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Cadernos de Saúde Saúde Mental e Luta Antimanicomial Edição 2 - Ano 1 Coordenação de Políticas de Saúde

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7/21/2019 Caderno -Saude Mental - Final

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Cadernos de Saúde

Saúde Mental e Luta Antimanicomial

Edição 2 - Ano 1

Coordenação de Políticas de Saúde

7/21/2019 Caderno -Saude Mental - Final

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“A loucura, objeto de meus estudos, era até agora uma ilha perdi-da no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente” 

Machado de Assis

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ÍNDICE

Uma Breve História Da Reforma PsiquiátricaRaul Manhaes de Castro.......................................................................................................................pag 4

Por que é tão dicil desinstucionalizar?Fernando S. Kinker ...............................................................................................................................pag 11

O Cuidado no CAPS: os novos desaosBenilton Bezerra Jr. ..............................................................................................................................pag 15

A Potencialidade do Movimento Social: A Parcipação do Usuário como Experiência e Desao da ReformaPsiquiátrica BrasileiraPaulo Michelon - Fórum Gaúcho de Saúde Mental ..........................................................................pag 21

População em Situação de Rua e Saúde Mental

Leandra Brasil da Cruz ...........................................................................................................................pag 23

EIXO DE DEBATE SOBRE INTERNAÇÕES COMPULSÓRIAS E COMUNIDADES TERAPÊUTICAS ..... pag 25

Internação compulsória é caminho a ser percorridoEntrevista com Dráuzio Varella...............................................................................................................pag 26

Entenda o que é internação compulsória para dependentes químicosSecretaria da Jusça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo ..............................................pag 28

Entrevista Daru Xavier: “A internação compulsória é sistema de isolamento social, não de tratamento”Por Gabriela Moncau ............................................................................................................................pag 31

Nem Comunidades, nem terapêucasGabriela Moncau ...................................................................................................................................pag 35

“Indústria da Loucura” impede avançosGabriela Moncau ...................................................................................................................................pag 39

Internação compulsória e saúde mentalLuciano Elias ..........................................................................................................................................pag 42

Drogas e Juventude: menos segurança pública e criminalização, mais saúde pública e promoção de direitosGabriel Medina ......................................................................................................................................pag 44

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CORDENAÇÃO DE POLÍTICAS DE SAÚDE   4

UMA BREVE HISTÓRIA DA REFORMAPSIQUIÁTRICA

Raul Manhaes de Castro

A LOUCURA E O MUNDO OCIDENTAL

A loucura nem sempre foi vista sob o olhar médico,antes, era concebida como modo de manifestaçãodo humano (1). Um tema, hoje, tão controversofoi objeto das mais variadas explicações, passandodesde o campo da Mitologia até o da Religião. NaGrécia Anga, o “louco” era considerado uma pessoacom poderes diversos. O que dizia era ouvido comoum saber importante e necessário, capaz de interferirno desno dos homens. A loucura era da como

uma manifestação dos deuses, sendo, portanto,reconhecida e valorizada socialmente. Não havianecessidade de seu controle e/ou exclusão.

  No início da Idade Média, época marcada pelapeste, lepra e medo de ameaças de outros mundos(2), a loucura era vista como expressão das forçasda natureza ou algo da ordem do não-humano. Eraexaltada, num misto de terror e atração. Mais tarde,ainda sem o esgma de sujeito de desrazão ou dedoente mental, era da como possessão por espíritos

maus, os quais precisavam ser exrpados medianteprácas inquisitoriais, sob o controle da Igreja.  Com o emergir do Racionalismo, a loucura deixa

de pertencer ao âmbito das forças da natureza oudo divino, assumindo o status de desrazão, sendoo “louco” aquele que transgride ou ignora a moralracional. Neste contexto, surge a associação coma periculosidade, visto que, uma vez desrazoado,representa o não-controle, a ameaça e, porconseguinte, o perigo. A loucura ganha um carátermoral, passando a ser algo desqualicante, e quetraz consigo um conjunto de vícios, como preguiça eirresponsabilidade. Atrelado a isto, no sec. XVII, como Mercanlismo, dominava o pressuposto de que apopulação era o bem maior de uma nação, devidoao lucro que podia trazer. Daí, todos aqueles que nãopodiam contribuir para o movimento de produção,comércio e consumo, começam a ser encarcerados,sob a prerrogava do controle social a tudo que fossedesviante. Velhos, crianças abandonadas, aleijados,mendigos, portadores de doenças venéreas e os

loucos passam a ocupar verdadeiros depósitoshumanos:

Evidencia-se por toda a parte a preocupaçãodos governantes em encontrar solução para

abrigar e alimentar a elevadíssima percentagemde incapazes, de mendigos, de criminosos, deanormais de todo gênero que dicultam e oneram

 pesadamente a parte sã e produva da sociedade

(3).A ociosidade passa a ser combada como o mal

maior, não havendo objevo de tratamento, mas simde punição:

Esquirol apud Foucault (1978): Vi-os nus, cobertosde trapos, tendo apenas um pouco de palha paraabrigarem-se da fria umidade do chão sobre o

qual se estendiam. Vi-os mal alimentados, semar para respirar, sem água para matar a sede esem coisas necessárias à vida. Vi-os entreguesa verdadeiros carcereiros, abandonados a suabrutal vigilância. Vi-os em locais estreitos, sujos,infectos, sem ar, sem luz, fechados em antrosonde se hesitaria em fechar os animais ferozes,e que o luxo dos governos mantém com grandesdespesas nos capitais (4).

Apenas cerca de um século mais tarde, com

a Revolução Francesa (1789), cujos ideais de‘Liberdade, Igualdade e Fraternidade’ tomavamforça e impulsionavam transformações, inicia-se umprocesso de reabsorção dos excluídos, até entãoisolados em setores próprios dos Hospitais Gerais.Tais Hospitais se constuíam, ao mesmo tempo,num espaço de assistência pública, acolhimento,correção e reclusão, ou seja, onde cuidado esegregação se confundem. Os conceitos de saúdee doença situavam-se numa perspecva social,subordinada às normas do trabalho industrial e damoral burguesa, com vistas à manutenção da ordempública. Era a instuição médica, segundo Foucault(1978), apresentando-se como uma estrutura semi-

 jurídica, estabelecida entre a polícia e a jusça, comforte função normalizadora, constuindo a ‘terceiraordem de repressão’.

Segundo Foucault (1978, p. 49-50), O HospitalGeral não é um estabelecimento médico. É antesuma estrutura semijurídica, uma espécie deendade administrava que, ao lado dos poderes

 já constuídos, e além dos tribunais, decide, julga e executa (...) Soberania quase absoluta, jurisdição sem apelações, direito de execuçãocontra o qual nada pode prevalecer – O Hospital

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é um estranho poder que o rei estabelece entrea polícia e a jusça, nos limites da lei: a terceira

ordem da repressão (4).Entretanto, mesmo com a efervescência das idéias

humanistas e libertação de alguns excluídos, osloucos, devido sua associação com a periculosidadee ameaça à ordem, connuavam encarcerados.

 No nal do sec. XVIII, em 1793, é que Pinel, uma veznomeado para dirigir o Hospital de Bicêtre, na França,dene um novo status social para a loucura. Trata-seda apropriação da loucura pelo saber médico. A parrde então, loucura passa a ser sinônimo de doençamental. Pinel manda desacorrentar os alienados einscreve suas “alienações” na nosograa médica.Desse modo, a loucura, enquanto doença, deveriaser tratada medicamente.

 A iniciava de Pinel abre duas questões importantes:se por um lado, tal iniciava cria um campo de

possibilidades terapêucas, por outro, dene umestatuto patológico e negavo para a loucura. Asidéias de Pinel terminam por reforçar a separaçãodos loucos dos demais excluídos, a m de estudá-los e buscar sua cura. O asilo passa a ser visto comoa melhor terapêuca, onde aplica-se a reclusão edisciplina, sendo seu objevo o tratamento moral.

Neste contexto, se estabelece um impasse: se apsiquiatria possibilitou que ao louco, agora comoenfermo mental, fosse concedido o direito de

assistência médica e de cuidados terapêucos, emcontraparda rerou dele a cidadania, sendo assim,o universo da loucura foi excluído denivamente doespaço social (5). Dentro da concepção de alienação,sendo o louco efevamente destuído de razão,perde o direito se ser considerado sujeito igual aosdemais cidadãos, restando-lhe apenas a interdiçãocivil e o controle absoluto. Para a Psiquiatria e aJusça, a questão da cidadania do louco enuncia-seatravés da seguinte regra: eles não são puníveis e nemcapazes. Ou seja, implícita na inimputabilidade está anoção de periculosidade e incapacidade absoluta.

 A lei que regulamenta a tutela/interdição desna-se a menores, loucos, surdos-mudos, dentreoutros. O problema, segundo o autor, é que ascrianças crescem e os surdos-mudos aprendem ase comunicar, restando aos loucos uma interdiçãoquase sempre deniva. É evidente que tais critériosprecisavam ser revistos, uma vez que tal mecanismodeveria visar a proteção do sujeito que, sofrendopor sua crise, encontrava-se temporariamente

fragilizado, e, jamais, tornar-se um selo denivo,implicando em sua esgmazação e exclusão docircuito da cidadania (6).

Desta forma, a instuição psiquiátrica, de

inspiração manicomiala, e toda lógica asilar quelhe fundamenta, congura-se como um lugar desegregação, expurgo social, onde são connados, namaioria das vezes sem o direito de escolher, aquelesque, desviantes do padrão de razão ocidental, nãocorrespondem às expectavas mercanlistas dasociedade. A instucionalização da loucura, que temno Manicômio o seu maior expoente, através de umacultura asilar, cujo tratamento moral, com seus ideaisde punição, regulação e sociabilidade, promoveo surgimento de verdadeiras ‘fábricas de loucos’,reprodutoras de uma concepção preconceituosae totalitária, que discrimina, isola, vigia e tem, nadoença, o seu único e absoluto objeto. Os HospitaisPsiquiátricos são comparados a grandes campos deconcentração, devido à miséria e maus tratos a quesão submedos os internos. Se é possível armarque com Pinel o louco é libertado das correntes e

dos porões, pode-se também dizer que este não élibertado do hospício. Esta é a liberdade intramuros,ou seja, o alienado é privado da liberdade para sertratado, devendo ser dobrado, tutelado, submedoe administrado (7).

Algumas contribuições trazidas por Goman (1961),em ‘Manicômios, Prisões e Conventos’, a parr de umaanálise microssociológica do Manicômio, revelamparte da dinâmica do Hospital Psiquiátrico, enquantoInstuição Totalb , onde há toda uma estrutura

organizacional, que tem por objevo o controle,a alienação e separação do indivíduo internadoda vida social. Todo este processo de isolamento econtrole, nomeado pelo autor de ‘Morcação doEu’, promove uma espécie de desaculturamento,devido à distância das ronas e transformaçõesculturais ocorridas no mundo externo, gerandodependência da instuição e medo de reinserir-se noconvívio social. A prisão/isolamento, assim como astécnicas de controle, passam do aspecto sico para osimbólico, causando verdadeiras mulações no ser,algumas delas irreversíveis.

É um trabalho que se distancia da reabilitação,provocando sim uma degeneração, através doenfraquecimento da autonomia e da individualidade,coisicando o ser e iniciando o sujeito numa carreiramoral esgmazada (8).

Por mais paradoxal que possa parecer, somentecom as duas Guerras Mundiais do século XX, cercade duzentos anos depois de Pinel, é que surgiram osgrandes quesonamentos em todo o mundo acerca

do objevo da Psiquiatria, seu saber e seu poder,certamente inuenciados pelas fortes repercussõesdas experiências nazistas, da bomba atômica,além de diversas outras barbáries ocorridas nestas

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circunstâncias. Tais fatos promoveram um intensoquesonamento da visão românca do homem,erigida no Iluminismo, bem como puseram em criseo ideal de sujeito de razão, provocando uma intensaruptura nos ideais que sustentavam as relaçõeshumanas no século passado.

O homem vê-se jogado num abismo, onde se pode reconhecer como fruto, também de sua própria destruição e, não somente, de seudesenvolvimento posivo. Modica-se, por isso,

a própria cultura e o indivíduo aí imerso, dadaa nova realidade, advinda de outra relaçãoestabelecida na sociedade, originando-se uma

 forma de ser-no-mundocom-outros perversa (9).Neste contexto, surgem em diversas partes do

mundo e nos diversos âmbitos do saber, tentavasde construção de uma nova ordem social, políca eeconômica, tendo em vista redimensionar a cultura

e o passado fragilizado pelo trauma da guerra.Mostrava-se preciso o surgimento de prácasintervenvas que, de algum modo, pudessem acolheros veteranos de guerra, que, pressionados, confusose com seqüelas de diversas ordens, demandavamuma atenção especial.

É neste instante histórico que se testemunhao surgimento do Aconselhamento Psicológico,do Existencialismo e da Fenomenologia, estesúlmos, constuindo-se enquanto posicionamentos

losócos que “retomam a inserção do homemno mundo, não somente como ser isolado, umaessência, e/ou biologicamente determinado(...) massim resgatando sua condição humana de ser situadono mundo (9).

Em diferentes lugares, começaram a ser ensaiadasdiversas tentavas de modicar os hospitaispsiquiátricos. A princípio, os movimentos diziamrespeito à busca pela humanização dos asilos.Para-se de uma críca à estrutura asilar, vista como

responsável pelos altos índices de cronicação e que,por ser o manicômio uma instuição de cura, deveriaser urgentemente reformado, uma vez que havia seafastado de sua nalidade. Associada a esta tentavade reforma asilar, também estava a necessidade dese promover a criação de espaços para a recuperaçãode feridos e vímas de traumas de guerra, tendoem vista a necessidade de reorganizar o Estado ecompensar as carências advindas dos frontes debatalha.

  No início da década de 50, surgiu na Inglaterra o

movimento das Comunidades Terapêucas comMaxwel Jones, enquanto proposta de superação doHospital Psiquiátrico. Este po de intervenção nhasua lógica baseada na democracia das relações,

parcipação e papel terapêuco de todos os membrosda comunidade, com ênfase na comunicação e notrabalho, como instrumentos essenciais no processode recuperação dos internos. Possuía por fundamentoa tentava de reprodução, no ambiente terapêuco,no mundo externo e suas relações, pois, para ele,o asilo havia criado um outro mundo diferente doreal, impossibilitando assim o tratamento a que sepropunha. Outras experiências como a PsicoterapiaInstucional e a Psiquiatria de Setor, ambas na França,nham por objevo, respecvamente, a promoçãoda restauração do aspecto terapêuco do hospitalpsiquiátrico e a recuperação da função terapêucada Psiquiatria, sendo que, esta úlma, não acreditavaser possível tal obra dentro de uma instuiçãoalienante, promovendo as ações comunitárias, tendona internação apenas uma das etapas do tratamento.

Nos Estados Unidos, desenvolveu-se, na década

de 60, um movimento denominado de PsiquiatriaComunitária, constuindo, uma aproximação daPsiquiatria com a Saúde Pública, que buscava aprevenção e promoção da saúde mental. Embora nãose possa negar a tentava de melhoria na assistênciaao doente mental, bem como as contribuiçõestrazidas por estes movimentos, pode-se dizer quenão cricavam a psiquiatria e seu modo de ver etratar a loucura, apenas reformulavam sua prácasem promover nenhuma ruptura epistemológica (2).

Também na década de 60, iniciou-se, na Inglaterra,um movimento denominado de AnPsiquiatria, comLaing e Cooper. Este movimento promoveu um fortequesonamento não só à Psiquiatria, mas à própriadoença mental, tentando mostrar que o saberpsiquiátrico não conseguia responder à questão daloucura. Para eles, a loucura é um fato social, ou seja,uma reação à violência externa. Por conseguinte, olouco não necessitaria de tratamento, sendo esteapenas acompanhado em suas vivências. Defendia

que o delírio não deveria ser condo, procurando-se, como saída possível, a modicação da realidadesocial (2). As postulações da Anpsiquiatria situa-vam-se num ambiente de contracultura libertária evisava promover crícas às estruturas sociais, dascomo conservadoras. Segundo eles, a sociedadeenlouquecia as pessoas e, em seguida, culpada,buscava tratá-las. Desta feita, o Hospital Psiquiá-tricocongurava apenas um mecanismo de mea culpasocial.

  Entretanto, é na Itália, na década de 60, que

surge o movimento que promove a maior rupturaepistemológica e metodológica entre o saber/prácapsiquiátrico, vivenciada até então. Ao contrário daAnpsiquiatria, a Psiquiatria Democráca Italiana

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não nega a existência da doença mental, antespropõe uma nova forma de olhar para o fenômeno.Olhar que benecia a complexidade da loucura comoalgo inerente à condição humana e que vai além dodomínio da psiquiatria, dizendo respeito ao sujeito, àfamília, à comunidade e demais atores sociais.

  O movimento de desinstucionalização dapsiquiatria italiana inicia-se a parr da experiência deFranco Basaglia na direção do Hospital Psiquiátricode Gorizia (1961 a 1968). Com o trabalho nestainstuição, ulizando algumas contribuições domodelo das Comunidades Terapêucas, torna-se-lheevidente que o Manicômio é um lugar de segregação,de violência e morte e que, portanto, deve sercombado, negado, superado e quesonadas as suasnalidades num contexto mais geral das instuiçõessociais (BASAGLIA apud AMARANTE, 1992). Suaspropostas encontram fortes reações do poder

políco local, sendo rechaçadas, fato que fez comque os técnicos do hospital, também convencidosda inviabilidade manicomial, optassem em dar altacoleva e, em seguida, pedissem demissão em massa(1).

Em 1971, Basaglia assume a direção do HospitalPsiquiátrico de San Giovanni, em Trieste,perfeitamente convencido da impossibilidade dereformar o Manicômio. Dá-se início a um projetomais sólido de desinstucionalização, que tem por

objevo a desconstrução do aparato manicomial,assim como de toda a lógica de segregação quelhe é implícita. A instuição psiquiátrica deveriaser negada, enquanto saber e poder, buscando-sesubstuir os serviços e tratamentos oferecidos pelalógica hospitalocêntrica, com toda sua cultura deexclusão, por intervenções que visassem a reinserçãosocial do sujeito no pleno exercício de sua cidadania.Além disso, a própria estrutura social teria quepromover a revisão de valores e prácas instucionaisexcludentes. Trata-se de uma tentava de colocar adoença entre parênteses, voltando toda a atenção aosujeito, considerando sua complexidade, através deum trabalho interdisciplinar e psicossocial.

 Tal postura não visava negar a existência da doença,nem muito menos o sofrimento vivenciado pelosujeito, mas rerá-la do primeiro plano, permindosua inserção como mais um dos diversos aspectosda vida do sujeito, que mais do que doente éuma pessoa, que não pode ser abordada em suatotalidade, se resumida a um de seus aspectos.

Basaglia parte, fundamentalmente, da premissa deque deveria ser produzido um novo imaginário socialpara a loucura, que a desvinculasse dos conceitosde periculosidade, preguiça, incapacidade, dentre

outros, de forma a gerar uma nova relação entre o“louco” e a sociedade.

 Estas noções inuenciaram grandemente diversosoutros países, de forma que hoje, no Brasil,vivenciamos um importante momento histórico, noqual a loucura tem sido revisitada e novas construçõestêm sido feitas, tendo em vista a promoção dacidadania e bem-estar social àqueles que padecemde sofrimento psíquico.

O BRASIL E A LOUCURA: A TRAJETÓRIA DE UMAREPRODUÇÃO.

 Além desta contextualização a parr do panoramamundial da história da loucura, é importantediscorrermos algumas considerações históricasacerca do processo de assistência à saúde mental emnosso país. No Brasil, ocorre uma certa reprodução

da trajetória mundial citada anteriormente, tendo apsiquiatria brasileira, uma história pautada sobre apráca asilar e medicalização do social (10).

A chegada da Família Real ao Brasil, em 1808,constui o marco inicial da aplicação de prácasintervenvas voltadas aos desviantes. Assim comoocorrera em outras partes do mundo, dá-se no Brasila necessidade de reordenamento da cidade, tendoem vista recolher os que perambulavam pelas ruas:desempregados, mendigos, órfãos, marginais de

todo o po e loucos. Inicialmente, o desno destaclientela passa a ser a prisão, ruas ou celas especiaisdos hospitais gerais da Santa Casas de Misericórdiado Rio de Janeiro (3).

Em 1830, a parr de um diagnósco da SociedadeBrasileira de Medicina no Rio de Janeiro, que cricouo abandono dos loucos à própria sorte, é propostaa construção de um Hospício para os alienados,nos moldes europeus, com a substuição das alasinsalubres dos hospitais e dos casgos corporais, porasilos higiênicos, arejados e com tratamento moral,iniciando no Brasil, o processo de medicalização daloucura.

 Só a parr da segunda metade do século XIX é quese idencam as primeiras intervenções especícasno campo da saúde mental no Brasil. Em 1952, éinaugurado no Rio de Janeiro, o Hospício D. Pedro II.A parr daí, diversas transformações ocorreram notratamento dos alienados. A Psiquiatria, enquantoespecialidade médica autônoma toma forma ediversas instuições são criadas no intuito de prestar

assistência asilar aos doentes mentais. Segundo Costa(op.cit.), o modelo de entendimento e tratamentoda doença mental nha como fundamento básico obiologismo organicista alemão, trazido por Juliano

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Moreira em 1903, e a práca asilar, cujo tratamentomoral compreendia entre seus princípios básicos, oisolamento, a organização do espaço terapêuco,a vigilância e a distribuição do tempo. Um fatorhistórico de extrema relevância é a fundação, em1923, por Gustavo Heidel, da Liga Brasileira deHigiene Mental, com caracteríscas marcadamenteeugenistasd , xenofóbicas, an-liberais e racistas,com grandes semelhanças com o pensamento nazistaalemão. Era a Psiquiatria assumindo seu papel nocontrole social, da forma descrita por Foucault(1978), citada anteriormente, como a TerceiraOrdem de Repressão, que opera entre a polícia e a

 jusça, por via da penetração no espaço cultural, aqual passa a intervir, com ‘métodos prevenvos’, naregulação não só dos doentes mentais, mas tambémdos “normais”. A práca desta regulação pelo saberpsiquiátrico se difunde na sociedade, e os fenômenos

psíquicos e culturais começam a ser vistos comosendo explicados unicamente pela hipótese de umacausalidade biológica, o que, em tese, juscava aintervenção médica em todos os níveis da sociedade(4).

  Percebe-se neste modo de compreensão dasociedade, um desvio de foco de questões amplase complexas, como co-responsabilidade nadeterminação do fenômeno social das questõessociais, para explicações simplistas e que eximiam

de culpa as classes dominantes, geralmente formadapelos de ‘raça pura’ européia. Desta feita, passava-se a responsabilizar a má herança genéca das ‘raçasinferiores’e , como movo principal dos problemasenfrentados pela população. Era a eugenia nazistaem busca de uma puricação da raça como soluçãopara todos os problemas.

  Baseadas nestas concepções, diversas prácascontroladoras passaram a ser implantadas, no que iadesde o isolamento do desviante até medidas sus

e autoritárias como o exame prénupcial como formade melhoramento da raça e manutenção da ordem:Segundo Kehl apud Costa (1976, p. 98) urgia, pois,que o Estado-Providência assumisse o encargo de

 prover o bom resultado das uniões reprodutorasda espécie humana, tal como faz a respeito dosanimais de corte (3).

 Entre as décadas de 30 e 50, a Psiquiatria pareceacreditar ter a cura da doença mental, com adescoberta da ECT (Eletroconvulsoterapia), daLobotomia e com o surgimento dos primeiros

neurolépcos.  Nos anos 60, um outro fenômeno passa a ser

observado: o declínio da psiquiatria pública emdetrimento do crescimento da psiquiatria privada

em convênios com o Estado. É a instucionalizaçãodo lucro, como novo mediador entre as relações de“cuidado” em saúde mental. Este, por sua vez, passaráa constuir um dos mais importantes elementosno movimento de degradação e desumanização daassistência aos doentes mentais.

  É importante destacar o cenário em que seencontra, neste momento retratado, a atençãoa saúde mental brasileira: a conuência de idéiaeugenistas, juntamente à instalação do lucro commediador das relações de saúde, o fortalecimentode prácas psiquiátricas tradicionais, apoiadasno pensamento clássico, ao qual nos reportamosanteriormente. Enm, diante de tal conguraçãourgia o surgimento de novas propostas que viessem aoxigenar o processo de tratamento ao doente mentalno Brasil.

  Paralelamente a isto, começava-se a observar o

surgimento de idéias advindas dos movimentosda Psicoterapia Instucional, Psiquiatria de Setor,Psiquiatria Prevenva e An-Psiquiatria, as quaisocupavam espaço marginal entre os prossionaisbrasileiros. Dá-se início, assim como no resto domundo, a um processo de quesonamentos, fruto dediversas insasfações e busca por transformações nomodelo assistencial asilar predominante.

A REFORMA SANITÁRIA BRASILEIRA E A LOUCURA:

EM QUESTÃO UMA DESCONSTRUÇÃO.

A década de 80 é marcada por um processo deredemocrazação do país, após duas décadasde regime militar. Neste contexto, toma forma oMovimento pela Reforma Sanitária, tendo em vistaa abertura e livre acesso da população à assistênciaà saúde. Tais ações culminam na inclusão na atualConstuição Federal, promulgada em 1988, em seuargo 196, da noção de saúde enquanto direito de

todos e dever do Estado e, em 1990, na aprovação daLei 8.080, também chamada de Lei Orgânica da Saúde,a qual instui o Sistema Único de Saúde, que preconizaa criação de uma rede pública e/ou conveniada -decaráter complementar -de serviços de saúde, tendoem vista a atenção integral à população nos níveis deprevenção, promoção e reabilitação. O SUS é norteadocom base em princípios e diretrizes que visam balizarsuas ações e contribuir para a conservação de suasbases fundamentais. Neste sendo, destacam-se temácas como a regionalização -organização

dos serviços de acordo com uma área geográca epopulação delimitada, hierarquização – organizaçãodos serviços nos diferentes níveis de complexidade,de modo a oferecer à população todos os níveis

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de assistência e descentralização – administração,controle e scalização das ações nas diversas esferasde governo (federal, estadual e municipal) e nummesmo sendo, com ênfase na gestão municipaldas ações. Além das noções de integralidade daassistência; eqüidade – como forma de garana deatendimento das demandas independentemente dacondição de vulnerabilidade social de determinadasregiões e parcipação popular – tendo em vista ocontrole social das ações desenvolvidas.

 Percebe-se um grande abismo entre boa parte daspropostas e intenções do SUS e aquilo que, de fato,tem sido possível se efevar no dia-adia da saúdepública. Tais considerações são importantes de serempontuadas, pois o modelo em questão em nossotrabalho está inserido exatamente neste processo deconstrução da saúde pública brasileira, de modo anão podermos ignorar suas nuances e seus entraves

sob o risco de comprometer nossa compreensão. Com a aprovação do Programa de Reorientação da

Assistência Psiquiátrica Previdenciária do Ministérioda Previdência e Assistência Social (MPAS), em1982, deu-se início à criação de uma políca desaúde mental engajada no combate à “culturahospitalocêntrica” vigente. Se até então a assistênciaera predominantemente oferecida pela rede deHospitais Psiquiátricos privados conveniados, a parrdos anos 80, observa-se o movimento de estruturação

de uma rede pública de atenção à saúde mental.Em 1987, acontece a 1ª Conferência Nacional de

Saúde Mental e o 2º Encontro de Trabalhadoresem Saúde Mental. Inuenciado pela PsiquiatriaDemocráca Italiana, o Movimento dos Trabalhadoresde Saúde Mental lança o tema: “Por uma Sociedadesem Manicômios”. É neste contexto de busca de novosparadigmas que surge o Projeto de Lei 3657/89 doDeputado Federal Paulo Delgado, que dispõe acercada exnção progressiva dos manicômios e da criaçãode recursos assistenciais substuvos, bem comoregulamenta a internação psiquiátrica compulsória.Tal Projeto representa apenas o início de uma sériede mobilizações desencadeadas em todo país,que mais tarde culminou num conjunto de LeisEstaduais, dentre elas Lei nº 44.064/94 do Estado dePernambuco, de autoria do então Deputado EstadualHumberto Costa, atual Ministro da Saúde. O debateange os mais diversos segmentos da sociedade,unindo em torno desta causa, não apenas as equipestécnicas, mas também endades de usuários,

familiares e simpazantes.  O movimento nomeado de Luta Anmanicomial

tem na superação do Manicômio, não apenas emsua estrutura sica, mas, sobretudo, ideológica,

seu grande objevo. Busca-se a desconstrução dalógica manicomial como sinônimo de exclusão eviolência instucional, bem como a criação de umnovo lugar social para a loucura, dando ao portadorde transtorno psíquico a possibilidade do exercíciode sua cidadania. Neste sendo, a reinserçãosocial passa a ser o principal objevo da ReformaPsiquiátrica, tendo em vista potencializar a rede derelações do sujeito, através do resgate da noção decomplexidade do fenômeno humano e rearmaçãoda capacidade de contratualidade do sujeito, criandoassim um ambiente favorável para que aquele quesofre psiquicamente possa ter o suporte necessáriopara reinscrever-se no mundo como ator social.

 Dá-se início à construção de uma rede substuva aoHospital Psiquiátrico e ao modelo hospitalocêntricotradicional, a parr da criação de serviços de atençãoà saúde mental de caráter extra-hospitalar. Neste

contexto, são constuídos serviços como os Centrosde Atenção Psicossocial (CAPS, CAPSif e CAPSadg),ambulatórios de saúde mental, hospitais-dia,centros de convivência, residências terapêucash,dentre outros, os quais, a parr de uma abordageminterdisciplinar, visam atender à demandapsiquiátrico-psicológica de uma determinada regiãogeo-políco-cultural.Segundo Amarante (1992),tais serviços de saúde mental, assumem o carátercomplexo da denominada demanda psiquiátrica,

que é sempre menos uma demanda apenas clínicae mais uma demanda social. Assim sendo, torna-seimportante destacar a necessidade da existênciade uma visão complexa por parte dos prossionaisenvolvidos nestas ações, sob o risco de se tornaremreducionistas em suas intervenções, incorrendonum processo de medicalização do social, evidenteem todo o percurso histórico da Psiquiatria. Aliás, ahistória nos mostra o quão mais fácil é tamponar aangúsa e o sofrimento de um povo, com soluçõesfugazes e promoção de um estado de felicidadearcial, quer seja este promovido pelo vinho, comoem tempos remotos da história da humanidade,quer pelos ansiolícos e andepressivos soscadosdos dias atuais (1).

Se, em algum momento, abrirmos mão dacompreensão de que as intervenções precisam ter umcaráter de promoção de saúde em seu sendo maisamplo, onde se inclui basilarmente a promoção damelhoria das condições de vida da nossa população,incorremos no risco de, além de reducionistas, nos

tornarmos instrumentos de alienação.

CAPS: UM RECORTE, UMA APROXIMAÇÃO.

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CORDENAÇÃO DE POLÍTICAS DE SAÚDE   10

Como estrutura básica da nova rede de atençãoà saúde mental, os CAPS são responsáveis pelaorganização da demanda e da rede de cuidados emseu território, ocupando o papel de regulador daporta de entrada e controlador do sistema local deatenção à saúde mental (11). As portarias ministeriais189/91, 224/92 e, mais recentemente, 336/02 e189/02, os dene como sendo serviços comunitáriosambulatoriais, com a responsabilidade de cuidar depessoas que sofrem com transtornos mentais, emespecial os transtornos severos e persistentes, noseu território de abrangência. Para tanto, devendogaranr relações entre trabalhadores e usuáriospautados no acolhimento, vínculo e responsabilidadede cada membro da equipe (idem). A atenção deveincluir ações voltadas aos familiares, objevando areinserção social do usuário. As ações distribuem-sea parr de três modalidades de assistência: o cuidado

intensivo, o semi-intensivo e o não-intensivo.Dene-se como atendimento intensivo aquele

desnado aos pacientes que, em função de seu

quadro atual, necessitem acompanhamentodiário; semi-intensivo é o tratamento desnado aos

 pacientes que necessitam de acompanhamento freqüente, xado em seu projeto terapêuco,

mas não precisam estar diariamente no CAPS;não-intensivo é o atendimento que, em função doquadro clínico, pode ter uma freqüência menor

(11).A formação da equipe técnica tem por base o

princípio da mulprossionalidade (idem). Devendoser constuída por médico psiquiatra, enfermeiro,outros prossionais de nível superior, além deprossionais de nível médio e elementar, a dependerde cada situação/população-alvo especicamentei.

Busca-se uma assistência caracterizada por umpo de atenção diária, onde o usuário tenha apossibilidade de encontrar algum po de assistência,

sem necessitar estar internado. A forma deatendimento procura ser especíca, personalizada,respeitando as histórias de vida, a dinâmica familiar eas redes sociais, enfazando-se a busca da cidadania,autonomia e liberdade. Aos poucos, estas novasformas de assistência têm encontrado respaldolegal e adesão social, estando em pleno processo deexpansão. As transformações ocorridas na assistênciaà saúde mental no Brasil “têm angido, de modoposivo, embora ainda longe do desejável, algunsde seus objevos”, como a diminuição progressiva

do número de leitos em hospitais psiquiátricos,a introdução da questão da loucura nos diversosfóruns de discussão social, como conselhos de classe,Ministério Público, Poderes Execuvo, Legislavo e

Judiciário, organizações da sociedade civil, dentreoutros.

Entretanto, por se tratar de um modelo em plenodesenvolvimento, pode dizer que se vive um complexoprocesso de transição, onde emergem diversas lutasde interesse, principalmente envolvendo o capitalgerado por um verdadeiro mercado de adoecimentomental, cujo circuito congura-se como vicioso egerador de dependência.

É inegável que a convivência entre serviços delógicas e princípios tão divergentes, constui um dosentraves do atual momento da Reforma. Entretanto,as contradições que se colocam não são apenasexternas. Ao contrário, o próprio modelo viveum momento de redenição de papéis, atudese prioridades. Cada vez mais se percebe umapreocupação com a não cristalização das ações, oque, denivamente, culminaria na reprodução do

modelo manicomial, excludente e discriminatório,mesmo dentro de instuições abertas.

A Reforma Psiquiátrica Brasileira, talvez pelofato de ser um movimento recente em plenoprocesso de construção, talvez por carregar sobresi uma herança repleta de desvios, uso ideológicoe políco-econômico da questão da loucura ouainda, por estar inserido num contexto mais amplo,com uma conguração políca e social pautadana exclusão e regida pela lógica do interesse das

minorias mais favorecidas, é que se faz necessáriaum olhar permanentemente atento e cuidadosoem vistas a construção de um outro modo de lidarcom o adoecimento psíquico, tendo em vista a nãorepeção dos equívocos e mazelas testemunhadoshistoricamente.

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Por que é t ão di f í ci ldesi n st i t uci on al i zar ?

Fernando S. Kinker 

“Numa de minhas visitas às enfermarias,converso com uma paciente grave, que gritava

 pedindo que se afastassem dela, usando umvocabulário muito restrito, balançando o corpoe olhando para o chão. Às vezes, arregalava osolhos e dirigia o olhar para cima, passando pormim. Tentei conversar, perguntar seu nome e oque a incomodava.Cabelos curtos e lisos, corpo forte, nem magronem gordo, sempre envergado numa curvaturaque lhe era própria. Punhos sempre cerrados,olhos que às vezes se arregalavam, boca gritando

alto: “sai, sai, sai...”.Voz forte, que ecoava pelos corredores, a parr

de um canto da sala onde cava enraizada,

balançando para frente e para trás.Por vezes o grito era para pedir água aos outros.Mas era só o que pedia, pois quase todos gritoseram para afastar os outros de si, ou pelo menos

 para que achassem que era uma pessoa que osqueria distantes.Perguntei seu nome. Respondeu com palavrasembrulhadas, meio grito meio palavra. Disse-

me depois que massagem doía. Respondi quemassagem também podia ser uma forma decarinho. Manve-me afastado dela, perguntando

se queria segurar minha mão. Dizia que não, masvoltava a gritar, ora com as outras mulheres, oracomigo ou com o mundo todo, o espaço todo.No momento em que eu disse que iria embora,avançou e segurou fortemente meu braço,dizendo: “Fique aqui, que aqui!”. Mas logo o

soltou, e não queria ser tocada.

Parou de reclamar quando eu disse que poderiavoltar amanhã, e liberou-me deixando porinstantes de gritar e chorar.Não voltei no dia seguinte, mas no outrosubseqüente.Dessa vez, o contato haveria que ser restabelecido,e foi, mas a força das circunstâncias fez comque eu vesse de abandoná-la para ajudar,

acompanhado por nossa cointerventora, asmulheres a transferir umas camas vazias de um

quarto para outro: por quererem car juntas,algumas delas haviam rerado os colchões dos

outros quartos, colocando-os no chão do quartode preferência. Portanto, agora todas que assimqueriam estavam no mesmo quarto em camas

com colchões, juntas. Mas Ana do Desterro cou

aguardando que véssemos gente suciente

 para se aproximar dela, dialogar, descobrir quemera ela, enm, retomar o trajeto de descoberta

do desvendamento do mundo, que em algummomento passou a ser vivido com alta carga desofrimento e congelou-se em torno de repeções.

Congelou-se a ponto de levá-la a dizer que“massagem dói”, que o contato dói porquesempre foi dolorido, e o remédio dessa relaçãodolorida com o mundo sempre foi o casgo e a

violência inerente ao hospital psiquiátrico.

 Ana do Desterro clamava, aos gritos, que lhearrancassem os grilhões que a prendiam aomundo subterrâneo, queria conhecer o ar puro,as plantas, as paisagens e, quem sabe com maisesforço, as diferentes pessoas e a si própria(ela já estava internada havia mais de 30 anosininterruptos). Menra, esse era o nosso desejo

e o que queríamos impor, convictos de que aos poucos conseguiríamos. Era com os nossosdesejos que ela haveria de entrar em contato para

 poder fazer suas escolhas, construir seus próprios

 projetos de vida. Haveríamos de tomar todosos cuidados para que o nosso poder de técnicoslhe abrisse as possibilidades de fazer as própriasescolhas e não decidisse por ela quais caminhostomar.Eu torcia para que um dia vesse condições de

me dedicar mais ao contato e ao resgate dos pacientes do que ter que empreender, comointerventor, codiana e diariamente, uma

luta de ideias, valores e ações para garanr a

governabilidade, a viabilidade e a legimidadedessas mudanças, atuando em campos sociaismais amplos (no contato com outras instuições,

com a imprensa, com a câmara de vereadores,com a prefeitura, com o bispo diocesano, coma jusça, com o Conselho Municipal de Saúde,

e com tantos outros atores cujo contato exigiadedicação quase integral), para que nossa equipe

 pudesse trabalhar e ser sempre mulplicada por

novos atores”.(Kinker, 2007:45)1

Fiz questão de trazer um trecho do relato daexperiência da intervenção no Hospital de CampinaGrande, para demonstrar que a carga de emoção ede envolvimento que o contato com a destruiçãoprovoca é imensa e pode produzir transformações

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também imensas nos atores envolvidos, quando estesestão convictos de que a práca da transformaçãodeve superar o pessimismo da razão.

De fato, os processos reais de desinstucionalizaçãosão mais que simples estratégias técnico-administravas voltadas para a resolução simples epontual das crises instucionais. São processos quenos absorvem e nos faz ter uma nova visão de mundo,que nos faz emagrecer enquanto nos alimentamoscom os mais variados senmentos e reexões, quenos desatam de nós produzidos pela simplicação daciência cartesiana.

São desses processos que quero falar, processoscuja carga de mutação está atuante nos corpos dosinternos, dos prossionais, e de todos aqueles quesão contagiados por essa nova realidade produzidaa parr das rupturas codianas de um processo dedesconstrução manicomial.

Porque desinstucionalizar é algo que exigeum constante remar contra a maré, um rol deenfrentamentos e de constuição de alianças.Um colocar fora do lugar, a descoberta da talmulplicidade e potencialidade humana, escondidaem baixo da pobreza de nosso codiano moderno ede nosso padrão de normalidade altamente fúl.

Fiz questão de trazer um trecho do relato daexperiência da intervenção no Hospital de Campina

Grande, para demonstrar que a carga de emoção ede envolvimento que o contato com a destruiçãoprovoca é imensa e pode produzir transformaçõestambém imensas nos atores envolvidos, quando estesestão convictos de que a práca da transformaçãodeve superar o pessimismo da razão.

De fato, os processos reais de desinstucionalizaçãosão mais que simples estratégias técnico-administravas voltadas para a resolução simples epontual das crises instucionais. São processos quenos absorvem e nos faz ter uma nova visão de mundo,que nos faz emagrecer enquanto nos alimentamoscom os mais variados senmentos e reexões, quenos desatam de nós produzidos pela simplicação daciência cartesiana.

São desses processos que quero falar, processoscuja carga de mutação está atuante nos corpos dosinternos, dos prossionais, e de todos aqueles quesão contagiados por essa nova realidade produzidaa parr das rupturas codianas de um processo dedesconstrução manicomial.

Porque desinstucionalizar é algo que exigeum constante remar contra a maré, um rol deenfrentamentos e de constuição de alianças.Um colocar fora do lugar, a descoberta da tal

mulplicidade e potencialidade humana, escondidaem baixo da pobreza de nosso codiano moderno ede nosso padrão de normalidade altamente fúl.

Minha querida amiga Nicácio (2003: 93)2 resume:como desconstrução dos saberes, prácas, culturase valores pautados na doença/periculosidade, adesinstucionalização requer desmontar as respostascienca e instucional, romper a relação mecânicacausa-efeito na análise de constuição da loucura,para desconstruir o problema, recompondo-o, re-contextualizando-o, re-complexicando-o.

É isso: cultura, ciência, legislação, práxis, modos deexistência, acolhimento, resignicação do sofrimento,descoberta de potencialidades, superação dainvalidação, tudo isso está implicado num processode desinstucionalização.

Mas porque tem sido tão dicil tornar realidade osprocessos de desinstucionalização, compreendendo

que isso signica também rerar os internos doshospitais e iniciar com eles novas trajetórias deconstrução de projetos de vida?

Anal, não é verdade que ainda temos cerca de 12mil moradores de hospitais psiquiátricos no Brasil( sendo 6 mil só no estado de São Paulo)? Que onúmero de residências terapêucas implantadas nosúlmos anos não tem ultrapassado as 600 unidades?Que boa parte dos 1500 CAPS implantados não estãoenvolvidos diretamente nem se sentem responsáveis

pela situação dos usuários moradores de hospitaispsiquiátricos no Brasil ( sendo 6 mil só no estado deSão Paulo)? Que o número de residências terapêucasimplantadas nos úlmos anos não tem ultrapassadoas 600 unidades? Que boa parte dos 1500 CAPSimplantados não estão envolvidos diretamente nemse sentem responsáveis pela situação dos usuáriosmoradores de hospitais psiquiátricos? A que se devetão delicada situação, que contrasta com o aumentode serviços territoriais e das ações no campo dacultura e do trabalho?

Minha pequena cabeça consegue pensar emalgumas possíveis causas conhecidas, algunselementos certamente envolvidos, e conseguepensar numa causa desconhecida.

Que se parta das causas aparentemente conhecidas,aquelas que nos dão segurança por sua transparência:

Em primeiro lugar, constato que muitos manicômiosestão presentes em cidades pequenas ou médias,onde acabam exercendo certa inuência políca, nãosó porque seus proprietários alcançam certo grau

importante de status, mas porque realmente produzemcerto nível considerável de empregabilidade.Nas cidades pequenas, transformar o manicômiosignica modicar relações de poder fortemente

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estabelecidas, e geralmente coligadas à esferaeconômica. Nas cidades grandes, o manicômio nãotem tanta importância enquanto lugar de produçãode poder, mas representa um disposivo comumque pode ser ulizado para reproduzir as técnicasde controle das urbes, a parr de uma concepçãotecnológica que troca a disciplina pelo abandono.Funcionam como os abrigos e albergues, como locaisde deposição de elementos não gratos ao já dicil econturbado codiano das metrópoles. A mudançadessa condição exigiria forte enfrentamento, a parrda força de pressão de movimentos sociais ou deuma voluntária reorientação da Atenção em Saúdedirigida por gestores mais compromedos com aconstrução do SUS e da cidadania.

Em segundo lugar, percebo a anga diculdade depriorizar as questões de saúde mental nos codianosde trabalho das secretarias municipais e estaduais

de saúde, assim como no próprio âmbito federal. Ainsistente reivindicação de que 5 % do orçamento dassecretarias e demais órgãos da saúde seja invesdona área da saúde mental (o que a OMS preconiza),ainda é uma utopia que necessitamos alcançar. Éverdade que tem sido descoberto aos poucos pelosgestores que boa parte da população que uliza osserviços de saúde apresenta demanda por ações desaúde mental, e que isso poderá gerar movimentosde qualicação da própria atuação dos serviços

básicos, como as UBS, que precisarão qualicar suaescuta e aprimorar suas respostas em torno dasnecessidades complexas de seus usuários, o que sóum trabalho focado no território e na construçãode vínculos pode proporcionar. Mas o princípioda equidade não tem sido garando quando sereleva à segundo plano a modicação radical dasinstuições totais que se encarregam das pessoascom transtornos mentais graves, ou porque estassão em número reduzido perto daqueles que temum sofrimento leve ou moderado, ou porque não seacredita na possibilidade destes poderem parcipardas trocas sociais.

Aliás, esta vem a ser a terceira causa importante dainsuciência de processos de desinstucionalizaçãodesencadeados nos úlmos anos. A adaptaçãofuncional ao modo de vida e aos valores dasociedade contemporânea faz com que a maioria dosgovernos ajam tendo como foco a mera adaptação eo fortalecimento do sistema social vigente, sem quesejam quesonados, em nenhum momento, o caráter

destruvo de nosso tão desejado desenvolvimentoeconômico e social. Bom é aquele cidadão quetrabalha sem alarde para a produção de mais-valia,que intensica e potencializa o consumo e que se

transforma em máquina mesmo quando descansa:uma máquina de produzir capital, mesmo nas horasde lazer, quando a indústria do entretenimento ou doturismo o encapsulam.

A quarta e úlma causa, porque minha pequenamente não consegue avançar sem a contribuição dasdemais, diz respeito à diculdade de transformaros paradigmas hierárquicos das instuições, a visãocoorporava e reducionista dos prossionais, a faltade movação e de utopias atual (onde não vale apena fazer nada porque assumimos nossa condiçãode máquinas com vida úl determinada), o não –quesonamento e a naturalização da violência (ora,se é natural que os operários são máquinas taisquais as que operam, desde os tempos do fordismo,porque não seria natural a existência de refugos paraas máquinas insucientes como é o manicômio?). Afalta de sendo da existência, mesmo num contexto

de devir e conngencia em que os sendos sãoproduzidos e reorientados a todo o momento,também são parte dessa quarta causa.

Vamos agora para a causa desconhecida.Desconhecida porque, a meu ver, os atores sociaisnem de longe imaginam que isso faz algum sendoou que seria um po de problema.

A causa desconhecida tem a ver com a idendade.Sim, nossa necessidade de uma idendade xa

e ilusoriamente imutável tem sido responsável

por grande parte de nossa irresponsabilidade.É irresponsável o nosso ato de descartar todo equalquer desvio, a nossa incapacidade de percebernovas capacidades nos usuários dos serviços de saúdemental e em nós mesmos, a nossa incapacidade dever como pouco natural e histórico a permanência deinstuições de destruição total como os manicômios,os asilos, e até as prisões. A nossa incapacidade depensar que os asilos só existem porque os velhossão desvalorizados e não podem mais produzir ( e,as famílias, não tem tempo nem dinheiro para cuidardeles, para contratar ajuda, porque estão a serviçodo trabalho), que os manicômios e as prisões sóexisram na história porque era necessário criardisposivos que garanssem a consolidação depadrões de vida que girassem em torno do trabalhoassalariado (o trabalho como conhecemos é tambémum invenção histórica, e não algo natural), a nossacegueira para perceber que os cegos enxergam, osloucos tem razão, os decientes são os mais capazes,os animais às vezes parecem pensar e senr mais do

que nós, porque tem tempo para isso.A desinstucionalização, essa é a causa

desconhecida, é nada mais que “cairmos na real”,percebermos que a realidade é complexa e que a

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produzimos de forma pobre com nossa imaginação,que nosso papel de prossionais não poderia sermais pobre, exatamente porque se acha tão munidode conhecimentos miseráveis, que colocamos osusuários no lugar daqueles que nada sabem e quesão apenas os depositários de nosso suposto saber,que a loucura é algo do outro mundo e não vivência

radical de relações e laços que a todos nós pertence.Sim, somos loucos, cheios de vida e de sofrimento, ede morte também, a nos esconder de nós mesmosquando dizemos que o sofrimento psíquico é apenasuma patologia, e nada tem a ver com um mundoem que as relações de poder produzem sendo,realidade, saber.

A causa desconhecida é o empobrecimentoda existência, a falta de críca de que devemosproceder constantemente à desconstrução de nósmesmos, de nossas mentalidades pálidas, para

construirmos de forma incessante um mundocolorido, dolorido e gostoso. Basaglia estava certoao dizer que “as contradições sociais são o húmus doprocesso terapêuco” (Basaglia,1985: 118)3. É isso, oprocesso terapêuco só tem ecácia se ele produzirtransformações nos usuários dos serviços, nosprossionais, e nos demais atores sociais, a parr davivência das contradições sociais, e não escondendo-as e eliminando-as, para que tenhamos uma vidaassépca e tranqüila, porém pobre. Será que temos

tanta diculdade de perceber isso, e tornar explicávelessa causa desconhecida?

Eu, de minha parte, estou em parte sasfeitoporque sei que Ana do Desterro, aquela do iníciodo texto, está reconstruindo sua vida com muitoprotagonismo, o protagonismo que a pessoamais louca e instucionalizada do mundo tem apossibilidade de exercer, tendo o apoio das corajosaspessoas do município de Boqueirão, na Paraíba,que a receberam de volta após os seus 30 anos de

internação.Os prossionais de saúde mental da cidade,envolvidos conosco desde a intervenção no hospitalde Campina Grande, simplesmente assumiram queAna era um dos seus e que iria viver na cidade, numaresidência terapêuca, tendo os mesmos direitosdos demais habitantes. Sei que há muitas pessoasque a ajudam, e que tem o privilégio de estar comela, descobrindo que determinadas tarefas temmuito mais valor e compensam o nosso invesmentoe tempo. Sei que ela está reconhecendo os locais que

circulou quando criança, reconhecendo as pessoas,criando novas relações.

Não, não é dicil desinstucionalizar. É fácil eprazeroso, porque o mesmo que acontece com

os internos acontece com os prossionais. É sóquebrarmos nossos muros internos e nos despojarpara a aventura. Todos nós podemos nos libertarde nossas fortes amarras, jogarmos fora nossaidendade petricada e caminharmos na direção denosso próprio enriquecimento, e do enriquecimentodo mundo. A desinstucionalização dos internos

de hospital psiquiátrico e a desconstrução domanicômio, passa pela desinstucionalização de nósmesmos.

Isso é um convite. Quem terá coragem de entrarnessa nave?

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O Cui dado n o CAPS: os n ovos desaf i os

Benilton Bezerra Jr.O que nos reúne aqui hoje é um projeto bem

sucedido: são agora 500 os CAPS distribuídos peloBrasil. Poucas iniciavas no campo da saúde públicaforam tão felizes nas duas úlmas décadas. Asavaliações objevas comprovam: os usuários que têmacesso aos CAPS se reinternam menos, aderem maisaos tratamentos, abandonam menos os serviços. Defato avançamos muito no processo de desconstruçãoda hegemonia manicomial, e devemos nos alegrarcom isso.

Mas nem tudo são ores. Quem circula pelosserviços, quem conversa com os prossionais da redeno município do Rio de Janeiro não pode deixar de

perceber um curioso fenômeno: quanto mais próximose está dos centros de decisão mais se vê entusiasmoe clareza quanto ao projeto de ampliação da rede deCAPS; quanto mais perto da linha de frente, no diaa dia dos serviços, mais se notam aições, dúvidas,quando não um certo desânimo quanto ao futuroda proposta. Nem sempre o diálogo entre os queestão aqui e ali é fácil, mas como disse há pouco ocoordenador de saúde mental, Hugo Fagundes, aprimeira coisa a fazer é tentar congurar de maneira

a mais clara possível quais são os verdadeiros “nós”,onde estão os impasses que devemos enfrentar

 juntos de modo a superar essas diculdades. Aexistência dessas tensões pode ser uma prova devitalidade, se soubermos rar proveito delas.

Na verdade poderíamos dizer que o projeto deimplantação dos CAPS vive hoje um momentoparcular. No primeiro instante2 ele foi um laboratório,uma experiência isolada cujo objevo principal era ode demonstrar que o cuidado em saúde mental podiaincorporar outros disposivos que não a tradicionaldobradinha hospital-ambulatório e suas variantes.Com a progressiva implantação de unidades emoutras cidades o projeto ganhou corpo, e tornou-seefevamente uma proposta alternava, disputandoespaço no campo das polícas de assistência. Nossatarefa então passou a ser encontrar maneiras dedefender esse projeto e consolidá-lo com medidaslegais, disposivos de nanciamento, etc. Hoje,creio, já vivemos uma terceira fase nesse processo.Quinhentos CAPS compõem um universo plural,

complexo, e cheio de diferenças. Numa metrópolecomo Rio de Janeiro os CAPS disputam espaço comuma pesada rede de hospitais há muito constuída,cuja inércia resiste fortemente a mudanças. Em

municípios menores eles são às vezes o primeirodisposivo de saúde mental a ser instalado. Ocenário, os desaos, as oportunidades são muitodiversas num caso e noutro. Isto é apenas umexemplo. O Brasil é um país de múlplas realidadessociais, econômicas e polícas. Já não é mais possívelpara falar em CAPS no singular, como uma propostabem torneada a ser implantada do mesmo jeito emtodo lugar. Cada região, cada município, apresentaum leque de problemas muito parcular. E este énosso desao atual: connuar ampliando a rede e aomesmo tempo começar a avaliar profundamente atrajetória, os sucessos e os impasses acumulados até

agora pelas diversas experiências em andamento.Por isso as tensões que presenciamos no municípiodo Rio de Janeiro podem ser, se bem trabalhadas,um instrumento de avanço e não um obstáculo paranosso projeto.

Foi com isto em mente que procurei conversarnas úlmas semanas com prossionais da rede, nosdiversos níveis de atuação. O que passo a dizer é oproduto dessas conversas.

A primeira observação a fazer é que estamos

diante de dois pos de problemas, que decorrem justamente da dupla natureza dos CAPS. Eles são, oudevem ser, formuladores e ordenadores do sistemae das ações de saúde, ao mesmo tempo em que sãoos agentes do cuidado. Devem se preocupar com aestruturação do sistema, a integralidade das ações,a arculação de recursos na área, e paralelamente,cumprir o mandato terapêuco que lhe cabe,voltar-se para a dinâmica subjeva do sofrimento,compreender as especicidades dos processos desubjevação e os conitos subjevos que fazemsofrem os que os procuram. São exigências disntascom problemácas diversas.

A primeira diz respeito aos obstáculos à implantaçãode propostas sobre as quais não temos muitas dúvidas.São problemas de operacionalização do própriosistema de saúde pública, que incluem a inexistênciade uma rede básica ecaz, a deciência de suportedos serviços existentes (remédios, equipamentos,etc), diculdades de estabelecer, de fato, sistemasde referência e contra-referência, número deciente

de prossionais, interferências polícas locais eassim por diante. O resultado é conhecido: demandaexcessiva sobre as equipes, superlotação dos serviços,surgimento de novos processos de “cronicação”

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CORDENAÇÃO DE POLÍTICAS DE SAÚDE   16

(de usuários e prossionais), sorrateira presença dachamada “lógica do despacho” (encaminhamentoautomáco para ambulatório, outros serviços, etc),diculdades de funcionamento das equipes, evasãode médicos psiquiatras para outras secretarias eserviços e assim por diante. As diculdades sãomaiores neste ou naquele serviço, mas há um

senmento comparlhado de que todos os serviçosestão sendo extremamente exigidos.Embora estas sejam diculdades reais há, no

entanto, uma certa clareza quanto ao modo deequacioná-los. O problema está mais em como tornarefevas certas soluções do que em como imaginaruma solução pra elas. Aqui no município do Rio deJaneiro, por exemplo, tem-se procurado encontrarformas de superar impasses desse po. A organizaçãodos fóruns regionais é claramente uma tentavade criar um disposivo que possibilite uma maior

arculação entre serviços e projetos, procurandoevitar a tendência inercial de esgarçamento dessasduas dimensões, a organização da assistência e ocuidado na clínica.

O segundo po de problemas, porém, parece exigirmais atenção de todos nós.

Neste ponto há mais queixas, preocupações, doque propostas de solução. São questões menos deoperação do que de concepção. São questões queainda não formulamos muito bem, de modo que não

dispomos de remédios seguros para eles. Talvez, naverdade, sejam justamente do po de questões quenão devamos procurar “resolver”, e sim deixar comoponto de discussão permanente.

Uma delas diz respeito à formação de prossionaispara a rede. É preocupante constatar que umaparcela muito grande de prossionais que parcipamda seleção para os novos CAPS são reprovadospor não apresentarem exatamente as qualidadese conhecimentos exigidos neste disposivo. Há

uma inclinação de muitas residências e cursos deespecialização em formar técnicos para o mercadoda saúde, com uma concepção formalista, tecnicistae pouco reexiva do que seja o trabalho em saúdemental. As faculdades, especializações e residênciassão o nosso “celeiro” e já hora de levarmos a sério asugestão de fazer desse campo um alvo claro de nossaação: atrair cada vez mais professores e alunos dagraduação e pós-graduação para uma arculação comos CAPS, facilitar o intercâmbio entre prossionaisda rede e pesquisadores da academia, por meio de

encontros, pesquisas, reciclagens, estágios, e assimpor diante. Nos locais em que esta arculação jáexiste o salto de qualidade é evidente ambos os lados.A universidade e a rede se enriquecem mutuamente,

a formação dos alunos melhora, os prossionais darede são esmulados, a assistência se benecia, e adiscussão tende a permanecer constante, fazendoresistência àquela conhecida acomodação inercial dequalquer instuição.

Outra fronteira a ser levada em conta: a luta detrincheiras no campo da cultura, do imaginário social,

contra as novas versões da cultura manicomial.Embora o asilo, em sua forma tradicional, aindasobreviva, é fato que seus disposivos de cerceamentoe exclusão vem sendo rapidamente substuídopor formas mais difusas e ecazes de controle. Osurgimento de novos psicofármacos certamentenos ajudou em muito a abrir as portas das velhasenfermarias psiquiátricas. O avanço espetacular daneurobiologia e das neurociências nos oferecem hojeuma visão innitamente mais rica do funcionamentocerebral e das bases neurais da avidade psíquica. A

discussão aberta sobre temas ligados à dor mentalentre médicos de outras especialidades e o públicoem geral contribuiu para que certos esgmas e tabusperdessem muito de sua força (comparem o que era aexperiência de “ser um psicóco maníaco-depressivo”com a de “ser um portador de transtorno bipolar”).Estes processos, no entanto, vêm se desenvolvendonuma atmosfera social marcada, como sabemos, poruma hegemonia inédita e incontestável da lógicado mercado, do consumismo, do esvaziamento da

ação políca, do empobrecimento da cultura críca,da transformação apelo à cidadania em defesa dedireitos do consumidor. No vácuo simbólico criadopela contestação absoluta das fontes tradicionaisde inspiração normava (que nos sugeriam comoviver, como saber se a vida que se leva vale a penaser vivida), o mercado – de um lado – e a vulgatacienca – de outro, parecem ocupar o lugar deoráculos a quem endereçamos nossas perguntas.

É preciso reconhecer que se o asilo está se

desfazendo é também porque já não é funcional,tornou-se um instrumento caduco. O controle dadiferença, do estranho, do sofrimento perturbador,se faz hoje de outro modo. A sociedade disciplinarde fato vem sendo substuída pela sociedadedo controle, como disse Deleuze a propósito deFoucault. E este controle é em grande parte exercidode forma suave, travesda em reivindicação (dodireito de consumir objetos e serviços que oferecemwellness, o bem-estar que hoje por obrigaçãodevemos exibir, e pasche de liberdade (o exercício

da “livre escolha”). A saúde perfeita aparentementerestou como a úlma utopia coleva, impulsionadapela explosão do mercado da alegria e da jovialidade,e pela convicção crescentemente comparlhada de

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que sofrimento mental, dor psíquica, nada tem aver com conito subjevo, experiência do sujeito,confronto existencial: nada mais é do que disfunção,desvio de funcionamento, dos sistemas biológicos deregulação do organismo.

Não é possível, neste curto espaço de tempo,analisar todos os elementos deste quadro. Quero

apenas sugerir que aquilo que um dia chamamosde cultura manicomial hoje se apresenta vesdacom outras roupagens. Entre elas destaco duas:primeiro este esvaziamento da dimensão subjeva,existencial, do sofrimento mental, em prol de umaversão sicalista, eliminavista, reducionista nosendo forte (e inaceitável) do termo. Chamo a istoimagem sicalista do mental, para contrapô-la à visãonaturalista, pragmáca e pluralista encontrada emdiversos biólogos (Francisco Varela é um exemplo).Este fenômeno nos interessa porque ultrapassa em

muito o círculo mais estreito dos especialistas. Pormeio da mídia em se espraia em toda a sociedade,transformando-se em elemento cada vez maiscentral da visão de mundo imediata, da percepçãoespontânea das coisas, de parcelas crescentes dasociedade. O discurso cienco é, de certo modo, odiscurso míco de nosso tempo, aquele no qual seencontram dispostas de maneira inquesonável – asfontes de signicação dos dados da nossa existência.Não é preciso muito esforço para compreender

porque este é um fenômeno que devemos levara sério: ele tende a nos transformar a todos numaespécie de técnicos do bem estar, ortopedistas doespírito. Boas intenções não são salvo conduto. O asilode Pinel e Esquirol nha inspiração revolucionária.Deu no que deu.

A outra face atual da cultura manicomial é umaconseqüência disso. Talvez ela ainda não estejafortemente presente no dia a dia dos CAPS, mas creioque seus efeitos começam aos poucos a aparecer. Falo

da crescente intolerância ao sofrimento em todasas suas formas, na nossa cultura. A ampliação denosso poder de intervenção sobre a vida (associadoaos fatores estruturais a que aludi há pouco) temnos tornado cada vez menos capazes de admir osofrimento e a dor como dimensão inevitável e –mais que isso – importante da existência.

Talvez seja um processo inevitável em algumamedida. A dor sica sempre teve um valor moral,em todas as culturas tradicionais e mesmo na nossa,há até pouco tempo. Parir com dor, por exemplo,

era não apenas uma vicissitude incontornável dacondição feminina, mas também uma experiênciaque enobrecia a mulher. Hoje esta relação com a dorperdeu quase completamente esta valoração moral.

Nenhuma mulher é mais ou menos admirada porquerecusa ou aceita anestesia. A dor passou a ser umdesconforto evitável, só isso. Mutas mutandis,algo semelhante parece estar acontecendo no dizrespeito à dor psíquica, ao sofrimento mental. Ele écada vez menos despido de uma signicação que váalem de um estorvo a ser simplesmente eliminado da

forma mais rápida e silenciosa possível. Parece havercada vez menos sendo em se perguntar “o que estáacontecendo comigo, e por quê?”, já que na verdadese acontece algo não bem “comigo” mas com regiõesdo meu cérebro, minhas sinapses, meus sistemas deregulação neuro-endocrinológicos.

Ora, essa tendência – se verdadeira – impõe umaforte resistência ao próprio projeto que os CAPSrepresentam. Por quê? É óbvio que devemos fazer detodos os recursos terapêucos que esverem ao nossoalcance para diminuir a dor e o sofrimento daqueles

que estão sobre nossos cuidados. O problema nãoestá aí. Está no fato de que qualquer disposivo decuidado (CAPS ou outros) visa não apenas evitar osofrimento desnecessário mas também criar espaçosde tolerância e modos de acolhimento e convivênciacom aquilo que – na vida subjeva – é da ordemdo intratável, do inevitavelmente doloroso, do que“não tem remédio nem nunca terá”. A loucura, a dorsubjeva, a morte, o envelhecimento, não são ruídos,desvios, disfunções de uma vida que se extraviou de

seu rumo. Como diz Canguilhem são, ao contrário,os signos de uma vida normava. Ter saúde, diz ele,não é não adoecer. É poder adoecer e se recuperar.Poder sofrer e ultrapassar o sofrimento engendrandonovas formas de lidar com vida. Uma vida que nãose depara com o intolerável, com o assombro, com osem-sendo, é uma vida empobrecida, normazada,incapaz de agir criavamente. Os CAPS, acredito,devem levar essas questões em conta porque não sãoapenas instrumentos de intervenção para controle e

eliminação de mal-estar psíquico. São disposivosque visam contribuir para que a vida coleva e asexistências individuais sejam mais interessantes,abertas e criavas (por mais que esta expressão sejaimprecisa e aberta à discussão: é assim mesmo, estaé a sua vantagem, a de não poder ser enxugada emalguma formulação técnica, venha de onde vier).

Isto nos leva a um outro ponto importante. A às vezesdicil convivência, nos interior dos CAPS (e de outrosdisposivos), entre perspecvas teórico-assistenciais

divergentes. Aqui e ali encontramos discussões fortes(é bom que haja) e impasses (é possível e melhorevitar) entre psicanalistas lacanianos, adeptosda reabilitação social, psiquiatras de orientação

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biológica, etc. O problema, a meu ver, não está nasdiferenças, nem mesmo nas disputas em torno dequal perspecva atende melhor às exigências desteou daquele caso, desta ou daquela situação. Achoaté que uma das riquezas da experiência brasileira,quando comparada a outras, é justamente estadiversidade e a atmosfera de cooperação que se tem

conseguido estabelecer em muitos lugares.Esta cooperação, porém, só consegue se manterquando se dá um acordo, tácito ou explícito,quanto a 1) a natureza das teorias, conceitos eproposições clínicas de cada perspecva, e 2) oscritérios que devem governar a escolha desta oudaquela perspecva em cada situação. No primeirocaso é preciso todos se ponham de acordo quanto aconsiderar seus vocabulários, suas descrições da vidamental, suas abordagens clínicas, como ferramentaspara agir com determinados ns explícitos, e não

como espelho da natureza, como diz Rorty, pararevelar a natureza essencial do objeto descrito. Não énecessário enveredar em discussões epistemológicascabeludas ou estudos complexos sobre a relaçãoentre a linguagem e o real para admir que a vidamental, o sofrimento psíquico ou um sintoma podemser descritos e abordados de maneiras diferentes,em linguagens que não comportam tradução uma naoutra.

Diante de uma depressão é possível traduzir

sinapses e serotoninas na língua psicanalíca? Não,mas não há problema nenhum nisto, desde que osque falam uma e outra língua estejam de acordocom a idéia de que nenhum deles fala a “língua dadepressão”, ou seja, descreve a depressão como seela mesma esvesse se revelando na sua natureza,se pudesse falar. O sonho recente de se produzir umateoria unicada do psíquico que pudesse subsumiras descrições psicanalíca e neurobiológica da vidamental, por exemplo, é um projeto discuvel por

movos que não poderemos examinar aqui, maspara nossa discussão não é tão relevante. O pontocentral aqui é que sim, nós precisamos de um corte,de um critério que nos permita dizer que a discussãoacabou e que tal ou qual posição é adversária e quedevemos tentar combatê-la. O que sugiro é queeste critério não é de natureza epistemológica esim, éca e políca. Uma teoria não dever avaliada(ou não apenas) pelos seus fundamentos, pela suaconsistência, pela autoridade cienca de seusformuladores. O que importa não é tanto avaliar de

onde vem, e sim para onde vai, que conseqüênciasengendra, que resultados possiblita. É no campo dosefeitos subjevos provocados que devemos procurarelementos para aceitar ou recusar uma proposta

assistencial de qualquer natureza.É claro que isto depende de uma clareza acerca do

horizonte clínico e políco que perseguimos, pois éisto que balizará nossas escolhas. E é verdade quenem sempre este horizonte está claro do mesmomodo para todos. Há, hoje em dia, CAPS que têm umentendimento muito diverso do que seja sua missão,

seu lugar na cidade, do que seja o papel da clínicano interior do projeto mais geral do disposivo. Paradar um exemplo, em relação a um conceito centralda Reforma. Em alguns CAPS, “territorialidade” é umconceito que põe permanentemente em questão aprópria natureza do disposivo. Em outros, é aindapouco mais do que uma referência geográca dedelimitação de clientela, em outros. Mas o que querodizer é que numa situação com esta, é provavelmentemais frufero orientar a saída pela discussão dosobjevos, dos ns, e dos melhores instrumentos

para dar conta deles, do que privilegiar a discussãodos modelos teóricos de intervenção aos quais osprossionais se sentem referidos.

Para terminar gostaria de me referir a um pontorecorrente nas minhas conversas com os colegas domunicípio: a questão da violência urbana generalizadae sua progressiva entrada nos espaços e avidadesdos próprios CAPS. Para quem mora no Rio de Janeiroesta é, infelizmente, uma realidade codiana, quevai invadindo todos os espaços: escola, hospitais,

centros de convivência, etc. A propósito deste temaquero apenas chamar a atenção para dois aspectos.Primeiro: é preciso não ceder à visão, insistentementepropagada, de que a violência é um caso de polícia(apenas). A transformação de problemas sociais emproblemas de “segurança” sempre foi no Brasil umaestratégia das forças reacionárias, interessadas emcontornar a discussão das raízes da violência para ocombate de suas manifestações mais visíveis.

A violência estrutural de uma sociedade que exclui

material e simbolicamente uma parcela imensade seus membros desaparece. Surge em seu lugara explosão dos atos de violência espalhados emcomportamentos individuais que passam a seralvo de medidas de repressão, punição e controle(totalmente inecazes como comprovam os úlmosanos). A violência nas metrópoles (e cada vez maisnas cidades médias e pequenas) de nosso paístambém não se explica apenas pela miséria, pelaforça do tráco, pela corrupção da polícia. Estes sãoelementos presentes sim, mas a eles é preciso agregar

a própria estrutura da sociedade em que vivemos:o império do valor econômico, o imperavo doconsumo, a lógica do mercado, a perda da crença nahistória e na ação coleva, a destruição dos sistemas

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colevos doadores de conança,o culto à sasfaçãoimediata, e assim por diante. Estamos diante de umacultura que produz violência. Esquecer disso e pensarem aumentar mecanismos de repressão é como sepropor a enxugar gelo.

Do nosso ponto de vista há ainda um desao quedevemos enfrentar. É o de tomar a violência como

um alvo de nossa reexão, compreender comoela se inscreve atualmente nos mecanismos deconstrução dos laços sociais e que efeitos tem sobrea vida subjeva. Já não de trata de analisar casosde violência, por mais numerosos que sejam. Trata-se de pensar uma constelação cultural na qual aviolência torna-se cada vez mais um elemento docenário, não um episódio, mas uma constante, umestado. Já estamos vivendo isso nos CAPS, pelomenos em alguns aqui. Há muito o que pensar acercadas relações da violência com as noções de trauma,

agressividade, gozo, para citar apenas alguns dosconceitos centrais de nossas teorias.

Bem, é isto, para início de conversa. Os CAPS sãoum projeto que vem dando certo. Temos evidênciadisto. Mas a preservação de sua ferlidade, de suaforça transformadora, depende de sermos capazesde equacionar criavamente os obstáculos comos quais a proposta se depara hoje. Tenho usadoa palavra proposta ou projeto porque acho que osCAPS são incompaveis com idéia de modelo. Ela

servia para enfermarias e ambulatórios mas não paraos CAPS. Precisamos de um lado atacar os problemasoperacionais que sua implantação envolve, mastambém ir redenindo as questões que efevamentenos embaraçam, nossos “verdadeiros nós”, comodisse nosso coordenador. Espero que neste encontroavancemos nesta direção.

O CAPS como Matriz das Ações Psicossociais noTerritório

Gostaria de agradecer o convite para parcipar

desta mesa discundo o papel do “CAPS como matrizdas ações psicossociais no território” – uma discussãoque é proposta dentro de um evento que tem portema geral “o cuidado em sua dimensão éco, clínicae políca”.

Quando dizemos que o CAPS tem uma açãopsicossocial é porque o cuidado se dá neste limiteentre o individual e o colevo. Foi nesta experiência-limite que o movimento da reforma psiquiátrica fez asua aposta e é aí que os serviços substuvos devemanar os seus disposivos de intervenção.

Se falamos de uma experiência clínica no limiteente o individual e colevo, e se armamos queestes termos se disnguem mas não se separam éporque outra relação de inseparabilidade se coloca:

aquela entre clínica e políca. No campo da reformapsiquiátrica, clínica e políca são dois domínios que sedisnguem, mas que não se separam. Neste sendo,a clínica não pode ser denida como o domínio doprivado e que seja diferente e separada da políca,entendida como domínio do público (pólis).

Quando se supera a oposição entre clínica e políca,

entre sujeito e mundo, estamos defendendo quesujeito e mundo se co-engendram parcipando deum mesmo processo de produção. Falamos, então,de processo de produção de realidade de si e demundo. Tal produção não pode ser entendida comoa produção realizada por um sujeito, mas é o própriosujeito que aparece como um produto, isto é, como oresultado de um processo de produção que é sempreda ordem do colevo e territorial. E em que territóriovivemos?

Vivemos em um mundo marcado por uma forma

de integração dos processos de produção própriado capitalismo globalizado que se estende em rede.Em sintonia com a rede do capitalismo globalizadose organizam outras redes como a do terrorismo,do tráco, as redes de comunicação. Não hácomo escaparmos das redes no contemporâneo,e por isso a estratégia é a de constuirmos redesde resistência: redes quentes, isto é, redes nãohomogeneizantes, mas redes sintonizadas coma vida, redes autopoiécas. Redes públicas que

envolvem a dimensão coleva da existência e queestão compromedas com processos de produção desubjevidades. Este é o compromisso clínico-polícopresente no movimento da reforma psiquiátricaneste momento da sua instucionalização comopolíca pública no campo da saúde mental no Brasil.

A questão que se coloca para nós, então, écomo resisr às novas formas de anexação do/no capitalismo contemporâneo – capitalismo quedesenvolveu formas de enclausurar a céu aberto. Pois

 já não precisamos mais dos muros das instuiçõestotais, como aqueles dos asilos psiquiátricos, paraconter e capturar os louco. O capitalismo inventounovas maneiras de asilar e, por isso, temos queestar atentos para os perigos contemporâneos,entendendo que não necessariamente concluímosnossa tarefa derrubando os muros dos manicômiosou desenvolvendo psicofármacos que permitemconter o louco quimicamente. Qual é, então, o papelda clínica nest e cenário do capitalismo globalizadoque desenvolve formas tão insidiosas de captura?

Podemos dizer que nas modulações do capitalismoa captura a céu aberto se dá através da separaçãoentre produção e produto, entre processo desubjevação e sujeito.

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A experiência clínica no codiano dos serviçossubstuvos é experiência de devolução do sujeitoao plano da subjevação, ao plano colevo deprodução. O colevo, aqui, bem entendido, nãopode ser reduzido a uma soma de indivíduos ou aoresultado de um contrato que os indivíduos fazementre si. Colevo diz respeito ao plano de produçãoda subjevidade, composto de elementos diferentes(a família, a cidade, os meios de comunicação, aviolência, as drogas etc). Colevo é o plano das forçasou vetores de subjevação. Neste plano colevo dasforças, lidamos com o que não é de ninguém. Ou,poderíamos dizer, com o que é da ordem do impessoal.No colevo não há, portanto, propriedade parcular,pessoalidades, nada que seja privado, já que nesteplano estamos lidando com forças e não com formas,lidando com processos e não com estados, forças eprocessos que estão distribuídos por todo o corpo da

sociedade. É aí que entendemos se dar à experiênciada clínica ampliada ou psicossocial, experimentaçãono plano colevo, experimentação pública.

Essa dimensão do público ou do colevo deveser entendida como a dimensão das redes nocontemporâneo. Tal noção de rede ganha naatualidade um sendo ambíguo, já que comportaesperança e perigo ou, em outras palavras, comportaum funcionamento quente e um funcionamento frio.

Luis Fernando Veríssimo, comentando uma matéria

em defesa do I Fórum de Porto Alegre, em 2000,publicada no Le Monde Diplomaque, se refere aesta experiência como um “Davos quente” ou uma“globalização de baixo para cima”.

Qual é a diferença entre uma rede quente e umafria? Ou entre uma rede que vai se fazendo de baixopara cima e uma que se constrói de cima para baixo?

Se toda rede opera de modo descentralizado, se elase forma sem uma central de gerenciamento, comoé que ela pode se dar de cima para baixo? A redenão tem centro, mas pode ter um concentrado, nosendo químico do termo. Diz-se de um concentradoquímico; “qualquer sistema resultante do tratamentoquímico de um minério e no qual a concentração doelemento que se deseja obter de forma pura é maiordo que no minério original.”(Buarque de Holanda,Dicionário da Língua Portuguesa, p.358). Assim, asTorres Gêmeas atacadas em 11 de setembro eramalvos do terrorismo pelo representavam do que seconcentra pela lógica do capital. A dimensão emrede do capitalismo contemporâneo resulta do

modo integravo, isto é, anexador, como o capitalse expande no planeta, se globaliza parr da açãode seus concentrados. Já o esfriamento dessarede se deve à sua operação homogeneizante,

normalizadora. Trata-se da operação do capital,capital não enquanto moeda, mas como princípio deequivalência universal. Experimentamos atualmenteredes que se planetarizam de modo a produzir efeitosde homogeneização e de equivalência.

Já a rede quente se caracteriza por umfuncionamento no qual sua dinâmica descentrada econecva gera efeitos de diferenciação, isto é, é umarede heterogenéca, diferenciante. É nesse sendoque o colevo ou o público deve ser retomado comoplano de produção que funciona em rede resisndoàs formas de equalização.

A questão central para nós agora é: qual é o papeldo CAPS na rede de assistência? Qual é o sendo dafunção matricial do Caps? Defendemos que o Caps éo ordenador da rede, mas como cumprir esta funçãosem ocupar um pretenso centro, descaracterizandoassim a dimensão coleva da rede? Como garanr

que a clínica se amplie pelo campo psicossocial e pelarede de assistência sem car xada em um serviço oumesmo em um pr ossional? Como garanr o carátertransferível dos usuários do Caps para que ele possaser acolhido coleva e publicamente seja pela equipede um serviço, seja pela rede de assistência em suaextensão?

É anando, portanto, nossas conexões, éconsolidando nossas redes que poderemos avançarna dicil tarefa da clínica nos serviços substuvos.

É assumindo a interface clínico-políca que daremossendo a este movimento.E por que o destaque da interface clínico-políca?

Porque no codiano dos serviços substuvos,fomentamos modos de produção: não só modos deprodução de bens de consumo como nas ocinas degeração de renda, mas também e, sobretudo, modosde produção da experiência coleva (as assembléias,as associações, os grupos terapêucos), modosde produção de outras relações da loucura com acidade (o AT, os disposivos residenciais, a luta pelopasse livre), modos de produção de outras formasde expressão da loucura (as ocinas expressivas,as rádios e tevês comunitárias), modos de criaçãode si e do mundo que não podem se realizar semo risco constante da experiência de crise. O quequeremos dizer é que denir a clínica em sua relaçãocom os processos de produção de subjevidadeimplica necessariamente que nos arrisquemosnuma experiência de críca e de análise das formasinstuídas o que nos compromete, necessariamente,

com a políca. Por em análise as formas instuídasda loucura para fazer aparecer o seu processo deprodução e, consequentemente, fazer avançar esteprocesso na direção de outros mundos possíveis.

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Falar da importância do movimento social,

da sua força, organização e poder de mudarrealidades e lutas na área da saúde mental noBrasil com a presença dos usuários, é dinamizare potencializar as mudanças advindas de nossasparcipações dentro de movimentos como oanmanicomial, exercendo o controle social. Parafalarmos deste presente atual é bom voltarmos aopassado, e digo um passado recente, e olharmospara muitos de nós, principalmente os quefomos usuários nos anos 70 até inicio dos 80: nóséramos completamente submissos ao domínio econtrole da medicina psiquiátrica conservadora,sem direitos, sem voz, sem cidadania, sem umaassistência digna, para nos tratarmos éramostorturados, dopados,sujeitos a contenções detoda ordem, éramos um número no prontuárioe só.Mas o que aconteceu, o que mudou em meados

dos anos 80, é que surge um novo cenário,

com espaço para gritar, desabafar, reivindicare parcipar: surge o movimento nacional daluta anmanicomial, um movimento social quecomo tantos outros movimentos sociais vempropor um basta na loucura da discriminação edo preconceito, acordando a sociedade brasileirapara um resgate da cidadania do dito louco,que passa então de objeto de estudo ciencoapenas para sujeito de direitos. AReforma começava ali, em aliança com

trabalhadores e prossionais da saúde mental,militantes deste novo espaço social, que tambémestavam insasfeitos com a forma desumana comque eram tratados os portadores de sofrimentopsíquico e com a desassistência que havia naárea de saúde mental, que pracamente só nhao hospital psiquiátrico para tratar estes usuários.Este movimento social começava a mostrar

ao pais a voz destes excluídos. Estas vozes

começavam a aparecer, a brotar e a mudarrealidades conservadoras. Na medida em quea estrutura deste movimento anmanicomialganhava força, percebia-se que o espaço aberto

por este movimento social aos usuários era bem

maior do que se podia imaginar e pensar. Comesta pedra fundamental colocada, a sociedadebrasileira começava a conhecer a voz, a fala, osdesejos e demandas destes usuários.Com o tempo, os usuários começaram a ganhar

força de representação dentro deste movimentosocial anmanicomial, a parcipar da comissãonacional de reforma psiquiátrica, de seminários,de conselhos de saúde, e a compor grupos detrabalhos. Isto sem falar das parcipações dentrodos seus estados, através dos movimentos sociaislocais e regionais que começavam a surgir, comoo fórum gaúcho de saúde mental, fórum mineiro,fórum goiano, entre outras associações deusuários em pracamente todo o Brasil. Daí atéa lei de reforma psiquiátrica nacional, tambémfruto de um trabalho intenso deste movimentosocial, com a parcipação ava dos usuários daluta anmanicomial, a pressão, as caminhadas,

as visitas aos deputados em Brasília, os gruposde trabalho, que traduz uma conquista domovimento social.Mas não parava por aí este movimento,

que também produziu uma reforma culturalimportante: os usuários começavam a produzirarte, destes usuários saíram poetas, escritores,locutores e as mais diversas formas de expressãocultural.Em 2002, surge a Renila (Rede Nacional

Internúcleos da Luta Anmanicomial),movimento social anmanicomial que temcomo principal chamada POR UMA REFORMAPSIQUIATRICA ANTIMANICOMIAL que teve comoprincipal ação a marcha dos usuários a Brasília,evento que reuniu mais de 2300 pessoas entreusuários, familiares e prossionais de saúde,obtendo como principal resultado a realizaçãodesta IV Conferênçia Nacional de Saúde Mental

intersetorial, entre outras conquistas.Embora as conquistas já alcançadas por este

movimento social sejam signicavas, nãopodemos esquecer que ainda existem muitos

A POTENCIALIDADE DO MOVI MENTO SOCIAL: A PARTICIPAÇÃODO USUÁRIO COMO EXPERIÊNCIA E DESAFIO DA REFORMA

PSIQUIÁTRICA BRASILEIRAPaulo Michelon - Fórum Gaúcho de Saúde Mental 

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CORDENAÇÃO DE POLÍTICAS DE SAÚDE   22

manicômios ou hospitais psiquiátricos, que são amesma coisa, e eles ainda funcionam em nossopaís torturando gente pelo Brasil afora, só que elesagora enfrentam uma resistência implacável porparte dos movimentos sociais anmanicomiaise sua militância, que exerce o controle social,denunciando abusos, encaminhando demandas,

cobrando de gestores a aplicação da lei onde elaesteja sendo descumprida.A Luta Anmanicomial enquanto movimento

social não acabará na era pós-manicômios,exercendo o controle social nas diversas áreasdos serviços substuvos, pois não deixaremosque ramicações do modelo manicomial entremnestes serviços e nós usuários iremos ter umpapel fundamental ao lado de nossos parceiros

para que tudo que conquistamos seja preservadona sua integralidade e isto já é tarefa para irmoscomeçando a fazer desde já.

O MOVIMENTO SOCIAL EM MOVIMENTO

O movimento social anmanicomial, comoqualquer outro, não é engessado enquantomovimento social, circula, tem pernas próprias,anda e se move. O militante anmanicomial

exerce a sua militância no trabalho, nas ruas,nos conselhos de saúde, onde houver vida emmovimento, onde houver o sofrimento, a torturae o descaso, nós lá estaremos para denunciar.O movimento não é estáco, parado, tem

lembrança do passado, zela pelo presente eprojeta o futuro, não negocia com a ala dosmanicomialistas conservadores: o movimentosocial tem luz própria, não depende de governos

e gestores.Os usuários fazem parte, com certeza, destemovimento social que é a matriz, a locomovadisto tudo, junto com os nossos parceirostrabalhadores na saúde mental compromedoscom esta luta.Nesta visão de movimento social, nós não

representamos a nós mesmos mas a um colevo,e dentro deste colevo é que ganhamos forçae somos fortes; sozinhos nada somos e nada

fazemos no tocante a mudanças no social, ondeeste movimento vai parar eu não sei, mas de umacoisa eu sei: não há limites para o nosso sonho,a utopia para nós hoje será o concreto e o real

amanhã.Quem milita nesse movimento anmanicomial

sabe a força que este colevo tem para mudar econnuar mudando este país no campo da saúdemental.

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POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA E SAÚDEMENTAL

Leandra Brasil da Cruz

Acompanhamos no mundo inteiro um

signicavo aumento da população que, porvários movos, passa a habitar as ruas das grandescidades. Várias são também as nomenclaturasulizadas para denir este segmento social como qual nos deparamos diariamente. Seja sem-teto, população de rua ou em situação de rua,excluídos, desliados ou até mesmo mendigos,o fato é que todos estão relacionados a umaparcela da população que, em princípio, se

encontra distante do acesso às polícas públicas.Como conceber essas polícas para esta parte dasociedade que ainda vive totalmente a margem?No âmbito da saúde, a criação e a implantação

do Sistema Único deSaúde/SUS, com base nos seus princípios

de universalidade, equidade, acessibilidade eintegralidade, deu a todos o direito à saúde, massabemos o quanto, na práca, isso ainda é dicil.Garanr o acesso à saúde para toda população,

tratamentos especializados e até mesmo atençãobásica tem sido o grande desao do SUS, mesmocom a implantação de vários programas.Na saúde mental acompanhamos um

signicavo avanço em vários campos, mas oacesso aos serviços da parcela da populaçãodenominada aqui como desliada (conceitoulizado por Robert Castel) ainda é muitoprecário. Trata-se de uma população que

apresenta uma outra forma de organização devida, ausência de trabalho, de documentação,de residência, de vínculos sociais estáveis e atémesmo de recusa aos meios tradicionais deassistência, onde o cuidar geralmente signicainstucionalizar.Atualmente, contamos com novas formas de

assistência focadas no território como a Estratégiade Saúde da Família, Saúde Comunitária dentreoutras, mas que não contemplam ainda esta

população, pois as suas concepções originaisnão se adéquam à peculiar forma de organizaçãodevida destas pessoas. A rua para alguns, pormais inóspita que seja, pode ser melhor do que o

espaço de uma instuição asilar.

Gastão Bachelard em seu livro A Poéca doEspaço considera que ‘...veremos a imaginaçãoconstruir “paredes” com sombras impalpáveis,reconfortar-se com ilusões de proteção – ou,inversamente, tremer atrás de grossos muros,duvidar das mais sólidas muralhas. Em suma, namais interminável das dialécas, o ser abrigadosensibiliza os limites do seu abrigo. Vive a casaem sua realidade e em sua virtualidade, através

do pensamento e dos sonhos.’ (2003)Assim sendo, como pensar numa políca de

saúde mental que contemple esta populaçãocom tal especicidade?O processo de desinstucionalização vem

sendo associado, por interesses muitas vezespolícos e empresários, a uma irresponsáveldesospitalização que culmina com o aumento dapopulação de rua. Na práca, estas informaçõesnão procedem como indicam várias pesquisas

realizadas.Algumas delas mostram que várias situações

podem levar uma pessoa a abandonar a suacasa, mas antes de qualquer coisa é importanteesclarecer o que denominamos população derua, pois, segundo estes estudos, podemos nosreferir como de rua pessoas que se encontram emabrigos, que estão morando temporariamenteem casas de amigos e família, que estão vivendo

em condições precárias de moradia enmsituações que são efêmeras, e que, a qualquermomento, podem, de fato, ocasionar a ida paraa rua.É observado também que a maioria destas

pessoas com quadro de transtorno mental não éegressa de instuições psiquiátricas e de longosperíodos de internação. Algumas já passaram porinternações breves, mas não eram moradorasdesses hospitais como apontam aqueles que são

contrários ao processo de reforma psiquiátricaem curso no nosso país.Uma equipe inerante de saúde mental pode

ser um importante disposivo para prestar o

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cuidado e viabilizar o acesso desse segmento dapopulação aos serviços de saúde e às polícaspúblicas em geral. Transitar pela cidade, circularpelas ruas, estar no território e perto das redessócias destas pessoas pode ser fundamental paracriação e sustentação de vínculos onde o cuidadopode se dar também no próprio local, sem,

necessariamente, culminar com a internaçãoou mesmo na ida para um serviço de formacompulsória ou involuntária, ainda que este sejapor exemplo um Centro de Atenção Psicossocial.As principais questões que se apresentam são

as seguintes: como cuidar clinicamente de umapessoa em sofrimento psíquico que se encontrana rua, mas que, no momento, não aceitacuidados intensivos e recusa qualquer forma de

abrigamento? Certamente a solução não será ade interná-la em uma instuição ainda que elaseja de portas abertas. Por que não podemoscuidar dela neste espaço da cidade, a rua? Seráque não podemos lançar mão das redes sociaisque elas mesmas constroem?Considerando tais possibilidades, o trabalho

intersetorial é de fundamental importância ea interlocução com outros atores é essencialneste processo, como demonstram várias ações

de abordagem de rua realizadas por algumassecretarias da assistência social que trabalhamna lógica do acolhimento, diferentes de outrasque, ao contrário, caminham para a higienizaçãoda cidade através de um simples e arbitráriorecolhimento.Desta forma, visando contribuir para a

construção de uma políca que possa entãoatender, de maneira mais efeva, estesdesliados, na medida em que o SUS se propõea ser uma políca universal e deve angir atoda a população, a formulação destas polícaspelo Estado deve garanr não somente odireito à saúde, mas também a ruptura com alógica instucional que durante décadas gerouafastamento social, o enclausuramento e oabandono.

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ei x o dedebat e sobr e

i n t er n açõescompul sór i as

e comunidadest er apêut i cas

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In t er n ação compul sór i a é cami n ho a serper cor r i do

Entrevista com Dráuzio Varella

Revoltado. É assim que o médico e colunistada Folha Drauzio Varella, 69, diz se senr com a

polêmica envolvendo a internação compulsória dedependentes de crack, adotada há uma semana pelogoverno Alckmin.

Cancerologista de formação e com profundoconhecimento em dependência química, Varellaconsidera a discussão “ridícula”.

“Que dignidade tem uma pessoa jogada na sarjeta?Pode ser que internação compulsória não seja a

solução ideal, mas é um caminho que temos quepercorrer. Se houver exagero, é questão de corrigir.”

Ele defende que as grávidas da cracolândia tambémsejam internadas mesmo contra a vontade. “Eu, sevesse uma lha grávida, jogada na sarjeta, nem quefosse com camisa de força raria ela de lá.”

A seguir, trechos da entrevista concedida à Folha,na úlma quinta, em seu consultório no centro deSão Paulo.

Folha - Muito se discute sobre a inecácia dasinternações compulsórias. Na opinião do sr., elas se

 juscam?

Drauzio Varella - Não conhecemos bem a ecácia oua inecácia porque as experiências com internaçõescompulsórias são pequenas no mundo. Mesmo as deoutros países não servem para nós. O Brasil tem umarealidade diferente.

Neste momento, temos uma quandade inaceitávelde usuários. E muitos chegando aos estágios nais.Estão nas ruas, nas sarjetas. O risco de morte é muitoalto, e nós estamos permindo isso.

Qual o tratamento ideal?

Depende da fase. Você tem usuários que usam doisou três dias e param. Tem gente que usa um, dois

dias, repete e nunca mais ca livre. E você tem os quechegam à fase nal.

A gente convive com essa realidade, e quando oEstado resolve criar um mecanismo para rar essas

pessoas da rua de qualquer maneira começa umadiscussão políca absurda. Começam a falar que

essa medida não respeita a dignidade humana.Que dignidade tem uma pessoa na sarjeta daquelamaneira?

Está na hora de parar com essa discussão ridícula.Pode ser que internação compulsória não seja asolução ideal, mas é um caminho que temos quepercorrer. Se houver exagero, é uma questão decorrigir. Vão haver erros, vão haver acertos. Temosque aprender nesse caminho porque ninguém tem

a receita.

O debate está ideologizado?

Totalmente. É uma questão ideológica e não é horapara isso. Estamos numa epidemia, quanto maistempo passa, mais gente morre.

Sempre faço uma pergunta nessas conversas: ‘Sefosse sua lha naquela situação, você deixaria lá paranão interferir no livre arbítrio dela?’

Eu, se vesse uma lha grávida, jogada na sarjeta,nem que fosse com camisa de força raria ela de lá.

Quando vemos essa discussão nos jornais, pareceque estamos discundo o direito do lho dos outrosde connuar usando droga até morrer. É umaargumentação frágil, jargões vazios, de 50 anos atrás.Eu co revoltado com essa discussão inúl.

E o que fazer com as grávidas do crack?

São casos de internação compulsória, o sistemade saúde tem que ir atrás e internar mesmo quenão queiram. O crack é mais forte do que o insntomaterno. Elas não param porque estão dominadaspelo crack. Tem uma relação de uso e recompensa eacabou. Nada vale tanto quanto essa dependência.

Como prevenir a gravidez na cracolândia?

É a coisa mais fácil. Há anconcepcionais injetáveis,dá a injeção e dura três meses.

Haveria mais polêmica...

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A menina não engravida para experimentar osmistérios da maternidade, ela engravida porque nasituação em que ela vive não há outra forma de serelacionar com os homens. Essa é a realidade.

Precisa levar para um lugar onde terá amparo, umpré-natal decente. Não podemos car nessa posiçãopassiva.

Por que é tão dicil adotar uma estratégia efeva deenfrentamento do crack?

Pela própria caracterísca da dependência. É umadoença crônica. Você deixa de ser usuário de umadroga qualquer, mas não deixa de ser dependente. Éa mesma história do fumante. Há 20 anos sem fumar,um dia ca nervoso, pega um cigarro e volta a fumar.

Ou do alcoólatra.

Com o crack, é a mesma coisa, a dependênciapersiste para sempre. Você pega uma pessoa quefuma crack, interna, passa por psicólogo, reata laçoscom a família, passa um ano sem fumar. Aí, um belodia, recomeça tudo. Você não pode dizer que otratamento falhou. Ele cou um ano livre. Isso nãoinvalida que ele seja tratado novamente.

Fazendo uma analogia com a especialidade do sr., écomo tratar um tumor avançado?

Exatamente. Eu pego uma paciente com cânceravançado, faço um tratamento agressivo comquimioterapia e ela passa seis meses com remissãoda doença.

Acho ómo. Pelo menos passou seis meses bem,com a família, tocando as coisas. Aí, quando saida remissão [volta do tumor], a gente tenta outroesquema. A gente não se dá ao direito de não tratarum doente porque a doença vai voltar. Por que nãose faz isso com usuário de drogas?

Isso acontece porque há muito preconceito com asdependências de uma forma geral?

Sim, temos muito preconceito. Nós usamos drogastambém, uns fumam, outros bebem, só que temoscontrole. E temos o maior desprezo pelos que

perdem o controle.

Qual o futuro do tratamento das dependências?

A medicina não sabe tratar dependência. Vejo nacadeia meninas desesperadas, me pedindo ajuda. Euco olhando com cara de idiota. Não tem o que fazer.Só posso dizer: que longe da droga.

Não tem um remédio que você diga: você vai tomarum remédio bom em que 30% dos casos cam livresda droga.

O problema é o prazer. Se você conseguir umapequena molécula que inave os receptores dosneurônios que recebem a cocaína, o sujeito deixade ter prazer. Há experiências com ancorpos paratentar desarmar essa ligação, mas estamos em faseinicial.

O sr. acredita que veremos o m dessa epidemia docrack?

Droga é moda, e a moda do crack vai passar ou carrestrita a pequenas populações.

Mas para isso acontecer não é preciso uma polícanacional de enfrentamento do crack?

Acho que temos que ter uma políca nacionalpara denir as grandes diretrizes. Mas não acho quevamos denir isso com polícas nacionais. Temos que

parcularizar. Cada cidade tem que criar estruturaslocais de atendimento.

Nós perdemos muito tempo. Não zemoscampanha educacional, não trabalhamos as crianças.Agora todos cam horrorizados. Temos que ter aulasnas escolas, aprender desde pequeno. Precisamoschegar antes da dependência.

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En t en da o que é i n t er n ação compul sór i apar a depen den t es quí mi cos

Secretaria da Jusça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo

O Governo do Estado deu início à parceria como Ministério Público, o Tribunal de Jusça e a OAB

(Ordem dos Advogados do Brasil) para plantãoespecial no Cratod (Centro de Referência deÁlcool, Tabaco e Outras Drogas) para atendimentodiferenciado aos dependentes químicos. Em casosextremos, a Jusça pode decidir pela internaçãocompulsória do dependente. Para entender melhoro que é o programa e qual o objevo da ação, aSecretaria da Jusça e da Defesa da Cidadaniapreparou um guia com perguntas e respostas.

1) A internação compulsória está prevista em lei?

Sim. Quando a pessoa não quer se internarvoluntariamente, pode-se recorrer às internaçõesinvoluntária ou compulsória, denidas pela LeiFederal de Psiquiatria (Nº 10.216, de 2001).

§ Internação involuntária: de acordo com a lei(10.216/01), o familiar pode solicitar a internaçãoinvoluntária, desde que o pedido seja feito por escrito

e aceito pelo médico psiquiatra. A lei determinaque, nesses casos, os responsáveis técnicos doestabelecimento de saúde têm prazo de 72 horaspara informar ao Ministério Público da comarcasobre a internação e seus movos. O objevo éevitar a possibilidade de esse po de internação serulizado para a práca de cárcere privado.

§ Internação compulsória: neste caso não énecessária a autorização familiar. O argo 9º da lei

10.216/01 estabelece a possibilidade da internaçãocompulsória, sendo esta sempre determinada pelo

 juiz competente, depois de pedido formal, feito porum médico, atestando que a pessoa não tem domíniosobre a sua condição psicológica e sica.

2) Se já está previsto por lei, qual é a novidade noque o Governo do Estado está fazendo?

O governo criou medidas para o cumprimento maiseciente da lei. No dia 11 de janeiro de 2013, o Estado

de São Paulo viabilizou uma parceria inédita no Brasilentre o Judiciário e o Execuvo, entre médicos, juízese advogados, com o objevo de tornar a tramitação doprocesso de internação compulsória (já previsto emlei) mais célere, para proteger as vidas daqueles que

mais precisam. As famílias com recursos econômicos já ulizam esse mecanismo (internação involuntária)

para resgatar os seus parentes das drogas. O que oEstado está fazendo, em parceria com o Judiciário, éaplicar a lei para salvar pessoas que não têm recursose perderam totalmente os laços familiares. Essaspessoas estão abandonadas, e é obrigação do Estadorá-las do abandono. A presença do Judiciário vaiaumentar as garanas aos direitos dos dependentesquímicos.

3) Quem são os parceiros do Estado e qual será a

parcipação deles?

Foram assinados três termos de cooperaçãotécnica: um com Tribunal de Jusça de SP para ainstalação de um anexo do tribunal no CRATOD, emregime de plantão (9h às 13h, de segunda a sexta-feira), com o objevo de atender as medidas deurgência relacionadas aos dependentes químicos emhipóteses de internação compulsória ou involuntária,com a presença inclusive de integrantes da Defensoria

Pública; outro termo com o Ministério Público, como objevo de permir que promotores permaneçamacompanhando o plantão do Judiciário. E umterceiro, com a OAB, para que a endade coloque, deforma gratuita e voluntária, prossionais para fazer oatendimento e os pedidos nos casos necessários.

4) O que vai mudar agora com a parceria entreEstado e Judiciário?

Vericou-se que, se a indicação médica for pelainternação compulsória, em muitos casos a demorana emissão da ordem judicial impede a equipemédica de manter o paciente no local. O processoconnuará a ser iniciado pelos agentes de saúde,da mesma maneira como ocorria antes. A diferençaé que, agora, representantes do Judiciário farãoplantão em um equipamento médico (CRATOD).Consequentemente, a determinação judicial serámais célere. Após receber o primeiro atendimento

(quando o paciente é levado de maneira voluntáriaao CRATOD por um assistente social), o dependentequímico será avaliado por médicos que vão oferecero tratamento adequado. Caso a pessoa não queiraser internada, o juiz poderá determinar a internação

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imediata (desde que os médicos considerem que apessoa corra risco e atestem que ela não tem domíniosobre sua condição sica e psicológica).

5) Antes desta parceria entre o Estado e o Judiciário,a prefeitura já realizava internações compulsórias nacidade de São Paulo?

Sim. Dados da Secretaria Municipal de Saúdedemonstram que a internação compulsória já épracada desde que a prefeitura começou, em 2009, aOperação Centro Legal. Das cerca de 2.800 internaçõesrealizadas em equipamentos exclusivamentemunicipais neste período (2009/2012), a prefeituraconrma mais de 300 casos de internação compulsória(cerca de 11% do total). O processo começava com a

abordagem dos agentes de saúde. Se o dependenteconcordasse, ele era enviado a um equipamento

 – no caso do município, CATS ou Complexo Prates,no caso do Estado, CRATOD –,onde médicos e umaequipe muldisciplinar decidiam qual deveria ser oprocesso terapêuco adotado para aquela pessoa.Em casos especícos, sempre com laudo médico,optava-se pela internação compulsória para protegera integridade sica e mental do paciente.

6) A internação compulsória será a regra a parr deagora?

Não. Casos de internação compulsória connuarãoa ser exceção e não regra. A políca prioritáriaconnua sendo a internação voluntária, atravésdo convencimento do dependente por agentes desaúde, assistentes sociais da prefeitura e integrantesda Missão Belém (ver item 16), além de outras formasde tratamento.

7) A PM terá alguma parcipação no processo deinternação compulsória de usuários de drogas?

Não. A PM não vai recolher pessoas nas ruas paratratamento. Durante esse processo serão seguidostodos os protocolos vigentes na área de saúde ena garana dos direitos humanos e individuais dosusuários.

8) Em caso de resistência do dependente químico,

qual será o protocolo?

Nesses casos especícos, vão atuar médicos eenfermeiros treinados para essas situações.

9) Médicos especialistas em dependência químicasão favoráveis à internação compulsória?

Sim. Veja o que dizem alguns dos maioresespecialistas do Brasil sobre o assunto:

Para Arthur Guerra, psiquiatra, professor daFaculdade de Medicina (FM) e coordenador do GrupoInterdisciplinar de Estudos sobre Álcool e Drogas:“De forma geral, a internação involuntária é umprocedimento médico realizada no mundo todo hámuitos anos, que obedece a critérios superobjevos.A visão médica não vai deixar esse paciente se matar.O médico, no mundo todo, não acha que é umdireito do ser humano se matar, pois entende queesse paciente está doente e tem de ser internado.Depois daquele momento de ssura e excesso,

quando esver recuperado, o paciente vai dizer:‘Obrigado, doutor’”. hp://www.reporterdiario.com.br/Noticia/381210/internacao-involuntaria-para-dependentes-quimicos-divide-opinioes/

Ronaldo Laranjeira, professor tular doDepartamento de Psiquiatria da UNIFESP, diretor doINPAD (Instuto Nacional de Ciência e Tecnologiapara Polícas Públicas do Álcool e outras Drogas)do CNPq e coordenador da UNIAD (Unidade de

Pesquisas em Álcool e Drogas): “Nos casos maisgraves, a internação é a alternava mais segura. Oideal seria que ninguém precisasse disso, mas adependência química é uma doença que faz comque a pessoa perca o controle”. hp://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI255395-15257,00-INTERNAR+A+FORCA+RESOLVE.html

Drauzio Varella, médico oncologista, ciensta eescritor. Foi voluntário na Casa de Detenção de SãoPaulo (Carandiru) por treze anos e hoje atende naPenitenciária Feminina da Capital: “A internaçãocompulsória é um recurso extremo, e não podemosser ingênuos e dizer que o cara ca internadotrês meses e vira um cidadão acima de qualquersuspeita. Muitos vão retornar ao crack. Mas, pelomenos, eles têm uma chance”. hp://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI255395-15257,00-INTERNAR+A+FORCA+RESOLVE.html

10) Qual a posição da população brasileira quanto à

internação compulsória?

Pesquisa do Datafolha divulgada no dia 25 de janeiro de 2012 aponta que 90% dos brasileiros

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apoiam a internação involuntária de dependentesde crack. hp://datafolha.folha.uol.com.br/po/ver_po.php?session=1175

11) O tratamento feito mediante internaçãoinvoluntária ou compulsória funciona?

Sim. Segundo o Naonal Instute on Drug Abuse(EUA), uma das instuições mais respeitadas domundo nessa questão, funciona tanto quanto otratamento feito quando o paciente se internavoluntariamente. Na publicação Principles of DrugAddicon Treatment: A Research-Based Guide(Princípios do Tratamento do Vício em Drogas: UmGuia Baseado em Pesquisa), o instuto apresentaquais são os princípios de um tratamento ecaz. Otexto diz “o tratamento não precisa ser voluntáriapara ser ecaz. Sanções ou incenvos impostos

pela família, ambiente de trabalho ou pelo sistema judicial podem aumentar signicavamente a taxade internação e de permanência – e nalmente osucesso das intervenções de tratamento”.hp://www.drugabuse.gov/publications/principles-drug-addiction-treatment-research-based-guide-third-edion/principles-eecve-treatment

12) A internação compulsória para dependentes dedrogas é ulizada em outros países?

Sim. Doze estados norte-americanos, dentreeles a Califórnia, possuem leis especícas sobre ainternação compulsória ou involuntária. A Flórida,por exemplo, tem o Marchman Act, aprovadoem 1993. O Canadá tem legislação que permite otratamento forçado de viciados em heroína. O HeroinTreatment Act foi aprovado na província de BrishColumbia em 1978. A lei foi contestada na Jusça,mas foi manda posteriormente pela Suprema Corte.A Austrália possui legislação que permite aos juízescondenar ao tratamento compulsório dependentesde drogas que cometeram crimes. A Nova Zelândiatambém tem legislação que permite à Jusça ou àfamília internar um dependente compulsoriamente.A Suécia possui o Act on the Forced Treatment ofAbusers, que permite a internação compulsória dedependentes que representem risco para si própriosou para terceiros; a lei é ulizada principalmentepara menores de idade.

13) A Organização Mundial de Saúde reconhece ainternação compulsória como opção de tratamento?

Sim. No documento “Principles of Drug

Dependence Treatment”, de 2008, a OMS consideraque o tratamento de dependência de drogas, comoqualquer procedimento médico, não deve serforçado. Admite, porém, que “em situações de crisede alto risco para a pessoa ou outros, o tratamentocompulsório deve ser determinado sob condiçõesespecícas e período especicado por lei”. hp://www.unodc.org/documents/drug-treatment/UNODC-WHO-Principles-of-Drug-Dependence-Treatment-March08.pdf 

14) O governo do Estado está ampliando a ofertade leitos públicos para internação, seja voluntária oucompulsória?

Sim. Atualmente a Secretaria de Estadual de Saúdemantém 691 leitos públicos para dependentesquímicos, dos quais 209 foram implantados na atual

gestão (aumento de 43%). Outros 488 novos leitosestão em processo de implantação e devem estardisponíveis até o nal de 2014, quando o Estadocontará com 1.179 leitos. O Governo de São Paulo foio primeiro do Brasil a criar clínicas com leitos públicospara internação de dependentes, processo quecomeçou em 2010. Todos estes leitos são nanciadoscom recursos exclusivos do governo do Estado, sem aparcipação do governo federal.

15) O Governo do Estado tem ampliado a oferta deabordagem social?

Desde o dia 3 de dezembro de 2012, o trabalhode abordagem social para auxiliar os dependentesa largar as drogas está sendo realizado com o apoiode 56 agentes da Associação Missão Belém. Osagentes são pessoas que já esveram em situaçãode rua e dependência química e foram reinseridossocialmente pelo trabalho da própria Missão. Até omomento mais de 400 dependentes foram reradosdo centro e levados para as casas de triagem daMissão. Diariamente, de 10 a 15 pessoas têmconcordado em ir para as casas de triagem. Depoisde passar pelas casas de triagem e por tratamento desaúde, os usuários podem ser recebidos em moradiasassisdas, onde se iniciará a reinserção social. Nestaetapa, o processo conta com avidades de educação,trabalho, lazer, esporte e cultura, além de incenvo

para o retorno ao convívio familiar.

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Ent r ev i st a Dar t i u Xav i er : “A i n t er nação compu l sór i aé si st ema de i sol amen t o soci a l , não de t r a t ament o”

Por Gabriela Moncau

A demonização do crack e uma suposta epidemia queestaria se espalhando pelo Brasil tem progressivamente

tomado conta da imprensa e dos discursos dos polícos,como bem ilustrou a disputa eleitoral presidencial nonal do ano passado. Assim, um imaginário social maisbaseado em medo que em informações tem sido usadopara juscar uma série de polícas polêmicas porparte do Estado no já quesonável “combate ao crack”,normalmente amparado por forças repressivas. Desdeo dia 30 de maio, a Secretaria Municipal de AssistênciaSocial da Prefeitura do Rio de Janeiro tem colocadoem práca o sistema de internação compulsória paracrianças e adolescentes menores de idade usuários de

crack em situação em rua. Os jovens são internadosem abrigos onde são forçados a receber tratamentopsiquiátrico. Atualmente, há cerca de 85 meninos emeninas que já foram recolhidos (contra a vontade) dasruas cariocas.

O modelo tem sido contestado por uma série deorganizações sociais ligadas às áreas da assistênciasocial, do direito, da luta anmanicomial, dos direitoshumanos, entre outras, que veem na suposta defesa dasaúde pública um disfarce para interesses econômicos e

polícos ligados à higienização, especulação imobiliária elobby de clínicas parculares. Em manifesto, a subseçãoda Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) acusa aSecretaria de Assistência Social do Rio de Janeiro deatuar como uma “agência de repressão, prestando-se àsegregação e aumentando a apartação social que deveriareduzir, desconsiderando inclusive que o enfrentamentoda fome é determinante no combate ao uso do crack,em especial da população de rua”. O Conselho Nacionaldos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA)tampouco se mostrou sasfeito com a medida, que

entende como inconstucional. O Conselho Nacionalde Assistência Social (CNAS) classicou as ações como“prácas punivas” e “higienistas”, em uma posturasegregadora que nega o “direito à cidadania, em totaldesrespeito aos direitos arduamente conquistados naConstuição Federal, contemplados no Estatuto daCriança e do Adolescente – (ECA), no Sistema Único daSaúde – (SUS) e no Sistema Único da Assistência Social – (SUAS)”.

Respondendo à acusação de inconstucionalidade, os

defensores e idealizadores da medida atestam que na Lei10.216, que trata de saúde mental, estão preconizadosos três pos de internação: voluntária, involuntária (semo consenmento ou contra a vontade do paciente, comaval da família e laudo médico) e compulsória (com

recomendação médica e imposição judicial). Já os quese posicionam contra alegam que, na práca, ao invés da

ordem de internação compulsória ser impetrada por um juiz após análise de cada caso e com um laudo médico,ela está sendo determinada pelo Poder Execuvo, deforma massicada e antes da adoção de outras medidasextra-hospitalares.

O prefeito de São Paulo Gilberto Kassab (ex-DEM,quase PSD) já armou que vê com bons olhos a ideiade implementar modelo semelhante na capital paulista,especialmente na região central da cidade, nas chamadas“cracolândias”. O Ministério Público já foi procurado pela

prefeitura para assumir um posicionamento acerca dapossibilidade, mas declarou que ainda está aguardandoum projeto ocial impresso.

O Estado deve se fazer presente para esses jovens emsituação de rua? Se sim, de que forma? O fato de seremmenores de idade e/ou usuários de drogas lhes ra acapacidade de discernimento? É efevo o tratamentofeito contra a vontade do paciente? Que outros posde procedimentos podem ser adotados? No intuito deajudar a responder essas e outras perguntas, a Caros

Amigos conversou com o psiquiatra Daru Xavier daSilveira, professor da Escola Paulista de Medicina daUniversidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e diretordo Programa de Orientação e Assistência a Dependentes(PROAD), onde trabalha com dependentes químicos há24 anos.

Caros Amigos - A internação compulsória não faz partede nenhuma políca pública, certo? Quando que essedisposivo costuma ser usado? Não é só em casosespecícos de possibilidade de risco da vida?

Daru Xavier - Sim. Todo uso de drogas pode trazeralgum risco de vida, mas a internação compulsória éum disposivo para ser usado quando existe um riscoconstatado de suicídio. A outra situação é quandoexiste um quadro mental associado do po psicose,seria quando a pessoa tem um julgamento falseado darealidade: se ela acha que está sendo perseguida poralienígenas ou se acredita que pode voar e resolve pularpela janela. Nessas situações de psicose ou um riscode suicídio é quando poderíamos lançar mão de uma

internação involuntária.

Houve outros momentos da história em que ainternação compulsória foi usada desse modo que estásendo implementado no Rio de Janeiro e prestes a ser

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em São Paulo?

Foi usada, principalmente, antes da luta anmanicomial.Tanto que existe até aquele lme, O bicho de setecabeças, com o Rodrigo Santoro, que mostra os abusosque se faziam. No caso era um usuário de maconhaque foi internado numa clínica psiquiátrica contra a suavontade. Isso, hoje, é juridicamente uma coisa muito

complicada, de modo geral não é mais aceito. Mas,infelizmente ainda acontece hoje em dia. Volta e meiasou chamado para atender alguém que foi internadocompulsoriamente contra a vontade, sem citação deinternação.

Quais são os efeitos de ansiolícos e calmantesinjetáveis? Você acredita que essas substâncias queestão sendo usadas nas clínicas do Rio são medicamentosadequados para crianças usuárias de crack?

Eu não sei efevamente o que está sendo feito nessasclínicas no Rio. O que eu sei é que a gente não tem oaparelho de Estado nem que dê conta das internaçõesvoluntárias. Ou seja, você pega uma pessoa que tem umadependência química associada com psicose ou risco desuicídio e temos todas as indicações médicas e até aanuência do paciente de ser internado – estou falando dainternação voluntária –, ainda assim não temos estruturapara atender essas pessoas. O que acontece é que seestá recorrendo a um modelo considerado ultrapassado,um modelo carcerário, dos grandes hospícios. Então,

mesmo para as internações voluntárias acaba sendousado um modelo de internação inecaz. Se não temosestruturas nem para as internações voluntárias, imaginepara as compulsórias.

O ansiolíco é um calmante forte?

Sim, ele vai diminuir a ansiedade da pessoa. Você podeusar também andepressivos que diminuam a vontadeda pessoa de usar aquela droga. Mas são paliavos,porque, na verdade, o grande determinante para a

pessoa parar de usar a droga ou não, é a força de vontade.Por exemplo, eu quero parar de fumar, então eu possotomar um calmante para diminuir esse meu desejoabsurdo de fumar, mas se eu não ver a movação daminha decisão de parar, não haverá calmante que mefaça parar de fumar. Ele não age por si só. Daí um dosproblemas de tratar alguém que não está convencido deser tratado.

Você arma que o número de dependentes de drogasé muito inferior ao número de usuários, que não tem

problemas com o consumo de drogas.

Exatamente. Para maconha e para álcool é menosde 10% dos usuários que se tornam dependentes.

Para crack, por volta de 20% a 25% que se tornamdependentes, os outros permanecem no padrão de usorecreacional. Nem todo consumo é problemáco.

Com esse sistema, então, corre-se o risco de internarusuários que não são dependentes de fato?

É muito provável que isso aconteça. Sobretudo

porque existe uma lógica muito perversa da internaçãocompulsória que atribui a situação de miséria e de ruaà droga, quando, na realidade, a droga não é a causadaquilo, ela é consequência. Acredito que o trabalhofeito nas ruas, nas cracolândias e com crianças de ruadeveria ser no sendo de resgate de cidadania, moradia,educação, saúde.

O que você acha do tratamento da dependência semque a pessoa tenha o desejo de ser tratada? Existepossibilidade de eciência?

A ecácia é muito baixa. Existem estudos mostrandoque nesses modelos de internação compulsória omáximo que se consegue de ecácia é 2%, ou seja, 98%das pessoas que saem da internação recaem depois.Certamente, porque a pessoa não está nem convencidaa parar.

O Estado, de modo geral, vem se omindo há décadasa respeito da situação de jovens moradores de rua emsituações de vulnerabilidade. Por que você acha que

começaram a agir agora, e desse modo?

Acredito que é por conta de uma diversidade enormede variáveis. O que tem se falado muito é que é umamedida higienista de rar as pessoas das ruas e quecomeçou no Rio de Janeiro por causa da proximidade deCopa e Olimpíadas. É uma forma de rar os miseráveisdas ruas. Já vi, também, tentavas de implementaçãode internação compulsória por uma questão políca,necessidade de o governante mostrar que está fazendoalguma coisa pela população, pelos drogados, apesar de

ser uma coisa que não funciona pode render votos.

Para inglês ver.

Exatamente, para inglês ver. No caso da Copa e dasOlimpíadas, literalmente para ingleses e outros gringosverem.

O tema da internação tem gerado bastante polêmica.Um dos argumentos apresentados aos que se posicionamcontra a internação é de que se trata de menores de

idade, e o Estado tem a obrigação de fazer-se presente,de cuidar das crianças e adolescentes. O que você achadisso e o que considera que deveria ser uma boa medidapor parte do Estado nessas situações?

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CORDENAÇÃO DE POLÍTICAS DE SAÚDE   33

Acho que o argumento é válido e acho que é verdadeque o Estado realmente tem que cuidar dessas crianças.Só que não acho que isso seja cuidar. Cuidar é darmoradia, educação, saúde. Não é colocar a pessoa emum cárcere psiquiátrico, em um manicômio. Porque éisso que vai acontecer: vão ser grandes depósitos decrianças desfavorecidas e que usam drogas.

Muitos dizem que a internação compulsória paraessas crianças e jovens mascara um problema maior, oda desigualdade social, da falta de educação, moradia,saúde etc. Porém, os que defendem a internaçãoarmam que é uma medida para algo emergencial.Você vê alternavas que respondem à emergência quealegam para a situação?

Esses trabalhos das equipes muldisciplinares derua que já fazem um trabalho, mas que deveriam ser

aumentados. O trabalho deve ser na rua. As redes deCAPS [Centro de Atenção Psicossocial] são um bomexemplo e deveriam ser ampliadas.

Como funcionam?

Da seguinte forma: uma equipe muldisciplinar quetem familiaridade exclusiva com o problema das drogasvai fazendo um trabalho muito de formiguinha, porquecada caso é um caso. Eles vão idencar qual é aproblemáca daquela pessoa, porque a pessoa está na

rua, se é por uma questão familiar, se é por uma questãode abandono total, ou seja, cada situação tem que servista na sua singularidade justamente para ver comoque entra a droga nessa singularidade.

Fizemos um trabalho na rua uma vez com umasadolescentes que usavam drogas e perguntamos omovo do uso, elas disseram “Olha o, a gente usadrogas porque para comer a gente precisa se prostuir.A gente é muito pequena, para ter uma relação sexualcom um adulto a gente precisa se drogar, senão a gentenão aguenta de dor”. Quem diria que o problema dessas

meninas é a droga? Eu acho que é o úlmo problemadessas meninas.

A necessidade da internação compulsória para criançase adolescentes é apresentada com base em duaspremissas que fundamentariam a não possibilidade detomarem decisões por si próprios: a de que são menoresde idade e a de que sendo dependentes de crack nãopoderiam pensar com sanidade. O fato de usarem essaúlma juscava abre precedente para a internaçãocompulsória de adultos?

Certamente. E essa segunda juscava cai por terrana hora que pensamos naquele dado que eu falei, dosusuários de crack 75% a 80% são usuários recreacionais:

são pessoas que trabalham, são produvas, que temfamília. No meu consultório parcular, eu atendoexecuvos que são usuários recreacionais de crack, vocêvai dizer que o crack torna a pessoa incapaz de pensar?Não, não se pode atribuir isso ao crack. Poderíamosfazer o mesmo raciocínio com o cigarro. O indivíduonão consegue parar de fumar, está se matando, vaiter um câncer, então ele é considerado incapaz? Bom,

ele é capaz de ganhar dinheiro, de ter relações sociais,de tomar uma série de decisões na vida, não dá paraatribuir isso ao cigarro.

O que, por exemplo, o secretário municipal deAssistência Social do Rio, Rodrigo Bethlem, fala é que ocrack é diferente de qualquer outra droga porque “fazcom que a pessoa perca a noção completa da realidade”.

Isso não é verdade. Não existe isso. O crack é comoa cocaína, ou seja, a pessoa não perde a noção da

realidade. A questão é que a compulsão pelo uso émuito intensa.

Fale um pouco sobre as condições a que os doentesmentais internados geralmente são submedos noBrasil.

É muito complicado. É um sistema que ainda guardamuito da herança do sistema carcerário, o sistema dosmanicômios. Por exemplo, um dos hospitais que temsido citado pela mídia como modelo aqui em São Paulo

de possibilidade de tratamento de dependentes é umaestrutura psiquiátrica. Esse hospital, eu não posso dizero nome por questão de segurança, está sob intervençãodo Ministério Público por maus tratos aos pacientes.E é um hospital que é considerado modelo. O quedevemos esperar dos outros, que nem são vendidoscomo modelos? Na verdade, o que é preconizado pelaOrganização Mundial da Saúde (OMS) como tratamentopara dependentes é a internação de curto prazo só parafazer a desintoxicação, cerca de 15 dias, no máximo 30dias, e em unidades dentro do hospital geral. Por isso

que eu montei há 10 anos atrás uma estrutura dentro dohospital geral para esses casos de internação.

Aqui no Brasil são poucos os hospitais que tem essaunidade?

Pouquíssimos. Em geral, aqui no Brasil se usa o modelomanicomial ainda.

Como funciona o modelo manicomial?

É o modelo onde o indivíduo ca internado mesesou anos, não recebe atendimento muldisciplinar, nãovai ser submedo à psicoterapia, recebe algum pode medicação – nem sempre é a medicação adequada

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para ele. Eu z um estudo há cinco anos atrás com 300dependentes internados em hospitais psiquiátricos.Para se ter uma ideia, 90% deles, embora vessemsupostamente sendo atendidos por médicos psiquiatras,não nha do seu diagnósco psiquiátrico idencado!Eles nham depressão, fobia social, enm, isso não foiidencado. Ou seja: é um sistema de depósito, nãoé um sistema de tratamento. Por isso que eu chamo

de sistema carcerário, é de isolamento social, não detratamento.

Você armou que “a dependência de drogas não seresolve por decreto. As medidas totalitárias promovemum alívio passageiro, como um ‘barato’ que entorpecea realidade”. Você acha que existe a ilusão por partedos idealizadores desse sistema de que medidas comoa internação compulsória resolvam o problema ou vocêacredita que, de fato, a intenção é maquiar a realidade?

Eu conheço gente bem intencionada que acreditanisso. Mas é claro que pessoas mal intencionadastambém estão envolvidas nisso. Por exemplo, eu estavaconversando com o Dráuzio Varella, que é a favor dainternação compulsória. Ele dava os prós e eu os contras,e foi interessante porque ele é uma pessoa muito bemintencionada. Não sei se ele mudou de ideia depois queconversamos, mas acredito que tenha relavizado umasérie de coisas que ele pensava. O Dráuzio é uma pessoaque eu considero que está autencamente defendendoessa ideia, com embasamento coerente, só que não vai

funcionar. Foi o que eu falei para ele.

Em São Paulo, a gestão Kassab pretende permir quea Guarda Civil Metropolitana (GCM) leve à força pessoasque não aceitarem serem reradas da rua. Pretende,também, implementar um sistema de “padrinhos”, queseriam prossionais nomeados nas centrais de triagempara acompanhar um paciente durante a sua internaçãocompulsória, até estar supostamente apto para uma“reintegração social”. O que você acha desse sistema?

Esse sistema vai furar, porque é uma ingerência na vidaprivada das pessoas, é contra o direito de ir e vir, contraos direitos humanos. E, na verdade, o que vai aconteceré que isso vai funcionar – funcionar entre aspas porquenão será ecaz – nas populações carentes. Porque quemé classe média e alta e ver fumando crack na rua,vai ser pego mas o papai vai colocar ele numa clínicachique, vai car uma semana, e vai para casa depois.Então é um sistema bastante quesonável do pontode vista éco, porque vai ser aplicado nas populações“indesejáveis”. Além disso, grande parte das pessoas

que eu vejo defenderem a internação compulsória sãodonos de hospitais psiquiátricos que vão se beneciardiretamente com isso.

Você concorda com esse discurso que tanto aparecena mídia de que o crack é mesmo um dos maioresproblemas do Brasil?

Não, isso é uma fabricação. Não existe essa epidemiade crack de que tanto se fala. Não estou dizendo quea dependência de crack não é uma coisa grave, égravíssima. No meu serviço eu atendo 600 pessoas por

mês, metade ou 40% é dependente de crack. Então, oproblema existe e o problema é sério. Só que ele nãoaumentou. Eu atendo essa frequência de dependenteshá 15 anos. O que se criou é a ideia falsa de umaepidemia de crack quando o grande problema da saúdepública do Brasil dentro da área de drogas ainda é oálcool, sem dúvidas. Eu não sei qual foi o mote disso. Osestudos que o próprio Ministério da Saúde e a SENAD[Secretaria Nacional de Polícas sobre Drogas] divulgamnão comprovam a existência de uma epidemia de crack.

Por que, apesar desse discurso demonizador docrack, você acha que as pessoas connuam buscando ocrack? Quais são os efeitos posivos que faz com que ademanda persista?

Se a gente for ver a heroína na Europa e nos EstadosUnidos – a heroína não é uma droga muito discudacomparada ao crack – conseguimos fazer prevenção,tratamento, mas sempre aparecem novos usuários.Tem pessoas que tem esse comportamento de risco, emgeral são pessoas impulsivas, mas é algo turbinado por

uma situação de exclusão social.

Qual a importância da redução de danos?

A redução de danos é um conjunto de estratégias quea gente usa para aquelas pessoas que não podem pararde usar drogas, ou porque não querem ou porque nãoconseguem. Normalmente, o que se fazia angamenteera ‘olha, não deu certo o tratamento, o indivíduonão cou absnente, então sinto muito, vai connuardependente’. A redução de danos surgiu justamente

para essas pessoas que não conseguiram se tratar ouque não aceitaram o tratamento, mas que são formase estratégias para diminuir os riscos relacionados aoconsumo. Então por exemplo, teve um estudo sobreredução de danos publicado há anos atrás fora do Brasil,a respeito de um grupo de usuários de crack que nãoconseguia se tratar de forma nenhuma. Mas começarama relatar que quando eles usavam maconha, conseguiamsegurar e não usar crack. Eu acompanhei esse grupo depessoas por um ano e para a nossa surpresa, 68% delesabandonou o crack através do uso de maconha. Depois

de três meses nham abandonado o crack. Até brinqueina época que as pessoas falam que a maconha é portade entrada para outras drogas, mas ela pode ser portade saída também.

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Nem Comun i dades, n em t er apêut i casGabriela Moncau

A van branca chegou, seguida por um carro. Se algunsacharam o movimento suspeito, já que no vale do Anhangabaúnão é permida a circulação de carros, os moradores de rua,em sua maioria usuários de crack, agiram com naturalidadee assim que a avistaram se aproximaram ansiosos. Naquele

domingo chuvoso, um pouco de comida para os que passamas noites embaixo do Viaduto do Chá, no centro de São Paulo,era bem vinda. O motorista e um homem que parecia serum segurança parcular permaneceram dentro do carro,observando a família bem vesda que descia da van e seenleirava na frente dos alimentos. Os moradores de rua,mostrando que já conheciam o ritual, manejavam a paciênciaque o estômago vazio os permia ter, e esperavam calados.Não houve conversa, nem cumprimentos. Somente depois deuma longa pregação religiosa, veram direito ao pão francêspuro e um copo de leite. A família rapidamente entrou na vande vidro fumê e paru.

A complexa relação entre as igrejas e os cuidados que emteoria deveriam ser assegurados pelo Estado enquantodireitos mínimos tem tomado outra dimensão nos úlmosmeses, ao menos no campo da saúde mental. Apesar de nãoser a droga mais consumida nem a que causa maior númerode mortes, o crack dominou o debate acerca de consumo depsicoavos e uma suposta epidemia que estaria se espalhandopelo Brasil – mesmo sem que a comprovem – vem embasandouma série de polícas governamentais. Não à toa a presidentaDilma Rousse lançou ao nal do ano passado o PlanoIntegrado de Enfrentamento ao Crack e outras drogas, no qual

invesrá R$ 4 bilhões. Sob o slogan “Crack, é possível vencer”,o plano não traz grandes novidades no que diz respeito àrepressão, fomentando maior militarização e treinamentode policiais. O que chamou a atenção de muitos, no entanto,foi o modo como o dinheiro público será usado nas polícasde tratamento: se por um lado haverá aplicação de verbana rede intersetorial de atenção psicossocial do SUS, comoos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPSAD), por outro, foi ocializado o nanciamento público decomunidades terapêucas, centros privados de tratamentopara dependentes químicos, majoritariamente ligados agrupos religiosos.

De nada adiantou o posicionamento de rechaço aonanciamento das comunidades terapêucas da IVConferência Nacional de Saúde Mental, tampouco da XIVConferência Nacional de Saúde, que reuniu cerca de 50 milpessoas: poucos dias depois o Ministro da Saúde, AlexandrePadilha, apresentava o plano e as parcerias com a rede deserviços “do terceiro setor”, que trabalham com “abordagensterapêucas as mais variadas possíveis”.

De acordo com o secretário nacional de Atenção à Saúde,Helvécio Magalhães, o total de recursos que o Ministério da

Saúde está desnando até 2014 para CAPS AD 24h, Unidadesde Acolhimento adulto e infantojuvenil, Consultórios na Ruae leitos psiquiátricos em Hospital Geral é de R$ 1,56 bilhão.As comunidades terapêucas receberão R$ 300 milhões nomesmo período, sem contar invesmentos na portaria denanciamento de vagas de acolhimento nessas instuições,

que ainda não tem previsão de gasto. Magalhães explicaque “o Ministério da Saúde mantém um diálogo com essasendades, aproveitando as experiências posivas e regulandoo setor”. “Veja que a constuição já garante que as instuiçõesprivadas poderão parcipar de forma complementar do SUS”,

diz, e argumenta que “é necessário oferecer uma variedade deopções que atendam à diversidade de necessidades e contextosem que se instala a dependência às drogas”. Vejamos melhorcomo funciona essa forma de tratamento que, com dinheiroestatal, correrá em paralelo aos equipamentos do SistemaÚnico de Saúde (SUS).

Princípios

Paulo Amarante, psiquiatra, pesquisador da Fiocruz,presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental(ABRASME) e diretor do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde

(CEBES), no argo “Políca ancrack – epidemia do desesperoou do mercado androga?”, descreve a diferença entre osprincípios da comunidade terapêuca no mundo e as cerca de3 mil existentes hoje no Brasil, que atendem aproximadamente80% da demanda de tratamento por uso de drogas. Contaque conheceu a ideia das comunidades terapêucas a parrde um de seus idealizadoras, Maxwell Jones, um psiquiatrainglês do pós guerra “que demonstrou, antes mesmo doadvento dos psicofármacos, que o envolvimento dos pacientespsiquiátricos em seu próprio tratamento pode ser um dosprincipais princípios terapêucos”.

Já das comunidades brasileiras, ouviu falar pela primeira fezem um encontro com o jornalista Tim Lopes, que lhe mostroufotos e vídeos que havia pesquisado: “Cenas de violênciase maus tratos, de extorsão de familiares, de inúmerosconstrangimentos. Ele me condenciou, inclusive, que estavaassustado por haver recebido ameaças”, relata, concluindo:“Além do tom de fraude que o uso de tal terminologia implica(comunidade terapêuca), pude constatar que a fraudeencobria algo absolutamente oposto aos ideais de MaxwellJones”.

Essas instuições no Brasil, em sua maioria, funcionam em

algum sío afastado do centro urbano, por serem orientadaspor uma lógica da imposição da absnência e separaçãodo sujeito de qualquer contato com a sociedade (para nãointerromper o tratamento ou ter acesso facilitado à droga).“Foram surgindo na iniciava privada, especialmente porsetores religiosos que se interessaram por criar comunidades

 – que não são serviços de saúde e nunca foram – com caráterde uma instuição mais de abrigamento. Defendem em suamaioria a cura pela conversão religiosa”, dene HumbertoVerona, presidente do Conselho Federal de Psicologia (CFP).Para ele, “a função da comunidade terapêuca passou a serocupar um espaço que não vinha sendo ocupado pela políca

pública”. “E aí cada um se desenvolveu dentro da sua lógica. Amaioria delas tem no seu método os pressupostos das religiõesque as sustentam”, arma.

Fábio Mesquita, médico pela Universidade Estadual deLondrina (UEL) e doutor em saúde pública pela USP, foi um

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dos pioneiros da políca de redução de danos (conjunto depolícas e prácas cujo objevo é reduzir os danos associadosao uso de drogas psicoavas em pessoas que não podemou não querem parar de usar drogas) na América Lana,quando coordenava o programa de AIDS em Santos, em1989. Trabalha na Ásia há 7 anos e atualmente coordena oprograma de AIDS da Organização Mundial da Saúde (OMS)no Vietnã. “A OMS trabalha com propostas na área de saúdeque são baseadas em evidência cienca. Não há evidência

cienca que o tratamento de dependência química funcionecom a abordagem destas instuições”, salienta. “Além disto, oisolamento do doente da sociedade é uma medida atrasada,violenta, arcial e não reabilitadora. O modelo psiquiátricomanicomial foi derrotado no Brasil na reforma psiquiátrica”,opina. Ao contar de uma intervenção a qual parcipou em1989 em Santos, no manicômio Casa de Saúde Anchieta,quando defendeu o tratamento ambulatorial para os quesofriam de transtornos mentais, apontou que “os psiquiatrasconservadores que viviam nanceiramente do desesperodas famílias e faziam fortunas com as clínicas de internaçãoresisram o quanto puderam ao m do manicômio”. “Agora

me parece que acharam outro nicho”, analisa.

Cárcere privado

A Comissão Nacional de Direitos Humanos do ConselhoFederal de Psicologia fez uma grande inspeção ao nal doano passado, visitando simultaneamente 68 comunidadesterapêucas em 25 unidades federavas do país, a parr dapercepção de que o tema das drogas muitas vezes “insiste emvincular ‘tratamento’ à noção de casgos ou penas advindosde um ideal normavo que não suporta a transgressão comoparte de um devir humano, reduzindo à condição de objeto

e privado da cidadania os sujeitos-alvos das ações impostas”.As denúncias de violações de direitos humanos trazidas pelorelatório, divulgado recentemente e entregue ao MinistérioPúblico e à ouvidoria dos direitos humanos, evidenciam umparadigma preocupante das instuições que agora foraminstucionalizadas como modelo de tratamento pelo governofederal.

Para citar alguns exemplos:

- Clínica Terapêuca Divina Misericórdia, Alagoas. Sustentadananceiramente por pagamento de mensalidade e seguindo

preceitos do catolicismo, recebe usuários encaminhadospela promotoria pública para internação compulsória, entreoutros. Os internos podem se comunicar com o mundoexterno somente por carta, uma vez por semana, dependendodo comportamento, sendo que todas as correspondênciassão lidas pelos psicólogos. Não podem fumar cigarro nemreceber visita ínma, seus objetos pessoais e documentossão guardados pela direção da instuição. Existe um quartocom duas camas de alvenaria e grade na porta, trata-se de umespaço “ulizado para resguardar o usuário”, de acordo comentrevistados pelos inspetores. Após a terceira advertência, ointerno é preso nesse quarto por 24h. Segundo a comunidadeterapêuca, a práca é óma, pois o interno “ca reendo oocorrido”. Foi conrmado, ainda, que pessoas portadoras deHIV não recebem medicação e cuidado adequado.

- Casa de Recuperação Valentes de Gideão, Bahia. Osresponsáveis pela instuição não souberam informar o valor

da mensalidade, dizendo ainda que o pagamento é opcional.Os internos, no entanto, armaram que o pagamento éobrigatório, cerca de R$ 300, e que frequentemente o donoca com o cartão de benecio de prestação connuada ou doPrograma Bolsa Família. Sem prontuário médico ou descriçãoda doença do paciente, a técnica de enfermagem não soubedizer a proposta metodológica da unidade, mas armou quenão funcionam segundo nenhuma religião. Curiosamente,o dono da comunidade terapêuca é um pastor, há uma

igreja dentro das dependências da instuição e alguns deseus funcionários são da Igreja Neopentecostal. As crises deabsnência são vistas como possessões demoníacas e umfuncionário expôs que nesse caso, a estratégia é a oração.Em conversa com os pacientes, muitos internados contraa vontade, o relato unânime foi de que o tratamento é “naporrada”: caram evidentes locais de isolamento com trancas,a unidade apresenta histórico de denúncias de práca deespancamento (em 2009 e 2011) encaminhadas ao MinistérioPúblico Estadual e recentes casos de fugas.

Além da superlotação (com 16 pessoas a mais que a

capacidade máxima), a unidade tem um galpão cujo acessoera restrito, com grade e cadeado, escondido por muros, ondehá internos. As condições são absolutamente insalubres, comfezes e urinas pelos cantos, banheiro descoberto e sem vasossanitários, dois chuveiros sem aquecimento, esgoto a céuaberto, quartos sem janelas, camas de cimento e madeiramuitas vezes sem colchões, lençóis ou travesseiros. “A maioriados internos estava descalço, sem evidências de possuir algumcalçado, muitos seminus, sem higiene”, diz o relatório, quechama atenção ainda para o fato de que havia um pacientecom tuberculose em decorrência do frio e da umidade e quepresenciou um interno com deciência sica que se arrastava

no chão para se locomover, sem ter acesso a nenhum pode auxílio que lhe facilitasse o deslocamento. Funcionáriosdisseram que o período de internação normalmente é de 3a 4 meses, mas internos armaram estar de 4 a 5 anos nacomunidade terapêuca. “Há funcionários que exercem afunção de vigia, usando colete de segurança, enfazando afunção de encarceramento dos internos”, descreve o relatório.

- Portal do Renascer, Rio de Janeiro. A ONG, liada àFundação para a Infância e Adolescência (FIA), permitevisitas depois de duas semanas de internação, aos sábados,durante 1h e meia, na qual os parentes são revistados e só

podem entrar quatro adultos por dia de visita. A scalizaçãoidencou medicamentação excessiva, encontrandoadolescentes dopados. Muitos disseram que fazem uso demais de uma substância por dia e que se cam agitados ou“perturbam”, a dose é aumentada. O páo abriga um muralcom fotos de alguns internos “destaques do mês”, onde selê “Homenagem aos garotos com bom comportamento (semfuga). No próximo mês, queremos ver as fotos de todos”. “Umdos conselheiros armou que há um menino que precisa carem quarto separado dos demais por causa do ‘problema dehomossexualidade’”, narram os relatores. Quanto às váriasfugas dos úlmos meses, o coordenador classicou comoum “modismo passageiro”. De acordo com os adolescentes,quando fogem e são pegos, podem car até 5 dias presos noquarto sem sair. Recebem alimentação, mas a água é da pia.

- Clínica Gradão, São Paulo. A mensalidade é de R$ 700a R$ 1000 e, segundo o diretor, quando a família pede para

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rar o lho da unidade por não ter dinheiro, ele parafraseiao Padre Haroldo, de Campinas: “Venda sua geladeira, seubojão de gás e o que mais você ver em casa para pagar otratamento de seu familiar, porque se ele sair daqui vai venderisso tudo para comprar drogas”. A direção armou trabalhara “espiritualidade” e não uma religião especíca, mas há umpastor evangélico e culto todos os dias, com parcipaçãoobrigatória dos internos. Um paciente espírita disse, ainda,que seu livro do Allan Kardec lhe foi rerado e queimado. O

não cumprimento das regras enseja punições como proibiçãode fumar cigarro, impedimento de contato com a família,escrita reiterada do Salmo 119 da Bíblia, isolamento em umquarto, obrigatoriedade de cavar um buraco das dimensões deseu corpo “para que a pessoa veja que quando não obedece,está cavando a própria cova” e agressões sicas. Foi relatada,inclusive, a existência de um pedaço de madeira usado parabater nos internos, onde estaria escrita a palavra “Gradão”.

A absnência sexual é esmulada para “não desviar otratamento espiritual”. “Muitos se consideram presos edesejam deixar a internação, mas são impedidos. Mesmo

internos que ingressaram na unidade voluntariamentequesonam o acesso limitado aos prossionais – psicólogoe psiquiatra apenas uma vez por semana – e a proibiçãode saída e de contato com a família”, apresenta o relatório.“Foi relatado que algumas pessoas são levadas, à noite, paraagressão no campo. Os cachorros são ulizados como ameaças,principalmente em casos de fuga”, completa. A comissão dedireitos humanos vericou que todos os internos usavamchinelo de dedo. Os coordenadores da comunidade alegaramque a exigência é para evitar roubo de tênis para trocar pordrogas, mas os internos armam que é para dicultar a fuga.A direção diz não pracar o isolamento, mas os quartos têm

grades e os internos armaram que são trancados em umdormitório por até 3 dias.

Os pacientes reclamaram também de atendimento médiconegligenciado, exemplicando com um caso de picada deescorpião, dor de ouvido, gripe e obrigatoriedade de trabalhomanual (sem remuneração) mesmo quando as mãos estãomachucadas. Expuseram, ainda, que os funcionários debochamda orientação sexual de uma interna traves. A queixa arespeito de constantes ofensas e humilhações foi conrmadapelo próprio diretor, ao armar que como incenvo usa frasescomo “você não é malandrão, é um bandido fracassado”.

Caso os internos tenham respeitado as regras da casa, e osfamiliares comprovem que estão parcipando de avidadesde programas como o “Amor

exigente”, que orienta familiares de dependentes químicosseguindo preceitos dos “doze passos”, as visitas são permidasdepois de 45 dias de internação. Correspondências e comidassão vistoriadas, entregues de acordo com o comportamentoda pessoa, e as ligações telefônicas são monitoradas, por vezesfeitas com viva-voz. Jornais, revistas, internet e TV são proibidospor “prejudicarem o desenvolvimento do tratamento”.

Manicômio

“Por cargas d’água, quando coloquei o joelho no chão, papaido céu ajuda. Pensei ‘meu deus, o que estão fazendo comigo?Não é isso que eu quero para mim, isso eu tenho certeza’”.Sebasão Aparecido, de 56 anos, é usuário de crack e vive narua, na região da Luz, na chamada “cracolândia”, há 3 anos.

Em meio à correria e repressão que tem enfrentado desde oinício da operação militar implementada dia 3 de janeiro porAlckmin (PSDB) e Kassab (PSD), Tião aceitou sentar e contarum pedaço de sua trajetória. “Minha família me enou em ummanicômio e isso não é perdoável. O pessoal de lá tratava agente bem, mas era capela 24h por dia”, conta.

Não foi informado para onde estava sendo levado, “só seique ca para aquele canto de quem vai para Ibiúna, no meio

do mato”. Fez uma longa pausa e já sem o sorriso simpácoque mostrava a falta de alguns dentes, armou: “Menina,eu z 6 meses de teologia, mas quando eu quis. Não por serobrigado. Você não tem a sua livre espontânea vontade? Poiseu também tenho a minha. Cada um procura o que acha queé melhor para si”.

Tião conseguiu fugir do lugar onde foi internado, mas foicapturado logo depois que deu um jeito de comprar ummaço de cigarros na estrada. “Lá dentro distribuí cigarropara todo mundo. Não está certo ajudar um camarada queestá querendo fumar um cigarro faz 4 meses? Aí eles caram

bravos e me expulsaram, para mim foi ómo”. Quanto àliberdade de crença, disse que não era permido se recusara rezar. “Se alguém não quer, é casgo. Não pode assisrtelevisão, nem saber o que está acontecendo no mundo. Issoé uma coisa que eu acho muito importante, sempre passona banca para pelo menos ler a primeira página do jornal esaber o que está acontecendo”, comentou. Ao ser perguntadosobre a abordagem de instuições religiosas aos usuários decrack e a possibilidade de internação compulsória, respondeurapidamente: “O ser humano, quando quer fazer algumacoisa, ele faz. Se ele não quiser, não vai fazer. Não adiantapegar esse povo, do jeito que está sendo feito o negócio, e

querer dominá-lo”.

Laborterapia

A conclusão do relatório do CFP aponta que “o modo de tratarou a proposta de cuidado visa forjar − como efeito ou curada dependência − a construção de uma idendade culpadae inferior. Isto é, substui-se a dependência química pelasubmissão a um ideal, mantendo submissos e inferiorizadosos sujeitos tratados. Esta é a cura almejada”. Ainda a respeitodos maus-tratos e humilhações que foram constatados, comointernos enterrados até o pescoço, casgo de ter de beber

água do vaso sanitário ou refeições com alimentos estragados,é citado um caso de uma comunidade terapêuca feminina. Eo de uma mulher que decide interromper a internação e seulho é dado, pela instuição, para adoção.

Outro aspecto que se conrmou como regra da práca dasinstuições visitadas foi o trabalho forçado e não remuneradoque recebe, na juscava das direções das comunidadesterapêucas, a mesma nomeação ulizada nos hospícios:laborterapia. Sob a juscava de trabalhar o corpo paramanter a mente ocupada, a realização das tarefas que mantéma estrutura sica de muitas das instuições – como o preparodas refeições, a limpeza do espaço, a lavagem das roupas – éfeita inteiramente pelos internos, de modo que a contrataçãode funcionários para realizar esse serviço é dispensada.“Trabalha-se para combater o ócio, para limitar a liberdade esubmeter à ordem. Mas, também, trabalha-se para gerar lucropara outrem”, avalia o relatório.

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Para Fábio Mesquita, a políca do governo federal é“esquizofrênica”: “O Brasil carece de uma políca públicasobre drogas há bastante tempo e há sempre uma luta polícainterna entre os repressores e os mais razoáveis, mas nestegoverno em parcular se esperava mais”. “Agora parece quea reforma psiquiátrica vale para psicóco, mas seus princípiosnão se aplicam aos usuários de drogas”, avalia. Mesquita dizse incomodar também com a “passividade do governo federal

com medidas como as tomadas pelo prefeito do Rio de Janeirocom internações compulsórias ou como as tomadas pelogovernador de São Paulo na cracolândia na ‘operação sufoco’”.

Humberto Verona também salienta mudança brusca napolíca de saúde mental do governo Lula para Dilma. “A gentevinha acompanhando a construção de uma proposta dentroda Coordenação Nacional de Saúde Mental. Aí entra o governoDilma e na discussão do plano para o enfrentamento desseproblema, vai mudando o rumo que vinha sendo discudocom os prossionais e os movimentos sociais, que era de trazeros princípios construídos até então para a políca pública”,

diagnosca.

“O princípio do SUS é da liberdade, da autonomia do usuário,do respeito”, dene Verona. Para ele, o conceito de autonomiaé fundamental por se contrapor ao conceito de tutela, muitopresente nas polícas das comunidades terapêucas: “O sujeitoé tutelado nesses ambientes porque tem os voluntários ou ostécnicos que estão no lugar de quem sabe o que é melhor paraele”. “Você pode fazer isso, não pode fazer aquilo, tem quefazer isso a tal hora, tem que rezar”, exemplica, dizendo queo conjunto de regras “ra do sujeito a autonomia e a vontadeprópria”. Humberto avalia que a parr do momento em que

“você acha que o outro tem que seguir rigorosamente a suaverdade para ele car livre do problema que você acha que eletem, não há limites”. “O conceito do SUS é de trabalhar como sujeito a incorporação do autocuidado, que ele tenha umaresponsabilidade consigo próprio e que ele possa ser o autorda sua própria condição de vida. Não é o prossional da saúdeque sabe o que é melhor e vai dar a receita para aquele sujeitoseguir”, explica. O presidente do CFP crica também o fato dea presidenta da República já ter feito uma série de reuniõescom as federações e associações nacionais das comunidadesterapêucas e nunca ter recebido o movimento social e osprossionais que vêm debatendo a questão da saúde mental.

Verona frisa a incompabilidade das duas diferentespropostas de cuidado no mesmo sistema de saúde pública.“Como é que podemos fazer conviver no mesmo sistemaa ideia das comunidades terapêucas com uma propostaque trabalha autonomia, responsabilização do sujeito porseus atos, na perspecva da redução de danos?”, quesona.“Acreditamos que a droga em si não é o demônio, é umasubstância que tem efeitos, uso histórico na humanidade eprecisa ser tratada com a complexidade da relação humanacom substância psicoava”, arma, chamando atenção parao fato de que “o conceito moral sobre a substância não

compete à políca pública”. “Esperávamos que o Plano deEnfrentamento ao Crack trouxesse todo o recurso para invesrem cuidado para a políca pública do SUS, em CAPS AD 24hem todas as regiões do país, consultórios de rua etc”, crica,ao dizer que a demanda que recebem é muito maior que osrecursos permitem oferecer.

Movações polícas

A decisão de instucionalizar o nanciamento público àscomunidades terapêucas é, para Fábio Mesquita, “umprofundo equívoco políco e um erro técnico crasso”. “Amedida parece ter sido tomada por pressão de bancadasreligiosas do Congresso somada a setores da psiquiatriaque são alinhados com a anrreforma psiquiátrica porque

perderam poder e benecios com as mudanças na área desaúde mental”, crica.

“Não podemos armar nada, temos suposições”, introduzHumberto Verona: “Pelo tamanho do invesmento, pelainsistência em não escutar os argumentos apresentadas porvárias endades da sociedade civil, eu acho que há aí premissasde campanha, outros interesses polícos de governabilidade e

 jogo que estão fazendo com que a políca nacional se renda aesse po de coisa”. “Do ponto de vista da lógica da construçãoda políca, não tem nada que jusque essa escolha”, conclui.

No nal do ano passado, a Rede Nacional de Internúcleosda Luta Anmanicomial (RENILA) soltou uma carta públicaa respeito da possibilidade de as comunidades terapêucasserem incorporadas como um recurso do SUS. “Idencamoscomo ponto de sustentação das propostas apresentadaspelo governo federal, a arculação existente entre a ministrada Casa Civil, Gleisi Homann, setores religiosos que seexpressam no Congresso Nacional e as Federações dascomunidades terapêucas que são patrocinadoras do projetopolíco da ministra, senadora eleita pelo Paraná”, denunciam.Gleisi, de família religiosa, já chegou a pensar em ser freiraantes de entrar no PT em 1989. A ministra foi nomeada por

Dilma Rousse como a liderança do grupo de trabalho quepreparou a legislação que incluiu as comunidades terapêucasno nanciamento público.

“O risco que estamos correndo é de perdermos areforma psiquiátrica no Brasil. O raciocínio que vai chegarinevitavelmente é ‘se internar no modelo de isolamento ébom para tratar quem usa droga, então é bom para quem temtranstorno mental também’”, alerta Verona. “Ficamos a umpasso de desmontar a luta anmanicomial”.

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 “ i n dúst r i a da Loucur a” i mpede avançosGabriela Moncau

A suposta epidemia do crack que estaria se espalhando peloBrasil estampa os jornais diariamente. Endades e militantesda luta anmanicomial alertam para medidas de retrocessona reforma psiquiátrica. Os quase dez anos de governo federalsob o comando do PT são propagandeados como avanços na

implementação de uma rede de serviços da saúde mental naperspecva do atendimento ambulatorial e intersetorial. Ocenário da saúde mental no Brasil hoje é complexo, alvo de umadisputa de paradigmas e levanta questões. Qual a ecácia dessarede? O que é o Plano Nacional de Enfrentamento ao Crack dogoverno federal? O que são as comunidades terapêucas, queganharam desde o ano passado, legimidade e nanciamentodo Estado para o tratamento de uso abusivo de drogas? Emque pé está a área da saúde mental no Brasil hoje, quais seusproblemas e embates?

Fazendo um retrospecto da políca brasileira voltada para

a saúde mental, Marcus Vinicius de Oliveira, professor daUniversidade Federal da Bahia e do Instuto Silvia Lane dePsicologia e Compromisso Social, um dos militantes pioneirosda luta anmanicomial, lembra que a ditadura militar, emseu movimento desenvolvimensta, pressupunha a ideia deque era preciso fortalecer a presença do capital privado nosdiversos setores da vida social. Os negócios privados da saúdenão caram de fora.

“Houve um ousado plano de nanciamento de empresáriosmédicos para que construíssem hospitais equipados e oEstado, por meio do dinheiro do fundo de ação social da CaixaEconômica Federal, recursos da previdência social, compravaa produção desses hospitais”, relata. Somando-se ao fato dapsiquiatria não exigir grandes equipamentos ou tecnologia, odiagnósco de transtorno mental é passível de manipulação, demodo que desvios de comportamento de toda natureza podemser enquadrados em patologias mentais. Assim, a saúde mentalfoi um dos ramos mais atravos para essa políca dos milicos.

“Em 1980, há uma inexão nesse quadro, com a primeirafalência da previdência. Instui-se, então, o ConselhoNacional da Previdência Social (CONASP), que gera o Planode Reorientação da Assistência Psiquiátrica (PRAP)”, recorda oprofessor da UFBA, para quem é esse o primeiro momento em

que “o Estado brasileiro é obrigado a fazer uma reexão sobre adeformação que ele próprio produziu na área da saúde mental”.É nesse contexto que se fortalece a luta anmanicomial e areforma psiquiátrica.

As crícas ao modelo dos hospícios de aprisionamento,exclusão, tutela, isolamento, longas internações e falta detrabalho intersetorial ganharam peso e pautaram a inexão daspolícas públicas de saúde a parr de então. Humberto Verona,presidente do Conselho Federal de Psicologia (CFP), avalia queatualmente “a maioria dos países da América Lana ainda estãoalguns passos atrás do Brasil”. Se os hospitais psiquiátricos não

são ideais para o tratamento de transtornos mentais, o quecolocar no lugar?

Capenga estrutura

Para Adriano Araújo, coordenador de Saúde Mental do Rio

Grande do Norte e professor de Psiquiatria e Psicologia Médicada Universidade Poguar, o sistema ideal “é aquele onde ousuário terá um arsenal terapêuco a seu dispor”.

“Ele poderia ser cuidado na atenção básica, próximo de sua

casa ou ser encaminhado para um atendimento especializado.Em casos graves, como surtos psicócos, por exemplo, ele seriainternado em um hospital geral”. As internações, segundoele, devem ser breves, possibilitando o retorno da pessoa aoconvívio social o mais rápido possível.

Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), parte da rede dedisposivos de atenção à saúde mental proposto pela reformapsiquiátrica, são serviços municipais que oferecem atendimentodiário e que, para Adriano, se encaixam no perl do sistema queele defende.

Até o nal de 2011, foram implantados no Brasil – cujapopulação já se aproxima de 200 milhões – 1742 CAPS, de acordocom dados divulgados pelo Ministério da Saúde em março. Seo número de CAPS não angiu ainda a casa dos 2 mil, os quecam abertos 24h são ínmos. Segundo o Relatório Brasileirode Drogas divulgado pela Secretaria Nacional de Políca sobreDrogas (SENAD) em 2010, havia para o Brasil inteiro apenas 41CAPS funcionando 24h, 200 especializados em álcool e outrasdrogas (CAPS AD) e 105 voltados para a saúde mental infanl(CAPSi).

Roberto Tykanori, um dos pioneiros da luta anmanicomiale atualmente coordenador da Área Técnica de Saúde Mental,Álcool e Outras Drogas do Ministério da Saúde, quesonadosobre a ainda escassa estrutura, arma que “a questão da áreada infância tem vertentes complicadas”. “De um lado, temosuma carência de prossionais e serviços em todo o país. Ficamosem certo impasse, porque é necessária a expansão dos CAPSi,mas não temos todos os elementos para expandir. São respostasde médio prazo, aumentar residentes, especializações, etc”, jusca.

Tykanori aponta, ainda, para um “excesso da categorização doscomportamentos infans como patológicos e que demandemremédios e tratamento” e para o fato de que “não é uma

questão a ser resolvida setorialmente”.

Quanto à falta de CAPS 24h, o coordenador do Ministérioda Saúde defende que “é um modo de trabalho ainda poucoincorporado pela maior parte dos trabalhadores de saúdemental”, e que existem as diculdades de nanciamento edisponibilidade de prossionais.

Ainda internados

Apesar da migração das vagas em hospitais psiquiátricos parahospitais gerais ou para a rede de serviços de saúde mental

constar na Lei da Reforma Psiquiátrica, aprovada em nívelfederal em 2001 depois de muita pressão dos movimentossociais, os leitos psiquiátricos remanescentes no Brasil chegama 30 mil, também de acordo com o Ministério da Saúde. Entreessas pessoas internadas, 12 mil moram no hospital psiquiátricohá mais de um ano.

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“Quando mantemos esse modelo e achamos natural aideia de que podemos ir, devagar, rando as pessoas dosleitos psiquiátricos, estamos querendo dizer que aquilo que já sabemos que não funciona, que é ruim, que exclui, podeconnuar a ser aplicado para alguns”, expõe Humberto Verona,defendendo “a necessidade da radicalidade de que todos osleitos em hospitais psiquiátricos sejam fechados”.

Já Adriano Araújo arma que trabalha há dez anos na saúdemental defendendo a implantação de serviços substuvos,mas não concorda “com o fechamento de leitos em hospitaispsiquiátricos que provoquem desassistência”.

Filão das farmácias

Além dos donos de manicômios e clínicas de internação, outrosinteressados no que Marcus Vinicius chamou de a “indústriada loucura” são os setores que se beneciam pela massa deconsultas médicas, que geram receitas, que alimentam aindústria farmacêuca. Não se trata de um embate com peixe

pequeno.

A crescente e lucrava indústria farmacêuca concentraalguns dos maiores grupos empresariais ao redor do globo.Dados da IMS Health indicam que, em 2008, esse setor faturou773 bilhões de dólares. Entre as substâncias psicoavas maisconsumidas estão os andepressivos, as anfetaminas e osbenzodiazepínicos.

No Brasil, durante 2008 e 2009, o Rivotril (benzodiazepínico) foio segundo medicamento mais vendido, cando atrás somentede uma pílula anconcepcional. A Organização Mundial daSaúde (OMS) considera necessária a disponibilização de cerca

de 300 pos de medicamentos para promoção da saúde em umPaís. No Brasil, existem mais de 32 mil.

“Nos anos 1980 e 1990, a uoxena, sob o nome de Prozac,se tornou um dos medicamentos psicoavos a vender muitosbilhões de dólares e foi o emblema de uma época onde aindústria farmacêuca criava uma nova cultura de dependênciade drogas, ao mesmo tempo que se desencadeava uma guerrasem quartel contra algumas drogas ilícitas, muitas delas plantasde usos tradicionais milenares”, narra o historiador HenriqueCarneiro no argo Legalização e controle estatal de todas asdrogas para a constuição de um fundo social para a saúde

pública.

Drogas e saúde mental

“O crack, por envolver alguns componentes sociológicosespecícos, redimensiona o tema das drogas no Brasil, trazum ônus. Então várias coisas ganham maior intensidade como crack”, analisa Marcus Vinicius: “Dilma resolve enfrentar essetema”.

A palavra enfrentamento resume bem a forma como o governoDilma optou por lidar com a questão. No nal do ano passado, ogoverno federal lançou, sob o slogan “Crack, é possível vencer”,o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras drogas,com invesmento de R$ 4 bilhões.

Casado com a aplicação de verba na rede intersetorial deatenção psicossocial do SUS, o plano inclui a repressão à

oferta de drogas e o nanciamento público de comunidadesterapêucas, centros privados de tratamento para dependentesquímicos, majoritariamente ligados a grupos religiosos.

A primeira ação do plano foi no Rio de Janeiro, onde em maiofoi assinado convênio entre esfera federal e governo do Estado,resultando na ocupação por 150 homens da Força Nacionalde Segurança Pública do Morro Santo Amaro, no Catete,zona sul da cidade. Permanecerão lá até a instalação de uma

Unidade de Polícia Pacicadora (UPP). Algumas horas depoisda ocupação militar, ao menos 70 pessoas foram internadascompulsoriamente.

“A presidente fez um plano bastante ousado, porque desdeo início se dispõe a fazer um trabalho intersetorial com oMinistério da Saúde, da Jusça e do Desenvolvimento Social”,defende Tykanori.

No Brasil, as comunidades terapêucas funcionam, em suamaioria, em algum sío afastado do centro urbano com a lógicada imposição da absnência e separação do sujeito de qualquer

contato com a sociedade.

“O despertar espiritual se faz imprescindível no tratamentodo dependente químico pelo fato de ser um instrumentoterapêuco que age na alma como agente movador deauto-esma”, descreve o Pastor da Igreja Basta da LagoinhaWellington Vieira, presidente da Federação de ComunidadesTerapêucas Evangélicas do Brasil (FETEB) e representantedas comunidades junto ao governo federal, que por meio dacoordenação da Casa Civil ajudou na elaboração do Plano deEnfrentamento ao Crack.

Na práca, a realidade é diferente. Uma inspeção às

comunidades terapêucas realizada pela Comissão Nacionalde Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia reuniudenúncias graves. Cárcere privado, tortura, trabalho forçado,maus tratos, humilhações, ausência de prossionais de saúdesão algumas que constam em relatório entregue ao MinistérioPúblico e à ouvidoria de direitos humanos, feito a parr da visitasimultânea a 68 comunidades terapêucas em 25 unidadesfederavas. “Nós contestamos o relatório do CFP em todas asinstâncias, porque percebemos que não era algo dedigno”,responde Vieira em relação ao documento.

“Os donos de comunidades terapêucas têm uma organização

nacional muito forte, por estarem a maioria vinculados amovimentos religiosos. Também têm muitos representantesno legislavo, a gente sabe que eles são fonte de pressão aogoverno”, avalia Humberto Verona, do CFP.

“Temos que admir que o tema das drogas cou muitopouco debado por nós”, analisa, fazendo uma ressalva para aimportância da redução de danos. “Agora estamos discundo oassunto com aspectos sociais não só da saúde pública, mas comuma visão antropológica, sociológica, quesonando a polícaproibicionista, vamos avançando”, diz.

Gleisi e o pastor

Gleisi Homann, ministra da Casa Civil nomeada por DilmaRousse como liderança do grupo de trabalho que preparoua legislação que incluiu as comunidades terapêucas nonanciamento público, é de família religiosa e quase se tornou

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freira antes de entrar no PT em 1989. Tornou-se presidente doPT no Paraná e chegou a se candidatar à prefeitura de Curibaem 2008. Dois anos mais tarde, foi a senadora mais votada.

Durante sua campanha, em 2010, fez uma carta pública aopovo cristão em que arma: “Muitas vidas já foram reradasdo álcool, das drogas, da violência e reaproximadas a Deus.Por isso, penso que as Igrejas podem e devem ser parceirasefevas do Poder Público nos projetos sociais”. “Sou contra a

liberalização das drogas. Acredito que prejudicam de formairreparável as relações humanas”, salienta, ressaltando que “osdrogados e viciados não têm limites”.

“Assim como não é certo o preconceito em relação aohomossexual, também não é certo a criminalização de umpadre ou pastor que, por convicção ou crença, se colocacontra a práca do homossexualismo”, completa, colocando-se “disposta a manter um diálogo mais próximo com o povocristão”. E manteve a promessa, inclusive transcendendo areligião católica e mantendo relação bastante próxima dosrepresentantes das igrejas evangélicas.

Em 2011, com a saída de Palocci, Gleisi foi indicada por Dilmapara assumir a Casa Civil. Na matéria “Gleisi, Padilha e o Pastor”,do Correio Braziliense, Homann é agrada enviando um e-mailpara Alexandre Padilha (ministro da Saúde), cobrando uma“exibilização” para que as comunidades terapêucas possamse cadastrar com maior facilidade no plano “Crack, é possívelvencer”. Gleisi havia recebido, meia hora antes, e-mail do pastorevangélico Lori Massolin Filho, liderança de comunidadesterapêucas no Paraná, reclamando o fato de que algumasexigências do edital não foram abandonadas.

A “exibilização” que exigiam, no entanto, não foi conquistada

ainda e os recursos do Ministério da Saúde para as comunidadesterapêucas estão parados. Os R$100 milhões estavamprevistos para atender ao menos 920 instuições, mas em doiseditais apenas 42 comunidades se inscreveram e cinco foramaprovadas. Entre as exigências para a entrada no SUS estãoa necessidade de reportarem-se aos CAPS, a permissão decontato com os familiares, leitos de retaguarda e prossionaisde saúde.

As federações de comunidades terapêucas argumentaramque as condicionantes estão rígidas demais e que teriam deperder sua idendade. Foi feita reunião com representantes

do Ministério da Jusça, da Casa Civil e das comunidadespara estudar contornos ao fracasso dos editais. A SENADsoltou nota pública armando estudar formas de apoio àscomunidades e um terceiro edital foi lançado. Caso mais umavez o credenciamento não funcione, para onde irão esses R$100milhões? Tykanori armou que ainda não está decidido.

“Essas instuições não nasceram para serem equipamentos desaúde, mas para serem equipamentos religiosos de doutrinação,na perspecva moral”, classica Verona. Para ele, a rigidezdos critérios às comunidades foi consequência de pressõessociais. “Foi uma vitória da Frente Nacional de Drogas e DireitosHumanos e de outros que se uniram nessa luta. Mas não existenenhuma intenção do governo de fazer um quesonamentoa essas instuições, pelo contrário, tem interesse em invesrdinheiro. Precisamos car atentos, pois em algum lugar issoserá absorvido”, reete.

Privazações

Paulo Spina, trabalhador da saúde mental no CAISM da ÁguaFunda, em São Paulo, e parcipante do Fórum Popular deSaúde, acredita que a internação compulsória em massa e ofortalecimento das comunidades terapêucas “ganham umstatus hoje porque vêm com essa políca de rar usuários dasruas, com a higienização dos grandes centros, a preparaçãopara os grandes eventos. Não é uma preocupação sanitária”.

“Em São Paulo, mais da metade do orçamento da saúdede está indo para as Organizações Sociais (OS) [parceriapúblico-privada], que têm vínculos variados, algumas ligadasa faculdades, outras com a igreja católica”, exemplica Spina.“Tem outras mais esdrúxulas como a ligada ao SECONSI [ServiçoSocial da Construção Civil], que gere vários serviços na zonaleste, recebem dinheiro para administrar 31 UBS [UnidadeBásica de Saúde], mas na práca administravam 14”, salienta.Em 2010, 18 dos 34 hospitais públicos do estado de São Paulogeridos por OSs acumularam um rombo de R$147,18 milhões,de acordo com reportagem de Conceição Lemes, no Viomundo.

“Esse é um grande problema das OS, o poder público perdeo controle de como esse dinheiro está sendo ulizado”, dizSpina. A falta também de controle social, em sua opinião,prejudica especicamente o tratamento de saúde mental:“Aquele usuário da saúde mental já exerceria a cidadania deleno próprio tratamento, poderia parcipar do conselho gestor,por exemplo”.

Em 2010, uma arculação entre governo do estado deSão Paulo (sob comando de Geraldo Alckmin, do PSDB),prefeitura (de Gilberto Kassab, do PSD), Ministério Público eas universidades USP, Santa Casa, Unifesp e Unisa inauguram

o AME (Ambulatório Médico de Especialidade em) Psiquiatria.

Para Spina, o AME Psiquiatria é “transversal” e “pontual”, emcontraposição à políca “longitudinal” do CAPS: “A políca doAME não tem portas abertas, a pessoa só chega lá em situaçãograve e encaminhada de outros serviços. Não tem inserção noterritório e sua natureza é muito medicamentosa. Vemos comoproblemáca essa perspecva de atacar o sintoma e não ter oentendimento do que está por trás, dar condições da pessoaviver de forma estruturada”, crica.

“Hoje, para qualquer coisinha há um apelo social por um

alívio imediato. Não pode ser triste, não pode ter dor”, observaHumberto Verona, que logo completa: “E o que a gente faz?Anestesia o sofrimento produzido por nosso momento histórico,cultural, econômico, social, e não enfrentamos as dores. Comisso, a gente perde na cidadania, na humanidade. O sujeito cadependente”.

Ele não descarta a medicalização em casos graves de transtornomental, mas considera que “estamos criando, colevamente,mais problemas para nós e delegando-os a especialistas quesão a indústria farmacêuca, os psicólogos. A gente produz oproblema e eles nos vendem a resposta”.

“Caminhamos para que tudo tenha um diagnósco, umremédio, uma solução e não priorizamos recursos culturaisconstruídos socialmente”, dene. “Então hoje nos interessapensar o que é isso que estamos fazendo conosco nessasociedade?”, levanta.

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 i n t er nação compul sór i a e saúde ment a lLuciano Elias

Diante do cenário preocupante das úlmas nocias sobre osmovimentos avos de setores retrógrados do campo da saúdemental e da repercussão de suas ações na esfera do poderpúblico (Ministério da Saúde), dos descalabros na esfera dasestratégias de “combate” às drogas que vem sendo colocadas

em práca no Rio de Janeiro, como a internação compulsória de jovens usuários de crack em situação de rua, determinada peloSecretário de Assistência Social (ex-Ordem Pública e Choque deOrdem) e que serão logo copiadas por outros grandes estadosbrasileiros, senão pelo próprio (Estado brasileiro), e do quadronão menos grave que as próprias polícas públicas e sua regênciapor posições tomadas a parr do próprio “execuvo federal”,tular do dito Estado, a nossa Presidenta da República, vemtomando, decidi sair do silêncio em que vinha me mantendo eprocurar o diálogo com meus colegas de campo. Desculpem olongo texto, mas como só o lerá quem desejar fazê-lo, tá tudoOK, certo?

Penso que é preciso ter muito cuidado quando, no atualcenário políco-social brasileiro, fala-se em “rever a polícade saúde mental” ou mesmo “avaliar os serviços” (leia-se,os CAPS), “melhorar sua ecîência” e outras “providências”.Quem levantaria uma voz críca contra iniciavas como esta dagestão pública da saúde, ou que lhe são sugeridas por setoresda sociedade “interessados no bem comum e nos direitossociais dos cidadãos, entre eles o direito à saúde pública e dequalidade”? À primeira vista, avaliar os serviços, melhorar suaqualidade e até mesmo rever as suas formas de funcionamentoé o que de maior probidade teria o poder público a fazer em suatarefa maior de garanr à população o direito às prácas maisecientes e qualicadas de saúde e de saúde mental.

No entanto, essas iniciavas não são produzidas sob aégide dos movos que declaram. O discurso que se pauta porum aparente tecnicismo, eciensmo, estabelecimento demetas, qualidade, produvidade, rentabilidade, omizaçãoe outros tristes termos do vocabulário tecno-burocráco queé pioritariamente proferido nas esferas da gestão pública“moderna” esconde, na verdade, os seus verdadeiros movos.

O processo de reestruturação da assistência psiquiátricano Brasil é indissociável dos eixos histórico-polícos queatravessam e constuem o tecido da social brasileiro ao longode muitas décadas de nossa História. A reorientação domodelo de assistência, a substuição das prácas manicomiais

e hospitalocêntricas pelas prácas territoriais e comunitárias(que não exclui o recurso à internação mas o submete a umalógica de monitoramento que não faz da internação o centrode gravidade das prácas clínico-assistenciais), a pluralizaçãode discursos, saberes e prácas para além da psiquiatriaestritamente medicalizante, a mulprossionalização nacomposição de equipes, sem prejuízo de nenhuma dasprossões que passaram a integrar o amplo espectro técnicoem saúde mental, a exigência de que a direção políca, técnica,gestora e o modo de conceber e contratar os recursos humanos – o mais importante recurso tecnológico do campo – sejampúblicas e não privazadas, terceirizadas ou parceirizadas com

setores privados da sociedade, a recusa dos especialismos,enm, tudo isso compõe o complexo campo da atençãopsicossocial (que por isso mesmo não é constuída de “serviçosespecializados” nem se dene pelo caráter “primário” ou “não-primário” da atenção que presta, mas especica-se por seratenção psicossocial).

Este campo, mais do que um mero novo modelo técnicode assistência em saúde mental, consiste em uma respostapolíco-social e assistencial a um longo, insidioso e nocivoprocesso de desassistência, reclusão e exclusão instucional

não apenas dos loucos, mas também dos mais diversos quadrosde vulnerabilidade, desproteção e risco social com gravesconseqüências psíquicas, como o abuso de álcool e drogasem diversas faixas etárias, parcularmente em crianças eadolescentes, exposição às mais variadas formas de violência,risco letal, etc. Como resposta a este quadro de produção avade desassistência e despreteção social à mais numerosa faixada população brasileira, cuja estatura não é frágil, porquantoresulta de um longo processo histórico que lhe rende robustasraízes, o campo da atenção psicossocial visa revertê-lo. E vemconseguindo fazer isso, ainda que com o escandaloso declíniodo invesmento público em sua rede, a que vimos assisndo

nos úlmos tempos.A ecácia do campo da atenção psicossocial pode ser vericadanos efeitos produzidos na população e nas comunidadesterritoriais onde os CAPS implantados têm efevo apoio públicoe conseguem, com isso, ordemar uma rede de assistência ecazintra e intersetorial, de equipamentos de saúde e de outrossetores estratégicos do campo. Há signicava redução deinternação nesses territórios, diferentes formas de sustentaçãode laços sociais antes impensáveis entre os usuários, elevaçãodo nível de entendimento de inclusão nas comunidades emque vivem (efeitos nos não-usuários mas em seus parceirossociais), entre outros indicadores, inclusive epidemiológicos.Não é à toa que a IV Conferência Nacional de Saúde Mental-Intersetorial, realizada em julho de 2010 em Brasília, rearmou,quase que em sua integralidade, os princípios e ações do campoda atenção psicossocial, ainda que alguns gestores e setoresoperantes neste campo preram não levar isso em conta.

Por isso, trazer a questão da eciência da rede de atençãopsicossocial, dos CAPS, é práca que só se pode legimar aparr do interior de uma posição políca que se paute poressas diretrizes e concepções. Apontar ineciência, proporavaliação dos CAPS, dicur o nível de qualicação das equipes,etc. é o que de melhor teríamos a fazer, se essas propostas nãofossem formuladas de forma inteiramente alheia e até mesmofrancamente antagônica aos eixos constuvos do próprio

campo e ao processo histórico-políco que lhe deu existência.Qualquer tentação ou tentava de avaliar a rede de atençãopsicossocial à luz de um mero tecnicismo ciencista e pseudo-eciente fracassa porque:

1) concebe eciência fora dos parâmetros metodológicos emque esta categoria seria aplicável aos serviços que pretendeavaliar; e

2) produz um po de eciência que, embora pretensamentepautada no que se chama “evidência cienca”, desprezao mais rasteiro nível de realismo (dos erros em matéria deciência, o mais grave) quanto à experiência mesma de afecçãomental e sofrimento psíquico dos indivíduos cujo tratamento

é invesgado em sua eciência, limitando-se às inndáveisdescrições de “transtornos” do DSM IV, aparentementeobjevas e dedignas mas inteiramente desprovidas de lógica,eologia e conceituação teórica, o que consequentementeas faz mergulharem no mais obscuransta abstracionismoespeculavo (do po: “uma criança que porventura não ver

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sido tratada com ritalina de seu suposto TDA/H na infânciaserá provavelmente um usuário contumaz de drogas naadolescência” – se não droga antes, droga depois -, sem que,em nenhum momento, a realidade clínica, apreensível pelamais simples anamnese, seja levada em conta).

Mas na verdade o fracasso da empreitada se vê facilmenterecuperado no plano políco: o real objevo nunca foi, emnenhum momento de seu trajeto, o de avaliar seriamente ocampo da atenção psicossocial e suas questões, diculdades e

falhas, mas o de derrubá-lo, a priori, porque ele produziu umarealidade social e instucional concreta que deixou de atenderaos interesses econômicos (de nanciamento público da malhade leitos e hospitais psiquiátricos, e da indústria farmacológica),polícos (de uma recuperação da hegemonia médica emmatéria de saúde mental, hegemonia perdida pela pluralizaçãode prácas, saberes e prossões) e pseudo-ciencos eacadêmicos (relavos aos paradigmas que passaram a dominaro campo da medicina do comportamento, cópula “cienco”-capitalista – o primeiro termo entre aspas pelo respeito quedevemos à austera dama da Ciência que não é esta, impostorae sustentada pela hegemonia de mercado, que se apresenta no

campo do comportamento humano na contemporaneidade).Na verdade, os médicos, os psiquiatras, são de fundamental

importância no sucesso do campo de atenção psicossocial,que, a meu ver, não existe nem é viável sem eles. Eles sedizem, no entanto, excluídos, desrespeitados, despresgiados,e abandonam, corporava e colevamente, este campoque “não os reconhece nem respeita”. Será? Ou será, pelocontrário, por saberem muito bem que teriam um enormepapel a desempenhar, decisivo mesmo, neste campo, que eleso abandonam, para inviabilizá-lo, já que, no paradigma atualque rege sua formação, os modelos a que aderem são outros,privazantes, organicistas, medicalizantes, neurociencos,comportamentalistas? Onde estão os psiquiatras clínicos quegostavam mesmo de adentrar a experiência fenomenológicados “doentes mentais”? Onde estão os psiquiatras sociais, ospsiquiatras marxistas, os psiquiatras crícos?

Assismos a um preocupante crescimento de um de ovoda serpente, que toma corpo na terroricação das drogas,sobretudo do crack, visto como o próprio demônio em formade pedrinhas de fumaça que em pouco tempo exterminarão os jovens na rua além dos cidadãos que esses jovens exterminarãocomo conseqüència do uso de crack. E cresce o ovo: opensamento higienista, condenatório, excluidor, que por má-fé idenca tratar com fazer desaparecer do cenário público eurbano, da rua, aqueles de quem supostamente se quer tratar

, internando-os em “casas”, abrigos, comunidades terapêucasou hospitais “especializados” para que esses jovens sejam“ecientemente cuidados até que parem de usar drogas” (!).A Jusça, até mesmo as Promotorias de Infância, acabam porconsiderar essas medidas adequadas, ou “adequáveis”.

O secretário municipal de Assistência Social do RJ é umdos arautos da idéia e da portaria que instui a internaçãocompulsória de jovens em situação de rua e uso de crack. Apopulação, grande parte dela, apóia, como apóia tudo que ospolícos que “limpam” as cidades inventam. O Rio de Janeiroconnuará mais lindo do que nunca, agora com menos pivetescheirando crack em copinhos de guara-vita nas esquinas e

cracolândias generalizadas, preparado para a copa do mundo,os jogos olímpicos. Despoluído. Todo mundo celebra: o Rioem ascensão, depois de ter sido jogado na sarjeta do Brasil,agora é reerguido pelas mesmas políca e mídia que antes oafundaram. E a população agradece. Pela via das drogas, ossetores mais retrógrados encontraram a via de promover o

retrocesso políco e assistencial pelo qual tanto ansiavam, háanos: a remanicomialização da “assistência” em saúde mental!

Mas será que podemos connuar acusando, ingenua, pueril,cega e neurocamente, os “nossos adversários”? Não estariamentre nós, ou mesmo em nós, esses adversários? O campo dasaúde mental é coeso, é discursivamente sustentado pelosprincípios que declara? Ou é eslhaçado, fragmentado, e emmuitos de seus fragmentos se compraz com as OSs que odominam, com a tecnocrazação que o corrói, com a guinada

à direita que o norteia? Basta reunir um certo número de“colegas de campo” que se evidenciará a mais ruidosa polifoniade posições contrastantes: alguns defenderão que a tônica deveser mesmo a atenção primária, os NASFs e PSFs em detrimento(não em conjugação) com a rede de atenção psicossocial, osmesmos defenderão que “CAPS é serviço especializado porquenão é atenção primária”, outros defenderão (por vezes aindaos mesmos) as OS como garanndo maior eciência nosatendimentos.

Outros dirão com aquele ar de sabedoria histórica que “osCAPS já cumpriram sua missão”. E poucos ainda restarãoa defender seriamente concursos públicos, invesmento

público em recursos humanos estáveis e compromedos,bons salários (pagos pelo Estado), polícas públicas pautadasdemocracamente em conferências colevas, rede arculadae pública, serviços e equipes acompanhados por supervisãoclínico-territorial, etc. etc. etc. – enm, as boas prácas emsaúde mental, aquelas que, maciçamente invesdas pelo poderpúblico e assimiladas pelo tecido social, dariam certo.

A pergunta que não quer calar é: por que esse movimento an-Reforma, an-campo da atenção psicossocial, an-territorial,encontra tantos adeptos, é tão bem recebido por tantosouvidos, chega tão sem resistência a tantos setores, até mesmoda gestão pública? Por que a nossa Presidenta da República, tãocombava, em sua própria história pessoal, quanto às questõessociais e polícas que sempre assolaram o povo brasileiro,é tão favorável a prácas judicializantes e repressivas do usode drogas, que sob seu comando direto pautam cada vez maisa políca nacional an-drogas da SENAD, que ela transferiudo gabinete instucional da Presîdência da República parao Ministério da Jusça, afastando-a mais ainda do Ministérioda Saúde, onde deveria estar? Por que o próprio Ministérioda Saúde é sempre tão recepvo a ouvir endades como aABP (Associação Brasileira de Psiquiatria) se não desconheceque as posições desta endade não são apolícas nem gozamda neutralidade “cienca” que apregoam, enquanto queenfraquece cada vez mais o campo da atenção psicossocial,

que é de sua própria alçada e criação? O que leva a Sra. DilmaRoussef a defender, desde seu discurso de posse, e de modo tãopressuroso, a parceria com setores privados, na própria saúde?O que leva a mesma presidenta a apoiar as comunidadesterapêucas (religiosas) como recurso para internação de jovens usuários de drogas, e paralela e simultâneamentedesapoiar a políca nacional de tratamento do uso abusivo dedrogas pautado na lógica da redução de danos, do tratamentoem comunidade (não a terapêuca, que exclui e segrega o jovem, mas sua comunidade territorial), consultório de rua eampliação da rede de CAPS-AD?

Talvez seja hora de pararmos de acusar o “outro” de “nosso

movimento” e interrogar de que os e eixos este movimentovem se tecendo, para que tenhamos mais clareza do quequeremos, se tanto é que queremos algo que seja comum aum número signicavo de nós, que possa ter, hoje, o lugar decausa para algum movimento.

7/21/2019 Caderno -Saude Mental - Final

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CORDENAÇÃO DE POLÍTICAS DE SAÚDE   44

Dr ogas e Juvent ude: menos segur ança públ i ca e cr i mi n al i zação, mai ssaúde públ i ca e pr omoção de dir ei t os

Gabriel MedinaO tema da juventude é recente na agenda

pública do país, foi apenas nos anos 1990 que oBrasil começou a construir algumas experiênciasmunicipais e estaduais voltadas especicamente para

essa questão. No âmbito do Governo Federal essaexperiência ainda é mais recente, a Políca Nacionalde Juventude foi constuída em 2005, com a criaçãoda Secretaria Nacional de Juventude, o ConselhoNacional de Juventude e o Projovem.

Embora haja avanços nas formulações e açõesrealizadas no âmbito das universidades, das ONG´se do próprio Estado, o desconhecimento e o sensocomum ainda predominam quando o tema em focoé a juventude. É bastante comum a associação do

tema à adolescência, percepção mais consolidadopor conta da constuição do Estatuto da Criança edo Adolescente. Ainda que com algumas interfaces,principalmente no que tange a questão etária,a noção de juventude carrega sendos bastantedisntos e caminha para a construção de umarcabouço conceitual próprio.

A ideia de juventude compreende uma fase da vidaque se estende dos 15 aos 29 anos, esse períodonão deve ser entendido apenas como um momentotransitório da infância para a fase adulta ou comouma etapa que carrega comportamentos de risco.Trata-se de um momento especíco marcado pormuitas mudanças na formação e na trajetória dosindivíduos.

Nesse sendo, a juventude deve ser entendida comoum período importante do desenvolvimento humano,um momento no qual se criam e comparlhamexperiências geracionais que, apesar de serembastante diversas, conformam um conjunto comumde experiências cujas especicidades precisam ser

reconhecidas. O reconhecimento desses “elementosem comum” é fundamental para a formulação depolícas públicas que sejam capazes de atender aesse grupo.

Na maior parte das vezes, o desconhecimento dotema e a construção conceitual equivocada da ideiade juventude – reduzida à concepção de grupo quepromove e/ou está sujeito a risco social – contribuiupara que fossem construídas polícas equivocadasdesnadas ao controle e à repressão do tempo livre

dos jovens. É neste espaço que tem se constuídoa políca androgas no Brasil. Conjunturalmente,essa concepção foi realimentada pela campanhaeleitoral de 2010, quando a maior parte dos pardos,a despeito das disntas colorações ideológicas,

estabeleceu uma conexão direta e simplista entrecrack e juventude.

Esta visão de Guerra às Drogas difundida pordécadas pela ONU, e reproduzida à exaustão pelas

polícas americanas, já mostrou sua total inecácia.Nos úlmos anos, o consumo de drogas aumentou,a capacidade de entorpecimento foi ampliada,os preços dos entorpecentes foram reduzidos eo combate empreendido contra as drogas ilícitasprovocou o aumento da violência por todo o mundo.Todo esse processo tem impactado com vigor os

 jovens brasileiros.O Brasil possui a 6ª pior posição no ranking de

mortalidade de jovens no mundo, tendo como

causas principais, em primeiro lugar, os homicídiose, em segundo lugar, os acidentes de carro. De certamaneira, esses dois fatores possuem forte ligaçãocom o consumo de drogas. É evidente que partedesses homicídios está vinculada às iniciavas depromoção ou às tentavas de repressão ao tráco dedrogas, afetando em grande maioria os jovens negrosdas periferias do país; de modo análogo, é claroque parte dos acidentes de carro está associada aoconsumo exagerado de bebidas alcoólicas, angindoprincipalmente, ainda que não só, os jovens de classemédia.

A concepção dominante sobre a relação entre drogase juventude, sustentada em termos de combate,enfrentamento e extermínio precisa ser repensadacom urgência e a Psicologia possui aparato teóricoe práco capaz de ajudar, junto a outras áreas dosaber, a dar respostas efevas para essa questão. Épreciso que mudemos o enfoque, compreendendoque a descriminalização das drogas é o ponto deparda para uma abordagem que trate o usuário não

pela óca da segurança pública, mas sim da saúdepública.

A criminalização do uso de drogas, além de nãooferecer uma solução ecaz para o problema, podecontribuir indiretamente para a intensicaçãoda criminalização da pobreza e pode juscarinadequadamente medidas de higienizaçãosocial, processos que, em úlma análise, acabampatrocinando o aprisionamento de jovens negrose pobres. Vale destacar: a população carcerária

brasileira é uma das maiores do mundo e é compostapor cerca de 70% de jovens.Ao trazer o tema para a saúde e não mais deixá-lo

a cargo das forças policiais, o Estado deve fortalecera rede de saúde mental baseando-se nos preceitos

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da Reforma Psiquiátrica, caso contrário, trocamosa cadeia por clínicas de internação, muitas vezesdirigidas por instuições religiosas que em nadacolaboram para a promoção da reexão do sujeitosobre o uso de drogas e a necessária promoção daautonomia e liberdade.

A políca de drogas deve ser orientada pelaconcepção da redução de danos, estruturada pelasCAPS AD, pelos ambulatórios de saúde mental einternação quando necessária em hospitais gerais.Como um exemplo, é importante destacar que aluta necessária contra o crack, não pode servir comoum mote para a desconstrução do legado da lutaanmanicomial e da saúde mental. Novas estratégiaspodem ser incorporadas, como a experiência dosambulatórios de rua e de equipes de redução dedanos direcionadas para regiões como a cracolância.

É preciso combater as prácas do Estado que tem

se sustentado na políca do medo, através de açõescomo as polícas de internação compulsória decrianças e adolescentes. Ao transformar em polícaa abordagem violenta e compulsória contra famíliaspobres, o Estado apenas demonstra sua ausênciae inecácia na promoção de direitos básicos, taiscomo aqueles garandos no Estatuto da Criança e doAdolescente.

Além disso, é fundamental que as polícasandrogas sejam pensadas no interior do quadro mais

amplo das polícas para a juventude. Sendo assim,é importante considerar que as polícas públicasde juventude devem caminhar na perspecva deampliar as possibilidades de socialização e vivênciados jovens, rompendo com o modelo atual presentenas periferias, marcadas pela presença de bares comoúnicos espaços de encontro. Para isso é necessáriodesmercanlizar a vida social, com o a oferta deprogramas e equipamentos públicos, de cultura,esporte, lazer e inclusão digital, geridos por jovens ecom estrutura necessária para o seu funcionamento.

O Estado precisa desenvolver polícas de mobilidadeurbana, permindo o acesso do jovem a sua cidade econstuindo novos programas de transporte públiconoturno, principalmente aos ns de semana, demodo a permir a circulação dos jovens pela cidadede modo mais seguro, sem que tenham que sedeslocar de carro e sobre o uso de bebidas alcóolicas.

Para que a políca de drogas seja efeva no campoda juventude, será necessária uma mudança profunda

é apenas mais uma manifestação da ineciência deum Estado privazado e da inecácia de uma vidasocial marcada pela mercanlização. A políca dedrogas deve sim ser tratada como uma questão desaúde pública, conectada à uma atuação pública maisampliada que dê conta de dialogar com as polícaspúblicas para a juventude e para a saúde. Anal, a

 juventude deve ser compreendida como sujeitode direitos, capaz de incidir nas polícas públicasdirecionadas a ela que devem ter como horizonte apromoção da emancipação e da autonomia.