ras? Nessa nova dinâmica contemporânea, os paradigmas da preservação também devem ser modificados, expandidos, discutidos dentro dessa rede de atores sócias envolvidos na preservação da memória.

Palavras-chave: Educação e Política; Ciência e Epistemologia

Abstract

In the course of towards of new paradigms in the fields of the expanded arts, whith the insertion of new concepts, assumptons and models, wich way, the path of conservation/restauracion should propose itself to follow? The constuction process is now part of the work of art it self, how to deal with this records? How to preserv then?Wich would be the best way to preserv this memorys so we can guarntee theye transmission to the future generation? In this new contemporary dynamics, the preservation paradigma also need to be modified, expaner, discussed around this web of social actors involved in the preservation of memory.

Key-words: educacion and politics; Science and epistemology

Introdução

Fico imaginando se os principais teóricos da conservação-restauração fizessem uma viagem no tempo e se encontrassem em um de nossos museus de arte moderna e contemporânea. Quais seriam suas impressões?

Provavelmente ficariam impressionados com a arquitetura moderna, os jardins deslumbrantes, as galerias monumentais. Deparar-se-iam com um novo sistema de arte, menos voltado para as questões do belo, do juízo de gosto. Ver-se-iam diante de uma arte conceitual, exposta e representada de diversas formas. Talvez ficassem perplexos diante da gama inusitada de

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materiais e formatos, da arte efêmera...

Ficariam satisfeitos em saber que as pesquisas que realizaram , as experiências que sintetizaram, e os conceitos que desenvolveram, fundamentados em princípios coesos e sólidos, estabeleceram diretrizes e normas que se acumularam durante o decorrer do tempo e permaneceram sendo utilizadas e seguidas até hoje por nós, restauradores. Porém, diante de uma realidade em que o reconhecimento da função do conservador-restaurador ainda é incipiente, ficariam surpresos.

Para fazer uma reflexão sobre o reconhecimento da profissão do restaurador-conservador e de sua atuação nesse novo campo expandido das artes hoje, é necessário fazer essa viagem de volta.

Busquemos algumas referências a respeito do nascimento dessa disciplina.

Quando um ceramista grego refazia a alça de uma ânfora partida ou mesmo quando um monge retocava as iluminuras medievais, a prática da restauração encontrava-se presente. Porém, a atuação desses profissionais tornou-se mais especializada à medida que grandes coleções privadas e públicas foram sendo formadas, necessitando, assim, de pessoas capacitadas na manutenção desses acervos (FRONER, 2005, p.1).

A partir do século XIX até a década de 60 no século XX, com o marco simbólico em 1964, ano de redação da Carta de Veneza, foram vários os acontecimentos importantes relativos à conservação dos monumentos históricos, como relaciona Françoise CHOAY (2001, p. 125):

Contribuições originais e sucessivas dos diferentes países europeus para a teoria e prática da conservação; o avanço na reflexão britânica mantém-se até as últimas décadas do século XIX, quando a Itália e os países germânicos tomam as rédeas da inovação. É o caso também das descobertas das ciências físicas e químicas, das invenções das técnicas ou ainda os progressos da história da arte e da arqueologia que, em conjunto, marcaram o desenvolvimento da restauração dos monumentos como disciplina autônoma. E ainda da evolução das artes e do gosto, cujos interditos determinariam fases distintas no tratamento e seleção dos monumentos históricos a serem protegidos.

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Após a Revolução Francesa, as Guerras Napoleôncias e os conflitos relacionados à construção do Estado moderno, os vandalismos e espólios de guerra, as atividades de restauração se intensificam (Cf. FRONER, 2001, p.88).

Em meados do século XIX, duas vertentes surgem em relação à prática da conservação-restauração. Eugenne Viollet Le Duc, arquiteto-restaurador, faz largo uso de reconstituições, com o objetivo de alcançar o estilo original. Para tanto, se parte do monumento tivesse que ser sacrificado, não hesitaria em fazê-lo. “Restaurar um edifício é restitui-lo a um estado completo que pode nunca ter existido num momento dado”, escreve (BOITO, 2003, p.17).

Em oposição a Le Duc, John Ruskin e William Morris preconizavam um enorme respeito pela matéria original, pelas marcas da passagem do tempo na obra, aconselhando manutenções periódicas. Defendiam um anti-intervencionismo radical. Em agosto de 1877 escrevem o “Manifesto da Sociedade para a Proteção do Edifício Antigo”, contrário à restauração.

Posteriormente, Camilo Boito procuraria estabelecer uma política de tutela respeitosa em relação às obras, propondo critérios de intervenção em monumentos históricos. Daria ênfase ao valor documental do monumento, evitando acréscimos e renovações, respeitando as fases do monumento, registrando as obras através das fotografias do antes, durante e depois da intervenção. Os conceitos de autenticidade, hierarquia de intervenções, e estilo de restauração permitiram a Boito estabelecer os fundamentos críticos da restauração como disciplina (CHOAY, 2001, p.167).

Podemos notar que as intervenções dos restauradores passam a exigir não apenas conhecimentos seguros, históricos e técnico-metodológicos, sendo necessária a aquisição de novo e amplo conhecimento científico sobre a degradação de materiais.

Alois Riegl, historiador vienense (1858-1905), realiza um trabalho ainda mais ambicioso. Encarregado de esboçar uma nova legislação para a conservação de monumentos, publica, em 1903, Der Moderne Denkmakultus (O culto moderno aos monumentos), contemplando o respeito ao original e o critério de seleção dos monumentos históricos a serem restaurados. Riegl chama a atenção para a necessidade de o conservador-restaurador

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conhecer a História, mais ainda a História da Arte, para que se evitassem erros, excessos e ações que pudessem danificar a qualidade estética ou documental dos monumentos cultuados.

Em 1931, a Carta de Atenas estabelece diretrizes para a preservação do patrimônio, sendo um marco no conceito moderno de patrimônio cultural. Essa carta, baseada no trabalho de Gustavo Giovannoni (1873-1943), arquiteto-urbanista italiano, apresenta princípios relativos à restauração e à conservação de sítios e monumentos.

Cesare Brandi e Paul Phillipot fundam o Instituto Central de Restauro, em Roma, em 1956, num período bastante conturbado da história. Ambos desenvolvem as bases teóricas desse instituto, que irão influenciar toda uma geração através de treinamentos e atividades de cooperação. Sua Teoria do Restauro foi publicada em 1963. Brandi constrói sua teoria a partir de questões tais como: o que é restauração, qual a sua relação com a obra de arte, como essa última se manifesta, o que é testemunho histórico.

Reconhece-se, na longa e apaixonada pesquisa conduzida por Brandi, a contribuição, cada qual por sua vez, das atuais formulações filosóficas (partindo, segundo uma ascendência kantiana, do idealismo e do espiritualismo de Benedetto Croce, em direção, no início, à fenomenologia de Edmund Husserl, e depois ao estruturalismo e também ao existencialismo de Jean Paul Sartre, sem excluir, por fim Martin Heidegger.(CARBONARA, 2004,p.14)

Segundo PHILLIPOT (1996,p.216), a conservação deixa de ser uma disciplina baseada no conhecimento empírico e passa a ser uma disciplina baseada na metodologia; saindo do nível da artesania, passa ao nível das humanidades e das ciências exatas. No Brasil,

vai ser na década de 1920 que a temática da preservação do patrimônio- expressa como preocupação com a salvação dos vestígios do passado da nação e mais especificamente com a proteção ao monumento e objetos de valor histórico e artístico, começa a ser considerada politicamente relevante (...), implicando o envolvimento do Estado. (CASTRIOTA, 2009, p.71).

Ressalte-se que não vão ser os setores conservadores, mas, sim, os intelectuais modernistas a elaborarem e implementarem as políticas de preservação do patrimônio. Ao mesmo tempo em que mantêm estreito

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contato com as vanguardas europeias, os modernistas desenvolvem uma peculiar relação com a tradição, recusando a idéia de rompimento radical com o passado (Cf. CASTRIOTA, 2009, p.71).

O SEPHAN – Serviço do Patrimônio Artístico Nacional- foi criado em 1937, tendo como diretor o jornalista, escritor e historiador Rodrigo Mello Franco de Andrade. No início de 1947, Edson Motta, pintor, fundador do Núcleo Bernadelli- núcleo que reunia artistas tais como Milton Dacosta e José Pancetti-, vai aperfeiçoar seus estudos sobre técnicas de pintura na Europa. Ao retornar ao Brasil, é convidado a organizar o Setor de Recuperação de Obras de Arte do SEPHAN. Durante a implantação do setor, percebe dois caminhos de atuação: em bens móveis e em bens integrados aos monumentos. Cria, então, ateliês para bens móveis ligados aos museus do SEPHAN e ateliês móveis, para os bens integrados, funcionando estes nos próprios monumentos em processo de restauração. Todos os ateliês subordinavam-se ao ateliê central do SEPHAN, no Rio de Janeiro. Realizando e coordenando todos os trabalhos, Edson Motta encontraria dificuldades na aquisição de equipamentos e materiais, dificuldades proporcionais ao tamanho do Brasil (Cf. RAMOS FILHO, 1987).

Em 1964, o professor e diretor do Instituto Real do Patrimônio Histórico e Artístico da Bélgica, Paul Coremans, vem ao Brasil propor o projeto de uma política de restauração de bens móveis e integrados que previa a ampliação do ateliê central do SEPHAN, transformando-o em laboratório físico-químico. Colocar-se-ia então, um restaurador em cada regional do SEPHAN, montando-se um ateliê composto por uma equipe de profissionais. A formação desses profissionais seria solucionada através de bolsas de estudos de especialização na Bélgica. Para lá foram Jair Inácio, restaurador em Minas Gerais, e Fernando Barreto, restaurador em Pernambuco (Cf. RAMOS FILHO, 1987).

Estabelece-se, assim, uma nova organização para a restauração de bens móveis e integrados, com Jair Inácio, em Minas Gerais, Fernando Barreto, em Pernambuco, João José Rescála, na Bahia, e Aldo Malagoli, no Rio Grande do Sul (este não chegou a assumir). Esses foram os pioneiros da restauração no Brasil. Os restauradores com formação universitária em Belas Artes tornaram-se professores das disciplinas de restauração nos estados onde trabalhavam, buscando aumentar o contingente de

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profissionais nessa área (Cf. RAMOS FILHO, 1987).

Em meados da década de 1960, período politicamente conturbado, a área de conservação e restauração no Brasil encontrava-se num verdadeiro marasmo, agravado com a saída e Rodrigo Mello Franco de Andrade do SEPHAN. Em 1970, cria-se, na Fundação de Artes de Ouro Preto, o primeiro curso regular para a formação de restauradores, ministrado por Jair Inácio. Sem exigência de formação anterior, o curso funcionava como um ateliê, em que, a partir de um ano ou pouco mais, o aluno podia ser dado como pronto pelo professor. Nessa época começam a ser criados os órgãos estaduais de patrimônio, que se mostrariam mais ou menos atuantes na sistematização de uma política de bens móveis e integrados, enquanto o SEPHAN restringia-se à função de repasse de recursos a esses órgãos (Cf. RAMOS FILHO, 1987).

O restaurador havia então se tornado um operário especializado, sendo chamado a executar tarefas artesanais, sem participação na definição de posturas, num processo desarticulado, sem metodologias sistematizadas, sem projetos, sem estudos aprofundados sobre as causas da degradação e deterioração de materiais, e sem registros dos trabalhos realizados (Cf. RAMOS FILHO, 1987).

É somente após a criação de setores específicos que o restaurador passa a ter suas atividades organizadas de forma sistemática. Esses setores foram criados no Instituto do Patrimônio Estadual do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (1976), na Empresa Sergipana de Turismo (1978), e no Instituto Estadual do Patrimônio Artístico de Minas Gerais (1979), estando o primeiro e o último sob a direção de Orlando Ramos Filho.

A partir de então, a restauração passa a ser executada a partir de diagnósticos mais aprofundados, projetos melhor delineados, prazos definidos, custos especificados. Surgem pesquisas na área, relatórios técnicos com registros de todo o processo de restauração passando o restaurador a ser um técnico, transformando-se a sua postura enquanto profissional. Devido à ausência de definição de funções e atribuições, o restaurador e o arquiteto viviam em atrito constante, o que somente se diluiu após a delimitação dos seus campos profissionais e espaços de atuação, alcançando-se maior respeito no momento de entrelaçamento dos trabalhos.

O Centro de Conservação e Restauração de Bens Móveis – CECOR- e

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o Centro de Restauração da Bahia – CERBA- foram criados em 1978. A professora Beatriz Coelho funda o CECOR com o objetivo de criar um centro de formação e pesquisa na área da conservação e restauração. Dois anos após a criação do CECOR, cria-se o curso de especialização em conservação e restauração de bens móveis, com professores vindos do exterior, um currículo estruturado, exigência de conhecimentos básicos, carga horária extensa e um laboratório já equipado. Em 2008 foi criado o primeiro curso de graduação em conservação e restauração no Brasil, com duração de 4 anos.

A ABRACOR ( Associação Brasileira de Conservadores e Restauradores)surge em meados de 1980, sendo uma associação de direito privado, sem fins lucrativos criada para dignificar e proteger, como órgão de classe, os profissionais conservadores e restauradores de bens culturais.

Recentemente , o projeto de lei № 4042 de 2008 que dispõe sobre a regulamentação da profissão do conservador-restaurador e de técnico em conservação e restauração de bens culturais móveis e integrados foi aprovado junto a câmara de educação do Senado Federal esperando ser sancionada pelo Presidente da República.

O projeto de lei apresenta alguns equívocos, porém não seria um passo no sentido da regulamentação de nossa profissão?

Apesar de todos esses avanços na área da conservação- restauração, encontramos ainda profissionais não qualificados, atuando no mercado ,muitas vezes de forma inadequada , instituições museológicas que não possuem em sua equipe um conservador-restaurador; colegas em ateliês ou em obras sem condições nenhuma de trabalho ou ainda exercendo a função de apagadores de incêndio.

Feita essa viagem, pergunta-se: a que concepções de conservação-restauração filiavam-se aqueles pioneiros do campo no Brasil? E, hoje, como a conservação-restauração no Brasil posiciona-se em relação aos teóricos citados, tendo diante de si a complexidade das obras e produtos da cultura e da arte contemporâneas?

Os paradigmas da arte foram alterados, seus modelos, seus conceitos também. Sabemos que a conservação-restauração é constituída de um saber, resultante de uma história, de reflexões, de indagações. Nossa

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atuação diante dessa complexidade também tem que ser expandida. Precisamos atuar de forma interdisciplinar através de discussões com todas as partes envolvidas na preservação do patrimônio cultural .

As informações e registros relativos a processos de restauração e conservação desenvolvidos no Brasil deixam a desejar. Pesquisas são feitas, novas tecnologia utilizadas, mas e o acesso a elas? O conhecimento não deve ficar restrito a um grupo pequeno de profissionais. Precisa ser expandido, divulgado, discutido, registrado para que um número maior de profissionais tenha acesso a ele.

Não podemos nos esquecer das questões políticas que envolvem a preservação no Brasil. Uma maior consciência pública em relação ao nosso patrimônio se faz necessária.

Segundo Bordieu, atores sociais estão inseridos em determinados campos sociais e o habitus de cada um condiciona o seu posicionamento espacial e, na luta social identifica-se com sua classe social. Afirma ainda que para o ator social tentar ocupar um espaço é necessário que ele conheça as regras do jogo dentro do campo social e que esteja disposto a lutar.

Fica aí um pergunta: O que nos falta?

___________

Notas

I - Com relação ao artigo de Orlando Ramos Filho, não fica muito claro como estas restaurações eram realizadas, quais critérios eram utilizados, inclusive na escolha de bens a serem restaurados. Seria necessário realizar um estudo mais aprofundado uma vez que os registros eram feitos sem uma sistematização, para que tais questões fossem esclarecidas.

II - “O que Edson Motta fez a vida inteira foi trabalhar em benefício dos valores culturais do país, seja como pintor de muita sensibilidades e raro apuro técnico, alheio a falsos modismos, seja como ardoroso defensor da permanência de obras alheias. A humildade do restaurador, de formação científica exemplar casava-se nele com a chama do artista. Mas esta foi, muitas vezes impedida de exercitar-se porque Edson Motta consumia o seu tempo na ressureição da arte dos outros. Um estilo de recuperação de obras de arte foi implantado no Brasil por esse homem discreto, probo, que só deixa saudades. Manter-se criador, sem egoísmo, antes dedicando-se aos outros, do passado como do presente – quantos serão capazes de realizar esse destino da maior simplicidade e pureza?”

ANDRADE, Carlos Drummond de ( Texto introdutório) .In: Motta, Edson, O pintor Edson Motta , Rio de janeiro, MNBA , 1982. P3

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O antipolítico e as políticas de preservação no Brasil

Mariana Sousa Bracarense Mestranda PPGH - FAFICH-UFMG

Resumo

O presente trabalho aborda as elaborações e utilizações do conceito de memória por Mário de Andrade entre as décadas de 1920 e 1930. Para isso, foram utilizadas como fonte as cartas trocadas entre Mário e interlocutores que ocupavam lugar de destaque no universo intelectual brasileiro durante o período. O poeta modernista ocupou o papel de peça chave do movimento iniciado na década de 20 e, posteriormente, o lugar de intelectual absorvido pelo sistema político instaurado na década de 30. Durante sua carreira formulou e reelaborou o conceito que permeou toda sua trajetória.

Palavras-chave: memória, modernismo, Mário de Andrade.

Abstract

This work paper discusses the elaboration and use of the concept of memory by Mário de Andrade in the decades between 1920 and 1930. For that were used as sources the letters exchanged between Mário and partners who occupied a prominent place in the brazilian intellectual universe during the period. The modernist poet, during his career, from a key part of the movement started in the 20’s, to an intellectual absorbed by the political system established in the 30’s, formulated and reworked the concept that permeated throughout his trajectory.

Key words: memory, modernism, Mário de Andrade.

Músico de formação, jornalista, crítico de arte, escritor, pesquisador, fotógrafo, viajante, poeta, são as muitas facetas de Mário da Andrade. O Mário de Andrade modernista, viageiro em busca dos lugares de memória (NORA, 1993) e propositor do anteprojeto de criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional que deu origem à legislação protetiva do patrimônio no Brasil é o objeto da ação investigativa deste artigo. A pesquisa proposta busca abordar as elaborações e utilizações do conceito de memória por Mário de Andrade.

A proposta abrange a forma como esse conceito foi formulado pelo autor e pensador da arte e da cultura brasileira e como foi aproveitado nas idéias acerca do que é preservar e da necessidade da constituição de um corpo estatal e intelectual responsável por essa preservação. O sentido do patrimônio, que informa uma memória estética e histórica que buscam ser comuns em todas as unidades de um território, é indicativo da construção

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de uma memória coletiva.

O recorte temporal inicia-se em 1919, ano em que o autor executou sua primeira viagem por Minas Gerais, que deu origem ao seu interesse em viajar pelo Brasil para o desenvolvimento de estudos etnográficos. Os roteiros de viagem, iniciados em Minas Gerais, tiveram o sentido de incorporar as diversas regiões ao projeto nacional modernista, procurava-se estabelecer a unidade nacional através da cultura. É o conceito de desgeografização sintetizado em Macunaíma. Na representação do anti–herói, Mário buscou a síntese do brasileiro através de sua memória materializada nas lendas, tradições, costumes, epigramas.

O ano de 1938 encerra a atuação no Departamento Municipal de Cultura de São Paulo e o espaço investigativo desse artigo. Esse recorte se justifica pela trajetória desenvolvida por Mário entre suas diversas viagens, a proposta e o universo modernista e a apropriação e uso de suas idéias como mecanismo legitimador da política nacional do Estado na década de 30. Aqui, a consciência nacional e a idéia de nação ganham os contornos de uma elite intelectual preocupada em reinventar o Brasil.

As fontes primárias utilizadas são as correspondências trocadas entre Mário e Manuel Bandeira, Tarsila do Amaral, Henriqueta Lisboa, Murilo Miranda e Prudente de Moraes Neto. Essas fontes compõem um repertório que transita entre a literatura e o documento histórico. Essas características são frutos da veia literária do escritor e da consciência do papel documental pelo intelectual. Prova disso é sua determinação de que as cartas recebidas por ele e guardadas em pastas permanecessem fechadas à consulta e à publicação durante cinqüenta anos após sua morte (ANDRADE, 2001). Essa foi sua forma de resguardar a intimidade alheia exposta no objeto histórico produzido.

A correspondência enviada por Mário de Andrade recolhe fortes diálogos e espelha a recepção de suas idéias pelos interlocutores. A correspondência recebida é composta por cópias de cartas que demonstram o interesse de Mário em documentar determinadas situações e de fazer história.

Esse intelectual que cultua a discrição, ao vedar a consulta às suas cartas ou no gesto de retirar, cortando, uma palavra ou um fragmento em uma folha recebida, caminha harmoniosamente ao lado do defensor do patrimônio

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cultural, quando apõe notas esclarecendo situações, identificando correspondentes e completando datas, de modo a indicar que ele preservou esses documentos porque, sabendo-os de grande importância, desejava, mais uma vez, servir, partilhar conhecimento (ANDRADE, 2001).

A partir do século XIX, a abolição da escravatura, o advento da República, a introdução da mão de obra imigrante, o processo de industrialização e urbanização, constituíram e sinalizaram o processo de modernização do Brasil. Os anos 20 são simbólicos na história política e cultural brasileira por sintetizarem os desdobramentos destas transformações através da legitimação da sociedade de classes no Brasil e da formação de uma burguesia ligada ao setor cafeeiro e industrial. Encontra-se aí a gênese do Brasil moderno, que contou com os esforços de intelectuais em compreender a nação e a cultura brasileira.

Os ideais literários, assim como as demais ambiências da sociedade, manifestaram o desejo de acabar com as estruturas passadistas da República Velha. A arte pura e desinteressada foi abandonada por uma nova linguagem que exprimisse a realidade nacional. Esse projeto se encontra no cerne do movimento modernista, que pretendia romper com a linguagem que refletia a realidade política do antigo poder oligárquico. Como ponto de partida seria necessário o desenvolvimento de uma arte brasileira em formação. A idéia não era substituir os velhos modelos e antigas técnicas artísticas por novidades, mas pela pesquisa incessante e desprecoinceituosa.

A brasilidade idealizada pelos modernistas, ponto de partida da curiosidade de Mário, constitui a matéria-prima para a sua busca pelo registro e preservação do patrimônio para a construção de uma cultura nacional. Sua trajetória à procura da ontologia do brasileiro trouxe em seu bojo a premissa de que a memória e a tradição são fundadores das manifestações artísticas nacionais (NOGUEIRA, 2005).

Em 1919, Mário despertou para a valorização do patrimônio, ao partir em viagem para Minas Gerais em busca da tradição, indo ao encontro do passado arquitetônico colonial. Do itinerário dessa primeira viagem, sobressai o desejo de Mário de conhecer o poeta simbolista Alphonsus Guimarães e observar a herança colonial barroca. Deslumbrado com a

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riqueza da arte colonial religiosa declarou que sua missão seria classificar o fóssil que havia encontrado. Escreveu, então, Arte Religiosa do Brasil (ANDRADE, 1993), que enfatiza a importância do barroco como motivo de inspiração para a arte nacional moderna. Essa primeira iniciativa relativa à tentativa de Mário de criar uma tipologia histórica da arte colonial manifesta seu interesse pela memória nacional.

No ano de 1924, organizou-se a viagem da caravana paulista, composta por Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade e seu filho, Olívia Guedes Penteado, Paulo Prado, René Thiollier, Godofredo da Silva Telles e Blaise Cendrars, que teve como objetivo o experimentalismo estético. Seu principal resultado foi a projeção de Minas Gerais na rota da modernidade. E, a partir daí, a proposta modernista assumiu a ampla dimensão de projeto de cultura nacional, encabeçado por Mário de Andrade. A cultura nacional passou a ter enfoque político.

Os membros da caravana tomaram consciência do desconhecimento da cultura brasileira. Aleijadinho e Ataíde passam a representar um foco de resgate obrigatório para a construção de uma trajetória da arte e cultura nacionais. É da necessidade de uma revisão do acervo tradicional que podemos encontrar nas problemáticas modernistas a preocupação com o patrimônio cultural.

A tensão entre sensibilidade artística e a missão de formar uma cultura brasileira livre de regionalismos e de influências externas passa a ser identificada a partir deste momento. Segundo Mário, toda tentativa de modernização implicaria a passadização da coisa que se pretende modernizar. Tais preocupações colocaram as tradições no centro da discussão, o passado e seus desdobramentos singulares receberam a importância de formativos do particular.

As cartas de Mário de Andrade, testemunhas de sua trajetória, são demonstrativas da importância que o autor e pensador da cultura brasileira deu ao resgate da tradição cultural do país como forma de preservar e cultuar sua memória. O autor não descartava a idéia de estar fazendo história e invocava a correspondência como fonte de pesquisa substancial para seus estudos. Em carta a Anita Mafaltti chegou a afirmar que “Tudo será posto a lume um dia, por alguém que se disponha realmente a fazer história. E imediato, tanto correspondências como jornais demais documentos não

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opinarão como nós, mas provarão a verdade” (MATILDES, 1998).

As cartas entre Mário e Manuel Bandeira ilustram a perspectiva de memória desenvolvida pelo autor na década de 20, além de aferir o que Mário e seus companheiros modernistas estavam pensando e fazendo naquele tempo. Com o poeta desenvolveu uma amizade sincera e devota através das cartas, mesmo antes de se virem pessoalmente. De 1922 a 1935, Manuel foi fiel correspondente de Mário, aparentemente o único a conhecer seus pensamentos mais íntimos. Mário dava inclusive notícias de sua máquina de escrever, Manuela, em homenagem ao correspondente.

Meu querido Manuel, hoje és, e não te ofenderás com a metáfora, és uma propriedade minha. És uma fazenda que eu comprei. Comprei com minha alma. O que prova que não foi propriamente uma aquisição: foi troca. Creio poder passear, de pijama, com a simplicidade desvestida dos meus sentimentos nos carreadouros do meu cafezal. Tenho inteira confiança em ti. Confiança ensilvada de amor e reconhecimento(ANDRADE, 2000).

Posteriormente, Mário aumentou seu leque de correspondentes e passou a se manifestar de forma mais aberta com os antigos interlocutores. Com o avançar do tempo precisou dividir seus sofrimentos e sua doença, da qual se queixou durante toda a vida, com o maior número possível de amigos.

Mário de Andrade, durante o início da década de 20, vivia do montante de artigos escritos. Sua condição de indivíduo de classe média, diante de seus companheiros modernistas pertencentes às elites paulistas, foi marcante em suas idéias e elaborações. É provável que esta seja a principal causa da diferenciação entre sua trajetória e a de seus companheiros e, também, o motivo de muitos dos conflitos no campo intelectual, que deram origem a calorosas discussões. Em carta ao amigo, Manuel Bandeira, em 19 de maio de 1924, expõe suas angústias:

Creio que o que está me fazendo mal são as companhias. Meu grupo, amigos, camaradas, todos ricaços, sem preocupações. Há um eterno conflito entre mim e eles. Isso deprime. Creio que me conheces: sou incapaz de invejas dessa natureza. Deus lhes conserve a riqueza. Mas há conflito (NOGUEIRA, 2005).

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No que diz respeito às perspectivas sobre a memória, inicialmente, Mário apresentou observações a partir de seu universo particular e pessoal, da memória individual e recente, relacionada ao cotidiano. Em carta a Manuel Bandeira, em fevereiro de 1923, comenta:

tendo perdido tantas coisas no carnaval, não perdi a máquina fotográfica, antes cinematográfica do subconsciente. Aqui estou na vida cotidiana. Pois não é que ontem começaram a se revelar as fotografias e fotografias dentro de mim! Pois não é que, no écran das folhas brancas, começou a se desenrolar um filme moderníssimo dum poema! (ANDRADE, 2000)

Além desta perspectiva, neste período, Mário desenvolveu a busca por uma memória, síntese dos acontecimentos simbólicos na história política e cultural brasileira, a partir da proposta modernista. Mário buscava a fruição do momento artístico do modernismo europeu, mas conclamava a memória visual local brasileira, que deveria ser tematizada pelos modernistas. Em carta a Tarsila do Amaral, de 15 de novembro de 1923, manifesta sua preocupação:

Desde já, desafio vocês todos juntos, Tarsila, Oswaldo, Sérgio para uma discussão formidável. Vocês foram a Paris como burgueses. Estão épatés. E se fizeram futuristas! hi! hi! hi! Choro de inveja! Mas é verdade que considero vocês todos uns caipiras em Paris. Vocês se parisianizaram na epiderme. Isso é horrível! Tarsila, Tarsila, volta para dentro de ti mesma. Abandona o Gris e o Lhote, empresários de criticismos decrépitos e de estesias decadentes! Abandona Paris! Tarsila! Tarsila! Vem para a mata-virgem, onde não há arte negra, onde não há também arroios gentis. Há MATA VIRGEM. Criei o matavirginismo. Sou matavirginista. Disso é que o mundo, a arte, o Brasil e minha queridíssima Tarsila precisam. (ANDRADE, 2001)

Em fins da década de 20, Mário apresentou opiniões que refletem a experiência vivida nas viagens. A perspectiva passadista, de recuperação da trajetória de uma memória cultural e artística brasileira, encontrou eco na figura de Aleijadinho. Em carta a Manuel Bandeira em 31 de março de 1928:

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Como achou o Aleijadinho. Eu por mim tenho cada vez mais admiração por ele. Acho mesmo que é um verdadeiro gênio. Você reflita no tempo nas condições dele e dentro da paisagem mineira, a solução de igreja que o Aleijadinho inventou e me diga! É extraordinário (...). Aquilo é mesmo a maior das maravilhas da escultura brasileira e se fosse na Europa, não vê que o Aleijadinho havia de estar assim sem já um dilúvio de monografias sobre! (ANDRADE, 2000).

A década de 30 é um marco da ação do Estado para as coisas da cultura com a entrada destes intelectuais, os modernistas, na repartição. É em torno de 1927, que Mário participa das primeiras reuniões do Partido Democrático em companhia de Paulo Duarte. Via na articulação com a classe política a possibilidade de colocar em prática a idéia de construção de uma identidade nacional. Foi nessa conjuntura que muitos intelectuais do movimento modernista viram nas propostas do Partido Democrático a possibilidade de construção da nação agenciada pelo Estado. Deveriam participar do governo, para realizar suas propostas com o dinheiro público. Segundo Antônio Cândido, esse período é caracterizado pela “rotinização do Modernismo” (CÂNDIDO, 2000).

É interessante observar que essas iniciativas de organização da cultura por projetos públicos se reuniram em torno do partido contrário ao projeto varguista na disputa de 1932. O Partido Democrático ocupava a prefeitura de São Paulo, centro econômico e de grande efervescência cultural. Além disso, as representações de Brasil dos modernistas e de Vargas se aproximavam. Partidos políticos adversários não impediram a aproximação de idéias convergentes.

Segundo Geertz, certas idéias surgem com ímpeto no panorama intelectual, são utilizadas em cada conexão, para todos os propósitos até perderem seu status de novidade e tornarem-se parte do suprimento geral dos conceitos teóricos dos indivíduos. “Se foi na verdade uma idéia seminal, ela se torna, em primeiro lugar, parte permanente e duradoura do nosso arsenal intelectual” (GEERTZ, 1978). Assim, a década de 30 assistiu ao crescimento das práticas literárias e artísticas com a transformação das manifestações dos grupos de vanguarda em padrão da época e a absorção das práticas iniciadas na década anterior.

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Em 1936, Mário de Andrade, a pedido do ministro da Educação e Saúde Pública, Gustavo Capanema, elaborou o projeto que serviu de base para o decreto-lei 25/37 que deu origem ao Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN. Capanema buscava colocar-se acima de disputas partidárias e, assim, foi o responsável pela participação instrumentalizadora de Carlos Drummond de Andrade, seu chefe de gabinete, Cândido Portinari, Manuel Bandeira, Heitor Villa Lobos, Cecília Meireles, Lúcio Costa, Vinícius de Morais, Afonso Arinos de Melo Franco, Rodrigo Melo Franco de Andrade e Mário de Andrade na estrutura política getulista. Estes incorporaram ao governo a noção de patrimônio concebida como processo de construção da nação, vista como base da identidade nacional.

Quando da elaboração do anteprojeto para o Iphan, a perspectiva a respeito da memória elaborada por Mário de Andrade envolveu a teorização do que seria e de quais os mecanismos para preservação do objeto de memória, o patrimônio. Constituindo-se patrimônio histórico e artístico nacional “o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da História do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”, como se apresenta no Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937.

De nítida orientação etnográfica, pode-se vislumbrar uma perspectiva antropofágica de cultura, tendo em vista a preocupação de Mário em apreender os processos de constituição e reinvenção dos elementos que compõem a memória coletiva informadores de nossas matrizes européias, africanas e ameríndias. Nas oito categorias de arte que fundamentam sua concepção de patrimônio, incluía, entre arte arqueológica e a arte ameríndia, os fetiches, instrumentos de caça, de pesca, de agricultura, indumentárias, vocabulário, cantos, lendas, magias e culinária. Entre as manifestações da arte popular definia a cerâmica em geral, arquitetura popular, cruzeiros, capelas e cruzes mortuárias de beira-de-estrada, jardins, paisagens, música popular, contos, histórias, lendas, superstições, medicina, receitas culinárias, provérbios, ditos, danças dramáticas.

Envolver os diferentes setores da opinião pública na lógica do Estado foi essencial para a construção de uma propaganda governamental sistemática. Para alargar as bases sociais do poder e restringir a área de tomada de

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decisão, o controle do meio social é uma aposta importante na intenção de obter consenso, ativo ou passivo (ROLLAND, 2006).

Em 1936, Mário foi convidado a exercer o cargo de diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura Municipal de São Paulo. A aceitação manteve a perspectiva de sistematizar o credo modernista, porém as cartas dos últimos anos apresentam um intelectual cético em relação aos antigos companheiros e angustiado pela política autoritária do Estado Novo. Seu engajamento foi, portanto, marcado pela aflição e reação à idéia de que estaria colaborando com o poder vigente. Ao assumir o cargo confessou que havia percebido a possibilidade de suicídio satisfatório e se suicidou (ANDRADE, 1981).

Em maio de 1938, foi afastado do Departamento de Cultura, acusado de má administração de verbas. Foi obrigado a deixar São Paulo, mudando-se para o Rio de Janeiro, e abandonando o curso do projeto de melhoria do nível cultural e artístico do país.

Vivia-se a centralização autoritária do regime de Getúlio Vargas e o início da Segunda Guerra Mundial. Revoltado Mário esbravejava contra as ditaduras e o Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP, acusando o governo de agir arbitrariamente e prender pessoas sem critério algum. Em carta a Henriqueta Lisboa, no ano de 1940, Mário afirmou:

Estou sofrendo menos hoje, os jornais noticiaram a saída da cadeia de vários amigos meus e me sosseguei mais um bocado. Mas cresceu em mim um ódio medonho. A notícia foi fornecida pela própria polícia. Foram soltos porque se averiguou que não havia nada contra eles!!! Com o cinismo das ditaduras, dos totalismos, dos fachismos (sic) a polícia confessa isso! Desmantela-se uma família, se assombra de susto uma sociedade inteira, se martiriza centenas de mães, mulheres, filhos, manos, amigos na defesa de quê, meu Deus! De um regime? De uma safadez? De um homem? Sim, especial e principalmente de um homem; se avacalha, se acanaliza centenas de pessoas e de organismos familiares, só para prevenir a serventia hipotética de um homem que está no poder!!!(ANDRADE, 1991)

Em sua maturidade, Mário passou a não redimir sua trajetória dentro do movimento modernista em que foi um esteta voltado à pesquisa

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e ao experimento artístico. A utilização do conceito de memória progressivamente como individualização, busca de identidades, mecanismo de preservação, cedeu lugar ao amargor de não ter imprimido em sua obra a luta por grandes causas políticas. Em 1942, ao fazer um balanço sobre o movimento modernista, Mário chegou a afirmar “Não me vejo uma só vez pegar a máscara do tempo e esbofeteá-la como ela merece. Quando muito lhe fiz de longe umas caretas. Mas isto, a mim, não me satisfaz” (ANDRADE, 1974).

Considerações finais

A memória não é somente um meio de criar vínculos ou consagrar a continuidade, mas, também, uma busca de recriar a origem e para isso é necessário lidar com a instabilidade das imagens e com o risco do desaparecimento ou ficções de conservação. A angústia gerada pela perda dos signos de cultura se extravasa na preservação, impulsiona a mudança da memória. Em toda sua trajetória, Mário conceitua essas questões e estabelece propostas de conservação, inicialmente, através da perspectiva modernista e, posteriormente, com o repertório oferecido pelo Estado Novo.

Mário de Andrade lidou e reelaborou suas práticas através das experiências vividas. Desde a Semana de Arte Moderna, com a visualização da obra de arte como fato estético e do poema como resultante das projeções individuais; das viagens de descoberta do Brasil e das viagens etnográficas, através da consciência da necessidade de participação do intelectual nas vivências de seu tempo; até a absorção pelo Estado e a consciência da função social da arte. Aí se centraliza a hipótese proposta, o conceito de memória e suas propostas para a preservação dessa memória nacional procurada, construída, reestruturada se modificaram durante sua trajetória. A experiência foi mecanismo responsável pela impulsão de mudanças na trajetória e na consciência de seu papel social.

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Da Arte da Restauração à Ciência da Conservação: a construção histórica e deondológica do profissional voltado à acervos em papel

Aloisio Arnaldo Nunes de CastroDoutorando PPGA-EBA-UFMG

Yacy-Ara Froner (Orientadora)

Resumo

Este artigo pretende analisar o perfil histórico e conceitual do profissional atuante na conservação e restauração de acervos em papel no âmbito brasileiro. Para tanto, faz-se a contextualização histórica da conservação e restauração de acervos no Brasil, investigando origens, influências históricas, sociais e culturais. Na perspectiva de análise de Pierre Bourdieu, enfoca o conservador-restaurador como “ator social”, bem como a maneira com que as práticas e narrativas preservacionistas são construídas, legitimadas e apropriadas pelos agentes e instituições sociais.

Palavras-chave: História da Conservação, Epistemologia, Conservador-Restaurador, Papel, Documentos Gráficos

Abstract

This paper analyses the historical and conceptual profile of the professional whose work involves conservating and restoring paper collection in Brazil. With this end in view, a historical contextualization of conservation and restoration of collection in Brazil is presented seeking out the origins and the historical, social and cultural influences. From the perspective of Pierre Bourdieu’s analysis it focuses on the conservator-restorer as a “social actor” as well as the way by which preservationist practices and narratives are constructed, legitimized and appropriated by the social institutions and agents.

Keywords: History of Conservation, Epistemology, Conservator-Restorer, Paper, Graphic Documents.

As reflexões apontadas neste estudo procuram delinear, em perspectiva diacrônica, uma breve radiografia do profissional atuante na conservação e restauração de acervos em papel no âmbito brasileiro, investigando o perfil de formação, formas de conduta, bem como a participação deste sujeito na construção do espaço social preservacionista.

Ao longo das últimas décadas do século passado, esperou-se dos conservadores-restauradores de bens culturais, o domínio das técnicas intervenção no bem cultural deteriorado, o estudo científico sobre a

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constituição material dos bens culturais, assim como o conhecimento dos procedimentos metodológicos de conservação preventiva. Todavia, o debruçar sobre o conhecimento acerca da história da própria disciplina em que trabalham ou em que pesquisam - em suas distintas temporalidades – ainda não pôde ser constatado no âmbito preservacionista ou no meio acadêmico. Nesse sentido, como bem assinalou Beatriz Kühl em seus estudos sobre história e ética da conservação, as ações cotidianas de conservação e restauração, compelidas por razões de cunho pragmático, dedicam pouco tempo à análise dos princípios teóricos que regem as escolhas dos meios técnico-operacionais que utilizamos para atingir os objetivos da preservação. Portanto, muitas questões teóricas são negligenciadas e, de outra parte, a fé cega ao tecnicismo demarcado nas últimas décadas pode, muitas vezes, culminar em intervenções equivocadas1.

Assim, aponta-se para a necessidade de uma discussão mais aprofundada no que diz respeito ao estudo dos critérios teóricos, históricos e éticos que norteiam as ações de conservação e restauração dos bens culturais móveis, em particular aquelas demarcadas no cenário preservacionista brasileiro. Do artista-restaurador ao pós-graduado em Ciência da Conservação, esta pesquisa busca identificar os contextos históricos nos quais os atores sociais dedicados à conservação e restauração de acervos em papel forjaram a sua atuação profissional, bem como objetiva examinar a formação e capacitação profissional, as atribuições e os princípios éticos que nortearam suas ações ao longo do tempo. Numa estratégica de investigação dos interstícios, das narrativas e representações culturais2 preservacionistas, este estudo enfoca o processo de desenvolvimento semântico e o perfil conceitual do profissional brasileiro atuante na conservação e restauração quais sejam: “conservador de pinacoteca”, “ajudante de conservador”, “conservador”, “conservador-restaurador”, “conservador de biblioteca”, “técnico-restauradores”, “conservador do patrimônio histórico e artístico”, “restaurador de livros e documentos”, “técnico em assuntos culturais’, “conservador-restaurador de bens culturais móveis” e, por fim, “cientista da conservação”.

Tendo em vista a construção do recorte temático apresentado, as categorias analíticas com as quais Bourdieu pensa a sociedade são adotadas como viés interpretativo. Desse modo, temos a opção de colocar em

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paralelo os conceitos de campus e habitus com a trajetória e a construção do pensamento preservacionista brasileiro. Para Bourdieu, a sociedade é configurada por vários espaços dotados de relativa autonomia, mas regidos por regras próprias3. O conceito de habitus propõe identificar a mediação entre o indivíduo e sociedade. Habitus é, então, “uma forma de disposição à determinada prática de grupo ou classe, ou seja, é a interiorização de estruturas objetivas das suas condições de classe ou grupos que gera estratégias, respostas ou proposições objetivas para a resolução de problemas postos de reprodução social”4.

Desse modo, os conceitos de campus e habitus são utilizados com ferramentas, como fundamentos metodológicos na investigação e no deciframento do espaço social demarcado pela preservação do patrimônio cultural, bem como para o entendimento do percurso deontológico do profissional da conservação e restauração de acervos em papel.

Situado – na arena preservacionista - o campo de conflito, de disputa, da deterioração versus preservação, do efêmero versus permanência, da obsolescência versus modernidade, da memória versus esquecimento, poderíamos indagar à luz do pensamento bourdieusiano: Quem são estes atores sociais que se dedicam à preservação do patrimônio cultural constituído por acervos em suporte de papel? O que eles fazem? Como eles se articulam (jogam) dentro do campo social? Que capital eles apresentam? O habitus faz com que o indivíduo eleja preferencialmente grupos que compartilham das mesmas escolhas, agrupando-os a partir do capital que os mesmos dispõem. De acordo com Bourdieu, “os agentes constroem a realidade social; sem dúvida, entram em lutas e relações visando impor sua visão, mas eles fazem sempre com pontos de vistas referenciais determinados pela posição que ocupam no mesmo mundo que pretendem transformar ou conservar”5. Desta forma, os conservadores-restauradores de acervos em papel poderiam ser categorizados como atores sociais e, assim, munidos do capital intelectual (conhecimento, técnica, códigos culturais) e do capital social (relacionamento e redes sociais) agrupam-se em torno da problemática da preservação do patrimônio cultural.

Num exame epistemológico, encontramos, na literatura dos oitocentos, várias referências que fazem alusão à prática da “Arte da Restauração”. Em 1846, é publicada a obra Essai sur l´art de restaurer les estampes et les

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livres, autoria de Alfred Bonnardt que apresenta a “arte de restaurar”, sob forma de receituário, com a descrição de variados métodos de remoção de manchas, clareamento de papel e de reconstituição de gravuras e livros raros6. No ano de 1853, o restaurador do Museu do Prado, Vicente Poleró y Toledo, publica a obra “Arte da Restauração’, na qual defende o conceito de que “la restauraciòn és hermana cariñosa de la pintura” e, neste sentido, o artista-restaurador deveria ter, além dos dotes artísticos como o domínio do desenho e da mistura de cores, “perseverança e força de vontade”, para praticar a “arte da restauração”, então desenvolvida nos porões dos museus europeus7. Manuel de Macedo, conservador do Museu Nacional de Belas Artes, em Lisboa, publica, em 1885, um livro de conservação e restauração de pinturas e gravuras - que se incumbe de divulgar “noções e preceitos da arte de restaurar” - no qual designa a restauração como “apenas um ofício” e que “exige um conhecimento cabal dos processos de pintura”. Ademais, Macedo, ao definir o perfil do então restaurador, salienta que o retoque “constitui a parte artística de mister do restaurador, pois o bom restaurador não pode deixar de ser um pintor consumado e possuidor de talento”.

Reflexos desta concepção de restauração podem ser observados no cenário brasileiro, no período correspondente ao Segundo Reinado, conforme evidenciam os registros encontrados na Academia Imperial de Belas Artes. Em 1855, Manuel Araújo Porto-Alegre, apoiado por D. Pedro II, iniciou uma ampla reforma de modernização na Academia Imperial de Belas - AIBA, buscando ajustar a instituição aos progressos técnicos assinalados nos oitocentos, conhecida como Reforma Pedreira. Dentre as várias ações inovadoras realizadas, Porto-Alegre instituiu o cargo de “Restaurador de quadros e Conservador da pinacoteca”, disponibilizando uma vaga correspondente. Tal iniciativa exemplifica, de modo pioneiro, a inserção do profissional nos quadros de uma repartição pública do governo, visto que não se consta a presença do referido funcionário nos estatutos anteriores da instituição. Nesse contexto, há que se considerar a possibilidade de que Porto-Alegre, durante a sua temporada de estudos na Europa tomara conhecimento da “Arte de restaurar”, praticada em centros franceses. Como se pode interpretar, inicia-se, portanto, a construção do espaço social do profissional conservador na esfera pública. Dentre as suas funções o “Conservador da Pinacoteca” deveria “fazer manter o asseio e

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a ordem da Pinacoteca (...)” ou seguir a orientação que “A Pinacoteca deve ser conservada sempre no maior asseio possível e será franqueada diariamente a qualquer pessoa, ainda mesmo estranha, que a quiser visitar”8. Depreende-se que o “Restaurador de quadros e Conservador da Pinacoteca” trabalhava com uma extensa variedade de acervo, inclusive com papéis, considerando-se que além de pinturas e painéis havia também desenhos, gravuras e demais técnicas em suporte de papel que integravam o acervo da pinacoteca9.

A carência de pessoal especializado nos trabalhos de conservação e restauração de acervos no âmbito brasileiro, bem como a necessidade de buscar uma formação específica na Europa, já se fazia notar desde o Segundo Reinado, conforme se verifica em correspondência, datada de 1859, de Tomás Gomes dos Santos, então diretor da AIBA, dirigida ao Ministro dos Negócios do Império. Nesse ofício é salientado a necessidade do candidato em de conhecer “as obras dos grandes mestres da arte e de aperfeiçoar-se nas ciências das escolas e estudar os novos meios que porventura se tenha descoberto na arte de restaurar painéis”10. Com vistas à obtenção dos recursos necessários para o “Restaurador de quadros e Conservador da Pinacoteca”, observa-se, na estratégia de argumentação do diretor da AIBA, a ênfase dada à qualificação artística de Carlos Luiz do Nascimento11 visto que “(...) A falta de um homem especial nestes conhecimentos se tem feito contra por vezes na Academia, e ninguém melhor que o Conservador da Pinacoteca, poderia ser aproveitado (...)”. Mais adiante, a narrativa associa a qualificação artística do pintor aos traços de caráter e de personalidade “(...) por que o seu talento não vulgar como pintor histórico e restaurador de painéis, reúne um espírito sagaz e ilustrado12.”

Como se poder notar nos documentos administrativos da AIBA, a atuação do Conservador da Pinacoteca na estava dissociada da condição de artista e do fazer artístico. Nesse sentido, em 1860, Carlos Luiz do Nascimento, “Conservador da Pinacoteca”, é nomeado Cavaleiro da Ordem da Rosa em razão de suas obras exibidas na Exposição Geral, assim como pela prestação de trabalhos de restauração da AIBA13.

Outro elemento profissional da conservação e restauração encontrado na AIBA é o “Ajudante de conservação”. Nos documentos analisados

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verifica-se que eram os próprios alunos da AIBA que ocupavam tal posto, como Belmiro de Almeida, Pereira de Carvalho e João José da Silva14. Tal constatação contribui para a interpretação de que, sob a perspectiva da relação mestre e aluno, as atividades de conservação e restauração estavam presentes no bojo da instituição, integrando-se, assim, à formação dos alunos.

Nos documentos analisados, observa-se para que a ocupação do cargo de “Conservador da pinacoteca”, era mister a formação artística, a condição de ser artista, não revelando, portanto, qualquer formação específica para o cargo. Outrossim, nota-se que tal ocupação gozava de certo prestigio no interior da AIBA, visto que o “Conservador da pinacoteca” ocupava a terceira posição na hierarquia de pessoal, recebendo vencimentos somente abaixo dos professores titulares e do diretor do AIBA.

Após a Proclamação da República, em 1890, a AIBA passa a denominar-se Escola Nacional de Belas Artes – ENBA, ocorrendo a reformulação dos estatutos da instituição. No que diz respeito ao pessoal administrativo, os estatutos referem-se à figura do “Conservador”, com o abandono da nomenclatura “Conservador de Pinacoteca” anteriormente empregada, apontando o aumento de uma vaga para o referido cargo. Desse modo, a ENBA passa a contar com duas vagas o que sugere o aumento do acervo da pinacoteca, bem como a demanda das atividades de conservação e restauração. Em relação aos deveres do pessoal administrativo, nota-se que não havia a especialização do “Conservador”, corroborando com o entendimento de que conservação e restauração de papel realizava-se em meio às outras categorias do acervo. Desse modo, constata-se o perfil multifacetado do então “Conservador” que trabalhava com uma extensa variedade tipológica de acervos, conforme se verifica no detalhamento das atribuições do estatuto: “(...) a conservação e a restauração dos quadros, das gravuras e estampas de arquitetura, dos fragmentos de decorações arquitetônicas, das coleções de esculturas, e outros que lhe serão confiados”15.

Em 1911, ocorrem novas modificações nos estatutos da ENBA. É interessante notar o surgimento de um grau de especialização, considerando-se que dentre as duas vagas para o cargo de “Conservadores-restauradores” uma delas seria destinada para a pintura e gravura, ao

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passo que a outra seria para a categoria de escultura. Outro aspecto observado é a hierarquização dos serviços de conservação e restauração, estabelecendo-se que “os ajudantes competirão os serviços ordenados pelo conservador”16.

Ao longo da Primeira República, verificamos práticas realizadas no interior da AIBA que exemplificam que os profissionais ainda trabalham sob a égide do conceito de “Arte de Restaurar”. Desse modo, encontramos num relatório datado em 1919, dirigido ao Diretor da ENBA no Rio de Janeiro e assinado pelo “restaurador e conservador” Sebastião Vieira Fernandes17, uma relação de dezenas de obras de arte (pinturas, desenhos, aquarelas e esboços) de autoria de Vitor Meirelles que haviam restauradas na “Sala de restauração desta Escola”18.

Em outros moldes institucionais e distanciando-se do conceito da “arte de restaurar” observa-se, nas décadas de 1920 e 1930, ações educativas que tangenciam a formação de profissionais para o trabalho de conservação e restauração de acervos em papel, prenunciando-se, assim, a adoção de um caráter mais técnico. No contexto do desenvolvimento de uma política e de uma ideologia de tendências nacionalistas, se dá a criação do Museu Histórico Nacional, em 1922, por Gustavo Barroso. Com o diretor do Museu, Barroso cria o Curso Técnico de Museus com o objetivo de formar “técnicos-conservadores” para trabalhar com o acervo deste mesmo Museu, àquela época, já numeroso e eclético. É interessante observar nas ementas das disciplinas do curso de Museologia a inclusão do temário da conservação e restauração de pintura, escultura e papel. As aulas práticas de conservação e restauração eram praticadas nas Seções de conservação e restauração do Museu Histórico Nacional e Museu Nacional de Belas Artes19. Observamos na narrativa barrosiana que a restauração da “relíquia do passado” aproxima-se dos aspectos ditos técnicos e, portanto, é metaforizada como um ato médico compreendido por dois momentos distintos: diagnóstico e terapêutica. Outrossim, Barroso esboça o perfil do restaurador como sujeito que deveria possuir duas virtudes essenciais: paciência e modéstia20.

Em se tratando de acervos bibliográficos e documentais, verificamos, na década de 1920, a atuação funcionários de órgãos públicos na sistematização de trabalhos de conservação. Em 1923, é aprovado um

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novo regulamento para o Arquivo Nacional no qual surge a denominação do “Conservador da biblioteca” para o funcionário incumbido do “asseio das respectivas salas, e de limpeza e conservação de móveis, livros e mapas (...)”, além da aplicação de inseticidas à documentação contaminada, sendo seu salário correspondente a um terço do que era pago aos arquivistas. O relatório do Arquivo Nacional de 1934 faz menção aos “nossos operários da Oficina deste Arquivo” indicados que são para a prática de serviços de conservação de documentos. Conforme analisou Adriana Cox Hollós em sua dissertação de mestrado, “esses auxiliares não possuíam sequer o ensino médio concluído”, denotando, por conseguinte, “identidade artesanal” à preservação documental21.

Na Era Vargas, destaca-se a atuação pioneira de Edson Motta no campo da conservação e restauração do patrimônio cultural, inaugurando a fase científica da restauração no Brasil, o que lhe conferiu a denominação do “Pai da restauração científica no Brasil”. Em 1945, a pedido de Rodrigo Melo Franco de Andrade, Edson Motta obtém uma bolsa de estudos pela Fundação Rockefeller a fim de realizar estágio no Fogg Art Museum22 da Universidade de Harvard23. Em 1947, Edson Motta retorna ao Brasil e inicia a organização do Setor de Recuperação da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Em 1948, Edson Motta sistematiza as atividades de conservação e restauração de papel na Biblioteca Nacional. É interessante verificar no detalhado relatório dirigido ao então Diretor da Biblioteca Nacional, Josué Montello, a preocupação do restaurador em implementar no Brasil o que, provavelmente, foi o primeiro laboratório de conservação e restauração especializado somente em papel, com a adoção de metodologia e moldes ditos científicos24. Cria-se, assim, um divisor de águas no campo da conservação e restauração de papel, contrapondo-se, portanto, aos métodos calcados na “arte de restaurar” ou aqueles considerado empíricos, ambos praticados nas décadas anteriores.

Em 1958, é instituída da “Seção de Restauração” do Arquivo Nacional, incumbida de “reparar e restaurar os documentos que com esse fim lhe forem destinados”25, no entanto, não se verificou na documentação administrativa a categorização do profissional incumbido de tal tarefa.

Nos anos de 1960, encontramos os cargos de “Conservador do Patrimônio Histórico e Artístico” e de “Auxiliar de Conservador do Patrimônio

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Histórico e Artístico”, lotados na então Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - DPHAN do Ministério da Educação e Cultura26. Em 1962, estabeleceu-se a sistematização do “Setor de Recuperação de Pintura, Escultura e Manuscritos”, subordinada à Divisão de Conservação e Restauração - DCR27. Deve-se notar, nesse momento, que a restauração de papel encontra-se incluída sob a denominação de “manuscritos” e podemos depreender, também, que a restauração de obras de arte em suporte de papel estaria, provavelmente, inserida sob a denominação de “pinturas” do dito Setor. Há que se analisar, ainda, o emprego da terminologia “Recuperação” do referido Setor, o que denota a atribuição de significado à atividade profissional muito mais focada, portanto, à prática e aos métodos de recuperação, reparos curativos do bem cultural do que propriamente em ações de conservação dos acervos culturais brasileiros.

No âmbito educacional, o pioneirismo da inserção da conservação e restauração como disciplina no Curso de Belas Artes da então Universidade do Brasil, pelo Prof. Edson Motta, é destacado no discurso de formatura da turma de 1961 da ENBA. Mesclando a relação entre arte e ciência, Liana Silveira, oradora da turma, alude ao Prof. Edson Motta como “(...) iniciador, o fundador, o desbravador no Brasil de uma nova ciência dos quadros: restauração e conservação da pintura”. Mais adiante, em sua narrativa, a formanda ressalta, em tom de ineditismo, o aprendizado em “restaurar e conservar as obras dos artistas da pintura, do afresco, da gravura e do desenho. (...) aprendemos a química das tintas, a composição dos suportes e a cura do papel para evitar a ação do tempo sobre os trabalhos executados28.

No que tange à formação de conservadores-restauradores de papel, verifica-se na década de 1960, dentre as ações do início da gestão de Renato Soeiro na DPHAN, a elaboração de um projeto encaminhado à Comissão de Educação da Organização dos Estados Americanos – OEA, relativo à criação de um Laboratório-Atelier a ser localizado no Brasil com “o fim especial de atender os estudantes oriundos dos países situados na região sul da América, bem como os trabalhos de conservação a serem realizados no país”29. Dentre outros acervos, havia previsão para o ensino de gravuras, livros e documentos, observando-se uma vertente de cunho

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tecnicista na listagem de equipamentos indispensáveis à instalação do Laboratório-Atelier como o pedido de um Laminador Barrow”30, o que reflete, de fato, a adoção de uma linha americana de restauração de papel.

Em 1973, o cargo de “Conservador do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional’’, juntamente outros cargos do Ministério da Educação e Cultura, é transformado em “Técnico em Assuntos Culturais”31. Em 1973, dá-se o nome de “Setor de Conservação e Restauração de Pinturas, Esculturas, Manuscritos e Códices do IPHAN”.32 Tais nomenclaturas indicam a supressão da terminologia “Recuperação” anteriormente adotada na denominação do Setor pela DPHAN, em 1966. Portanto, a adoção dos termos “conservação e restauração” indica avanços conceituais na prática preservacionista e ilustra o perfil do “Técnico em Assuntos Culturais”, atuante em abrangente variedade tipológica de obras em suporte de papel, ou seja, gravuras, manuscritos, livros, códices e impressos. No âmbito da Biblioteconomia, Lindaura Alban Corujeira reclama o lugar científico da conservação e restauração de papel. Em artigo publicado em 1973, na Revista de Biblioteconomia autora sustenta que “o empirismo cedeu lugar a processos técnico-científicos que colocam a restauração dentro dos mais recentes progressos da ciência e técnica”33.

Em fins da década de 1970, constata-se a mudança de nomenclatura do “Setor de Conservação e Restauração de Pintura, Escultura, Talha, Manuscritos e Códices” - para “Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais”. Tal mudança coaduna as influências do ideário de Aloísio Magalhães, ocasião em que ele substitui a noção de valor de “patrimônio histórico e artístico” por “bem cultural”. Por conseguinte, depreende-se que a política de conservação e restauração não estaria voltada apenas para objetos de relevância histórica e artística, ao contrário, deveria abranger a extensa variedade tipológica de bens culturais, dentre as quais se incluiriam os acervos documentais e bibliográficos 34.

É nessa perspectiva de renovação do Setor que, em novembro de 1978, Maria Luiza Guimarães Salgado apresenta ao Núcleo de Recursos Humanos do Departamento de Assuntos Culturais – DAC, um estudo sobre a definição de atribuição de Técnico de Assunto Cultural – Área Restauração. Há nesse estudo uma descrição detalhada sobre o perfil do restaurador de papel no qual verificamos o empenho da autora em justificar

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a importância da atividade laboral e, conseqüentemente, a reinvidicação do status e do reconhecimento profissional no contexto do serviço público:

Os técnicos que se ocupam da restauração de papéis recebem um tipo de formação muito específica, na qual habilidade manual é fator absoluto para a execução de sua tarefa, sem falar na vocação inata. A obturação de falhas numa gravura e eventuais compensações é um trabalho que exige grande sensibilidade, agudo senso crítico e destreza manual. (...) Dentro da conservação e restauração de bens culturais, é a área mais carente em recursos humanos, pois requer um número maior de requisitos do que aqueles que são exigidos em outras áreas da especialização. (...) As pesquisas científicas efetuadas na área de papéis estão ligadas de um modo geral ao laboratório científico. Nele, serão investigados vários fenômenos que atuam sobre a permanência do suporte (...).

As décadas de 1970 e 1980 são marcadas pelo tecnicismo na conservação e restauração, nas quais verificamos a ênfase no arsenal tecnológico, o restauro de massa e a montagem de laboratórios pioneiros nas instituições detentoras de acervos e nas universidades. Podemos conceber - no contexto do final da década de 1970 e ao longo das décadas de 1980 e 1990 - a implantação dos laboratórios de conservação e restauração como a consolidação de um campus específico no qual os atores sociais dão lugar às suas atividades profissionais, às suas práticas culturais. Nesta fase de cunho tecnicista, detecta-se a o perfil do conservador-restaurador de papel voltado para a discussão em torno do diagnóstico do estado de conservação dos acervos deteriorados, bem como para os critérios, técnicas e metodologias aplicáveis à restauração dos bens culturais deteriorados. Para tanto, o arsenal tecnológico, os equipamentos científicos, as instalações e mobiliários específicos atuam como elementos constituintes de um espaço simbólico e de afirmação do habitus profissional, do capital intelectual. Nesse sentido, os laboratórios são interpretados como representações coletivas pois além de atuarem como locus, como arcabouço científico necessário aos procedimentos científicos da conservação e restauração dos documentos gráficos, são também legitimadores de uma categoria profissional que buscava, de modo insistente, um lugar de reconhecimento no espaço social preservacionista. Por ocasião do 1º. Seminário Nacional

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da ABRACOR, realizado em novembro de 1985, foi realizado um levantamento intitulado “Quadro atual dos laboratórios de restauração de papéis” no qual é contabilizado 18 laboratórios de restauração em funcionamento, além do total de 100 profissionais atuantes nos referidos laboratórios.

Na década de 1990, marcam-se mudanças de paradigmas conceituais motivadas pelo despertar da conservação preventiva35. É nesse contexto que as ações da preservação documental pautam-se, notadamente, em referências bibliográficas de autores norte-americanos, conforme evidenciado no Projeto “Conservação Preventiva em Bibliotecas e Arquivos” - CPBA36. Desse modo, a adoção da conservação preventiva promoveu uma revisão nas políticas de trabalho das instituições públicas detentoras de acervos, na atuação profissional dos conservadores-restauradores, nas ementas das disciplinas dos cursos de graduação e de pós-graduação e na pesquisa de técnicas e materiais aplicáveis à conservação preventiva. Como isso, tem-se a quebra de paradigma, mudando o foco da atuação do profissional, anteriormente dirigido ao bem cultural deteriorado e agora à conservação dos estoques informacionais. Outrossim, na perspectiva contemporânea, estabelece-se a proposição de “compreender a disciplina Conservação e Restauro no âmbito da Ciência – A Ciência da Conservação - , procurando não restringí-la apenas à atividade técnica mas percebê-la enquanto um saber constituído, resultante de paradigmas, de reflexões e do desenvolvimento histórico, capaz de reunir todas as premissas necessárias à categoria científica”37.

Em convênio com a Escola SENAI Theobaldo de Nigris, a ABER criou, em 1990, o Curso de Conservação-Restauração de Documentação Gráfica, considerado o único em nível técnico na América Latina, verificando-se a importância da criação do primeiro Laboratório-escola em âmbito nacional. O curso tem como finalidade preparar auxiliares na preservação, conservação e restauro de documentação gráfica. Ao longo dos seus 20 anos de funcionamento, encontra-se na 32ª turma, tendo formado cerca de 300 técnicos representantes de diversas regiões brasileiras e de países vizinhos na América Latina.

Considerações Finais

Não obstante o discurso e metodologia científica que se pretendeu

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implementar no Brasil, a conservação e restauração de acervos em papel no Brasil foi interpretada, ao longo das cinco últimas décadas do século passado, como uma prática curativa, pontual e intervencionista, voltada para o bem cultural deteriorado. Em razão da carência de mão-de-obra especializada, o contexto brasileiro delineou a atuação um profissional de natureza múltipla, ou seja, esperou-se a sua performance, simultaneamente, em três grandes áreas da memória cultural expressa no suporte de papel: acervo bibliográfico, documental e obras de arte em suporte de papel. Além disso, o conservador-restaurador de papel era concebido como um indivíduo paciente, meticuloso e dotado de virtudes e de habilidades manuais e artísticas – notadamente oriundo da formação acadêmica em Artes Plásticas - e sua atuação estava caracterizada por um fazer operacional, bem como por um labor silencioso e isolado em núcleos de conservação e restauração. Esta prática reducionista deve ser extinta e atualmente pode-se constatar o direcionamento para uma linha de menor intervenção, além do chamamento ao diálogo no planejamento de trabalho norteado, portanto, nos conceitos estabelecidos pela conservação preventiva. Tal constatação é evidenciada nas ementas das disciplinas de preservação de papel ministradas dos cursos universitários e nas grades curriculares dos cursos de graduação e pós-graduação.

Ao percorrer a trajetória do profissional da conservação e restauração de papel, verificou-se o processo de constituição dos espaços simbólicos de atuação profissional: desde a Pinacoteca da AIBA, as “Salas de Restauração” que funcionaram na Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro na década de 1910, os incipientes ateliês de restauro localizados nos porões dos museus e na Escola de Museologia sediada no Museu Histórico Nacional nas décadas de 1940 e 1950, os locais improvisados como corredores e banheiros desativados nas instituições públicas nas décadas de 1960 até a implantação dos Laboratórios de Conservação e Restauração em instituições públicas detentoras de acervos nas décadas de 1970. Por último, a implantação, nas últimas décadas, dos Laboratórios da Ciência da Conservação e dos Laboratórios de Conservação Preventiva nas universidades.

Com relação ao modelo educacional, cabe ressaltar que a inexistência de uma formação sistemática por meio da graduação acadêmica, na área de

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preservação de papel, constituiu-se num grave fator que comprometeu, sobremaneira, o desenvolvimento da disciplina no âmbito brasileiro. Conforme se pode observar, foram as instituições detentoras de acervos que, ao longo das últimas décadas, por meio de um ensino informal, acabaram por oferecer treinamentos práticos, estágios supervisionados e cursos de curta duração com vistas a suplantar a evidente lacuna educacional. Todavia, a área apresenta ainda aspectos muito vulneráveis no campo da formação profissional, o que possibilita o desenvolvimento de trabalhos equivocados sob o ponto de vista conceitual e técnico praticados, mormente, por mão-de-obra inadequada e amadora, comprometendo, em conseqüência, a integridade o patrimônio cultural. Por outro lado, as recentes implantações da graduação acadêmica em Conservação e Restauração, assim como a consolidação de programas de mestrado e doutorado na respectiva área, contribuirão, em consequência, para a formação profissional, o desenvolvimento da pesquisa científica e a aplicação de metodologias específicas em consonância com o país de clima tropical.

Reclamando os preceitos estabelecidos pela Ciência da Conservação, observa-se a ampliação das atividades e da atuação do conservador-restaurador de papel no Brasil, ou seja, muda-se o perfil do ator social outrora centrado numa ação de caráter micro, para o emergir de um novo profissional – o Cientista da Conservação - pautado numa visão ampla, interdisciplinar, comprometida, portanto, com aspectos culturais, científicos, políticos, gerenciais e administrativos. Assim, como professara Paul Philippot, o desenvolvimento da restauração só se dará, de fato, na medida em que o âmbito da sua função cultural seja compreendido e sustentado pela sociedade38.

___________

Notas

1 KÜHL, Beatriz Mugayar. História e Ética na Conservação de Monumentos Históricos. In: Revista do Patrimônio Cultural. USP: São Paulo, v.1, n.1, pp. 16-40, nov. 2005/abr.206, p.17.

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2 CHARTIER, Roger. Por uma sociologia histórica das práticas culturais. In: A História Cultural – entre práticas e representações, Lisboa:DIFEL, 1990. p.14.

3 SETTON, Maria da Graça Jacintho. A teoria do “habitus” em Pierre Bourdieu: uma leitura contemporânea. São Paulo: USP, 2002, p. 64.

4 AZEVEDO, Mário Luiz Neves de. Espaço Social, Campo Social, Habitus e Conceito de Classe social em Pierre Bourdieu. São Paulo, 2003, p. 1.

5 BOURDIEU, Pierre. La noblesse d`Etat. Grandes écoles et esprit de corps. Paris: Les editions de Minuit, 1989 apud AZEVEDO, Mário Luiz de. Espaço Social, Campo Social, Habitus e Conceito de Classe Social em Pierre Bourdieu, p. 2.

6 BONNARDOT, Alfred. Essai sur l´art de restaurer les estampes et les livres, ou Traité sur les meilleurs procedes pour blanchir, détacher, décolorier, réparer et conserver les estampes, livres et dessin. Paris: Chez Castel, Libraire Editeur, 1858. 2ª ed..

7 RUIZ DE LACANAL, Maria Dolores. El conservador-restaurador de bienes culturales: historia de la profesión. Madrid: Editorial Síntesis, As. A,, 1999. p. 167.

8 Decreto nº. 1603 de 14 de maio de 1855 – Da novos Estatutos à Academia das Belas Artes.

9 FERNANDES, Cybele Vidal Neto. O Ensino de Pintura e Escultura na Academia Imperal de Belas Artes. 19&20, Rio de Janeiro, v.II, n. 3, jul. 2007. p. 6, 23 Disponível em:http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/aiba_ensino.htm.

10 Documento nº. 866 do Arquivo do Museu D. João VI, Escola de Belas Artes da UFRJ.

11 Pintor histórico, ocupante do cargo de “Conservador da Pinacoteca” da AIBA.

12 Idem

13 Documento n.º. 860 do Arquivo do Museu D. João VI - Escola de Belas Artes da UFRJ.

14 Documento nº. 4268 do Arquivo do Museu D. João VI - Escola de Belas Artes da UFRJ.

15 Decreto N º. 983 de 8 de novembro de 1890 – Aprova os estatutos para a Escola de Belas Artes.

16 Decreto n. 8964 de 14 de setembro de 1911

17 Pintor, ocupante do cargo de “Conservador da Pinacoteca” da ENBA.

18 Arquivo Noronha Santos – IPHAN. Série Centro de Restauração de Bens Culturais. Caixa 04, pasta 05, envelope 04.

19 MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Legislação. Ministério da Educação e Saúde, Serviço de Documentação, Folheto nº. 46: Impressa Nacional, Rio de Janeiro.

20 BARROSO, Gustavo. Introdução à Técnica de Museus. Vol. I, Gráfica Olímpia: Rio de Janeiro, 1946. pp. 13-14.

21 HOLLÓS, Adriana Lúcia Cox. Entre o passado e o futuro: os limites e as possibilidades da preservação documental no Arquivo Nacional. (Dissertação de Mestrado em Memória Social). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2006. p. 57.

22 Aberto ao público em 1895, o Fogg Art Museum é o mais antigo museu da Universidade de Harvard, em Cambridge, Massachusets. O “The Center for Conservation and Technical

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Studies” foi criado em 1928 por Edward W. Forbes, então diretor do Fogg Museum e é considerado o mais antigo centro de conservação, pesquisa e treinamento dos EUA.

23 EDSON Motta – Pinturas. op. cit..

24 Arquivo Noronha Santos – IPHAN, Série Centro de Restauração de Bens Culturais, Caixa 11, Pasta 03.

25 Por meio do Decreto Nº. 44862 de 25/11/1958.

26 Lei Nº. 3780 – de 12 de julho de 1960. Dispõe sobre a Classificação de Cargos do Serviço Civil do poder Executivo, D.O.U. 12/07/1960.

27 “Resumo das decisões tomadas nas reuniões convocadas pelo Diretor Geral, Rodrigo Mello Franco de Andrade, realizadas na sede do DPHAN nos dias 3, 4 e 5 de dezembro de 1962, com o fim especial de estabelecer normas e planos para ordenação dos trabalhos de recuperação de obras de arte”. Arquivo Noronha Santos – IPHAN, Centro de Restauração de Bens Culturais da SPHAN, Módulo 68, caixa 58, pasta 48.

28 Discurso da oradora da Turma de 1961, proferido na solenidade de Formatura da Turma de 1961 do Curso de Professores da Escola Nacional de Belas Artes. In: Universidade do Brasil. Arquivos da Escola de Belas-Artes, 12 de agosto de 1962, Número VIII, Universidade do Brasil.

29 Arquivo Noronha Santos - IPHAN, Série: Centro de Restauração de Bens Culturais – SPHAN, Caixa 58, Pasta 48, Documento de 05/02/1968.

30 Arquivo Noronha Santos – IPHAN, Série: Centro de Restauração de Bens Culturais – SPHAN, Caixa 58, Pasta 48, Documento de 05/02/1968.

31 Decreto Nº. 72.493/ 19 de julho de 1973.

32 Arquivo Noronha Santos – IPHAN, Série Centro de Restauração de Bens Culturais, Módulo 36, Caixa 36, Pasta 2.

33 CORUJEIRA, Lindaura Alban. Métodos de prevenção e eliminação de fungos em materiais bibliográficos. Revista de Biblioteconomia, Brasília: 1,jan./jun.1973.

34 Arquivo Noronha Santos – IPHAN , Série Centro de Restauração de Bens Culturais (Laboratório), Módulo 36, Caixa 3, Pasta 2.

35 Cf. GUICHEN, Gaël de. La conservation preventive: un changement profond de mentalité. Study series, Bruxelas: ICOM-CC/ULB, v.1, nº1. p. 4-5, 1995.

36 Pelo alcance dos resultados obtidos o Projeto CPBA recebeu, em 1998, o Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade.

37 FRONER, Yacy-Ara. Princípios históricos e filosóficos da conservação preventiva/ Yacy-Ara Froner, Alessandra Rosado. Belo Horizonte:LACICOR, EBA, UFMG, 2008.

38 PHILIPPOT, Paul. Restoration from the perspective of the humanities. In: Historical and Philosophical Issues in the Conservation Cultural Heritage. Los Angeles: GCI, 1996, p. 216-229.

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História da Arte Técnica, Arqueologia e Arquitetura

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Teoria e Contexto na preservação em Arquitetura

Flavio de Lemos Carsalade, NPGAU-EA-Universidade Federal de Minas Gerais

RESUMO

O artigo discorre sobre as questões epistemológicas da preservação sob a luz da fenomenologia para examinar a pertinência dos fundamentos da teoria da preservação vigentes nas áreas da cultura (estabilidade cultural), história (objetivismo histórico) e artes (imanência da arte) visando discutir sua validade no campo da preservação e restauro do patrimônio construído.

Palavras-chave: Conservação e Restauro. Patrimônio Cultural. Preservação

ABSTRACT:

The article discuss about epistemological issues on preservation in function of the phenomenological ap-proach in order to exam the pertinence of the principles of the actual heritage preservation theory in the fields of culture (cultural stability), history (historical objectivism) and arts (artistic immanence) in order to discuss its validity in issues on preservation and restoration of the built heritage.

Key words: Conservation and restoration. Cultural Heritage. Preservation.

Introdução

O surgimento da chamada “disciplina do restauro” se situa historicamente no final do século XIX, início do século XX, portanto bastante contaminada pelo pensamento positivista. Influenciadas pelo espírito da época, as bases mais comuns para a abordagem do problema se relacionariam, então, prioritariamente ou com questões estéticas ou com uma tentativa de aplicação de um método científico. Nos seus primórdios, se excetuarmos a presença crítica de Ruskin (Inglaterra, 1819-1900), todo o resto da evolução inicial do restauro parece se dirigir por uma matriz objetiva, característica da época. Mesmo o idealismo esteticista de Viollet-le-Duc (França, 1814-1879) é marcado por uma forte concepção “científica” baseada em uma suposta unidade estilística, resultante da compilação iluminista, enciclopedista e sistematizada que permitia a compreensão do modus faciendi de cada forma de expressão artística. Os que o sucederam, conforme consta na literatura correlata à história do restauro (exceção para o austríaco Alois Riegl, 1858-1905), mantiveram a

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preocupação de abordar o restauro como ciência, com a mesma e forte influência positivista. Foi assim com os italianos Camillo Boito (1836-1914) e Gustavo Giovannoni (1873-1943) que procuraram superar a preocupação estética de Le-Duc e, influenciados pelo pensamento de Ruskin, resgataram a importância da história marcando a “ciência” do restauro com as duas instâncias que até hoje lhe delineiam os eixos, em grande parte das abordagens: a estética e a histórica. Nessas abordagens, a instância estética, marcada pelo restauro estilístico da vertente francesa procurou tratar as intervenções através de um critério analógico, enquanto a instância histórica se notabilizou pela indução filológica, cada uma com seu entendimento do que seria a recuperação da “verdade” do monumento. Apesar de manter a dupla polaridade estética e histórica, foi apenas com Brandi que o restauro ensaiou novas posições filosóficas. Cabe, portanto, neste artigo, lançar algumas luzes sobre a atividade da Conservação e Restauro (ou da intervenção no patrimônio edificado) liberta dos liames da ciência e procurar identificar a pertinência da filosofia no seu trato, notadamente pela matriz fenomenológica.

A chave para o entendimento fenomenológico da preservação nos é fornecida por Heidegger em “A Origem da Obra de Arte” e por Merleau-Ponty em “Fenomenologia da Percepção”. Para ambos, a preservação está na constante “atualização” da obra (atualização como vigência no presente e não como modernização, é claro). Para Heidegger:

o deixar a obra ser uma obra nós chamamos de preservação da obra. É somente por essa preservação que a obra efetiva sua criatividade como presente, isto é, agora: presente no modo de obra. [...] preservar a obra significa: permanecer dentro da abertura do ser que acontece na obra”. (HEIDEGGER, 1975, p. 66-67).

A partir dessas constatações, podemos inferir que a preservação se faz não na imutabilidade e na cristalização, não na unicidade de conhecimentos aplicados sobre a obra, mas no seu exercício constante, na sua sempre presente abertura. A abertura “preservada” da obra, no entanto, não está apenas nela ou no desejo de conhecimento (pro-jeto) sobre ela de quem a frui. Afinal, a fruição de uma obra preservada não é uma mera experiência do sujeito ou a obra um mero estímulo. A obra preservada representa uma abertura que remete à luta histórica do ser contra a ocultação, para

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o exercício de sua plenitude, não se restringindo, portanto, a uma mera fruição estética, o que, no patrimônio, faz somar, ao fruir da obra da arte, o caráter da historicidade. Para Heidegger, a preservação não está centrada, portanto, nas características formais e físicas da obra e ele nos mostra que, quando isso ocorre, não se trata de preservar, mas de uma simples recomposição da obra, mesmo porque a sua preservação como obra e a sua transmissão no tempo não é possível por métodos científicos. A preservação é uma co-criação que se faz a partir da própria obra.

A realidade da obra é determinada pela natureza do ser da obra. E a obra não é apenas a sua matéria ou a sua forma. Se ficarmos atentos apenas a esses elementos, eles, na realidade, escondem mais do que mostram o que a obra realmente é. O nosso trabalho, como fruidores, é extrair a obra da matéria: a verdadeira obra é um acontecimento para quem a frui. De maneira similar, a obra também é o acontecimento do artista, é pelo trabalho impregnado (preservado) na obra que ele se torna possível como artista. Por outro lado, também é o trabalho do preservador, necessário à sobrevivência da obra, que permite a sua preservação, fazendo com que a origem da obra e sua preservação estejam, portanto, unidas pela própria obra. A preservação é assim, a manutenção da continuidade expressiva da obra em sua constante capacidade de abertura de significados. Ora, tanto o preservador quanto o artista estão unidos pela obra, o que não quer dizer que o preservador é congenial ao artista, coisa cuja impossibilidade discutiremos mais adiante. Dessa forma, preservar não é garantir o acontecimento original da obra da mesma maneira como ela surgiu, mas garantir o seu acontecimento e o acontecimento da sua verdade, como ela acontece no momento presente de seu acontecimento.

Essa preservação a que se refere Heidegger, a preservação da abertura da obra de arte, do acontecimento da verdade, só se aplica àquelas obras que têm caráter especial, que se diferenciam, no nosso cotidiano, das coisas meramente instrumentais e que aparecem como uma coisa fundante. E mais do que isso, como cada forma de expressão artística funda a seu modo, essa preservação diz respeito ao modo de ser específico de cada obra, no seu modo próprio de acontecer, isto é, segundo a natureza de sua categoria de arte.

A tarefa da preservação seria, nesse caso, manter a capacidade fundante

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da obra, segundo o modo próprio de sua forma de expressão artística: “Instituir, entretanto, é real somente na preservação. Assim a cada modo de instituição corresponde um modo de preservação.” (HEIDEGGER, 1975, p. 75).

Conforme vimos, é esse o caráter histórico da obra e por isso ela precisa da história e da preservação: pela historicidade do ser poder se exercer, pela possibilidade de criar o objeto que o ser frui em diferentes tempos e por permitir que a verdade que funda se transmita através dos tempos em sua abertura de possibilidades e transformações:

A arte é histórica e sendo histórica é a preservação criativa da verdade da obra. A arte acontece como poesia. A poesia é instituidora no triplo sentido de conferir, basear e começar. A arte como instituidora é essencialmente histórica. Isso não significa simplesmente que a arte tem uma história no sentido externo de curso do tempo, mas também aparece ao longo de muitas outras coisas e nesse processo muda e passa e oferece aspectos mutantes para a historiologia. A arte é história no sentido essencial de que ela baseia a história. A arte deixa a verdade se originar. A arte, fundando a preservação, é a fonte que lança a verdade do que é, na obra.” (HEIDEGGER, 1975, p. 77).

Assim, para Heidegger, a arte está na história e a história está na arte. A arte está na história porque se preserva através dos tempos e, como história, também se transforma. E a história está na arte porque esta permite a abertura do tempo para que ela se torne presente. Para a fenomenologia, portanto, não há uma instância histórica e uma instância artística como entes separados a serem preservados distintamente. Preservar um significa preservar o outro e ambos precisam ser preservados para que possam acontecer no presente.

Após este exame do conceito de preservação, resta-nos que a grande dificuldade epistemológica do restauro está na evanescência de seu objeto de aplicação. Afinal, a que se aplica o restauro? O que se restaura? A palavra restaurar, de origem latina, traz consigo a idéia de recobrar, reaver, recuperar, recompor. Ora, pelo que vimos até agora, estas são ações impossíveis com relação ao bem patrimonial, posto que, ao intervirmos na sua matéria, seja na sua estrutura ou na sua aparência, não o estamos recuperando, mas

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modificando-o; isto sem contar o fato de que, pela ação da tradição, ele já nos chega alterado e, pela ação cultural, tematizado e com sua significação “original” perdida. Além do mais, preservar e restaurar, apesar de serem conceitos interligados, não são exatamente ações associadas e nem sempre complementares, pois restaurar significa intervir em um bem, ao passo que preservar significaria apenas, a princípio, a sua transmissão através do tempo. A interligação biunívoca entre as práticas de preservação e restauração, portanto, só teriam sentido se para a transmissão do bem - e o seu vigor no presente – fosse indispensável a sua recuperação, o que já vimos não ser também sempre necessário. A ação de restaurar, portanto, se aplica apenas quando há um objetivo precípuo de superar a destruição causada na transmissão daquele bem que, sem a ação do restauro, perderia totalmente o seu potencial de significação. Restaurar, portanto, parece ser uma ação interventiva que visa recolocar o bem patrimonial no jogo do presente através da recuperação de suas próprias perdas e é, portanto, sempre um processo de re-significação e daí uma re-criação que se faz sobre a matéria que conseguiu sobreviver ao tempo.

Essas premissas poderiam nos dar a ilusão de que, então, ao desaparecer efetivamente o objeto do restauro, se desapareceria também o seu objetivo, o que, é claro, não faz sentido. Essa digressão nos leva a compreender, então, que a ação de restaurar está presente na dimensão existencial do ser, mas deve ser repensada mais quanto aos seus objetivos do que quanto aos seus objetos (sobre os quais a História da Restauração sempre versou). No entanto, não é pelas dificuldades epistemológicas relacionadas ao objeto do restauro que estariam liberados os limites de ação do restaurador. Essas dificuldades só nos mostram que, na realidade, ao aprofundarmos nossa investigação sobre patrimônio, preservação e restauro, não estamos “reduzindo” a aplicabilidade desses conceitos, mas ampliando-os e com isso, também redimensionando o “objeto” do restauro. É essa a tarefa que se nos apresenta neste momento e convém começarmos por algumas distinções conceituais importantes que se dão, por exemplo, entre preservação e restauro ou entre conservação e restauro, dentre outras.

Conservação e Restauração

A idéia de preservação como é concebida pelo senso comum se liga à

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possibilidade de conservação do bem na sua capacidade plena ou com a mínima deterioração possível, o que nos remete, é claro, quase que intuitivamente, a vários níveis de ações preservativas, onde a restauração seria apenas uma delas. No limite, a melhor forma de preservação seria aquela similar à conservação do papel, ou seja, com uma espécie de redoma sobre o bem, a qual o protegeria de qualquer intempérie ou ação do tempo. É claro que essa situação limite também impediria a sua fruição e, portanto a sua presentificação, função maior do patrimônio. O paradoxo da redoma indica bem que o objetivo da preservação do patrimônio não é a eternização do bem, mas sua presença utilizável através dos tempos.

É dessa discussão que emerge, então, aquele que parece ser o primeiro consenso entre os técnicos da área: que a conservação é preferível sobre qualquer outra das formas de preservação. Vamos investigar esse consenso, mas não sem antes adiantar uma questão que o liga ao paradoxo da redoma: será que só conservar permitiria o uso contemporâneo desse bem? Este uso a que nos referimos deve ser entendido de forma ampla, incluindo os significados que o bem desperta e a liberdade responsável de quem faz uso do bem. No entanto, mesmo a conservação pode ser vista sob suspeita quanto à sua suposta neutralidade, a qual o senso comum coloca como sendo inerente ao processo de conservação. Na realidade, os próprios teóricos do restauro, embora defendam sempre a conservação como preferencial, percebem que ela não é tão neutra assim. A princípio, a conservação é entendida como uma atividade cuja função principal seria evitar (ou prevenir) a deterioração do bem. Essa conservação pode ser realizada de duas formas: uma sobre o ambiente ao qual está exposto o bem (e cujas características poderiam agravar ou não seu deterioro), a qual comumente chama de conservação preventiva - apesar da redundância de que toda conservação é, por definição, preventiva; outra, a conservação que se faz sobre o próprio bem, como a aplicação de vernizes ou antioxidantes, por exemplo. Seja de uma forma ou de outra, nenhuma conservação tem eficácia de 100 % e muitas vezes elas podem até mesmo causar a deterioração que se quer evitar. Assim, uma aspiração mais realista quanto à conservação, em qualquer uma de suas duas modalidades, é sempre a de ter o menor número de alterações durante o maior tempo possível. Sob outro ponto de vista, especialmente na segunda modalidade – e porque esta incide diretamente sobre o bem – a conservação muitas vezes se

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confunde com a restauração, como por exemplo, no caso das pinturas, quando se procede a um re-entelamento que recupera deformidades da tela ou, no caso do papel, quando se recupera sua condição física, ou ainda no caso de pinturas murais, onde se trabalha diretamente sobre o reboco. Para Viñas, o que diferenciaria conservação de restauração seria o critério de perceptibilidade da intervenção:

[...] A palavra conservação é empregada para referir-se à parte do trabalho de Restauração que não aspira a introduzir mudanças perceptíveis no objeto restaurado; ao contrário se fala de restauração para referir-se à parte do trabalho de Restauração que tem por objeto modificar os traços perceptíveis do objeto. A conservação pode resultar perceptível, mas somente se ela é tecnicamente inevitável ou aconselhável: assim os reforços exteriores do Coliseu de Roma, ou a laminação de papéis muito debilitados que são recobertos por outras folhas de papel ou de plásticos de um ou outro tipo são operações de conservação, ainda que resultem claramente perceptíveis para qualquer um. (VIÑAS, 2003, p. 22).

Restaurar ou conservar é, portanto, sempre uma questão dialética e atual. Ela tem seus primórdios no pensamento do inglês John Ruskin, para quem toda restauração seria sempre uma forma de destruição, sendo por ele admitida apenas – e eticamente – a conservação. O real pano de fundo de toda a reflexão ruskiniana é a questão da verdade, a qual seria corrompida pelo “falseamento” da restauração. A outros homens do seu século, a posição de Ruskin parecia imobilista. Camillo Boito (1835-1914), engenheiro, arquiteto e historiador de arte, que também vê na conservação uma forma de resolver a questão de maneira “científica”. O raciocínio pragmático de Boito visa superar esse imobilismo, levando-o à ilusão de que poderia resolver os problemas da arte através do método das ciências. Esse método, aplicado ao restauro, se fazia de maneira clássica: primeiro uma avaliação do problema, depois uma sistematização classificatória (baseada, é claro, em generalizações), gerando uma lista de procedimentos aplicáveis. Ao privilegiar a autenticidade do documento e o método, Boito se aproximava do homem de ciências de seu tempo, imerso no espírito positivista que lhe caracterizava. Mas ele era também arquiteto e, nessa condição, também sofria influência do início da modernidade

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arquitetônica, a qual se orgulhava da sua diferenciação estilística radical e procurava se afirmar por contraste, fazendo com que, portanto, o modo do restauro arquitetônico de explicitação da intervenção contemporânea fosse duplamente validado pela ciência e pela Arquitetura. Essa solução parecia resolver também a problemática colocada por Ruskin e parecia apontar inquestionavelmente para a conservação, entendendo Boito que seria sempre melhor consolidar que reparar e depois reparar que restaurar, a não ser que o seu novo uso, enfim (?), demandasse a restauração. Mas, no entanto, mesmo ele próprio reconhecia que, se teoricamente era fácil distinguir a conservação da restauração, na prática isso não era tão fácil assim, mas que, no entanto, enquanto a conservação respeitava a dimensão histórica do bem, pelo restauro se abria a porta para a invasão na sua “verdade” histórica. Retorna-se, portanto, à questão da verdade, aquela que assombra a história do restauro desde sempre. No método de Boito não se resolve, no entanto, a tensão entre a estética e a História, pois é exatamente nessa tensão que os defensores contemporâneos da conservação se apóiam para iniciar sua defesa para essa forma de atuação sobre o bem patrimonial e radicalizar contra qualquer forma de restauro. Para eles só o que se pode efetivamente realizar é a conservação da matéria, nunca o restauro. O maior defensor dessa corrente na contemporaneidade é o italiano Marco Dezzi Bardeschi. Para ele, “[...] hoje, ainda mais que no tempo de Boito e do seu diálogo imaginário intelectual protoromantico a um pretenso novo filólogo, a palavra de ordem deve ser conservar, não restaurar”. (BARDESCHI, 2000, p. 67). Assim, se todo restaurar é um refazer, a única possibilidade autêntica de transmissão do passado para o presente e o futuro estaria na conservação da matéria e aí o conceito de conservação é lançado a um nível ainda mais profundo, não se restringindo apenas ao tratamento conservativo, mas se confundindo com a própria noção de preservação, ou seja, preserva-se apenas aquilo que existe realmente, ou seja, a matéria. O problema de fundo da preservação do bem patrimonial seria, portanto, a conservação integral da matéria que nele resta, sem nenhuma ação restaurativa, mas sim de manutenção dessa mesma matéria, quando muito agregando mais matéria, mas nunca a subtraindo.

Na linha desse pensamento, que considera “original” aquilo que se nos apresenta, como se nos apresenta, é claro que todo restauro é uma forma de mutação, não importando sua qualificação (estilístico, histórico, crítico,

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filológico, tipológico, etc.). Para reverter essa acepção, só poderia ser aceito hoje um restauro “[...] como atenta e respeitosa obra de conservação, ou seja de manutenção, que quer dizer a propósito, literalmente (...) garantia de permanência e de não intervenção sem critério e nem uma displiscente substituição – reprodução de matéria”. (BARDESCHI, 2000, p. 101).

Dessa forma apresentados, os conceitos de conservação e restauração não são sequer complementares, conforme o desejo e a suposta prática de grande parte dos restauradores contemporâneos, expressos como recomendações na própria Carta de Veneza, instrumento guia das práticas de intervenção no patrimônio há décadas. Essa incompatibilidade, a par das questões técnicas aplicadas, é também, para Bardeschi, verificável do ponto de vista filosófico, pois é “impossível fazer girar ao contrário as pás do moinho da história” (BARDESCHI, 2000, P. 377).

O debate sobre a questão da conservação passa, portanto, da questão técnica e terminológica - onde conservar seria uma ação preventiva e restaurar uma ação interventiva – para uma questão epistemológica mais complexa, ligada às idéias de autenticidade, documento, reutilização, dentre outras que investigaremos a seguir.

Os três paradigmas da Conservação-Restauração

A consolidação moderna de uma consistente “teoria da restauração” foi realizada pelo italiano Cesare Brandi (1906-1988), a partir das contribuições sobre o tema que já vinham sendo debatidas na Europa desde o século XIX. A sua teoria se estabeleceu sobre os dois pilares acima citados, a história e a arte, levando-o a discorrer sobre uma instância histórica e uma instância artística aplicáveis aos objetos a serem restaurados. Dois conceitos fundamentais para o entendimento contemporâneo do patrimônio – a cultura e a memória - não foram explorados, mas apesar disso, a prática contemporânea aplica a teoria brandiana indiscriminadamente aos bens a serem preservados, desconhecendo que toda ela foi estabelecida apenas com relação às obras de arte, hoje apenas uma parcela de nosso vasto patrimônio.

Além disso, a separação entre uma instância histórica (na maior parte das vezes relacionada à matéria) e artística (na teoria brandiana associada à

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imagem) possibilita também uma separação entre imagem e matéria, a qual muitas vezes aponta para uma atitude simplista que reduz o trabalho de restauro a uma mera adaptação da matéria à obra de arte em sua exigência formal, desconhecendo envolventes da memória e da cultura.

Pelo que examinamos até aqui, parece-nos que duas direções de visão têm tido influência decisiva na História do restauro, a partir das distinções entre instância histórica e instância artística, imagem e matéria. A primeira direção aponta para três paradigmas, quais sejam o objetivismo histórico (a matéria como prova inequívoca do passado), a imanência da arte (a imagem dotada de uma aura única e reveladora, imutável) e a estabilidade da cultura (a identidade e os costumes como padrões imutáveis caracterizadores de um determinado povo). Quanto à segunda direção de visão, esta aponta para certa confusão do que seja a natureza da Arquitetura, Arquitetura aqui entendida de forma ampla como todo e qualquer agenciamento espacial feito pelo homem, englobando, portanto, a paisagem, a cidade e o edifício, se é que é possível separa-los assim. Passemos a examinar esses pontos de vista.

O objetivismo histórico pode ser abordado sob dois ângulos. O primeiro diz respeito à epistemologia da própria disciplina da História e o segundo relativo ao par autenticidade/ verdade, o qual documentaria inequivocamente a historiografia. Quanto ás questões epistemológicas, embora a História contemporânea questione a idéia “objetiva” de verdade histórica, ela está tão arraigada no senso comum e na patrimonialidade “agregada” aos objetos que elas se confundem com a impossível busca de recuperar os fatos passados como eles realmente aconteceram, contrariando a constatação de que o discurso histórico é essencialmente dedutivo e as suas explicações são antes “avaliações” que “demonstrações”. Por um lado, é impossível uma reconstrução integral dos fatos exatamente como ocorreram, pois, na realidade, a História agrupa fatos em função do método e do historiador, sendo, portanto, por um lado, extremamente influenciada pelo momento em que é escrita e, por outro, as fontes que supostamente “documentariam” objetivamente os fatos podem ter sido manipuladas pelo poder (documentos “oficiais”) ou pela opinião (fontes jornalísticas) ou ainda pelo filtro do narrador (indeterminação da memória).

Quanto às questões relacionadas ao par autenticidade/ verdade – temas

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que por si só já ensejaram congressos e cartas internacionais – podemos rapidamente dizer que muitas vezes esses conceitos também partem de uma ilusão sobre um suposto “documento histórico”, objetivo, palpável, como se também ele não fosse sujeito a manipulações e desvios e sobre os quais só temos acesso a certas partes de sua própria história. Assim, temos que a prática tem muitas vezes colocado a sua atenção mais no objeto de estudo e esquecido do sujeito que o estuda, como se a “verdade” ou “autenticidade” de um documento ou de um patrimônio não dependesse fundamentalmente da interação entre o que é observado e quem o observa. Qualquer que seja a sua forma, no entanto, o documento antigo constitui um acervo patrimonial, posto que é uma herança que vem do passado e tem sua origem em um tempo que não volta mais, mas, independentemente de seu valor de “verdade”, ele é um objeto do passado, com potencial de expressão próprio. Isto não quer dizer, no entanto, que ele é certamente o documento comprobatório da história e nem que ele é “original” de um determinado fato histórico ou de um único momento específico de criação: ele deve ser absolutamente relativizado como sobrevivente do passado, mas sem a aura de um inconteste documento de uma História “real”.

O ponto de vista da imanência artística entende a obra de arte como provida de uma “aura” ou de uma expressão metafísica que automaticamente se revelaria à humanidade com toda a expressividade nela contida, como uma “epifania”, segundo os dizeres de Cesare Brandi. Sem querer desmerecer a clara expressividade da obra de arte e a sua consistência própria ou a sua coerência de totalidade, devemos nos lembrar, no entanto, que as questões de restauração se aplicam sobre a recuperação da obra de arte e aí entram vários outros fatores “externos” à obra, tais como seu grau de deterioração, a importância desta para a cultura dos diferentes grupos sociais em tempos diversos (aliás como já dizia Riegl em 1903), a legibilidade da obra em função do deterioro e das diferenças culturais e de formas de legibilidade desejáveis, diferentes formas de tratamento de lacunas, isto tudo sem falar das vertentes arquiteturais, onde esses problemas se mostram ainda mais complexos, conforme veremos adiante.

O ponto de vista da estabilidade da cultura trata a cultura como se ela, responsável pela identidade dos povos, fosse imutável e cuja perda levaria

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ao deterioro de uma determinada civilização. Também aqui se confundem conceitos. Se por um lado é clara a função identitária da cultura e a importância da preservação de seus valores para a coesão dos povos, por outro lado, isso não significa que a cultura seja imutável e que a identidade seja fixa. Estamos submetidos a processos de transformação de crença e valores tanto como indivíduos, quanto como grupos e uma análise, ainda que breve, sobre as transformações culturais mostraria como um mesmo povo em diferentes épocas valoriza ou vê de forma diferente o mesmo bem cultural. A situação se mostra ainda mais forte se estendermos a nossa observação a um período histórico mais largo, quando podemos observar que as intervenções na pré-existência só muito recentemente valorizam sua bagagem histórica e documental.

O estudo dos paradoxos que a problemática do Restauro traz consigo e do seu desenvolvimento histórico, bem como a observação ao longo do tempo do que seja “patrimônio, histórico, cultural e artístico” – onde a própria mistura de três vertentes tão diferentes já se apresente muito complicada – nos mostra que “patrimônio” é um conceito difuso, relativo e circunstancial e que a “patrimonialidade” não está apenas na matéria, mas também depende de quem a define e nos valores que crê, sua visão de mundo, portanto.

Quando se discute a natureza da arquitetura sob esse arcabouço paradigmático, os problemas se tornam ainda mais complexos. Profundamente influenciadas pela noção de restauro da obra de arte, as questões de restauro arquitetônico foram trabalhadas como se a Arquitetura fosse uma arte visual e desde um ponto de vista relativo a um conceito de integridade visual, onde a obra seria um todo fechado do qual nada se poderia retirar ou acrescentar, o que para a sobrevivência dos artefatos arquitetônicos seria uma tarefa impossível. A aplicação dos métodos de restauro da obra de arte na arquitetura tem levado a distorções, à criação de híbridos descaracterizados e até mesmo a ações de restauro tipológico, estes falsos tanto quanto á história, quanto à arte. Há que se reconhecer, portanto que os princípios adequados às intervenções arquiteturais não podem se confundir com os preceitos adotados para as artes visuais e, embora se possa compartilhar alguns deles, a Arquitetura deve desenvolver seus próprios princípios de restauro em função de sua natureza peculiar.

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Para ilustrar essa diferença relativa a outras artes visuais, podemos dizer que a Arquitetura é uma arte que se faz em função do uso e é feita para servir e materializar as sociedades e, portanto, sua sobrevivência no tempo depende da sua capacidade de manter essa propriedade. Tanto o edifício quanto a cidade e a paisagem estão em constante transformação, diferentemente de um quadro ou uma escultura.

A crítica aos princípios do Restauro

Alguns pontos críticos dessa visão de mundo aplicada à intervenção/ restauro da Arquitetura são claramente evidentes:

● O fenômeno artístico é um “acontecimento” que envolve tanto o objeto artístico como seu fruidor e tanto um como o outro são sempre outros: o primeiro pela ação do tempo e das intervenções sobre eles realizadas, os últimos pelas diferenças de maturidade e bagagem pessoal ou pelas transformações sociais e culturais;

● A história como “pura” é uma concepção ilusória de que as coisas podem permanecer inalteradas. Isto se revela com muita clareza no paradoxo da Nau de Teseu, eternamente ancorada no porto, mas tendo sempre suas peças deterioradas substituídas, o que no limite, levaria a uma mudança total da matéria e ao questionamento da “autenticidade” do monumento;

● O patrimônio como sendo eternamente ameaçado (conforme já nos mostrou José Reginaldo Gonçalves) e com ele ameaçadas a nossa identidade e a autenticidade do bem, uma preocupação também com a conspurcação do documento, o que levaria ao fim e ao cabo a uma “magnificação” do bem a ser preservado;

● A impossibilidade da conservação da imagem e da história, como se as coisas pudessem ser conservadas imutáveis, o que remete ao paradoxo da redoma, exemplificado pela conservação dos documentos em papel, onde o máximo de preservação ocorreria na completa reclusão do documento à luz, o que é claro lhe retiraria toda a sua função social e cultural.

A partir dessas constatações, temos que alguns perigos, se apresentam à compreensão/ interpretação (e seu rebatimento na preservação)

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que necessitam ser apontados para a crítica metodológica (baseado em BRANDÃO, 1999, p. 115, 116):

● O perigo historicista acontece quando colocamos o “contexto no lugar do texto”, ou seja, quando tentamos entender o bem patrimonial não como ele se apresenta hoje a nós, mas como ele era e se portava no contexto onde ele nasceu. Este é o perigo que conduz ao embalsamento e a mumificação do bem e que também conduz a sua apropriação excessivamente setorial (geralmente pela indústria do turismo) e que, ao tentar lhe recuperar a “verdade” do significado, acaba por lhe retirar quase todo ele;

● O perigo psicológico acontece quando, na preservação, procuramos interpretar a intenção do autor ou o espírito da época em uma forma de congenialidade que é mais pretensiosa do que possível;

● O perigo objetivista acontece quando se procura derivar o sentido do bem a ser interpretado a partir apenas dele próprio, “tornando-o independente do autor, do contexto e do intérprete”;

● O perigo relativista, próximo ao historicista, acontece quando obliteramos nosso modo próprio de interpretação pela tentação de relativizar sempre a obra ao seu contexto original. Por esse perigo substituímos a fruição/ intervenção do presente pelo excesso de zelo pelo suposto documento;

● O perigo subjetivista acontece quando a balança pende para o lado do leitor/ restaurador que impregna o bem patrimonial com sua própria e exclusiva interpretação ou quando, no processo de intervenção, minimiza a presença da sua historicidade para fazer valer sua própria intencionalidade;

● O perigo positivista acontece quando se acredita poder trabalhar o bem apenas pelo método científico, sobre supostas bases “seguras” que a ciência ou o método analítico pudesse lhe fornecer;

● O perigo idealista aparece, no patrimônio edificado, naquilo que tange ao culto à imagem ou a matéria como se elas fossem, respectivamente, os centros da expressão artística ou da historicidade do objeto;

● O perigo do senso comum aparece na suposta “verdade” superficial

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assimilada coletivamente ou na superficialidade do gosto ou do juízo comum.

Do exame desses perigos, podemos verificar que a compreensão estética e histórica não se dá a partir de uma congenialidade, nem a partir de algo que seria imanente ou transcendente ao próprio objeto, nem ainda sobre o esforço analítico, mas sim à consciência da filiação da obra a nosso mundo. Ao mudar a cultura, transformam-se os valores e transformam-se, também, é claro, as atitudes quanto ao patrimônio. Assim, parece que o que se preserva, na realidade, é a identidade em transformação, ou seja, a preservação não está na capacidade do bem de permanecer como está, mas na sua capacidade de mudar junto com as mudanças sócio-culturais. Essa concepção se choca com a acepção de imutabilidade do bem a ser preservado, pois também ele, como a tradição e a cultura, está em constante transformação. Não há, portanto, como buscar a essência do objeto de restauro em uma idéia imutável de “objeto” que sobreviveu à história, pois ele está inserido na história da vida, a qual se caracteriza pela transformação. Não há esse objeto a-histórico “essencial” - além do que isso seria uma contradição com seu valor como “patrimônio histórico” conferido exatamente por estar inserido na história. Mesmo a idéia de uma transmissão “neutra”, independente da cultura e da tradição não se sustenta ainda mais que sabemos que as palavras “tradição” e “traição” têm a mesma raiz etimológica

A questão da preservação se centra agora, portanto, no conceito de transformação, ou seja, como manejar essa transformação de forma que não se rompa a delicada tessitura entre a tradição e a contemporaneidade, pois, ao intervir no bem patrimonial nós o estamos modificando, sempre, afinal pela tradição ele já nos chega alterado, pela cultura ele nos chega tematizado e, pelo tempo, com sua significação “original” perdida

Assim, o que se preserva não é:

● O bem “intocado”, pois se o não tocarmos ele se degrada e, ao nele tocarmos, acabamos por modificá-lo;

● A matéria “original”, como aparece no paradoxo da Nau de Teseu;

● A forma “congelada” do bem, posto que é impossível parar a ação do tempo e de cada geração sobre o bem;

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● Uma suposta “verdade” histórica, posto que esta não existe objetivamente;

● O seu momento “original” de criação, posto que esse já passou e só poderia ser acessado por uma suposta congenialidade, esta também impossível;

● A intervenção apenas na matéria, sem com isso intervir na dimensão imaterial;

● A redução de seus significados ou de sua complexidade

● E nem se dá através de um método exclusivamente científico, universal e neutro (que pende para o lado do objeto), mas também não tão aberto que desconsidere elementos compartilhados coletivamente (o que penderia para o lado do sujeito) e nem se faz a partir de um entendimento “globalista”, onde o objeto artístico é entendido de maneira global, sem levar em consideração as especificidades de cada expressividade artística.

A partir disso, entendemos que, na realidade, o que se preserva é:

● A “existência” do bem patrimonial, na sua capacidade de se fazer presente;

● A sua capacidade de pontuar a existência, referenciando-a, a sua especialidade no espaço e no tempo;

● A sua capacidade de nos atrair e possibilitar uma elaboração sobre ele;

● A fruição do presente instituída pela memória e as possibilidades abertas pelo passado: não é o retorno ao passado, mas a sua vivência no presente;

● A abertura de significados que a obra de arte (e de resto, mesmo o bem patrimonial não dotado de caráter artístico) “fixou” na matéria e no lugar e não apenas pelas características objetivas (formais e físicas) do objeto, portanto as suas dimensões material e imaterial;

● A identidade em transformação: a capacidade de mudança do bem, mantendo o equilíbrio dos modos pessoal e impessoal, dentro da dinâmica do tempo e da cultura.

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xtoA saída para uma compreensão contemporânea da preservação passa, a

nosso ver, por uma profunda e franca análise dos métodos e princípios empregados, bem como por uma capacidade de despojamento quanto a práticas bastante sedimentadas e bastante arraigadas. Se não está consolidado, até o momento, um modelo alternativo que possa substituir as práticas vigentes, pelo menos é possível se fazer a sua crítica e se estabelecer possíveis direções a investigar. Esta é a tarefa que se impõe à nossa investigação.

___________

Referências

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BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. Introdução à hermenêutica da arte e da arquitetura. Topos – Revista de Arquitetura e Urbanismo, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 113-123, jul-dez. 1999.

GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/ IPHAN, 1996.

GONÇALVES. Patrimônio como categoria do pensamento. In: ABREU, Regina e CHAGAS, Mário (Org.). Memória e Patrimônio. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 21-29.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Volume I. Petrópolis: Vozes, 2004. 262 p.

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RUSKIN, John. Las siete lámparas de la arquitectura. Buenos Aires: Safian, 1955.

VIÑAS, Salvador Muñoz. Teoria contemporânea de la Restauración. Madrid: Sintesis, 2003. 205 p.

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História da Arte Técnica e Arqueometria: uma contribuição no processo de autenticação de obras de arte

Alessandra Rosado Doutoranda PPGA-EBA-UFMG

Luiz Antônio Cruz Souza (Orientador)

Resumo:

Este artigo tem como objetivo estudar o papel das ciências naturais (física e química) no estudo da arte entre os séculos XIX e XXI, com particular interesse na atuação dessas disciplinas nos processos de autenticação de obras de arte. A metodologia utilizada neste trabalho foi a análise das práticas de atuação da História da Arte e ciências no estudo de obras de arte registradas em bibliografias publicadas no campo da conservação e restauração do patrimônio cultural.Observa-se também a constituição de dois novos campos de atuação das disciplinas humanas e das ciências naturais, adequados ao exercício da interdisciplinaridade: História da Arte Técnica e Arqueometria, ferramentas indispensáveis no estudo de autenticação de obras de arte.

Palavras-chave: autenticação de obras de arte, interdisciplinaridade, História da Arte Técnica, Arqueometria.

Abstract

This article aims at studying the role of natural sciences (physics and chemistry) in the study of art produced between 19th - 21th centuries, focusing on the role of these sciences in the process of rendering works of art authentic.The methodology used in this paper was the analysis of bibliography published in the field of conservation and restoration of Cultural Heritage, related to the practises of Art History and Sciences in the study of works of art.It can be noticed that two new interdisciplinary areas for human and natural sciences have been constituted: Technical Art History and Archaeometry, essential tools in the study of rendering works of art authentic.

Key Words: authenticity of Works of art, interdisciplinarity, Technical Art History, Archaeometry.

Introdução

A avaliação de objetos artísticos para averiguar uma provável atribuição autoral era feita quase que exclusivamente por connaisseur ou peritos com formação em História e/ou História da Arte, através basicamente da análise dos aspectos formais, estilísticos e dos dados documentais sobre

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a obra.

A introdução de exames científicos como ferramentas analíticas, para o estudo de obras de arte, a partir do século XIX intensifica-se consideravelmente nos séculos XX e XXI, sendo um novo tipo de avaliação de objetos artísticos através de uma metodologia interdisciplinar, envolvendo o emprego da conservação preventiva, da restauração, da Ciência da Conservação e da História da Arte. Essa abordagem contribuiu para a composição dos campos de estudo denominados de Arqueometria e História da Arte Técnica (AINSWORTH, 2005).

Objeto da pesquisa

Define-se como objeto da pesquisa o estudo relacionado ao desenvolvimento da metodologia sobre preservação e análises de obras de arte produzida pelos cientistas e historiadores da arte ocidentais entre os anos de 1850 a 2005.

Articulada ao processo de análise científica de obras de arte, a partir do século XIX. Tal metodologia integra o conjunto de cinco importantes práticas que orientaram a produção de novas bases de atuação das ciências da conservação e humanas no contexto de autenticação de obras de arte. São elas:

- introdução de laboratórios de análise científica e conservação em instituições museológicas;

- traduções de manuais técnicos artísticos antigos;

- submissão das obras de arte a exames científicos para identificação dos materiais e técnicas empregados na feitura da obra;

- trabalhos realizados em parceria entre cientistas, historiadores da arte e connaisseurs no estudo de pinturas de grandes mestres;

- estabelecimento de princípios norteadores da relação entre as ciências puras e humanas, dados os pressupostos fundamentados na arqueometria e história da arte técnica.

Através da análise dessas práticas procura-se identificar, a partir da temática

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da autenticação de obras de arte, os pontos de contato entre a produção de uma estrutura fortemente vinculada à História da Arte e a consolidação de uma prática interdisciplinar afinada com as diretrizes da Arqueometria e História da Arte Técnica.

Na identificação de tais pontos de contato, os termos conservação preventiva, análise de materiais e técnicas artísticas, atribuição, datação e investimento financeiro afirmam-se como elementos moduladores da relação que se procura produzir entre historiadores da arte, museólogos, connaisseurs e cientistas e as formas de pesquisa postas pela arqueometria e historia da arte técnica. É através da prática da arqueometria e da história da arte técnica que tal metodologia busca, nos processos de autenticação de obras de arte reivindicar para as ciências naturais e humanas a tarefa de analisarem conjuntamente a obra de arte.

Tendo em vista o enfoque sob o objeto anteriormente indicado destaca-se como objetivo geral da pesquisa, a identificação das bases em que se encontram assentados os vínculos entre Historia da Arte e Ciências Naturais, tendo em vista o processo de construção de metodologias analíticas utilizadas pela arqueometria e História da Arte Técnica.

Como objetivo especifico, procura-se avaliar as metodologias inscritas nas práticas de historiadores e cientistas nos processos de autenticação de obras de arte. Através dessa análise busca-se avaliar as linhas gerais da constituição de uma prática interdisciplinar, adequada ao exercício das análises de autenticação de obras de arte.

Originalidade, autententicidade: o lugar da pesquisa

A autenticação de obras de arte tem como objetivo identificar a autoria e origem de objetos artísticos anônimos através de uma investigação interdisciplinar envolvendo estudos históricos, formais, estilísticos, técnicos e científicos desses objetos. Entretanto, a união da Ciência da Conservação e da História da Arte nesses projetos ainda está em formação, como veremos a seguir.

A concepção de autenticidade para PASTOUREAU (1998) está vinculada a uma construção cultural que possui diferentes definições para cada tipo

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de sociedade e época.

Diante do exposto, define-se o período compreendido entre os séculos XIX e XXI com a intenção de abarcar o processo de autenticação de obras de arte vinculada à práxis da Ciência da Conservação e História da Arte através do contexto ocidental e, a partir da segunda metade do século XIX, procura-se consolidar o diálogo entre as ciências da conservação e humanas para uma análise criteriosa e interdisciplinar do patrimônio cultural artístico.

Na constituição de tal metodologia analítica, observamos a preponderância do uso da História da Arte (I) nos estudos de autoria frente às análises das ciências da conservação, tendo em vista que esta última só foi reconhecida como uma disciplina científica no século XXI por uma organização governamental dos Estados Unidos (KHANDEKAR, 2005).

Uma obra autêntica é entendida como um trabalho artístico em que a origem e autoria são reconhecidas. Apesar de a autenticidade ter tido sempre uma determinada importância no valor dos objetos artísticos, entre os séculos XVI e XVIII o significado mais enfatizado da obra era de cunho individual, sendo validada, por exemplo, pela sua representação simbólica para atender um gosto estético da época (PERUSINI, 1994). O próprio Michelangelo modificou uma obra recém produzida acrescentando-lhe características que lhe davam aspectos estilísticos mais antigos para atender um pedido de Lorenzo de Medice (ARNAU, 1961). Grandes artistas como Rubens efetuavam cópias de quadros de outros autores e cobravam por esses trabalhos (ARNAU, 1961).

Somente a partir do século XIX, paralelamente à criação de museus (II), o conceito de autenticação de obras referente à comprovação da genuinidade da obra de arte tornou-se familiar. É também a partir deste século que as obras passam a ser avaliadas como investimento financeiro – obras autênticas implicam na possibilidade de serem vendidas ou adquiridas a preços altíssimos no mercado da arte.

No entanto, o trabalho de autenticação não e fácil, pois muitas obras podem não apresentar assinatura de seus autores e, além disso, muitos dos grandes artistas da história ocidental tinham em seus ateliês ajudantes e discípulos que aprendiam e criavam. O mestre geralmente interferia na obra

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de seus discípulos, muitas vezes esboçava a composição ou acrescentava detalhes naquelas que estavam sendo elaboradas ou nas que já haviam sido finalizadas. Essa prática da interferência do mestre nas obras de seus alunos era muito comum também nas escolas de Belas Artes do século XIX e início do século XX.

Como então reconhecer uma falsificação? A resposta a essa pergunta tornou-se um tema de pesquisa dos historiadores da arte e da ciência da conservação ao longo dos anos.

No ano de 1864, Louis Pasteur foi convidado pela academia de Belas Artes de Paris para dar um curso sobre química e física aplicada à arte, confirmando certa importância atribuída a ciência em conformidade com o pensamento positivista dessa época que via com otimismo o emprego da ciência em todos os setores da vida humana (LAHANIER, 1987).

Apesar desse investimento da academia de Belas Artes de Paris, as autenticações das obras de arte eram efetuadas basicamente pelas ciências humanas (SCHENBERG, 1995). Sobre esse aspecto, a despeito da criação de laboratórios científicos inteiramente dedicados ao estudo e conservação de obras de arte (URBANI, 1981), o emprego de critérios da ciência da conservação preventiva para a avaliação da autenticação de obras de arte ocorreu lentamente intensificando-se apenas a partir da segunda metade do século XIX.

Curadores, antiquários e historiadores da arte é que tinham o reconhecimento de suas aptidões para análise de obras de arte, considerados como experts que haviam desenvolvido um “olhar apurado” para examinar uma obra artística e diagnosticar se eram ou não autênticas (AINSWORTH, 2005). Esses profissionais apoiavam seus pareceres principalmente em dados estilísticos.

Na segunda metade do século XIX, Giovani Morelli, um médico italiano e estudioso de pinturas criou um método de autenticação de pinturas denominado análise estilística de composições secundárias. Essa análise da atenção a detalhes considerados menos importantes da obra como ponta do nariz, orelhas, dedos das mãos, etc. A composição desses desenhos era executada, segundo Giovani, automaticamente, sem pensar, quase sempre mecanicamente e por isso o formato deles se repete em todas as obras

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efetuadas pelo mesmo artista (LUKICHEVA, 1987).

Esse método que é também adotado por historiadores da arte no Brasil como um meio seguro de avaliar atribuições (HILL, 2001), está longe de ser considerado como um método infalível ou universal, pois todo o método de autenticação de obra de arte que utiliza apenas uma disciplina isolada para analisá-la esta fadada a cometer enganos.

As datações e atribuições baseadas exclusivamente em fatos estilísticos dão margem a uma série cronológica relativa principalmente quando esses fatos estilísticos não são comparados a dados documentais quando eles existem (GINZBURG, 1989).

Para LOWENTAL (1992) assim como para GOMBRICH (1972), o único caminho seguro para autenticação da obra de arte é através da análise de gêneros, ao invés de apenas dos símbolos, ou seja, através de um estudo que distingue a época, estilo e sujeito do objeto artístico.

Entretanto no mercado da arte o risco de construir cadeias interpretativas, circulares, baseadas totalmente em conjecturas é muito forte, pois geralmente as análises das obras feitas por connaisseurs, historiadores da arte e curadores têm como base quase que exclusiva a análise formal estilística que dá margem a livres associações baseadas normalmente sobre uma pretendida decifração simbólica do objeto artístico.

HAUSER ao dissertar sobre as atribuições dadas as obras de arte, comenta:

... nenhum conjunto de obras definitivamente datadas e atribuídas, por maior que seja, vincula a sua inclusão dentro do conceito de um estilo, ou proporciona um critério severo e firme para a inclusão entre elas, com base no estilo de obras anônimas ou de datas incertas. Por outras palavras, nenhum conceito viável de um estilo poderá ser deduzido a partir de uma só obra ou de um pequeno número de obras; e por muitas obras que se possa conhecer, a origem e atribuição de cada obra anônima permanece um problema. (HAUSER, 1973.p. 273).

Qual a saída para a solução dos problemas relacionados a uma possível atribuição de autoria? A saída não é a eliminação dessas formas de pesquisas adotadas pela História da Arte, mas a criação de instrumentos de controle

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adequados através da interdisciplinaridade e das análises científicas.

Esta consciência sobre a necessidade do apoio das análises científicas para confirmar as evidências levantadas pelos estudos dos profissionais de história da arte de determinados objetos de arte começa a despertar, ainda timidamente, após a descoberta do raio X pelo cientista W.C. Roentgen, que em 1895 tenta fazer a primeira radiografia de uma pintura (GILARDONI, 1977).

O uso do raio-X na pesquisa sobre autenticação de pinturas ocorreu em 1935, no Museu Brookllyn de Nova York, Estados Unidos. Com o auxílio do raio X o cientista Pertsing elaborou um método de exame de pinturas sobre tela pertencentes ao acervo desse museu (MANCIA, 1944).

A partir de então, observa-se uma série de empregos isolados da ciência aplicada às análises dos materiais e das técnicas de objetos artísticos. Os resultados dessas análises em alguns casos contradiziam interpretações feitas pelos historiadores da arte. Os processos civis e penais que surgiram devido a erros cometidos por experts em questões de comprovação de autoria começaram a promover certo descrédito nas autenticações baseadas unicamente em impressões formais estilísticas (ARNAU, 1961).

O avanço das pesquisas e da utilização de novos métodos científicos de analise do patrimônio artístico cultural - como o emprego do infravermelho, dendocronologia e carbono 14 - começa a provocar uma mudança na metodologia usada por connaisseurs e historiadores da arte. Esses profissionais passam a buscar o apoio da ciência da conservação para não incorrerem em erros de interpretação, através da aplicação de apenas um único método de investigação (III).

Contudo, as rápidas mudanças nos métodos de pesquisa e o avanço dos equipamentos técnicos de investigação, não refletiram no lento processo de conscientização e na formação de grupos interdisciplinares de investigação compostos por curadores, historiadores da arte, connaisseurs e cientistas da conservação, com a capacidade de se comunicarem entre si, utilizando uma linguagem inteligível a todos.

O desenvolvimento de abordagens interdisciplinares envolvendo historiadores da arte curadores e cientistas tiveram como grande fomentador Edward Forbes (IV) que em 1931 criou o Department

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for Conservation and Tecnical Research. Os trabalhos realizados nesta instituição chamaram atenção para investigação dos materiais e técnicas de arte, bem como para questões relacionadas à procedência das produções artísticas originais (AINSWORTH, 2005).

Nesse mesmo período, surgiram também traduções de manuais artísticos antigos como “O livro da Arte” contendo a descrição de materiais e métodos empregados no fazer artístico, escrito no século XV por Cennino Cennini, na Itália (MOTTA, 1976).

Publicações desse tipo indicavam a preocupação dos cientistas na busca do conhecimento das técnicas pictóricas antigas através da compilação de fontes sobre esse assunto produzidas em épocas contemporâneas às obras antigas.

Observa-se um esforço de alguns cientistas para que o emprego de seus estudos sobre materiais e técnicas fosse apresentado como suporte às análises de historiadores da arte. Porém até a década de 70 essa metodologia interdisciplinar criada pelos cientistas da conservação não havia sido difundida plenamente entre as instituições universitárias e museológicas. Essa carência era reflexo também do parco número de conservadores que trabalhavam em museus cujo quadro de funcionários era formado quase que exclusivamente por curadores e historiadores da arte (LASKO e LODWIJKS, 1982).A partir dos anos 70, cientes da importância dos estudos científicos das obras artísticas, grandes museus decidem criar seus próprios laboratórios de pesquisa e vários laboratórios de universidades passaram também a direcionar pesquisas sobre objetos artísticos com o objetivo de determinar-lhes a origem e tecnologia.

Importantes pinturas de instituições museológicas passaram a ser fotografadas com luzes especiais como ultravioleta e infravermelho, radiografadas e até datadas com a utilização do sistema de datação através do carbono 14. Essas práticas reforçam o desenvolvimento da ciência nos museus e do mesmo modo o auxílio às pesquisas realizadas por curadores e historiadores da arte através da publicação de seus trabalhos em revistas especializadas e seminários.

Nessa mesma época a National Gallery, em Londres, iniciou a publicação do National Gallery Technical Bulletin mostrando a possibilidade de

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trabalhos em conjunto entre curadores, conservadores e cientistas da conservação no estudo de pinturas.Entre 1988 e 1989, o Departamento de Ciências da Conservação da National Gallery promoveu uma série de exibições intitulada de Art in the Making, com o objetivo de apresentar a públicos leigos e especializados os resultados das pesquisas técnicas empreendidas pela Galeria.

A primeira exposição de uma série empreendida nesse projeto da National Gallery foi sobre a obra de Rembrandt, organizada por um comitê formado por um restaurador, David Bomford; um curador, Christopher Brown e um cientista, Ashok Roy. Esse comitê produziu catálogos sobre esse assunto cujos textos foram produtos da discussão teórica entre eles. Os textos apresentam informações sobre os materiais e técnicas usadas por Rembrandt e também análises sobre a história e estilo desse pintor (BOMFORD et al, 1988).

AINSWORTH (2005) considera os estudos sobre Rembrandt como representantes do verdadeiro estudo interdisciplinar sobre pintura. O envolvimento de diversos especialistas vindos de diversas áreas do conhecimento incluindo a ciência da conservação neste estudo permitiu que fossem formuladas conclusões mais fundamentadas que geraram mudanças a respeito de algumas datações e atribuições das obras de Rembrandt.

Segundo LASKO e LODWIJKS (1982) e AINSWORTH (2005) para encorajar a comunicação entre conservadores, cientistas da conservação, curadores e historiadores da arte é necessário que haja mudança referente à educação dada a esses profissionais no início de seus cursos. Essa mudança requer, por exemplo, o ensino obrigatório de história da técnica nos cursos de história da arte. Outra forma para promover o diálogo entre esses profissionais que trabalham em museus e universidades é através de estudos colaborativos e a publicação dos resultados destes trabalhos. Salienta-se que estudos colaborativos entre cientistas da conservação e história da arte são as bases epistemológicas da História da Arte Técnica.

No Brasil, o Laboratório de Ciências da Conservação (LACICOR), da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), coordenado pelo professor Dr. Luiz Antônio Cruz Souza também tem alcançado avanços em relação à metodologia da História da Arte Técnica.

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Desde a década de 90, o LACICOR tem sido solicitado para estudos analíticos de obras artísticas pertencentes a instituições museológicas, igrejas históricas ou a coleções particulares para a investigação científica de materiais e técnicas empregadas na construção da obra analisada. Algumas dessas análises são solicitadas por colecionadores ou instituições que buscam a confirmação de uma autoria, devido principalmente a processos judiciais movidos pelo Ministério Público (quando se trata de obras suspeitas de pertencerem ao patrimônio cultural público), ou então para valorizar a obra no mercado de artes, ou para concretização de uma possível compra.

O LACICOR possui uma linha metodológica interdisciplinar, sempre aberta à operacionalização de pesquisas em colaboração com vários departamentos científicos estaduais, nacionais e internacionais (ROSADO, 2005).

Essa abertura promoveu, por exemplo, no ano de 2004, a cooperação do Laboratório de Física Nuclear Aplicada (LFNA) do Departamento de Física da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Paraná, na utilização do Sistema Portátil de Fluorescência de Raios X (EDXRF) para análise complementar da pintura a óleo sobre tela intitulada de O Lenhador de propriedade particular que foi analisada pelo LAC ICOR com objetivo de averiguar uma possível autoria (APPOLONI,2006).

Esse equipamento EDXRF possibilita análise não destrutiva da composição elementar dos pigmentos de uma pintura e é extensivamente usado na Arqueometria (V).

Para promover uma maior comunicação e troca de experiências com os principais museus do Brasil, o LACICOR elaborou um projeto junto ao Departamento de Museus e Centros Culturais (DEMU) do Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (IPHAN) que oferece oficinas de formação e capacitação museológica para profissionais que atuam nessas instituições. Esse trabalho possibilita que historiadores da arte e curadores destes museus apreendam sobre a linguagem e os métodos usados pela ciência da conservação preventiva e, conseqüentemente, com esse entendimento o diálogo entre as ciências humanas e ciências da conservação, é facilitado com isso amplia a possibilidade de trabalhos em cooperação.

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Diante deste contexto, verifica-se que a ciência da conservação do século XXI relacionada à pesquisa de autenticação de obras de arte está sendo caracterizada pelo uso de duas grandes áreas científicas: História da Arte Técnica e Arqueometria.

Essas áreas interagem entre si tão intensivamente que difícil de distinguir uma da outra, pois ambas envolvem estudos do patrimônio cultural artístico com o objetivo de entender para que ele foi feito, por quem foi feito, onde foi feito e como foi feito (CHIARI e LEONA, 2005). Ambas incluem estudos de procedência, tecnologia de materiais antigos e contemporâneos, técnicas de datação e autenticação de obras de arte.

A ciência da conservação com o uso destas duas áreas torna-se articuladora entre a teoria científica das ciências exatas e humanas, e cada vez mais vem conduzindo pesquisas que envolvem profissionais acadêmicos e de instituições de museus, cujos resultados demonstram que a análise dos vários aspectos - culturais, econômicos, estilísticos, históricos, etc. - que um objeto artístico representa só é possível através da interdisciplinaridade e do diálogo.

Considerações Finais

Ao longo desse trabalho, destacou-se o processo de inserção das ciências naturais nas analises de obras de arte, a partir de um viés particular: autenticação de obras de arte. Essa temática tomada nos termos dos vínculos estabelecidos entre ciências humanas e ciências naturais possibilitou o avanço de algumas considerações sobre o processo de atuação dessas áreas em trabalhos relacionados a arte e cultura como o esforço de constituição de um campo de atuação interdisciplinar.

Notadamente a partir da década de 1970 – quando a questão do uso das ciências naturais foi admitida como importante ferramenta no processo de renovação nos estudos de arte – esse olhar interdisciplinar dimensionou os parâmetros norteadores dos campos de atuação da arqueometria e história da arte técnica.

Considera-se que os resultados dessa pesquisa sobre os aspectos metodológicos utilizados pelos historiadores da arte como de cientistas nos

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processos de autenticação de obras de arte, precisam ser mais aprofundados – uma vez que só puderam ser abordados em sua generalidade. Esta tarefa de aprofundamento torna-se necessária principalmente para o entendimento dos processos de autenticação de obras de arte no contexto brasileiro.

___________

Notas

I - No caso de bens culturais, as Ciências Humanas têm preferência frente às Ciências Exatas, pois é ela a responsável pelo estudo da função primária da obra de arte, que é a de estimular nossa sensibilidade estética (URBANI, 1982).

II - Inauguração do museu de Napoleão em Paris no ano de 1803; em 1823 o Museu do Prado à base das coleções da Casa Real na Espanha; em 1838 a Galeria Nacional e em 1857 o Victoria and Albert Museum ambos em Londres; e 1888 o Museu de Berlim, Alemanha (PERUZINI, 1994).

III - BRUYN (1979), alerta que discussões sobre a definição da autenticação da obra de um artista baseado apenas no estudo geral do seu estilo não são suficientes, pois são julgamentos subjetivos que podem resultar em interpretações diversas e conseqüentemente gerarem diferentes atribuições para uma mesma pintura. De acordo com BRUYN (1979) e SCHWARTZ (1998), para haver um melhor entendimento sobre a atribuição de autoria é necessário ampliar o campo de pesquisa utilizando como apoio novas técnicas científicas analíticas aplicadas pelos cientistas da conservação em seus trabalhos.

IV - Diretor do museu Fogg Art Museum, no ano de 1920.

V - Arqueometria é a união entre a arqueologia e conservação preventiva com as ciências experimentais. Reúne arqueólogos historiadores, conservadores e cientistas que aplicam técnicas instrumentais aos objetos do patrimônio para extrair deles informações tecnológica, culturais e históricas (CHIARI e LEONA, 2005).

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Museus: conceitos e reflexões

Ana Cecília Rocha Veiga Doutorando PPGA-EBA-UFMG

Yacy-Ara Froner (Orientadora)

Resumo

Desde os seus primórdios, com sua gênesis na mitologia grega, até a atualidade, os museus se modificaram drasticamente, constituindo hoje uma instituição de importância capital, tanto no seu papel didático quanto em sua função social. Portanto, neste artigo, destrincharemos a trajetória e evolução do termo museu, objetivando a compreensão do que vem a ser esta instituição na contemporaneidade. Passaremos pela criação das principais organizações museais, como o ICOM e o ICBS, bem como pelos seus conceitos afins, a Museologia e a Museografia. Terminaremos nossa proposta com uma análise das contribuições da filosofia moderna para a concretização de uma Nova Museologia, baseada nas ações dialógicas e na interdisciplinaridade.

Palavras-chave: museu, museologia, conceito, interdisciplinaridade.

Abstract

Since its inception, with its genesis in Greek mythology, the museums have changed dramatically, now constituting an institution of great importance because it’s didactic and social functions. So in this article, we unravel the history and evolution of the term museum, aiming to understand what this institution has to be nowadays. We will pass by the creation of the main museum organizations such as ICOM and ICBS, as well as their related concepts, Museology and Museography. We finish our proposal with an analysis of the contributions of modern philosophy for achieving a New Museology, based on the dialog and on the interdisciplinarity.

Key-Words: museum, museology, concept, interdisciplinarity.

Origem do termo museu: casa das Musas

A palavra museu tem sua origem no termo latim museum, que por sua vez deriva da palavra grega mouseion, ou ainda, “casa das musas”. Na mitologia grega, as musas eram filhas de Júpiter e Mnemósine, a Memória, “deusas que deleitam o coração de Zeus e inspiram os poetas”. (BRANDÃO, 1986, p.153) Cada musa, ao todo nove, representava um ramo específico da literatura, da ciência e das artes.

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Segundo SCHUHL (In: FERNÁNDEZ, 1993, p.49), Platão teria mencionado a intenção de que houvesse pessoal atento a receber os “turistas” em peregrinação artística, facilitando a apreciação das obras inspiradas pelas Musas nos templos. O historiador Heródoto reforça esta teoria, informando que nos principais templos das cidades famosas (Atenas, Delfos, etc) os gregos disponibilizavam para contemplação pública suas relíquias artísticas. No século V a.C., os Propileos da Acrópole de Atenas possuíam uma pinacoteca, descrita pelo viajante PAUSÂNIAS. Portanto, na mitologia grega o termo museu tem, amplamente, a sua origem.

Colecionismo

Não obstantes as origens do termo, a gênesis dos museus pode ser encontrada no ato de colecionar, tão antigo quanto à própria existência humana e quanto à noção de propriedade particular. Se a terminologia da palavra museu se ampara na reunião de saberes, também tem sua procedência vinculada à reunião de objetos, ou seja, o “colecionismo”. “Entendemos por ‘colección’ aquel conjunto de objetos que, mantenido temporal o permanentemente fuera de la actividad económica, se encuentra sujeto a una protección especial con la finalidad de ser expuesto a la mirada de los hombres.” (HERNÁNDEZ, 1998, p.13) A autora destaca quatro razões principais para o fenômeno: o respeito ao passado e às coisas antigas, o instinto de propriedade, o verdadeiro amor à arte e o colecionismo puro.

Faraós, reis, imperadores e papas da antiguidade amealhavam objetos de ouro, prata, bronze e outros materiais preciosos, que se prestavam à manifestação do seu poder e prestígio social. A historiografia e a literatura mundiais estão pontilhadas com inúmeros exemplos. Na Ilíada de HOMERO, lemos as riquezas em Hila acumuladas, o ouro e cobre variamente obrado, o prélio por reaver Helena e seus tesouros, ainda que fossem inferiores à vida da consorte por Páris arrebatada. Nas histórias do Rei Salomão e na tumba de Tutancâmon, tesouros célebres acendem nossa imaginação sobre tudo que se perdeu, com base no pouco que chegou até nós. BAZIN denomina as tumbas repletas de tesouros egípcios como verdadeiros museus funerários. No Palácio de Nabucodonosor

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reunia-se uma grande coleção, oriunda de espólios de guerra, denominada “Gabinete de Maravilhas da Humanidade”. (FERNÁNDEZ, 1993, p.52) GUARNIERI descreve que “a primeira atividade sistemática de organização de acervos tem origem na Caldéia, seis séculos antes de Cristo, quando a princesa Bel Chalti Nannar reuniu e documentou, através de registros, o tesouro contido no palácio de seu pai, composto por jóias e artefatos.” (FRONER, 2001, p.48)

Biblioteca de Alexandria e os Romanos

No século II antes de Cristo, a segurança econômica da dinastia dos Ptolomeus gestou aquela que seria, além da biblioteca mais enigmática e surpreendente da história, um novo modelo de museu, não mais focado no deleite das musas mitológicas, mas na compilação do saber enciclopédico, possuindo mais de 700.000 manuscritos. “Foi a primeira Universidade do mundo. Essencialmente, era um colégio de sábios emprenhados, principalmente, em pesquisas e história, mas, também, até certo ponto, como se deduz de Arquimedes, em ensinar.” (SPALDING, 1974, p.197) Astronomia, filosofia, religião, medicina, geografia e uma infinidade de demais campos do conhecimento encontravam ali registros materiais e intangíveis, nos muitos objetos e páginas escritas que procuravam reduzir todo o saber do mundo em um só lugar.

Os romanos herdaram dos gregos o gosto pelo colecionismo de arte, inaugurando novas formas de colecionar, como a exportação de peças valiosas das diversas províncias sob seu domínio. Porém, a palavra museu no contexto da cultura romana possuía significado um tanto diverso, referindo-se a “villa particular, donde tenían lugar reuniones filosóficas, término que nunca se aplicó a una colección de obras de arte.” (HERNÁNDEZ, 1998, p.15) O colecionismo mobilizou também a produção de conhecimento específico. O arquiteto romano Vitruvius recomendava, por exemplo, que as pinturas ficassem em gabinetes voltados para o norte.

Idade Média

Apesar do florescimento greco-romano, após o arrasamento da Biblioteca

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de Alexandria, nos primeiros séculos da Era Cristã, seguiram-se cerca de um milênio de silêncio, marcado pela ausência dos museus no Ocidente, tanto no seu sentido mitológico original, como neste novo contexto proposto em Alexandria. A queda do Império Romano colaborou para o surgimento de novas culturas na Europa, impulsionando o colecionismo litúrgico e a arte cristã. A igreja medieval seria praticamente o único local onde as artes, em suas diferentes formas e manifestações, estariam ao alcance do homem comum. “No final do século XII, o cardeal Giordano Orsine – um dos maiores colecionadores do período – criou em Roma um gabinete de antiguidades, atual Museu do Vaticano, que abria uma vez por semana ao público com o intuito de divulgar a superioridade da arte ocidental.” (FRONER, 2001, p.52) Portanto, na Idade Média, o colecionismo adquiriu novos vieses. As coleções de todas as épocas, em especial as obras de arte em materiais nobres, serviam ainda de reserva econômica para períodos facciosos. O exemplo mais famoso talvez seja o cavalo de Leonardo da Vinci, que não saiu da fase de projeto, pois o bronze destinado à sua construção precisou ser deslocado para fins bélicos.

Renascimento, Reforma e Contra-Reforma

O Renascimento redescobriu os objetos gregos e romanos, assim como o valor simbólico, artístico e histórico das obras, não somente o seu valor material. Estas coleções renascentistas, principescas e reais, originariam a instituição museu como hoje a conhecemos. Entretanto, nem tudo ia bem no mundo das “antiguidades”: os falsos antigos eram quase uma febre, difícil demais de debelar. Especialmente aquelas relacionadas com a religiosidade: as relíquias sagradas. Até que insurgiu a Reforma Protestante... A grande revolução tem seu estopim em um monge agostiniano, professor da Universidade de Wittenberg, chamado Martinho Lutero. Conheceu os clássicos antigos na Faculdade de Artes Liberais da Universidade de Erfurt, onde ainda jovem se matriculara. Manteve sua relação com o humanismo circundante no limiar entre a apreciação e o questionamento. A sociedade desta época, bem como a Igreja, esposava uma “fé material”, manifesta na arquitetura, nas artes e, também, nas relíquias sagradas. Por meio das indulgências, que consistiam no perdão dos pecados através de boas obras e doações, os fiéis “tocavam” a salvação. Lutero passou

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a questionar a validade de tais afirmações. Em 1517 afixou Lutero 95 teses às portas da Igreja do Castelo e da Universidade de Wittenberg, teses estas que punham por terra idéias como o poder salvífico das indulgências. Amplamente divulgada e à mão copiada, as teses de Martinho permearam toda a Alemanha, resultando em sua excomunhão e em uma longa história que culminou, não na reforma da própria Igreja Católica, mas na facção desta, surgindo assim as Igrejas Reformadas, ou protestantes históricas. Em resposta, veio por parte da Igreja Católica a Contra-Reforma.

De fato, a contra-reforma compreendeu perfeitamente o papel da cultura na defesa e preservação da sociedade cristã, tanto assim que com tal objetivo foram criados, em 1601, por Federico Borromeo, arcebispo de Milão, a Biblioteca Ambrosiana e a Academia de Belas-Artes. Nesta última, Borromeo reuniu incontáveis obras de arte e fez daquilo que chamava seu museum, um centro didático para a produção artística. Ou seja, este museu, visitável por público seleto, sobretudo artistas, servia como “receituário” da estética aprovada pela Igreja. (...) Assim é que o final do século XVII e começo do século XVIII viram a cristalização da instituição museu em sua função social de expor objetos que documentassem o passado e o presente e celebrassem a ciência e a historiografia oficiais. Esta problemática foi analisada por Lanfranco Binni e Giovanni Pinna, profissionais de museus italianos que bem notaram que não havia lugar, nesses museus, para as idéias e descobertas de Galileo Galilei.(SUANO, 1986, p.23)

No Renascimento o estudo dos documentos e objetos, bem como a conservação dos monumentos e das antiguidades, entraram vigorosamente em cena. O grande duque Cosme I (1519-1574) encomendou do arquiteto Giorgio Vasari a construção daquele que é considerado como o primeiro edifício projetado para ser museu: a Galeria Uffizi. (Foto 1) Grandes gênios da arquitetura e da pintura foram conclamados a restaurar obras clássicas, herdadas dos grandes mecenas burgueses do Quatroccento - como os Médicis supracitados – e das coleções privadas diversas.

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Foto 1 – Galeria Uffizi, Florença, Itália Fonte: da autora.

Apesar da grande contribuição dos italianos, foram os reis espanhóis os detentores da coleção de pintura mais importante da Europa. De geração em geração, este tesouro foi sendo alimentado para se tornar a base fundadora do Museo del Prado, cujo edifício data de 1785, passando das mãos da realeza para o Estado em 1868.

Expansão dos Museus e o Iluminismo

As curiosidades colecionadas ultrapassaram o campo artístico, contemplando instrumentos científicos, exemplares da fauna e flora, minerais e fósseis, alguns imaginários e montagens artificiais. “Em um tratado de 1727, intitulado Museografia, Caspar F. Neickel descreve os locais mais aptos para reunir objetos, a maneira de conservá-los em um clima apropriado e determina algumas classificações: Naturalia, para os gabinetes e Curiosa Artificialia, para os elementos estéticos.” (FRONER, 2001, p.60) A museografia neickeliana revela o auge do enciclopedismo, construindo uma proposta de “museu ideal” que mais se relacionava com os gabinetes de curiosidades do que com os gabinetes de arte. (FERNÁNDEZ, 1993). Aos poucos, as coleções particulares foram se ampliando drasticamente e sendo abertas ao público, ainda que não universal, associando a terminologia “museu” a estes pitorescos espaços

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expositivos. Foi no Iluminismo que o círculo dos colecionadores vai ser profundamente alargado, com a institucionalização de práticas inauditas, tais como exposições, vendas públicas e elaboração de catálogos das coleções.

SUANO chama a atenção para o fato de que “os primeiros cinqüenta anos do museu público europeu - considerando-se 1759, a abertura do Museu Britânico, como ponto de partida – não foram seu período mais feliz e fecundo.” (SUANO, 1986, p.35) O museu era visto como um repositório de valores que as camadas populares aborreciam, resultado de séculos de exploração de alguns sobre muitos. Já para as camadas abastadas, o museu vituperava tudo que dantes era exclusivo e, agora, banalizava-se na presença de iletrados sem fortuna. Apesar do seu caráter nacional, destinava-se essencialmente ao homem culto. Até que movimentos intestinos convulsionaram a França...

Revolução Francesa

Se nos seus primórdios a Revolução Francesa (1789) propalou grande destruição do patrimônio artístico e edificado da França, num segundo momento reflexivo, estes objetos do “passado político” francês foram preservados com o objetivo de se estudar a história. Com os bens do clero, dos emigrados e da Coroa colocados por lei à disposição da nação, urgia inventariar estes espólios, bem como elaborar regras de sua gestão e novas destinações à herança patrimonial que se acumulava em depósitos. Ao serem finalmente transferidos para espaços abertos ao público, temos a consagração do museu. Imbuídos do espírito enciclopedista, os museus tinham fins educativos, onde o civismo, a história, as artes seriam nacionalmente divulgadas. As primeiras experiências malograram devido à ausência de conhecimentos associados à nova matéria que insurgia, medrando o Louvre (Foto 2), para onde convergiam as riquezas artísticas sob a Revolução.

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Foto 2 – Museu do Louvre, Paris, França Fonte: da autora.

América do Norte

Ao redor do globo, inclusive no Novo Mundo, os museus também proliferavam. Nos Estados Unidos, final do século XVIII, o Museu de Salem - Sociedade Marítima das Índias Ocidentais, fundado em 1799 - passou a integrar as coleções do Instituto Essex, que o adquiriu para ser museu universitário de Harvard. Renomeado Peabody Museum, teve sua fundação em 1866 por George Peabody. Trata-se de um dos museus mais antigos do mundo devotado à antropologia, possuindo uma das coleções mais abrangentes da arqueologia e etnologia norte americanas.

“Los museos americanos se diferencian de los europeos por su estructura jurídica, por su forma de organización, por sus sistemas de financiación, por el grade de inserción social y por la propria concepción ontológica de museo.” (HERNÁNDEZ, 1998, p.31) Nas Américas, as sociedades, resultado da convergência entre os interesses públicos e privados, até hoje perduram, sendo responsáveis pela criação de diversos museus, escolas e hospitais. Dentre suas notáveis contribuições, destaca-se o nascimento daquele que seria o museu mais abrangente do ocidente em termos histórico-temporais, bem como o museu mais importante das Américas – O Metropolitan Museum (Foto 3). Fundado em 1870, consiste em um dos maiores e mais refinados museus de arte do mundo.

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Com mais de dois milhões de obras em seu acervo, cobrindo cerca de cinco mil anos da cultura mundial, possui coleções de todas as partes do planeta.

Foto 3 – Metropolitan Museum, NY, EUA Fonte: da autora.

Consagração do Museu Europeu

No século XIX, consagrou-se o fenômeno europeu dos museus, que cruza terras além mar em direção ao Novo Mundo. Em 1821, Goethe lança a sua teoria sobre a “organização dupla dos museus”, onde prevê uma zona para o público em geral e outra para os “iniciados e expertos”. Este artigo consistiu em um marco de sua época, influenciando o Natural History Museum em Londres (1886), que vez valer, ainda que parcialmente, esta articulação goethiana do espaço museológico. Na Alemanha, principalmente, temos o estudo racional das questões envolvendo os museus e sua organização. Gustav Waagen, então diretor da Pinacoteca de Berlim, assim como seu sucessor – Wilhelm von Bode, destacaram-se neste cenário. No hoje denominado Bode Museum, prescindiu-se da ordenação tradicional das peças, separadas normalmente por técnicas, mesclando-se as obras, consagrando um estilo peculiar de exposição em sua época. (FERNÁNDEZ, 1993)

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Os Museus no Brasil

Neste mesmo século, o Brasil entrava para a história da museologia com os mais antigos museus da América do Sul. Duas instituições culturais, de iniciativa de Dom João VI, iniciariam este processo: a Escola Nacional de Belas Artes (fundada em 1815 como Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios) e o Museu Nacional do Rio de Janeiro. Entretanto, esta história precisa começar um pouco antes de tudo isto, com a chegada da Missão Francesa ao Brasil e sua revolução cultural. Após a vinda da Coroa Portuguesa em 1808, conseqüência das investidas napoleônicas na Europa, o Conde da Barca – António de Araújo e Azevedo, então ministro da Marinha e Ultramar, trabalhou febrilmente para que a “modernidade francesa da colônia cultural de Lebreton” fosse “uma peça fundamental no jogo maior da hegemonia comercial e política britânica.” (BANDEIRA; LAGO, 2008, p.19) Ao contrário do que reza tantas vezes a história, os artistas da Missão Francesa não foram formalmente convidados pela Coroa Portuguesa. Todos bonapartistas, partiram ao novo mundo por conta própria, decorrência do clima político que tomava curso na França convulsionada, sem qualquer garantia formal de que alcançariam o apoio de sua majestade em terras brasileiras. Para Debret, um dos expoentes da Colônia Lebreton, era prioridade fundar a Real Academia de desenho, pintura, escultura e arquitetura civil, empresa que se concretizou somente em 1820. Nove anos depois, acontece o primeiro Salão da Imperial Academia das Belas Artes, tendo a exposição atingido sucesso absoluto de imprensa e público, visitada por mais de duas mil pessoas. Outro grande feito, decorrente deste evento, consistiu na introdução no Brasil, por Debret, do catálogo de exposição, inovação memorável para as artes e a expografia.

Passemos ao segundo marco: o Museu Nacional. Primeira instituição científica do Brasil e, atualmente, o maior museu de história natural e antropológica da América Latina, foi fundado em 1818 como “Museu Real”. Inicialmente instalado no Campo de Sant’Anna, em 1892 passou a ocupar o Paço de São Cristóvão (Quinta da Boa Vista), residência real onde nasceu D. Pedro II e tomou curso a 1ª Assembléia Constituinte Republicana.

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Museu ampliado: novos valores, novas funções

Por caminhos políticos diversos, bem como pelo andor cultural, os museus foram se aproximando, aos poucos, do que hoje entendemos como museu. Portanto, no século XIX, lentamente, assistimos o papel educativo dos museus ganharem forças. O progresso invadia o mundo culto e inculto. A revolução das máquinas e as novas tecnologias construtivas podiam ser apreendidas nas feiras e exposições, a exemplo da Grande Mostra de Todas as Nações, na Londres de 1851, para a qual se construiu edificação ímpar: o Palácio de Cristal. Não seria fácil trazer o museu a todas as gentes, visto que suas construções portentosas intimidavam a uns; assim como a inacessibilidade (seja física ou de outra natureza) impedia o seu uso no lazer do homem comum. Jonh Ruskin, na segunda metade do referido século, começa a levantar a importância dos museus apresentarem, não somente um aparelhado de documentos e objetos expostos para fins contemplativos, mas também seu alicerce cultural, numa expografia que contivesse uma visão crítica e contextualizada daqueles objetos. Isto vem de encontro, já naquela ocasião, à historiografia moderna. “O documento não é inócuo. É antes de mais o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio.” (LE GOFF, 1982, p.103)

Com a quebra do silêncio, amplia-se consideravelmente o papel das instituições museais no que tange à formação cultural, à educação e, até mesmo, ao lazer, com a incorporação de casas de chá e outros espaços de suporte aos visitantes. Mas parecia difícil, quase impossível, retirar todos os ranços gélidos associados ao museu que, ora provocavam revolta pela opulência e berço elitizado, ora traziam a tona a perda dos tesouros coloniais pilhados. Saques disfarçados de arqueologia, numa época em que a Europa furtou o mundo. Isto, no futuro, vai colorir as discussões acerca do repatriamento de obras de arte. Contudo, ainda não chegamos lá. Ainda vivia-se uma fase conflituosa desta instituição que precisava se firmar e se afirmar, em seus valores e em seu significado. (...) “cada geração se viu forçada a interpretar esse termo impreciso – museu – de acordo com as exigências sociais da época”. (F. TAYLOR, 1938, in: SUANO, 1986, p.49)

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Os Museus no Século XX

Na virada do século XX, os museus proliferavam e havia uma demanda por organizar, além das próprias instituições, também os conhecimentos vinculados às mesmas. Os museus, estagnados, esperavam o despertar para uma nova era, onde fossem ampliadas a sua exuberância e atuação social. Algumas vezes a serviço da ideologia governamental, como os museus envolvendo Hitler, outras vezes escravos de interesses econômicos, como o capitalismo, o museu ganha status e vira arma filosófica. Nos EUA, cunha-se o termo museu dinâmico, onde vemos a transformação de insossas instituições em espetáculos, bem ao gosto da sociedade norte-americana. Escolas começam a formar os primeiros profissionais especializados no assunto e o estabelecimento das sociedades museológicas constitui um marco revolucionário na história dos museus. Organizações e instituições dedicadas à área são criadas, reforçando a importância do trato com as questões museais.

Em 1945 institucionaliza-se a ONU – Organização das Nações Unidas, ocupando o lugar da Sociedade das Nações. No ano seguinte, cria-se a UNESCO – Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura. (CRUZ, 2008) Neste mesmo ano de 1946, diretores de todo o mundo reuniram-se para fundar o ICOM – International Council of Museums. Trata-se de uma organização não-governamental sem fins lucrativos, formalmente associada à UNESCO, possuindo status consultivo no Conselho Econômico e Social da ONU. As inúmeras publicações e grupos de trabalho do ICOM e seus parceiros garantiram-lhe uma projeção global na sociedade e na comunidade dos museus contemporâneos. Dentre suas honoráveis contribuições, temos as diferentes conceituações da palavra museu que, como a própria organização, evoluiu ao longo do tempo. Em sua 22ª Assembléia Geral em Viena, Áustria, no ano de 2007, o ICOM sintetizou a definição do conceito: “Os museus são instituições permanentes, sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, abertas ao público, que adquirem, preservam, pesquisam, comunicam e expõem, para fins de estudo, educação e lazer, os testemunhos materiais e imateriais dos povos e seus ambientes”. (ICOM, 2009 – Código de Ética)

Outra instituição internacional de relevo é o Comitê Internacional do Escudo Azul (ICBS). Fundado em 1996, tem como propósito fazer valer

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a Convenção de Haia (1954), protegendo e salvaguardando bens culturais instalados em áreas onde existam conflitos armados.

A Nova Museologia e seus termos afins

Curadores e museólogos decidiam isoladamente o que merecia ser musealizado, conservadores outorgavam em seus próprios círculos o que deveria ser preservado, historiadores sacralizavam – em sua linguagem peculiar – o que precisava ser descrito e analisado, museógrafos e arquitetos demarcavam percursos e leituras obrigatórias; e o público, razão maior dos museus, assistia passivo a tudo isto, contentando-se em ser mero expectador no teatro pouco dançante da vida nos museus. Esta situação levou ao surgimento de uma nova concepção, contraposta à visão tradicional. Cunhou-se o nome de Nova Museologia, movimento que afirma a função social do museu e o caráter global de suas intervenções. Baseada na experiência dos ecomuseus (museus emanados da comunidade, referenciados no entorno natural e social) e dos museus comunitários, a Nova Museologia procura ser uma museologia ativa, em contraposição à museologia distanciada e passiva de antigamente.

Este novo movimento põe-se decididamente ao serviço da imaginação criativa, do realismo construtivo e dos princípios humanitários definidos pela comunidade internacional. Torna-se, de certa forma, um dos meios possíveis de aproximação entre os povos, do seu conhecimento próprio e mútuo, do seu desenvolvimento cíclico e do seu desejo de criação fraterna de um mundo respeitador da sua riqueza intrínseca. Neste sentido, este movimento, que deseja manifestar-se de uma forma global, tem preocupações de ordem científica, cultural, social e econômica. Este movimento utiliza, entre outros, todos os recursos da museologia (coleta, conservação, investigação científica, restituição, difusão, criação), que transforma em instrumentos adaptados a cada meio e projetos específicos. (Declaração de Quebec, ICOM, 1984)

Paralelamente, outra mesa de discurso, igualmente imperativa, estava sendo estabelecida: a dos próprios profissionais. Mesa esta que, justamente aqui,

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coloca-se como tema pertinente e inadiável. As áreas profissionais parecem verdadeiras ilhas (GOULART In: OLIVEIRA, 2002, p.18), onde cada categoria elabora a sua própria história, seu próprio vocabulário e próprio proceder em relação ao museu, que é, por natureza, interdisciplinar.

Segundo DE MASI, o intercâmbio entre as disciplinas consiste em condição sine qua non para o sucesso de empreendimentos em equipe cujo trabalho envolva criatividade e interdisciplinaridade. (DE MASI, 1999) Mesmo nos casos em que nos deparamos com equipes multidisciplinares, raramente observamos uma real e fecunda interlocução entre os profissionais das diversas áreas, objetivando a elaboração de um produto final coeso. Ao contrário, o que se tem observado são trabalhos fragmentados, onde freqüentemente a incoerência vigora de uma parte para a outra, em textos descolados, não somente da realidade, mas como também uns dos outros dentro de um mesmo corpo.

Além de uma equipe interdisciplinar é preciso contar ainda com a multiplicidade de técnicos de uma mesma categoria profissional. Valores diversos estão em jogo, valores estes que condicionam o nosso olhar, por maior que seja nossa integridade intelectual e por mais isentos que nos proponhamos ser. O estudo do homem e suas atividades apresenta ao cientista uma aguda ironia, da qual não podemos nos furtar ou recusar: como peça ativa do jogo, jamais teremos uma visão desobrigada do tabuleiro, ao contrário, nosso olhar está condenado à perspectiva que – por trabalho, cultura, sorte ou destino – nos aprouver. Por mais que nos esforcemos para obter uma outra posição estratégica, sempre se resumirá a uma posição. Quem olha, não olha somente para algum lugar, mas como também de algum lugar. (CHAUI In: VÁRIOS AUTORES, 2002, p.35) E isto fatal e involuntariamente nos condiciona, podendo ser o olhar do próximo o remédio para tais direcionamentos, quando indesejáveis. A diversidade será, assim, benéfica e bem vinda, precedendo o diálogo e lançando mão da interdisciplinaridade. “Para atingir este objetivo e integrar as populações na sua ação, a museologia utiliza-se cada vez mais da interdisciplinariedade, de métodos contemporâneos de comunicação comuns ao conjunto da ação cultural e igualmente dos meios de gestão moderna que integram os seus usuários.”.(Declaração de Quebec, ICOM, 1984)

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Museu contemporâneo: a nossa casa

Acreditamos, firmemente, nesta nova visão museal, sendo este trabalho uma modesta contribuição para o debate e fortalecimento dos museus, enquanto nossa casa. Dentre os muitos nomes que se atribuem aos museus, este nos agrada em particular: casa. Primeiro era Mouseion, casa das Musas imaginárias, detentoras do elixir da imortalidade terrena... a memória humana. Formulando, assim, o passado a partir do presente, e o futuro, a partir de ambos. No dizer de Áurea GUIMARÃES, “recolher os cacos do passado permite buscar o que se foi esquecido, recuperar o sentido inédito das histórias que não puderam ser contadas, fazendo com que o reprimido não se perca na indiferença do nosso olhar.” De fato, “ainda é tempo de contar histórias e há muitas histórias a serem contadas.” (Carlos Drummond de ANDRADE) Porque não há conforto mais verdadeiro do que permanecer em casa e ouvi-las (Jane AUSTEN), pois a casa é o lugar para onde eu volto, para confirmar minhas certezas, constatava meu saudoso professor Moacir LATERZA. Recordo-me, neste momento, das palavras do nosso então Ministro da Cultura, Gilberto GIL, por ocasião do lançamento do Ano Nacional dos Museus, quando nos alertou para o fato de que precisávamos pensar o mundo a partir da casa. Compreendendo a casa, as coisas da casa e os modos de ser da casa, seríamos capazes de, em seguida, compreender seu universo mais amplo. Como casas acolhedoras que são, é preciso que o povo brasileiro se sinta em casa nos museus, apropriando-se dele como se seu o fosse. Porque de fato, o é. Gilberto GIL prossegue e diz: “assim como a Casa de Göethe provocava sonhos em Walter Benjamin, este é um Museu Casa que provoca sonhos em muitos de seus visitantes e usuários, sonhos e visões de cor e forma e movimento; sonhos e experiências poéticas.”

Que sejam as bibliotecas a nossa adega, onde nos embriagamos da informação vital, transformando-a em conhecimento e sabedoria. Monteiro LOBATO já sabia que uma nação se constrói com homens e com livros. Que seja o museu, a nossa casa materna, porque Vinícius de MORAES já nos revelava, em poesia e verso, que esta se divide em dois mundos: o térreo, onde se processa a vida presente, e o de cima, onde vive a memória. Subindo e descendo esta escada, prosseguimos como um rio alimentado por correntes perenes, como uma fogueira cuja lenha queima sem se consumir. Esta é a essência de todos nós, profissionais dos museus brasileiros: somos água, somos fogo, somos bravos persistentes.

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A Pintura de Retrato no Brasil: estudo de caso de uma obra de Édouard Vienot e François Henri Morisset

Fábio das Neves Donadio Mestrando PPGA-EBA-UFMG

Luiz Antônio Cruz Souza (Orientador)

Thiago de Pinho BotelhoMestrando PPGA-EBA-UFMG

Maria Regina Emery Quites(Orientadora )

RESUMO

A transferência da Família Real Portuguesa no século XIX, a elevação do Brasil a Reino Unido, sua Independência Política e a passagem de um sistema exportador escravagista para outro baseado no trabalho assalariado, redesenharam a vida na colônia. No campo cultural, alimentado pelos ideais da Revolução Francesa, a arte setecentista portuguesa se transformava a partir de formas e conceitos importados da Europa. Nesse cenário, a aristocracia mostrava seu poder e status por meio da encomenda de retratos a pintores franceses que hoje nos apresentam personalidades do passado, remontando seus costumes e o estilo artístico da época. Para compreensão desta linguagem própria, o presente artigo visa analisar uma pintura de retrato executada nesse período por uma importante dupla de pintores franceses, responsáveis por retratar diversas personalidades na Europa e também no Brasil: Édouard Vienot e François Henri Morisset. Para melhor compreensão do tema abordado, faremos uma leitura formal, histórica e estilística, bem como uma análise do estado de conservação da obra, seguida de uma proposta de restauro.

Palavras-chave: Pintura de Retrato. Conservação. Restauração.

ABSTRACT

The transfer of the Portuguese Royal Family in the nineteenth century, the Brazil’s rise to United Kingdom, its Political Independence and the passage of a slave export system to another one based in a salaried work, redesigned the life in the colony. In the cultural field, fulfilled by the French Revolution’s ideals, the eighteenth-century Portuguese art was transformed from forms and concepts imported from Europe. In this scenery, the aristocracy used to show its power and status by the order of portraits to French painters that nowadays present to us personalities from the past, showing the habits and the artistic style of the period. To comprehend this unique language, this article aims to analyze a portrait painting made in this period by important French painters, responsible for depicture several personalities in Europe and also in Brazil: Édouard Vienot and François Henri Morisset. To comprehend in a better way the theme that we are dealing with, we intend to make a formal, historical and stylistic reading, as well as an analysis of the conservation condition of the work, followed by a restoration proposal.

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Key Words: Portrait Painting. Conservation. Restoration.

Introdução

Se observarmos as manifestações artísticas e culturais do nosso país através dos tempos, notaremos logo que a pintura foi uma das que deixou maiores e indeléveis vestígios. Desde meados do século passado, a pintura atraiu para o Brasil artístico a atenção e a admiração de notáveis estrangeiros.

Muito foi escrito sobre a nossa pintura, muitos esforços louváveis foram feitos para divulgar seus conhecimentos. A História e a Arte caminham conjuntamente, pois possuem a mesma significação e a mesma origem: ambas dão e recebem, uma cria a beleza, a outra a explica e a propaga.

Exprimindo as idéias e os sentimentos de uma época, incentivando a ação ou o sonho, a arte que nasceu com a humanidade e com ela morrerá não pode ser separada da história, pois seria suprimir-lhe todas as suas raízes.

Dessa forma, no presente artigo será abordado a questão histórica e artística do período oitocentista do Brasil, fazendo um pararelo cronológico da pintura desde as influências neoclássicas, perpassando os tempos, até a vinda para o Brasil de uma Missão de pintores franceses. Em especial, será analisada neste artigo uma pintura de retrato referida a Édouard Vienot e François Henri Morisset, os quais deixaram grande legado pictórico no país, retratando personalidades da sociedade no final do século XVIII e início do século XIX.

O Neoclassicismo Histórico

O nascimento do Neoclassicismo se deve em linhas gerais ao crescente interesse pela antiguidade clássica em meados do século XVIII, associado a influências dos ideais do Iluminismo. Os acadêmicos da época iniciaram pesquisas mais sistemáticas da arte e da cultura antiga, incluindo escavações

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arqueológicas, formando importantes coleções públicas e privadas de arte e artefatos antigos.

O Neoclassismo teve larga influência em toda a arte e cultura do ocidente até meados do século XIX. Como base, mantiveram um renovado interesse pela cultura da Antiguidade clássica, advogando os princípios da moderação, equilíbrio e idealismo como uma reação contra os excessos decorativistas e dramáticos do Barroco e Rococó.

Tanto as formas gregas quanto as romanas serviram de modelo aos artistas neoclássicos. Do século XIX em diante, a preferência voltou-se para a estética grega. Como a pintura era a forma artística menos cultivada na Grécia e em Roma, em relação à escultura e à arquitetura, os pintores neoclássicos tomaram como modelo alguns maneiristas, como os Carracci, e principalmente certos renascentistas, como Rafael.

Na época neoclássica atribui-se grande importância à formação cultural do artista. O primeiro passo na formação do artista é desenhar cópias de obras antigas pretendendo-se, portanto, que o artista, desde o inicio, não reaja emotivamente ao modelo, mas se prepare para traduzir a resposta emotiva em termos conceituais (ARGAN, 1995, p. 31).

O neoclassicismo preconizava o retorno aos ideais clássicos de beleza, mas o espírito que o plasmou diferia nitidamente do espírito humanista que deu origem ao primeiro.

Neoclassicismo não é uma estilística, mas uma poética; preserva uma determinada postura, também moral, em relação à arte e, mesmo estabelecendo certas categorias ou tipologias, permite aos artistas certa liberdade de interpretação e caracterização. (ARGAN, 1995, p. 75)

O movimento teve conotações políticas, já que a origem da inspiração neoclássica era a cultura grega, com sua democracia, e a romana, com sua república, com os valores associados de honra, dever, heroísmo, civismo e patriotismo.. Como conseqüência, o estilo neoclássico foi adotado pelo governo revolucionário francês, assumindo os nomes sucessivos de estilo Diretório, estilo Convenção e mais tarde, sob Napoleão, estilo Império, influenciando outros países.

Em verdade, de 1820 a 1850, já em decadência, o neoclassicismo opôs-

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se ao romantismo e, abrigado nas academias e escolas de belas-artes, confundiu-se com o academicismo e assim reagiu a todas as tendências de vanguarda, a começar pelo impressionismo.

Este estilo procurou expressar e interpretar os interesses, a mentalidade e os habitos da burguesia manufatureira e mercantil da época da revolução francesa e do Império Napoleonico, e consequentemente o mesmo estilo foi adotado tardiamente no Brasil com a vinda da Missão Artistica Francesa em 1816 – 1840. (CAMPOFIORITO, 1983, p.19)

As características marcantes são o caráter ilustrativo e literário, marcados pelo formalismo e pela linearidade, poses escultóricas, com anatomia correta e exatidão nos contornos, temas “dignos” e clareza. Dentre as artes aplicadas, a pintura neoclássica se caracteriza pelo predomínio do desenho e da forma sobre o formalismo e racionalismo, exatidão nos contornos, harmonia do colorido, retorno ao estilo greco-romano, academicismo e técnicas apuradas, ideal da época (democracia).

Contextos históricos sobre a pintura no Brasil

O século XIX apresenta à História da Arte no Brasil o sério desafio de ter sido a época decisiva para a formação de nossa cultura nacional. Grande foi a mentalidade brasileira durante a estada de D. João VI no país, principalmente no que se refere à declaração do Brasil um país independente. Essa mudança radical da política não provoca nenhum tipo de repressão ou desmembramento com a terra lusitana, ao contrário, estreita os laços que entrosavam os indivíduos entre si.

Portugal ainda não tinha se atentado na existência desses expoentes brasileiros; por isso fica complexo com os resultados das medidas adotadas por D. João VI, que agiu “mais por uma imposição das circunstâncias em que se achava a colônia, ou pela fatalidade dos transes que teve a Corte, por uma exata compreensão do quanto se impunha a monarquia, naquele grave momento da história”. (CARVALHO, 2000, p. 46).

Dentre as medidas adotadas por D. João VI em 1816 no Rio de Janeiro,

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uma delas era fundar, com artistas franceses, uma Academia de Belas Artes. Ao invés de observar a realidade e dispor-se para erguer o ambiente com os recursos locais (incentivando os artistas locais), D. João VI contrata uma Missão de Artistas Franceses.

Os artistas, que a compunham, eram individualmente marcados e já com grande projeção social e cultural. Vinham num momento em que a França, através das suas idéias, exercia uma ditadura universal.

Portanto, que consideração dispensaria as manifestações artísticas daquela época esses mestres que saíam da Escola de Roma, e cujas imaginações ainda escaldavam com a epopéia napoleônica? Em vez de operarem como tutores da arte local, que emitia débeis vagidos, e embora primitiva, redes, ingênua, tinha o alto valor de ser tentativa da terra, eles desprezaram-na para enxertar os amaneirados em moda em França (LOBATO, 1917, p. 37).

A obra de arte, para eles, estava sujeita a uma série de regras e formulações convencionadas. Ignoravam a eloquência lírica das formas primitivas dispostas pela poesia instintiva. Aliás, o instinto popular era desconhecido e tão pouco elevado a categoria de manifestação artística.

O ensino artístico no Brasil, desde o seu começo, despreza as fontes populares de inspiração para fomentar uma floração postiça, impedindo que a arte, devido a um falseamento de visão, refletisse a alma nacional.

Com a fuga de D. João para Portugal, a nomeação de seu filho D. Pedro para reinar o Brasil, e sequencialmente o segundo reinado com D.Pedro II, surgem sintomas de compenetração dos brasileiros sobre o valor de sua expressão individual e coletiva. Foi significativa e marcante a atitude estimuladora do monarca no movimento artístico do seu reinado, que particularmente manda à Europa para estudar, Pedro Américo, Carlos Gomes, Vitor Meireles e Almeida Júnior. “E o mesmo, encoraja os artistas, facultando assim o aparecimento de grandes realizações artísticas equiparáveis às maiores do mundo”. (GUIMARÃES, 2000, p. 81).

Com a implantação da República em 1889, a Academia de Belas Artes transforma-se, nominalmente (porque sua estrutura e orientação foram substituídas), em Escola Nacional de Belas Artes. No Império, a Academia interpretava as idéias da sociedade, as aspirações do Imperador;

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na República, aquelas se modificam, esses desaparecem e surge o povo brasileiro.

Tal mudança de orientação cultural, esboçada durante o Império, e definida mais tarde na República, justifica o amortecimento da capacidade plástica criadora. Este corresponde ao período de recolhimento e de concentração espiritual indispensável à adaptação do novo processo intelectual.

Essa nova diretriz da inteligência brasileira, essa marcha intelectual para dentro – desbravando os interiores em busca do ouro rútilo da nacionalidade – incutirá, num futuro próximo, caracterizado por profundas e indeléveis manifestações artísticas.

A Missão francesa e a arte do XIX

Para compreensão da arte brasileira do século XIX, deve-se ter em mente que o Brasil vivia as influências da sua nutridora nação luso-portuguesa. A transferência da família real portuguesa e a conseqüente elevação do Brasil a Reino Unido e sede da Corte; a independência política de um Estado nacional; a progressiva emancipação econômica e a passagem de um sistema exportador escravagista para outro baseado no trabalho assalariado; o surgimento de uma classe média urbana e de um comércio interno aliado aos nascentes grupos industriais; tudo isso, até o advento republicano, pôde condicionar a inteligência brasileira para receber e acontecer, de fato, nestes mais de cem anos de História independente.

A necessidade de reaparelhamento da nova sede metropolitana teve do governo de D. João VI a medida de contratação de uma missão de artistas franceses que, escapando à reação antinapoleônica, trouxeram para um ambiente católico, monárquico e tropical, as doutrinas estéticas e os preconceitos moralistas da recente revolução burguesa.

[...] os artistas franceses componentes da Missão vieram ao Brasil por espontânea vontade, compelidos por dificuldades políticas oriundas da restauração de Luiz XVIII, baseia-se apenas em publicações coevas recheadas de despeito e na carta regia de 12 de agosto de 1816, em que D. João VI, enfaticamente, declara querer “aproveitar desde já a capacidade, habilidade e ciência de alguns

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estrangeiros beneméritos, que tem buscado a minha real e graciosa proteção”, e que por isso faz “mercê para a sua subsistência” de uma pensão. (JÚNIOR, 1944)

Este modernismo laico e progressista, mas imposto de fora, além de cortar a tradição colonial de raízes religiosas e barrocas, deu início ao ensino oficial das belas artes no Brasil, imprimindo-lhe os cânones austeros e acadêmicos que marcariam tão fortemente a evolução de nossa pintura oitocentista.

É preciso lembrar a indissolúvel relação da arte com a vida social, que o sistema colonial, ao impedir qualquer desenvolvimento brasileiro que não servisse diretamente aos interesses da metrópole, acabou por limitar a produção artística a certas necessidades mínimas locais, o que levou a própria pintura a restringir-se à ornamentação das igrejas e aos retratos encomendados pelas irmandades religiosas. Se não fossem as obras dos pintores que vieram com o príncipe holandês Maurício de Nassau, no século XVII, nos faltaria uma visão pictórica do cenário colonial. É, com efeito, nas telas e desenhos, que se tem o testemunho do impacto provocado pela pujança das paisagens tropicais e pelas condições sociais relacionadas com a economia açucareira.

Segundo os autores Quirino Campofiorito e José Maria Júnior, a vinda da Missão Francesa ao Brasil é o fato fundamental que inicia nossa nova história da pintura no século XIX. Como se sabe, a corte portuguesa, fugindo à invasão das tropas francesas de Napoleão, sob o comando do general Junot, aportou na Bahia no início de 1808, transferindo-se em seguida para o Rio de Janeiro.

Elevado a príncipe regente do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve, D. João VI recebeu de seus conselheiros propostas para adotar na nova Metrópole as condições indispensáveis à vida cultural que lhe competia manter. Dentre outras múltiplas e importantes iniciativas para atender ao progresso que se impunha, coube ao Conde da Barca (D. Antônio de Araújo e Azevedo) a sugestão de se contratar em Paris uma equipe de artistas e artífices que dessem condições rigorosas ao ensino das artes e ofícios no Rio de Janeiro, e assim pudesse o brasileiro corresponder às exigências sempre maiores do desenvolvimento cultural.

O fato não corre sem contestações no Rio de Janeiro, já que muito

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implicavam na vida política interesses contrários que procuravam intervir nas decisões de D. João VI e provinham de correntes anglófilas e francófilas. Mas sai vitoriosa a preferência pela Missão Francesa, dado o prestigio que a arte da França gozava internacionalmente.

Os contatos com as personalidades que iam sendo cogitadas muito ajudaram Alexander Von Humboldt o qual intermediou a vinda de Joachim Lebreton, recentemente destituído do posto de secretário do Institut de France, para selecionar e dirigir a equipe de artistas no Brasil. Confiada a Lebreton esta tarefa, foi relativamente fácil reunir artistas que se encontravam apreensivos às reações bonapartistas.

O grupo de artistas reunidos por Lebreton chega ao Rio de Janeiro em 20 de março de 1816, ressaltando a importância dos pintores, a quem destina o registro bem detalhado no contexto explícito da pintura brasileira no século XIX.

Dos artistas franceses, o que se deve reconhecer é que eram notáveis e categorizados no ambiente artístico europeu, o que constituía credencial de significado internacional. É licito reconhecer que aqui souberam enfatizar uma autoridade capaz de moldar a formação de seus discípulos para um formalismo indiferente à realidade brasileira.

A história do ensino artístico que define as novas diretrizes estéticas conta, de início, com a Escola Real de Ciência, Artes e Ofícios, criada por decreto de 12 de agosto de 1816, um semestre após a chegada da Missão. (CAMPOFIORITO, 1983, p. 24)

Apenas valeu o título, pois a escola não chegou a funcionar, recebendo nova denominação de Real Academia de Desenho, Pintura, Escultura e Arquitetura Civil, com a qual não teve melhor sorte. Por decreto de 23 de novembro de 1816, fica assentada a criação de uma escola de ensino artístico denominada Academia de Belas Artes.

[...] não transcorria como seria de esperar a criação do ensino artístico sob a égide da Missão Francesa. A academia de Belas Artes, com o rigor desejado pelos mestres franceses, só veio efetivamente a funcionar a partir de 5 de novembro de 1826. (CAMPOFIORITO, 1983, p. 26)

No que se refere ao ensino da Academia, prevaleceu a mentalidade alienada dos que não aceitavam as chamadas “belas artes” aos ofícios

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“menores”. Esta não aceitação dos artistas franceses afastavam da Academia os profissionais que precisavam e careciam do progresso de um pais ainda desprovido de mão de obra artística para sua arrancada ao desenvolvimento independente.

VIenot e Morriset: a pintura de retrato no Brasil

Há tempos o homem é fascinado por sua própria imagem e seus semelhantes. Em civilizações antigas, os egípcios retratavam os faraós e seus séquitos em pinturas murais; os romanos por sua vez eram retratados em bustos, medalhões e moedas que geralmente eram mostrados de forma bem natural.

Após a chegada do Império Romano, o retrato, foi um fenômeno raro durante séculos. A Renascença colocou que o próprio homem era o centro do universo, e com a Idade Média, a expressão artística se concentrava na celebração divina e na relação do homem com Deus.

Como na Antiguidade os retratos eram um grande luxo, apenas permitido a governadores e outros dignitários. Mas esse círculo passou a incluir os novos ricos – prósperos comerciantes e banqueiros. Grandes pintores começaram a se especializar em retratos, que durante os séculos XVI e XVII serviram aos interesses de famílias, de patentes e também às ambições.

No século XVIII, era provavelmente por meio de um retrato que o artista alcançava riqueza e fama. O retrato era, de forma geral, considerado um símbolo de status, uma expressão de realização pessoal e uma forma de assegurar um lugar na posteridade.

Sobre a arte brasileira do século XIX, deve-se entender que o Brasil vivia as influências da sua mantedora nação luso-portuguesa. A produção artística deste período estava vinculada às igrejas, onde as ordens religiosas encomendavam esculturas policromadas em madeira para ornamentação dos altares e pinturas decorativas destinadas a interiores de igrejas, sacristias e conventos.

Dentro da cultura portuguesa, havia uma grande escassez pela pintura de cavalete, que era destinada às residências particulares, onde viajantes se

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assustaram com a falta destas pinturas, principalmente pelas famílias de posses luso-brasileiras.

As irmandades sustentavam a produção destas pinturas para função comemorativa, o que foi característico da pintura luso-brasileira no final do século XVIII até o século XIX, época em que a burguesia se ostenta e caracteriza por alegorias em forma de pinturas retratistas.

Segundo Migliaccio (2000, p.37)

A particularidade dessa retratística é seu caráter público e monumental. São retratos de corpo inteiro, em tamanho natural, nos quais a personagem é, em geral, inserida numa paisagem urbana representando um conjunto de casas, uma igreja ou um edifício publico, contribuição do retratado ao patrimônio ou às obras da congregação. Diferentemente da retratística colonial norte-americana, vinculada à exaltação das virtudes sociais no âmbito da família, o retrato brasileiro dessa época é, portanto, eminentemente público, destinado a exaltar o papel cívico do cristão na construção da cidade, que é sinônimo de civilização.

A arte do retrato é uma característica da pintura acadêmica do século XIX com tendências românticas. O retrato, assim como outros gêneros da pintura, aparece regularmente no contexto brasileiro a partir de 1816 com a chegada da Missão Artística Francesa, um evento que marcou a sensibilidade estética colonial. Num primeiro momento, as diretrizes do estilo Neoclássico, que gerou, posteriormente, um academismo sempre inspirado na estética européia.

[...] ainda que enriquecido por alguns acentos românticos e realistas, a pintura brasileira mantém-se, até o início do século XIX, dentro de convenções impostas pelo Academismo. É uma pintura européia, importada como quase tudo que se consome no país. (MIGLIACCIO, 2000, p. 40)

Advindos com a Missão Francesa, o retratista Vienot e Morriset, foi um pintor francês discípulo de Guérin e Hersent, e foi nomeado no dia 20 de agosto de 1869, pelo imperador D.Pedro II do Brasil, o “retratista e fornecedor da Casa Imperial”.

Segundo Benezit (1976) Edouard Vienot nasceu em 13 de setembro de 1804 na cidade de Fontaineblau, França. Ingressou na Escola Nacional de

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Belas Artes de Paris em 1822, onde foi aluno de Guerin e Hersent, dois grandes expoentes desta escola. Tornou-se pintor retratista realizando obras que foram expostas no período de 1831 a 1870.

Segundo consta em ficha do Museu Nacional de Belas Artes, Vienot residiu durante longo período no Brasil, onde executou trabalhos retratando o Imperador D. Pedro II, seus filhos e outros personagens da aristocracia do império.

Ainda em catalogação realizada pelo Setor de Obras de Artistas Estrangeiros do Museu de Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, encontra-se uma vasta produção do pintor-retratista, distribuída por instituições como a Biblioteca do Estado do Amazonas em Manaus, Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro, Pinacoteca do Museu Imperial de Petrópolis, Fundação Maria Luíza e Oscar Americano em São Paulo, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro do Rio de Janeiro, Biblioteca do Estado do Maranhão em São Luiz, Museu Mariano Procópio em Juiz de Fora/MG, além de obras em coleções particulares.

Várias das pinturas de retrato apresentam assinatura dupla por Vienot e Morisset, o que indica parceria com outro artista.

A produção de retratos foi, a principio, mantida por iniciativa e encomendas da nobreza portuguesa aqui instalada e, posteriormente, estendeu-se à classe aristocrática burguesa bem sucedida, cuja necessidade de status e ascensão exigia a perpetuação da sua imagem de forma a atender aos valores sociais.

Possivelmente, a obra foi realizada com o auxilio e/ou utilização de uma fotografia, que neste período é também um instrumento de transmissão da imagem.

(...) Para esta classe dominante, uma mera fotografia emoldurada na sala de visitas não correspondia aos seus anseios. Era necessário mais. Surgiu, então, o ‘fotógrafo-pintor’, não sendo raras as vezes que uma foto ampliada servia como desenho, base portanto, para um retrato a óleo.(VIANA, 1915, p. 77)

Devido à grande informação passada pelos recursos fotográficos, ocorreu no meio artístico uma grande vazão de profissionais da área e ateliers

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existentes no Brasil neste período do século XIX.

Análise estilística da obra

Nos retratos, preocupa-se com uma adesão quase caricatural às feições dos personagens e aos símbolos de seu status social, transmitidos pela iconografia e pelos trajes. Retratos imperiais ou de personalidades políticas e da elite social, sempre muito aproximada à Corte, eram oportunidades mais habituais de trabalho para os pintores que aqui chegavam.

A “pintura de retrato” (abaixo), é portanto, um produto que reflete as exigências de uma sociedade em determinada época e local. É o instrumento pelo qual o indivíduo adquire participação na vida social através da imagem transmitida pelo artista.

A obra estudada configura-se em um homem jovem, olhar direcionado para frente e sua expressão facial demonstra tranquilidade e serenidade. Sua carnação apresenta-se em tons rosados, olhos e cabelos castanhos. Veste camisa branca, gravata preta, colete e paletó preto com relógio de algibeira no boldo direito do paletó. O fundo se dilui em tons castanho e ocre.

A estrutura compositiva da obra está marcada por um eixo vertical que lhe confere uma composição simétrica rígida (cujas partes se encontram dispostas com absoluta semelhança e correspondência, em relação com um eixo quase sempre real), equilíbrio e estaticidade. A área geométrica principal coincide com o rosto do retratado, para onde converge o primeiro olhar do observador. A composição foi desenvolvida em inscrever a figura em um triângulo, o que lhe confere uma atitude estática, rígida e convencional,não demonstrando qualquer sinal de emoção.

Não se pode pretender esperar da obra uma interpretação da personalidade do retratado pelo artista. Isto garante que se trata realmente de uma “fotografia pintada”.

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Foto 2 – Pintura de Retrato: s/dÉdouard Vienot e Henri Morriset

Acervo – Particular

No final do século XIX e início do século XX, época estética desta obra, a pintura de retrato para muitos funcionava, ao lado do magistério, como uma “espécie de derradeiro recurso ou ganha pão” (DORE, 1996 : 21)

O dirigismo neoclássico, inerente à formação do artista, cumpre, nesta obra, o seu verdadeiro papel: de servir à classe burguesa dominante. Consegue-se idealizar verdadeiro “status” social de um homem simples e carismático, para uma personalidade social ávida e importante.

O formalismo da obra analisada não poderia ser de outra maneira, pois representa claramente o gosto e o interesse de uma sociedade conservadora. Trata-se de um retrato que relega os bons costumes, o orgulho familiar pelo patriarca e as tradições de uma sociedade burguesa.

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Considerações Finais

Este artigo aponta a importância da vinda da Missão Francesa em 1816 para o Brasil, de suas manifestações e projetos para um re-culturamento artístico na nova metrópole. Vale ressaltar a importância deste projeto de artistas para integração de ofícios em uma escola e a sua interdisciplinaridade funcional. Com isso, o artista-pintor teve um importante papel como elaborador de imagens sob um olhar romântico do homem imponente a sociedade.

A obra analisa, é, portanto, exemplar, se destacando pela perfeição da execução técnica e pelo testemunho histórico e estético que ela apresenta. O valor simbólico e social que seus elementos adquirem indicam, além do caráter romântico à ela inerente, a releitura persistente na produção artística do homem.

Assim, a função da obra em questão não é a reconciliação, esclarecimento ou veracidade, mas sim, a invenção de outro jogo de linguagens, de outro artifício – a analise critica.

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A documentação como ferramenta de preservação

Ana Martins Panisset IEPHA-MG

Resumo

O objetivo do artigo é frisar a importância do processo de documentação como ferramenta indispensável para a tomada de decisões e como registro das ações de conservação e restauração. A documentação se faz necessária para identificação, proteção e interpretação dos bens culturais. Através dos registros e dos inventários é possível assegurar o rigor nas tomadas de decisão para a salvaguarda destes bens. A documentação é um processo contínuo que possibilita o monitoramento, a manutenção e compreensão dos bens culturais, sendo portanto parte essencial dos métodos de conservação. Utiliza-se como referência documentos internacionais de preservação como a basilar Carta de Veneza (1964), e o documento Principles for the recording of monuments, groups for buildings and sites (ICOMOS 1996), assim como o uso da documentação nas bases da construção da Teoria da Conservação.

Palavras-chave: Documentação, conservação preventiva, conservação/restauração, pre-servação, cartas patrimoniais.

Abstract

The purpose of this article is to emphasize the importance of the documentation process as an indispensable tool for decision making and as a record of conservation and restoration actions. The documentation is necessary for identification, protection and interpretation of cultural property. Through the records and inventories one can ensure accuracy in decision-making to safeguard the cultural heritage. Documentation is an ongoing process that enables the monitoring, maintenance and understanding of cultural property and is therefore an essential part of the conservation methodology. International documents such as the fundamental Venice Charter (1964), and Principles for the recording of monuments, groups for buildings and sites (ICOMOS 1996) are used as references, as well as the use of documentation in the foundations of the Conservation Theory.

Key words: Documentation, preventive conservation, conservation/restoration, preser-vation, heritage charters.

Introdução

Camillo Boito, restaurador, arquiteto e grande pensador do século XIX, abriu sua conferência I Restauratori, realizada na Exposição de Turim em 1884, com as seguintes palavras:

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Para bem restaurar, é necessário amar e entender o monumento, seja estátua, quadro ou edifício, sobre o qual se trabalha, e do mesmo modo para a arte antiga em geral. Ora, que séculos souberam amar e entender as belezas do passado? E nós, hoje, em que medida sabemos amá-las e entendê-las? (BOITO, 2002, p. 31, grifo da autora)

Concordando com as palavras de Boito podemos dizer que entender um bem cultural é a chave para sua preservação. Quanto melhor conhecemos e entendemos nosso patrimônio mais o valorizamos.

As operações de salvaguarda começam pelo conhecimento dos bens, tarefa essa que é executada primordialmente pela devida documentação. A documentação de bens culturais se define como um processo contínuo que consiste em investigar, registrar (inventariar), documentar e gerenciar as informações sobre um determinado bem permitindo sua melhor compreensão.

“Os objetos adquirem valor pelas mãos do conhecimento [...]. O objeto existe enquanto um elemento a ser preservado quando lhe é imputado um valor histórico, artístico e cultural” (GONÇALVES, 2001, p. 263). As atividades de registro e documentação dos bens culturais supõe portanto seu reconhecimento como objeto que exige tutela e proteção. Esse reconhecimento do valor e importância de um bem cultural é muitas vezes o primeiro passo para a sua conservação.

Segundo Drumond, “preservar, em latim praeservare, significa observar previamente” (MINAS GERAIS, 2000, p. 104). Assim sendo, para preservamos precisamos pesquisar e conhecer a fundo o objeto patrimonial.

Por muitos anos as investigações sobre os bens culturais eram efetuadas mediante aproximações e com base em critérios empíricos, não havia uma abordagem metodológica e científica em relação a sua conservação. Essa prática metodológica só teve início em finais do século XIX com as bases da formação da conservação/restauração como disciplina, contando com discussões teóricas e com o advento da fotografia.

A contribuição do restaurador e teórico Camillo Boito é fundamental para a introdução da metodologia nas intervenções de conservação/restauração, fixando a prática do uso de documentação como embasamento das intervenções e como forma de sistematizar o registro dessas intervenções,

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elaborando diretrizes para uma política de tutela.

Boito fundamentou seu trabalho em análises aprofundadas da obra, procurando apreender seus aspectos formais e técnico-construtivos, baseado em estudos documentais e na observação, bem como em levantamentos métricos do edifício. Fez largo uso de desenhos e também de fotografias, examinando a configuração geral do complexo [...] (KÜHL, 2002, p. 13).

Propondo critérios de intervenção, Camillo Boito contribuiu de forma direta para a formulação dos princípios modernos de restauração. Boito teve atuação primordial na construção do documento gerado a partir do III Congresso dos Engenheiros e Arquitetos Italianos de Roma em 1883. Este documento é considerado a primeira carta de restauro italiana, a primeira formulação de uma série de normas de intervenção coerentes com uma teoria rigorosa.

Dentre os sete axiomas propostos no congresso, os dois últimos prescrevem a necessidade de se documentar detalhadamente as intervenções:

[...] registrar as obras, apontando-se a utilidade da fotografia para documentar a fase antes, durante e depois da intervenção, devendo o material ser acompanhado de descrições e justificativas e encaminhado ao Ministério da Educação; colocar uma lápide com inscrições para apontar a data e as obras de restauro realizadas (KÜHL, 2002, p. 21).

Este documento, adotado então pelo Ministério da Educação italiano, foi um ponto de referência fundamental para as cartas patrimoniais1 que regem as práticas preservacionistas contemporâneas.

Seguindo as recomendações do documento italiano de 1883, diversas dessas cartas citam o registro dos bens culturais e a documentação dos processos de conservação como tarefas fundamentais para a salvaguarda do patrimônio.

Existem cerca de vinte documentos provenientes de convenções internacionais que têm recomendações sobre o registro e a documentação dos bens patrimoniais. Os inventários em especial ocupam lugar significativo em grande parte deles.

Os inventários são utilizados nas atividades iniciais da documentação -

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identificação e registro bens culturais. Estes são utilizados para avaliar os valores e importância do patrimônio em questão, registrar um bem e conhecê-lo a fundo, trazendo para si o status de bem cultural e portanto merecedor de preservação.

Após a iniciativa italiana, as primeiras medidas normativas de caráter internacional são introduzidas através da Carta de Atenas de 1931. Este documento dá ênfase na utilidade de uma documentação internacional, no registro dos monumentos e na formatação de inventários nacionais, regionais ou locais.

É também no início do século XX que diversas disciplinas científicas começam a contribuir com as tarefas de investigação dos bens culturais, principalmente em relação ao estudo e compreensão dos materiais e seu estado de conservação. Essa colaboração é fundamental para o estabelecimento de metodologias de documentação mais fundamentadas.

A Carta de Veneza de 1964, documento considerado basilar para a prática de conservação/restauração, seguida como um código de ética, registra a necessidade da documentação durante os processos de conservação:

Artigo 16º - Os trabalhos de conservação, de restauração e de escavação serão sempre acompanhados pela elaboração de uma documentação precisa sob a forma de relatórios analíticos e críticos, ilustrados com desenhos e fotografias. Todas as fases dos trabalhos de desobstrução, consolidação, recomposição e integração, bem como os elementos técnicos e formais identificados ao longo dos trabalhos serão ali consignados. Essa documentação será depositada nos arquivos de um órgão público e posta à disposição dos pesquisadores; recomenda-se sua publicação (IPHAN, 1987, p. 107).

O documento ratificado pela 11ª Assembléia do ICOMOS2 de 1996, denominado Principles for the recording of monuments, groups for buildings and sites3, teve seu conteúdo inteiramente dedicado a importância dos registros. Nesse texto são listadas as principais razões, responsabilidades, medidas de planejamento e gestão para a devida documentação do patrimônio cultural.

Sendo o patrimônio cultural uma expressão única da realização humana; sendo que o patrimônio cultural está permanentemente em risco; sendo a documentação um dos principais meios disponíveis para dar significado,

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compreensão, reconhecimento e definição dos valores do patrimônio cultural; sendo que a responsabilidade pela conservação e manutenção do patrimônio cultural não é somente tarefa de seus proprietários mas também de especialistas em conservação, de profissionais, gestores, políticos e administradores que trabalham em todos os níveis de governo, como também do público; e sendo conforme exige o artigo 16 da Carta dos Veneza, é essencial que as organizações responsáveis e os indivíduos registrem a natureza do patrimônio cultural4. (Tradução da autora).

A maioria das cartas patrimoniais e publicações sobre os métodos de documentação são dirigidas principalmente ao patrimônio edificado. Porém acreditamos, de acordo com Feilden (1981, p. 27), que apesar da diferença de escala e extensão, os princípios básicos de conservação são os mesmos tanto para bens culturais móveis quanto para os bens imóveis. Principalmente os princípios éticos e metodológicos de documentação.

Conforme podemos verificar através dos documentos internacionais a documentação é parte integral da conservação e gestão dos bens culturais, ela é o fio que percorre todo o processo de preservação do patrimônio cultural e se apresenta como ferramenta indispensável nas ações de conservação e restauração.

A documentação possibilita a compreensão, o monitoramento e a manutenção dos bens culturais, atuando nos processos de conservação antes, durante e depois. É somente a partir de uma documentação exaustiva e coerente que podemos assegurar o rigor e precisão nas tomadas de decisão para a salvaguarda destes bens.

Uma documentação bem empreendida permite uma melhor compreensão do valor econômico, histórico, científico, estético e social de um bem cultural.

A documentação do patrimônio cultural, amplamente definida, inclui duas atividades principais: (1) a captura de informações sobre os bens culturais, incluindo suas características físicas, história e problemas, e (2) o processo de organizar, interpretar e gerenciar essas informações (LEBLANC; EPPICH, 2005, p. 6, tradução da autora).

Podemos enumerar diversos motivos para utilizarmos obrigatoriamente a prática da documentação na metodologia de conservação incluindo:

● conhecer a história, características físicas, tecnologia de fatura e

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atuais condições de conservação do bem cultural;

● orientar o processo de conservação, quando se deve registrar todas as intervenções preventivas e curativas;

● garantir que as intervenções respeitem as características do patrimônio;

● registrar os resultados após as intervenções;

● realizar um registro permanente do patrimônio cultural antes da alteração, planejada ou não;

● fornecer bases para o monitoramento, gerenciamento e manutenção de rotina;

● fornecer uma ferramenta de acompanhamento e gestão do patrimônio em todos os níveis.

A importância da documentação se estende além de seu uso como ferramenta nas atividades de conservação/restauração. É também um meio de comunicação com público em geral, ajudando a educá-lo sobre a importância do patrimônio e promovendo seu envolvimento na preservação. Constitui ainda uma importante fonte de pesquisa sobre o patrimônio histórico e cultural para diversas áreas e disciplinas.

A documentação também pode ser considerada como uma espécie de apólice de seguro contra perda e como um registro para a posteridade, para a as gerações futuras, em caso de catástrofes e destruição. A documentação se bem empreendida e devidamente gerenciada fornece um registro duradouro do patrimônio cultural. No caso dos bens móveis é crucial para medidas de proteção contra roubos e tráfico ilícito, bens não documentados se tornam difíceis de recuperar.

Uma boa documentação economiza tempo e dinheiro, ajudando a priorizar recursos e evitando a duplicação de esforços.

Utilizar a documentação exaustiva é um compromisso ético do conservador-restaurador. Os relatórios dos procedimentos adotados durante um processo de conservação e restauro fazem parte do Código de Ética do profissional que atua em qualquer bem cultural móvel ou imóvel. Intervenções de conservação se constituem em um momento

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crítico na vida de um bem cultural e um registro cuidadoso pode preservar informações que serão a base para avaliações futuras e novos tratamentos.

Ciente dessa responsabilidade o código de ética do conservador-restaurador brasileiro dedica quatro artigos à pesquisa e documentação. Destacamos:

14. Antes de iniciar qualquer ação ou intervenção em uma obra o conservador-restaurador deve colher todas as informações capazes de gerar e salvaguardar o conhecimento a seu respeito (...). 15. Durante o tratamento devem ser anotadas todas as intervenções de conservação-restauração (...). A documentação fotográfica deverá acompanhar os passos mais expressivos do tratamento e registrar o efeito final da obra após o término do trabalho. (CÓDIGO, 2005, p. 5).

Embora existam tantas vantagens de se empreender em uma documentação exaustiva, toda sua importância tenha sido salientada nos instrumentos internacionais de preservação e sua obrigatoriedade seja assinalada nos códigos de ética, é de comum acordo para pesquisadores da área que a mesma permanece ainda inadequadamente empregada. O campo carece de normas e diretrizes e uma melhor comunicação entre os profissionais. Há concordância também no entendimento de que as ferramentas são incompletas, a formação de profissionais insuficiente e os recursos limitados - fora do campo, os tomadores de decisão muitas vezes desconhecem os objetivos e benefícios da documentação. (LEBLANC; EPPICH, 2005, p. 7).

Nesse contexto, em âmbito nacional, Mendonça (2009, p. 340) aponta que existe uma lacuna entre o conhecimento dos conceitos éticos da documentação e a prática profissional, sendo esses critérios esquecidos ou negligenciados, e destaca:

Cabe aos novos cursos de formação [...] sensibilizar e orientar os novos profissionais que estão ingressando na área, como também as associações de classe, reforçar junto aos seus associados uma maior seriedade no cumprimento desse artigo do nosso código de ética.

Precisamos portanto tomar medidas para assegurar que a documentação não seja apenas uma operação técnica, mas o resultado de uma abordagem cultural complexa, pois colecionar dados não é o bastante.

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Há a necessidade de implementarmos normas e orientações internacionais para que a comunicação seja completa e as ações de documentação efetivas. Enquanto cientistas da conservação é nosso dever divulgar os benefícios da documentação para nossa prática profissional, resultando em uma maior qualidade nas práticas de preservação.

___________

Notas1. As chamadas cartas patrimoniais são documentos internacionais no formato de cartas, recomendações, convenções, normas ou regulamentos, criados por diversos órgãos internacionais de defesa do patrimônio histórico e cultural.

2. Internacional Council on Monuments and Sites – Conselho Internacional de Monumentos e Sítios.

3. Princípios para a documentação de monumentos, grupos de edifícios e sítios. (Tradução da autora).

4. As the cultural heritage is a unique expression of human achievement; and as this cultural heritage is continuously at risk; and as recording is one of the principal ways available to give meaning, understanding, definition and recognition of the values of the cultural heritage; and as the responsibility for conserving and maintaining the cultural heritage rests not only with the owners but also with conservation specialists and the professionals, managers, politicians and administrators working at all levels of government, and with the public; and as article 16 of the Charter of Venice requires, it is essential that responsible organizations and individuals record the nature of the cultural heritage.

ReferênciasBOITO, Camillo. Os restauradores: conferência feita na Exposição de Turim em 7 de junho de 1884. Tradução de Paulo Mugayar Kühl; Beatriz Mugayar Kühl. Cotia: Ateliê Editorial, 2002. 64 p. (Artes & Ofícios, 3).

BOITO, Camillo. Restoration in architecture: first dialogue. Translated by Cesare Birignani. Project Muse, v. 6, n.1, Summer 2009. E-ISSN: 1934-6026, Print ISSN: 1549-9715. Disponível em: <http://muse.jhu.edu/journals/future_anterior/v006/6.1.boito.html>. Acesso em: 02 out. 2010.

CARVALHO, Claudia Rodrigues de. Plano de conservação preventiva do Museu Casa de Rui Barbosa: documentação para preservação. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, Centro de Memória e Informacão, [2010]. 6p. Projeto. Disponível em:<http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/bolsistas/2010/FCRB_Selecao_de_Bolsistas_2010_Documentacao_e_Preservacao.pdf>. Acesso em: 18 nov. 2010.

CÓDIGO de ética do conservador-restaurador. São Paulo, 16. nov. 2005. Disponível em: <http://www.aber.org.br/pdfs/Codigo_de_etica_v2.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2010.

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EPPICH, Rand; LEVIN, Jeffrey. People and technology: a discussion about heritage documentation.The Getty Conservation Institute Newsletter, Los Angeles, v. 20, n. 3, p.10-16, 2005. Entrevista. Disponível em: <http://www.getty.edu/conservation/publications/newsletters/20_3/>. Acesso em: 4 ago. 2008.

FEILDEN, Bernard. The principles of conservation. The UNESCO Courier, Paris, v.9, n.5, p. 27-8, mar. 1981. Disponível em:<http://unesdoc.unesco.org/images/0007/000747/074736eo.pdf>. Acesso em: 22 nov. 2010.

GONÇALVES, Yacy-Ara Froner. Os Domínios da memória: um estudo sobre a construção do pensamento preservacionista nos campi da Museologia, Arqueologia e Ciência da Conservação. 2001. 513 f. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.

GONZALEZ MOZO, Ana. Estudio y documentación de obras de arte. In: ______; MACARRON MIGUEL, Ana Maria. La conservación y la restauración en el siglo XX. Tecnos: Madrid, 1998. cap. 4, p. 53-73.

GONZÁLEZ-VARAS, Ignacio. Conservación de bienes culturales: teoría, historia, principios y normas. 3. ed. Madrid: Cátedra, 2003. 628 p.

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MENDONÇA, Valéria de. A documentação de conservação e restauro: ética e responsabilidade profissional. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CONSERVADORES E RESTAURADORES DE BENS CULTURAIS - ABRACOR, 13., 2009, Porto Alegre. Anais... Rio de Janeiro: ABRACOR, 2009. p. 339-340. 1 CD-ROM.

MINAS GERAIS. Secretaria de Estado da Cultura. Superintendência de Museus Caderno de diretrizes museológicas 1. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Cultura/Superintendência de Museus, 2000. 148 p.

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Paisagem em Branco: protocolos de gestão e conservação em Arqueologia

Ana Carolina Motta Rocha Montalvão, Gerusa de Alkmim Radicchi, Giulia Giovani Vilella, Marcella de Oliveira, Thais Gontijo Venuto

Graduandas em Conservação-Restauração- EBA-UFMGYacy-Ara Froner (coordenadora)Andrés Zarankin (coordenador)

RESUMO

O projeto Arqueologia Histórica Antártica do Departamento de Sociologia e Antropologia da Fafich-UFMG tem como objetivo a investigação de grupos humanos que ocuparam o território antártico a partir de vestígios coletados das ilhas Shetland do Sul. Os objetos correspondem a sítios arqueológicos do século XIX e possuem grande importância e diversidade de tipologias. Para que estas informações não sejam perdidas, a equipe de alunos e docentes do curso de graduação em Conservação-Restauração da UFMG foi convidada a atuar na preservação do material. A equipe propôs dois eixos principais de atuação: o primeiro diz respeito à catalogação, limpeza, tratamento e acondicionamento dos objetos; o segundo eixo visa a criação de um protocolo orientador para a coleta em campo arqueológico. Os resultados iniciais deste trabalho serão apresentados nesta comunicação.

Palavas-Chave: Conservação Preventiva, Arqueologia Histórica, Antártida.

RESUMÉN

El proyecto de Arqueología Histórica Antártica del Departamento de Sociología y Antropología FAFICH-UFMG tiene como objetivo investigar los grupos humanos que ocuparon el territorio antártico a partir de vestigios recogidos de las Islas Shetland del Sur Los objetos corresponden a los sitios arqueológicos del siglo XIX y tienen una gran diversidad de tipos y una gran importancia. Para que estas informaciones no se pierdan, el equipo de estudiantes y profesores de curso de grado en Conservación-Restauración de la UFMG fue invitado a actuar en la conservación del material. El equipo propuso dos líneas de acción principales: el primero se refiere a la catalogación, limpieza, procesamiento y embalaje de los objetos y el segundo eje tiene como objetivo crear un protocolo orientador para la recogida en el campo arqueológico. Los primeros resultados de este estudio se presentan en esta comunicación.

Palabras clave: Conservación-Restauración, Arqueología Histórica, Antártida.

Introdução

O projeto Arqueologia Histórica Antártica do Laboratório de Estudos

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Antárticos em Ciências Humanas (LEACH), sediado na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, é responsável pela coleta e estudo dos rastros arqueológicos deixados por grupos humanos que ocuparam o território antártico por volta do século XIX. O projeto se trata de um desdobramento das pesquisas já desenvolvida desde a década de 1980 por membros do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas─CONICET, na busca por elementos da cultura material que pudessem fornecer subsídios à compreensão das diversas ocupações até então desconhecidas: en esta investigación, nos interessa abordar ciertos aspectos de este proceso que resultan em la ocupación y exploración de nuevas tierras, que eran marginales o incluso desconocidas hasta entonces. Tal es el caso de la Antártida (ZARAKIN; SENATORE, 1999, p.629).

O recorte conceitual é acerca das estratégias capitalistas de incorporação da Antártica, a partir do estudo do cotidiano das práticas sócio-econômicas e culturais exploratórias deste espaço geográfico, principalmente a caça e a pesca. Os vestígios contribuem à percepção de um panorama diversificado dessa ocupação. Acampamentos, refúgios, áreas de matança, limpeza e estocagem das peles constituem espaço privilegiado de reconstituição arqueológica do cotidiano destes grupos.

Em junho de 2010 o Prof. Dra. Andrés Zarankin, coordenador do projeto no LEACH, convida a equipe do Laboratório de Conservação e Restauração da universidade para colaborar com a salvaguarda destes vestígios. Como alunas do Curso de Conservação de Bens Culturais Móveis da EBA-UFMG, fomos integradas ao projeto, atuando como voluntárias desde agosto desse mesmo ano. Coordenadas pela Profa. Dra. Yacy-Ara Froner, a equipe iniciou os trabalhos de catalogação, pré-acondicionamento, protocolos de avaliação e o estudo de um projeto para a reserva técnica do LEACH. A catalogação e o pré-acondicionamento do acervo configuraram-se como condições imprescindíveis para o início dos estudos arqueológicos. A proposição de uma metodologia para a conservação durante a coleta em campo também começou a ser estudada.

As primeiras pospostas de tratamento

O acervo foi coletado em fevereiro de 2010 e passou a apresentar vários

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problemas de conservação. As mudanças climáticas e as tensões sofridas no manuseio, transporte e armazenagem, somadas ao excesso de unidade e a degradação biológica, fragilizaram significativamente os objetos.

Para atingirmos as condições ideais de salvaguarda, observamos a necessidade de conhecer todos os materiais, suas composições físico-químicas, as condições às quais estavam submetidas no subsolo e seu comportamentos frente as variações climáticas após a coleta. Analisamos e mensuramos o acervo quanto às suas tipologias e obtivemos os seguintes resultados:

Materiais Porcentagem

Cerâmicas 04Couro 21

Madeira 51Metais 18Ósseos 41Pétreos 05Tecido 15Vidros 03

Tabela 1: proporção de objetos por materiais.

Identificamos que a maioria das peças são de natureza orgânica vegetal, grande parte apresentando-se na forma de fragmentos de madeiras.

Após a mensuração do acervo iniciamos os trabalhos de pré-acondicionamento. A troca das embalagens em que se encontravam por sistema adequado foi nossa primeira orientação. Os objetos foram inicialmente acondicionados dentro de sacos plásticos com problemas de vedação, alguns posicionados sobre papelão, sobrepostos uns aos outro em refrigerador à temperatura de cerca de 5°C. Utilizamos para a troca o acondicionamento primário constituído por embalagem plástica vedante de policarbonato tipo zip lock, introduzindo uma placa de polietileno nas embalagens para conferir estabilidade aos objetos. Cada embalagem foi colocada em caixas de poliondas de polietileno para a proteção mecânica, forrada com suporte de ethafoam para amenizar impactos. Ambos

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os materiais utilizados no pré-acondicionamento foram selecionados por serem inertes e hidrofóbicos. Os objetos também passaram a ser armazenados nas caixas por tipologias de materiais, evitando assim possíveis migrações das patologias.

Imagem 1 e 2: sistema primário de acondicionamento

A umidade elevada é uma característica marcante do acervo. Muitos sacos apresentam em seu interior, mesmo após o pré-acondicionamento, umidade relativa em ponto de saturação. Sabemos que à umidade superior a 70% as condições climáticas propiciam a proliferação de fungos e bactérias, agentes degradantes dos materiais orgânicos. Porém, os objetos ósseos, os têxteis, os couros e as madeiras estão em avançado estado de desestruturação e a retirada da umidade pode colaborar com o enfraquecimento das suas fibras e das suas estruturas já fragilizadas. O estudo da melhor forma de retirada dos objetos do refrigerador e a retirada de sua umidade excessiva apresentou-se como um dos principais desafios encontrados pela equipe. Cogitamos a possibilidade de alguns objetos permanecerem em refrigeração constante.

Concomitantemente ao pré-acondicionamento, os primeiros testes de limpeza, de consolidação e tratamento foram realizados. O primeiro material a ser testado foi um grupo de fragmentos de madeira em estado avançado de fragmentação. A amostra foi limpa com trinchas de

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cerdas macias e submetida ao processo de secagem natural. Após este procedimento não foram observadas a formação de estruturas salinas, mas notou-se que o processo de secagem rápida gerou rachaduras no sentido das fibras e um leve abaulamento das peças. Para consolidação e união das partes rachadas foi então utilizado Paraloid B72 em álcool diluído a 5%. Para os próximos experimentos de secagem estudaremos sistemas lentos e controlados, com a possível de utilização de câmaras e sílicas para os objetos mais sensíveis ao ressecamento.

Imagem 3: equipe trabalhando na secagem dos fragmentos.

Alguns metais com ligas de ferro e chumbo foram tratados na seqüência. Eles foram limpos superficialmente com a retirada cuidadosa da espessa camada de terra que os envolviam. Embora as peças com a presença de ferro em sua composição apresentem camadas de oxidação, aparentemente elas ainda possuem um núcleo maciço. Decidiu-se pela retirada definitiva destes e outros objetos metálicos em bom estado do refrigerador, evitando a permanência em contato com a umidade excessiva nele contida.

Alguns fragmentos de têxteis em estado de maior integridade foram também limpos e acondicionados fora do refrigerador. Dentre eles foi possível a identificação de sarjas e tafetás, com fibras de origem animal e vegetal apresentando boa resistência. Outros fragmentos de têxteis estão

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bastante fragilizados e possivelmente não serão retirados de ambiente refrigerado.

O registro das atividades e a criação do banco de dados

Todas as informações referentes à coleta de materiais estão sento sistematizadas para a produção de um banco de dados na plataforma Access proposto em duas planilhas. A primeira prestará informações a respeito da coleta e estudo arqueológico dos objetos e foi baseada no modelo idealizado para a Base de Dados Unificada, que deve integrar as informações dos objetos antárticos alocados tanto no Brasil quanto na Argentina e no Chile. A segunda teve como base modelos de registros e inventários utilizados pelo IPHAN e os modelos de registro dos trabalhos de conservação e restauração utilizados pelo Centro de Conservação e Restauração da EBA-UFMG.

Figura 2: Formulário do estado de conservação das peças.

Esta segunda ficha será de grande importância para que possíveis degradações e intervenções dos objetos possam ser registradas e evidenciadas. A partir de suas informações procedimentos e resultados de

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conservação poderão ser avaliados da forma mais eficaz.

Os principais desafios encontrados

Dentre os principais desafios para a criação de condições adequadas ao trabalho no acervo, a diversidade de materiais constituintes e seu caráter arqueológico devem ser tratados em destaque. Não contamos no país com muita disponibilidade de profissionais e pesquisas que sirvam de base para o tratamento dos diversos materiais arqueológicos e que possam preparar a equipe de graduandos para lidar com os objetos vindos do continente antártico.

Entendemos que a própria Arqueologia, ainda em consolidação como área de pesquisa e formação no Brasil, não está sendo compreendida pelos conservadores e restauradores em sua importância, conseqüentemente a apropriação dos bens arqueológicos como objetos de estudos e trabalho ainda estão por acontecer. A maioria das instituições de ensino e pesquisas no Brasil segue sustentando as áreas artísticas tradicionais, os bens arquitetônicos e os acervos em papel ainda como enfoque unilateral dos percursos formativos de seus cursos de conservação e restauração. Acreditamos que esta orientação seja conseqüência da perpetuação de certos valores sociais, da falta de incentivo e esclarecimento sobre a importância dos acervos etnográficos e arqueológicos para as sociedades, como também conseqüência da necessidade de maior articulação dos conservadores e restauradores dentro das possibilidades legais e políticas existentes:

[...] é fundamental compreender que o sentido da preservação perpassa questões profundas, subordinadas aos conceitos de valor, poder político e econômico. No entanto, a ordem primeira que orienta os debates institucionais é o princípio ético sob o qual estão sedimentadas a origem, as bases e as intenções ou os fins a que se propõem essas instituições [...] (FRONER, 2002, p.1).

Trabalhar pela incorporação de novas metodologias e campos de ação é em primeiro lugar trabalhar para trazer aos debates e decisões nacionais novos paradigmas e valores, trabalhando pela incorporação de acervos

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que ficaram à margem dos trabalhos de conservação e restauração. Neste sentido, podemos visualizar as experiências já realizadas pela Profa. Yacy-Ara Froner na área da conservação em arqueológica, e principalmente a sua atuação em campo de escavação antártico para a constituição de protocolos de conservação em coleta, como uma iniciativa importante. Esperamos que a iniciativa lançada possa criar parâmetros para o fortalecimento do diálogo entre os departamentos envolvidos e para o surgimento de novas áreas de pesquisa no curso de graduação.

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Referências

Catálogo das Cerâmicas Arqueológicas da 6a SR/IPHAN. Disponível em: www. http://portaldoiphan.gov.br/. Acesso em: 20 abril 2011.

FRONER, Yacy-Ara. Os Domínios da Memória – um estudo sobre a construção do pensamento preservacionista nos campi da museologia, arqueologia e ciência da conservação. Tese de Doutorado (Doutorado em História Econômica. São Paulo: USP, 2001.

FRONER, Yacy Ara, Patrimonio histórico e modernidade: construção do conceito a partir da noção de revitalização de sítios, monumentos e centros históricos. Simpósio de Conservação em Olinda, 2002.

SALERMO, M. Arqueologia de la Idumentária: practicas e Identidad em los confines del Mundo Moderno (Antartida, Siglo XIX). Buenos Aires: Del tridente, 2006.

ZARANKIN, A y M.X SENATORE. Historias de un Pasado en Blanco: Arqueologia Histórica Antártica. Belo Horizonte: Argumentum, 2007.

ZARANKIN, A. y M. X. SENATORE. Ocupación humana en tierras antárticas. Una aproximación arqueológica. Em: Soplando el Viento. Actas de las III Jornadas de Arqueología de la Patagonia, 1999 p. 629-644.

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O uso de novos materiais sobre edificações históricas em terra crua

Fabio das Neves DonadioMestrando PPGA-EBA-UFMG

Luiz Antônio Cruz Souza (Orientador)

RESUMO

O intuito desta pesquisa é identificar como algumas das principais teorias da restauração e cartas patrimoniais avaliam ou comentam o emprego de novos materiais nos processos de restauração/conservação dos bens culturais, e como seus conceitos se transportam ao hipotético emprego de tintas modernas sobre edificações de terra e areia – historicamente revestidas com cal ou tintas minerais porosas. Visa ainda apresentar aspectos gerais sobre a técnica de construção com terra, focando sua especificidade e capacidade de adaptar-se à utilização de novos materiais.

Palavras-chave: Teoria da Restauração, Conservação, Edifícios Históricos, Novos Mate-riais, Pintura.

Anstract

This research intends to identify as some of the main theories of the restoration and patrimonial letters evaluate or comment the job of new materials in the restoration processes/conservation of the cultural goods, and as its concepts if they carry the hypothetical job from modern inks on constructions from land and sand - historically coated with whitewash or porous mineral inks. It still aims at to present general aspects on the technique of construction with land, focusing its capacity to adapt it the use of new materials..

Key words: Historical theory of the Restoration, Conservation, Buildings, New Materials,

Painting.

Introdução

Ao analisarmos a história da cultura de uma comunidade, vemos que ela é marcada por permanências e mudanças de ordem ambiental e sócio-econômica que estão diretamente relacionadas ao surgimento de novos costumes individuais e coletivos. Essa dinâmica se manifesta de modo bastante diversificado, podendo ser percebida por meio de elementos materiais e intangíveis que compõem o cotidiano, tais como a culinária, a

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religiosidade, a música, a moda, a arquitetura.

Na arquitetura, essas mudanças se constroem ao longo do tempo, fundamentando-se por aspectos variados que determinam sua conformação final. As necessidades de atualização técnica, a disponibilidade de materiais e oferta de mão-de-obra qualificada, os recursos financeiros disponíveis, o “gosto” ou influência das correntes artísticas e a política estatal e econômica deixam marcas mais ou menos visíveis e determinantes nos edifícios isolados e na paisagem.

A arquiteta Maria Lalard destaca que essa pluralidade de aspectos técnicos, sociais e culturais, contidos nas construções, interfere sobremaneira em sua forma final:

A arquitetura tem, inegavelmente, uma dimensão simbólica que fala à nossa sensibilidade. Por isso ela também é arte e, como tal, se manifesta visualmente. Mas a arquitetura não é só arte. Ela tem uma dimensão utilitária e um valor de troca. Além disso, ela demanda técnica para se corporificar e por isso a dimensão tecnológica lhe é imprescindível. Podemos dizer que o objeto arquitetônico é fruído na sua dimensão artística, usufruído na sua dimensão utilitária e construído na sua dimensão tecnológica. E essas três dimensões se constituem no decorrer do processo social, como a história nos ensina. A forma arquitetônica é, portanto, mediadora das relações sociais e só pode ser compreendida nessa relação. (LALARD, 2006).

Essa percepção de que a arquitetura é uma mediadora social, presente, que se relaciona de forma dinâmica à arte, ao mercado e ao cotidiano, está estreitamente relacionada ao acesso da população às técnicas disponíveis, ao desenvolvimento dos hábitos locais, mas principalmente à oferta de materiais construtivos. Estes refletem claramente qual o nível tecnológico que um edifício ou seus elementos podem alcançar, seu aspecto final e sua capacidade de conservar-se e responder às diferentes demandas. São nessas determinantes que a produção arquitetônica apóia-se para evoluir, técnica e esteticamente, alterando e construindo a paisagem.

Essa premissa torna-se válida para analisarmos não só as técnicas e materiais de construção empregados na produção atual da paisagem e seu resultado, mas também o quanto podem contribuir com a conservação de estruturas do passado. O quanto esses novos materiais podem adiar

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novas intervenções e o quanto favorecem ou prejudicam estética, técnica ou culturalmente uma estrutura.

La conservación es la actividad que consiste em evitar futuras alteraciones de um bien [...], consiste em adoptar medidas para que um bien determinado experimente el menor número de alteraciones durante el mayor tiempo posible. (VIÑAS, 2003).

Afrescos e pinturas artísticas ou decorativas, por exemplo, podem ter sua sobrevivência garantida por meio da aplicação responsável de resinas ou adesivos sintéticos, de comprovada eficácia, capazes de consolidar sua resistência. Novos componentes estão continuamente sendo ensaiados por métodos analíticos experimentais visando participar de forma segura dos processos de conservação dos bens culturais. Mas somente a pesquisa de materiais garante e absolve a indicação de novos materiais nas intervenções conservativas? Existem questões filosóficas, acadêmicas ligadas a essas intervenções?

Sabemos que os bens culturais devem ser minuciosamente estudados em sua especificidade antes de sofrerem quaisquer intervenções conservativas ou restaurativas, e que essa pesquisa é a principal fornecedora dos dados imprescindíveis à tomada de qualquer decisão que implique em alterações a curto, médio e longo prazo. Mas a contribuição da pesquisa e do emprego de novos materiais nessas intervenções extrapola a capacidade técnica do material ou a compatibilidade deste com o original, para relacionar-se diretamente com a produção intelectual acumulada até hoje, presente nas teorias de restauro e nas cartas patrimoniais. As cartas patrimoniais, assim como as teorias, refletem os avanços de questões filosóficas e da tentativa de se otimizar procedimentos, diretrizes comuns que permitam e estimulem os profissionais do restauro a agir com deontologia. Portanto, está justamente na soma ou choque entre essas diretrizes ou posturas, e a pesquisa ou experimentação minuciosa de um determinado material, a possibilidade de avaliar os benefícios ou malefícios do emprego de novos materiais nas intervenções, e o quanto contribuem com o avanço da ciência da conservação.

Assim, esta pesquisa trata da utilização de novos materiais nos processos de conservação dos bens culturais, analisando, por meio de uma pesquisa bibliográfica, como algumas das principais teorias da restauração e cartas

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patrimoniais consideram essa prática, bem como pela apresentação da técnica de construção com terra, sua relação com os revestimentos ideais e seus requisitos básicos para adaptar-se a novos materiais, e como esses conceitos se transportam ao caso corriqueiro do emprego de tintas modernas sobre edificações de pedra, terra e/ou areia – historicamente revestidas com cal ou tintas minerais igualmente porosas.

Teorias versus novos materiais

Desde o século XIX, quando se intensificam e popularizam obras de restauração de bens móveis e imóveis, a comunidade científica especializada vem formatando posturas e teorias com o intuito de melhor embasar a atividade dos profissionais da área. Essas teorias visam por essência avaliar, discutir e subsidiar ações conscientes, técnica e esteticamente coerentes com seu tempo, lugar e a realidade dos bens culturais em questão. Isolada ou coletivamente, nações ao redor do mundo pesquisam e aplicam soluções para a salvaguarda e conservação de seu patrimônio, e, freqüentemente, durante a execução de intervenções conservativas, deparam-se com a necessidade de julgar a pertinência ou emprego de novos materiais que garantam a sobrevivência ou ampliem a sobrevida de seus bens. Essa evidência, bastante conhecida e discutida ainda na atualidade, já era citada na França do século XIX por Viollet le-Duc:

Na restauração, há uma condição dominante que se deve ter sempre em mente. É a de substituir toda parte retirada somente por materiais melhores e por meios mais eficazes ou mais perfeitos. É necessário que o edifício restaurado tenha no futuro, em conseqüência da operação à qual foi submetido, uma fruição mais longa do que a já decorrida. [...] É, pois, prudente considerar que toda construção abandonada perdeu certa parte de sua força, em conseqüência desses abalos, é que deveremos suprir essa diminuição de força pela potência das partes novas [...] por resistências maiores. (LE-DUC, 2007)

A polêmica e a perspectiva de restauração adotada por Viollet-Le-Duc, o relegaram a uma posição de “vilão” na história da restauração do século XX, dada a polêmica gerada por sua atuação, não só relativo a utilização de novos materiais, mas em sua postura geral. A arquiteta e professora

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Beatriz Kühl (2005) aponta, na introdução de “O Verbete Restauração”, de Viollet Le-Duc, por ela traduzido, que:

... a polêmica que causou e ainda causa é proporcional à grandeza de sua produção. Pela antipatia criada em relação às suas obras como restaurador, muitas vezes deixou-se de apreciar a coerência de suas formulações teóricas, seus aspectos inovadores, e seus muitos aspectos ainda atuais. [...] Entre as questões de grande atualidade podem ser citadas: o fato de recomendar que se deva restaurar não apenas a aparência do edifício, mas também a função portante de sua estrutura; procurar seguir a concepção de origem para resolver os problemas estruturais; a importância de se fazer levantamentos pormenorizados da situação existente; agir somente em função das circunstancias, pois princípios absolutos podem levar ao absurdo; a importância da reutilização para a sobrevivência da obra, pois restaurar não é apenas uma conservação da matéria, mas de um espírito da qual ela é suporte. (KUHL, 2000).

Observamos nessa citação que há tempos a utilização de novos métodos ou materiais em edifícios históricos é uma questão polêmica e amplamente discutida.

AS TÉCNICAS CONSTRUTIVAS TRADICIONAIS

Para melhor discutir o tema desta pesquisa e a suposta indicação de materiais modernos de acabamento, abordemos um pouco as técnicas identificadas como “construtivas tradicionais” no Brasil.

Sabe-se que a Península Ibérica foi ocupada por diferentes povos dos quais legamos procedimentos técnicos que se incorporaram e influenciaram a nossa cultura. Na região sul de Portugal, a influência Moura é evidente no uso dos muxarabis, das periódicas caiações e do uso da terra crua como material construtivo presente, por exemplo, nas taipas de pilão (TOLEDO, 1981). A taipa de pilão é uma técnica que consiste no apiloamento de um solo areno-argiloso, cru, livre de matéria orgânica, com umidade ótima de compactação, dentro de uma forma de madeira sem fundo, chamada taipal. As paredes maciças geradas por essa técnica são auto-portantes e de dimensões que variam em função do tamanho dos taipais, podendo ou não ter reforços estruturais em madeira nas áreas correspondentes a vãos

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de janela ou portas, ou ainda elementos como ombreiras ou vergas de pedra, garantindo maior estabilidade ao conjunto (NOLASCO, 2008). Não obstante dessa influência, o Brasil, enquanto colônia portuguesa apresenta, na implantação de suas vilas e cidades, características semelhantes no que se refere aos materiais e técnicas empregados para a construção de seus edifícios e traçado urbano, refletindo inclusive seu nível de importância para a coroa portuguesa. Somente as cidades de maior relevância construíam seus edifícios com o uso de rochas, pois requeria uma tecnologia mais sofisticada, organização do canteiro e aparelhos para o corte das rochas. Isso explica porque a grande maioria dos edifícios construídos no Brasil utiliza técnicas com terra crua, incluindo o pau-a-pique e o adobe, pois são executadas em qualquer local pela farta disponibilidade de materiais e mão-de-obra pouco qualificada. O pau-a-pique também chamado de taipa de mão ou de sopapo diferenças regionais) é uma das técnicas mais encontradas. Utiliza uma estrutura de madeira complementar, composta por madres ou baldrames, esteios e frechais, responsáveis por distribuir as cargas provenientes da cobertura e de seu peso próprio ao piso. Nessa estrutura é preso um gradeamento, ou “gaiola”, composto por peças verticais e horizontais, amarradas com couro ou cipó, responsáveis pelo fechamento das paredes. Esse gradeamento, usualmente executado em madeira, taquara, imbaúba ou palmito, é preenchido com barro, fechando painéis leves, que sem função estrutural, funcionam apenas como divisórias. Mais úmida do que a terra utilizada na taipa de pilão, a “massa”, que é o próprio barro amassado, aplicada com as mãos, necessitava de duas pessoas, que em lados opostos das paredes ou “gaiolas”, pressionavam o volume de terra até que os mesmos se encontrassem, unindo-se.

Outra técnica frequentemente encontrada nas edificações históricas é o adobe: tijolo rudimentar de terra crua, seco à sombra. Esses tijolos são produzidos com solo areno-argiloso, de consistência plástica, mais úmida que a terra para a taipa de pilão, que depois de homogeneizados (normalmente com os pés) e misturado a fibras vegetais (palha de milho, arroz ou capim) são arremessados em formas de madeira sem fundos, de dimensões variadas conforme a localidade. Após seu total preenchimento, o taipeiro desforma os tijolos e os deixa em secagem por um período de 30 dias. Após a completa secagem, os adobes são assentados com o próprio barro que os originou, porém, mais úmidos, plásticos, e podem

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ser autoportantes ou assentados em complemento a uma estrutura de madeira, como nas paredes de pau-a-pique.

Normalmente construídas sobre fundações rasas ou sobre nenhuma fundação impermeável, as paredes construídas com terra são constantemente expostas à umidade natural do solo, que se intensifica em épocas de chuva, devendo portanto serem protegidas por beirais largos. Em ambos os casos a umidade ascende pelas paredes por capilaridade, mantendo-as constantemente úmidas. Quando recobertas por argamassas e pintura adequadas, realizadas com materiais porosos, a umidade retida consegue evaporar, garantindo o conforto do usuário e a conservação de suas estruturas.

Embora alguns elementos componentes dessas estruturas possam variar por região ou por oficial construtor, algumas características inerentes ao material e seu comportamento mecânico não se alteram, impondo soluções que condicionem a eficácia da técnica. Comumente edificadas sobre fundações rasas de pedra ou mesmo diretamente sobre o solo, as construções de terra do período colonial brasileiro, quando revestidas adequadamente, adquirem boa resistência ao vapor d’água, permeabilidade e capacidade de transpiração da umidade interna, características essas que, aliadas à ventilação adequada, garantem salubridade e maior resistência às intempéries.

Esses edifícios acompanharam as mudanças sociais de seu contexto local ou de seu programa de uso, apresentam alterações e/ou intervenções que, realizadas consciente ou inconscientemente, modificaram sua estrutura original. Muitas vezes essas alterações geraram sínteses culturais e históricas que expressam na arquitetura o dinamismo e a originalidade dos processos de construção dos edifícios e da paisagem local.

As palavras do arquiteto renascentista e filósofo da arquitetura e urbanismo Leon Battista Alberti exprimem como esse dinamismo da produção arquitetônica e a abertura a novos esquemas e adequações colaboram com o avanço das idéias e da ciência:

... não significa que devamos nos restringir estreitamente aos seus esquemas e acolhê-los tais e quais nas nossas obras como se fossem leis inquestionáveis, mas sim, tendo o seu ensinamento como ponto de partida, devemos buscar

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novos e conseguir assim uma glória igual a deles ou se possível maior.. (ALBERTI apud DOURADO, 1996)

Diversos exemplares dessa síntese cultural podem ser encontrados por diversas cidades históricas, oferecendo aos seus moradores e visitantes a possibilidade de vivenciar uma paisagem urbana que expressa em si o diálogo entre diferentes tempos e atores da história.

A resignificação dos monumentos não ocorre, porém, somente por alterações técnico-formais, como mostra Regina Dourado (1996) ao analisar o processo de resignificação dos monumentos urbanos na história. Essa relação incide também sobre o valor simbólico desses bens:

Os monumentos, enquanto produtos culturais por excelência,serão sempre atualizados em seus significados, permanentemente alterados pelo olhar de quem os vê e pelas culturas que os interpretam. Esses monumentos não são estáticos ou impõem rigidamente sua existência (DOURADO, 1996).

Assim, dentro da capacidade humana de adaptar seu ambiente às novas tecnologias, um velho edifício de taipa, por exemplo, pode apresentar ao longo de sua história “atualizações” que propõem novos programas de uso, inclusões de novas instalações elétricas e hidrosanitárias que, realizadas com critério, podem colaborar com a atualização de sua estrutura, de sua função e de seu significado à sociedade sem causar-lhe maiores traumas estéticos ou histórico-culturais.

No entanto, nem todas essas intervenções alcançam o mesmo sucesso ou são criteriosas. Muitas delas são danosas, trazendo problemas até irreversíveis. Um exemplo corriqueiro e reincidente é o causado pela substituição de suas argamassas de recobrimentos originais a base de terra, cal e areia, por materiais modernos a base de cimento e/ou tintas plastificantes.

Essa prática, ainda e erroneamente empregada até nossos dias, passa a ser indicada a partir do ano de 1931 pela Carta de Atenas, que publica em seu item IV- “Os Materiais de Restauro” que eles (conselho técnico) aprovam o emprego adequado de todos os recursos da técnica moderna e especialmente, do cimento armado. Acreditava-se que ao utilizar um material moderno nas obras de restauro, mais resistente do que os originalmente empregados, uma condição superior poderia distanciar futuras e nocivas obras de

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restauração. Todavia, nas últimas décadas se constatou que essa prática não era adequada para a conservação dos bens, uma vez que os edifícios de terra crua sobre fundações rasas relacionam-se com seu ambiente de inserção de forma diferente dos edifícios modernos, cujas fundações impermeabilizadas lhe permitem maior estanqueidade com relação à umidade, principalmente ascendente. Assim, ao serem revestidas com argamassa a base de cimento e/ou tintas formadoras de películas de proteção, como as tintas a base de PVA, por exemplo, essas edificações têm seu sistema natural de transpiração prejudicado, provocando assim destacamentos, bolhas e até perda do revestimento. A perda de material prejudica não só sua conservação material e originalidade, mas também sua leitura estética.

Este exemplo demonstra a importância de desenvolvermos pesquisas sobre a utilização dos materiais atuais aplicados nas intervenções de restauro. Na realidade, ainda que diversas pesquisas, ensaios e análises tenham sido desenvolvidos com o intuito de diagnosticar melhor os problemas e identificar novas soluções técnicas para a conservação, consolidação e restauração de argamassas e pinturas de edifícios históricos, tradicionalmente e originalmente edificados com cal, poucos trabalhos apontam outros materiais como possíveis alternativas compatíveis e facilmente disponíveis no mercado.

Ainda com relação ao emprego de novos materiais, a Carta de Restauro de 1972 ultrapassa a questão da compatibilidade entre novos materiais, destacando a importância da distinguibilidade e reversibilidade dos materiais:

Toda intervenção na obra [...] deve ser executada de modo tal, e com tais técnicas e materiais, que possa ficar assegurado que, no futuro, não tornará impossível uma eventual intervenção de salvaguarda ou de restauração.

Indica, ainda, que:

As medidas [...] não deverão ser tidas de modo a alterar sensivelmente o aspecto da matéria e a cor das superfícies, ou que exijam modificações substanciais e permanentes do ambiente em que as obras foram transmitidas historicamente [...] de modo a evitar qualquer dúvida sobre a época em que foram executadas, e com as modalidades

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mais discretas.Não há dúvida que, além de tecnicamente ideal, dada sua porosidade, aspecto e resistência, a cal corresponde ao material construtivo e de acabamento que esteticamente confere melhor resultado aos edifícios históricos, potencializando sua unidade estético-histórica, necessária para sua leitura ideal. Cesare Brandi (2005) destaca em sua Teoria da Restauração que o primeiro princípio da restauração é aquele pelo qual se restaura a matéria da obra de arte, visando restabelecer sua unidade potencial, sem cometer um falso artístico ou falso histórico, garantindo a manutenção de sua imagem e sua transmissão às gerações futuras. Conclui ainda que, dado que ninguém poderá jamais estar seguro de que a obra não terá necessidade de outras intervenções no futuro, mesmo que simplesmente conservativas, deve-se facilitar e não impedir as eventuais intervenções sucessivas.

Baseado no artigo 10º da Carta de Veneza de 1964:

Quando as técnicas tradicionais se revelarem inadequadas, a consolidação do monumento pode ser assegurada com o emprego de todas as técnicas modernas de conservação e construção cuja eficácia tenha sido demonstrada por dados científicos e comprovada pela experiência.

Locais onde: (i) há dificuldade de encontrar mão-de-obra especializada, detentora de informações sobre os processos de beneficiamento, produção e aplicação de argamassas e principalmente da caiação de acabamento; (ii) não há compreensão da técnica; e (iii) a entidade mantenedora não possua meios financeiros para patrocinar com a adequada freqüência a execução dos serviços técnicos de manutenção e da locação dos equipamentos necessários a sua correta aplicação, o uso da cal pode inviabilizar economicamente a conservação freqüente do edifício, estimulando portanto a pesquisa ou a utilização de um novo material, mais resistente, disponível no mercado, e que garanta, portanto, os mesmos benefícios da cal.

A argamassa ideal

Sobre os paramentos ou paredes confeccionadas tanto em terra quanto em outros materiais, normalmente é aplicada uma camada de revestimento responsável pela maior resistência e durabilidade destes que forneça melhor

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resultado estético, suporte para elementos decorativos e que confira maior qualidade térmica e acústica para o ambiente, chamada de argamassa. Juntamente com a subseqüente camada de revestimento, denominada de pintura, formam um escudo de proteção que deve preservar os paramentos de possíveis danos, mesmo que para isso sejam substituídas ou reparadas freqüentemente. Normalmente ambas conferem à edificação parte de sua identidade, garantida pelos materiais empregados, cores e texturas resultantes, o que justifica sua preservação. Assim, para sua conservação, além do emprego de materiais adequados, a umidade deve ser minimizada, o que garante a longevidade desejada para essas estruturas. O material ideal para a execução dessas camadas deve ser poroso, permitindo a transpiração dessa umidade constantemente presente na base dos edifícios de terra, evitando que esse torne-se pulvurolento, desagregando-se. O material que possui essas características e que foi largamente utilizado como aglomerante de argamassas e base para tintas ao longo da história da humanidade é o carbonato de cálcio, popularmente conhecido por cal.

As paredes são no geral revestidas de emboço de barro, completado ou não por reboco de cal e areia. Vez por outra argamassa-se o barro com estrume de curral, para sua maior consistência e para proporcionar-lhe melhor ligação entre o maciço de barro e o revestimento de cal e areia. Quanto a cal, seria primeiro importada, depois obtida de conchas ou mariscos queimados, até o aparecimento da cal comum. Quando esta falta, é substituída pela tabatinga. VASCONCELLOS (1961).

Quando a argamassa for executada sobre paramentos de terra crua (taipa de pilão, pau-a-pique ou adobe), técnicas comumente presentes no acervo histórico arquitetônico, a cal deverá ser utilizada como aglomerante, pois o uso do cimento, largamente empregado desde o século XX, inclusive em obras de conservação/restauração, potencializa os danos sobre esses edifícios.

Quando reparos e substituições de argamassas e rebocos a base de cal são necessários, as novas argamassas devem exibir características químicas, físicas e estéticas similares aos materiais existentes. Argamassas a base de cal são recomendadas por serem compatíveis com os sistemas tradicionais de construção, por apresentarem boa porosidade e resistência mecânica, harmonia estética, se

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bem feitas e mantidas. (KANAN,1999).

Sobre os danos causados pela aplicação de revestimentos a base de cimento, empregados em paramentos de terra e edificações históricas, segue as considerações de NOLASCO (2008):

O cimento tem a deformação elástica completamente diferente do maciço da parede de terra, enquanto a deformação da argamassa de cal é bem mais semelhante; a porosidade que permite a aeração da parede é muito menor no revestimento com cimento, enquanto com a cal ela é muito maior; o poder de adesão do cimento à superfície é muito maior que o poder da cal, com isso o revestimento hidráulico arranca partes do maciço de terra fragilizando a parede que precisa ser preservada. (NOLASCO,2008).

Os rebocos a base de cimento, que formam uma barreira impermeável, com o tempo se esfarelam ou destacam das paredes, expulsando com ele o revestimento e a pintura. Essa incompatibilidade entre materiais causa problemas até mesmo irreversíveis ao patrimônio, uma vez que pinturas murais internas, artísticas ou decorativas, igualmente e adequadamente executadas sobre camadas de diferentes traços de cal, podem ser perdidas quando seu invólucro – a edificação – é impermeabilizada externamente por um revestimento a base de cimento.

A cal é tida como agregante por excelência. Esse material em maior ou menor quantidade, conforme a espessura do estrato [de uma pintura mural] e a sua função na composição do “sistema de massas preparatórias”, por garantir boas propriedades mecânicas às argamassas finalizadas, é indissociável da história dos murais. (TIRELLO,2001)

A pintura ideal

Ainda garantindo a transpiração dos paramentos por meio de revestimentos porosos a base de cal, a pintura ideal, que a sucede, deverá ser executada sobre os mesmos princípios: utilizando material igualmente poroso, que não forme filme plástico impedindo a troca de umidade com o ambiente. Assim, a cal é também empregada na confecção de tintas, ou melhor denominada, na “caiação” dos edifícios, e aparece originalmente como acabamento quase exclusivo dos edifícios históricos.

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De um modo geral, as paredes revestidas são caiadas de branco. Quanto a isto, não podem haver dúvida, tendo em vista a longa serie de depoimentos que só começam a variar a partir do século passado. (VASCONCELLOS,1961).

A utilização da cal também para a caiação, executada conforme os métodos dos antigos mestres de obras, igualmente apresentam variações com relação a inserção de aditivos como óleo de linhaça, caseína ou gordura animal para acelerar a secagem ou facilitar a cobertura das superfícies.

A caiação é uma pintura a base de cal cujo processo de formação de filme se dá pela carbonatação (reação química da cal hidratada com o ar com perda de água e formação do carbonato de cálcio). Tradicionalmente foi comum a adição de ingredientes as misturas de cal, no entanto, alguns aditivos podem modificar o mecanismo de endurecimento da cal e resultar em um tipo de pintura a qual não será apropriada para trabalhos de conservação e restauração arquitetônica. (KANAN, 1999)

A caiação ou método similar de pintura, como no caso das tintas minerais a base de silicato de potássio ou magnésio, devem garantir a permeabilidade do conjunto a fim de melhor conservá-lo. Para Brandi (2005), noventa e nove por cento dos casos de perecimento das pinturas murais é determinado pela umidade e esta, seja por capilaridade, por infiltração ou por condensação, é quase sempre ineliminável. Para evitá-la então é necessário observar se a quantidade de aditivos a serem empregados como coadjuvantes na formulação de tintas está conforme diretrizes fornecidas pelos órgãos de preservação. Ainda segundo Brandi (2005), impedir a transpiração natural da superfície de uma pintura mural é sempre um erro gravíssimo.

Novos materiais

A maior parte das tintas modernas, industrializadas, possui aditivos ou aglutinantes plastificantes, empregados em sua composição para garantir maior durabilidade quando aplicadas sobre superfícies impermeabilizadas, ou demais superfícies onde não haja problemas com umidade ou infiltração. Embora ofereçam alta durabilidade e qualidade sobre essas estruturas, tornam-se prejudiciais quando aplicadas sobre edifícios de terra crua, onde a troca de umidade com o ambiente é constante. Tal prática favorece

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o aparecimento de manchas causadas por fungos manchadores e/ou emboloradores, o desprendimento de seu filme plástico e o aparecimento de eflorescências de sais solúveis. Embora a pesquisa e produção de novos materiais reflitam a demanda do mercado e a necessidade de evolução destes, sua utilização deve ser responsável nas obras de conservação de edifícios históricos e estar sempre condicionada à execução de ensaios que comprovem sua eficácia e compatibilidade, e que garantam no futuro o não aparecimento de novos danos.

Considerações finais

Para a avaliação da utilização de novos materiais nos processos de conservação dos bens culturais, buscou-se junto às principais cartas patrimoniais e teorias da restauração os conceitos e considerações de seus autores com relação ao emprego destes nas obras de conservação/restauração. Nota-se que, embora cada postura reflita o momento histórico em que viveram e a respectiva condição sociocultural e econômica da época, praticamente todas consideram o uso de materiais melhores, compatíveis, mais resistentes e mais reversíveis, com o objetivo único de garantir a sobrevivência do bem. Nota-se ainda que a especificidade de cada bem cultural aponta os procedimentos mais adequados para sua conservação, e que esse indica a necessidade de pesquisa sobre seus materiais originais e do eventual emprego de novos materiais.

Complementando a parte inicial do desenvolvimento deste trabalho foram apresentadas técnicas de construção com terra, sua relação com os revestimentos ideais e seus requisitos básicos para adaptar-se a novos materiais. Tal pesquisa visou identificar como um caso real, corriqueiro, pode se relacionar às teorias de restauração com relação ao emprego de novos materiais. Novamente as teorias e seus conceitos tornam-se ferramentas para a discussão dos procedimentos a serem adotados, direcionando a postura dos profissionais da área com relação à pesquisa e utilização de novos materiais.

Por meio desta pesquisa é possível concluir que a síntese entre as bases teóricas e os métodos analíticos experimentais nos fornece o meio mais seguro para compreender, diagnosticar e proteger os bens culturais, e que, mesmo em casos tão corriqueiros como a pintura de uma edificação, a ação consciente e responsável dos profissionais envolvidos em todos

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os processos contribui com o avanço e consolidação da conservação enquanto ciência.

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Valessa Costa Soares Universidade Federal de Ouro Preto

Resumo

Partindo da experiência de trabalho realizada no prédio da antiga Secretaria de Estado da Fazenda, localizada na Praça da Liberdade em Belo Horizonte e integrante do projeto Circuito Cultural Praça da Liberdade, coordenado pelo governo do Estado de Minas Gerais, o estudo proposto tem como objetivo analisar o valor das intervenções no processo de restauração da edificação, tendo em vista suas transformações físicas/estruturais e de significado simbólico, mediante o processo de reformulação proposto para o novo uso do mesmo. Alem disso, pensar a possibilidade de assegurar nesse espaço uma memória coletiva a partir da manutenção das características marcantes do edifício e unir ao valor afetivo já existente um possível resignificado, observando que esse será destinado ao Memorial Minas Gerais Vale.

Palavras chave: Restauração, arquitetura, urbanismo

Abstract

Based on the work done in the former Secretaria do Estado da Fazenda building, located in Praça da Liberdade, Belo Horizonte, and part of the project Circuito Cultural Praça da Liberdade, coordinated by the state government of Minas Gerais, the proposed study aims to analyze the value of interventions in the process of restoring the building in order to change their physical/structural and symbolic meaning through the proposed process of redrafting. Also, think about the possibility of preserving a collective memory based on the maintenance of the striking features of the building, and, to its already existing emotional value, attach one possible new meaning, noting that the space is intended to become the Memorial Minas Gerais Vale.

Keywords :Restoration, architecture, urbanism

Introdução

Partindo da experiência no processo de restauração e do acompanhamento das obras estruturais ocorridas no edifício da Antiga Secretaria de Estado da Fazenda, localizada na Praça da Liberdade em Belo e as reflexões propostas pela disciplina “Fundamentos históricos e filosóficos da ciência da conservação” ministrada pela professora Yacy-Ara Froner, o

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trabalho aqui proposto primeiramente tem o intuito de analisar o valor das intervenções no processo de restauração da edificação, tendo em vista suas transformações físicas/estruturais e de significado simbólico, mediante o processo de reformulação proposto para o novo uso do mesmo. Alem disso, em um segundo momento pensar a possibilidade de assegurar nesse espaço uma memória coletiva a partir da manutenção das características marcantes do edifício e unir ao valor afetivo já existente um possível resignificado, observando que esse será destinado ao Memorial Minas Gerais - Vale.

Deu inicio em abril de 2009, sob a supervisão do Instituto Estadual de Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA-MG) as obras de revitalização do prédio da Antiga Secretaria da Fazenda. Incerida no projeto “Circuito Cultural Praça da Liberdade” uma parceria entre empresas privadas, publicas e o governo do Estado de Minas Gerais, tal implantação chama atenção para as edificações de forma a resguardar o acervo restaurado e a adequação dos espaços na recepção dos novos equipamentos tecnológicos e de estrutura.

Nomeado de “Memorial Minas Gerais – Vale” o projeto de curadoria e museografia do prédio da antiga secretaria apresenta três conceitos: Minas imemorial clássica – A historia e memória do século XVII ao XXI –, Minas polifônica multicultural – As múltiplas dimensões culturais e artísticas de um Estado de muitas caras – e Minas visionária – Os conceitos de tradição, entusiasmo e utopia na cultura e no pensamento mineiro. Juntos, eles unem em um só ambiente as noções de passado, futuro e de identidade do mundo contemporâneo.

É importante destacar, contudo, alguns aspectos históricos de fundação de tal conjunto urbanístico visando à compreensão mais clara da importância política, social e arquitetônica desse cenário. Pensado para a grande inauguração da nova capital de Minas Gerais as edificações da Praça da Liberdade – que nesse período incluía o Palácio da Liberdade e os prédios das Secretarias da Fazenda; Viação (antiga agricultura); Educação (antiga interior); Segurança Publica e interior mais seus jardins, alamedas, lagos, hermes e fontes – insere-se no projeto de criação de uma nova cidade.

Belo Horizonte teve as linhas básicas de seu traçado

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definidas antes mesmo da escolha de seu local. Esta nova cidade vivia como que para se contrapor à antiga, Ouro Preto, lugar condenado por ser a imagem do Brasil colonial e por não poder comportar, diziam na época, as exigências urbanísticas de uma cidade moderna. (SILVA, 1999, p.1)

Modernidade essa que estava diretamente ligada aos modelos europeus vigentes no final do século XIX que refletem as necessidades sociais, econômicas e políticas de uma classe política administrativa crescente.

Tal arquitetura que desprezava o passado colonial, indigno enxergou em Belo Horizonte cidade de criação recente um campo fértil. Observa-se nas cidades brasileiras, até cerca de 1940, a adoção de um estilo neoclássico ou neo-renascentista, uma inspiração constante na maioria dos edifícios oficiais, fossem eles faculdades, escolas, teatros ou sede dos principais órgãos governamentais. Um modelo estético, urbanístico, comportamental adotado que segundo Carlo Giulio Argan, pregava uma teoria arquitetônica que usava a “adequação lógica da forma à função, a extrema sobriedade do ornamento, o equilíbrio e a proporção dos volumes: a arquitetura não deve mais refletir as ambiciosas fantasias dos soberanos e sim responder a necessidades sociais e, portanto, também econômicas” (ARGAN, 1992, p.21).

Dessa forma a nova capital mineira foi beneficiada com uma unidade, que lhe conferia um caráter definido, no qual, a Comissão Construtora da Nova Capital, formada por engenheiros como Aarão Reis, Saturnino de Brito, Francisco Bicalho e outros, projetou uma cidade ”a partir das mais modernas técnicas urbanísticas” (SILAV, 1999, p,25). Para a Praça da liberdade existia uma concordância entre a rigidez do plano urbanístico e a aparência neo-classica dos grandes edifícios públicos em função de uma hierarquia cuidadosamente estudada cuja, preocupação se referia aos arranjos das perspectivas, o aspecto geral das casas, e a persistência de conter fachadas decoradas com colunas, pilastras e frontões.

O prédio da Antiga Secretaria de Estado da Fazenda teve os primeiros serviços de construção iniciados em 25 de novembro de 1895, através do sistema de tarefas de mão-de-obra de responsabilidade da Comissão Construtora. Já na inauguração de Belo Horizonte a obra encontrava-se em fase final de acabamento, sendo gasto com decoração e pintura cerca de 8,6% do custo total orçado. José Magalhães, chefe da secção de

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Arquitetura da Comissão Construtora foi o arquiteto responsável pelo projeto, assim como, Frederico Steckel ficou a cargo da decoração interna e externa, esse era pintor, alemão formado pela Escola de Belas Artes de Berlim e morava no Brasil desde 1846 (IEPHA, 1996).

O edifício da Secretaria da Fazenda ao longo dos anos passou por diversas reformas, cito algumas:

1905 – Reparos gerais e consertos no telhado.

1908 – Acréscimos nos fundos e em toda a altura do edifício.

1909 – Construção do pavilhão destinado ao alojamento dos guardas.

1927 – Vários acréscimos objetivando ressaltar o tom modernista da obra.

1971 – Reforma total promovida pela Secretaria de Viação e Obras Publicas.

2003 – Pintura e reparos gerais.

Segundo descrições da época de inauguração o prédio possuía os seguintes aspectos físicos;

É composto de três corpos, sendo os dois laterais salientes e o central reentrante. O corpo central de três andares, possui três portas de dois metros de largura no andar térreo e nos dois andares superiores, cinco janelas. Lateralmente possui duas janelas por andar, sendo que as do primeiro piso possuem dois metros de largura e coroamento de tímpanos triangulares. Internamente, os três pavimentos são interligados por uma escada de ferro de sistema Joly Brevete, vinda da Bélgica. Grande parte do material empregado na obra são importados da Europa. (IEPHA, 1996)

Essas características se fazem necessária, uma vez que, a atual reforma pensada para o novo uso do mesmo abrange toda a estrutura da construção composta em vários momentos de reforma. Entretanto, o trabalho da equipe de restauração foi responsável pela recuperação e conservação dos elementos artísticos integrados constituintes da primeira fase de construção no final do século XIX, tal processo legitima-se através do registro de tombamento do Conjunto Arquitetônico e Paisagístico da Praça da Liberdade, no qual o prédio da Secretaria da Fazenda se integra

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(Edital IEPHA, 1997).

Partindo do esclarecimento de tal importância o que pode ser apresentado e discutido é uma parte subjetiva do processo de restauro do patrimônio público descrito acima. Assim, o trabalho teve inicio com a desocupação e avaliação das condições físicas do espaço, como já se encontrava em desuso as pesquisas logo avançaram, observou-se janelas de prospecção e alguns testes para remoção de tintas feitas na ultima avaliação do prédio em 2006.

Formada a primeira equipe de profissionais as atividades se estabelecem, montagens de andaimes no terceiro andar e em seguida no segundo dando acesso aos forros de tecido originais do século XIX, que estavam cobertos por um teto rebaixado de gesso. Destaque para a pintura do foro central ainda em ótimo estado de conservação e a descoberta de novas vinhetas e pinturas no foro e balaustrada após novas prospecções. A partir do andamento da obra é necessário estabelecer prioridades de tarefa enfatizando critérios como tempo, estabilidade física/estruturais, mão-de-obra.

Visão do forro central mais parte da escadaria.

O trabalho passa a ter então, um ritmo mais dinâmico equipes diferentes destinadas à funções diferentes foram formadas, com cada uma contendo um supervisor as atividades são distribuídas de forma que o serviço em áreas distintas ocorram concomitantemente. Proponho assim, uma

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descrição concisa desse intenso processo de trabalho que durou cerca de um ano e meio, de abril de 2009 a julho de 2010.

Formados os grupo, um ficou responsável pela fixação do forro central no terceiro pavimento, tarefa cumprida juntamente a remoção das camadas de tinta dos capitéis. Mais duas equipes tomaram conta da remoção das varias camadas de tinta de três forros e roda-forro um no primeiro pavimento e dois no segundo. Esse trabalho durou vários meses, pois, exigia muito cuidado visto a delicadeza em que se encontrava a pintura e o tecido.

Terminada a remoção dos capitais é a vez da balaustrada na caixa da escada (segundo e terceiro andares), esse grupo também teve que administrar muito bem o serviço, já que a condição dos elementos exigia bastante cuidado. Nesse instante deu-se início a remoção de tinta e o nivelamento da estrutura da escada e também a fixação do marmoreado no primeiro andar.

Terminada a remoção dos três primeiros forros outros dois dão inicio, ainda no segundo pavimento, enquanto a sutura dos tecidos já descobertos é feita. Não posso esquecer das belas colunas do terceiro pavimento que são fixadas e niveladas durante esse tempo mais o marmoreado das paredes e colunas do primeiro andar.

É importante observar que a partir do oitavo mês outras empresas passaram a trabalhar no prédio. Essas foram responsáveis pela reformulação estrutural, destinado a abranger o projeto de novo uso. Um número grande de funcionários passou a circular dificultando e retardando em alguns momentos o desenvolver das atividades de restauro. Chamo atenção para a enorme modificação física ocorrida nas salas construídas na segunda fase do projeto da secretaria. São mudanças que abalaram fisicamente as grandes colunas de concreto responsáveis pela base de apoio e sustentação do edifício, causando assim, rachaduras em inúmeros pontos do mesmo. No entanto, todo processo teve o aval do IEPHA-MG e do Governo do Estado de Minas Gerais.

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Reforma estrutural, parte de novo uso.

Desse modo, o ano de 2010 começa com a reintegração dos forros e da balaustrada mais a pintura dos capitéis. Em início de março ocorre a pré-inauguração: três salas já estavam prontas e a reintegração do marmoreado no vestíbulo, do primeiro andar, em estágio final. Em sequência segue a troca das cimalhas, frisos, florões e forros das quatros salas do primeiro piso e quatro salas do segundo, onde havia pintura lisa e o tecido encontrava-se totalmente inutilizado. A pintura da escada juntamente com os detalhes em dourado e as composições das vinhetas de nove salas do primeiro pavimento, quatro do segundo, sendo duas com parede inteira e os dois corredores dos três pisos dão finalidade ao trabalho de restauração em julho do ano atual.

O objetivo dessa rápida descrição justifica-se para compreendermos melhor o valor de uma obra de restauração e suas muitas fazes. O restauro entendido hoje, não é volta ao passado, não significa congelar, embalsamar e muito menos apartar os bens culturais da realidade. Significa transformar, pautando-se na análise da obra, no respeito pela sua conformação, pelos seus aspectos materiais e pela sua transformação ao longo do tempo, através de método fundamentado nos instrumentos de reflexão oferecidos pela filosofia e historiografia da arte, crítica e estética e nas ciências naturais. (BRANDI, 2004).

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A restauração é uma ciência critica com critérios estéticos, teóricos, éticos bem organizados e que assumem a decisão política de recuperar, restituir “uma parte do real” (CARENA, 1992, p.129) no qual a comunidade é proprietária. Tais decisões não são unânimes nem validas para um todo temporal, discussões sobre as escolhas feitas em um caso de intervenção será sempre proposta para passado, o presente ou o futuro. Na citação que segue Beatriz Mugayar Kühl, chama atenção para a importância de uma postura ética e criteriosa no restauro:

É preciso retornar às raízes que motivaram a preservação dos monumentos históricos para voltar a entender porque, para quem, o que e como preservá-los, respeitando escrupulosamente seus aspectos documentais, sua configuração, sua materialidade, seu transcorrer ao longo do tempo, para que desse modo, continuem a ser documentos fidedignos, que possam transmitir o conhecimento de forma plena e não deformada, e para que sirvam como efetivos elementos de rememoração e suportes da memória coletiva (KÜHL, 2005)

A autora ressalta assim, a relevância de assegurar aos bens culturais a memória e o conhecimento dos quais estes são portadores. O passado, antes de ser didático, fascina por sua diferença com a atualidade. Costuma ser considerado um lugar de memória, de evocações, de identidade, de reminiscências. Em primeira instância não interessa ao grande público a filologia da análise que levou à determinada opção metodológica de preservação; interessa, sim, a capacidade que uma pintura ou uma arquitetura antiga têm de demonstrar, por meio de estruturas claras e compreensíveis (a partir dos parâmetros atuais), outros modos de vida e organizações sociais.

Pensar restauração e preservação e suas implicações reforçam e legitimam as posturas tomadas pela equipe contratada para o projeto de revitalização da Antiga Secretaria. Ao mesmo tempo como observador integrante de tal grupo sinto a necessidade de colocar em duvida algumas escolhas referentes a reforma destinada ao novo uso, ou seja, as salas reconstituídas para receber a nova instalação museográfica.

A discussão perpassa, dessa forma, por uma dificuldade de compreender certas decisões políticas, administrativas no que se refere a preservação do prédio em questão, ou seja partindo de qual critério as escolhas sobre os

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bens culturais são feitas. Após a leitura de justificativa de tombamento do Conjunto Arquitetônico e Urbanístico da Praça da Liberdade é possível por em questão algumas posições tomadas para a reforma do edifício, sendo assim cito:

A preservação deste conjunto arquitetônico se faz necessária, pois, as transformações mutiladoras sofridas no decorrer do tempo vem transformando aquele logradouro publico em estacionamento de veículos. (...) Tal área, hoje nossa preocupação em preservar, quando projetada, tinha em vista dar condições de trabalho aos servidores daquelas secretarias, afastando o trânsito intenso das mesmas, dificultando-o em vista das dimensões reduzidas dadas às alamedas. (IEPHA)

Percebe-se, portanto, que o atual projeto descaracteriza a função para o qual esse espaço foi criado, mudando seu significado e sua importância como membro integrante de um conjunto arquitetônico urbanístico de caráter fundamentalmente administrativo.

A antiga secretaria da fazenda possui uma consistência histórica dentro do seu conjunto organizado – passado/presente, antigo/moderno – de acordo com Carlo. J Argan “a cultura moderna tem ou deveria ter a capacidade de compreender na sua estrutura histórica tanto o valor de uma memória, presença do seu passado, como uma previsão-projeto do seu futuro” (1995, p.82). Contudo, penso ser frágil a estrutura de organização vigente em tal projeto cultural, pois o significado já reentrante na memória coletiva de um lugar do poder, de símbolo administrativo foi separado ou mesmo distanciado do papel moderno ao qual representará. Esclarece Argan, “o único desenvolvimento histórico é dado pela transmissão de certos significados através do certos signos arquitetônicos; mais exatamente, pelos diversos significados que nas épocas sucessivas, foram atribuídos a esses signos” (ARGAN, 1995, p.249).

O projeto Circuito Cultural Praça da Liberdade abrange também demais edificações do conjunto da praça e todas vão passar por grandes reformas, cada uma dentro de um tema especifico propõem um diferente e moderno olhar sobre o espaço publico que ocupa. Há no Brasil e em centros urbanos dinâmicos uma tendência de unir financiamento privados a projetos políticos culturais, remetendo-se a uma dinâmica econômica ligada ao sector de serviço e mercadológico.

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Para pensarmos as intervenções urbanas hoje é importante que tenhamos uma percepção não apenas urbanística ou ligada à modernidade dos espaços, mas também um olhar sobre as culturas urbanas que habitam e que fazem uso dessas localidades. Rogério Proença Leite chama a atenção para um processo de enobrecimento dos espaços urbanos, o que é compreendido como sendo uma intervenção, revitalização ou recuperação de determinados locais pelo Estado das cidades onde haja uma importância simbólica, em termos históricos ou mercadológicos. Dessa forma, Leite destaca questões de fundamental significância para pensarmos o papel desses espaços na formação de uma identidade, haja vista, a espetacularização da cultura.

Essa expressão é utilizada para compreendermos as transformações dessas localidades, no que tange suas funções públicas. Ou seja, segundo o autor, na busca por uma modernidade vinculada ao mercado e ao acumulo de capital, as interferências nos espaços urbanos, modificam centros históricos, resignificam construções os transformando em verdadeiros espetáculos culturais e paisagísticos para atrair turistas.

Contudo, o que pode ser observado é uma estratificação, uma separação do público visitante. Desse modo, é difícil pensarmos o patrimônio como algo agregador, onde a população se identifica e se sinta pertencente a aquele Estado. Assim, Rogério Leite faz uma crítica a essas políticas intervencionistas, e afirma que a própria prática de uso dos espaços prova que essa separação não impede uma interação. É o que ele chama de “contra-usos”, em outras palavras, as pessoas utilizam e transformam esses espaços à medida que nelas se identificam.

A facilidade de visualizar tais características no prédio da Antiga Secretaria da Fazenda e em todo o conjunto da Praça da Liberdade é possível se pensarmos na falta de integração funcional que a política cultural propôs para essa região. Na tentativa de responder as oportunidades contingentes, às decisões governamentais privilegiam escolhas nem sempre acertadas, pois se por um lado as facilidades de desapropriação dos prédio, visto que esse já estavam em desuso, e de reforma financiados pela iniciativa privada ajudam a dar cara nova a região que estava um pouco esquecida, por outro lado a forma como este projeto é proposto o torna integrante de um processo de ruptura de significados, ou seja, dar a um lugar já carregado de simbolismos novos signos sem dar o tempo necessário para tal.

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Referências

ARGAN, Giulio Carlo. A historia da arte como historia da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

ARGAN, Giulio Carlo. “Arte Moderna”: Tradução Denise Bottmann e Frederico Carotti – SP: Companhia das Letras, 1992, pg. 21.

BRANDI, Cesare. Teoria da Restauração. Cotia: Ateliê, 2004.

CARENA, Carlos. Ruína/restauração. In: memória/Historia. Portugal: Imp. Nacional Casa da Moeda, 1992.

FRONER, Yacy-Ara. Os conseitos de campus e hábitos como fundamentos metodológicos e a analise discursiva como pratica epistemológica. In: Os domínios da memória. São Paulo: FFLCH/USP, 2001

KÜHL, Beatriz Mugayar. História e Ética na Conservação e na Restauração de Monumentos Históricos. Revista CPC, São Paulo, v. 1, n. 1, p.16-40, 2005.

LEITE, Rogério Proença. A exaustão das cidades: Antienobrecimento e intervenções urbanas em cidades brasileiras e portuguesas. In: Revista brasileira de ciências sociais – vol 25 nº 72.

SILVA, Regina Helena Alves da. O Brasil civiliza-se. In: A invenção da metrópole. (Tese do doutoramento, 1999, USP)

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Trilhos e memória: preservação do acervo documental do patrimônio ferroviário

Mônica Elisque do CarmoCDI-IPHAN

RESUMO

Apresenta a experiência da Superintendência do IPHAN em Minas Gerais na preservação do acervo documental da RFFSA em cumprimento à Lei nº 11.483/2007, que atribui ao IPHAN o dever de “receber e administrar os bens móveis e imóveis de valor artístico, histórico e cultural, oriundos da extinta RFFSA, bem como zelar pela sua guarda e manutenção”. Descreve as ações que se iniciaram com a realização de atividades de conservação preventiva e inventário e, posteriormente, restauração das obras raras. Relata a elaboração de diretrizes para preservação do acervo documental, com o intuito de se evitar maiores perdas desses ricos registros da memória ferroviária nacional. Propõe o planejamento de centros de memória ferroviária em diversos municípios e estados do país. Reflete acerca das ações do conservador/restaurador na preservação do acervo documental. Comenta critérios de acesso e reprodução dos acervos documentais.

Palavra chave: Preservação - acervo documental - conservação-restauração, memória ferroviária

ABSTRACT

The text presents the experience of the Office Minas Gerais of IPHAN in the preservation of the RFFSA documentary collections, in the accordance to the Law nº 11.483/2007. This federal law gives the IPHAN the duty “to receive and manages movable and immovable property of artistic, historical and cultural value thats belongs to the terminated RFFSA, as well as ensure their safekeeping and maintenance”. Describes the actions that were initiated with the implementation of preventive conservation and inventory activities and, later, restoration of rare books. Reports the development of guidelines for preservation of documentary collection, in order to avoid further loss of these rich records of Railroad Heritage in several Brazilian counties and states. The actions of conservation and restoration professional in the preservation of documentary information are themes to the examination and reflection. Comments the criteria to the access and reproduction of the documents.

Key word: Preservation – document collections - conservation-restoration - railroad memory

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Introdução

A REDE FERROVIÁRIA FEDERAL SOCIEDADE ANÔNIMA – RFFSA – foi constituída como uma sociedade de economia mista integrante da administração indireta do Governo Federal, vinculada funcionalmente ao Ministério dos Transportes e criada pela Lei nº 3.115, de 16 de março de 1957, através da fusão de dezoito ferrovias regionais, com o objetivo de promover e gerir os interesses da União no setor de transportes ferroviários. Passando então seu acervo patrimonial a ser constituído, a partir das seguintes empresas: Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, Estrada de Ferro de Bragança, Estrada de Ferro São Luiz-Teresina, Estrada de Ferro Central do Piauí, Rede de Viação Cearense, Estrada de Ferro Mossoró-Sousa, Estrada de Ferro Sampaio Correia, Rede Ferroviária do Nordeste, Viação Férrea Federal do Leste Brasileiro, Estrada de Ferro Bahia-Minas, Estrada de Ferro Leopoldina, Estrada de Ferro Central do Brasil, Rede Mineira de Viação, Estrada de Ferro de Goiás, Estrada de Ferro Santos a Jundiaí, Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, Rede de Viação Paraná-Santa Catarina e Estrada de Ferro Dona Teresa Cristina.

Em 21 de janeiro de 1976, foram criadas Superintendências, como a Superintendência Regional de Belo Horizonte - SR-2, com a finalidade de dar agilidade ao sistema de descentralização da administração da RFFSA. A documentação da SR-2-Belo Horizonte produzida e recebida durante o exercício de suas funções bem como o acervo bibliográfico especializado adquirido para atendimento das demandas do seu corpo técnico, é detentora de significado que se reveste de enorme importância para a preservação da memória ferroviária, este tema será abordado neste artigo.

Na década de 90, a RFFSA foi novamente dividida passando a ser formada por doze Superintendências, sediadas nos seguintes locais: São Luís, Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Campos, Bauru, São Paulo, Juiz de Fora, Curitiba, Porto Alegre e Tubarão.

Em 1992, a RFFSA foi incluída no Programa Nacional de Desestatização, a partir de estudos promovidos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES, que recomendaram a transferência para o setor privado dos serviços de transporte ferroviário de carga. Essa

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transferência ocorreu no período 1996/1998.

As estações, em sua maioria, foram fechadas por não serem necessárias à operação ferroviária do transporte de cargas. Este fato gerou um processo de deterioração dos prédios, que, abandonados, passaram a ser depredados, o que representa ameaça ao desaparecimento de importantes exemplares. Com o acervo documental não foi diferente, pois não houve a implementação de diretrizes nem mesmo a definição de critérios mínimos objetivando a preservação desse acervo seja para as empresas que tiveram sua guarda provisória ou para os que foram deixados nos seus locais de produção e aquisição.

A RFFSA foi dissolvida de acordo com o estabelecido no Decreto nº 3.277, de 7 de dezembro de 1999 e sofreu alterações até junho de 2004. Sua liquidação foi iniciada em 17 de dezembro de 1999, por deliberação da Assembléia Geral dos Acionistas foi conduzida sob responsabilidade de uma Comissão de Liquidação, com o seu processo de liquidação supervisionado pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.

A RFFSA foi extinta em 22 de janeiro de 2007, através da Medida Provisória nº 253 e sancionada pela Lei nº 11.483, de 31 de maio de 2007.

A partir da promulgação da Lei 11.483, em 2007, o IPHAN passou a ter atribuições especificas para preservação da Memória Ferroviária:

Art. 9o Caberá ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN receber e administrar os bens móveis e imóveis de valor artístico, histórico e cultural, oriundos da extinta RFFSA, bem como zelar pela sua guarda e manutenção. § 1o Caso o bem seja classificado como operacional, o IPHAN deverá garantir seu compartilhamento para uso ferroviário.§ 2o A preservação e a difusão da Memória Ferroviária constituída pelo patrimônio artístico, cultural e histórico do setor ferroviário serão promovidas mediante:I - construção, formação, organização, manutenção, ampliação e equipamento de museus, bibliotecas, arquivos e outras organizações culturais, bem como de suas coleções e acervos;II - conservação e restauração de prédios, monumentos, logradouros, sítios e demais espaços oriundos da extinta

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RFFSA.§ 3. As atividades previstas no §2. deste artigo serão financiadas, dentre outras formas, por meio de recursos captados e canalizados pelo Programa Nacional de Apoio à Cultura - PRONAC, instituído pela Lei n. 8.313, de 23 de dezembro de 1991.

O cumprimento da Lei nº 11.483, fez com que ocorressem algumas mudanças de paradigmas no IPHAN, através da inserção do Patrimônio Ferroviário Brasileiro em suas atribuições, além de reforçar as ações propostas pelo Sistema Nacional do Patrimônio Cultural, o IPHAN tem procurado estabelecer uma sintonia entre as esferas federal, estadual e municipal, juntamente com a sociedade civil organizada colaborando para a preservação de uma identidade cultural própria que foi desenvolvida a partir das construções das ferrovias e que se prolonga com a manutenção das mesmas.

O acervo que compreende o Patrimônio Cultural Ferroviário engloba bens imóveis, tais como edifícios, glebas, leitos ferroviários, obras de arte, e bens móveis, incluindo material rodante, como por exemplo, locomotivas, vagões, carros de passageiros e outros equipamentos, como guindastes, mobiliários, bens integrados como relógios, sinos, acervos museográficos e acervos bibliográficos e arquivísticos em diversos suportes e formatos.

As ações do IPHAN

Baseado no Art. 9º, § 2º, da Lei 11.483, em 2007, a Superintendência do IPHAN em Minas Gerais, realizou a primeira vistoria técnica nos acervos documentais depositados no prédio da URBEL – SR-2, no município de Belo Horizonte, em dezembro de 2007. O acervo encontrava-se em condições inadequadas de acondicionamento e armazenamento, o local onde era a Unidade de Documentação da SR-2, havia sido lacrado e parte do acervo removido pela Secretaria de Cultura do Estado de Minas Gerais, por decisão do Ministério Público Estadual de Minas Gerais, devido a denúncias de extravio do acervo, no ano de 2006.

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IMAGEM 1–Fotografia de Mônica Elisque do Carmo. RFFSA. Rua Sapucaí, Belo Horizonte–

MG. Acervo no estado em que foi encontrado. Novembro 2007

Em dezembro de 2008, os trabalhos foram iniciados com o diagnóstico do estado de conservação, inventário do acervo bibliográfico e identificação das tipologias e datas-limite dos documentos. Na ficha de registro dos acervos foram inseridos dados sobre o estado atual de conservação e quais intervenções haviam sido realizadas. Como não havia sido definida nenhuma política para gestão dos acervos, foram definidas diretrizes que se iniciaram com os trabalhos de recuperação dos mesmos tornando-se etapa primordial, visando evitar ou minimizar as possíveis perdas e possibilitando o conhecimento do seu conteúdo. Ficou definido que não seriam apostos carimbos, os registros seriam feitos numa filipeta de papel alcalino e no próprio livro a lápis. Os livros que sofreram algum tipo de intervenção receberiam uma sinalização em forma de círculo verde na filipeta de registro, facilitando a visualização do trabalho de fiscalização. Os livros e documentos foram dispostos em estantes e foi feito um mapa topográfico para localização dos mesmos. Desta forma, havia sido cumprida a primeira etapa de recuperação e identificação da documentação para posteriormente, a realização de identificação da documentação

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histórica e processamento técnico do acervo. Já que:

Um dos primeiros passos de uma política de preservação é o inventário e análise da coleção, de modo que o gestor passa a ter real posse do acervo. Assim cada item se individualiza e seu real valor passa a ser reconhecido. Essa etapa contribui para tomada de decisão quanto às prioridades e no que tange à segurança das coleções, dando condições para articular medidas de salvaguarda.(LINO; HANNESCH; AZEVEDO, 2003, p.123)

Imagem 2 - Fotografia de Mônica Elisque do Carmo. Local: RFFSA. Rua Sapucaí, Belo Horizonte–MG. Acervo tratado. Maio/2009

O acervo que havia sido recolhido pela Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais foi devolvido em outubro de 2008 e se encontrava em pior estado de conservação do que havia sido deixado na Unidade de Documentação da RFFSA. Por isso, foi realizado um diagnóstico do estado de conservação, que determinou a realização de desinfestação por

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anoxia em parte do acervo, atividades de higienização mecânica, pequenos reparos, confecção de caixas de papel alcalino para armazenamento de alguns documentos, livros e periódicos.

Imagem 3 – Acervo CDI/IPHAN-MINAS GERAIS. Local: RFFSA. Rua Sapucaí,

Belo Horizonte – MG. Julho/2009. Acervo recebido pelo IPHAN, estava sob a guarda

da Secretaria de Cultura do Estado de Minas Gerais, em novembro de 2008.

Alguns livros bem como desenhos técnicos de vagões e locomotivas e plantas de estações que se encontravam em formato de cadernos ainda não foram restaurados, dependendo de uma nova avaliação para verificar a possibilidade e necessidade de restauração dos mesmos, devido ao péssimo estado em que se encontram.

As obras raras que haviam sido localizadas em vistoria durante a execução da primeira etapa do projeto já tiveram seu processo de restauração iniciado, tendo sido restaurados quatrocentos e quarenta volumes.

As primeiras etapas de recuperação do acervo histórico da RFFSA basearam-se nas atividades de conservação e restauração do mesmo,

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a partir do uso de técnicas consolidadas, profissionais capacitados e principalmente dentro das condições possíveis, que nem sempre são as ideais mas que:

No entanto, não cabe ao conservador perseguir os ideais da Conservação Preventiva como se fossem dogmas ou leis, mas procurar, a partir destes parâmetros, desenvolver entre os vários especialistas uma consciência da materialidade e da vulnerabilidade dos objetos, de modo a encontrar aliados e não opositores nos projetos preservacionistas. Adaptar-se à realidade das verbas, dos espaços e dos materiais que temos por obrigação cuidar, não é tarefa das mais fáceis. A partir do momento que conhecemos conscientemente e tecnicamente nossos problemas é que podermos encontrar soluções compatíveis com a nossa realidade. Caminhar na direção do ideal é um passo a mais para tentar alcançar as condições mais adequadas.(FRONER, 2001, p. 18)

Outra situação que sempre nos deparamos ao trabalharmos com acervos históricos é que os prédios também são históricos. Portanto, deve-se sempre

...respeitar as especificidades tanto do edifício quanto da coleção sob sua guarda, minimizando ao máximo o impacto das degradações por meio da adoção de alternativas equilibradas que entendam as características do acervo e da arquitetura, principalmente no que tange ao patrimônio histórico edificado que cumpre o papel de museu. (FRONER, 2001, p. 19)

As atividades da Superintendência do IPHAN em Minas Gerais visam a preservação da memória ferroviária, através da coordenação das atividades de conservação, restauração, realização de inventário desta forma subsidiando a atribuição de valor artístico, histórico e cultural, objetivando o cumprimento da do missão do IPHAN na definição de critérios de valoração para os bens Patrimônio Cultural Ferroviário. A declaração do valor histórico, artístico e cultural dos bens da extinta RFFSA estabelecidos unicamente pelo IPHAN – única entidade apta para fazer tal declaração, é instrumento de fundamental importância para garantia da preservação deste valioso acervo ferroviário brasileiro.

Importante mencionar que após várias mudanças sofridas pela RFFSA na sua estruturação até a sua liquidação e posteriormente extinção, houve

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algumas iniciativas de proteção aos seus acervos como o PRESERVE� e PRESERFE�, que foram interrompidas no decorrer do tempo. Contudo, as ferrovias deixaram marcas profundas nos indivíduos envolvidos diretamente ou indiretamente na sua constituição, provocando um importante sentido de identidade cultural própria.

A preservação do acervo documental constituído a partir da formação das ferrovias é fonte primária que subsidia estudos e pesquisas sobre a cultura de uma determinada região a partir das instalações das estações, escolas técnicas de formação de ferroviários para construção de locomotivas, vagões e ferrovias, bem como a constituição de municípios e povoados que surgiram ou se desenvolveram a partir das instalações de estações ferroviárias, constituindo suas peculiaridades e integrando o patrimônio cultural brasileiro, conferindo a essas populações um importante valor de identidade. Em alguns municípios foram criados museus, centros e núcleos de preservação e história ferroviária, conforme o interesse no recebimento e gestão dos acervos, pois

O interesse da memória coletiva e da história já não se cristaliza exclusivamente sobre os grandes homens, os acontecimentos, a história que avança depressa, a história política, diplomática, militar. Interessa-se por todos os homens, suscita uma nova hierarquia mais ou menos implícita dos documentos...(LE GOFF, 2003, p.531)

Esse acervo documental – bibliográfico e arquivístico – é dividido de acordo com a formação da estrutura organizacional da RFFSA. Estando centralizados nas sedes das Superintendências Regionais da RFFSA e na Administração Geral. A divisão dos acervos está baseada nas seguintes tipologias: Patrimonial (relatórios técnicos, estudos de implantação de ferrovias, mapotecas contendo desenhos técnicos sobre locomotivas, vagões, estações, malha ferroviárias, documentação relativa aos imóveis - desapropriações, vendas, cessões de uso, processos de reintegração de posse, termos de permissão de uso, laudos de avaliação); Jurídico (documentação relativa a processos judiciais trabalhistas e civis) e; Administrativo (recursos humanos e contabilidade, documentos administrativos e financeiros, tais como recolhimento de encargos, notas fiscais de movimentação de cargas);

A organização e disponibilização do acervo documental possibilita o

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conhecimento sobre a história de uma Instituição e a sua interelação com a sociedade.

O documento não é inócuo. É antes de mais nada, o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época da sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio. O documento é uma coisa que fica, que dura, e testemunho, o ensinamento...(LE GOFF, 2003, p. 538)

A implantação e a manutenção de Centros de Documentação deve adotar uma política de conservação preventiva dos acervos evitando-se desta forma o elevado dispêndio de recursos muitas vezes escassos, com atividades de restauração que ocorrem quando não há planejamento adequado de proteção aos acervos, acarretando em degradação através de infestações, ações dos agentes internos e externos, acondicionamento, armazenamento e manuseio inadequados.

Considerações finais

Os registros das informações (memória) que constituem o acervo documental da RFFSA tem lugar de destaque no Patrimônio Cultural Brasileiro por ser referencial importante do impacto sócio-economico causado pelas ferrovias na sociedade brasileira a partir de meados do século XIX.

A consciência e a apropriação de um bem cultural pela sociedade é fator essencial para a sua preservação.

Na constituição de bibliotecas, arquivos, museus, centros de documentação devem constar normas e procedimentos básicos que visam a preservação do acervo, sendo o fator primordial para a manutenção dos mesmos.

As Instituições de proteção a memória necessitam de profissional conservador/restaurador trabalhando de forma multidisciplinar juntamente com arquivistas, bibliotecários, museólogos, cooperando para uma ação eficaz de preservação.

Após todo esse processo de recuperação dos acervos documentais que visam à proteção da memória cultural ferroviária, faz-se necessário a continuação das diretrizes de preservação já implantadas e a normatização para acesso e

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reprodução desses acervos, pois a finalidade da preservação é socializar as informações, tornando-as acessíveis ao maior número de pessoas possível. No âmbito de uma política de preservação do acervo devem ser dadas instruções aos usuários sobre a forma correta de manuseá-lo, aumentando a vida útil dos documentos e consequentemente preservando-os por mais tempo. É indispensável que o acondicionamento, armazenamento e treinamento de técnicos da Instituição sejam realizados periodicamente. É fundamental a atualização desses profissionais contemplando questões de segurança e ações em caso de sinistros.

Quanto ao acesso e reprodução da documentação original, sua reprodução é feita com equipamentos que garantam a integridade do suporte, respeitando os níveis de acesso. É vedada a reprodução daqueles que apresentam fragilidade, e não possibilitem o seu manuseio.

Os critérios tanto para reprodução quanto relativas aos níveis de acesso que estabeleçam que a documentação será classificada como sigilosa, reservada, confidencial e ostensiva devem ser elaboradas por comissões constituídas por profissionais especialistas e que detenham o conhecimento sobre a cultura ferroviária.

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Desafios: Arte Contemporânea e Novas Tecnologias

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O papel da documentação no contexto da preservação da Arte Contemporânea1

Magali Melleu SehnEBA-Universidade Federal de Minas Gerais

Resumo:

A documentação no contexto da preservação da arte contemporânea apresenta um grau elevado de importância porque não está reduzida apenas ao registro da matéria física, mas no registro de aspectos intangíveis presentes em grande parte da produção artística atual. A complexidade está na definição dos objetivos da documentação e na reavaliação, principalmente, do papel do conservador, do artista, do curador e do documentalista no processo de registro..

Palavras chaves: arte contemporânea, documentação, artista, conservador.

Abstract

The documentation in the context of the preservation of the art contemporary presents a high degree of importance because it is not reduced only to the register of the physical aspects, but in the register of intangible aspects as sound, movement, light and specific relationship with space and context. The variability and subsequent re-installation need new to a large extent of the current artistic production. The complexity is in the definition of the objectives of the documentation and in the reevaluation of the paper of the conservator, the artist, the curator and the registrar during the process of documentation.

Key words: contemporary art, documentation, artist, conservator

Introdução

Se para as categorias mais tradicionais, os objetivos da documentação em conservação/restauração referem-se à documentação da condição física de um determinado objeto2, a documentação de obras que apresentam novas relações com o espaço e que introduzem aspectos intangíveis, como luz, som, movimento, tato e olfato, necessitam de novos métodos de captura e registro. Os objetivos de uma documentação devem estar direcionados às perguntas elementares: O que documentar? Quando documentar? Quem documenta? Como documentar? Para quem documentar? Se estas questões apresentam baixo índice de complexidade quando se trata da documentação de objetos tradicionais, outros parâmetros de análise são requeridos no contexto de obras da arte contemporânea porque a documentação torna-se uma ferramenta poderosa não apenas no contexto da restauração, mas no

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contexto da preservação: documenta-se para armazenar, para deslocar, para transportar e para (re)exibir.

O grau de importância da documentação é proporcional à complexidade de cada proposta artística. O primeiro desafio está na compreensão da proposta conceitual do artista, decifrar significados subjacentes e identificar a relevância de aspectos tangíveis e intangíveis no contexto de cada poética. O segundo desafio está na compreensão das formas operativas e suas variabilidades, considerando suas conexões com tempo, contexto e espaço.

O que documentar? Quando documentar? Quem documenta?

No contexto da restauração da arte contemporânea, admite-se reprodução, complementação e reposição de partes como solução para a recuperação da funcionalidade de um objeto. No caso específico de algumas obras cinéticas, os materiais e equipamentos podem apresentar alto índice de importância apenas quanto ao funcionamento da obra. Em outras, os materiais e equipamentos, responsáveis pelo funcionamento estão aparentes, requerendo uma análise não apenas quanto ao aspecto da funcionalidade, mas quanto ao índice de integração de motores e equipamentos à aparência total da obra. A documentação da condição inicial da obra é a unica ferramenta para o registro de aspectos materiais, métodos de funcionamento como como movimento, ruídos, som, luz, aroma, atmosfera, etc.

Dessa forma, à medida que aumenta a inserção de objetos, equipamentos, materiais efêmeros, aumenta, também, o índice de ambiguidade quanto ao valor de cada componente ao conceito da obra, sendo necessário adotar estratégias que visem à identificação de cada componente individualmente e a relação das partes com o todo como, por exemplo, no caso das ‘instalações de arte’. No contexto de algumas modalidades, as múltiplas possibilidades de apresentação no espaço e a obsolescência dos materiais ampliam ainda mais o leque para atualizações, reconstruções e recriações. O fato de serem construidas com partes, possibilita, também, a fragmentação ou o acréscimo de materiais e objetos quando são remontadas em espaços diferenciados ou quando são inseridas no contexto institucional. Outras requerem investimento especial de recursos humanos durante o período de exibição, necessitando, inclusive, de manuais de manutenção, como no caso de obras

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cinéticas já citadas e obras compostas por novas tecnologias.

Determinar o momento em que começa o processo de documentação é uma tarefa complexa porque, em alguns casos, para evitar o risco de perda de informação para a (re)exibição correta da obra no futuro, a documentação poderá iniciar durante o momento de execução da obra. Este breve destaque das características de algumas modalidades ilustra a relevância da ampliação do espectro de atuação da documentação como ferramenta para preservação da arte contemporânea que ultrapassam conceitos, métodos e técnicas tradicionais. No entanto, faz-se necessário analisar cuidadosamente cada aspecto particular do trabalho no contexto no qual foi concebido para evitar generalizações, pois nem sempre é possível dissipar as ambiguidades da relevância da preservação material ao conceito da obra sem a consulta ao artista..

O artista com fonte de informação

A pesquisa histórica e estilística de determinada obra constitui o ponto de partida para que um conservador-restaurador inicie um processo de investigação para conhecer materiais, técnicas e a trajetória de determinado artista. No caso de artistas que não estão mais vivos, as fontes secundárias como arquivos de documentação de instituições, bibliotecas, publicações, pastas de artistas, textos críticos de curadores, consultas pessoais ( curadores, amigos, familiares do artista, profissionais de galerias) são fontes primordiais para a compreensão, principalmente, de aspectos conceituais da produção dos artistas. Quando tais fontes são insuficientes para identificar materiais, procedimentos, os recursos científicos como a profusão de análises químicas e físicas propiciam uma fundamentação sólida, principalmente, no contexto da arte tradicional. Já no contexto de algumas modalidades de arte contemporânea, conforme já mencionado, faz-se necessário contar, também, com o auxílio de fontes primárias a serem capturadas via arquivos e textos de artistas como entrevistas, depoimentos, correspondências, etc.

A bibliografia sobre artistas contemporâneos ainda é bastante restrita, sendo que a maior parte é resultante de textos críticos em catálogos de exposições, jornais, revistas especializadas e coletâneas de textos críticos do próprio artista. No contexto do Brasil, nós dispomos de uma fonte primária de alta

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relevância como a produção acadêmica dos artistas com ênfase na produção artística3. Com base em algumas dissertações e teses de artistas consultadas4, foi possível encontrar informações referentes: ao percurso de reflexão de cada artista; ao referencial teórico selecionado em função das conexões da poética do artista e suas referências; aos significados iconológicos dos materiais e suas escolhas; aos procedimentos construtivos como projetos inseridos nos anexos. Obviamente, tais produções constituem um recurso a mais por oferecerem subsídios que podem ancorar, inclusive, a estruturação de entrevistas com os artistas direcionadas à preservação5.

Apesar do consenso atual entre os profissionais quanto à importância do registro das intenções dos artistas do ponto de vista da preservação, são muitas as nunças a serem analisadas em torno desta questão. É evidente que as singularidades de cada obra dvem ser analisadas sob vários ângulos, porque assim como as obras apresentam características diferenciadas sob o ponto de vista material e/ou conceitual, cada artista pode apresentar um posicionamento totalmente oposto referente a um mesmo aspecto, ou um mesmo artista pode apresentar um posicionamento diferente em relação a uma mesma obra ao longo dos anos.

Os esforços de projetos internacionais e interdisciplinares como INCCA e o projeto inside-installation 6 têm sido no sentido de elaborar metodologias para a captura sistemática das informações, junto aos artistas, como medidas preventivas. Um dos grupos de pesquisa do projeto Inside –installation denominado atividade B2 Artist Participation ressalta a importância da consulta ao artista como fonte primária, aprofundando a análise de metodologias para comunicação com os artistas, tomando como referência trabalhos de antropologia e sociologia7. Tais projetos, além proporem manuais com sugestões de questões, apresentam análises quanto aos métodos e técnicas para a captura eficiente da informação, conforme objetivos pré-estabelecidos.

Como documentar? Como armazenar e disponibilizar a informação?

Independente dos recursos tecnológicos disponíveis atualmente, a questão central está na definição dos objetivos de uma documentação que, obviamente, será estruturada com métodos diferenciados de captura, armazenamento e

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difusão da informação. Das técnicas tradicionais às sofisticadas técnicas para captura de aspectos intangíveis e técnicas utilizadas para exame geodésico8, faz-se necessário análise critica do que se almeja capturar, considerando, principalmente, o contexto econômico da instituição no qual o objeto está inserido. A definição de terminologias para gerenciar a informação e torná-la acessível constitui outro aspecto complexo e pesquisado pelo projeto internacional inside-installation já mencionado, pois a fragmentação e a falta de conexão entre arquivos documentais no âmbito de uma mesma instituição interferem no processo de preservação.

O papel dos profissionais e da comunidade artística

Por último, destaca-se a importância da reflexão em torno da preservação da arte contemporânea além do perímetro museológico, incluindo a participação da comunidade artística no processo de preservação. Obviamente, a questão apresenta um grau ainda maior de complexidade se for requerida a participação efetiva, no processo de preservação, de instituições privadas, de artistas e assistentes, de colecionadores, de famílias de artistas, ou seja, quais seriam as reais possibilidades de contar com a participação efetiva dessa comunidade? Apesar de ser uma pergunta que pode ser respondida sob diversos pontos de vista, arrisca-se apontar algumas possibilidades: auxiliar os artistas no processo de elaboração de seus acervos documentais sob o ponto de vista da preservação, apontando metodologias e técnicas viáveis; proporcionar a discussão referente à preservação da arte contemporânea no contexto acadêmico não especializado por ser uma forma indireta de difundir a informação; e promover a elaboração de projetos interdisciplinares e “contínuos” entre instituições privadas e públicas, principalmente, quanto à elaboração de estratégias de documentação.

As iniciativas de projetos interdisciplinares no contexto internacional não ilustram apenas a importância da soma de esforços, mas a importância de produzir conhecimento a partir de experiências inseridas em contextos específicos que possam ser compartilhadas. Além das possibilidades apontadas tornarem-se mais importantes ainda no contexto econômico de instituições da América Latina – estando certa que não se esgotam – ressalta-se a importância das instituições estabelecerem uma comunicação

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mais próxima com os artistas.

Considerações Finais

Faz-se necessário revisar metodologias e selecionar tecnologias em função das características de cada objeto, considerando, também, o contexto cultural e econômico no qual o objeto está inserido. As tecnologias devem ser analisadas criticamente, pois não são soberanas quanto aos processos de decisão e sim recursos que apresentam grande potencial de documentação quando combinadas entre si. A interdisciplinaridade é não é opção, mas condição para a obtenção de resultados satisfatórios.

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Notas1 Texto extraído da tese defendida pela autora A preservação de ‘instalações de arte’ com ênfase no contexto brasileiro: discussões teóricas e metodológicas. ECA/USP, 2010. 238p.

2 O processo de documentação em restauração tem por objetivo registrar o estado de conservação de um objeto antes, durante e depois de uma intervenção. Os registros escritos e fotográficos, sob a incidência de radiações diversas e sob ângulos diferenciados, fazem parte da rotina de análise de estado de conservação de obras de arte. Além da documentação fotográfica, análises químico-físicas aliadas à pesquisa históricas e estilísticas compõem o diagnóstico final. O objetivo é obter o máximo de informações referentes aos aspectos construtivos para adotar métodos e critérios de intervenção condizentes com o estado de conservação do objeto.

3 Vale ressaltar também memoriais de artista

4 NITSCHE,Maria do Carmo Gross. Pintura/desenho. Tese de Doutorado na área de Artes da Escola de Comunicações de São Paulo(prof.Dr. Walter Zanini) São Paulo,1987.

FAJARDO, Carlos Alberto. Poéticas Visuais: A Profundidade e a Superfície. Tese de doutorado (1998). Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Artes Plásticas de Escola de Comunicação e Artes da USP.

MORAES, Laura Vinci de. Dissertação Mestrado(Profa. Dr. Carmela Gross). Escola de Comunicações e Artes. São Paulo, 1999.

ACOSTA, Daniel. Paisagem Portátil: Arquitetura da Natureza Estandardizada. Tese (Profa. Dra. Carmela Gross) Escola de Comunicações e Artes.2005

KYAKAKIS, Georgia Evangelos de Almeida. Forças e Fluxus e a astúcia dos Líquidos. Tese (Profa. Dra. Carmela Gross) Escola de Comunicações e Artes/USP, 2006.

5 A criação de bancos digitais de teses nas universidades tem facilitado o acesso dessas produções.

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8 GRÜM, Maike. Measurement of installation art. Methods and Experience gained at Pinakotec der Modern. Disponível em: http://www.inside-installation.org. Acesso: 26 set.2007.

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Memórias culturais em construção: novas formas de memória em ambientes programáveis

Carlos Henrique FalciEBA-Universidade Federal de Minas Gerais

ResumoO propósito desse artigo é discutir como a criação de memórias coletivas em redes sociotécnicas, em ambientes programáveis, provoca o intercruzamento das memórias comunicativas com as memórias culturais e permite o surgimento de novas formas de memória, aqui denominadas memórias em permanente estado de construção. Palavras-chave: memórias coletivas, redes sociotécnicas

AbstractThe intention of this article is to argue as the creation of collective memories in sociotécnicas nets, programmable environments, provokes the intercruzamento of the comunicativas memories with the cultural memories and allows the sprouting of new forms of memory, called memories in permanent state of construction here.Key word: collective memories, networld

Introdução

As memórias coletivas (Halbwachs, 2006; Santos, 2001) produzidas em ambientes programáveis devem ser entendidas como produção de novos acontecimentos (Brockmeier, 2010), uma vez que se baseiam em poéticas de programação, em uma cultura de remixabilidade e na lógica de funcionamento de redes sociotécnicas. (Couchot, 2003; Musso, 2004; Santaella, 2008; Serres, 1990) O que parece acontecer, derivado dessa mistura, não é mais um resgate da memória, mas uma construção incessante de memórias culturais que se aproximam de uma memória comunicativa. (Assman, 2005; Featherstone, 2000) A partir das poéticas de banco de dados, de processos abertos e coletivos e da facilidade de uso das estruturas de programação, o registro digital passa por novos conceitos de organização, classificação e navegação (Manovich, 2001, 2008; Oliveira, s/d; Ruppel 2009). Se há cada vez mais suportes de produção de memória,

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é preciso compreender de que maneira tais suportes provocam o intercruzamento das memórias comunicativas com as memórias culturais e permitem o surgimento de memórias culturais em permanente estado de construção.

Memórias coletivas, culturais e comunicativas

Halbwachs afirma que nossas lembranças são coletivas e elas nos são lembradas pelos outros. E essa memória coletiva só permanece enquanto o grupo se mantém junto, coeso (Halbwachs, 2006). A memória de um grupo, entretanto, pode sobreviver para além da permanência desse grupo social conforme sua formação original. Através de processos narrativos de naturezas diversas as memórias atravessam gerações e funcionam como locais de contato e fricção entre passado, futuro e presente (Till, 2008; Rowe, Wertsch, Kosyaeva, 2002). Obviamente, as narrativas sobre memórias interferem no modo como as memórias coletivas atravessam gerações (Tschuggnall, Welzer, 2002; Brown, Middletown, Lightfoot, 2001). Através de processos discursivos e não-discursivos um grupo produz novas memórias coletivas sobre si mesmo, incessantemente.

Em relação aos modos narrativos associados às memórias, é possível destacar dois conceitos centrais associados ao estudo da memória como fenômeno cultural: a memória cultural e a memória comunicativa. Assman (1995) define a memória cultural como todo conhecimento obtido através de práticas sociais repetidas ao longo do tempo, que funcionam como elemento que estrutura o comportamento e a experiência de vida de um grupo social. A memória cultural seria construída pela cristalização de ritos, eventos, acontecimentos, os quais poderiam ter seus significados transmitidos através do tempo. Já Brockmeier (2002) indica uma mobilidade maior da memória cultural, uma vez que esse tipo de memória está diretamente associado aos contextos discursivos que a produzem. Essa abordagem aproxima a memória cultural da memória comunicativa. Segundo Assman (1995), a memória comunicativa é baseada na comunicação cotidiana: ela seria caracterizada por um alto grau de não especialização, instabilidade temática e desorganização. Na visão do autor, ela seria demasiadamente instável para se configurar como

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uma cultura objetivada, e logo, como elemento capaz de identificar uma coletividade. Além disso, a principal limitação da memória comunicativa na estruturação da identidade de um grupo social seria seu horizonte temporal limitado, uma vez que o horizonte da memória comunicativa se modifica diretamente com o passar do tempo. É interessante notar, entretanto, que a institucionalização que caracteriza a memória cultural tem suas bases remontadas ao dia-a-dia, embora ela se distancie da mudança diária constante em função da sua lógica de objetivação cultural.

Redes sociotécnicas e ambientes programáveis

Longe de fixar uma memória, os suportes físicos multiplicam as camadas de memória coletiva, uma vez que as variadas formas de registro dos fatos apenas intensificam a noção de que a memória não deixa de ser reconstruída, mesmo nos suportes que deveriam fixá-la (Brockmeier, 2010). Progressivamente, os modos de registro decompõem os elementos registrados e permitem sua manipulação livre, quase direta. No caso das interfaces digitais, tanto o tempo quanto o espaço tornam-se calculáveis, em função da lógica de funcionamento de uma mídia híbrida (Manovich, 2007). Os dados em formato digital podem ser manipulados de forma modular, o que permite a simulação de todas as temporalidades, bem como a idéia de que não há um espaço prévio ao espaço digital, ele aparece enquanto espaço porque são as interações sociotécnicas que o produzem. Lev Manovich (2001) afirma que as interfaces digitais produzem uma transcodificação cultural, ao associarem elementos que são próprios de uma cultura computacional com elementos que seriam mais diretamente ligados à cultura humana. Os algoritmos são utilizados para produzir informação e deixam suas marcas no modo como as informações circulam nas redes sociotécnicas (Hertz, 2009). As interfaces tornam-se cada vez mais adaptativas, mesclando a lógica de uma agência humana à lógica de uma agência maquínica (Fischer & Giaccardi, 2008). Esse modo de existência influencia e é influenciado também pelo modo de funcionamento das redes que tais interfaces criam.

Uma rede pode ser definida como “uma estrutura de interconexão instável, composta de elementos em interação, e cuja variabilidade obedece a alguma

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regra de funcionamento.” (Musso, 2004, p. 31). As regras desse ambiente, no entanto, são modeláveis, o que permite conectá-los a idéia de ambientes programáveis. Pode-se afirmar, então, que a rede é sempre temporária, porque só existe quando está em ação, quando é ativada por algum dos elementos que a compõem (Serres, 1968). Uma rede é também sempre sociotécnica, funcionando numa lógica de continuidade entre esses dois termos. No caso de ambientes programáveis, a continuidade entre sujeito e objeto e a indistinguibilidade dos mesmos surge, cada vez mais, como uma marca seminal. Dentro de tais ambientes, as memórias culturais, por conseqüência, são revestidas com elementos não tradicionais, e mostram diversas camadas temporais em conjunto, sem que haja necessariamente uma sobreposição entre elas. A memória não se encontraria mais no registro de cada instante, mas justamente na conjugação entre fatos registrados, fatos em processo de registro, e fatos passíveis de acontecerem, que surgiriam num tempo ucrônico, num tempo possível, e não mais num tempo já dado, já narrado.

Memórias culturais em construção: novas formas de memória

Andrew Hoskins (2009) utiliza o termo “on-the-fly”, para caracterizar a memória distribuída em redes digitais. Em função de se encontrar “distribuída” digitalmente, esse tipo de memória é ativamente construída e reconstruída o tempo todo, ou seja, enquanto está sendo formulada como registro de um acontecimento. Nesses ambientes, a memória cultural se aproxima cada vez mais do momento de acontecimento dos eventos, numa temporalidade ucrônica, provocando um entrecruzamento com as memórias comunicativas. Nesse sentido, os mecanismos sociotécnicos atuais de registro da memória produzem modificações instantâneas dos fatos registrados, porque os colocam em novas redes de memória a todo o momento. Podem surgir daí novas formas de memória, o que denomino memórias culturais em permanente estado de construção. Em busca desse tipo de memórias, serão analisados projetos cujo funcionamento exemplifica o que acontece quando a memória comunicativa aparece já como memória cultural, e como essa última não perde o seu status quando aparece em rede, mas ganha outro modo de existência.

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xtoWe feel fine

O projeto We feel fine (http://wefeelfine.org) se destina a explorar as emoções humanas numa escala global, segundo seus criadores. O projeto está no ar desde 2005, e sua lógica de funcionamento, de maneira resumida, é a seguinte: a cada dez minutos, um sistema faz uma busca, em blogs, por postagens que tenham as frases “I fell” ou “I am feeling”. A partir da localização das frases, o sistema as analisa e verifica se elas contêm alguma palavra de uma base de dados com 5.000 “sentimentos” pré-identificados. Quando uma correspondência acontece, o post que representa o sentimento de uma pessoa surge dentro da interface de visualização, como um círculo colorido. Se uma imagem estiver junto com o post, o círculo se transforma em um retângulo colorido. Além disso, o sistema recupera ainda informações específicas dos usuários que fizeram as postagens: idade, gênero e localização geográfica. Nessa forma de busca, acontece já uma apropriação do conteúdo de maneira que vai além da simples recuperação de informação. As variáveis de identificação básica são resgatadas para produzir experiências estéticas específicas. Outra informação que é salva diz respeito às condições do tempo do local informado no profile do usuário, no momento em que a informação é escrita. Cada círculo ou retângulo, ao ser acessado, permite ver a frase completa ou a imagem com a frase que está associada a ela. É possível ir ao blog onde está o post original, bastando usar o link que está na frase ou na imagem.

Blinks and Buttons

O projeto Blinks and Buttons foi realizado em Processing, utiliza mídias móveis e a base de dados do Flickr. A parte denominada “Blinks” é uma instalação em que fotos são projetadas numa superfície, de maneira randômica, como se estivessem jogadas em cima da mesa. Um objeto similar a um prisma é utilizado pelo usuário para se mover pelas imagens projetadas. Quando esse objeto é posicionado sobre uma foto por alguns instantes, raios de luz projetam outras fotos nas paredes da caixa em que as fotos estão “guardadas”. As imagens projetadas nos lados da caixa

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são imagens buscadas no Flickr, cuja data e hora são as mesmas daquela sobre a qual o prisma está posicionado. O projeto então cria uma refração temporal, projetando várias imagens de um mesmo momento no tempo, num mesmo local. Surgem, assim, várias camadas de memória relacionadas a um mesmo momento temporal, e associadas a um conjunto de meta-dados que serve para identificar as imagens.

Na parte denominada “Buttons”, a idéia é aproveitar a lógica de que toda foto produz uma memória, e conecta as pessoas a momentos que já viveram e pode também vir a se tornar uma memória cultural, que sobrevive para além das conexões particulares que cada um produz sobre aquela foto. A idéia do projeto é considerar a câmera fotográfica como um objeto em rede. A partir do momento em que se dispara o botão de captura, a câmera, que é um celular conectado à um servidor rodando um script de busca, inicia a busca, no Flickr, por imagens que possuem as mesmas referências de hora e data do momento de disparo do botão. Assim que uma imagem é postada no Flickr com os mesmos parâmetros, ela pode ser encontrada pelo mecanismo de busca do celular e é exibida na tela do aparelho. A foto que a pessoa que utilizou o celular vê é uma foto do Flickr, e não a “sua” foto, que serve como parâmetro de busca. E como os parâmetros de data e hora em que a imagem foi feita podem ser alterados no Flickr, essas informações começam a funcionar como elementos que podem produzir redes de contato, redes de memória. Ao alterar uma data e hora de uma imagem o que um agente dentro do Flickr está produzindo é uma nova rede de memória, se considerarmos a lógica de ação do projeto Blinks and Buttons.

Memórias culturais em ambientes programáveis: algumas conclusões...

As obras descritas permitem indicar alguns pontos-chave para caracterizar as memórias culturais em estado de construção, o que será feito à guisa de conclusão desse artigo.

O primeiro elemento relaciona-se ao modo como a dinâmica das redes perpassa a construção dos conteúdos produzidos pelos grupos sociais nesses ambientes. No caso de We feel fine, não há grupos sociais

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articulados previamente para produzir os sentimentos. A forma como a obra propõe a visualização das frases é que permite perceber o surgimento de uma memória cultural ainda não completamente ritualizada, produzida de forma descentralizada, sem hierarquia, mas que poderia ser considerada como cultural em função do modo como o projeto agrega as informações dispersas em blogs. Há aqui, ao mesmo tempo, a memória comunicativa, presente em cada blog, e a memória cultural em constante construção, uma vez que o sistema de We feel fine continua a construir novas memórias, de dez em dez minutos. A interface do projeto se associa à própria imprevisibilidade e ao pluralismo da rede para nos provocar a pensar em uma memória que é, simultaneamente, registro e criação de relações entre uma produção coletiva não-hierarquizada. Ao consultar We feel fine e utilizar os seus vários modos de visualização, o usuário produz memórias culturais derivadas de uma poética que mescla bancos de dados e programação, que cria arquiteturas de memórias baseadas em meta-dados, ou o que pode ser descrito como “metadata memories”.

O segundo elemento-chave se relaciona às interfaces fluidas utilizadas nos projetos, e o modo como elas participam da produção de conteúdo. Ao permitir o registro cotidiano permanente de fatos, a utilização dos celulares cria uma memória cultural que é atemporal num novo sentido, porque é constantemente atualizável. Os celulares podem intensificar a percepção de que a memória cultural está sempre em constante equilíbrio, entre o acontecimento e a estabilização dos significados. Esse parece ser o caso de Blinks and Buttons, em que os metadados produzidos pela câmera, que podem servir ou não para a organização sentimental e particular das imagens, se transformam em elementos de conexão com outras imagens e com outras pessoas, a partir da busca no Flickr. Bancos de dados como Flickr são conjuntos de fragmentos visuais de vidas particulares. Mas podem também se tornar grandes conjuntos de memória, dependendo da forma como são organizados, ou como colocam em contato várias pessoas ao redor do mundo. O projeto “Buttons” segue essa lógica de associar um banco de dados extenso e “impessoal” com experiências particulares e momentâneas.

O terceiro elemento que caracterizaria as memórias culturais em rede baseia-se na lógica dos meta-dados. Nos dois projetos descritos, o que

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se vê são memórias que mesclam informações cotidianas com meta-dados capturados de informações tornadas públicas pelos seus próprios criadores. Assim, a memória cultural aí construída não termina nunca de se fazer, porque os participantes da rede podem sempre alterar os seus meta-dados, e estão, cotidianamente, postando novas informações na rede, sem necessariamente levarem em conta que elas podem ser agrupadas a partir de parâmetros comuns. Isso torna necessário repensar o próprio termo memória cultural como algo que deveria manter certo caráter de imutabilidade física ao longo de um longo período de tempo.

Como Veronesi & Gemeinboeck (2009) destacam, as tecnologias móveis produzem uma re-incorporação da memória nas atividades cotidianas. As interfaces móveis, associadas à lógica das redes e ao contexto físico em que as informações são experimentadas, permitem que diferentes temporalidades co-existam em um mesmo ambiente, criado pelo uso cotidiano. Esse fato demonstra que as memórias culturais em permanente construção enfatizam a importância das ações diárias de produção de informação, sejam elas em rede ou em locais físicos (Souza e Silva, 2004).

Os ambientes programáveis, associados a tecnologias móveis de produção e disponibilização de informação, sugerem a necessidade de um olhar mais cuidadoso sobre o modo como já estão sendo construídas as memórias do futuro, e como tais memórias podem ser mais ou menos voláteis, em função da intensidade do uso que delas fizermos. Os projetos permitem perceber como as interações em rede criam, efetivamente, uma nova arquitetura para as memórias. Ou dito de maneira melhor, uma arquitetura com e através das memórias, espaços de memória instáveis, programáveis e cujo modo de existência talvez possa ser descrito em uma frase, que deixo aqui a título de conclusão temporária: todo uso provoca uma memória.

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ANASTILOSE INFORMÁTICA

Anamaria Ruegger Almeida Neves EBA-Universidade Federal de Minas Gerais

RESUMO

Busco um equilíbrio entre o Pensamento e a Tecnociência. Como restauradora de obras de arte tenho a preocupação com as decisões tomadas nas intervenções restaurativas, principalmente nos Tratamentos Pictóricos. Elas precisam ser antecedidas e acompanhadas de um juízo crítico, pois as obras de arte estão representadas na nossa cultura, não só pela estética, mas também, pela sua história como testemunhos de certo tempo e lugar. Kant (1724-1804) com a terceira crítica, a “Crítica da faculdade do juízo” me ajuda a compreender, e a fortalecer meu pensamento para as tomadas de decisão. Para equilibrar a teoria e o contexto, escolho como exemplo de restauração, a técnica de Anastilose Informática, utilizada na recuperação dos afrescos de Andrea Mantegna em Pádua,Itália.

PALAVRAS-CHAVE: Arte, Memória, Teoria, Restauração, Decisão.

ABSTRACT

I look for a balance between Thought and Techno-science. As an art conservator, I am worried about the decisions for restoration treatments, mainly the pictorial ones. Those decisions taking needs to be preceded and accompanied by a critical judgment because the art works are represented on our culture by their aesthetics and history as witnesses of their time and place. Kant (1724-1804) with his third critics, the “The Critics of the faculty of judge”, help me to understand and also to reinforce my judgment for the decisions taking. To have a balance between theory and context, I selected as a restoration example, the Computer-based Recomposition process developed and carried out for the Andrea Mantegna frescoes in Padua, Italy.

KEY-WORDS: Art, Memory, Theory, Restoration, Decision.

Introdução

Durante a Segunda Guerra Mundial, mais precisamente no ano de 1944, um bombardeio destrói parte da capela Ovetari em Pádua, Itália, atingindo os afrescos pintados por Andrea Mantegna (FIG.01).

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Fig.01 - Destruição da capela pelo bombardeio. Fonte: Jornal Il Sole 24 ore de 10 de setembro, 2006:37

Na época, o restaurador e teórico Cesare Brandi(1906-1988)1 cuidou dos fragmentos recolhendo e restaurando parte da pintura. Entretanto, cerca de 80.000 fragmentos foram guardados em caixas. Somente na década de 90 é que os fragmentos do afresco voltaram a ser objeto de pesquisa. Na Universidade de Pádua, desenvolveu-se o processo de Anastilose Informática com o objetivo de recolocar os fragmentos e reconstruir o afresco.

Porém, antes de comentar o resultado e a metodologia empregada para as comemorações de 500 anos da morte de Mantegna (1431-1506), em 2006, quero fazer um exercício com a Arte da Memória, seguindo Yates(1899-1981)2 :

Em um banquete que dava um nobre de Tesalia, chamado Scopas, o poeta Simônides de Ceos cantou um poema lírico [...] Levantou-se do banquete e saiu para o exterior. Durante sua ausência, o teto da sala de banquete desmoronou deixando amassados e debaixo das ruínas, mortos, Scopas e todos seus convidados; os cadáveres ficaram tão destroçados que os parentes que chegaram para reconhecê-

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los para o sepultamento, foram incapazes de identificá-los. Porém, Simônides recordava os lugares em que eles estavam sentados na mesa e foi por isso capaz de identificar para os parentes, quais eram seus mortos [...] E esta experiência sugeriu ao poeta os princípios da Arte da Memória, da qual se considerou inventor. Reparando que foi mediante sua lembrança dos lugares nos quais os convidados haviam estado sentados, que ele foi capaz de identificar os corpos, se deu conta de que uma disposição ordenada é essencial para uma boa memória. (YATES, 2005, p.17)

Aprendi com esta história que para fortalecer a memória o melhor é selecionar lugares e imagens do que se deseja lembrar e guardar essas imagens em lugares ordenados de modo que a ordem dos lugares nos traga as imagens que desejamos lembrar. Encontro o Teatro de Giullio Camillo (1480-1544)3 que Almeida4 em seu livro O teatro da memória Giullio Camillo, assim o descreve:

Ao morrer em 1544, Giullio Camillo Delminio deixou aos leitores, em L´idea del Teatro, o projeto de uma grande enciclopédia do saber, uma fábrica da memória universal, composta dos mais notáveis textos e imagens do tesouro da filosofia, da literatura, da ciência, das religiões, das artes. Uma classificação hierarquizada e articulada do saber universal, para ajudar a memória e propiciar ao praticante da Arte da Memória o seu domínio, que tomaria a forma de um verdadeiro Teatro do Mundo. (ALMEIDA, 2005, p.13)

Com essas referências organizo esse texto, que imagino como um Banquete. Apresento os convidados que escolhi para ocupar os lugares na mesa do grande salão dentro da capela Ovetari, em Pádua, decorado com o afresco de Andrea Mantegna. A mesa está montada de forma que todos os lugares favorecem uma boa visão do afresco recentemente restaurado.

Na cabeceira da mesa está o próprio artista atento para defender sua pintura que se apresenta muito fragmentada. Logo ele tão vaidoso de suas obras inspiradas na arte ad antica, que gostava de pintar um drapejado característico greco-romano nas roupas de suas figuras que, segundo seus parâmetros, davam valores nobres às suas criações. Não é por menos que logo após pintar os afrescos em Pádua foi contratado para ser o pintor da corte de Ludovico Gonzaga em Mântua.

Vasari(1551-1574), que escreveu sobre a vida dos artistas, tem um capítulo

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dedicado à Mantegna5. É interessante notar que ao descrever a vida dos artistas e suas principais obras mencionava, ocasionalmente, a técnica utilizada e, muito raramente, as restaurações realizadas em obras de arte. Mas, foi com surpresa que encontrei um comentário sobre a restauração realizada por Sodoma na pintura A Circuncisão de Signorelli6. Vasari comentou que a pintura ficou pior depois do tratamento de pequenas perdas da policromia e que obras feitas por grandes mestres não deveriam ser restauradas por quem não tem competência.

Em Volterra, pintado em afresco na igreja de São Francisco, acima do altar da Companhia, está a Circuncisão do Senhor, que está ainda muito bonita, se bem que o menino, que foi deteriorado pela umidade, foi refeito por Sodoma muito menos belo. E, em verdade é melhor ter pouca coisa feita por um homem excelente, mesmo que rasurado, do que ser retocado por quem sabe menos. (VASARI, 1550)

Voltando à restauração do afresco, o processo foi desenvolvido no Departamento de Física da Universidade de Pádua e consiste em fazer um mapeamento da posição dos fragmentos através da informática e de reconhecimento das imagens com a finalidade de estabelecer quanto da parte original é possível de se reconstruir realmente e, qual a qualidade do resultado final.

Segundo Dr. Toniolo7 ,um dos responsáveis pelo processo:

Depois das tentativas efetuadas logo após a guerra e que não tiveram continuidade, fomos buscar uma solução que usasse a tecnologia informática devido a potencia de cálculo disponível nos nossos dias e o avanço do estudo da matemática no setor de tratamento da imagem digital. Por Anastilose Informática se entende um procedimento que com a ajuda de um algoritmo, executado em um computador, opera em cima de uma representação digital de uma imagem e do seu fragmento e é encarregado de calcular automaticamente e com boa aproximação a posição e a orientação de onde originalmente se encontrava cada fragmento. (TONIOLO, 2006, p.16, 17)

Para tal todos os fragmentos foram fotografados com câmeras digitais formando um banco de dados (CDs) quando foi possível calcular pelo computador o número exato de fragmentos: 80.735 com dimensões superiores a 01 cm². Verificou-se que a maioria dos fragmentos tem a

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dimensão entre 05 e 06 cm². (FIG. 02)

Fig. 02- Caixas de fragmentos com detalhes que ajudam na identificação da pintura

Fonte: TONIOLO, 2006: 161

Apresento, a seguir, outros convidados que participarão do banquete. Cada um representará um pensamento, uma época, enfim, personagens que escolhi para auxiliarem na elaboração do meu pensamento formando um juízo crítico sobre as restaurações realizadas em obras de arte.

Começo a servir o banquete.

Alguns teóricos da Restauração chegam afobados para garantir um bom lugar à mesa. O primeiro é Viollet le Duc8 acompanhado de seu maior crítico, John Ruskin9. A definição de Viollet le Duc para o termo Restauração no Dicionnaire Raisonné de l’Architecture Française du XIe au XVIe Siècle, publicado em dez volumes entre 1854 e 1868, é a seguinte: “A palavra e o assunto são modernos. Restaurar um edifício não é mantê-lo, repará-lo ou refazê-lo, é restabelecê-lo em um estado completo que pode não ter existido nunca em um dado momento.” (apud KUHL, 2000, p.17)

A posição de Viollet le Duc com este enunciado, suscita muitas críticas até

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os dias de hoje. E por isso quando vejo a restauração do afresco na capela Ovetari lembro-me dele. Seu contemporâneo, John Ruskin, tem uma posição diametralmente oposta e publica na Inglaterra, em 1849, The Seven Lamps of Architecture, texto no qual faz pesadas críticas às restaurações realizadas por Viollet le Duc. Ruskin é o expoente de um movimento que prega absoluto respeito pela matéria original, que leva em consideração as transformações feitas em uma obra no decorrer do tempo, sendo a atitude a ser tomada a de simples trabalhos de conservação, para evitar degradações, ou, até mesmo, a de pura contemplação.

Já no século XX, principalmente em decorrência das duas grandes guerras mundiais, a Teoria da Restauração se fortalece com a presença de Cesare Brandi que escreve seu importante livro Teoria da Restauração, traduzido para diversos idiomas, inclusive para o português. Neste, o autor sintetiza com sabedoria a definição que vai ser o fulcro de todas as citações teóricas na área:

Como produto da atividade humana, a obra de arte coloca, com efeito, uma dúplice instância: a instância estética que corresponde ao fato basilar da artisticidade pela qual a obra de arte é obra de arte; a instância histórica que lhe compete como produto humano realizado em um certo tempo e lugar e que em certo tempo e lugar se encontra (BRANDI, 2000, p. 29)

Ter reconduzido o restauro a relação direta com o reconhecimento da obra de arte como tal, tornou possível dar a sua definição: “A restauração constitui o momento metodológico do reconhecimento da obra de arte, na sua consistência física e na sua dúplice polaridade estética e histórica, com vistas à sua transmissão para o futuro.” (BRANDI, 2000, p.30)

Brandi acomoda-se em lugar de destaque na mesa do banquete, entre os teóricos, pois ele estava lá, em 1944, no momento do bombardeio que destruiu a parede da capela com a pintura em afresco, deu especial atenção ao incidente e foi o responsável pela coleta dos fragmentos. Começou a fazer a restauração no Instituto Central de Restauro em Roma e depois guardou em caixas os 80.000 fragmentos restantes.

E assim, estava Brandi ocupando seu lugar na mesa do banquete, sentindo-se destacado e importante, afinal, neste estudo, ele também tem dupla polaridade: a de ser o primeiro restaurador do afresco e também o

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teórico, aquele que diria, vendo o resultado da restauração do afresco, a última palavra: “O restauro deve permitir o restabelecimento da Unidade Potencial da obra de arte, sem produzir um falso histórico ou um falso artístico e sem anular os traços da passagem da obra de arte pelo tempo.” (BRANDI,2000, p. 41).

Nesse momento, para garantir seu lugar à mesa e se servir do banquete, chega Salvador Muñoz Viñas representando o século XXI com seu recente livro Teoria contemporânea da Restauração. Viñas, depois de muito estudar os teóricos avalia, ponto a ponto, os conceitos, suas contradições, suas afirmações, para atualizá-los à contemporaneidade. Ele mesmo explica isso na introdução de seu livro:

Este texto não é completamente inocente e neutro. Falar da teoria contemporânea da restauração implica que existe uma teoria da restauração que não é contemporânea, é dizer que existe uma teoria da restauração que pertence ao passado (e por isso mesmo provavelmente esteja obsoleta) e que existe uma teoria, distinta da anterior, que é atual e que responde aos problemas de hoje desde uma perspectiva do nosso tempo (VIÑAS, 2003, p.13)

Para ele a restauração de obras de arte é uma atividade de difícil definição. Para entendê-la é preciso referir-se tanto à própria atividade, como à natureza de seus objetos. Esses têm em comum sua natureza simbólica ou historiográfica. O caráter simbólico é parte essencial da Restauração, cujos objetivos e limites estão vinculados à manutenção e recuperação dessa capacidade e é o que a diferencia de outras atividades similares como reparação, repinturas ou remendos. Para Viñas, a Teoria contemporánea de la Restauraión oferece ferramentas conceituais mais flexíveis e adaptáveis para o sentido comum de todos os envolvidos.

E assim estão esses teóricos ocupando seus lugares conversando e definindo os paradigmas da Restauração de Bens Culturais. A luz que incide sobre o afresco varia de acordo com a passagem do tempo e, muitas vezes, dificulta a visão.

Do outro lado da mesa, ocupam seus lugares alguns filósofos, pois entendem que é na Filosofia que a Arte deve ser discutida. O primeiro a chegar é Kant (1724-1804) que havia terminado de escrever a sua terceira crítica, a Crítica da Faculdade do Juízo e estava impregnado do Juízo Estético

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que é uma investigação aos Juízos Reflexionantes. Não é por menos que Kant está orgulhoso, pois aqui terá a oportunidade de verificar se suas idéias sobre a Analítica do Belo e do Sublime vão se confirmar.

Ao seu lado na mesa do banquete, está Goethe (1749-1832) que é seu amigo e também se deixa influenciar pela Crítica do Juízo. Após ter feito sua viagem à Itália, onde os estudos da pintura de paisagem lhe permitiram uma visão sintética em que a ciência aparece como conhecimento sobre a forma e, a arte expõe as leis naturais através da imagem, Goethe demonstra seu interesse tanto pelas artes como pelas ciências naturais. Nos Escritos sobre Arte (Schriften zur Kunst) o autor escreve:

a obra de arte constitui um mundo que lhe é próprio, ela não rivaliza a natureza, mas procura nela o ideal, a razão de seu próprio ser, a favor do ser humano como um produto mais elevado da natureza. Na arte se realiza uma natureza originária, além do mero natural. (GOETHE, 2005, p.22)

Continua dizendo que:

a arte não empreende uma disputa com a natureza em sua amplitude e profundidade, ela se atem à superfície dos fenômenos naturais... Ambas, a obra de arte e o produto da natureza, embora se relacionem, possuem o seu modo de ser neles mesmos, são infinitos em si mesmos... (GOETHE, 2005, p.22)

Para Goethe, toda investigação científica deveria basear-se em uma observação atenta da natureza e na classificação de fenômenos. Essa classificação seria o momento primeiro do conhecimento sobre o mundo natural, resultando num processo de separação daquilo que aparece como diferente e aproximação ou união, daquilo que se revela como semelhante, num processo de ordenação das formas.

Goethe também visitou a capela Ovetari em 27 de setembro de 1786, quando viajou à Itália e escreveu assim sua experiência:

Na igreja dos Eremitas vi pinturas de Mantegna - um dos mestres antigos - que me espantaram. Que presente mais agudo e preciso apresentam! Foi desse presente absolutamente verdadeiro - não, digamos, aparente, de efeitos ilusórios, apelando apenas para a imaginação, mas um presente sólido, puro, lúcido, minucioso, consciencioso, sutil, bem definido e contendo ao mesmo tempo algo

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de austero, diligente, custoso - que partiram os pintores subseqüentes, conforme pude observar em pinturas de Tiziano, o que permitiu à vivacidade de seu gênio, à energia de sua natureza - iluminada pelo espírito dos predecessores, alicerçada em sua força -,alçar-se cada vez mais às alturas, ergue-se do chão para produzir formas celestiais, mas verdadeiras. Foi assim que a arte se desenvolveu posteriormente aos tempos bárbaros. (GOETHE, 2005, p.73)

Enquanto conversam, chega Arthur Danto (1924). Ele vem representar a Filosofia no século XX. Para ele:

Se é verdade, como penso que é, que a filosofia tem um objeto próprio, e que portanto, nem todo assunto lhe é pertinente, a investigação do fato de que a arte se presta espontaneamente ao tratamento filosófico pode nos ensinar alguma coisa a um só tempo sobre a filosofia e a arte.... Seja como for, a definição da arte tornou-se parte integrante da natureza da arte, e de modo bem explícito. Em certa medida, a definição da arte sempre foi uma preocupação filosófica embora não em conseqüência de um especial interesse filosófico em dar definições, pois a filosofia não se reduz à lexicografia, e a pergunta que nos interessa pode ser enunciada da seguinte maneira: por que a arte é uma das coisas que os filósofos se preocuparam em definir? (DANTO, 2005:99)

Portanto, a filosofia vai se ocupar da arte, tornando-se disciplina como a Estética e a Filosofia da Arte e, até certo ponto, credenciá-la. Para Danto, a arte do século XX é desafiadora e ele está presente ao banquete para relacionar a arte antiga representada na pintura do afresco de Andréa Mantegna com a solução encontrada para a restauração e tentar entende-la, talvez, como Arte Moderna e Contemporânea.

Bem à frente de Danto, na mesa do banquete, Kurt Gödel(1906-1978) ocupa seu lugar, porque a ele também interessa o resultado alcançado através da Anastilose Informática. Estão frente a frente, pois são contemporâneos do mesmo revolucionário século XX. Gödel é integrante do Círculo de Viena, que juntamente com outros matemáticos e filósofos serão os iniciadores do Positivismo Lógico. Seus famosos estudos como os Teoremas da Incompletude, revolucionaram a Matemática, a Lógica, a Filosofia, a Lingüística e a Computação. A idéia simples e genial de Gödel

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é a possibilidade de expressar os paradoxos usando linguagem matemática.

Como é natural, o Teorema de Gödel teve um efeito eletrizante nos lógicos, nos matemáticos e filósofos interessados nos fundamentos da matemática pois demonstrava que nenhum sistema fixo, por mais complicado que fosse podia representar a complexidade dos números inteiros: 0,1,2,3...Os leitores de hoje poderão não experimentar diante disto a mesma perplexidade que dos de 1931, já que neste ínterim nossa cultura absorveu o Teorema de Gödel, junto com as revoluções conceituais da relatividade e da mecânica quântica, e suas mensagens filosoficamente desorientadoras tem chegado ate o grande público ainda que embotadas pelas várias traduções (e quase sempre de ofuscação). A atitude geral dos matemáticos de hoje consiste em não esperar resultados limitados; mas em 1931 a coisa caiu como um raio no seco. (HOLSTADTER, 1989, p.21)

E porque estaria esse matemático, fazendo parte do banquete e tão interessado na restauração do afresco?

Eu o convidei, pois o conheci do Teorema da Incompletude através do livro Gödel Escher e Bach de Douglas Holfstadter(1989) em um estudo que inclui as fugas nas músicas de Bach e as xilogravuras de Escher, (1898-1970) quando analisa a questão de fundo e figura. Assim, Gödel entrou no banquete na busca de seus paradoxos matemáticos. Imagina se a fotografia que serve de suporte para os fragmentos do afresco estaria fazendo um jogo de figura e fundo e pergunta para si mesmo: Até onde vejo a pintura de Andréa Mantegna e o que está mais evidente, a pintura ou a fotografia da pintura? (FIG.03)

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Fig.05 – Detalhe afresco depois da restauração. Fonte: Jornal Il Sole 24 ore de 10 de setembro, 2006:16

Um jogo interessante, pois a fotografia é em preto e branco e os fragmentos coloridos o que diferencia, e muito, do jogo de fundo e figura nas xilografias de Escher. E continuou imaginando se aplicava aí o seu famoso Teorema da Incompletude.

Enquanto Gödel conversa com Goethe, vem ocupar seu lugar à mesa Cennino Cennini (1370-1440), sentando-se perto de Andrea Mantegna. Ele, que entende tanto das técnicas pictóricas e principalmente do afresco, quer estar presente à mesa do banquete para pensar o que tem a sua frente, ou seja, a restauração do afresco pintado por Andréa Mantegna na Capela Ovetari. E lembra, em todo o trabalho que é necessário para se pintar um

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afresco: as três argamassas, cada uma com sua composição; a transferência do desenho para a parede; a pintura com os pigmentos diluídos em água e a sua aplicação no reboco ainda úmido para poder aglutinar o pigmento e com isto transformar todo esse último reboco em uma espessa camada pictórica. Compara a espessura do fragmento com a lisura do material sintético onde foi impressa a fotografia do afresco. Impressiona-se. Ele era professor da arte do afresco, tinha grande admiração pelos afrescos de Giotto,(1266-1337) em particular aos pintados na Capela Scrovegni e, portanto, sabia muito bem o que era aquela técnica pois ele mesmo a descreveu12:

Como trabalhar na parede em afresco e em que ordem, e como pintar ou colorir um rosto juvenil. Em nome da Santíssima Trindade, quero iniciar-te na arte de colorir.Começarei pelo trabalho na parede, informando-te o modo de proceder, passo a passo. Quando quiseres pintar sobre o muro, que é o trabalho mais bonito e doce que existe, consiga, antes de tudo, a cal hidratada e areia, ambas bem peneiradas. Se a cal é fresca, requer duas partes de areia por uma de cal. Misture-as bem uma e outra com água para que permaneçam molhadas entre quinze e vinte dias. E deixe-as repousar uns dias para que expulsem o fogo: que quando está tão viva solta a imprimação que fizeres com ela. Quando estiver pronta, limpa bem e molha a parede, que nunca será demasiado; pega a cal empastada, paleta por paleta e imprima primeiro uma ou duas vezes, ate que a parede fique totalmente lisa. Depois, quando quiseres trabalhá-lo.(..) (CENNINI, 1988, p. 112)

Assusta-se, tenta ver o afresco restaurado, mas por mais que quisesse ver a pintura vê a fotografia. Assim como Cennini, vejo também a fotografia em preto e branco que tem a função de fundo, e está aqui como figura e, os fragmentos da pintura em afresco que estão colados sobre a fotografia e que deveriam ser a figura não se apresentam como tal, pois há uma perturbação visual, talvez pela pequena quantidade de fragmentos. Há também uma inversão de comunicação porque o que vejo é uma fotografia com interferências que prejudicam vê-la. Mas essas interferências são justamente formadas pelos fragmentos do afresco e que deveriam ser a Imagem Agente, a razão do próprio restauro!

Penso no jogo de figura/fundo das gravuras de Escher, mas deixo esse

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pensamento de lado. Busco apoio no Teorema da Incompletude de Gödel, percebo que se a solução não foi encontrada numa primeira base (afresco fragmentado), ter buscado outra base (a fotografia) que pudesse sustentar a solução, também não resolveu pois a leitura estética do afresco ficou prejudicada e não posso esquecer que uma pintura se transforma em obra de arte pela sua Apresentação Estética.

Nesse momento cito Kant no Juízo de Gosto, quando afirma que os juízos precisam ser universais, pois uma obra de arte não se fecha em si mesma. Se penso nos teóricos da restauração, lembro-me de Viollet Le Duc quando afirmou que uma restauração pode colocar a obra em uma situação que nunca existiu antes... e de Brandi quando afirma a necessidade de se obter a unidade potencial da obra de arte... Não posso esquecer-me da Frances Yates que se acomodou na mesa do banquete, bem a frente de Andrea e chamou Giullio Camillo para estar ao seu lado neste momento em que a memória precisava ser recuperada e perguntava: Onde está a memória da pintura do afresco? Ela está presente somente na fotografia? E Giullio, com o projeto do Teatro da Memória nas mãos, busca em seus degraus uma resposta. Muitas dúvidas pairam na sala na sala de banquete: “onde está a Imagem Agente da pintura?; Qual a pedagogia visual da restauração?”

Jauss13,( 1921-1997) resolveu participar porque queria ver de perto a pintura restaurada e gostaria de esclarecer um pouco as dúvidas. Senta-se perto de Danto e os dois conversam sobre a Estética da Recepção. Jauss quer entender como se apreciou e se aprecia uma obra de arte em momentos distintos de realidades históricas. E este era um exemplo que veio sobre medida para a sua reflexão.

Ao contrário da tradição, ele não concorda com uma história da arte unívoca, que pressuponha a mesma experiência do Renascimento, quando foi pintada por Andrea Mantegna, até nos dias de hoje. Ele compreende como funcionam as ressignificações na experiência de fruição da obra de arte e, para isso, se declara convicto de que a experiência relacionada à arte não pode ser privilégio dos especialistas e que a reflexão sobre as condições desta experiência tampouco há de ser um tema exclusivo da Hermenêutica Filosófica ou Teológica.

Para ele a formação do Juízo Estético se baseia nas instâncias de efeito

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e recepção comparando-se os “dois efeitos” o atual e o desenvolvido historicamente, ou seja, a obra ao longo do tempo.

O Banquete está servido, os convidados declamam suas falas enobrecidas pela História.

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Notas

1 Cesare Brandi (1906-1988). Organizador e diretor do Instituto Central de Restauro, desde a sua criação até 1960. Nascido em 8/4/1906 em Siena, tinha apenas 33 anos quando se tornou diretor do ICR. Diplomado primeiramente em Jurisprudência e depois em Letras e Filosofia, estava com 24 anos quando foi encarregado pela Superintendência de Monumentos e Galerias de Siena a redigir o catálogo da Régia Pinacoteca. Em 1933 torna-se supervisor geral da Superintendência de Antiguidades e Belas Artes de Bolonha. Em 1934 obtém a livre docência em História da Arte Medieval e Moderna. Deve-se à Brandi, acima de tudo, a elaboração e divulgação da sua inovadora Teoria da Restauração que por um lado orientou e coordenou todas as atividades do Instituto e, por outro, atraiu para a escola romana a atenção de toda a comunidade de restauradores italianos e estrangeiros. Deixou a imagem de um diretor muito presente, mas jamais obsessivo, autorizado, mas não autoritário, atento tanto aos problemas pessoais como aos profissionais, rigoroso na teorização e na prática da restauração. De grande cultura, Brandi dialoga tanto com os cientistas quanto com os teóricos, sabendo perfeitamente o que pediu a uns e a outros, e sob sua direção estabeleceu-se no Instituto um método de trabalho baseado na estreita colaboração entre todos, reduzindo ao máximo as amplas áreas de incerteza que impediam a realização de uma Restauração crítica e científica. Com sua morte, em 1988, interrompeu-se um grande fluxo de energia crítica. (dados recolhidos do livro de Domenico de Massi A emoção e a Regra, pp.. 308, 309)

2 Frances Yates (1899-1981), historiadora britânica que lecionou por vários anos na Universidade de Londres. Seus livros Giordano Bruno e a Tradição Hermética e A Arte da Memória são excelentes contribuições para o meio acadêmico.

3 Giulio Camillo (1480-1544) pode ser considerado um sincretista. Seu extenso e proliferante saber revela leituras de várias filosofias e literaturas, que se agregam a um intenso núcleo hermético. (ALMEIDA, 2005: 15)

4 Milton José de Almeida é mestre e doutor pela USP, professor na Unicamp e autor dos livros: Teatro da Memória de Giulio Camillo; Imagens e Sons: A Nova Cultura Oral; Cinema: Arte e Memória.

5 Andréa Mantegna nasceu na ilha de Carturo, perto de Vicenza, segundo filho do carpinteiro Biagio. Aos onze anos começou como aprendiz de Francesco Squarcione, um pintor de Pádua, cuja vocação inicial de alfaiate foi suplantada pela sua paixão pela arte clássica e antiga. (1511-1574)

6 Luca Signorelli (1445-1523), pintor renascentista italiano, um dos grandes mestres da escola da Umbria.

7 Domenico Toniolo é físico da Universidade de Pádua integrante do Progetto Mantegna e

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responsável pela elaboração do processo de Anastilose Infomatica.

8 Viollet Le Duc (1814-1879)

9 John Ruskin (1819-1900)

10 Salvador Muñoz Viñas (1951), professor de Teoria da Restauração na Universidade Politécnica de Valencia, Espanha.

11 Arthur Danto, filósofo americano que se ocupa em entender a arte contemporânea, nasceu em 1924. É professor na Universidade de Columbia, USA.

12 Cennino Cennini Libro del Arte tradução espanhola p.112. Este livro escrito originalmente em Italiano no ano de 1437 pode ser considerado como um último receituário antigo, que se diferencia de outros por seu caráter metódico que confere ao livro um estilo completamente distinto.

13 Hans Robert Jauss, acadêmico alemão notável por seu trabalho da Teoria da Recepção.

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Referências

ALMEIDA Milton José. O Teatro da Memória de Giulio Camillo. Campinas: Editora da Unicamp, 2005. 324p.

BRANDI Cesare. Teoria da restauração. Tradução Beatriz Mugayar Kühl. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005. 261p.

CENNINI Cennino. El libro del arte. Madrid: Akal SA, 1988. 264p.

KANT, Emmanuel. Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.

TONIOLO, Domenico. Mantegna nella chiesa degli Eremitani a Padova: Il recupero possibile. Pádua: Fondazione Cassa di Risparmio di Padova e Rovigo, 2006.

VIÑAS, Salvador M. Teoria contemporânea de la restauración. Madrid: Editorial Sintesis, 2003. 205p.

YATES, Frances A. El arte de la memória. Tradução Ignácio Gómez de Liaño. Madrid: Siruela, 2005. 495p.

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Arte/Subjetividade; Ciência/Preservação

Gabriel Malard Monteiro Doutorando PPGA-EBA-UFMG

Evandro Lemos da Cunha (Orientador)

Resumo:

A arte contemporânea apresenta dois principais desafios para conservação. No campo científico ela apresenta materiais novos, sintéticos, orgânicos, efêmeros e usados em combinações inesperadas. No campo teórico ela propõe conceitos novos, que vão da apropriação ao desejo por deterioração. Este artigo busca refletir sobre a construção de valores no campo das artes contemporâneas, e quais os conflitos que estes podem ter com aqueles construídos no campo da conservação e do restauro.

Palavras-chave: Conservação, restauro, Arte contemporânea.

Abstract:

Contemporary art presents two main challenges for conservation. In the scientific field it presents new, synthetic materials, organic, ephemeral, sometimes in unexpected combinations. In the theoretical field it proposes new concepts, ranging from appropriation to the desire deterioration. This essay reflects on the construction of values in the field of contemporary arts, and what conflicts they may have with those built in the field of conservation and restoration

Key words: Conservation, restoration, contemporary art

Introdução

Pode-se dizer de uma maneira bastante sintética que a disciplina conservação e restauro é dividida em dois grandes campos: o campo científico e o campo teórico. O primeiro campo se ocupa de desenvolver meios práticos para agir sobre o desgaste provocado pelo tempo. O segundo campo se ocupa de eleger os objetos (ou ações humanas) que deverão ser preservados ou reconstituídos por tais meios práticos.

Ambos os campos encontram diversas dificuldades quando se deparam com os objetos (ou ações) produzidos pela arte contemporânea, em especial com a arte produzida após a década de 60. As razões para essas dificuldades podem ser descritas de maneira bastante direta: a arte contemporânea usa materiais muito variados (inclusive em combinações) e

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apresenta conceitos que podem ser conflitantes com a idéia de preservação.

A intenção deste trabalho é refletir sobre essas dificuldades, adotando como base a subjetividade de valores na arte, ou seja, a idéia de que arte não é um valor objetivo e absoluto, que esses valores não estão na essência da arte, mas que são, ao contrário, forjados (sociologicamente) através dos discursos de artistas, curadores, intelectuais, comerciantes de arte e instituições artísticas.

A reflexão será conduzida através da análise de alguns trabalhos de artistas contemporâneos que oferecem desafios teóricos e práticos para os restauradores.

Uma serie de problemas podem ser encontrados quando a Ciência da Conservação encontra no seu caminho os objetos e conceitos produzidos pela arte contemporânea. Alguns desses problemas estão ligados ao fato dos artistas usarem materiais novos ou produtos perecíveis, além de técnicas variadas que podem combinar elementos e procedimentos imprevisíveis. Como se isso já não fosse uma dificuldade imensa, adiciona-se o fato de ser uma arte experimental, conceitual, e muitas vezes com clara intenção de ser efêmera e portanto avessa à idéia de conservação. Para analisar essas dificuldades entre os princípios de restauro e a produção de arte contemporânea, adotarei a divisão mencionada na apresentação: o campo científico e o campo teórico. Essa distinção é importante porque irei tratar a dimensão das ações objetivas como sendo pertencentes ao campo científico, e das ações subjetivas ao campo teórico.

O campo científico da conservação e restauro é o lugar onde ocorrem as ações objetivas (partindo da premissa que toda ciência busca um conhecimento objetivo). As ações objetivas a que me refiro estão ligadas a métodos científicos que buscam desenvolver meios práticos para agir sobre o desgaste provocado pelo tempo; que buscam meios práticos para exibir da melhor forma os objetos; que buscam meios práticos para melhor armazenamento dos objetos; que desenvolvem técnicas de intervenção; e que desenvolvem o aparato de documentação e registros técnicos (fotografia, vídeo, gravação sonora, inventários, catalogação, raio-x, etc.) dos objetos materiais ou imateriais (quando for o caso).

A dificuldade do campo científico está essencialmente nos materiais que

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ela deve lidar. Tradicionalmente a atenção dos restauradores focou-se na pintura e na escultura (estou me limitando ao campo tradicionalmente definido como ‘artes plásticas’, evitando o confronto de outros patrimônios como a arquitetura, música, cinema, natureza, etc) mas com o tempo teve que se ater a outros tipos de materiais. Se anteriormente a atenção se restringiu mais ao bronze, pedras, telas e pigmentos (escultura e pintura) agora o desafio são outros materiais: borracha, plásticos, compensados, poliuretano, tecidos e metais modernos (alumínio e aço) algumas vezes utilizados em combinações inesperadas. A lista de materiais é muito extensa e por isso não faz sentido enumerar cada um, mas é interessante chamar atenção para o termo “fugitive art” ou “fugitive materials” que se refere a materiais que apresentam desafios técnicos para conservação (não há uma tradução para o português do termo fugitive, mas poderíamos dizer efêmero ou mesmo fugaz, propenso ao desaparecimento).

O campo da ciência não define valores, ou seja, não diz quais os objetos deverão ser conservados. Isso faz parte do campo teórico, uma zona repleta de conflitos, onde muitas propostas são defendidas e atacadas, em função da dificuldade de lidar com a noção de valor, ou seja, definir o que é arte, o que é bom em arte, o que merece ser conservado, e qual é a melhor abordagem para se enfrentar problemas de restauro e conservação.

Noção de valor

Adotarei a idéia de subjetividade de valores como base para entender alguns dos discursos que atribuem valor aos objetos (e conceitos) artísticos. Uma vez que arte e restauro são atividades humanas baseadas em valores, minha proposta é traduzir esse conceito de subjetividade para o universo da arte e aplicá-lo também à ética dos restauradores.

Tentarei explicar um pouco melhor o significado de ‘subjetividade de valores’ (assim como ela aparece no texto ciência e religião, de Bertrand Russell. Os ajustes que farei seguem a intenção de adequar o conceito ao assunto que trato: valores caros aos artistas e restauradores).

O principio básico da subjetividade de valores pressupõe que nenhuma área do conhecimento humano pode concluir definitivamente se algo é bom ou ruim. Apóia-se na crença de que o conhecimento humano não

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é capaz de dizer nada objetivo acerca dos valores. Nesse sentido, quando alguém diz que algo é bom (ou ruim) esse alguém está expressando um sentimento, e não apresentando um fato verdadeiro, que permaneceria verdadeiro independentemente de sua emoção.

Uma afirmação de que algo é bom ou ruim não é uma afirmação do tipo verdadeiro falso, mas sim uma expressão de um gosto ou desejo.

Frequentemente os desejos de indivíduos diferentes são conflitantes, de maneira que o que é bom para um é ruim para outro. Não se pode dizer que um deles esteja certo e outro errado: esse conflito é na verdade uma diferença de gosto. Nosso gosto está relacionado com nosso desejo, portanto podemos definir simplesmente que aquilo que desejamos é bom, e aquilo que repudiamos é ruim. Mas existe uma diversidade imensa de desejos que são conflitantes, e outros que são alinhados. Quando um desejo é muito forte e partilhado entre vários indivíduos, ele começa a gerar uma espécie de moralidade, ou ética. Ética seria uma tentativa de tornar mais universais os nossos desejos. As teorias de arte ou restauro estão ligadas a valores. Considerando que qualquer valor é subjetivo, devemos compreender essas teorias como uma tentativa de fugir da total subjetividade.

A subjetividade normalmente é vista como um problema teórico a ser combatido, e as teorias que definem valor tem a ambição de tornarem objetivos esses valores, criando critérios de avaliação e compreensão dos objetos artísticos, definindo hierarquias de valores, e estabelecendo padrões ou regras gerais. Quando a teoria é bem sucedida, ela convence um número grande de pessoas de que determinadas coisas são boas, enquanto outras são ruins. Mas por mais bem sucedida que sejam essas teorias, sempre irão carecer de ajustes. Tais ajustes tendem a ocorrer na medida em que os desejos começam a mudar de direção. Pode-se dizer também que essas teorias (bem como os ajustes) normalmente ocorrem dentro de seus ambientes específicos: no campo das artes visuais, por exemplo, as teorias e seus ajustes são efetuados por artistas, curadores, intelectuais, restauradores, comerciantes de arte, consumidores e instituições especializadas.

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Algumas teorias recentes são concepções institucionais ou sociológicas da arte, em oposição a concepções estéticas da arte. A última concepção (estética) é a mais antiga, remontando a tradição da arte grega, que compreende que o valor da arte está no objeto, ou seja, que a obra é intrinsecamente ou essencialmente boa. Uma obra de arte é boa por si só, o bom é o belo e o artista é o tradutor dessa beleza. O que o artista toca torna-se bom, esse ‘bom’ é algo que pertence ao objeto e, portanto, transcende toda noção de gosto. A arte é boa, é bela, e o gênio criativo do artista produz coisas belas. Essa seria uma visão de que os valores são objetivos, mensuráveis e imutáveis: a objetividade dos valores. Nesse visão, se uma obra de arte é boa, quem falha em perceber está na verdade cometendo um erro de julgamento. Já a outra concepção (institucional) está alinhada com a idéia de subjetividade de valor: arte é uma manifestação humana e pode ser encontrada em determinados ambientes, varia de acordo com o contexto, produz uma grande variedade de objetos e atividades, que podem ser compreendidas apenas se descobrirmos quem produz e quem define arte como tal. O que é considerado bom num período pode ser considerado ruim em outro, e depois voltar a ser considerado bom. Não existem conceitos absolutos, nem materiais ou procedimentos únicos. A arte atual pode ser definida muito mais pela pluralidade que pela singularidade.

Essa pluralidade dificulta uma série de abordagens teóricas, especialmente quando percebemos que as teorias muitas vezes procuram aspectos objetivos para avaliar a arte e seus objetos. Não acredito que seja uma exclusividade dos discursos da arte a tentativa de superar a subjetividade. Parece desejável romper com a subjetividade, e uma subjetividade (ou relativismo) total é uma forma de loucura. Parece natural a tendência de se tentar escapar desse relativismo. Assim sendo, apelamos para algum tipo de critério que legitime os valores que consideramos importantes, tentando dotá-los de uma validade universal e não apenas pessoal.

Quando apelamos para um sentido ético, estamos tentando mostrar que certos desejos pessoais (subjetivos), podem ser validados para muitos indivíduos e portanto generalizados (tornados objetivos, universas, definitivos). Por sorte nossos desejos podem coincidir, o que equivale dizer que certos desejos particulares, individuais, pessoais, podem estar

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em harmonia com desejos de grande amplitude social. Isso possibilita a criação de normas de conduta que podem ser disseminadas através da educação e do conhecimento, e poderão ser aceitas e advogadas por um grande grupo de pessoa.

A formação de consenso é algo que pode ser constantemente buscado através da livre discussão de idéias dentro de grupos profissionais. Após a publicação de The Standards of Practice and Professional Relationships for Conservators (Murray Pease Report,1963) e The Code of Ethics for Art Conservators, (IIC-American Group, 1967) algumas normas de conduta foram amplamente aceitas.

Se definirmos ética como os princípios morais e normas de conduta pelas quais uma pessoa é guiada, quando aplicadas coletivamente para membros de uma profissão, ética define as obrigações e responsabilidades que estes membros têm para com o público e para um com outro no que tange o exercício da profissão. Implícitos em tais princípios estão as noções de certo e errado e de ações adequadas ou inadequadas, que serão baseados em critérios estabelecidos pela profissão. Estes princípios são aplicados na criação de políticas e planos de ação. (Frank Matero, 2000)

Segundo o Matero, a conservação contemporânea desenvolveu os seguintes princípios como fundação da ética e prática profissional (Uma espécie de quatro mandamentos dos restauradores) :

- A obrigação de realizar pesquisas e documentações; ou seja, registrar evidências físicas, documentais (archival) e outras antes e depois de qualquer intervenção visando salvaguardar o conhecimento incorporado como processo ou produto.

- A obrigação de respeitar o valor do envelhecimento cumulativo, ou seja, levar em conta o sítio ou trabalho como documento físico cumulativo da atividade humana incorporando crenças culturais, valores, materiais e técnicas, e mostrar a passagem do tempo.

- A obrigação de salvaguardar autenticidade – uma condição cultural relativa associada ao material ou fabricação de uma coisa ou lugar como uma maneira de assegurar autoria ou testemunho de um tempo e lugar.

-A obrigação de não danificar, fazendo o mínimo de intervenção para

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reestabelecer significado, legibilidade estrutural e estética com o mínimo de interferência física – ou que permitirá outras opções e tratamentos posteriores.

Contemplando essas ‘normas de conduta’, podemos entender como funcionam alguns dos desejos na área de conservação e restauro. Em seguida veremos como a arte contemporânea apresenta desafios especiais para os restauradores.

Alguns objetos e conceitos da arte contemporânea.

Mesmo havendo linhas de conduta, haverá necessidade de observar caso a caso quando se propõe a conservação de obras contemporâneas. O artista Christian Boltanski, por exemplo, usa materiais “fugitivos”. Em um trabalho com diversos materiais, que incluía fotografias e latas de metal, o efeito de oxidação nas latas era uma estratégia expressiva. Como se deve conservar um trabalho desse tipo? Sherri Levine produz trabalhos que se apropriam de outras obras, como o caso famoso da obra after Walker Evans, em que ela fotografa uma fotografia de Evans. O resultado é uma reprodução fotográfica fiel da imagem original. Desconstruir a noção de autenticidade e originalidade pode ser visto como algo desejável na arte contemporânea, e isso pode explicar o sucesso artístico alcançado por Levine. Mas como se posicionam os conservadores com intenção de salvaguardar a autenticidade, quando se tratam de casos como esses?

Strange Fruit

Como vimos, alguns trabalhos de arte contemporânea apresentam dificuldades nos campos teóricos e científicos. Um exemplo interessante pode ser encontrado na obra Strange Fruit da artista Zoe Leonard. Neste trabalho a artista apresenta diversos objetos, todos confeccionados a partir de frutas, cujo interior foi comido ou removido e depois suas cascas reagrupadas através de costuras, fios ou zipper.

A artista procurou o conservador alemão Christian Scheidemann para testar meios de interromper o processo de deterioração das superfícies das frutas. O trabalho envolvia técnicas bastante complexas de conservação. Os materiais variados utilizados na obra dificultavam a utilização de

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determinados químicos, e muitas vezes era difícil isolar um material do outro, mas ainda assim o resultado alcançado por Scheidermann foi bem sucedido.

Strange fruit, Zoe Leonard.

Esse exemplo serve para ilustrar a dificuldade apresentada no campo científico. O que vai se tornando mais interessante no desenvolvimento do trabalho de Zoe Leonard é o fato de ela própria, à medida que evoluem suas idéias sobre a obra, chega a uma conclusão desconcertante: a deterioração era uma feição importante da obra, fazia parte do conceito da obra. Em conseqüência disso a artista passou a rejeitar a conservação de seus objetos. Essa conclusão nos dirige para o segundo campo, o campo da teoria.

Leonard começou seu trabalho depois que uma pessoa querida morreu. Em um dia de luto, ela distraidamente começou a pegar as cascas de uma fruta que acabara de comer e as costurou de volta. Percebeu naquilo uma possibilidade de expressão e iniciou uma nova série de trabalhos. Em 1995 fez uma exposição em seu apartamento, e em1997 fez duas exposições

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importantes: uma no Museu de Arte Contemporânea de Miami e em seguida no Kunsthalle Basel. A sugestão de trabalhar com um restaurador veio de sua agente (estou traduzindo direto do inglês o termo dealer). Minha suposição é que essa sugestão teve motivações muito mais comerciais do que artísticas. Já a opção da artista em abandonar as peças conservadas e assumir a deterioração como um valor é um critério teórico adotado subjetivamente, pautado em um discurso que leva em conta trabalhos semelhantes da historia da arte (como Joseph Beuys e Dieter Roth).

Esse relato é feito por Ann Temkin em artigo publicado no site do Getty Conservation Institute. Temkin discute as dificuldades que o departamento de conservação do Museu de Arte de Philadelphia (onde Temkin é curadora) levantou em relação a uma possível aquisição do trabalho de Zoe Leonard. Alguns de seus colegas do museu gostavam da idéia de expor Strange Fruit, mas eram reticentes em relação à aquisição da obra.

Podemos ver o artigo de Temkin como uma defesa de valores. Ela tenta convencer os leitores (e certamente tentou o mesmo com seus colegas do museu) da importância (valor) desse tipo de trabalho. A eficiência de seus argumentos podem ser checadas na página do site do The Getty Conservation Institute.

O campo teórico do restauro é exatamente esse lugar onde valores serão discutidos. Se o campo da ciência é representado pelo restaurador Christian Scheidemann, em sua busca por meios práticos e objetivos para ‘congelar’ uma obra de arte, o campo teórico se ocupa de eleger os objetos que deverão ser preservados ou reconstituídos por tais meios práticos.

Em vários casos o campo teórico precede o campo científico, no sentido que só serão aplicadas (ou desenvolvidas) determinadas técnicas científicas em objetos que sejam compreendidos como dignos de preservação. O campo teórico é responsável por fabricar, sedimentar e divulgar valores. Esses valores estão ligados a desejos. Um quilombo, por exemplo, pode ser considerado digno de preservação, e em seu favor podem ser levantados argumentos afirmando que o quilombo representa o desejo humano de liberdade, e a afirmação positiva de um grupo étnico que combate a subserviência, a crueldade e a injustiça. Uma cadeia pode ser demolida e condenada por representar o contraponto da liberdade, e ser a reafirmação da intolerância, violência e ignorância. Se houver um desejo forte o suficiente nessa direção,

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esse conjunto de valores vai prescrever uma moralidade, um código de conduta e ética. Nas palavras de Russell “a ciência pode discutir as causas dos desejos, e os meios para realizá-los, mas não pode conter nenhuma sentença genuinamente ética, porque está preocupada com o que é verdadeiro ou falso”. A preocupação com o que é bom ou ruim está no campo da teoria, e é totalmente subjetiva, carecendo de formulações, refutações e ajustes.

Considerações Finais

O tipo de arte produzido nos últimos 50 anos carece de uma discussão muito aprofundada, que leve em consideração as mudanças no julgamento de valores artísticos e culturais. As grandes variações de temperamento e desejo são evidência de um mundo que atualiza rapidamente seus paradigmas. É importante encarar valor (ou valores) como sendo algo indefinido, propenso a criar conflitos entre grupos ou indivíduos, mas passível de transformações em grande escala. Os valores podem ser discutidos e advogados a favor ou contra, portanto eles devem ser discutidos livremente, e defendidos cuidadosamente caso pretendam gerar adesão por diferentes grupos. Ainda assim, é pouco provável a criação de um consenso universal ou de uma fórmula singular contemplando o caminho correto e verdadeiro. Qualquer que seja a solução mais recente, ela brevemente necessitará de ajustes importantes e necessários.

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Hipótese da supla substituição/ Duplo registro em um museu-limite

Hélio Alvarenga Nunes Doutorando PPGA-EBA-UFMG

Maria Angélica Melendi (Orientadora)

Resumo

Narra brevemente a apropriação anárquica de alguns temas da Ciência da Conservação (especialmente as formas inovadoras de reintegração, como o Projeto Mantegna), relacionando-os à arte contemporânea e à proposição conceitual fotografia do museu, para sugerir a hipótese de dupla substituição / duplo registro da obra de arte (uma redundância propiciada pela técnica), cuja radicalidade aponta para o fim de qualquer originalidade fundamental, resultando na possibilidade de um museu totalmente substituído, ausente. Discute então a tensão da aura nos fac-símiles da Factum Art (como a “devolução” fac-similar do painel Bodas de Canaã de Veronese ao Refeitório Paladino de Veneza) e na utilização destes por Peter Greenaway na 53ª Bienal de Veneza, bem como a diferença desses em relação à reintegração digital do afresco de Mantegna em Pádua.

Palavras-chave: museu, fotografia, originalidade, fac-símile, reintegração digital

Abstract:

This paper gives a brief account on the anarchical appropriation of some themes from Conservation Science (especially the innovative ways of reintegration, like Mantegna Project), relating them to the contemporary arts and to the conceptual proposal museum’s photography, to suggest the double replacement / double registration of the artwork hypothesis (a redundancy provided by technique). The radicalization of that hypothesis points to the end of all fundamental originality, resulting in the possibility of a fully replaced and absent museum. Then the paper discusses the aura’s tension in the Factum Art’s facsimiles (like the facsimile “return” of the Veronese’s panel The Wedding at Cana to the Palladio’s Refectory in Venice) and in the use of these by Peter Greenaway in the 53rd Venice Biennale, as well as the distinction between both and the digital reintegration of Mantegna’s fresco in Padua.

Keywords: museum, photography, originality, facsimile, digital reintegration

IntroduçãoCerta vez, a campainha da mesa diretora da Assembleia Legislativa de Minas Gerais estridulava sem parar, exigindo que Armando Ziller concluísse seu

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discurso. Foi então que ouvi a frase que faço questão de repetir nessas oportunidades: “Eu não concluo nunca, sou dialético…”

Bordão, mas não gostaria que soasse como desculpas para uma comunicação inconclusa. Serve bem para introduzir meu partido teórico ou método preferido, a dialética, mais especificamente, a do tipo usado por Walter Benjamin e que podemos chamar de “não conciliatória”, porque não busca nem um acordo sintético, nem a destruição dos termos antagônicos em uma espécie de teleologia. Uma das formas que esse método adquire em Benjamin é seu característico pendulamento entre militância e melancolia, algo que causa muita confusão, principalmente quando se entende tal postura como inconsistência, enquanto o que ocorre, na verdade, é a tematização do limiar, isto é, a opção deliberada por confundir bordas.

Enunciado assim, reconheço que há um cheiro de lugar-comum: certamente, como ideia, pouco resta para se pensar acerca dos limiares hoje em dia... Etimologicamente, o termo “ideia” remete ao registro da visão, às imagens mentais. Nada melhor, então, que contrapor uma ideia a um trabalho visual, para propor que, como conceito – remetendo à prática, ao pensamento como construção –, o limiar dá muito no que pensar.

Ilustração 1: Lais Myrrha, Teoria das Bordas, 2007, granitina branca e preta, dimensões variáveis.

Teoria das Bordas (2007), da colega Lais Myrrha (il. 1), aparentemente é de concepção simples: há uma borda precisa separando dois planos lisos e uniformes, um feito com pedrinhas brancas, outro com pretas;

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os visitantes da exposição caminham sobre elas, que ficarão agarradas aos sapatos e transportadas de um domínio ao outro, manchando-os mutuamente. Simplicidade enganadora que o registro sequencial parece evidenciar: a inevitável síntese cinza… Mas isso só em termos ideais; pois o trabalho faz com que um conceito abstrato (as bordas) ganhe um sentido real, que alcança, na prática, uma percepção sensível, de maneira que o que se evidencia é um método discursivo sobre o limite (mais no sentido matemático: aproximar-se sem nunca chegar). Noutras palavras, nunca haverá uma unidade cinza, apenas uma tendência a tal, valendo muito mais ocupar-se com o processo do que com seu fim terminal. Aí, então, haverá muito o que pensar: desde a imprevisibilidade da deambulação dos visitantes até, por exemplo, o impacto do trabalho no espectador tardio.

Nesse nosso diálogo de um artista-pesquisador com conservadores/restauradores, gostaria reservar a obra da Lais como uma espécie de alegoria para a palavra “limite” que, no título, vai unida à palavra “museu”, formando um lugar. Dessa forma, inclusive, estarão melhor entendidas as palavras enfáticas do resumo: “fim”, “totalmente” e principalmente “radicalidade”, que deve ser direcionada ao limiar. Noutros termos, esse lugar que tentarei situar não é um dado, mas uma construção ora militante, ora melancólica; e a hipótese da dupla substituição / duplo registro, algo como a deambulação dos espectadores levando pedrinhas de um lado para o outro.

Ainda sobre as palavras, havendo um método, só a etimologia evitará parecer estranha minha proposição de narrar uma “apropriação anárquica”: chamo atenção para a raiz grega arkhé, que forma arkheîon, “a residência dos magistrados superiores, os arcontes, aqueles que comandam” (DERRIDA, 2001, p. 12), que, por sua vez, dará em nossa palavra “arquivo”; arkhé, que também formará “arcaico”, denota a ideia de um princípio inaugural, de uma origem, daquilo que vem antes e que, por isso, comanda, bem como a ideia de uma unidade que contém os contrários – como diria um pré-socrático. Ora, então, é “apropriação anárquica” porque funciona sem o princípio e seu rol de derivados; funciona, principalmente, na ausência da musealização, como se os objetos nunca tivessem sido desterrados e transportados para o museu1. Daí a escolha de exemplos que estão fora do musealium: o afresco de Mantegna em Pádua e a “devolução” das Bodas de Canaã de Veronese.

Um texto emblemático para mim é Le musée imaginaire de Malraux (1949), no qual ele propõe novas possibilidades de relação entre obras de arte, especialmente potencializadas pela reprodução fotográfica e por sua compressão no espaço da biblioteca, formando um conceito cambiante que significa inicialmente um museu de imagens, “museu de impressão

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de obras plásticas”2, mas também um museu do imaginário, “o museu como ‘lugar mental’, espaço imaginário sem fronteiras que nos habita” (SILVA, 2002). Em sua primeira parte, Malraux dedica-se ao comentário do processo que hoje chamamos musealização, tornando-o indissociável das conquistas dos pintores modernistas – na origem, inclusive, o museu imaginário é o modernismo3.

Em minha dissertação de mestrado, Pintura para catálogos, usei anacronicamente o museu imaginário, aguçando sua dubiedade e retrabalhando as noções de ressurreição e recriação fotográfica para propor uma pauta de engajamento: a substituição do museu. Tal parricídio ou “arquiviolação”4 jamais sairia impune, de forma que as perdas se acumularam… A começar pelo modernismo, o que me obrigou a encarar frontalmente nosso momento histórico, no qual está em jogo a dissolução de um sujeito que pode ser identificado como burguês, falocêntrico e patriarcal; importando como essa perda é lamentada ou comemorada:

Para alguns, para muitos, isso pode ser, na verdade, uma grande perda, uma perda que conduz a lamentações narci-sistas e a negações histéricas do fim da arte, da cultura, do Ocidente. Mas, para outros, precisamente para Outros, não há nenhuma perda. (FOSTER, 1996, p. 184).

Fosse apenas essa perda que não é perda alguma, justamente, nada a lamentar. Mas algumas decisões trágicas pareciam se impor: “perder”, privar-se de algo, deixar escapar, permitir uma ausência é, em si, um motor da aura; daí uma substituição do museu – que a seu tempo recriou a aura do musealium5 –, sua ausência, implicaria em um redobro: em vez de distância já desdobrada6, tendente ao desaparecimento com a fotografia, a aura passaria a ser apenas distância-distância, fortalecendo-se.

Se pensarmos que o mais importante na experiência da obra são as imagens persistentes (afterimages), tal redobro significaria desmemória. Cabe uma explicação mais detida.

O valor de uso da obra de arte é justamente ser uma obra que vemos surgir nas vagas da ausência, o que implica que o espaço criado entre espectador e obra é uma distância já desdobrada, um “ir e vir constante”, como propõe Didi-Huberman (1998, p. 147). E essa parece ser a única forma de compreender a contraposição benjaminiana entre rastro (traço, índice – chamando atenção para a noção de fotografia como index) e aura:

Rastro e aura. O rastro é a aparição de uma proximidade, por mais longínquo esteja aquilo que o deixou. A aura é a aparição de algo longínquo, por mais próximo esteja aquilo

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que a evoca. No rastro, apoderamo-nos da coisa; na aura, ela se apodera de nós (BENJAMIN, 2007, p. 490, [M 16a, 4]).

Por um motivo que sempre nos escapará, nessa conhecida anotação, Benjamin contradita traço e aura com uma simples inversão de enunciados: longínquo mas próximo; próximo mas longínquo. Então, se nos fiarmos em Didi-Huberman (e na anotação), tal como na aura, também o espaço criado pelo traço é dialético; isto é, o traço também é próximo e distante ao mesmo tempo. Podemos dizer até que esse espaço é o mesmo: a memória. No caso da aura, nos vemos frente a um “poder da memória”7 ou sob o jugo da “memória involuntária”, como diz Benjamin, a partir de Baudelaire, contraditando-a ao spleen, à melancolia extrema que aguça nossa percepção das horas:

A durée de que a morte foi suprimida tem a má infinitude de um arabesco. Exclui a possibilidade de acolher a tradição. É o protótipo de uma “vivência” que se pavoneia nas vestes da experiência. Ao contrário, o spleen põe à mostra a “vi-vência” na sua timidez. Com admiração o melancólico vê a terra voltar ao puro estado de natureza. Nenhum sopro de pré-história a circunda. Nenhuma aura. (BENJAMIN, 1980, p. 51).

O espaço do traço seria esse da duração onde há a morte? Benjamin completa:

Definindo-se as representações radicais na mémoire involon-taire tendentes a reunir-se em torno de um objeto sensível, como a aura desse objeto, a aura ao redor de um objeto sen-sível corresponde exatamente à experiência que se deposita como exercício num objeto de uso. Os processos baseados na câmara fotográfica e nos aparelhos análogos que se lhe seguiram ampliam o âmbito da mémoire volontaire; enquanto permitem fixar com o aparelho, a qualquer momento, um fato sonora e visualmente. E dessa maneira se tornam con-quistas fundamentais de uma sociedade na qual o exercício definha. (BENJAMIN, 1980, p. 51).

Uma reação normal é devolver o olhar àquele que nos olha. A aura causa uma inversão estranha desse fato tão humano: sentir-se olhado por um objeto inanimado quando olhamos para ele. Isto é, ao olhar para um objeto aurático, algo em nós faz com que nos sintamos vistos pelo objeto.

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Mas esse olhar de retribuição é substituído nas grandes cidades por um olhar preocupado, é o “olhar da prostituta” que caça os clientes, mas evita a polícia. É vedado ao nosso olhar o “abandono sonhador e distante”; ao que Benjamin (1980, p. 55) pergunta, sobre Baudelaire, “Quererá ver destruído o encanto da distância como ocorre ao espectador que se aproxima demais de um cenário?”, que por sua vez responde com um verso: “Vaporoso, o Prazer fugirá no horizonte / Como um sílfide por trás dos bastidores” (BAUDELAIRE, 1995, p. 168).

O processo de dupla substituição / duplo registro, que talvez não seja muito explicável, implica na aceitação desse prazer vaporoso que é dado pela dissolução da aura, mas também na formação de novas auras. Aura e rastro não podem mais ser contraditoriamente exclusivos, passam a instâncias dialéticas de um mesmo espaço, a memória – que não se divide mais tão claramente entre involuntária e voluntária. Passamos a formar ambas a partir de um mesmo lugar-limite e, com isso, a dúvida de Baudelaire sobre o que era mais verdadeiro no Salon de 1859, se os dioramas ou as pinturas, dissolve-se na impossibilidade de estabelecer diferenças. Em outras palavras, a indistinção entre obra e reprodução radicaliza a indistinção espacial pela máxima proximidade com a máxima distância, concomitantemente (ou alternadamente?), em prol de uma duração que inclui e exclui a morte, e que, assim, inconstante, diz muito mais ao nosso “olhar de prostituta”: vemos as obras de arte como possíveis clientes e também como policiais; construímos o palco do espetáculo, só para olhar o pano de fundo em seguida.

Na época de Benjamin, esse era o olhar da modernidade, e daí, também o do museu; mas hoje ele implica noutras consequências. Se ainda é o olhar de Bergson – isto é, o olhar pela memória – trata-se da memória de um museu que se dissolve em arquivo hipermnésico (donde se deduz também, na prática, hiperamnésico): é o olhar histérico diante da atual agressão da vasta disponibilidade de imagens que nos cerca.

A tecnologia digital, claro, é o catalizador deste modo de ver inseguro, nervoso, que dissolve e reconstitui a aura a todo momento, daí os exemplos que escolhi.

A porta na fotografia do museu

Mais recorrente que meu bordão inicial, o da dialética, tem sido a imagem que se segue, Veneza, Itália (1965), de Elliott Erwitt (il. 2), que rebatizei de fotografia do museu. Não pretendia mostrá-la, mas me lembrei da Carta de Veneza, de 1964, o que a tornou pertinente mais uma vez, já que estamos em um seminário da Ciência da Conservação.

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Ilustração 2: Elliott Erwitt, Veneza, Itália, 1965.

Chamo-a fotografia do museu para diferenciá-la da fotografia que se torna musealium mais ou menos nesse período, à qual denomino “fotografia de museu”. O importante é que ela me desloca para um tempo anterior, quando a fotografia não estava no museu, nem exposta, nem operando. Com isso, ela se torna uma imagem que visa politicamente o museu de hoje, mas à revelia daquele princípio inaugural, isto é, “anarquicamente”.

São molduras e parede apresentando e sustentando o opaco, o vazio, que me remetem imediatamente ao trabalho de Allan McCollum, Coleção de 418 substitutos de gesso (1982-1983), e ao seu complemento posterior O registro de uma obra de arte (1999)9. A metáfora estabelecida por McCollum entre seus dois trabalhos é o que me faz relacioná-los à fotografia do museu: O registro de uma obra de arte, que propunha documentação, medição, fotografia etc., visando à conservação, como uma forma de introduzir a obra de arte na história, acabou uma webarte deletada – numa ironia que parece proposital –; então, mais que comparar pinturas obscurecidas pela pátina com retângulos pretos emoldurados, ou idear uma conexão pela linguagem entre “substituição” e “invisibilidade”, a questão é que um lugar-limite se revela no vislumbre que temos da vida que está fora disso tudo: da Coleção, d’O registro, do vazio daquele corredor.

Numa opção pelo spleen, talvez, cruzaremos aquela porta da direita na fotografia do museu, para entrar ainda mais nesse lugar, para descer ao porão, até a reserva técnica, buscando o melhor ponto de vista para

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verificar esse limite: os bastidores, a parte de trás do cenário: o início e o fim de todo museu, o lugar onde as trocas de poder se efetivam, bem como as trocas entre original e falsificação nos furtos, e também onde se saqueia, bem como o armazém do butim.

Essa fotografia é tida, em outros contextos, enquanto ainda se chama Veneza, como uma crítica auto-reflexiva ao fato da fotografia só registrar o que aparenta estar presente e não o que sabemos estar presente10. Mas quando a transformamos na fotografia do museu, fazemos a opção de reverter esse problema em qualidade, transformando aparência em saber; isto é, sabemos que nossos museus não têm mais aquela aparência, mas são aquela aparência.

Aí entram os restauradores. Sem dúvida aquelas pinturas passaram pela limpeza científica, de forma que essa fotografia do museu, especifica, não pode mais ser tirada; só restando aos fotógrafos do museu, como Thomas Struth, por exemplo, substituir o tema, observando ironicamente o espectador. E o interessante nessas novas fotografias do museu é que as obras teimam em entrar em nume, isso é em excesso de pose, mentindo sobre a verdadeira natureza do lugar que ocupam.

Certa feita, vi no MASP alguns pequenos quadros a têmpera recém restaurados, ladeados por cartazes explicativos. A natural falta de relevo da pintura tinha ganhado um brilho de têmpera-ovo recém finalizada e só a etiqueta me convencia que se tratava de uma obra do século XV e não uma reprodução. Reprodução de qualquer tipo, pois, a certa distância, o cartaz primorosamente impresso e recheado de pormenores parecia mais verdadeiro, sobrepondo-se à obra como imagem persistente. Dito de outra forma, o resgate de um estado “original” de integridade estética e o trabalho de convencimento do papel positivo das escolhas rigorosamente científicas dos restauradores acabou substituindo a imagem que persiste em mim, tornando-a sem princípio, sem tempo redescoberto, sem pré-história.

Importa que essa sensação foi sublime – no sentido kantiano: uma violência contra nosso sentido interno (o tempo) e contra nossa imaginação, que ativa nosso juízo reflexionante, conjugando então imaginação e razão, para transformar o que parece contrário em conforme a fins, resultando em um engrandecimento da nossa subjetividade; um desprazer que contém finalidade e que, apesar de todas as voltas que dá, acaba nos brindando com a apresentação daquilo que não pode ser apresentado. E, assim, pela sublimação, parecia desfeito o hiato entre aquelas pinturas do Quatroccento e a prática da arte contemporânea, pela possibilidade de aperfeiçoar aqueles quadros com a imaginação11, pela possibilidade de voltar a usá-los.

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Wind (1985), em seu sugestivo Arte e anarquia, originalmente publicado em 1963, alertava sobre a tentação de fazer das pinturas espécimes científicos cuidadosamente preparados, delegando o fardo da exegese na restauração a um solvente e, de maneira melancólica, conclui que:

Como a mecânica de retirar as camadas de uma pintura reverte a sequência de sua feitura, é quase inevitável que tais pinturas processadas adquiram superfícies que parecem manufaturadas, similares ao duro e brilhante verniz [gloss] das reprodu-ções mecânicas, com cores brutas em luminosa justaposição. A satisfação alcan-çada por pinturas reduzidas a tal estado pode provavelmente ser creditada ao fato de nossa visão ter sido gradativamente treinada em impressões derivativas, que tendem a super-definir uma imagem numa só direção, fixando-a em uma escala mecânica. (WIND, 1985, p. 68-69, trad. nossa).

Seria uma espiral regressiva de fixação em uma escala mecânica? Não podemos, entretanto, abandonar o lado militante: mesmo se fossem apenas operações mecânicas, ainda assim, como qualquer produto de um trabalho, pinturas restauradas e reproduções registram as peculiaridades da tecnologia e também de seu operador, ainda assim, repito, até a padronização mais absurda e a mais completa idealidade inespecífica, iludindo uma não intervenção, até a mecânica nos lega uma possibilidade: a indiferenciação senão pelo registro.

É a isso que chamo dupla substituição / duplo registro: redundância. Isto é, a possibilidade da reprodução substituir plenamente a obra, bem como do registro também substituí-la, abrindo uma mão dupla, na qual a obra também substitui ambos, reprodução e registro. Trata-se de um conceito – um pensamento construído – cuja radicalidade é o fim da originalidade, uma perda que dá ganhos, principalmente em relação à aura, que passa a ser percebida como fenômeno em constante tensão, permitindo algo que considero essencial na experiência da obra de arte hoje: sua diminuição e difusão.

A diminuição está relacionada à possibilidade de nos apropriarmos da obra e a difusão é melhor entendida como uma metáfora luminosa; só essas características permitiriam um seguir-vivendo da arte. Mas essa discussão fica para outra oportunidade.

O Projeto Mantegna

Importa mais discutir como a aura se comporta em constante tensão; e a reintegração digital do afresco de Mantegna em Pádua demonstra isso. Em 1944, um bombardeio aliado reduziu a cacos os afrescos de Mantegna na capela Ovetari da igreja dos Eremitani, em Pádua. Desde o imediato

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pós-Segunda Guerra até 1992, várias tentativas de reintegrar manualmente os fragmentos fracassaram; mesmo sob direção do prestigiado Cesare Brandi, apenas três cenas foram restauradas. A partir de 1994, iniciou-se um processo de inventário e documentação, que resultou na elaboração, entre 1995 e 1997, de um catálogo digital dos fragmentos. A partir desse catálogo, com os avanços na área de tratamento digital da imagem, foi possível elaborar uma metodologia de mapeamento e posicionamento ideal dos fragmentos, resultando, em 1998, no Projeto Mantegna, que, em 2006, terminou o processo de sobreposição dos fragmentos originais a fotografias da coleção Anderson & Alinari, ampliadas e corrigidas para se adaptarem à arquitetura da capela.

Os negativos dos irmãos Alinari formam a principal coleção histórica de fotografias de obras de arte e monumentos italianos. Desde 1860, eles reproduziram sistematicamente dezenas de milhares de obras em coleções públicas e particulares, bem como adquiriram arquivos de outros fotógrafos, como os de James Anderson.

Para possibilitar a reintegração, esse catálogo adquire um novo papel: em vez de tornar-se musealium, como as demais coleções desse tipo – “fotografias de museu” – transforma-se em substituto de algo não musealizável.

Ilustração 3: Andrea Mantegna, São Pedro (após restauração).

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Observando a imagem (il. 3), vemos, com intenção de sublimidade, que no Projeto Mantegna o vazio do desastre une-se ao isso-foi (ao traço, indício, index) da fotografia: o indício (o fragmento) encontra seu lugar no índice (foto do afresco) pelo movimento programado (vários algoritmos complexos) de outro índice (foto digital do fragmento): uma sucessão de foram, de camadas sobrepostas de passado, cada uma com significações e repercussões distintas, e um conflito gritante de opções entre ruína e restauração, entre história e estética.

Voltando a Malraux, o que deu origem a esses conflitos, vale dizer, foi a transfiguração das artes pela fotografia, o que criou uma outra ideia de “antigo”, indissociável da noção de ressurreição. Antes do museu imaginário, por mais de quatro séculos, pretendia-se restaurar destruindo o estilo, reduzindo todo e qualquer monumento antigo a um padrão de antiguidade, à Antiguidade Clássica, como se o restabelecimento do monumento ao tempo presente passasse obrigatoriamente pelo seu estabelecimento em um tempo passado, passado até mesmo em relação ao próprio monumento. É este o caso, citado por Malraux (2000, p. 138), da “restauração” dos tímpanos de Saint-Denis por Joseph-Sylvestre Brun, entre 1837 e 1839: “o escultor Brun suaviza os contornos das personagens, esbate-as – e assina”. Brun trabalhava sob direção de François Debret, arquiteto-em-chefe da basílica, que se tornou conhecido como o infame criador da “fachada desfigurada, para sempre destituída de interesse histórico, e, pior, muito feia”, como afirmou o arqueólogo Didron (apud BLUM, 1992, p. 12, trad. nossa), em 1846. Neste mesmo ano, Debret foi substituído por Eugène Viollet-le-Duc, que, por sua vez, também se notabilizou pela destruição das estátuas de Notre-Dame; mas dessa vez, visando um “gótico puro”, ou, como critica Malraux (2000, p. 138), “um gótico que não tivesse conhecido a arte românica”.

Sem dúvida, Viollet-le-Duc não teria destruído as estátuas de Notre-Dame se as tivesse conhecido no museu imaginário, como propõe Malraux, seguindo uma linha de raciocínio que o leva a concluir que

O mundo das fotografias serve ao mundo dos originais, sem dúvida; contudo, menos sedutor ou menos emocio-nante, muito mais intelectual, parece revelar, no sentido que o termo adquire em fotografia, o ato criador; em primeiro lugar, fazer da história da arte uma sucessão de criações. (MALRAUX, 2000, p. 140).

Se aceitarmos a hipótese da dupla substituição / duplo registro, entretanto, concluiremos que não há mais uma relação unilateral entre os mundos da

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fotografia e dos originais. Se há servilismo, ele é também duplo. Poderíamos, então, nos perguntar: qual seria o comportamento de Viollet-le-Duc hoje, diante desse apagamento de qualquer originalidade fundamental, diante desse museu-limite? Ele apenas excluiria as estátuas da seleção de fotos?

Brincadeiras à parte, o que o Projeto Mantegna acaba produzindo é uma percepção sensível da aura em conflito, visto que perda e reintegração não encontram qualquer estabilidade, não encontram aquele princípio unitário; com isso, é uma ilustração clara daquela possibilidade de, como já disse, aperfeiçoar o quadro com a imaginação.

Fac-símile

Peço desculpas, mas não vou discutir a questão da fotografia digital além de apontar um incômodo: muito ou quase tudo que se escreveu sobre fotografia, até bem pouco tempo, liga-se de alguma forma a uma relação energética mediada por um índice que exclui ou abafa o caráter icônico da imagem; daí o que chamamos de estar-junto com isso-foi, a relação entre objeto e sensibilização da chapa – que torna portátil (próximo) e temporal (passado) sua presença, delimitando assim o tema da decadência da aura – estabelecendo novas relações entre memória e imagem, tudo isso, deveria desaparecer e passar para o âmbito da simulação.

Mas…

Um caso paralelo, mas muito diverso do afresco de Mantegna, é a “devolução” fac-similar do painel Bodas de Canaã de Paolo Veronese – pilhado pelas tropas napoleônicas e que se encontra hoje no Museu do Louvre – ao Refeitório Palladiano do mosteiro beneditino da ilha veneziana de San Giorgio Maggiore. Em 2006, a Factum Arte, que se apresenta como “oficina independente sediada em Madri e que trabalha com artistas contemporâneos e com a produção de fac-símiles que podem ser utilizados com propósitos de conservação” (FACTUM ARTE, 2009, trad. nossa), recebeu da Fundação Giorgio Cini a incumbência de criar uma cópia fiel em escala 1:1 da obra, com requintes impressionantes como relevo e até mesmo danos causados no ato de pilhagem, e de instalá-la no lugar de origem, seguindo como referência uma gravura de época. O empreendimento foi saudado como “milagre da reprodução”, “reviravolta na arte” etc.

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Ilustração 4: Peter Greenaway, As bodas de Canaã: uma visão por Peter Greenaway, 2009.

Algo parece estranho, entretanto, quando vemos a intervenção As bodas de Canaã: uma visão por Peter Greenaway (2009) sobre o fac-símile, na 53ª Bienal de Veneza (il. 4). Trata-se da terceira intervenção do artista sobre fac-símiles na série Nove pinturas clássicas revisitadas, sendo as duas primeiras A ronda noturna no Amsterdam Rijksmuseum (2006) e Última ceia de Vinci em Milão (2008)14. A intenção dessa série não parece ser criticar os empreendimentos da Factum Arte, demonstrando as limitações dessas tentativas (anti-museológicas?) de reinserir as obras em seus contextos arquiteturais originais. E não há nas declarações de Greenaway qualquer menção direta ao problema da aura, algo que, sem dúvida, mereceria mais destaque. Não importando a intencionalidade, o que a intervenção nos permite ver é uma sobreposição diversa da que ocorre no afresco de Mantegna: tudo se passa como se não houvesse mais qualquer perda, como se estivéssemos, graças a uma rematerialização digital, em presença da obra original.

Mas algo sabota essa presença: a simulação, o fenômeno da aparência que se revela essência: isto é, diversamente da fotografia na reintegração do afresco de Mantegna, a pintura parece estar ali e, por isso, sabemos que não está.

Nesse caso a dupla substituição / duplo registro deixa de funcionar, pois o museu se restabelece pela falta, com ele a necessidade de originalidade, com ele a aura se fortalece sem conflito, com ele o distante está distante.

Completando o “Mas…”: enquanto a fotografia digital entra na hipótese, a simulação, especificamente, não. Pois a questão fundamental da dupla substituição / duplo registro é a vontade de praticá-la.

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_________Notas1 Segundo Cury (2005, p. 22 passim), “musealização é muito mais que transferir objetos para o

museu” e implica sua valorização segundo um “olhar museológico”, “continua no conjunto de ações que visa à transformação do objeto em documento e sua comunicação”.

2 Malraux apud Silva (1995, p. 248): “Chamo de Museu Imaginário a totalidade do que as pessoas conhecem hoje mesmo sem ir a um museu, quer dizer, o que conhecem pela reprodução, o que conhecem pela biblioteca, etc.”.

3 Como aponta Krauss (1996, p. 344, trad. nossa): “[...] musée imaginaire é, de fato, outra forma de escrever ‘modernismo’ [...]”.

4 Uma palavra que tento introduzir significando “violação do arquivo”, tendo “arquivo” sentido lato, memorial e psíquico.

5 A partir de Malraux, Silva (2004) propõe que: “cada tempo tem a sua aura: o sobrenatural (o da arte antiga) tem sua aura sagrada; o irreal (que situa no Renascimento) tem sua aura de beleza, e o intemporal (o da arte moderna) tem a aura da própria criação artística”.

6 Didi-Huberman (1998, p. 147): “Próximo e distante ao mesmo tempo, mas distante em sua proximidade mesma: o objeto aurático supõe assim uma forma de varredura ou de ir e vir incessante, uma forma de heurística na qual as distâncias – as distâncias contraditórias – se experimentariam umas às outras, dialeticamente. O próprio objeto tornando-se, nessa operação, o índice de uma perda que ele sustenta, que ele opera visualmente: apresentando-se, aproximando-se, mas produzindo essa aproximação com o momento experimentado “único” (einmalig) e totalmente “estranho” (sonderbar) de um soberano distanciamento, de uma soberana estranheza ou de uma extravagância. Uma obra da ausência que vai e vem, sob nossos olhos e fora de nossa visão, uma obra anadiômena da ausência.”

7 Didi-Huberman (1998, p. 149).8 “Le plaisir vaporeux fuira vers l’horizon / Ainsi qu’une sylphide au fond de la coulisse.”.9 Títulos originais, respectivamente, Collection of Four Hundred and Eighty Plaster Surrogates e

The Registration of an Artwork.

10 Cf. Szarkowski (1973).11 E um dos sonhos de Malraux (2000, p. 77) é o “fim do quadro que a imaginação não podia

aperfeiçoar”.

12 A partir de Benjamin (1993, p. 104): “Cada um de nós pode observar que uma imagem, uma escultura e principalmente um edifício são mais facilmente visíveis na fotografia que na realidade. A tentação é grande de atribuir a responsabilidade por esse fenômeno à decadência do gosto artístico ou ao fracasso dos nossos contemporâneos. Porém somos forçados a reconhecer que a concepção das grandes obras se modificou simultaneamente com o aperfeiçoamento das técnicas de reprodução. Não podemos agora vê-las como criações individuais; elas se transformaram em criações coletivas tão possantes que precisamos diminuí-las para que nos apoderemos delas. Em última instância, os métodos de reprodução mecânica constituem uma técnica de miniaturização e ajudam o homem a assegurar sobre as obras um grau de domínio sem o qual elas não mais poderiam ser utilizadas.”

13 Barthes (1984, p. 121) chega a atribuir aos químicos a invenção da fotografia e logo depois afirma que: “De um corpo real, que estava lá, partiram radiações que vêm me atingir, a mim, que estou aqui; pouco importa a duração da transmissão; a foto do ser desaparecido vem me tocar

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como os raios retardados de uma estrela. Uma espécie de vínculo umbilical liga a meu olhar o corpo da coisa fotografada”.

14 Títulos originais, respectivamente, The Wedding at Cana: a vision by Peter Greenaway, Nine Classical Paintings Revisited, Nightwatch in the Amsterdam Rijksmuseum e Da Vinci’s Last Supper in Milan.

__________

ReferênciasBARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

BAUDELAIRE, Charles. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: BENJAMIN, W; HORKHEIMER, M.; ADORNO, T.W.; HABERMAS, J. Textos escolhidos. São Paulo: Abril, 1980. p. 29-56. (Os pensado-res).

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 5ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. (Obras escolhidas, 1).

BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial, 2007.

CURY, Marília Xavier. Exposição: concepção, montagem e avaliação. São Paulo: Annablume, 2005.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998.

FACTUM ARTE. Madrid, 2009. Disponível em: <http://www .factum-arte .com>. Acesso em: 2 dez. 2010.

FOSTER, Hal. Recodificação: arte, espetáculo, política cultural. São Paulo: Casa Editorial Paulista, 1996.

KRAUSS, Rosalind E. Postmodernism’s Museum Without Walls. In: GREENBERG, Reesa; FER-GUSON, Bruce W.; NAIRNE, Sandy (Eds.). Thinking about exhibitions. London: Routledge, 1996, p. 341–348.

MALRAUX, André. Le musée imaginaire. Genève: Albert Skira, 1949. (Psychologie de l’art, 1). [As traduções foram transcritas de MALRAUX (2000).]

MALRAUX, André. O museu imaginário. Lisboa: Ed. 70, 2000. Baseada em ed. rev. ampl. de 1963.

SILVA, Edson Rosa da. O “Museu Imaginário” na “Era da Reprodutibilidade Técnica”: Malraux, leitor de Benjamin? In: CONGRESSO ABRALIC, 4, 1994, São Paulo, Literatura e diferença: anais. São Paulo: Abralic, 1995. p. 245-251.

SILVA, Edson Rosa da. O Museu Imaginário e a difusão da cultura. Semear, Rio de Janeiro, n. 6, 2002. Disponível em: <http://www .letras .puc-rio .br /catedra /revista /6Sem_14.html>. Acesso em: 2 dez. 2010.

SILVA, Edson Rosa da. A fotografia e a arte: ainda o diálogo entre André Malraux e Walter Benja-min. In: COUTINHO, Eduardo; BEHAR, Lisa Block de; RODRIGUES, Sara Viola (Orgs.) Elogio da Lucidez. Porto Alegre: Evangraf, 2004, p. 113-117. Cópia eletrônica fornecida pelo autor, com

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paginação diferente.

SZARKOWSKI, John. Looking at photographs: 100 pictures from the collection of the Museum of Modern Art. New York: The Museum of Modern Art, 1973.

WIND, Edgar. Art and anarchy. 3th ed. Evanston: Northwester University Press, 1985.

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Reconhecer o risco: estratégia utilizada no arquivo fotográfico da Rádio Nacional

Gabriela de Lima Gomes Universidade Federal de Ouro Preto

ResumoO artigo apresentará o diagnóstico e a metodologia de gerenciamento de risco aplicados no arquivo de fotografias da Rádio Nacional. A investigação do material fotográfico, do ambiente e da instituição possibilitou encontrar evidências que nos revelaram os motivos que causaram e causam a degradação do Arquivo.Palavras-chaves: Preservação fotográfica; Causas de degradação; Gerenciamento de risco

AbstractThe article will present the diagnosis and the methodology of risk management applied in the photograph archive of the Radio Nacional. The inquiry of the photographic material, the environment and the institution made possible to find evidences that in had disclosed the reasons to caused and cause the degradation of the Archive.Key-words: Photographic preservation; Degradation causes; Risk management

Introdução

Encontrar arquivos de fotografias ou documentos, carregados de valor patrimonial, não é difícil na atualidade. Instituições públicas e privadas, das mais diversas funções, produzem e acumulam documentos textuais, fotográficos, iconográficos e digitais a todo momento e, na maioria das vezes, não sabem como cuidar dessa produção.

A curiosidade em conhecer as fotografias das Rainhas do Rádio foi o estímulo para o reconhecimento desse patrimônio documental. O reencontro com um Arquivo que se mantêm à margem da instituição Rádio Nacional do Rio de Janeiro, uma vez que a produção da emissora é, exclusivamente, sonora.

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O objeto

Partiremos com uma sucinta apresentação do objeto de estudo e seu estado de conservação, seguidos dos gráficos resultantes do diagnóstico.

O recorte privilegiou as provas fotográficas em preto e branco registradas entre os anos de 1940 e 1960. As ampliações foram feitas em papel revelação . Sua estrutura é constituída por substâncias orgânicas e inorgânicas sobrepostas em camadas: o suporte de papel, a camada de barita e a emulsão fotográfica, uma mistura de gelatina e prata filamentar.

FIGURA 1: Corte estratigráfco 20X da prova fotográfica contemporânea. Fragmento etirado da prova fotográfica R 216: Paulo Gracindo, Emilinha Borba, José Mafuz, Ari

Picaluga, Neuza Maria. 1940 circa. (17,4 X 22)Fonte: Arquivo da Rádio Nacional

O contexto

A Rádio Nacional do Rio de Janeiro é reconhecida como a responsável pela transformação da vida social dos brasileiros por ter produzido mitos populares. Renato Murce3 afirma que “a Rádio Nacional foi a própria essência do rádio no Brasil por cerca de duas décadas”.

O edifício “A Noite”, Praça Mauá, n°7, abriga, até hoje, a emissora. Uma instituição legislada pelo Governo Federal e pertencente à Radiobrás (Empresa Brasileira de Radiodifusão), ligada à Presidência da República por meio da Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica.

Edna Dantas4, chefe do Escritório Regional da Rádio Nacional, relata sobre a preocupação da instituição em conservar suas coleções, no entanto, não existe verba dedicada à manutenção das coleções.

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Em uma sala no 21° andar do edifício “A Noite”, região portuária e de tráfego intenso, esta guardado o arquivo fotográfico da Rádio Nacional. O histórico edifício é equipado com escadas externas e brigada de incêndio. E, tanto a portaria, quanto a da emissora possuem vigilância. Segundo o Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Rio de Janeiro5, o edifício “A Noite” nunca sofreu nenhum tipo de desastre ambiental ou criminoso.

O setor de pesquisa da Rádio Nacional foi idealizado em 1980, durante a gerência de Jorge Guimarães Marcelo, com o propósito de reintegrar o acervo doado ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro6. Alberto Luiz da Silva Santos, auxiliar administrativo, é responsável pela memória da emissora e, até hoje, realiza pesquisas para a programação, além de receber, às terças e quartas-feiras, de 14 às 17 horas, visitantes e consulentes.

No controle de catalogação do arquivo fotográfico da Rádio Nacional estão registradas 494 imagens, sendo que 313 fotografias foram catalogadas entre 1982 e 1984 e as outras 181 foram catalogadas em 2003. Desse total, 46 imagens estão desaparecidas e 7 são fotografias em cores pós 1970. Logo, fizeram parte da pesquisa 441 imagens.

O arquivo de provas fotográficas foi formado a partir de imagens produzidas por fotógrafos que acompanhavam a programação da rádio e por doações realizadas pelos artistas e produtores dos programas radiofônicos.

O estado de conservação é preocupante devido à manipulação e acondicionamento. As fotografias estão montadas em pastas de argola, fixadas em cartolinas ácidas e com cantoneiras de fita adesiva. Além de apresentarem diversas intervenções ocorridas durante os anos de uso.

FIGURA 2: Montagem representando o contexto das provas fotográficas da Rádio Nacional do Rio de Janeiro.

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O resultado do diagnóstico

Após o diagnóstico de cada elemento fotográfico da Rádio Nacional, passamos a ter uma visão geral sobre o Arquivo.

Com o intuito de esclarecer o estado de conservação dividimos as ocorrências encontradas em três situações de degradação: por intervenção, por manipulação e ambiental. Os gráficos, a seguir, apresentam o resultado deste levantamento.

O gráfico acima apresenta as intervenções realizadas no Arquivo, tais como: procedimentos adotados para indexação, identificação dos personagens, montagem em pastas argola e consolidações de rasgos e fraturas. Cerca de 87% das imagens foram registradas com o carimbo da instituição e anotação a caneta no suporte; muitas delas apresentam informações incompletas como o nome dos participantes da cena da fotografia, a data, o fotógrafo e o contexto.

Verificamos também que um terço das provas sofreram pequenos reparos, no decorrer dos anos 27 anos de uso, sem os devidos cuidados e conhecimentos específicos. Além disso, as provas fotográficas foram montadas com material ácido e arranjadas em pastas de argola.

FIGURA 3: Detalhes carimbos

GRÁFICO 1: Representação do resultado do diagnóstico de degradação por intervenção.

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Constatamos no gráfico acima que mais da metade das provas apresenta vincos e abrasões decorrentes do uso contínuo e descuidado e um oitavo delas têm manchas de dedos recorrentes de manipulação sem luvas.

A presença de sujidade ocorre em 100% do Arquivo devido a poeira proveniente da manipulação e localização, tráfego intenso e região portuária.

A realização do diagnóstico do estado de conservação das provas fotográficas da Rádio Nacional nos revelou que, mesmo com as flutuações recorrentes da umidade relativa e da temperatura, o Arquivo apresenta uma pequena parte das possíveis características de degradação decorrentes da falta de controle ambiental. Como a proliferação de fungos, craquelês e ondulações.

GRÁFICO 2: Representação do resultado do diagnóstico de degradação por manipulação.

FIGURA 4: Detalhes de rasgos, furos e delaminações encontros no Arquivo.

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As características mais recorrentes foram manchas e amarelecimento, que podem ser indícios de sulfuração e/ou mau processamento. Apesar dos vasos de plantas da sala de guarda, meio facilitador à proliferação de insetos, não encontramos furos ou marca de roedores e apenas cinco imagens possuem excrementos de insetos. Tal evidência demonstra que, nem sempre, o meio ambiente, com temperatura e umidade relativa inadequadas, é o principal causador da degradação.

O reconhecimento do risco

Após o reconhecimento da a política institucional; das características ambientais e urbanas da região e do bairro; estruturais do edifício; as condições climáticas da sala de guarda; o armazenamento e o acondicionamento do arquivo e seu o estado de conservação seguiremos com alguns dos procedimentos metodológicos de gerenciamento de risco.

De acordo com o guia Risk Management Guidelines, o termo “gerenciamento de risco” significa a compreensão da cultura, dos processos e das estruturas, do objeto inserido na instituição, a fim de detectar as oportunidades potenciais e

GRÁFICO 3: Representação do resultado do diagnóstico de degradação ambiental.

FIGURA 5: Detalhes de espelhamento e excremento encontros no Arquivo.

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administrar os efeitos adversos.

Metodologias baseadas em tabelas com estimativa de vida e escalas com valores de risco foram desenvolvidos nos últimos anos para facilitar a administração das coleções. ABC risk assessment scales for museum collections , criada por Stefan Michalski em 2006 apresenta uma escala baseada em perguntas em relação à coleção, tais como:

A: Com que rapidez e com que freqüência a degradação ocorre?

B: Quanto de valor é perdido em cada objeto afetado?

C: Quanto do valor total do arquivo é afetado?

Cada resposta possui um valor pré-determinado e o resultado da soma dos valores das respostas A, B e C nos demonstrará os riscos mais eminentes.

Os 10 possíveis agentes de degradação identificados no arquivo de fotografias da Rádio Nacional foram:

1. FORÇAS FÍSICAS - a região geográfica onde as fotografias estão alocadas não está ameaçada pelas forças físicas da natureza;

2. CRIMINOSO - podemos apontar como um fator problemático a falta de segurança do acervo quando disponível a consulta. Segundo os dados apresentados acima, 46 imagens foram roubadas da seção durante seus 25 anos de existência;

3. FOGO - o edifício possui brigada de incêndio;

4. ÁGUA - a tubulação de água é externa ao prédio;

5. PESTE - apenas 1,11% das provas apresentam danos causados por insetos ou roedores;

6. POLUENTES - a poluição e o processamento inadequado são dois fatores a serem considerados, pois contabilizamos um terço das imagens com amarelecimento;

7. LUZ/UV - as provas da emissora não são utilizadas em exposições e estão acondicionadas em pastas com proteção;

8. TEMPERATURA - a temperatura da sala de guarda não sofre fortes alterações;

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9. UMIDADE RELATIVA - a variação da umidade não alcança as provas fotográficas a ponto de provocar craquelês e desprendimento da gelatina do suporte de papel;

10. DISSOCIAÇÃO – uma preocupação é o contexto das imagens. O que não foi descrito durante sua produção e hoje fica à mercê de lembranças de funcionários ou pessoas remanescentes da época áurea da emissora, hoje é dificilmente identificável, causando a dissociação da informação.

TABELA 1 – Valores obtidos na análise das dezPossibilidades de degradação do arquivo de provas

fotográficas da Rádio Nacional.

A análise do cenário nos evidenciou que os fatores de maior preocupação são a ação criminosa, os poluentes, a manipulação e a dissociação da informação.

As respostas às perguntas a seguir nos informarão sobre as possíveis implicações que poderemos encontrar em um determinado espaço de tempo:

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A: Com que rapidez e com que freqüência a degradação ocorre?

As provas fotográficas da Rádio Nacional estão disponíveis ao público desde 1982, quando foram indexadas e montadas em pastas de argola. Assim, concluímos, com base na análise da média dos gráficos de degradação, que em 25 anos:

• 86% das imagens foram carimbadas e têm inscrições no verso;

• 20% do arquivo sofreu intervenções com fita adesiva, e 40%, com cola;

• 38% têm perda na emulsão;

• 80% das imagens apresentam danos em decorrência da manipulação excessiva.

Tais evidências nos fazem compreender que a freqüência de degradação ocorre em cerca de um ano ou menos. [A = 5]

B: Quanto de valor é perdido em cada objeto afetado?

TABELA 3 – ABC risk assessment scales for museum collections.

TABELA 2 – ABC risk assessment scales for museum collections.

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Apesar das perdas demonstradas no gráfico de degradação por manipulação (GRÁFICO 2), não podemos considerar que os objetos tiveram seus valores decrescidos, pois todas as imagens ainda podem ser visualizadas. Perda de valor apenas notável. [B = 2]

C: Quanto do valor total do arquivo é afetado?

TABELA 4 – ABC risk assessment scales for museum collections.

Podemos dizer que parte significativa das provas fotográficas da Rádio Nacional foi afetada por algum tipo de intervenção ou sofre até mesmo danos causados pelo meio ambiente. [C= 4]

A+B+C=11

Ao conferirmos a magnitude de risco verificamos que as provas fotográficas da Rádio Nacional possuem alta prioridade. Ou seja, perda significativa de valores no período de uma década ou perda total em cem anos. Estes valores são comuns em instituições onde a conservação preventiva nunca foi prioridade ou onde preciosos artefatos estão expostos em locais de fácil roubo.

Compreender a realidade da instituição e o contexto são ações primordiais para a proposição e execução, do ponto de vista financeiro e pessoal, de uma política de organização e gerenciamento do arquivo.

Para ampliar o acesso do Arquivo e permitir que ele seja revisto e reencontrado sugerimos a elaboração de um protocolo de digitalização potencializando a pesquisa teórico-prática e transformando-o em um piloto incentivador para uma política de divulgação do patrimônio cultural.

No entanto, é preciso realçar que a realização da digitalização requer atenção especial para as normas de captação da imagem e armazenamento das cópias digitais.

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A preservação digital é de extrema importância. Devemos ficar atentos e acompanhar as transformações tecnológicas, pois a obsolescência do material eletrônico é rápida.

Pretendemos com as ações do reencontro e da digitalização preservar o Arquivo das provas fotográficas da Rádio Nacional e criar um Arquivo digital “vivo”, circulante, que não se torne “morto”, estanque, guardado em discos rígidos e DVDs. Conhecer, reconhecer, preservar, divulgar, publicar, prover acesso e usar as imagens da Rádio Nacional do Rio de Janeiro são prioridades nesta pesquisa.

____________Notas1. GOMES, 2008.2. PAVÃO, 1997.3. MURCE, 1976, p.71.4. Edna Dantas concedeu entrevista à pesquisadora no dia 9 de abril de 2007 na Rádio Nacional do Rio de Janeiro.5. Disponível em: <http://www.cbmerj.rj.gov.br>. Acesso em: mar. 2007.6. SAROLDI, 2005, p. 192.7. HANDBOOK: Risk management guidelines. Joint Australian/New Zealand Standard, AS/NZS 4360, 2004.

__________

Referências BESSER, H. Digital longevity. In: SITTS, Maxine (Ed.). Handbook for digital projects: a management tool for preservation and access. Andover MA: Northeast Document Conservation Center, 2000. p. 155-166.

GOMES, Gabriela de Lima. Ver para crer: um novo olhar para os arquivos fotográficos. Dissertação (Mestrado em Artes) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008.

PAVÃO, Luís. Conservação de coleções de fotografia. Lisboa: Dinalivro, 1997.

PEDERSOLI, José Luis. Principles of risk management. Apresentação Safeguarding Sound and Image Collections. ICCROM, Internatinal Course. Brasil, 2007.

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MICHALSKI, Stefan. Scales for Calculating Magnitude of Risks. Apresentação Preventive Conservation: ReducingRisks to Collections. ICCROM-CCI, International Course. Canadá, 2006.

MURCE, Renato. Bastidores do Rádio: fragmentos do rádio de ontem e de hoje. Rio de Janeiro: Imago Editora LTDA, 1976.

SAROLDI, Luis Carlos; MOREIRA, Sonia Virgínia. Rádio Nacional: o Brasil em sintonia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

ZÚÑIGA, Solange Setta Garcia. Divagações mais ou menos contemporâneas acerca das coleções de imagens. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Fotografia, n° 27, 1998.

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Acervo de artista: a narrativa de uma memória escondida

Arethusa Almeida de Paula. Doutoranda PPGA-EBA-UFMG

Yacy-Ara Froner (Orientadora)

Resumo:

A produção artística da década de 1960 e 1970 tem sido constantemente revista e analisada. Os acervos dos artistas desta época se tornaram uma grande fonte de pesquisa sobre esta produção e sobre como a arte se articulava dentro deste contexto histórico.Dessa forma, muitos desses acervos não se encontram institucionalizados, e assim, os próprios artistas procuram a preservação de sua memória num espaço muitas vezes ainda em construção. Portanto, como conservar e catalogar os acervos de artistas contemporâneos? Como os pesquisadores tanto da área de História da Arte e também da Ciência da Conservação poderão ajudar na conservação desta memória?A parceria entre artistas e pesquisadores é de suma importância, não só para a preservação de uma história, mas também para a divulgação e análise de uma produção artística muitas vezes escondida no interior de acervos pessoais.

Palavras chaves: História, Arte Contemporânea, Ciência da Conservação, Acervos de Artista.

Abstract:

The artistic production of the 1960 and 1970 has been constantly reviewed and analyzed. The collections of the artists of this time became a major source of research on this production and how the art was articulated within this historical context.Thus, many of those collections are not institutionalized, and thus, the artists themselves seek to preserve their memory in an area often still under construction.So, how to preserve and catalog the collections of contemporary artists? How the researchers of both the area of History of Art and Science of Conservation can help conserve this memory?The partnership between artists and researchers is of paramount importance not only for the preservation of a history, but also for the dissemination and analysis of artistic production often hidden inside personal collections.

Keywords: History, Contemporary Art, Conservation Science, Collection of Artist.

A produção artística da década de 1960 e 1970 tem sido constantemente revista e analisada. Os acervos dos artistas desta época se tornaram uma grande fonte de pesquisa sobre esta produção e sobre como o campo das artes se articulava dentro deste contexto histórico em que a mesma ganha um campo expandido de possibilidades.

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Muitas das pesquisas efetuadas atualmente não conseguem abarcar a totalidade da produção desses artistas. Isto é agravado se o artista estiver vivo e produzindo constantemente.

A maioria destes acervos se encontra nas mãos dos próprios produtores, longe de exibições públicas, fora das instituições de artes (museus, galerias, centros culturais), e muitas vezes sem organização, catalogação e conservação adequada. Seu manuseio se dá através de sua reorganização solitária, ou pela possibilidade de alguns trabalhos serem expostos ou estudados. Dessa forma, os artistas procuram preservar sua própria memória num espaço muitas vezes em construção. Como bem assinala Cristina Freire, em relação aos arquivos de artistas:

É interessante notar como nesses acervos particulares arte e vida se mesclam mais uma vez. À parte de qualquer categorização abstrata, o material se entrelaça e é reconstruído pelas elaborações da memória daqueles que o mantêm. Nessa medida, esses arquivos têm como estrutura um sistema de memória que escapa aos interesses do circuito de arte tradicional e da narrativa oficial e hegemônica. Tudo aí tem um lugar e valor correspondente. (FREIRE, 2006, p.170)

O objetivo do presente artigo é destacar o acervo de dois artistas, quais sejam, Ivald Granato e Regina Vater, que possuem significativa produção realizada nas décadas de 1960 e 1970, e que ainda não se encontra institucionalizada.

Por causa da minha dissertação de mestrado, pude ter acesso ao acervo de Ivald Granato, que organizou um evento em São Paulo, no ano de 1978, chamado Mitos Vadios que foi meu objeto de estudo. A importância deste evento se dá pela crítica as grandes instituições de arte, em especial a Fundação Bienal de São Paulo, que realizava a primeira Bienal Latino Americana. Contou com a participação de vários artistas brasileiros e da América Latina, como por exemplo, Hélio Oiticica, Ligia Pape, Artur Barrio, Alfredo Portilhos, entre outros, apresentando trabalhos efêmeros e performances.

No primeiro encontro, realizado em 2006, seu arquivo ainda se apresentava sem uma organização sistemática, e o artista mostrou o que achava mais pertinente dentro de sua produção artística até aquele momento. Além de seus trabalhos, em sua casa/ateliê estão expostas e guardadas obras de outros artistas, como Joseph Beuys, por exemplo, adquiridas em suas reuniões, ganhadas ou até mesmo compradas.

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Entretanto, no segundo encontro, em 2008, Granato já apresenta seu arquivo bem mais organizado, contando com a ajuda de uma assistente, que compilou todos os documentos e imagens separadas em pastas referentes à década na qual foram elaborados e apresentados. Porém, um trabalho efetivo de catalogação e de conservação dos mesmos nunca havia sido feito até aquele momento . A preocupação do artista em organizar seus próprios fragmentos de memória construindo, assim, sua própria história, está presente a todo o momento em que se tem contato com ele. Um exemplo dessa vontade ficou evidente quando ele mostrou seu primeiro livro intitulado “Ivald Granato: art performance”, lançado em 1979, que traz uma compilação de textos de alguns críticos, e várias imagens de performances desenvolvidas nesta década.

Focando no evento Mitos Vadios, e analisando a organização desses documentos, temos como exemplo as fotografias realizadas por Lóris Machado, cunhada de Granato. Estas já apresentavam os efeitos do tempo, ou seja, uma coloração amarelada, e estavam dispostas em três pequenos cartazes, um pouco maior que a medida de uma folha A3 (29 cm x 42 cm) – infelizmente, uma delas se encontra rasgada –, em que o artista faz um painel com as provas das fotografias.

Imagem do painel de fotografias organizado por Ivald Granato. Arquivo pessoal Ivald Granato.

Reprodução Fotográfica: Arethusa Almeida de Paula, 2008

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Já os recortes de jornais que noticiaram o acontecimento estão dispostos em papelões de 56 cm x 40 cm, fixados com cola comum, formando uma espécie de pasta. Alguns não apresentam data, nome do jornal do qual foram retirados ou até mesmo o nome do jornalista que escreveu sobre o evento. Os jornais que se destacam são: Folha de São Paulo, Jornal da Tarde, Tribuna da Imprensa, Gazeta de Pinheiros, Diário de São Paulo e as notícias foram compiladas, de acordo com o artista, pela sua secretária na época.

Imagem da organização dos recortes de jornais sobre o evento Mitos Vadios localizados na residência do artista Ivald Granato.

Reprodução Fotográfica: Arethusa Almeida de Paula, 2006.

O artista, na época da entrevista, mostrou que tem uma preocupação nítida com o que está guardado ali, deixando-o até mesmo um pouco resistente em abrir esse universo para pesquisa. Dessa forma, podemos notar que Granato é o detentor daquela memória, levando-a a público no momento em que ele considera mais adequado.

Não pretendo fazer uma crítica ao artista por essa decisão, mas é bom refletirmos diante dessa atitude, visto que ali estão guardados documentos importantes para a Historiografia da Arte brasileira, e cabe aos pesquisadores entrar em contato com este acervo, e não só ao artista tomar as rédeas de sua divulgação.

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Regina Vater é uma artista multimídia. Vídeo, performances, instalações, poesia visual, livros de artista, arte digital, desenho e pintura são algumas das linguagens experimentadas por ela. Suas bases artísticas encontram-se arraigadas nas experiências propostas pelos artistas brasileiros da década de 1960. Foi amiga de Hélio Oiticica (1937-1980) e Lygia Clark (1920-1988), com quem estreitou laços quando morou no exterior pela primeira vez, e os considera como grande influência para o desenvolvimento de sua poética.

Em relação ao seu acervo, este se encontra na cidade de Austin nos Estados Unidos. Não tive contato físico com o espaço, porém este me foi aberto para pesquisa através de contatos por e-mail realizados com a artista, em decorrência do projeto de doutoramento.

São mais de 150 (cento e cinqüenta) e-mails em que a artista envia imagens de seus trabalhos desde a década de 1960. Nestas mensagens, pode-se ter uma idéia de sua produção e dos documentos que acompanham as mesmas, visto que Regina Vater escreve sobre o que produz. Também, são enviadas imagens de catálogos raros, como o da Exposição Artistas Brasileiros na Bienal de Paris, em 1967, mostra realizada por advento da convocação de artistas brasileiros para a Bienalle de Jeunes na França e que foi censurada pela Ditadura Militar instaurada em 1964.

Catálogo da Exposição “Artistas Brasileiros na Bienal de Paris, 1967. Acervo pessoal da Artista.

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Diferente de Ivald Granato, Regina Vater se mostra bastante generosa ao abrir seu acervo e conceder as imagens para pesquisa. Por viver nos EUA desde a década 1980, acaba por produzir e expor neste país, se afastando do meio artístico brasileiro. Dessa forma, com o crescente interesse pelos artistas brasileiros dos anos 1960/70, e por sua produção, a artista volta ao cenário brasileiro em exposições e trabalhos científicos. Se seus trabalhos ganham a necessidade de um estudo, é porque a artista possui uma obra que dialoga com o tempo passado e atual da arte brasileira e internacional. O que o acervo destes dois artistas tem em comum? A tentativa de uma organização pessoal de sua própria memória. São diversos documentos que versam sobre a história da arte brasileira numa determinada época e que não podem ser deixados sem uma pesquisa efetiva. E sem uma organização, uma catalogação e também uma conservação, esta história pode ser perdida a qualquer momento. Deve-se pensar esses acervos com a importância dada aos documentos históricos, ou seja, deve-se pensar os escritos e objetos encontrados nesses lugares de acordo com todo o contexto social, político, econômico e cultural do momento em que foram criados. É necessário que se busque depoimentos não só do artista, mas de quem trabalhou com ele e de quem analisou sua produção. Como bem explícita Jacques Le Goff: “O documento, o dado, já não existem por si próprios, mas em relação com a série que os precede e os segue, é o seu valor relativo que se torna objectivo e não sua relação com uma inapreensível substância real” (1982, p.99). Assim caracterizados, os acervos de artistas passam do âmbito particular para uma esfera pública, gerando conhecimento. Não que este deva ser institucionalizado ou transformado num espetáculo ditando valores de exibição e novidade, e sim, que se possa saber o que existe dentro desses espaços atribuindo-lhes um potencial gerador de conhecimento histórico e científico. Ainda citando Le Goff:

A intervenção do historiador que escolhe o documento, extraindo-o do conjunto dos dados do passado, preferindo-o a outros, atribuindo-lhe um valor de testemunho que, pelo menos em parte, depende da sua própria posição na sociedade da sua época e da sua organização mental insere-se numa situação inicial que é ainda menos “neutra” do que a sua intervenção. O documento não é inócuo. É antes de mais o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo o silêncio.

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O documento é uma coisa que fica, que dura, e o testemunho, o ensinamento (para evocar a etimologia) que ele traz devem ser em primeiro lugar analisados desmistificando-lhe o seu significado aparente. (LE GOFF, 1982, p.103)

Visto que os artistas atualmente possuem a liberdade de caminharem por todos os períodos da História da Arte e também de utilizarem qualquer material disponibilizado pela indústria e tecnologia, a necessidade de se acompanhar mais de perto esta produção artística se torna de extrema importância.

E mesmo que não se possa dar valor artístico e crítico imediato ao que é produzido dentro dos ateliês, é importante pensarmos que este material deve ter um aparato técnico de conservação para que não se perca, pois são objetos que traduzem as forças plásticas de uma determinada época.

A solução para a preservação dessa memória seria a junção de forças entre artistas, historiadores, críticos de arte, pesquisadores e cientistas da área de conservação.

Sabe-se que a interdisciplinaridade entre os campos que tem como foco a pesquisa em arte recentemente tem buscado um trabalho em conjunto, visto que um necessita dos dados do outro. Quando se trata de objetos e documentos de Arte Moderna e Contemporânea, estes dados de pesquisa podem ser ainda mais conflitantes, especialmente quando se tem um grande volume de produção e precariedade de materiais. De acordo com Giacomo Chiari e Marco Leona:

Art historians, archeologists, museum curators, conservators, and architects generally recognize that understanding the material aspect of an object is necessary to comprehend it and its original context fully. Art is often solely understood as an inspired act of creation by an individual artist. While the artist’s concept is certainly a component of the art objetct, the technique and the materials used are equally important. On the purely aesthetic side, they ultimately determine the final visual effect, and they have been chosen and manipulated by the artist with this in mind. On a broader scale, materials, and techniques are an expression of the society in which the artist lived, and they reflect the role of the artist as a techinologist. When the hidden technological information (the availability and choices of materials, studio practices, etc.) is revealed, a window is opened onto the economics of the period in wich the object was created. The conservation scientis – by focusing

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on the material aspects of the work ad by illuminating the link between the hand and the society that created it – plays a major role in this effort to contextualize the artwork. (CHIARI; LEONA, 2005,p.7)

Portanto, os esforços para um trabalho em conjunto se tornam necessários, pois a organização e conservação desses documentos e obras de arte dão o suporte para uma contextualização histórica e para a análise estética dos mesmos.

Ao elevarmos os acervos de artistas à condição de documentos, damos aos mesmos o patamar de objetos de pesquisa científica. Dessa forma, longe de entrar nas discussões referentes aos campos teóricos e científicos da área de pesquisa em Artes, reforço a necessidade, não só do estudo, mas também, da preservação da memória escondida nesses espaços que são testemunhos de parte da história e da identidade de um povo, independentemente da época de sua produção.

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Referências

ARCHER, Michael. Arte Contemporânea: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

BURKE, Peter. (org). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992.

CHIARI, Giacomo; LEONA, Marco. The state of conservation science. In: The Getty Conservation Institute Newsletter. Los Angeles: The Getty Conservation Institute. vol. 20. nº 2, 2005.

DANTO, Arthur C. Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história. São Paulo: Odysseus Editora, 2006.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

FIDELIS, Gaudêncio. Arte contemporânea e instituições: a problemática envolvida na circulação do objeto artístico. Disponível em: <http://iberecamargo.uol.com.br/content/revista_nova/artigo_integra.asp?id=27> Acesso em: 2006.

FREIRE, Cristina. Paulo Brusky: arte, arquivo e utopia. São Paulo: Companhias Editoras de Pernambuco, 2006. p.170.

GONÇALVES, Yacy-Ara. Os domínios da memória: um estudo sobre a construção do pensamento preservacionista nos campi da Museologia, Arqueologia e Ciência da Conservação. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo, 2001.

LE GOFF, Jacques. Documento/monumento. In: Memória/História. Portugal: Nacional Casa da Moeda, 1982. p. 99.