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ISSN 1806-7328 CADERNOS DA ESTEF Revista Semestral N° 44 2010/1 EM BUSCA DA FONTE ESTEF Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana Porto Alegre (RS) Brasil

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ISSN 1806-7328

CADERNOS DA ESTEFRevista Semestral

N° 44 � 2010/1

EM BUSCA DA FONTE

ESTEF

Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana

Porto Alegre (RS) � Brasil

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SUMÁRIO Em busca da fonte! ...............................................................................3 No princípio era a comunicação Valores franciscanos fundamentais

Os religiosos leigos na Igreja: uma aproximação teológica

Um Deus frágil e desnudo

A práxis do sensus Þ delium (I)

Deus ou Mamon: quando o dinheiro se torna divino

Ética ambiental: uma introdução à ecologia profunda Teologia e hermenêutica: aproximações críticas

.......................................................95 O silêncio dialético de Maria

Crônicas Homilia de Corpus Christi - D. Ângelo Salvador ..........................120 Recensões P. Maranesi. Facere misericordiam: la conversione di Francesco di Assisi (A. Crocoli) ......................................................125

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ÉTICA AMBIENTALBREVE INTRODUÇÃO À ECOLOGIA PROFUNDA

Luís Evandro Hinrichsen36 Doutor em FilosoÞ a, Professor do Unilasalle

e da PUCRS, ex-aluno da Estef _________________ _________________

Resumo: O triunfo da tese moderna, baseada no poder preditivo e dominador da ciên-cia sobre a natureza, decretou a separação entre seres humanos e criação. A crise ambiental vivida contemporaneamente se encontra, especialmente, sustentada na oposição entre mente dominadora que prevê e mundo habitado, entendido como reserva inesgotável de recursos a serem capturados, transformados e mercantilizados. Entretanto, ao objetiÞ car a criação, o ser humano torna-se, igualmente, descartável. Na ecologia profunda encontramos novo paradig-ma capaz de nos auxiliar na tarefa de cultivo responsável do mundo pela defesa e promoção da criação. Francisco de Assis, testemunho da integração entre ser humano e cosmo criado, nos inspira e convida à tarefa de, ao redescobrirmos nossa comum responsabilidade para com a casa planetária, adotarmos gestos cuidantes, promotores da habitabilidade do mundo.

Palavras-chaves: Crise ambiental, Percepção, Ecologia Rasa, Ecologia Profunda, Prin-cípio Gaya, responsabilidade planetária, dignidade da criação, técnica, Dasein, Habitabili-dade.

Louvado sejas, meu senhor, com todas as tuas criaturas.Francisco de Assis

INTRODUÇÃO

O ser humano pertence ao planeta que o abriga, em consequência, precisa cuidá-lo, cultivá-lo, torná-lo habitável. Entretanto, os acelerados processos cien-tíÞ co-tecnológicos, a globalização eco-nômica, a objetiÞ cação da vida propicia-ram desencontro entre a humanidade e a casa que a abriga. Pensar ecologicamen-

te implica, assim, em re-ver conceitos e práticas, assumindo, concretamente, compromissos na direção da preservação e cuidado do mundo que nos acolhe. Pre-tendemos, brevemente, reß etir sobre a situação descrita, na tentativa de re-ligar ética e ecologia, homem e Terra.

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1. CRISE É OPORTUNIDADE DE REVISÃO DE CONCEITOS E PRÁTICAS

A civilização, baseada no uso irra-cional dos combustíveis fósseis e sus-tentada pelo consumo predatório, pensa-mos, ultrapassou os limites de sua pos-sibilidade1. A globalização econômica, os processos de mundialização e unifor-mização cultural, as desigualdades entre pobres e ricos2, a crescente violência em escala global, a morte de ecossistemas pela fútil exploração mercantil de suas ri-quezas, o consumismo predatório, a crise climática são sinais de que vivemos um momento de singular importância. Pela primeira vez, os problemas são autenti-camente, globais. A crise que vivemos questiona, radicalmente, nossos concei-tos, valores e atitudes. É preciso mudar!

1.2 Crise de percepção

Os sinais enunciados, denuncia-dores de inédita crise global, também resultam do modo como percebemos e concebemos o mundo. Fomos treinados para pensar analiticamente, supondo que o todo é conseqüência, tão-somente, da simples soma de suas partes3. Descon-siderando a relação originária homem-mundo, observamos os entes naturais como máquinas [montáveis e desmon-táveis], passíveis, apenas, de descrição empírico-matemática. O triunfo da vi-são cartesiana-newtoniana4, baseada no modelo dos sólidos, permitiu conceber

1 Capra (FRITJOF. O Ponto de Mutação. São Paulo: Cultrix. 1997. p.19) aÞ rma: �As últimas décadas de nosso século vêm registrando um estado de profunda crise mundial. É uma crise complexa, multidimensional, cujas facetas afetam todos os aspectos de nossa vida � a saúde e o modo de vida, a qualidade do meio ambiente e as relações sociais, da economia, tecnologia e política. É uma crise de dimensões intelectuais, morais e espiri-tuais; uma crise de escala e premência sem precedentes em toda a história da humanidade. Pela primeira vez, temos que nos defrontar com a real ameaça da extinção da raça humana e de toda a vida no planeta�.2 As desigualdades econômicas [no interior das nações e nas relações entre países centrais e periféricos] conti-nuam acentuando o hiato entre aqueles que têm acesso aos bens de consumo indispensáveis à sobrevivência [alimento, água potável, remédios, escola, trabalho e lazer] e aqueles que estão abaixo do nível de pobreza. A mundialização, entendida como uniformização cultural, acrescentamos, des-territorializa culturalmente, tanto os consumidores da cultura de massa, quanto os emigran-tes que saem de seus países na busca de uma existência digna. São questões importantes que merecem nossa atenção.

3 Capra (FRITJOF. A Teia da Vida. São Paulo: Cultrix, 1998. p. 23) declara: �Quanto mais estudamos os prin-cipais problemas de nossa época, mais somos levados a perceber que eles não podem ser entendidos isolada-mente. São problemas sistêmicos, o que signiÞ ca dizer que estão interligados e são interdependentes. [...] Em última análise, esses problemas precisam ser vistos, exatamente, como diferentes facetas de uma única cri-se, que é, em grande medida, uma crise de percepção. Ela deriva do fato de que a maioria de nós, e em es-pecial nossas grandes instituições sociais, concordam com uma visão de mundo obsoletas, uma percepção da realidade inadequada para lidarmos com nosso mundo superpovoado e globalmente interligado�. A crise am-biental que presenciamos, além de repousar em práti-cas inadequadas, sustentar-se em estruturas econômicas e sociais frágeis, encontra � nos conceitos pelos quais formamos a imagem do mundo e lidamos com nossos problemas fator que precisa ser levado em conta. Pe-los conceitos que aceitamos acriticamente, de fato, acei-tamos comportamentos, justiÞ camos práticas, legitima-mos agressões à vida humana e à vida em geral. O que deve mudar primeiro? As estruturas sociais, econômicas e política precisam mudar, concomitantemente, com a mentalidade. É urgente, pois, uma revolução conceitual que possibilite perceber, conceber e agir na direção de um mundo habitável.4 Para Descartes, a mente [coisa pensante] é capaz de descrever [medindo] as coisas extensas [dotadas de largura, altura, profundidade e peso], segundo regula-

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que todas as coisas estranhas à mente eram, apenas, coisas extensas capazes de mensuração.

Tudo se encontra, todavia, intrin-cada e complexamente interligado. Vejamos uma ß oresta. Poderíamos per-correr, por exemplo, os trechos de mata Atlântica existentes nos contrafortes da Serra do Nordeste do RS. Que tal visi-tarmos a localidade de Barra do Ouro? Lá chegando, percorramos seus rios, ca-choeiras e matas.

Permaneçamos junto da margem do rio observando o movimento das águas, dos galhos das árvores a balancear pelo impulso do vento, dos pássaros e inse-tos. VeriÞ caremos que tudo está inter-ligado. As raízes das árvores abrigam seres microscópicos, em processo de mútua dependência. Na superfície do solo, miríades de seres efetuam trocas vitais. No alto das árvores, pássaros, bu-gios, répteis e insetos vivem, procriam e embelezam a paisagem. As árvores protegem as margens dos rios pedrego-

sos de Barra do Ouro e suas nascentes. Os rios fornecem, generosamente, água. Mamíferos, aves, répteis, insetos, plan-tas e microorganismos dependem dessa água gratuitamente doada. A descrição, de relativo teor poético, mostra a inter-conexão de todos os habitantes da Mata. Ocorre uma co-pertença e intensa cola-boração.

Para o pensamento integrativo e sistêmico, a par do exemplo, o todo não é a simples soma das partes que o com-põem, mas, o resultado dinâmico, vivo, criativo e interdependente das partes que o constituem5. Na parte está o todo e no todo está a parte. O processo ana-lítico cartesiano, enquanto estratégia descritiva, é parcialmente válido. Con-tudo, é preciso superar a visão analítica na direção de compreensão integrativa, sistêmica e complexa da vida e dos pro-blemas humanos6.

Os seres vivos, igualmente, não são máquinas, pois as máquinas são ar-

ridades matemáticas. Essa concepção permitiu o avanço das ciências experimentais, mas desconsiderou a relação homem-mundo. A relação sujeito-objeto, pressuposta no modelo cartesiano, desconhece que a inserção do ho-mem no mundo é anterior ao acontecimento das ciências experimentais. Antes de as examinar em laboratório, para exempliÞ car, as coisas existem e têm signiÞ cado para a vida de cada pessoa. O que é mundo [esse a priori concreto]? O mundo é a totalidade prévia de sentido que acolhe cada ser humano, sendo constituído pela lingua-gem. O existir originário não acontece, assim, no espaço geométrico de Descartes [representação], mas no espaço existencial. Ora, se a ciência é necessária, entretanto, ela parte de nossa inclusão no mundo. O engano de Descar-tes foi conceber que a relação mente-objeto é anterior à situação homem-mundo. Fritjof Capra em �A concepção mecanicista da vida� (In: O Ponto de Mutação, 1997, p.95-115) possibilita veriÞ carmos o impacto da visão mecanicista sobre nossas vidas. a

5 Para Capra (1998, p.46) segundo a perspectiva sistêmi-ca, �o primeiro critério, e o mais geral, é a mudança das partes para o todo. Os sistemas vivos são partes integra-das cujas propriedades não podem ser reduzidas às par-tes menores. Suas propriedades essenciais ou sistêmicas são propriedades do todo, que nenhuma das partes pos-sui. Elas surgem das relações de organização das partes � isto é, de uma conÞ guração de relações ordenadas que é característica dessa determinada classe de organismos ou sistemas. As propriedades sistêmicas são destruídas quando um sistema é dissecado em elementos isolados�. Com efeito, isolar as partes do todo, dissecando-as [objetivando-as e isolando-as] resulta em compreensão insuÞ ciente, reducionista e artiÞ cial. Sobretudo, quan-do, após dissecação do todo, tendo examinado artiÞ cial-mente seus constituintes, o remontamos desconsideran-do as complexas e ricas relações efetuadas pelas partes na totalidade que formam.6 Cf. �A concepção sistêmica da vida� em CAPRA (1997, p.259-298).

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tiÞ ciais, montáveis e desmontáveis. Os seres vivos nascem, se desenvolvem, se adaptam criativamente, se reproduzem, vivem e morrem. Os seres vivos sentem e se adaptam criativa e cooperativamen-te ao espaço vital que os acolhe. O mo-delo máquina, portanto, é insuÞ ciente para entender os fenômenos que acon-tecem no espaço da vida � no planeta que habitamos.

A crise ambiental, portanto, resulta de nossa incapacidade de perceber os fenômenos integrativamente e de, reati-vamente, justiÞ car práticas predatórias através de conceitos equivocados. Pen-sar integrativamente supõe re-ligar as diversa dimensões da vida humana, pro-pondo, sistemicamente, os problemas que nos afetam. Como pensar as ques-tões econômicas, ambientais, sociais, ecológicas e éticas? Separadamente? Ou Integrativamente? Eis um desaÞ o e tanto, pois estamos condicionados a tra-balhar com áreas e questões estanques e despreparados a pensar complexamen-te7.

A Terra, ser vivo ao qual pertence-mos, todavia, a cada instante nos con-vida a reaprender a ver, escutar, pensar, agir e ser. Razão e sensibilidade profun-da, nesse sentido, necessitam ser ativa-das � desde a totalidade do humano � na perspectiva do reencontro da posição e compromisso do homem no mundo.

2. ECOLOGIA PROFUNDA

É importante distinguir a ecologia rasa da Ecologia profunda. O Þ lósofo norueguês Arne Naess, nos anos 70, re-alizou tal diferenciação, hoje, majorita-riamente aceita8. Os seres humanos, para a ecologia rasa, estão situados acima e fora do cosmo, são o critério e origem de todos os valores. Os entes naturais possuem, tão-somente, valor instrumen-tal. O ser humano, segundo a Ecologia profunda, entrementes, é parte integrante do cosmo. O mundo, na visão ecológica profunda, não é um mero agregado de coisas, mas rede de fenômenos interde-pendentes que se encontram, fundamen-talmente, interconectados. A Ecologia profunda �reconhece o valor intrínseco de todos os seres vivos e concebe os se-res humanos apenas como um Þ o parti-cular da Teia da vida9�.

A Ecologia profunda, segundo Ness, implica em realizar perguntas profundas relativas às questões complexas que nos envolvem10. Supõe realização de autênti-ca revolução espiritual � pela aÞ rmação da dignidade intrínseca de todos os seres vivos, através da ativação de percepção interconexa dos fenômenos planetários � e, sobretudo, na efetivação de mudanças conceituais e comportamentais.

Nos dias presentes, a compreensão ecológica-profunda das questões huma-nas e planetárias revela-se desaÞ o incon-tornável. VeriÞ camos crescente apropria-ção mercantil [instrumental] da causa e

7 Sugerimos leitura de �O paradigma complexo� (In: MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2007. p.57-93). No referido capí-tulo Edgar Morin descreve a complexidade e os para-digmas concernentes à mútua-implicação que envolve todos os processos humanos e cósmicos.

8 Cf. CAPRA, 1998, p.25-26.9 Ibidem, p.26.10 Ibidem, p.26.

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aÞ rmações do movimento ecológico. Se o marketing verde �vende�, entretanto, suas ações cosméticas ocultam as razões profundas da crise ambiental, estimulam o consumo predatório, perpetuando vi-são �ecológica rasa e superÞ cial�.

Pensar, segundo as reivindicações da Ecologia profunda, é desaÞ ador, pois, supõe, salientamos, mudanças mentais, culturais e práxicas. Tais solicitações, entretanto, nos âmbitos cientiÞ co, Þ losó-Þ co, social, econômico, ético e espiritual nunca foram tão urgentes e necessárias. Agentes éticos, necessitamos ultrapassar a superÞ cialidade, precisamos ingressar num novo estágio de responsabilidade compartilhada. É urgente mudar!

3. O PRINCÍPIO GAYA11

A percepção ecológica profunda, já dizíamos, implica em mudanças percep-tivas, conceituais e práxicas. Procurare-mos, brevemente, enunciá-las. Para tan-to, partiremos da compreensão de que a Terra é um ser vivo. Os antigos e medie-vais, as culturas primais sentiam-se parte integrante do cosmo, compreendido em sua sacralidade inviolável. Essa visão-compreensão foi desconstituída pelo movimento da ciência cartesiana, na ân-sia frenética da dominação, exploração e mercantilização dos recursos plane-tários. Capra, ao descrever as vivências dos astronautas que, pela primeira vez, viram e fotografaram a Terra do espaço, destaca as mudanças psicológicas, com-

portamentais e espirituais experimenta-das por esses pioneiros12.

A Terra, nossa casa comum, pela qual viajamos no universo, é um ser vivo constituída por complexas e comple-mentares relações. Nela, o orgânico e o inorgânico, Þ namente, se interligam. Nela, a vida - esse mistério inexplicável - acontece. A Terra é nossa casa, nossa mãe, nossa possibilidade. Somos, junto com todas as manifestações da vida, a Terra que nos acolhe e possibilita. A Ter-ra é nosso mundo: somos nela-com. Na compartilhada casa planetária acontece a Teia da vida da qual, mais do que es-pectadores passivos, somos ativos inte-grantes.

3.1 Implicações do Princípio Gaya Quais são as implicações originadas

da compreensão de que a Terra é o lócus da teia da vida da qual participamos? Se-guem algumas aÞ rmações originadas do Princípio Gaya.

11 Gaya é o nome pelo qual os antigos gregos denomina-vam a Terra, compreendida como um ser vivente.

12 Segundo Capra (1997, p.277) �A percepção conscien-te da Terra como algo vivo, que desempenhou um papel importante em nosso passado cultural, foi dramatica-mente revivido quando os astronautas puderam, pela primeira vez na história humana, ver nosso planeta a partir do espaço exterior. A visão que eles tiveram de um planeta em toda a sua refulgente beleza � um globo azul e branco ß utuando na profunda escuridão do espaço � impressionou-os e comoveu-os profundamente; como muitos deles têm declarado desde então, foi uma imen-sa experiência espiritual que mudou para sempre suas relações com a Terra. As magníÞ cas fotos que esses as-tronautas trouxeram, ao voltar, tornaram-se um novo e poderoso símbolo para o movimento ecológico e podem muito bem ser o resultado mais signiÞ cativo de todo o programa espacial�.

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3.1.1 Nossos companheiros: animais e plantas

Admitir o Princípio Gaya implica em compreender a vida em processo e rede. Ora, a defesa da biodiversidade cul-tural, animal e vegetal resulta, em novo modo de pensar e ser. Qual é o valor que, de fato, atribuo às culturas que povoam nosso planeta? Qual é o valor que, efeti-vamente, concedo à vida em todas suas manifestações e aspectos? Respeito, efe-tivamente, os outros seres humanos, os animais e os vegetais? Protejo as águas? Questiono o consumismo predatório? Valorizo as culturas primais ou originá-rias? Sou capaz de visualizar, antecipa-damente, um novo mundo � empenhan-do minhas capacidades na direção de sua viabilidade e sustentabilidade? Nos dias de uniformização cultural, depredação de nichos ambientais, é preciso, portan-to, cotidianamente, reaÞ rmar o valor da diversidade cultural e biológica, pois, tal diversidade perpetua, enriquece e forta-lece a vida planetária.

A defesa das ß orestas, dos animais, das águas continentais e dos oceanos é prática que necessita ser implementada através da mudança de conceitos e hábi-tos. E como isso é difícil! Como superar, então, a visão adocicada e asséptica do ecologismo raso e implementar práticas do ecologismo profundo? Cada um de nós é convidado a pensar sobre esse as-sunto.

Ecologistas profundos, diante da inusitada crise de nossos dias, inclusive, propugnam, para além da sustentabili-dade, o desenvolvimento estacionário. O que isso quer dizer? Como repensar,

então, os processos econômicos e as relações de trabalho? Inevitavelmente, em razão da crise ambiental, a Ecologia profunda questiona nossos conceitos, há-bitos, argumentos, práticas. Não deverí-amos temer esses questionamentos, mas enfrentá-los com coragem, visão, razão, afetividade e efetividade. Re-aprender a ser, educarmo-nos na direção da susten-tabilidade, da valorização da vida huma-na e planetária, da integratividade impli-ca em transformações para que o futuro possa acontecer. O Þ m do futuro ou um futuro viável, em suma, depende de cada um de nós e de todos. Pensemos, pois, globalmente, mas, sobretudo, atuemos local e cotidianamente, se, efetivamente, nos sentirmos responsáveis pela conti-nuidade da vida humana na comum casa planetária, compartilhada com tantas be-las e ricas formas de vida.

4. FRANCISCO DE ASSIS, SER-VO DE DEUS E GUARDIÃO DA CRIAÇÃO

O arauto do Evangelho, homem in-tegrado, testemunha � nos dias da oni-presença onipotente da técnica � cami-nhos à reconciliação de cada pessoa e de todos humanos com a criação. Francisco que, no crepúsculo de sua vida terrena cantou a beleza e dignidade do mundo ao proclamar: louvado sejas meu senhor, com todas as tuas criaturas, sentia-se parte da comum casa planetária13. Nos 13 Cf. Francisco de Assis. Cântico do Irmão Sol. In: Es-critos e BiograÞ a de São Francisco de Assis. Crônicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano. Petrópolis: Vozes, 1988.

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retiros escolhido pelo eleito do Senhor, aprendemos a rezar com a criação, pois o cosmo criado é a grande revelação de um Deus amoroso. Sabia escutar no can-to dos pássaros, no vento, nas estações do ano, nas circunstâncias da existência, a palavra viva de Deus. Nos escritos do primeiro século franciscano, encontra-mos inúmeras histórias da relação do pobrezinho com as criaturas, indicando zelo, devoção e dedicação a todos os se-res vivos.

No uso pobre dos bens, sobretudo, veriÞ camos expressão práxica de sua devoção a Deus pela escuta e defesa do cosmo criado. Reaprender com Fran-cisco a louvar as criaturas é, também, pensamos, reeducarmo-nos na direção do consumo responsável. O uso pobre dos bens respeita profundamente nossa casa planetária da qual, como Francisco testemunhou, somos parte integrante. A responsabilidade para com os destinos do planeta nos encaminha à reß exão so-bre o sentido do uso pobre dos bens, num ambiente devastado pelo desejo inconse-quente de posse, num tempo caracteriza-do pelo consumo irracional e num mun-do despovoado de signiÞ cados. Os Þ lhos e Þ lhas espirituais de Francisco e todos os homens e mulheres de boa vontade, tal qual testemunhou o menor irmão de todas as criaturas, são convidados, pelo exercício do uso pobre dos bens, a indi-carem novo modo de ser-aí-no-mundo. Modo de ser-aí-no-mundo penetrado pelo sentido de pertença à criação, pleno de beleza e sentido, inspirador da nossa comum responsabilidade pelo destino da comum casa planetária.

CONCLUSÃO: CUIDADO E RES-PONSABILIDADE PLANETÁRIA

Existe um paradigma - racional e in-terculturalmente - compartilhável? Apto em propor e fundamentar o mínimo éti-co? Pensamos que sim. Tal paradigma, destacando nossa comum pertença à Teia da vida, pode ser nomeado por responsa-bilidade planetária. A responsabilidade planetária, acreditamos, é expressa atra-vés do cuidado.

O que signiÞ ca cuidar? Cuidar im-plica, constatada a fragilidade do ser hu-mano � ser Þ nito e interdependente � em tornar o mundo habitável, cultivando-o. O cuidado, atitude realizadora da res-ponsabilidade planetária, não é acrés-cimo ao existir, mas modo autêntico do ser�aí-no�mundo [Dasein]. Nessa pers-pectiva, é importante ultimar transfor-mações na existência. Estamos, realmen-te, dispostos a repensar nosso estilo de vida na direção do cuidado? Desejamos, efetivamente, recuperar nossa capaci-dade de destinação? Ou continuaremos transferindo à Técnica moderna e ao estado tecno-burocrático essa tarefa in-delegável? No que consiste, então, o uso sereno dos utensílios técnicos? No que implica assumir responsavelmente a ta-refa de constituição da vida? Por que não devemos transferir responsabilidades? O que devo e posso fazer em função de vida plena e na consideração do outro? A responsabilidade planetária e sua efeti-vação pelo cuidado, enÞ m, convocam à tarefa do pensamento, pois, o que dife-rencia o ser humano de seus companhei-ros animais, é essa aptidão à liberdade,

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essa capacidade de responsabilidade. O ser humano, esse Þ o particular na Teia da Vida é decididamente responsável por sua possibilidade de futuro. Na responsa-bilidade e cuidado, destacamos, atribui-ção e distinção exclusiva do ser humano, identiÞ camos sua posição no cosmo. Ser humanamente é, por isso, habitar etica-mente o planeta. Ética e Ecologia pro-funda, reivindicam-se mutuamente, na constituição da vida humana através da ediÞ cação de um mundo habitável. Pen-semos, pois, sobre nossos compromis-sos, já que somos os guardiães da vida na comum casa planetária, tal como nos testemunhou Francisco de Assis, o can-tor de Deus e defensor da criação.

REFERÊNCIAS

CAPRA, Fritjof. O ponto de Mutação. São Paulo: Cultrix, 1997.____. A Teia da Vida. São Paulo: Cul-trix, 1998.HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Pe-trópolis: Vozes / USF, 2004.____. Serenidade. Lisboa: Instituto Pia-get, 2000. ____. O Enigma da Sociedade Indus-trial. Trad. Ernildo Stein. In: STEIN, Er-nildo. Uma breve Introdução à FilosoÞ a. Ijuí: Unijuí, 2002. p.193-202. KÜNG, Hans. Projeto de Ética Mundial. Uma moral ecumênica em vista da so-brevivência humana. São Paulo: Pauli-nas, 1992. LUTZENBERGER, José. O Þ m do Futu-

ro. Manifesto ecológico brasileiro. Porto Alegre: Movimento, 1977.MORIN, Edgar. Introdução ao pensa-mento complexo. Porto Alegre: Sulina: 2007. PELIZZOLI, Marcelo. A emergência do paradigma ecológico. Petrópolis: Vozes, 2001. SILVEIRA OFM (org), Ildefonso. São Francisco de Assis. Escritos e BiograÞ a de São Francisco de Assis. Crônicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1988.

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ANEXOO DASEIN E A TÉCNICA MODERNA:

O ENIGMA DA SOCIEDADE INDUSTRIAL14

Procuramos, resumidamente, propor o diagnóstico de Heidegger sobre a questão da Técnica moderna. Realizamos estudo da carta-resposta ao Prof. Dr. Takehiko Kogima, publicada na Revista Begegnung em 1965. Com simplici-dade e clareza, Martin Heidegger procura responder a três questões propostas pelo doutor japonês: 1 O que signiÞ ca europeização do mundo? 2 O que de-signa a perda da essência humana? 3 Onde se revela, ainda, um caminho para a dimensão própria do homem? O conteúdo das respostas, além de convidar, de modo aberto, à importante reß exão sobre o sentido da Técnica moderna, é portador de importante signiÞ cado ético; indicando a comum responsabilida-de sobre o destino no planeta que compartilhamos, sinalizando o lugar onde se esconde possibilidade de recuperação do Cuidado [Sorge], esse modo-de-ser do homem no mundo.

Diante do enigma da Técnica somos convidados a operar umdistanciamento de sua órbita. O que tal atitude signiÞ ca?

Diante do enigma da técnica15, retornando à indagação sobre o sentido da existência num mundo desconstituído, é interessante meditarmos sobre as respostas de Martin Heidegger às indagações do professor Kojima52. Ao ser inquirido sobre o que signiÞ ca a europeização do mundo, Heidegger identiÞ ca esse processo com a gradativa ocidentalização do planeta, caracterizada pela presença operativa da técnica que, ao descerrar as forças ocultas da natureza,

14 Cf. HEIDEGGER, Martin. O Enigma da Sociedade Industrial. Trad. Ernildo Stein. In: STEIN, Ernildo. Uma Breve Introdução à FilosoÞ a. Ijuí: Editora Unijuí, 2002. p. 193-202.15 No que consiste o enigma da técnica moderna? Se a pergunta pela técnica moderna não encontra satisfatória, isso não signiÞ ca que devamos desistir de indagar. Qual é o sentido da técnica moderna? A Técnica moderna, ultrapas-sando o conceito clássico de técnica [arte ou fazer com autoridade] é o resultado da aliança estabelecida entre o pensamento que calcula e domina [ciência moderna] e a técnica. Ademais, se não podemos viver sem a Técnica moderna, ao mesmo tempo, não conseguimos lidar satisfatoriamente com ela. Nisso consiste o enigma da Técnica moderna: perguntamos por um sentido que, ainda, não compreendemos. Aliás, o poder da Técnica tem-se revelado superior às capacidades do Dasein humano destiná-la. Entre o ser-aí [homem] e o mundo, a técnica se ergue como barreira impeditiva do cultivo desse mundo. Se não podemos viver sem a técnica e não podemos viver com ela, por que, então, insistir na indagação? Por que essa é a tarefa que caracteriza o ser humano: a capacidade de reß etir, meditar, indagar pelo sentido das coisas, do mundo, da existência. Enquanto insistirmos no exercício do Þ losofar, ainda seremos humanos.52 Cf. HEIDEGGER, Martin. O Enigma da Sociedade Industrial. In: STEIN, Ernildo. Uma Breve Introdução à Filo-soÞ a. Ijuí: Unijuí, 2002. p. 194-202.

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dominando essas energias, transforma todas as coisas em mercadoria. O Filósofo da Floresta Negra, ao ser questionado sobre a perda da essên-

cia do humano, enuncia � na impossibilidade de o homem da era da técnica tornar-se aquilo que, até agora, não pôde ser � a raiz dessa perda. Assim, o Dasein, desde sua Þ nitude, ao responder ao projeto da técnica, ao ser interpe-lado pela técnica a explorar racionalmente a natureza � esse fundo de reserva calculável e manipulável � esquece de si mesmo, vê-se impedido de cuidar. Impedido de cuidar, não pode realizar sua humanidade, tornando-se, tal qual a natureza que manipula, um objeto descartável.

Prosseguindo, onde se revela, ainda, um caminho à dimensão própria do homem? Se o poder da técnica domina a totalidade do mundo? O poder da interpelação produtora, ou o poder da técnica, oculta e revela aquilo que é próprio e característico do homem. Qual movimento, então, que precisamos empreender na direção da recuperação da essência do homem? Heidegger anuncia: é necessário dar um passo atrás. No que consiste esse passo? Não signiÞ ca uma fuga do pensamento para passadas eras, antes de tudo, não sig-niÞ ca um renascimento da FilosoÞ a Ocidental. Tampouco signiÞ ca o regres-so em oposição ao progresso avassalador que a tudo cultiva e transforma. O que, então, signiÞ ca esse passo para trás? O passo para trás é, antes de tudo, um passo para fora da órbita em que acontecem o progresso e o regresso da atividade produtora, da atividade da técnica. Nesse passo para trás, tornar-se-á visível o poder da técnica em transformar todas as coisas e ao próprio homem em objeto. De conseqüência, o passo para fora da órbita da técnica, permite pensá-la e, ao pensá-la, pensar o lugar do homem nesse processo. Ora, a técnica solicita o empenho do homem, o uso de sua inteligência e de suas capacidades. O apelo realizado pela técnica ao Dasein na direção do cultivo ou exploração técnica do mundo, atesta, conjuntamente, um dado revelador. Essa solicitação esconde a dimensão do cuidado que, velado, precisa ser redesco-berto. O cultivo técnico do mundo oculta, portanto, a dimensão do cuidado. Na recuperação do cuidado, velado no cultivo técnico do mundo, se encontra a esperança de tornar, novamente, esse mundo habitável, compartilhando-o, então, com todos os seres humanos e com todas as criaturas que o tornam belo e pleno de signiÞ cados. O Dasein precisa enfrentar o desaÞ o de cultivar o mundo na dimensão do cuidado, na perspectiva da sua habitabilidade. Então, recuperada a dignidade do mundo, o Dasein poderá ser o que até agora não conseguiu: ser ele mesmo, enquanto Þ nito, cuidante e responsável.