caderno subsídio_gestão ambiental e-ou territorial de-em tis (2009)[1]

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Gesto Ambiental e/ou Territorial de/em Terras IndgenasSubsdios para a construo da Poltica Nacional de Gesto Ambiental em Terras Indgenas conforme Portaria Interministerial n 276/2008

Braslia Maro de 2009

Lista de siglas

CF Constituio Federal CGDC Coordenao Geral de Desenvolvimento Comunitrio CNPI Comisso Nacional de Poltica Indigenista FUNAI Fundao Nacional do ndio GTI Grupo de Trabalho Interministerial IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis ICDPs Projetos Integrados de Conservao e Desenvolvimento MJ Ministrio da Justia MMA Ministrio do Meio Ambiente OIT Organizao Internacional do Trabalho ONG Organizao No Governamental ONU Organizao das Naes Unidas PDA Projetos Demonstrativos PDPI Projeto Demonstrativo dos Povos Indgenas PNAP Plano Estratgico Nacional de reas Protegidas PNGATI Poltica Nacional de Gesto Ambiental em Terras Indgenas PPA Plano Plurianual PPG7 Programa Piloto para a Proteo das Florestas Tropicais do Brasil PPTAL Projeto Integrado de Proteo s Populaes e Terras Indgenas da Amaznia Legal ResEx Reservas Extrativistas SIGATI Sistema de Gesto Ambiental de Terras Indgenas Agradecemos a Comisso Pr-ndio do Acre (CPI/Acre) pela cesso das ilustraes indgenas que compem o material desta edio. Ilustraes: Revista Implantao de tecnologias de manejo agroflorestal em terras indgenas do Acre CPI/Acre e MMA; Calendrio 2002 Floresta e Manejo CPI/Acre Ilustradores: AAFI Josias Mana Kaxinaw, AAFI Arlindo Bane Kaxinaw e AAFI Benke Piyanko Asheninka SNUC Sistema Nacional de Unidades de Conservao TIs Terras Indgenas UCs Unidades de Conservao UICN Unio Internacional para a Conservao da Natureza

Contedo

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Lista de siglas ................................................................................................................. iii Principais pontos convergentes entre as mltiplas vises sobre gesto ambiental e/ou territorial de/em terras indgenas ..............................................1 Principais pontos divergentes entre as mltiplas vises sobre gesto ambiental e/ou territorial de/em terras indgenas ..............................................2 Apresentao .................................................................................................................3 Parte I: Uma perspectiva sobre gesto ambiental e/ou territorial de/em terras indgenas ...................................................................................5Ponto de disperso e campo de disputas ..................................................................................5 Conceitos associados modernidade e economia do desenvolvimento ....................................6 Contexto e emergncia do problema......................................................................................7

Parte II: As Perspectivas dos Atores: definies e temas relevantes ..............................10Multiplicidade de concepes sobre gesto ambiental e/ou territorial .......................................10 Regularizao fundiria e suas interfaces com gesto ambiental e/ou territorial ........................13 Proteo e sua relao com gesto ambiental e/ou territorial ..................................................14 Conservao no contexto da gesto ambiental e/ou territorial ..................................................16 Etnodesenvolvimento e as correlaes com gesto ambiental e/ou territorial ............................18 Instrumentos de planejamento associados a gesto ambiental e/ou territorial ...........................20

Consideraes finais .....................................................................................................23 Bibliografia...................................................................................................................25

AAFI Arlindo Bane Kaxinaw

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Principais pontos convergentes entre as mltiplas vises sobre gesto ambiental e/ ou territorial de/em terras indgenas1

Pontos Convergentes Infinidade de possibilidades de significao e aplicao emprica. Campo de disputas entre vrios atores sociais Criada em funo dos processos histricos de contato com a sociedade nacional e envolvente. Conjugada s dimenses sociocultural, ambiental, econmica e poltica. Funo de planejar, controlar, coordenar e formular aes para se atingir objetivos estabelecidos para algum local, regio ou pas. Engloba a relao entre sustentabilidade econmica e social, as metas de conservao da biodiversidade, a gerao de renda e a segurana alimentar. As aes de gesto precisam contemplar outras aes, como as de sade, educao e cidadania. Em sentido amplo inclui gerao de renda. Gerir os recursos da natureza que esto dentro do territrio, com certos regulamentos. Inclui tambm uma preocupao com o uso em longo prazo dos recursos naturais. Inclui diversas aes: proteo, vigilncia, educao, sade, aproveitamento dos recursos naturais, aes de recuperao de reas impactadas, resgate de espcies ameaadas, manuteno de reas intocadas, definies de reas para manejo e aproveitamento econmico de espcies.AAFI Arlindo Bane Kaxinaw

1 As mltiplas vises apresentadas nesta e na prxima tabela foram extradas do corpo do documento e no representam definies consolidadas sobre gesto ambiental e/ou territorial de/em terras indgenas. A sntese das vrias vises presentes nas tabelas, obtidas por meio de entrevistas e consulta a documentos e bibliografias, tem o intuito apenas de facilitar o debate sobre o tema.

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Principais pontos divergentes entre as mltiplas vises sobre gesto ambiental e/ ou territorial de/em terras indgenas

ApresentaoEste documento2 resulta da demanda gerada pela Portaria Interministerial n 276, de 12 de setembro de 2008, que instituiu Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) com a finalidade de elaborar proposta de Poltica Nacional de Gesto Ambiental em Terras Indgenas. A preocupao expressa na Portaria Interministerial com a elaborao de uma Poltica Nacional de Gesto Ambiental em Terras Indgenas (PNGATI)3 surge por meio de uma articulao entre os dois principais setores do governo envolvidos com o tema Fundao Nacional do ndio (FUNAI/MJ) e Ministrio do Meio Ambiente (MMA) e o(s) movimento(s) indgena(s). Esta articulao esteve fundamentada em marcos legais anteriores, como os artigos 231 e 225 da Constituio Federal de 1988; o Decreto n 1.141, de 19 de maio de 1994, que prescreve atribuies ao MMA e FUNAI/MJ em relao proteo ambiental das terras indgenas (TIs); o Decreto n 5.758, de 13 de abril de 2006, que instituiu o Plano Estratgico Nacional de reas Protegidas (PNAP), configurando-se como um plano de gesto territorial da biodiversidade e mais uma oportunidade para os povos indgenas fortalecerem a gesto de seus territrios; e o Decreto n 6.101, de 26 de abril de 2007, que estabelece como competncia do MMA, por meio do Departamento de Extrativismo da Secretaria de Extrativismo e Desenvolvimento Rural Sustentvel, o fomento gesto ambiental e ao desenvolvimento sustentvel das populaes tradicionais e povos indgenas. Amparado pelos mencionados marcos legais, o GTI composto por seis representantes governamentais trs da FUNAI/MJ e trs do MMA - e seis representantes indgenas - dois da Regio Norte; um da Regio Nordeste; um da Regio Centro-Oeste; um da Regio Sul; e um da Regio Sudeste - indicados pelos membros indgenas da Comisso Nacional de Poltica Indigenista (CNPI). A coordenao do GTI ser compartilhada por um representante da FUNAI/MJ e um do MMA, estando a cargo do rgo indigenista oficial e da Secretaria de Extrativismo e Desenvolvimento Rural Sustentvel a realizao conjunta dos servios de secretaria-executiva para o GTI. Com o intuito de subsidiar as discusses do GTI para a elaborao de uma proposta de Poltica Nacional de Gesto Ambiental em TIs, este documento oferece diversas informaes para uma reflexo inicial sobre gesto ambiental e/ou territorial de/em terras indgenas4, assim como elementos para uma discusso sobre a interface destas categorias com outras: regularizao fundiria, proteo, conservao, etnodesenvolvimento e instrumentos de planejamento. O documento, portanto, pretende apenas apontar a complexidade e a multiplicidade de vises atuais sobre gesto ambiental e/ou territorial de/em terras indgenas para contribuir deste modo com as discusses do GTI. Nesse sentido, o documento expe de forma provocadora as variadas vises presentes no cenrio nacional, ao invs de apresentar uma definio consolidada ou consensuada das categorias em questo. As principais atividades realizadas para a produo deste documento, baseadas em entrevistas com atores chaves e no levantamento e sistematizao de fontes documentais e bibliogrficas5, foram a recopilao de informaes sobre diferentes experincias existentes de gesto de/em TIs, principalmente na Amaznia Legal, desenvolvidas seja por atores institucionais nos mbitos federal e estadual, pelo movimento indgena e nas prticas indgenas, por organizaes da sociedade civil e por agncias da cooperao internacional6. Baseado nisso, este documento se constitui em mais um insumo para qualificar a reflexo, aprimorar o uso de conceitos e alimentar as discusses em torno da formulao da Poltica Nacional de Gesto Ambiental em Terras Indgenas.2 A elaborao do documento resulta de uma consultoria realizada, entre outubro de 2008 e maro de 2009, pelo Instituto Internacional de Educao do Brasil (IEB) para a Cooperao Tcnica Alem, GTZ Brasil. Trata-se de um resumo executivo de um documento analtico mais extenso sobre os conceitos de gesto ambiental e/ ou territorial de/em TIs utilizados e aplicados em diferentes mbitos regionais e institucionais. Para a confeco do documento foram realizadas diversas entrevistas com informantes-chave e consultados documentos e bibliografias referentes ao tema gesto ambiental e/ou territorial de/em terras indgenas. 3 As polticas pblicas possuem uma dimenso tcnico-administrativa e outra poltica, representando uma ao do Estado condicionada pelo interesse de diversos atores sociais. Ao formular uma poltica pblica o governo federal est, portanto, traduzindo legalmente em direitos e garantias uma demanda da sociedade. Para tanto, pelo menos trs etapas devem ser percorridas para a consolidao de uma poltica pblica: planejamento, oramento e execuo. No caso especfico da PNGATI, trata-se de poltica pblica que se encontra na fase de planejamento, de formulao. Em seguida, devem ser alocados recursos para a implementao da PNGATI. 4 Ao longo do documento h uma variao terminolgica e conceitual nem sempre muito clara entre gesto ambiental de TIs; gesto ambiental em TIs, gesto territorial de TIs; gesto territorial em TIs; gesto ambiental e territorial de TIs e gesto ambiental e territorial em TIs. Frente a essas variaes, usamos em dadas situaes a expresso gesto ambiental e/ou territorial de/em TIs com o intuito de estimular um debate sobre as categorias empregadas. 5 As atividades para produo de informaes contaram com a valiosa contribuio do consultor do IEB Carlos Alexandre B. P. dos Santos. 6 Para maiores informaes sobre as atividades realizadas deve-se consultar o item Metodologia do documento analtico que deu origem a este resumo executivo.

Pontos Divergentes Gesto Ambiental Limitada gesto dos recursos naturais de forma sustentvel. No necessariamente combina a dimenso poltica do controle territorial das terras indgenas com a dimenso ambiental de aes voltadas para sua sustentabilidade. No engloba atividades de ordenamento territorial. Toda gesto ambiental , por definio, uma modalidade de gesto territorial. Gesto ambiental como gerao de renda. Remete experincia ambientalista. Envolve a idia de conservao e de proteo ambiental. A gesto ambiental se refere quelas aes que podem ser classificadas como uma interveno humana no ambiente natural. Pensar na questo das florestas, dos rios, da fauna e flora, isso uma questo de gesto ambiental. Gesto ambiental o conhecimento das coisas que tem no territrio e as formas de uso que voc tem dos recursos naturais existentes nesse territrio. O controle poltico e o manejo ambiental do espao geogrfico que o territrio de um grupo social ou entidade poltica. Gesto Territorial Algo mais abrangente, denso e integral que a gesto ambiental. Combina a dimenso poltica do controle territorial das terras indgenas com a dimenso ambiental de aes voltadas para sua sustentabilidade. Engloba atividades tanto de ordenamento territorial quanto de gesto ambiental como parte essencial de sua implementao. Gesto territorial a prtica estratgica do poder no espao, cientificamente formulada e tecnicamente exercida. Gesto territorial como qualidade da gua, o controle da fauna e flora, questo da lenha, disperso das aldeias, zoneamento interno das reas. Remete experincia indigenista e no s ambientalista. mais ampla, pois envolve a gesto ambiental dos recursos como tambm a proteo. Quando se trabalha o territorial como um todo, inclusive a parte de uso sustentvel dos recursos, principalmente a produo agrcola, as roas. Engloba a proteo do territrio e do entorno, com a questo da conservao ambiental propriamente dita, com a questo do uso sustentvel. A gesto territorial o conjunto de aes que voc desenvolve para conseguir proteger e usar aquela terra. Aes de manejo ou gerenciamento dos fluxos biofsicos existentes nos ecossistemas para fins de conservao e uso sustentvel da natureza.

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Aps esta breve apresentao, o documento est dividido em duas grandes Sociognese um conceito partes. A primeira apresenta uma perspectiva construda a partir do processamento das fontes utilizado nas cincias sociais e do dilogo com a literatura analtica crtica sobre as noes aqui tratadas. Destaca-se a o para se referir ao surgimento esforo de esboar uma sociognese da categoria gesto na sociedade industrial e de rastrear a e desenvolvimento de categorias ou fenmenos emergncia da questo da gesto ambiental e/ou territorial de/em TIs como um problema visvel sociais historicamente e digno de considerao pelos agentes dos campos indigenista e ambiental no Brasil a partir da datados. segunda metade dos anos 1980. A segunda apresenta as diferentes perspectivas sobre o tema que conseguimos identificar por meio do processamento da literatura disponvel, dos documentos produzidos por diferentes atores chaves, de entrevistas com estes e da legislao sobre a matria. Destacam-se a algumas iniciativas referidas no conjunto desse material e as convergncias e divergncias entre os vrios formuladores e executores, que tentamos entender a partir das propriedades de posio destes. O documento fecha com consideraes finais tidas como importantes para estimular os debates no contexto da formulao e da reflexo em torno de uma PNGATI sistemtica, consistente e permanente.

Parte I: Uma perspectiva sobre gesto ambiental e/ou territorial de/em terras indgenasPonto de disperso e campo de disputasEntendemos, como outros que nos antecederam e se debruaram sobre o tema, que as categorias gesto ambiental e gesto territorial, quando empregadas em relao s TIs no Brasil, representam um ponto de disperso havendo uma infinidade de possibilidades de significao e aplicao emprica (Verdum 2006, 9). Essas categorias articulam um campo de disputas entre vrios atores sociais - fundamenta[ndo-se] nas reivindicaes polticas dos grupos e instituies que o promovem (Little 2006, 16), sendo uma questo de viso de cada ator e um campo de conflito de interesses entre instituies (consultor ad hoc, entrevista)7. Marcamos, como Little, que no h forma tecnicamente correta para definir um conceito, cada definio trazendo consigo certos pressupostos polticos que vo influenciar as maneiras pelas quais o conceito formulado e aplicado (id. ibid.). As definies oferecidas aqui - incluindo aquelas das quais partimos e que explicitamos nos prximos dois itens - tambm no pretendem ser definitivas e/ou exaustivas. So apresentadas, antes, como proposies ao debate e para estimular maior clareza e preciso no uso dos conceitos, no seu encadeamento entre si e no fornecimento de bases conceituais comuns necessrias para a construo de polticas pblicas (id. ibid.). Deixamos, contudo, a tarefa de construo de um entendimento mnimo comum (Verdum 2006, 9-10) para o GTI constitudo com o intuito de formular a poltica pblica nessa rea. H quase que uma unanimidade no reconhecimento de que a conjuntura atual dos povos e terras indgenas assume nuances distintas nas diferentes regies do pas. Isso se deve a pelo menos cinco fatores: (i) diversidade de culturas, histrias de contatos e processos de territorializao dos povos indgenas, (ii) diferentes contextos regionais, tnicos e socioeconmicos, (iii) natureza variada das ameaas que a pesam sobre povos e terras indgenas, (iv) distintas alianas e correlaes de foras entre atores regionais, e (v) mltiplas demandas e capacidades de acompanhamento, gerenciamento e articulao das prprias comunidades e organizaes indgenas. Esta certamente uma dimenso que explica a disperso de conceitos e metodologias que vm sendo empregados a ttulo de gesto ambiental e/ou territorial de/em TIs. Esta disperso implica em parcerias variadas dos povos e organizaes indgenas com diferentes instncias e instituies do poder pblico, organizaes da sociedade civil e da cooperao internacional, em distintas escalas (local, regional, nacional e internacional). Apesar dessa variedade, h uma tendncia em diversas fontes consultadas e na fala de muitos informantes chaves de se insistir no emprego do termo gesto territorial como sendo algo mais abrangente, denso e integral que a gesto ambiental. Esta ltima estaria limitada gesto dos recursos naturais de forma sustentvel. Creditamos parte dessa nfase ao lugar e ao papel que o conceito de territrio vem assumindo no Direito Internacional, por fora do ativismo poltico mesmo do(s) prprio(s) movimento(s) indgena(s) escala global, tal como expresso na Conveno no 169 da OIT (Organizao Internacional do Trabalho) sobre Povos Indgenas e Tribais, promulgada no Brasil pelo Decreto Presidencial no 5.051 de 19.04.2004. Nesta Conveno, o conceito de territrio empregado de modo sistemtico e alternado com a noo de terra. Nos dois pargrafos do Artigo 13, se convoca os governos a respeitar a importncia especial que para as culturas e valores espirituais dos povos interessados possui a sua relao com as terras ou territrios, ou com ambos, segundo os casos, que eles ocupam ou usam de alguma maneira e, particularmente, os aspectos coletivos dessa relao. Nos artigos subseqentes, observa-se que o emprego do termo terras dever incluir o conceito de territrios, o que abrange a totalidade do habitat das regies que os povos interessados ocupam ou utilizam de alguma outra forma (itlicos nossos). A conveno, portanto, engloba qualquer tipo de uso e/ou forma de ocupao e considera tanto a7 Os nomes dos entrevistados foram substitudos por referncias genricas com o intuito de preservar o anonimato dos interlocutores, conforme entendimentos prvios durante as entrevistas.

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adaptao a uma dada parcela da biosfera (habitat) quanto a importncia cultural e os valores espirituais. Ao enfatizar a dimenso coletiva da apropriao, a Conveno d uma dimenso holstica ao conceito. Por isso, segundo Little (2006, 21), a noo da gesto territorial das TIs a que melhor combina a dimenso poltica do controle territorial [destas] com a dimenso ambiental de aes voltadas para sua sustentabilidade, englobando atividades tanto de ordenamento territorial quanto de gesto ambiental como parte essencial de sua implementao. Trata-se, assim, de um claro exemplo de como o emprego de conceitos cultural e politicamente densos atravessado por consideraes e determinantes de vrias ordens, tanto para os povos interessados como para os que os apiam.

Conceitos associados modernidade e economia do desenvolvimentoDo ponto de vista da geografia poltica, as polticas ambientais dos Estados nacionais contemporneos e seus vrios instrumentos (tais como os zoneamentos ecolgico-econmicos, as reas protegidas, as avaliaes de impacto, entre outros) podem ser interpretadas como formas de poltica pblica territorial. Isso porque as polticas ambientais e seus instrumentos so aes estatais de modulao do espao e de regulao direta e/ou indireta da apropriao fundiria e dos recursos. Essas aes, tambm qualificam o espao como condio para outras e futuras espacializaes (Moraes 1994, 29-30). Ou seja, polticas ambientais e seus instrumentos do forma ao espao e regulam a apropriao fundiria e dos recursos, preparando o espao para outras ocupaes fundirias e usos dos recursos. Desse modo, toda gesto ambiental , por definio, uma modalidade de gesto territorial nos marcos de uma sociedade poltica que exerce direitos de soberania sobre uma parcela da biosfera. Como observa Little (2006, 19), territrio principalmente um conceito poltico, pois indica a extenso ou base geogrfica de uma entidade poltica, sobre a qual esta exerce soberania ou controle. A literatura crtica noo de desenvolvimento, por sua vez, observa que a noo e a prtica da gesto de recursos naturais emergem na sociedade industrial como a forma encontrada para remediar a escassez de recursos resultante d[a] destruio generalizada da natureza (Guimares 1991: 75). Somamos a esta escassez a falta de reservatrios poluveis, de lugares para dispor resduos. A crise de escassez formulada em termos de sustentabilidade e se estabelece a necessidade de impor novos limites aos processos naturais a fim de manter o desenvolvimento e o crescimento (Shiva 2000, 302 e 304). Trata-se, portanto, sempre, de tentar compatibilizar crescimento econmico e desenvolvimento com a suposta ordem das relaes ecolgicas. Desse modo, acaba-se subordinando as relaes ecolgicas ao crescimento econmico e ao desenvolvimento. Uma breve resenha de formulaes contidas em alguns manuais brasileiros sobre o tema suficiente para esclarecer este ponto (ver Box 1).

Assim sendo, como observa Sachs, a tarefa de manter o sistema industrial funcionando e ao mesmo tempo resguardar a biosfera do planeta vai demandar avanos em matria de vigilncia e regulamentao. Discurso ecocrtico O discurso ecocrtico, que se configurou na dcada de 1990 com o casamento conceitual um termo usado para se do meio ambiente com o desenvolvimento, raramente questiona o modo de vida industrial. Assim referir prtica tcnica sendo, ele estabelece para si a tarefa de compatibilizar as vrias atividades da sociedade com e administrativa de poder associada s aes todas as qualificaes, prognsticos e ferramentas da tecnologia avanada que podem reunir, voltadas a compatibilizar o almejando cada vez mais novos nveis de monitoramento e controle administrativo. Reduz-se crescimento econmico com a ecologia a um conjunto de estratgias administrativas visando uma eficincia de recursos e a conservao ambiental sob gerenciamento de riscos. Ao fazer isso, trata como problema tcnico o que de fato monta a um o rtulo da sustentabilidade. impasse civilizacional (Sachs 2000, 128-129; itlicos nossos). Reforando esse entendimento, Becker define gesto como um conceito intrinsecamente associado modernidade, posto que constitui a prtica estratgica, cientfico-tecnolgica que dirige, no tempo, a coerncia de mltiplas decises e aes para atingir uma finalidade (Becker 1988, 108). A gesto territorial, por sua vez, a prtica estratgica do poder no espao, cientificamente formulada e tecnicamente exercida, e integraria elementos de administrao de empresas e de governamentalidade, integrao esta que se torna extrema no caso da corporao estatal (Becker 1988, 108; e 1990, 212). Partimos, portanto, do entendimento que gesto uma categoria da modernidade, que emerge no contexto das crises ecolgica (escassez de recursos) e ambiental (escassez de reservatrios para dispor resduos) da sociedade industrial, como um modo de contorn-las pela ampliao da importncia da regulamentao, da vigilncia, da disciplina, do monitoramento e do controle administrativo de processos sociais e naturais, e do entrosamento de diversas atividades por meio de ferramentas tecnolgicas avanadas para lidar com aquelas crises.Etnocentrismo um conceito antropolgico que diz respeito caracterstica presente em todas as culturas de compreender as demais a partir dos seus prprios valores e sistemas de referncia, vida de regra considerando-os melhores ou superiores aos outros.

Preocupa-nos, portanto, quando essa categoria se difunde e apropriada de mltiplas formas, verdade para lidar com importantes desafios da conjuntura atual dos povos e territrios indgenas no Brasil. Dado o fato de viverem e se reproduzirem dentro de TIs formalmente definidas e reconhecidas pelo estado-nacional, num quadro de expanso demogrfica e de avano sobre seus territrios da fronteira agrcola, de obras de infra-estrutura e indstrias extrativas, e de atividades ilegais relacionadas; os povos indgenas tambm tm sido pressionados a se adaptar disciplina de emergncia global. Nesse processo, como observa Shiva (2000, 312), corre-se o risco de, a partir de uma viso determinada pela cultura e ao mesmo tempo etnocntrica, associar a rigidez, a sobriedade e a austeridade de elementos das economias indgenas - com base na terra - verdadeira privao que ocorre nas economias de mercado.

Box 1 O crescimento econmico e a poltica de preservao do meio ambiente constituem dois objetivos compatveis e interdependentes que se reforam mutuamente. [...] as questes ambientais devem ser efetivamente colocadas no centro do processo de deciso da poltica econmica nacional e plenamente integradas a outras polticas setoriais [...]. A compatibilizao dos interesses econmicos com a proteo do meio ambiente, desde as primeiras fases das polticas de desenvolvimento, alm de permitir uma utilizao mais racional dos recursos, tende a evitar que a sociedade se vulnerabilize, diante de futuros danos ambientais [Bursztyn 1994, 16; itlicos nossos]. Ora, a questo central que se apresenta sociedade moderna parece ter o seguinte contedo: como possvel promover o desenvolvimento dos pases melhorando as condies de vida e de trabalho de suas populaes, observando, ao mesmo tempo, a ordem das relaes ecolgicas dominantes em cada ambiente? [...] Busca-se [...] algumas alternativas de gesto elaboradas pela humanidade, em seus esforos para gerar modelos de desenvolvimento baseados no controle social da produo e no respeito natureza [Bressan 1996, 10; itlicos nossos]

Contexto e emergncia do problemaA preocupao com gesto ambiental e/ou territorial de/em TIs no Brasil, nos variados termos e formas em que elas hoje se expressam, nem sempre foi uma preocupao fcil de ser notada para os prprios povos indgenas (suas comunidades e organizaes), para o poder pblico (tcnicos e agncias governamentais), para as agncias bilaterais e multilaterais de financiamento e cooperao tcnica e financeira internacional, e para as entidades ambientalistas e de apoio ao movimento indgena (ONGs e religiosas) - que constituem com os povos indgenas redes de solidariedade. Dizer isso significa reconhecer que estamos diante de uma questo socialmente produzida, que se tornou visvel, digna de nota e objeto de ateno pblica principalmente para os atores dos campos indigenista e ambiental por meio de um lento processo de produo em que vetores em diferentes escalas e com diferentes ritmos se cruzaram. Destacamos nesta seo alguns vetores que seguramente contriburam para dar forma a esse problema, no propriamente em ordem de importncia e/ou cronolgica, j que correram paralelos e se influenciaram mutuamente. 1. A emergncia do(s) movimento(s) indgena(s) como ator(es) poltico(s) de direito prprio, com a proliferao de associaes indgenas de mltiplas escalas (locais, regionais, nacionais) pelo pas, e de novos movimentos sociais que

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incorporaram a dimenso ambiental s suas demandas, reivindicaes e identidades polticas em especial, a partir da segunda metade dos anos 1980 e na Amaznia. A segunda metade dos anos 1980 viu alguns dos inimigos histricos nas zonas de expanso de fronteira - povos indgenas, seringueiros, colonos e ribeirinhos formarem suas primeiras organizaes de carter regional e nacional, e forjarem alianas e coalizes entre estas organizaes em defesa de seus territrios. Observando que a crise ecolgica vivida por segmentos do campesinato e por grupos indgenas da Amaznia tem uma dimenso marcadamente poltica e ideolgica, no correspondendo questo ecolgica posta por outros setores da sociedade abrangente, Almeida nota que tais movimentos so, antes de tudo, mobilizaes pela manuteno de condies de vida anteriores a programas e projetos governamentais ou estimulados pelo governo e pela garantia do controle efetivo de territrios fundamentais identidade daqueles atores sociais (Almeida 1994, 522; ver tb Oliveira e Lima, 1999). Nesse processo, se produziram solues originais para garantir tanto a segurana da posse dos territrios ocupados por tais povos quanto a sua integridade ambiental, das quais as Reservas Extrativistas (ResEx) so a expresso mais conhecida. As ResEx seriam um tipo de gesto governamental do territrio (um instrumento de poltica territorial) que existe devido a processos anteriores de gesto social do mesmo (Little 2002). Esse mesmo raciocnio tambm pode ser aplicado s TIs. 2. As transformaes da poltica indigenista no Brasil nos ltimos 20 anos, ou seja, as mudanas na regulamentao, no desenho institucional e na praxe da administrao e dos servios pblicos relativos aos povos indgenas, suas terras e os recursos de que so usufrutrios exclusivos. Destacam-se, entre estas: (i) as alteraes substantivas no marco regulatrio com a extino formal do instituto jurdico da tutela e a redefinio da categoria jurdica Terra Indgena, que, entre outros elementos, passou a contemplar explicitamente as [terras] imprescindveis preservao dos recursos ambientais necessrios ao seu bem-estar (1, Art. 231, CF/1988); e (ii) as modificaes no procedimento de demarcao das TIs, no sentido de uma formalizao progressiva e uma caracterizao eminentemente tcnica do trabalho de identificao, com destaque (s) varivel(is) ecolgica(s) e ambiental(is) nesse processo. Tivemos o fim do monoplio da ao governamental e da concentrao de poderes de gesto dos assuntos indgenas nas mos da FUNAI/MJ, em 1991, e um conjunto de inovaes em vrias reas dos governos FHC e Lula, impulsionadas tanto pelos movimentos sociais (ver acima) quanto pela cooperao internacional (ver a seguir) que fizeram avanar a demarcao das TIs ao longo desse perodo. Isso levou percepo de que o funil demarcatrio verificado nos anos 1980 havia sido superado ao longo dos anos 1990, donde a concluso de que a realidade dos povos indgenas transitava da luta pela terra consolidao do controle sobre o territrio conquistado por meio do manejo de seus recursos, dando origem necessidade das organizaes indgenas adquirirem novas competncias e habilidades para gerir as TIs reconhecidas (ver Leite 1997, Verdum 2006 e Correia 2007). 3. A reviso das idias sobre a histrica ecolgica e cultural da Amaznia, que tem enfatizado a complexidade das formaes sociais indgenas e a diversidade ecolgica do bioma. O progressivo abandono da caracterizao anterior da Amaznia deve-se ampliao e diversificao de conhecimentos sobre os diferentes ecossistemas de floresta tropical mida e as especificidades socioculturais dos povos que neles viveram e vivem. Consolida-se o reconhecimento da interdependncia positiva entre biodiversidade e sociodiversidade e a concepo de que as florestas tropicais teriam sustentado sociedades complexas, hierarquizadas e demograficamente expressivas. Tais processos co-evolutivos teriam dimenses tanto materiais como mentais. Em termos materiais, poder-se-ia caracterizar a natureza tropical como produto cultural de uma manipulao muito antiga da flora e da fauna e os estilos de vida indgenas como Peoples and parks so sistemas complexos e eficientes de manejo de recursos. Em termos simblicos, as cosmologias termos em ingls que podem amerndias poderiam ser caracterizadas como ecologias, os mitos como planos para o uso da ser traduzidos como povos terra e os seus conhecimentos empricos das inter-relaes complexas entre organismos e seus e parques. Esses termos so meios ambientes como etnocincias. usados na bibliografia da 4. O debate sobre e as solues propostas para administrar o suposto conflito causado pela presena humana em unidades de conservao (UCs) de proteo integral, traduzido no bordo peoples and parks, mais visveis no mbito dos Congressos Mundiais de Parques e reas Protegidas. De um lado, para tentar compensar a perda de direitos territoriais tradicionais quando do estabelecimento de UCs de proteo integral, emergiu a estratgia dosBiologia da Conservao e das Cincias Sociais para fazer referncia polmica em torno da presena humana em unidades de conservao de proteo integral.

Projetos Integrados de Conservao e Desenvolvimento (ICDPs). Enquanto uma poltica compensatria, os ICDPs abarcam diversas iniciativas que procuram relacionar a conservao da biodiversidade em UCs com o desenvolvimento scioeconmico em escala local. Como observa Lima (1996), tais projetos apresentam a inteno de promover a melhoria das condies de vida da populao como retorno por sua cota de sacrifcio e como incentivo sua aceitao da proposta de preservao. De outro lado, o conservacionismo internacional paulatinamente se viu obrigado a reconhecer os benefcios ambientais diretos ou indiretos das reas de refgio(s) habitadas por povos indgenas e outros nas quais se encontra(vam) ecossistemas crticos e coberturas florestais relativamente bem conservados (ver acima). Isso levou a Unio Internacional para a Conservao da Natureza (UICN) a incorporar em seu quadro global de metacategorias a Categoria VI: rea protegida de manejo de recursos. Assim sendo, capturou-se poltica e discursivamente para dentro do conservacionismo instrumentos de poltica territorial baseados em processos anteriores de gesto social do territrio como foi o caso das ResEx no mbito do Sistema Nacional de Unidades de Conservao (SNUC) e das TIs e terras de quilombos no mbito do Plano Nacional de reas Protegidas (PNAP). Temos aqui um vetor que impele as TIs para a rbita conceitual das UCs, abrindo um canal para a exportao das ferramentas de gesto destas (planos de manejo, zoneamentos, planos de gesto) para aquelas (ver Fanzeres 2006 e Vianna et alli 2004). 5. A pesada entrada em cena da cooperao tcnica e financeira internacional e de organizaes internacionais religiosas ou no, com recursos para apoiar projetos e iniciativas relacionadas a povos indgenas e ecossistemas de valor global, no contexto da poltica internacional do desmatamento da Amaznia (Hurrell 1992), da institucionalizao da questo ambiental e do ambientalismo como movimento difuso e multisetorial. A grande repercusso miditica internacional das queimadas e o rpido aumento da taxa de desmatamento na Amaznia brasileira, e o fato do Brasil responder sozinho por 33% das florestas tropicais remanescentes do globo fizeram do pas um ator importante da poltica internacional em torno do desmatamento, pondo a Amaznia brasileira e seus habitantes no foco da ateno internacional. A traduo institucional disso no Brasil foi a institucionalizao do Programa Piloto para a Proteo das Florestas Tropicais do Brasil (PPG7), por meio do Decreto no 563 de 05.06.1992. Com seus variados subprogramas relacionados de algum modo gesto dos povos e terras indgenas (PD-A, PPTAL e PDPI), o PPG7 impulsionou algumas inovaes importantes relativas aos procedimentos de regularizao fundiria e ao apoio a iniciativas e experimentos participativos de vigilncia territorial e produo sustentvel.

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Parte II: As Perspectivas dos Atores: definies e temas relevantesMultiplicidade de concepes sobre gesto ambiental e/ou territorialAs categorias gesto ambiental e/ou territorial de/em TIs tm sido definidas de modos distintos por diversos atores sociais que atuam no campo do indigenismo. Cada vez mais apropriadas pelo(s) movimento(s) indgena(s) e pelo(s) indigenismo(s), tais categorias encontram-se atualmente envoltas em uma nebulosa de concepes e entendimentos, dificultando uma definio precisa. Ainda assim, parece ser consenso que elas vieram a ser criadas em funo dos processos histricos de contato com a sociedade nacional e envolvente (Representante do governo federal, entrevista). Nas mltiplas noes presentes nos discursos governamentais, no governamentais, das agncias multilaterais e da cooperao internacional possvel identificar uma srie de termos empregados em suas definies, entre eles: etnodesenvolvimento, desenvolvimento sustentvel, conservao, uso dos recursos naturais, capacitao, remunerao, prtica, reflexo, manejo, projetos, produo, gerao de renda, sade, reflorestamento, diagnstico, planos de gesto, planos de vida, proteo, poltica interna e externa, regularizao fundiria, instrumentos, mapeamentos, revitalizao, fortalecimento e organizao social e cultural. Esses termos implicam definies em alguns casos consensuais e em outros polmicas. No h espao, aqui, para definir cada um desses termos. Queremos, contudo, evidenciar a relao deles com gesto ambiental e/ou territorial de/em TIs. Pode-se afirmar que eles esto relacionados com pelo menos quatro dimenses interligadas: sociocultural, ambiental, econmica e poltica. Essas dimenses, como se ver adiante, se fazem presentes nas variadas definies de gesto ambiental e/ou territorial de/em TIs, evidenciando que elas encontram-se interligadas, sendo difcil separ-las quando se procura definir as categorias. Em nenhuma definio, gesto ambiental e/ou territorial de/em TIs considerada apenas por meio de uma nica dimenso, ela sempre est conjugada s quatro dimenses destacadas. Dada a amplitude dos aspectos englobados por algumas definies, deve-se ter em vista que ela pode ser definida de diversas maneiras, dependendo do objetivo que se busca qualificar (Theodoro 2005, 2-3). Em uma dessas definies, gesto ambiental teria a funo de planejar, controlar, coordenar e formular aes para se atingir objetivos estabelecidos para algum local, regio ou pas. Ela se comportaria como uma importante prtica voltada para o alcance do equilbrio dos muitos ecossistemas. Este equilbrio envolveria questes naturais, alm das dimenses econmicas, sociais, polticas e culturais, entre outras (id. ibid.). As vrias dimenses e o aspecto prtico associados gesto ambiental e/ou territorial so visveis em vrios esforos de definio, especialmente quando relacionados com as TIs. Tomando a gesto ambiental como um tema transversal, Miller afirma que ela engloba a relao entre sustentabilidade econmica e social, as metas de conservao da biodiversidade, a gerao de renda e a segurana alimentar. Sendo a consolidao das polticas de gesto ambiental para TIs importantes para as polticas indigenistas, as aes de gesto ambiental precisam, segundo Miller, contemplar outras aes, como as de sade, educao e cidadania. (Miller 2008, 7 Parte 2). Apesar de Miller, assim como outros, considerar a gesto ambiental de forma ampla, incluindo gerao de renda, h aqueles que limitam aquela categoria somente a esta ao, considerando como categoria mais ampla a de gesto territorial. Para uma antroploga representante de uma ONG, gesto territorial no gerao de renda e gesto ambiental menor que gesto territorial. Procurando definir ambas categorias, a antroploga afirma: gesto ambiental e gesto territorial so duas coisas totalmente diferentes. Gesto ambiental seria, por exemplo, aquelas coisas de gerao de renda, incentivar os ndios a fazerem artesanatos e a vender artesanato. A gesto territorial, por sua vez, a qualidade da gua, o controle da fauna e flora, questo da lenha, disperso das aldeias, zoneamento interno das reas,

isso gesto territorial, que um conceito mais interessante de se trabalhar, pois ele chama a experincia indigenista e no s ambientalista (entrevista). Procurando estabelecer uma definio para gesto territorial distinta da noo de gesto ambiental, mais circunscrita a uma abordagem ambientalista, um outro antroplogo, tambm representante de uma ONG, concorda parcialmente com a fala anterior ao destacar que, saindo um pouco da noo de gesto ambiental, que envolve a idia de conservao e de proteo ambiental, a gesto territorial uma coisa mais ampla, pois envolve a gesto ambiental dos recursos como tambm a proteo. Para ele, a gesto territorial quando se trabalha o territorial como um todo, inclusive a parte de uso sustentvel dos recursos, principalmente a produo agrcola, as roas. Em sua concepo de gesto territorial, o antroplogo considera, ainda, que ela engloba a proteo do territrio e do entorno, com a questo da conservao ambiental propriamente dita, com a questo do uso sustentvel (entrevista). Essa viso da gesto territorial englobando a gesto ambiental de certo modo partilhada por uma representante de governo estadual. Para ela, quando se fala em gesto territorial voc est trabalhando o territrio, e tambm o territrio tem seu meio ambiente. Em relao gesto ambiental, a representante de governo estadual afirma: ns temos que pensar na questo de nossas florestas, dos nossos rios, da nossa fauna e flora, isso uma questo de gesto ambiental (entrevista). Em outro esforo para distinguir gesto ambiental de gesto territorial, um consultor ad hoc coloca a questo em outro patamar. Ele entende que a gesto territorial o conjunto de aes que voc desenvolve para conseguir proteger e usar aquela terra, isso para mim tambm territorial porque voc faz algum planejamento. Quanto gesto ambiental, o consultor entende que ela uma questo de viso de cada ator. Os atores envolvidos com a questo ambiental, no seu entendimento, principalmente os atores estatais, interpretam tudo que de incumbncia deles como aes de gesto ambiental. Desse modo, a gesto ambiental passa a ser um campo de briga entre as instituies (entrevista). Dentre as vrias definies que distinguem gesto ambiental de gesto territorial, h a de Little, para quem gesto ambiental seriam aes de manejo ou gerenciamento dos fluxos biofsicos existentes nos ecossistemas para fins de conservao e uso sustentvel da natureza, enquanto a gesto territorial poderia ser compreendida como o controle poltico e o manejo ambiental do espao geogrfico que o territrio de um grupo social ou entidade poltica (Little 2006, 20). Com essas definies, o autor sugere que a gesto territorial das TIs engloba atividades de ordenamento territorial e de gesto ambiental, combinando a dimenso poltica do controle territorial das TIs com a dimenso ambiental de aes voltadas para sua sustentabilidade (id. ibid.). Sem estabelecer nenhum juzo de valor em relao s mltiplas definies de gesto ambiental e/ou territorial de/em TIs, cabe recordar o exposto na Parte I deste. Observando as vrias definies, percebe-se que no necessariamente h consenso nas distines estabelecidas. Soma-se ao carter no consensual das definies, vises distintas que no estabelecem uma distino entre gesto ambiental e gesto territorial. Conforme um outro antroplogo e representante de ONG: eu no diferencio gesto ambiental de gesto territorial, pois no fundo a mesma coisa. s vezes a gente utiliza esses termos como sinnimos, s vezes a gente usa conjugado, mas no fundo no fundo quer dizer a mesma coisa (entrevista). Com esse entendimento, este ltimo antroplogo estabelece mais uma definio de gesto ambiental, considerando suas dimenses socioculturais, ambientais, econmicas e polticas, alm do aspecto prtico: gesto ambiental o conhecimento das coisas que tem no territrio e as formas de uso que voc tem dos recursos naturais existentes nesse territrio (entrevista). Para ele, a valorizao das formas de uso do territrio empreendidas pelos povos indgenas constitui realidades bsicas de qualquer tipo de gesto ambiental numa terra indgena, incluindo aqui diversas aes: proteo, vigilncia, educao, sade, aproveitamento dos recursos naturais, aes de recuperao de reas impactadas, resgate de espcies ameaadas, manuteno de reas intocadas, definies de reas para manejo e aproveitamento econmico de espcies (entrevista). Outras definies, mais abrangentes que as anteriores, ancoram-se tambm no aspecto prtico da gesto ambiental mencionado anteriormente por Theodoro (2005). De acordo com Verdum, a gesto ambiental se refere

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quelas aes que podem ser classificadas como uma interveno humana no ambiente natural. Essa ao possui uma intencionalidade e est orientada para alguns fins e norteada por pressupostos relativamente conscientes de adaptao e/ ou de promoo de mudanas mais ou menos impactantes no ecossistema e nos processos ecolgicos (Verdum 2006, 7). Essa definio centrada em determinadas aes humanas pode ser ampliada ainda mais, como feito por Miller, ao incorporar as reflexes indgenas sobre os usos dos recursos como parte da gesto ambiental. Segundo Miller, a gesto ambiental praticada quando h a reflexo por parte de indivduos e comunidades sobre o uso dos recursos naturais, havendo como resultado dessa reflexo uma busca pela maior sustentabilidade no uso dos recursos naturais (Miller 2008, 3 Parte 1). Como desdobramento das vrias definies de gesto ambiental, observa-se aes de introduo e reintroduo de espcies vegetais e animais, de manejo florestal, de agroextrativismo, de criao de peixes e de recuperao de reas degradadas por meio do reflorestamento. Estas aes de gesto ambiental so tidas como de baixo impacto, em oposio quelas de alto impacto ambiental, como desmatamento em larga escala para monocultivo da soja ou criao de gado, represamento de rios e igaraps para aproveitar o potencial de navegao, irrigao de reas carentes de recursos hdricos, gerao de energia eltrica e abertura de estradas (Verdum 2006, 7). Ainda estariam cobertas as manifestaes scio-culturais de ocupao territorial e utilizao dos recursos naturais; os calendrios agrcola e extrativista; a deciso de transferncia dos locais de moradia, de plantio e de obteno de protena animal e espcies vegetais; a escolha das espcies cultivadas e dos locais para isto; a incorporao ou reincorporao de tcnicas e tecnologias de cultivo e extrativismo; entre outras aes consideradas etnoecolgicas vinculadas aos processos de territorializao dos povos indgenas (id. ibid. 7-8). Por estar a categoria sendo definida em contextos distintos e de forma variada, ela ainda comporta outros elementos, presentes em algumas concepes, como a de um antroplogo e indigenista, para quem a gesto, seja ela ambiental e/ou territorial, seria gerir os recursos da natureza que esto dentro do territrio, com certos regulamentos. Isso no pode ser uma coisa absoluta, tem que ser consensual. Algo que parte deles e no de fora (entrevista). Regulamentos consensuados, que partam dos indgenas, remete ao carter participativo presente em muitas experincias de gesto ambiental. Como mencionado por Little, em sua anlise sobre diversas iniciativas de gesto ambiental na Amaznia brasileira, todas abrem espao para a participao indgena de uma forma ou outra, sendo que a maneira de conciliar a participao com a agncia tnica seria garantindo uma participao indgena ativa, efetiva e consciente tanto no mbito tcnico quanto poltico (Little 2006, 38). Isto nem sempre ocorre, porque a realizao da agncia tnica dos povos indgenas difere do mero processo de participao. Conforme Little, quando h situaes verdadeiras de agenciamento (agir como sujeitos), no tem muito sentido falar em participao. O termo participao aplica-se principalmente a situaes nas quais as pessoas tomam parte em eventos ou programas organizados externamente. Nos distintos programas de desenvolvimento sustentvel, os beneficirios so convidados a fazer parte no programa por meio de fruns ou tcnicas estabelecidas para essa finalidade, procurando assim adequar o programa s suas necessidades e interesses. Deste modo, os povos indgenas continuam sendo objeto do programa ao invs de seu sujeito (id. ibid. 38). Mesmo sem uma reflexo aprofundada sobre a participao indgena nas iniciativas de gesto ambiental, esta categoria inclui tambm uma preocupao com o uso a longo prazo dos recursos naturais. Como dito por uma liderana indgena: a questo da gesto voc saber utilizar os produtos que tem na terra de forma adequada, de forma que possa garantir para hoje, para amanh e para daqui a cem, duzentos anos (entrevista). Ou ainda, nos termos de um representante do governo federal, gesto ambiental passa por comunicao integrada, formao da comunidade integrada ao agente educador, pela educao, pela prpria sade (entrevista). A gesto ambiental tambm possui relao com a regularizao fundiria das terras indgenas. Como destacado por uma representante do governo federal: tem os momentos de intercesso, porque a questo ambiental transversal nesse sentido, porque tem um momento que s fundirio, e tem outro momento que ainda fundirio, mas voc inicia aes de gesto (entrevista). A importncia da relao entre gesto ambiental e regularizao fundiria, bem

como as intersees com proteo, conservao, etnodesenvolvimento e instrumentos de planejamento, so relevantes para se entender melhor as mltiplas concepes, como pode ser observado nos prximos itens.

Regularizao fundiria e suas interfaces com gesto ambiental e/ou territorialA regularizao fundiria das TIs tem sido entendida hora como parte da gesto ambiental e hora como sendo distinta desta. Para alguns a regularizao fundiria pode ser considerada como uma fase inicial dentro de um processo de gesto ambiental e/ou territorial em TIs. Desse modo, a regularizao seria parte da gesto ambiental e/ ou territorial. Nessa viso, os procedimentos adotados para a regularizao de uma TI permitiriam, inclusive, delinear a gesto ambiental e/ou territorial de uma TI. Analisando a metodologia dos levantamentos etnoecolgicos do PPTAL, percebe-se que, alm de envolver os povos indgenas no processo de identificao e demarcao de suas terras, ela possui uma aplicao voltada para questes de gerenciamento e gesto territorial, e prpria conduo de projetos de conservao (Olhar Etnogrfico 2007, 42-43). Como consta na metodologia dos levantamentos etnoecolgicos, por meio da regularizao de uma TI possvel delinear aes de gesto. importante lembrar que o processo de demarcao intenta dar poder aos povos indgenas, reforando o controle sobre as suas prprias terras. Assim, qualquer processo de gesto que acompanhe ou surja desse processo de demarcao deve ser conduzido pelos prprios povos indgenas, com a meta final de promover ou restabelecer a auto-sustentao (FUNAI. PPTAL. 2004, 9). Essa concepo de certo modo embute o processo de regularizao fundiria nas aes de gesto ambiental e/ou territorial, diferindo em grande medida das percepes que fazem uma separao entre os dois processos. Para diversos entrevistados, a regularizao de TIs tem uma relao muito mais intensa com o ordenamento territorial realizado pelo Estado que com a gesto ambiental pensada como uma ao desenvolvida pelos indgenas no interior de suas terras regularizadas. A condio de estar a terra regularizada seria, para muitos, fundamental para se iniciar um processo de gesto ambiental e/ou territorial. De acordo com um representante de governo estadual, O primeiro passo a regularizao de uma terra. Eu vejo como um primeiro ponto a ser definido, se no voc no tem como definir o seu projeto de gesto, se voc no sabe qual o seu espao e at onde isso te pertence (entrevista). Essa viso corroborada por lideranas indgenas. Para uma dessas lideranas, primeiro para se fazer gesto tem que ter o territrio, a terra demarcada. A gesto um pouco sobre a questo de trabalhar os recursos naturais (entrevista). Sem a terra reconhecida formalmente, tem-se dificuldade de pensar qual a rea que de fato ser gerida, quais as reas compem o entorno da TI e qual o projeto de gesto pode ser elaborado. Em concepes dessa natureza, a gesto ambiental e/ou territorial est voltada para o uso sustentvel dos recursos naturais e seus vnculos com a sade e a educao. A gesto, portanto, seria um desdobramento da regularizao fundiria. Em consonncia com esta concepo, uma outra liderana indgena chega a afirmar que o PDPI, que apia projetos que possuem interface com a gesto ambiental, surgiu como desdobramento dos processos de regularizao fundiria aps vrias discusses com o movimento indgena (entrevista). Separando regularizao fundiria de gesto territorial, inclui-se nesta ltima categoria aes de sade, educao e manejo sustentvel dos recursos naturais (Liderana indgena, entrevista).

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Box 2: gesto e regularizao fundiria Gesto ambiental e gesto territorial tambm possuem relao com a regularizao fundiria das terras indgenas. A regularizao fundiria das TIs tem sido entendida hora como parte da gesto ambiental e hora como sendo distinta desta. Para alguns a regularizao fundiria pode ser considerada como uma fase inicial dentro de um processo de gesto ambiental e/ou territorial em TIs. Desse modo, a regularizao seria parte da gesto ambiental e/ou territorial. A regularizao de TIs tem uma relao muito mais intensa com o ordenamento territorial realizado pelo Estado que com a gesto ambiental pensada como uma ao desenvolvida pelos indgenas no interior de suas terras regularizadas. A condio de estar a terra regularizada seria, para muitos, fundamental para se iniciar um processo de gesto ambiental. Sem a terra reconhecida formalmente, tem-se dificuldade de pensar qual a rea que de fato ser gerida, quais as reas compem o entorno da TI e qual o projeto de gesto pode ser elaborado. A gesto ambiental est voltada para o uso sustentvel dos recursos naturais e seus vnculos com a sade e a educao. A gesto ambiental, portanto, seria um desdobramento da regularizao fundiria. Separando regularizao fundiria de gesto territorial, inclui-se nesta ltima aes de sade, educao e manejo sustentvel dos recursos naturais.

como afirma um tcnico da cooperao internacional, a gesto faz parte da proteo, se protege por meio da gesto (entrevista). Procurando estabelecer uma correlao ainda mais precisa, o tcnico destaca que a gesto uma ferramenta para proteger aquela terra, ou seja, para proteger a terra indgena. Segundo ele, a proteo teria incio com a identificao da terra indgena, depois teria continuidade com as aes de vigilncia, que podem contribuir com as aes de proteo do territrio. Ou seja, desde a regularizao fundiria at o prprio desenvolvimento daquela terra ao de proteo (entrevista). Essa viso partilhada por outros tcnicos da cooperao internacional. Para um deles, tudo o que voc pensa sobre gesto territorial, gesto ambiental, porque voc tem um foco que garantir com que a terra indgena seja protegida, aquela terra e aquele povo. Para a gente difcil imaginar qualquer ao fora da proteo, a proteo para ns o guarda chuva (entrevista). De modo distinto, as categorias gesto ambiental e/ou territorial tm sido pensadas como relacionadas proteo, mas sem uma categoria englobar a outra. Aqui, a concepo de aes correlacionadas com o que tem sido denominado de vigilncia: Em se tratando de um conceito - vigilncia - que, se aplicado e contextualizado na realidade indgena, envolve outras noes correlatas, como proteo, controle e gesto territorial, caberia examinar em que medida ele supe dois tipos de aes: aquelas que so de responsabilidade de Estado e aquelas que so implementadas pelas comunidades indgenas (PPTAL. 1998, 4). Discorrendo sobre as aes de vigilncia, um representante de governo estadual oferece um entendimento sobre o termo que no o dissocia da gesto, e que concebe as atividades correlatas em diversos nveis. De acordo com ele, a vigilncia tem que ser trabalhada interna e externamente. Os povos indgenas precisam estar inteirados sobre o que ocorre em suas terras e entorno e ao mesmo tempo devem se articular com o mundo externo para fortalecer as polticas. Desse modo, no se pode tratar a vigilncia separada da gesto. Ela tem que ser entendida como uma atividade do plano de gesto, que passa pelo processo de educao, de discusses (entrevista). Essa viso estabelece, portanto, uma distino entre vigilncia e gesto. H ainda, diferenciaes que so estabelecidas entre outros aspectos associados ao da proteo, como a questo entre vigilncia e fiscalizao. Conforme um consultor ad hoc, aqui tem a questo das brigas institucionais, pois a FUNAI est definindo fiscalizao como uma incumbncia do estado. Ento, se os ndios fazem fiscalizao, voc no pode chamar de fiscalizao, tem que chamar de vigilncia (entrevista). Um representante do governo federal tambm opera com essa distino entre vigilncia e fiscalizao, associando-as gesto ambiental. De acordo com ele h Dois aspectos fundamentais e muito importantes, um que a gesto ambiental de direito e outro que a gesto ambiental de fato. A gesto ambiental de direito uma das obrigaes de polticas pblicas e obrigatrias que cabe a instituies brasileiras desenvolver aes de fiscalizao dos territrios, de investimentos na proteo desses territrios. Em relao gesto ambiental de fato, nesse caso estamos falando de vigilncia de territrio que feita pela prpria comunidade usuria, as populaes indgenas (entrevista). Em outras percepes sobre a relao entre gesto ambiental e proteo, a primeira estaria restrita ao uso sustentvel dos recursos naturais e a segunda voltada para a manuteno da terra sem invasores, por meio de aes de vigilncia e fiscalizao. Isto fica evidente na metodologia dos levantamentos etnoecolgicos do PPTAL. Como consta no documento que contm a discusso metodolgica, a adoo por parte do Estado de medidas cautelares e punitivas, mesmo sendo necessrias em dadas situaes, no suficiente para garantir a proteo dos territrios, mas o apoio a aes de vigilncia e gesto territorial propostas e geridas pelos prprios ndios, expressas em projetos que contemplem opes economicamente viveis para os grupos implicados, representa um primeiro passo rumo a solues duradouras (PPTAL 1998, 6).

Proteo e sua relao com gesto ambiental e/ou territorialA relao entre proteo e gesto ambiental e/ou territorial tambm tem sido percebida de modo distinto por atores sociais diversos. Em algumas percepes a gesto ambiental e/ou territorial mais ampla que a proteo, mas h vises que consideram o contrrio. H, ainda, concepes que estabelecem distines entre essas categorias, algumas fazendo correlaes entre elas e outras pensando-as de modo isolado, sem vnculos. Percebe-se, tambm, entendimentos bastante distintos no que diz respeito a aes de vigilncia e fiscalizao em relao proteo e gesto ambiental e/ou territorial. Para muitos indgenas e indigenistas, as atividades de proteo so tidas como parte da gesto ambiental e/ou territorial de/em TIs. Para um antroplogo e indigenista, Proteo e gesto tem uma relao. A proteo, na verdade, um componente da gesto (entrevista). Um representante de governo estadual, por sua vez, concorda em parte com esta viso. Segundo ele, quando voc fala na proteo, ela uma atividade do plano de gesto. Ento acho que so atividades diferentes, mas tudo se compreende como gesto (entrevista). Sob esta tica, alega-se que: medidas de vigilncia e fiscalizao que fazem parte de uma estratgia de gesto territorial mais abrangente envolvendo a reocupao do territrio, a recuperao de reas degradadas ou a gerao de renda e a reaplicao desta em aes de proteo funciona melhor do que aes pontuais (Pasca 2007, 88). Essa observao de Dan Pasca, que acaba considerando as aes de proteo como parte de uma estratgia de gesto territorial abrangente, acabou no sendo plenamente incorporada em projetos como o PPTAL. Segundo dois consultores que analisaram as aes de proteo apoiadas pelo PPTAL: o projeto no apoiou iniciativas de gesto ambiental das TIs, nem de desenvolvimento sustentvel. A estratgia do PPTAL reconhece esses aspectos como parte de uma estratgia de proteo, mas como aspectos para garantir a proteo ao longo prazo (Pohl & Viergever 2007, 79). Esta afirmao de no ter o projeto apoiado aes de gesto ambiental pode ser questionada caso o entendimento sobre essa noo seja o de que ela parte das aes de proteo. Esta viso bastante recorrente, e

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Box 3: gesto e proteo A relao entre proteo e gesto ambiental tambm tem sido percebida de modo distinto por atores sociais diversos. Em algumas percepes a gesto ambiental mais ampla que a proteo, mas h vises que consideram o contrrio. H, ainda, concepes que estabelecem distines entre as duas categorias, algumas fazendo correlaes entre elas e outras pensando-as de modo isolado, sem vnculos. Percebe-se, tambm, entendimentos bastante distintos no que diz respeito a aes de vigilncia e fiscalizao em relao proteo e gesto ambiental. A proteo, para alguns, um componente da gesto. Para outros, so atividades diferentes, mas tudo se compreende como gesto. Uma estratgia de gesto territorial mais abrangente envolvendo a reocupao do territrio, a recuperao de reas degradadas ou a gerao de renda e a reaplicao desta em aes de proteo funciona melhor do que aes pontuais. A gesto faz parte da proteo, se protege por meio da gesto. A gesto uma ferramenta para proteger aquela terra, ou seja, para proteger a terra indgena. Tudo o que voc pensa sobre gesto territorial, gesto ambiental, porque voc tem um foco que garantir com que a terra indgena seja protegida, aquela terra e aquele povo. Para a gente difcil imaginar qualquer ao fora da proteo, a proteo para ns o guarda chuva. De modo distinto, as categorias gesto ambiental e/ou territorial tm sido pensadas como relacionadas proteo, mas sem uma categoria englobar a outra. Aqui, a concepo de aes correlacionadas com o que tem sido denominado de vigilncia. No se pode tratar a vigilncia separada da gesto. Ela tem que ser entendida como uma atividade do plano de gesto, que passa pelo processo de educao, de discusses. Em outras percepes sobre a relao entre gesto ambiental e proteo, a primeira estaria restrita ao uso sustentvel dos recursos naturais e a segunda voltada para a manuteno da terra sem invasores, por meio de aes de vigilncia e fiscalizao.

brasileiros. Para tanto, pretende-se fortalecer as formas tnicas de manejo, uso sustentvel e conservao dos recursos naturais nesses territrios, e a promoo da incluso social dessas comunidades, fomentando assim uma poltica de gesto ambiental em territrios indgenas (Brasil 2008, 24). O desafio de projetos dessa natureza garantir o respeito viso integrada e holstica dos povos indgenas em relao aos recursos naturais e seus usos, o que nem sempre est em total consonncia com princpios de conservao. sempre importante lembrar que a viso romntica e idealizada de que os ndios so preservadores por natureza do meio ambiente no se sustenta, sobretudo, quando percebemos que tambm as culturas desenvolvem sistemas diferenciados de relaes com o meio em que vivem (Luciano 2006, 196). Considerando as prticas indgenas, nem sempre preservacionistas, e o interesse de diversos povos por prticas sustentveis de uso dos recursos naturais, possvel conceber diversas aes relevantes no campo da gesto ambiental que considerem as especificidades culturais dos povos indgenas. Nesse sentido, iniciativas de comunidades indgenas voltadas para a recuperao de reas degradadas ou para o reflorestamento implicam tambm trazer de volta os espritos e as foras da natureza que foram afugentados com a devastao (id. ibid. 190). Diversas iniciativas dessa natureza tm sido desenvolvidas junto a povos indgenas, todas elas contando com a capacitao de lideranas para assumirem junto s suas comunidades as discusses e aes de conservao. Nessa linha de aes, h o trabalho pioneiro dos Agentes Agroflorestais Indgenas no Acre, que serviu de inspirao para outras regies. Para se ter uma idia, em 2006 havia no Brasil aproximadamente 290 agentes ambientais indgenas, pertencentes a 26 povos indgenas, com atuao em 33 TIs de sete estados do norte e centro-oeste do pas (Iglesias & Aquino 2006, 12). Esses agentes tm contribudo para aes de gesto ambiental associadas conservao nas TIs, mas h uma considervel polmica em torno da remunerao ou no desses agentes. Segundo consta em alguns levantamentos de informao, h discusses sobre mecanismos para remunerar comunidades com papel importante na conservao dos recursos naturais, dos quais tambm as TIs poderiam beneficiar. Entretanto, vrias experincias mostram que a introduo de salrios ou outras remuneraes pode ter conseqncias graves do ponto de vista das tradies, das relaes internas e provavelmente outros (Pohl & Viergever 2007, 91). Esta questo tem sido motivo de discrdia entre financiadores e organizaes indgenas. Alguns procuram evitar novas formas de dependncia dos povos indgenas em relao a projetos com durao relativamente curta. Outros reconhecem as atuais dificuldades de vrios povos indgenas para terem acesso a bens manufaturados (Olhar Etnogrfico 2007, 71). Polmica parte, sabe-se que muitos indgenas formados enquanto agentes ambientais, agentes agroflorestais ou com denominaes correlatas esto contribuindo consideravelmente para as aes de conservao e gesto ambiental e/ou territorial de/em TIs. Muitos desses indgenas e suas lideranas esto cientes da importncia de suas terras para a conservao, e chegam a reivindicar uma remunerao pelos servios ambientais prestados por eles. Na fala de uma liderana indgena: Eu acho que a gente deveria ser pago por hoje ser responsvel pela preservao dos ecossistemas. As terras indgenas representam hoje as reas de maior preservao ambiental na Amaznia e nesse pas. O governo brasileiro e o mundo deveriam agradecer a gente e nos pagar muito caro pelo servio que prestamos preservao dos recursos da natureza em nossos territrios. No temos que plantar mais nada. Eles, os destruidores da natureza, que tm que plantar. Eles tm que nos pagar para a gente viver no nosso canto, sem plantar nada. Eles, sim, que deveriam plantar e sem ganhar um centavo. Eles deveriam pagar para ns, porque ns alimentamos esse ar, ns que damos vida ao planeta, com as nossas florestas e os nossos territrios intactos, com a natureza perfeita (entrevista).

Conservao no contexto da gesto ambiental e/ou territorialA constatao cada vez maior de possurem as TIs, especialmente na Amaznia, uma considervel cobertura florestal preservada tem estimulado aes e discusses que associam cada vez mais gesto ambiental e/ ou territorial com a conservao em TIs. Um exemplo disso visvel no texto do Projeto Catalisando a contribuio das Terras Indgenas para a conservao dos ecossistemas florestais brasileiros, que procura conciliar a conservao da diversidade biolgica, o uso sustentvel dos recursos naturais e o fortalecimento da diversidade cultural. Discorrendo sobre o surgimento das discusses para a formulao do mencionado Projeto, um representante de ONG diz que era preciso avanar na estruturao de polticas pblicas para gesto de terras indgenas e para proteo, pois fazer projeto piloto j no adiantava mais. Por este motivo, teve incio uma articulao entre organizaes indgenas e governo para a construo do que se imaginava de uma poltica nacional de gesto ambiental em terras indgenas. O Projeto em questo, para ele, surgiu como uma proposta para se ter um programa de governo voltado para a gesto ambiental em terras indgenas. Para a gesto territorial, para a gesto ambiental. Essas duas expresses so usadas ao mesmo tempo, os indgenas falam muito mais em gesto territorial, falam em projeto de gesto territorial (entrevista). As discusses at o momento empreendidas para a formulao do Projeto traou como objetivo consolidar a contribuio das TIs como reas essenciais para conservao da diversidade biolgica e cultural nos principais biomas

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Box 4: gesto e conservao Consolidar a contribuio das TIs como reas essenciais para conservao da diversidade biolgica e cultural nos principais biomas brasileiros. Para tanto, pretende-se fortalecer as formas tnicas de manejo, uso sustentvel e conservao dos recursos naturais nesses territrios, e a promoo da incluso social dessas comunidades, fomentando assim uma poltica de gesto ambiental em territrios indgenas. A viso romntica e idealizada de que os ndios so preservadores por natureza do meio ambiente no se sustenta, sobretudo, quando percebemos que tambm as culturas desenvolvem sistemas diferenciados de relaes com o meio em que vivem. Iniciativas de comunidades indgenas voltadas para a recuperao de reas degradadas ou para o reflorestamento implicam tambm trazer de volta os espritos e as foras da natureza que foram afugentados com a devastao. Diversas iniciativas tm sido desenvolvidas junto a povos indgenas, todas elas contando com a capacitao de lideranas para assumirem junto s suas comunidades as discusses e aes de conservao. Os agentes ambientais tm contribudo para aes de gesto ambiental associadas conservao nas TIs, mas h uma considervel polmica em torno da remunerao ou no desses agentes. Polmica parte, sabe-se que muitos indgenas formados enquanto agentes ambientais, agentes agroflorestais ou com denominaes correlatas esto contribuindo consideravelmente para as aes de conservao e gesto ambiental em TIs. Valorizao dos servios ambientais prestados pelos povos indgenas.

a gesto ambiental nas terras indgenas, alicerada nos conceitos de sustentabilidade e etnodesenvolvimento, representa um grande desafio, para qual ser necessria a construo de novos mecanismos de dilogo e de ao. Para serem eficazes, esses mecanismos tero de funcionar em vrias escalas, abrangendo desde a aldeia at a cooperao internacional (Miller 2008, 4 Parte 2). Essa relao entre os conceitos, contudo, no se mantm quando Miller prope algumas aes prticas ligadas gesto ambiental. Ao sugerir a criao de um fundo para gerar maior integrao entre os programas governamentais relacionados com a gesto ambiental, Miller estabelece uma distino entre gesto ambiental e etnodesenvolvimento, considerando esses conceitos como duas linhas de atuao, entre outras. Na linha gesto ambiental, constaria apoio aos projetos comunitrios que visem o uso sustentvel dos recursos naturais das TIs, incluindo discusses sobre gesto ambiental nas comunidades, aes de capacitao e divulgao de iniciativas bem sucedidas. Na linha etnodesenvolvimento, apoio aos projetos produtivos (agricultura, pecuria, piscicultura, extrativismo e artesanato). Os apoios deveriam abranger desde projetos de segurana alimentar a projetos direcionados para a comercializao de produtos. Nessa linha, a idia seria o potencial econmico de cada povo, melhorando a relao com mercados externos (Miller 2008, 5 Parte 2). Uma viso distinta desta relao entre etnodesenvolvimento e gesto ambiental pode ser percebida no Programa Amazonas Indgena, executado a partir de 2004 pelo governo do Estado do Amazonas. Neste programa, consta como um dos eixos estratgicos de ao o apoio ao etnodesenvolvimento dos povos indgenas: produo e sustentabilidade, educao, ecoturismo, infraestrutura, sade, gesto de TIs (Estado do Amazonas 2004, 34). Como fica evidente, a gesto de terras indgenas tida como um aspecto do etnodesenvolvimento a ser apoiado. O eixo de ao destacado tem como objetivo implementar atividades produtivas sustentveis, incentivando processos de gerao de renda (Estado do Amazonas 2004, 37). Este objetivo est em conformidade com o entendimento presente no Programa Amazonas Indgena sobre gesto de TIs. Como mencionado no programa: a gesto de TIs envolve a realizao de atividades que fomentem a produo sustentvel propiciando aos povos indgenas sua manuteno nas TIs e o pleno usufruto destas. Esta noo est vinculada a uma autogesto indgena, englobando nesta ltima aes voltadas para o incentivo produo, a capacitao de gestores das terras e a articulao interinstitucional entre organizaes, comunidade e rgos de fiscalizao e proteo das terras e seu entorno (Estado do Amazonas 2004, 42). A relao entre gesto ambiental e etnodesenvolvimento nem sempre se faz presente. Em algumas aes governamentais, por exemplo, a segunda noo pode aparecer apenas com referncias s atividades produtivas. Isto visvel no PPA 2008-2011, que estabelece como uma das aes da FUNAI, dentro do Programa 0150 Proteo e Promoo dos Povos Indgenas, a Ao 2711 Promoo do Etnodesenvolvimento em TIs. Est ao est sob a responsabilidade da Coordenao Geral de Desenvolvimento Comunitrio (CGDC) e tem a finalidade de promover a autonomia produtiva das Comunidades Indgenas orientando-se pela noo de Etnodesenvolvimento e fundamentando-se em consultas s Comunidades, atravs de planejamento participativo e da execuo de atividades sustentveis (Miller 2008, 10-11 Parte 1). Mesmo contando com planejamento participativo, aes como esta, ligada ao etnodesenvolvimento em TIs, parte de um arcabouo no indgena, levada at eles por meio de diversas instituies. Como dito pela liderana indgena Gersem Baniwa: Os projetos etnopolticos de luta pelo direito terra, sade, educao e autosustentao fazem parte da estratgia dos ndios de apropriao dos instrumentos de poder dos brancos em favor de seus interesses presentes e futuros, idealizada e levada a efeito pelas atuais lideranas indgenas. So instrumentos dos brancos que no podem se confundir com os instrumentos de organizao social, poltica e econmica dos ndios, como muitas vezes se pretendeu pensar os projetos de etnodesenvolvimento (Luciano 2006, 204).

Etnodesenvolvimento e as correlaes com gesto ambiental e/ou territorialEm algumas das fontes consultadas h constantes referncias noo de etnodesenvolvimento associada gesto ambiental. Em determinados documentos, observa-se que o etnodesenvolvimento considerado como uma noo ampla que engloba a de gesto ambiental, em outros, a gesto ambiental seria mais abrangente, incluindo o etnodesenvolvimento. H, ainda, situaes em que o etnodesenvolvimento pensado sem referncia categoria gesto ambiental, mas como orientao para determinadas aes junto aos povos indgenas. Em geral, etnodesenvolvimento tem sido entendido a partir da definio formulada por Stavenhagen (1984). Para este autor, etnodesenvolvimento tem como princpios fundamentais: objetivar a satisfao de necessidades bsicas do maior nmero de pessoas em vez de priorizar o crescimento econmico; embutir-se de viso endgena, ou seja, dar resposta prioritria resoluo dos problemas e necessidades locais; valorizar e utilizar conhecimento e tradio locais na busca da soluo dos problemas; preocupar-se em manter relao equilibrada com o meio ambiente; visar a auto-sustentao e a independncia de recursos tcnicos e de pessoal e proceder a uma ao integral de base, [com] atividades mais participativas (Stavenhagen 1984, 57). Conforme Azanha, que tambm se baseia na definio de Stavenhagen, o etnodesenvolvimento envolve indicadores de aumento populacional, segurana alimentar, nvel de escolaridade, obteno de produtos manufaturados por meio de recursos prprios gerados internamente de modo no predatrio, captao de recursos financeiros com relativa independncia externa e domnio sobre as relaes com o Estado (Azanha 1999, 3). Considerando estas concepes a cerca do etnodesenvolvimento, Miller considera esta noo como alicerce da gesto ambiental. Deste modo, pode-se inferir que a gesto ambiental seria mais abrangente que o etnodesenvolvimento. Como mencionado por Miller:

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Os projetos de etnodesenvolvimento, portanto, no so tanto projetos propriamente indgenas, quanto resultados das reformas das polticas de apoio ao desenvolvimento. O aumento de projetos dessa natureza em grande medida deve-se ao fato dos povos indgenas estarem vivendo em polgonos delimitados. Nesse contexto, muitos povos indgenas ainda no tm uma idia clara de como esses recursos podem ser comercializados, mesmo eles possuindo uma compreenso muito mais profunda do que ningum da ecologia do seu meio ambiente e de seus recursos naturais (FUNAI. PPTAL 2004, 8). Essa realidade acaba por gerar no apenas aes ligadas noo de etnodesenvolvimento, mas tambm uma srie de instrumentos voltados para a gesto ambiental e/ou territorial de/em TIs, como apresentado no prximo item.

Todos se configuram como instrumentos de planejamento que procuram de forma pretensamente participativa contribuir para o planejamento dos usos dos recursos naturais pelos povos indgenas, com a inteno manifesta de proporcionar a gesto territorial em TIs. Estes instrumentos de planejamento, contudo, tambm possuem os propsitos latentes de subsidiar a resoluo de conflitos socioambientais, modificar o comportamento dos povos indgenas com base nas noes de preservao e conservao ambiental, proporcionar o manejo dos recursos naturais pelos povos indgenas em suas terras, fortalecer a identidade e a autonomia indgenas, e estimular o dilogo entre lideranas indgenas e representantes de instituies governamentais e no-governamentais, entre outros (id. ibid. 39- 40). De acordo com Little, a agenda poltica que estabelece o uso desses instrumentos est relacionada com o movimento ambientalista, entendido de forma ampla, como sendo todas as organizaes da sociedade civil, do setor privado e do Estado preocupados com a qualidade do meio ambiente. Para ele, esses instrumentos, mesmo estando internalizados no cotidiano indgena, so instrumentos hbridos que contm elementos da sociedade ocidental e elementos das sociedades indgenas (Little 2006, 22). Esses instrumentos em algumas situaes so considerados como etapas em processo mais amplo de gesto ambiental e/ou territorial. Ao fazer um levantamento dos diversos instrumentos, Paul Little chegou a propor um ciclo de gesto territorial que contempla os vrios instrumentos. A primeira etapa seria a de articulao, incluindo mltiplos instrumentos associados a relacionamentos sociais e polticos e capacitao e treinamento. A segunda etapa foi denominada de diagnstico, envolvendo instrumentos como etnolevantamento, levantamento etnoecolgico, diagnstico etnoambiental e etnomapeamento. A terceira etapa seria a normativa, com instrumentos como plano de gesto territorial e etnozoneamento. A quarta e ltima etapa, de execuo, incluiria monitoramento do plano e avaliao do ciclo de gesto (Little 2006, 45). Assim entendidos, a classificao proposta por Little objetiva minimizar as discrepncias conceituais em termos ideacionais, propondo uma padronizao no uso dos conceitos dentro do processo global daquilo que se denomina gesto territorial em TIs (Correia 2007, 16). Outros ciclos de gesto tm sido concebidos para a gesto territorial e ambiental indgena. Neste outro ciclo, h etapas que no necessariamente so desenvolvidas de forma seqencial. Na etapa de diagnstico seriam realizados os etnomapeamentos, com abordagem participativa e com o intuito de conhecer o territrio. Na etapa de etnozoneamento seria feito o planejamento do uso dos recursos naturais de forma sustentvel. Na etapa de gesto territorial e ambiental estaria em pauta o uso dos recursos, desenvolvendo orientaes para polticas pblicas, fortalecimento institucional, capacitao, projetos de manejo, produo sustentvel, engajamento dos parceiros e dilogo com empreendedores (Andrade 2008). Os dois ciclos de gesto possuem considerveis proximidades e ambos operam com instrumentos de planejamentos voltados para a gesto ambiental e/ou territorial de/em terras indgenas. Em se tratando da fase de diagnstico, presente nos ciclos descritos, possvel ponderar que ele etapa preliminar para qualquer discusso sobre gesto ambiental. O diagnstico lana mo de vrias ferramentas, incluindo o etnomapeamento, o levantamento ou inventrio de determinados recursos, e as abordagems da etnobiologia, procurando juntar o conhecimento dos tcnicos com o saber dos especialistas da comunidade. O diagnstico aponta os recursos naturais, e d indicaes sobre seu uso, seu potencial, e possveis conflitos relacionados, tanto internos como externos, um passo no caminho de discusses muito mais profundos, no qual as comunidades e seus membros possam construir os elementos da gesto ambiental do seu territrio (Olhar Etnogrfico 2007, 33). Em relao outra fase, tambm presente nos ciclos descritos, aquela do uso dos recursos naturais propriamente dito, possvel perceber que se mantm o carter hbrido dos instrumentos de planejamento. Como mencionado por um representante de ONG, quando voc chega numa fase de uso de recursos tem que ter algumas consultorias e estudos para ver a viabilidade desses trabalhos, para desenvolver produtos ou linhas de ao ou estratgias e que vai desencadear a orientao. Essa orientao, muitas vezes definida nos denominados planos de gesto, ou planos de vida (entrevista).

Box 5: gesto e etnodesenvolvimento Em determinados documentos, observa-se que o etnodesenvolvimento considerado como uma noo ampla que engloba a de gesto ambiental, em outros, a gesto ambiental seria mais abrangente, incluindo o etnodesenvolvimento. H, ainda, situaes em que o etnodesenvolvimento pensado sem referncia categoria gesto ambiental, mas como orientao para determinadas aes junto aos povos indgenas. Etnodesenvolvimento como alicerce da gesto ambiental. Deste modo, pode-se inferir que a gesto ambiental seria mais abrangente que o etnodesenvolvimento. Apoio ao etnodesenvolvimento dos povos indgenas: produo e sustentabilidade, educao, ecoturismo, infraestrutura, sade, gesto de TIs. A gesto de terras indgenas tida aqui como um aspecto do etnodesenvolvimento. A gesto de TIs envolve a realizao de atividades que fomentem a produo sustentvel propiciando aos povos indgenas sua manuteno nas TIs e o pleno usufruto destas. A relao entre gesto ambiental e etnodesenvolvimento nem sempre se faz presente. Em algumas aes governamentais, por exemplo, a segunda noo pode aparecer apenas com referncias s atividades produtivas. Projetos de etnodesenvolvimento podem ser considerados resultados das reformas polticas de apoio ao desenvolvimento.

Instrumentos de planejamento associados a gesto ambiental e/ou territorialUma considervel variedade de instrumentos voltados para gesto ambiental e/ou territorial tem sido utilizada de modo experimental. Grande parte dessas experincias possui o prefixo etno em suas denominaes, como por exemplo: etnolevantamento, etnomapeamento, etnozoneamento, diagnstico etnoambiental e diagnstico etnoecolgico. Outras iniciativas no possuem esse prefixo, mas tambm so instrumentos usados no processo de gesto ambiental e/ou territorial, como os planos de gesto e os planos de vida. Todos estes instrumentos podem ser tidos como instrumentos tcnicos e polticos, instrumentos de mapeamento, instrumentos de diagnstico e, ainda, instrumentos de planejamento, dependendo de como estes termos so entendidos e empregados tanto por seus formuladores, quanto pelos supostos beneficirios dessas iniciativas: os povos indgenas que habitam em TIs determinadas (Correia 2007,16-17). Mesmo esses instrumentos possuindo considerveis diferenas metodolgicas, conceituais e de objetivos, eles sero considerados aqui como instrumentos de planejamento. Isto no implica dizer que eles proporcionam um planejamento acabado, mas que so instrumentos tcnicos, polticos, de mapeamento e de diagnstico que oferecem subsdios aos povos indgenas e s instituies governamentais e no-governamentais com as quais se relacionam para planejar aes voltadas gesto territorial em TIs (id. ibid. 17).

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Sem entrar no mrito das semelhanas ou distines entre estes planos, cabe aqui apenas sinalizar que enquanto hbridos do conhecimento indgena e ocidental eles cada vez mais esto sendo considerados uma ferramenta essencial no processo de gesto ambiental e/ou territorial. Para que esses planos possam gerar os resultados esperados, preciso o envolvimento de diversos atores sociais. Como mencionado por uma representante de ONG: necessrio o envolvimento de todos os rgos que trabalham com a questo indgena, seja municipal, estadual e federal, e tambm com as populaes que esto no entorno da terra indgena para que o plano de gesto territorial d bons resultados, esses atores precisam discutir interna e externamente sobre suas competncias e isso tem que ser pensado no plano de gesto territorial, pois tudo o que de fora causa impacto na terra indgena (entrevista). A importncia crescente desses instrumentos de planejamento para a gesto ambiental bastante visvel no movimento indgena e indigenista, mas as expectativas em relao a seus resultados podem estar sendo superestimadas. Enquanto instrumentos de planejamento, nem sempre as aes concretas so obtidas por meio deles. A importncia desses planos para gesto ambiental e/ou territorial de/em terras indgenas pode ser melhor avaliada frente ao considervel investimento poltico e econmico para a produo deles e aos resultados gerados.

Consideraes finaisAs distintas concepes sobre gesto ambiental e territorial, bem como suas interfaces com temas como regularizao fundiria, proteo, conservao, etnodesenvolvimento e instrumentos de planejamento sinalizam para a multiplicidade de entendimentos e aes relacionados com as duas categorias e para a necessidade de uma proposta de Poltica Nacional de Gesto Ambiental em Terras Indgenas que contemple os aspectos presentes em ambas categorias. Conforme o texto da Portaria Interministerial n 276, de 12 de setembro de 2008, o termo empregado tem sido gesto ambiental e no gesto territorial, em TIs e no de TIs. A princpio, tendo a portaria sido assinada pelos Excelentssimos Senhores Ministros do Meio Ambiente e da Justia, pode-se inferir que h um consenso nas instncias governamentais sobre qual terminologia ser empregada para a poltica pblica a ser elaborada. Esse aparente consenso, contudo, acaba sendo abalado quando se considera a terminologia recorrente entre determinados setores governamentais - como a FUNAI/MJ , organizaes indgenas e indigenistas, que em diversas situaes se apropriam do termo gesto territorial para se referirem a um determinado conjunto de aes voltado para as TIs. Por isso, um dos desafios a serem enfrentados pelo GTI na elaborao de uma poltica pblica nacional diz respeito polmica associada terminologia a ser empregada. O GTI pode, obviamente, empregar a terminologia que melhor lhe convier, mas por se tratar de uma poltica pblica nacional importante que contemple os mltiplos entendimentos e aes presentes na sociedade nacional e entre os povos indgenas. As variaes terminolgicas possuem vnculos com uma variedade de aes, sejam de gesto ambiental e/ou territorial, desenvolvidas por instituies nacionais (indgenas ou no) ou pelos povos indgenas com suas lgicas prprias. Por esse motivo, mais que centrar o debate apenas em uma questo meramente terminolgica - se gesto ambiental e/ou gesto territorial , a discusso deve-se ater tambm s aes que esto relacionadas com essas categorias. Muitas dessas aes esto sendo desenvolvidas h anos por povos indgenas, rgos governamentais, organizaes indgenas e organizaes indigenistas, seguindo em grande medida os marcos legais mencionados na apresentao deste. Em termos prticos, preciso estar atento s tentativas de separao entre as dimenses ambiental e territorial. Uma separao pode deixar de contemplar instrumentos presentes em uma ou outra categoria de gesto em TIs que so fundamentais para se garantir o que consta nos marcos legais. Analisando esses marcos legais, constata-se que outro desafio posto hoje o de congregar uma multiplicidade de experincias e usos dos recursos naturais em uma poltica pblica voltada para gesto ambiental em TIs. Como se pode observar no Art. 3 da Portaria Interministerial n 276/2008, h uma srie de diretrizes que norteiam a elaborao da PNGATI: 1) participao e controle social dos indgenas no processo de elaborao e implementao da Poltica Nacional de Gesto Ambiental em Terras Indgenas; 2) fortalecimento dos sistemas indgenas de conservao ambiental; 3) proteo dos saberes e conhecimentos tradicionais indgenas; 4) desenvolvimento da gesto etnoambiental como instrumento de proteo dos territrios e das condies ambientais necessrias reproduo fsica e cultural e ao bemestar das comunidades indgenas; e 5) valorizao das identidades tnicas e de suas organizaes sociais. Cabe questionar, contudo, se essas diretrizes englobam a totalidade das mltiplas experincias e aes de gesto ambiental e/ ou territorial de/em TIs existentes no pas. Alm de contemplar as aes e experincias existentes, h ainda o desafio de incorporar novas perspectivas na PNGATI que possam de fato contribuir para o processo de gesto ambiental e/ou territorial de/em TIs frente a presses internas e externas que recaem sobre essas reas. notrio o fato da contribuio indgena para a conservao da biodiversidade, das aes de proteo realizadas pela FUNAI/MJ e do incentivo gesto ambiental realizado pelo MMA no serem completamente suficientes para conter as fortes presses externas sobre o entorno e o interior das TIs. Essas presses resultam de diversos fatores, dentre eles: o avano das fronteiras econmicas do pas - agrcola, madeireira e mineral; a construo das grandes obras de infraestrutura para atender s demandas do desenvolvimento socioeconmico do pas; a substituio das formas tradicionais de uso dos recursos naturais; os

Box 6: gesto e instrumentos de planejamento Etnolevantamento, etnomapeamento, etnozoneamento, diagnstico etnoambiental e diagnstico etnoecolgico podem ser considerados como instrumentos de planejamento. Isto no implica dizer que eles proporcionam um planejamento acabado, mas que so instrumentos tcnicos, polticos, de mapeamento e de diagnstico que oferecem subsdios aos povos indgenas e s instituies governamentais e no-governamentais com as quais se relacionam para planejar aes voltadas gesto territorial em TIs. Esses instrumentos em algumas situaes so considerados como etapas em processo mais amplo de gesto ambiental. Um ciclo de gesto territorial que contempla os vrios instrumentos. A primeira etapa seria a de articulao, incluindo mltiplos instrumentos associados a relacionamentos sociais e polticos e capacitao e treinamento. A segunda etapa foi denominada de diagnstico, envolvendo instrumentos como etnolevantamento, levant