caderno-revista 7faces 4a edição

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7faces caderno-revista de poesia Natal RN, Ano 2. Edição 4. Jul.Dez. 2011 ISSN 2177-0794 ©Lúcio Fontana

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A 4a edição do caderno-revista 7faces fecha os dois primeiros anos do periódico. Reúne produções de poetas brasileiros e portugueses.

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7faces caderno-revista de poesia

Natal – RN, Ano 2. Edição 4. Jul.–Dez. 2011 ISSN 2177-0794

©Lúcio Fontana

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Obra da homenageada Poesia Marrons crepons marfins (1984) Rito (1993) Poço. Festim. Mosaico (1996) Esperado ouro (2005) Lábios-espelhos (2009) Habitar teu nome (2011) Ensaio O silencioso exercício de semear bibliotecas (2011) Jornalismo Além do nome (2008)

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7faces

Caderno-revista de poesia

ISSN 2177-0794

Natal – RN

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Errata Na capa da edição anterior, onde se lê “Natal – RN, Ano 2. Edição n.2. Jan.-Jun. 2011”, leia-se “Natal – RN, Ano 2. Edição n.3. Jan.-Jun. 2011”.

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Porque me abasteci, estou de volta. Trago comigo coisas abandonadas. Coisas que os homens jogaram fora: placentas, gânglios, guirlandas, guelras. Marize Castro, Esperado ouro

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www.set7aces.blogspot.com

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Apresentação

Quando já abandonamos a crença em um Deus, a poesia é a essência que ocupa seu lugar como redenção da vida

Por Pedro Fernandes

9

Confissão pelo poema: quando a poesia diz sim a Marize Castro Por Nelson Patriota

20

Habitar, parte 1

Hernany Tafuri

27

Fábio Aresi 31 Iza Quelhas 37

Vanice Ricardo 43 Pedro Belo Clara 46

Entremeio

A (des)construção do “feminino”

Por Henrique Marques Samyn Em colaboração com Lina Arao

Mário Teixeira

54 64

Habitar, parte 2

Adriano Scandolara

77

Vernaide Wanderley 82 Guilherme Gontijo Flores 88

Carlos Lopes 93 Valdir Azambuja 99

A lírica amorosa de Marize Castro

Por Gilfrancisco Santos

106

Fotografia Zé Pinho, Barcos

114

sumário

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Quando já abandonamos a crença em um Deus, a poesia é a essência que ocupa seu lugar como redenção da vida. Wallace Stevens Muito já se escreveu sobre o caráter valorativo da poesia. Sobre o seu papel nesse

mundo tresloucado. Mas, todos parecem concordar, entretanto, que esse valor e esse

papel da poesia não são instituídos por padrões fixos e são, portanto, imensuráveis e

reduzidos a si próprios. A questão não se finda aí, no entanto. E por isso entro para o

rol dos que voltam a ela só para, mais uma vez, dizer que esse fim em si da poesia está

para além do seu próprio estatuto. E que esse fim desempenha um movimento para

além das fronteiras do signo poético e sua dimensão é ampla o suficiente para

entender a poesia com materialidade constituinte da ordem real do mundo empírico;

muito embora o mundo empírico a rejeite, a poesia faz-se força corrente, escorrega

sorrateira por entre suas fendas e aí se instala sendo capaz de reinventar a ordem das

coisas. E isso não tem nada a ver com uma pedagogização gratuita do mundo, um

amolecimento da dureza da racionalidade ou como quer ainda os mais puritanos, um

florear do real. Sobre isso já tenho dito que estamos longe no território da poesia. Ela

tornou-se materialidade inquieta e inquieta o suficiente para ser aquela que aponta

com o mesmo dedo em riste do romance, por exemplo, o caos do mundo.

Sobre o caos do mundo a poesia ocupa a dimensão não de estatuinte de uma ordem,

mas de sua problematização. Se antes o mundo parecia um sistema muito bem

elaborado, com proa conduzida pela figura de um navegante superior que detinha as

coordenadas e dizia – sem dar as caras – qual seu papel na cabine da condução; se

antes o sistema bem elaborado se guiava por regras próprias às quais o homem, reles

mortal, não tinha acesso; hoje o movimento é avesso disso tudo: olhamos para os mais

de não-sei-quantos anos-luz desse mar de estrelas e percebemo-nos sem capitão; o

apresentação

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sistema, até que possui regras próprias e está mais ou menos bem estruturado, mas

noutra ponta, a certeza de não termos capitão e de sermos agora criador-e-criatura,

deu ao mundo uma destituição de sua cartografia e ao homem a vontade real de ser

imortal. A poesia entra aí como unidade maleável no processo de reconhecimento do

mundo-em-si, do homem-pelo-homem, do homem-deus. Isso parece ser suficiente

para ver na poesia como espaço de redenção do homem perante sua existência e,

consequentemente, da vida perante a vida. Nesse processo, instaura-se ainda o

caráter de resistência da poesia.

O sopro da nomeação – instituído na criação do mundo ao Adão – é um sopro poético.

Reconhecer a natureza com tudo o que ela tem, fundamento da linguagem, instituição

do mundo, por extensão fundamento da poesia. Se ela se desvinculou do movimento

sagrado e desceu das torres de marfim, porque os deuses todos estão mortos, a

poesia, logo, ocupa o extenso vazio por eles deixado e firma-se como sentido das

coisas e do mundo. Não deixa de ser posta sob pelos-ares como representação vazia

ou inutilidade verbal, isso pelo modo como o rumo da construção do sistema que rege

a redoma social tem sido pensado, articulado e construído, ao longo de vários séculos

de dominação e exploração. Contemporaneamente, a espetacularização, o

consumismo, a massificação, a coisificação do homem, a nulidade da vida e o

desenvolvimento de uma teia crescente que suga e deglute a todos e nos ameaça (e

muito tem nos transformado) em escravos cativos, mentes obsedadas, esquemas a

serviço de, eis que a poesia resiste. Resiste no ato de reincorporação do corpora

semântico, de refacção dos esquemas verbivocovisuais, da reformulação de sua

própria consciência de ser-poético e firma-se como contra-corrente para destituir a

hostilidade, o absurdo, a falta de lucidez. Firma-se como um grito, um perfil esguio,

esquivo, revolto, retorcido, alimentando-se não somente de si – sua substância vital –

mas deglutindo, antropofagicamente, a indigência, o avesso, o retrocesso. Fecha-se

para si, fala de si-para-si, mas expõe a nu os movimentos de obliteração que a

reduziram em fantasmagoria. Mas sobrevive. E sobrevive.

Aqui se inscreve a poesia de Marize Castro. Não quero reduzi-la ao tom feminino a que

a crítica comumente tem-na associado e o fundo sobre o qual a poeta tem se movido

ostensivamente. Mas quero entender Marize Castro no epicentro de um movimento

escritural que se firma como sujeito-ator no processo de reconstituição simbólica do

mundo pela palavra – signo feminino, mas largamente cultivado por uma colônia

patriarcal. A poeta de Marrons crepons marfins estabelece – ao modo do que fizeram

outras poetas suas contemporâneas e ao modo como fazem também outras poetas

posteriores a si – um novo movimento do signo poético, que primeiro busca no traço

da diferença, mas não deixando de guiar-se por projetos mais solidificados, para uma

refiguração do mundo. Um elo de resistência às paredes da ordem dominante, a fim

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de, como um caruncho que se alimenta dessa estrutura, promover uma destituição do

dito pelo interdito.

O ilhamento da palavra, sua decomposição e recomposição em pequenos blocos, entre

outras figurações estéticas constituem-se, ainda, em novidade pelo modo como o

recurso, aperfeiçoado desde a lírica cabralina, dá enforme a ideia verbal sugerida pela

poeta. A resistência da poesia encontra em Marize muitas faces. Muito embora

estejamos diante de uma urdidura poética ainda em construção, o fabricar seu ora

sugere a reformulação de condutas, ora sugere um mover-se de defesa e destituição

discursiva, ora é crítica sem trégua ao descompasso, à desordem do mundo-fêmea em

constante reformação. Não há espaço para nostalgia, nem para a utopia, o fim-em-si

do poema propõe um mundo outro, de fendas expostas, de novas relações, em que a

poeta se apresenta numa pulsação corpórea de dimensões escusas, pondo à voz o que

foi silenciado, cerceado, cerzido, obliterado por uma ordem unicista, unilateralista e

inteiramente a serviço de uma margem tida como superior às outras.

Pedro Fernandes poeta e editor da ideia

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©Lúcio Fontana

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Marize Castro (1962 - )

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“Não tenho mais dúvida que escrever é meu destino, buscar a palavra necessária, insubstituível, lapidá-la e mesmo assim ainda saber o que o "não dito é indizível" é o meu caminho.” Marize Castro. Entrevista para o Diário de Natal, edição de 13 de dezembro de 2011.

O primeiro livro de poemas de Marize Castro vem a lume ainda em 1984, e é logo bem recebido pela crítica especializada, arrematando o Prêmio de Poesia da Fundação José Augusto. Desde então, a poeta tem se tornado nome e expressão poética de destaque no atual cenário da poesia brasileira contemporânea. Herdeira (pelo menos nos últimos livros já publicados) do sintetismo poético de João Cabral e Zila Mamede – poetas que estiveram a seu tempo, cada um de seu modo, o uso da forma sucinta – e herdeira ainda de um perfil temático já patente no universo de eus-líricos femininos.

Marize Castro é de Natal. Nascida em dezembro de 1962. Formada em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Foi editora do jornal O Galo, da revista Odisséia e atualmente conduz a Editora Una, pela qual tem publicado seus últimos livros. Sua obra divide-se pela poesia e pelo ensaio acadêmico, tendo circulação interna e externamente em antologias, periódicos, jornais e outros meios culturais.

a homenageada

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A edição de Marrons crepons marfins (1984), primeira obra de Marize Castro, é marco não apenas na carreira literária da poeta, mas no que diz respeito ao enforme da literatura potiguar contemporânea.

Divulgação

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Sacralização Te glorifico homem maduro imerso em meus mistérios. Louvo essa busca que não dói e esse sêmen que sacraliza umedecendo meus pecados. Te faço meu Deus enquanto me libertas da dor de ser mulher. Te louvo homem de fé marcado pelo tempo santificado em meu ventre. Rompendo manhãs anoiteço em ti. Sugo teus urros enquanto jorras o líquido da vida vencendo a morte. Milhares de indecências nos aguardam. Seremos circenses (se necessário). Tu equilibrarás dentro de mim tua única espada. Eu engolirei teu fogo e sêmen. Feito concha me insinuo pelo céu da tua língua enquanto santos serenos bolinam meus lábios e seios.

Marize Castro, Marrons crepons marfins

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Confissão pelo poema: quando a poesia diz sim a Marize Castro Por Nelson Patriota

Desde marrons crepons marfins a poesia de Marize Castro vive o paradoxo de ser uma poesia confessional que parece retomar o ponto de partida a cada livro. Esse recomeçar que não cessa é sua permanente novidade. Dito de outra forma, quem depara com a poesia de Marize Castro pela primeira vez dá-se conta de imediata da estranheza – outro nome da singularidade – que perpassa toda a sua poesia. Tal impressão se revela duradoura na medida em que a cada novo livro que a poeta lança parece revelar um novo cenário que se constrói a partir de um cenário interior só parcialmente revelado, como o leitor vai percebendo. Nesse ponto, é uma poesia descontínua, diferentemente, por exemplo, da de Diva Cunha, com a qual guarda certa semelhança na regularidade com que periodicamente se renova.

Nenhum outro poeta norte-rio-grandense cultivou tão intensamente a poética do eu, o pendor confessional, como motivo poético, como o faz Marize Castro traço que, pelo seu caráter repetitivo, se contrapõe às escolas poéticas contemporâneas desde os modernistas de 22, avessos à poesia do si, princípio que prevalece até os dias de hoje. “

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Nenhum outro poeta norte-rio-grandense cultivou tão intensamente a poética do eu, o pendor confessional, como motivo poético, como o faz Marize Castro traço que, pelo seu caráter repetitivo, se contrapõe às escolas poéticas contemporâneas desde os modernistas de 22, avessos à poesia do si, princípio que prevalece até os dias de hoje. Vejamos alguns exemplos desse método poético marize-castrino:

A fúria que há em mim não sacraliza nem ousa. Serpenteia pelos séculos rompendo finas louças (“Serpenteando” em marrons crepons marfins); Sou eterna enquanto posso sou megera em off não é por maldade que me desfaço nas tuas vértebras e adolesço nas tuas pernas (“Megera em off” em marrons crepons marfins); Como chegar a ti se infernos alheios procuro quando os meus estão prestes a virar paraísos? (“Vigília” em Rito); [...] eu quase sou o que sempre fui: uma moça inventada pelas estrelas, dormindo com as nuvens, com o melhor de sua bondade [...] (Esperado Ouro); ou Disfarço-me de calmaria e poucos sabem quem sou [...] (sem título, in Habitar teu nome).

Quem é, porém, esse eu que insistentemente se confessa, mas que só consegue fazê-lo à luz do poema? Deixemos que a própria poeta responda. Mas, antes, uma advertência: não é possível encontrar para tal pergunta uma resposta definitiva, coerente, na obra de

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Marize Castro e para isso é que ela também escreve. Obra em progresso, tentativas de respostas abundam em sua superfície desde marrons crepons marfins:

Sou um romance com todas as nuanças a que tenho direito. minha fusão em humor é pura ironia. vacilo da retórica em pleno cosmo. Ou oceano? (“Vacilo da retórica”); Soy mio fantasma e a mim mesma assusto Tenho paixões pelas navalhas ladies úmidas / nos meus pulsos [...] (“sem título”); Sou um escândalo. A poesia que agüente a mim e a meus versos vândalos de seda e espanto. Ser tão fera não me inquieta. Eis-me em todos oceanos doando o que me é vão domando meu ópio: a solidão (“sem título”).

Em poço. festim. mosaico. novas tentativas de autodefinição se somam às anteriores, porém com tinturas mais fortes, ambíguas e até mesmo andróginas. Enriquece-o e o distingue-o ainda o diálogo com autores e personagens, confundindo suas vozes com a da autora:

Não escrevo como mulher porque não sou mulher. Sou um destroço que boia. Alguém que tem a dor nas mãos e negrumes secretos no sexo [...] o cansaço era tanto que esqueci que também sou homem”.

Repetindo Manuel Bandeira, Marize Castro também assume que “escrevo como quem morre: em hábil verticalidade”.

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Em Rito, essas metamorfoses se amalgamam a outras e se relativizam por razões que ultrapassam o escopo de desejos e valores da autora:

Quiseram-me ostra. e eis-me ostra. Quiseram-me noite. e eis-me noite. Quiseram-me ruína. e eis-me ruína. haverão de querer-me ainda?

Significativamente, em Habitar teu nome as autodefinições ganham formas mais sutis, evitando o explícito dizer-se. No essencial, porém, permanece fiel ao projeto poético original, iniciado com marrons, crepons, marfins. Em suma, não é por ter adotado uma nova forma de autoexpressão que a poesia de Marize Castro se alterou. As mudanças devem ser buscadas em outras áreas, notadamente na eleição de novos temas que, somados aos antigos, contribuem para diversificar a paleta de cores de sua poesia. Leituras e viagens são dois importantes parâmetros dessa renovação, como se pode constatar especialmente nos livros poço. festim. mosaico. e em Habitar teu nome. No primeiro, a lírica clássica sugerida pelas leituras de Homero; na segundo, com Virginia Woolf, Gertrude Stein, Oscar Wilde, Proust, Eluard, a mística Teresa de Lisieux, Borges e uma subliminar presença de Zila Mamede. Mas não se pode descuidar do próprio amadurecimento sentimental, emocional, existencial da poeta, com as inevitáveis reavaliações dos sentimentos e da sua visão de mundo. Tudo considerado, é possível vaticinar que a poesia de Marize Castro tende mais a somar motivos do que a descartá-los ou a reconsiderá-los sob a luz de novas vivências. É certo, porém, que tantas formas de Marize Castro se dizer sugerem que sua poesia também é uma busca por reivindicar um lugar para sua singularidade, alardeando-a e estabelecendo seus parâmetros, sua balizas existenciais, suas bases poéticas. Mas que ninguém se ilude, o confessionalismo que aflora à primeira leitura de Marize Castro e se confirma ao longo de reiteradas leituras de sua poesia está longe de ser o único motivo de sua escrita. As aproximações da poesia de Zila Mamede veem se tornando como registro dominante em alguns poemas, notadamente em Habitar Teu Nome. A abundância de imagens marinhas não é mera casualidade nesse livro. Não se pode ignorar certas experiências de humor negro que remontam a marrons, crepons, marfins, como no poema “a margem”, dedicado à poeta-suicida Ana Cristina César, ou o erotismo atrevido de “sacralização” (mesmo livro), ou “de qual incêndio o amor renasce?” (“Esperado ouro”). Mas é no diálogo com a palavra, ou, em linguagem drummondiana, na luta com as palavras, que a poesia de Marize Castro se espraia sobre a enseada da poesia norte-rio-grandense para lhe acrescentar um novo alento, um chamado em surdina para uma escuta en petit comité. Que secreta relação a poeta estabelece com esse veículo que é a

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própria essência de qualquer cogitar humano? Às vezes (sabemos), essa relação segue um curso óbvio, previsível, mas que logo se esgota; outras vezes, o curso se mostra caudaloso, alternando correntes tranqüilas e escolhos diversos. E aí pode se mostrar fecundo ao poema. seu húmus se prova mais fértil e o poema, mais desconcertante, sabe a mais novo. A poesia de Marize Castro tateia entre as palavras. E que poeta não o faz? Mas ela tem seu próprio norte – seus insights o provam. Veja-se, por exemplo, em “Simetria” (in marrons, crepons, marfins):

A página jaz branca vertical a palavra cai pronta fatal.

Nesse mesmo livro, certo trecho de “Escrever” anuncia:

[...] O ácido no fundo da taça me revela e diz: ― escrever é tua religião [...].

Há ocasiões, porém, em que não é fácil cumprir esse desígnio de escrever. Nesse caso, só resta evocar o poema que jaz oculto a fim de escapar a esse estado apoético:

A teus pés Palavra nada tudo sou Acovardo-me

Largo o remo Sou tua escrava Sirvo-me do bom e do melhor Lustro o cálice em que bebes Resplandeço quando me feres” (“sem título”, in Rito).

De algum modo, Marize Castro tem consciência do estado de precariedade de todo poeta, de quem quer que se aventura pelo mundo da escrita. Para que aconteça o poema há de haver uma predisposição, uma colocação em estado de poesia a fim de que as palavras certas não se deixem contaminar por outras supérfluas, tautológicas,

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dispensáveis. Assim, ela pode falar com propriedade de um estado de sintonia com as palavras que suscitam o poema; enfim, quando a poesia diz sim. Diz Marize:

A mulher que me toca diz: Os poetas ateiam chamas. O homem que me toca diz: Acho cartas de Deus caídas pelas ruas. Quando a poesia diz sim, reinvento-me. Torno-me jovem, temporã, desperta. Beijo animais. Abraço cadáveres. Espanto a morte. Brinco de ascender e cair, ser puta e asceta ser pedra e flutuar, ser cega e ver demais. Quando a poesia diz sim” (in Lábios-espelhos).

Não é demais supor que Marize Castro vive uma relação bem-sucedida com a poesia, após o lançamento de seis títulos nessa área. Outros virão, certamente, se a poeta prosseguir em sua escuta à palavra de vida que fertiliza em poema. Para tocar essa obra, ela lançou mão de todos os meios ao seu alcance. Criar sua própria editora a fim de garantir sua publicação foi seguramente mais um gesto certeiro de sua parte, cuja maior virtude consiste em realimentar o próprio exercício de sua poesia.

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Habitar, parte 1

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Hernany Tafuri Juiz de Fora, MG

Hernany Luiz Tafuri Ferreira Júnior nasceu em Juiz de Fora-MG em 1982. É servidor da Universidade Federal de Juiz de Fora, instituição na qual cursa Letras. O autor ganhou 23 prêmios em concursos literários nacionais e internacionais, participou de diversas antologias de contos, crônicas e poesias a nível nacional e internacional e publicou, em 2008, com apoio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura Murilo Mendes, do Município de Juiz de Fora, o livro de poemas Vertigens do tempo, o qual recebeu o prêmio de Melhor Livro Estrangeiro de Poesia Jovem da Accademia Internazionale “IL Convívio” Castiglione di Sicília (CT) – Itália. Em 2010, novamente com o apoio daquela Lei, publicou, junto aos amigos Alexandre Vieira e Carolina Fellet, o livro de contos III em Contos.

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Alice experimental cresço e desapareço diminuo e continuo não entendendo como sair. por que prosseguir com esta esquisitice? Alice!

Internet - Livre

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Ócios do ofício grafo com o garfo o tanto que parto no prato: tenho asco do saco barato onde baratas passeiam sobre as batatas. será vício ou só o cheiro me basta? será frescura sentir isso nos ossos ou ócios do ofício?

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Não-soneto sibila a sílaba tônica: divido a palavra, átomo por átomo, apenas para obter um poema átono.

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Gumes Do fio da lâmina o frio que percorre a espinha: do brilho dos gumes, em várias partes jaz o lê gu

me

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Fábio Aresi Porto Alegre, RS

Fábio Aresi é formado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e estudante de Mestrado em Linguística pela mesma instituição. Residente de Porto Alegre, onde nasceu, mantém o hábito de leitura e escrita de textos literários como forma de lazer, sendo o conto e a poesia os seus gêneros de maior interesse.

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As telhas rachadas As janelas quebradas As vigas podres O capim alto O cão na varanda As crianças caladas A pequena ciranda Que não roda Tudo cheira a mofo Nos quartos vazios Nos corredores esguios No banheiro escuro Nas paredes com furos Na madeira roída No porão em ruínas Tudo cheira a morte Mas ainda assim é bela Em seus ares de abandono Em seus enfermos contornos Em seus frágeis pilares Ainda assim é bela em seus ares A casa mal-assombrada Que suspira e soluça Pela porta escancarada

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Rua ruidosa, Teu ronronar contínuo me atordoa E teu rugido cheio de revolta Traz ainda resquícios de garoa Rua rabugenta, É na careta de tuas reviravoltas Que percebo o lindo olhar da prostituta E o mendigo a dar cambalhotas Rua ressentida De velhos cartazes e nostalgias O ronco forte dos teus carros Não disfarça ainda a tua melodia Rua repugnante És a mais suja e desgastada da cidade Mas das profundezas das tuas sarjetas Emana ainda um eco fraco de felicidade No andar desenfreado de pneus e pés Ninguém percebe o teu desejo de sorrir

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O dia vai embora e com ele leva todos os meus disfarces Deixando-me a sós com a minha verdade única O espelho mais cruelmente fiel A nudez indesejada São horas perigosas Nas quais percebo o quão terrível é ser eu mesmo São horas de fraqueza e desamparo São horas de franqueza e desespero São lacunas que surgem na alma Mas o álcool há de me trazer algum conforto E o sono, por ele evocado, recolocará o véu sobre meus olhos

Page 36: Caderno-revista 7faces 4a edição

O silêncio me invade como mar em ressaca Toma-me por inteiro, de assalto Num ímpeto de torrencial angústia Que preenche meu vazio com mais vazio Sou presa fácil de suas presas noturnas Encolho-me indefeso e indiferente Enquanto ele toma terreno, sagaz desbravador Inundando tudo ao redor com suas brumas espessas Alastra-se pelos cômodos da casa Deposita-se nos livros, gavetas, móveis e fotografias Toma-me a palavra, o gesto, a expressão E faz da madrugada um estagnado oásis

7faces – Fábio Aresi │ 36

Page 37: Caderno-revista 7faces 4a edição

Iza Quelhas Niterói, RJ

É graduada em Letras pela Universidade Federal Fluminense (1982), mestrado em Letras (Ciência da Literatura) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1990) e doutorado em Letras (Ciência da Literatura) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996). Atualmente é professora adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, na Faculdade de Formação de Professores. Integra o corpo docente do Mestrado em História Social do Território (FFP-UERJ). Publicou Os laranjais abandonados & outras histórias (2005) e A passagem dos sinais (1996)

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A escrita do nome Letras imitam tartarugas: folhas sem traços, águas límpidas, gestos irrepetíveis unem-se ao lume, do claro-escuro, do sol na noite, o que se chama escreviver. Saltam das mãos redes de perguntas por fazer: léxicos incompreensíveis, nomes inscritos em lenços de bolso e gomos de tangerina, cascos de animais sem brilho, opacos e exigentes (o que não se oferece logo ao ver). Necessário ajuste de lentes, a geometria. Mas, uma lancinante dor no abdômen, lembra onde se aninham as vísceras que, distraídos, fingimos não ter.

7faces – Iza Quelhas │ 38

Page 39: Caderno-revista 7faces 4a edição

Na superfície dura e indiferente, de um livro que não se termina, documental, a filiação evoca antes do peso das legendas, as genealogias do subúrbio (lápides dos que cessaram de nascer). Ordenam-se os sobrenomes dos que tem acesso à capa os que podem escrever e assinar sua inscrição, imitar assinaturas dos que emudeceram de dor antes até de nascer. Assim como partir e deixar o exílio consumar a obra que não se escreve nem se autoriza, pois nasce no reino das palavras sem livre trânsito na lupa clandestina de revisores insones e suas manias. (No quarto da casa na esquina, uma pergunta se repete e exaure quem ensina a ser o que é ser filha, mãe?) (Qual pronúncia exata de palavra tão nobre a vazar a culpa

Page 40: Caderno-revista 7faces 4a edição

de trair a carne de quem suporta a dureza da vida na ponta dessa caneta, que verte sangue na raiz das línguas?) Longe de rosas, bricolages, chávenas de porcelana, longe de laços e gotas de esmalte, coloca-se o vinho em taças onde (não) cabe a sede. (De que lua e mar nascemos, mãe e filha? espelhos, vitrines e poças d’água contam as rugas leves. Ecoa o silêncio em pedras, agulhas e cisais.) Sinais de labores antigos, dissimulados fantasmas de doçura, a tagarelar com os mitos e lendas que acompanham noites e delírios, em que os partos se fazem como se escrevem os livros – sujos de sangue e fezes, de pus e urina, do cheiro de chuva e de terra

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em que se enterram (ou se guardam?) a atual leveza dos mortos. Mães guardam grãos de areia no sumo do leite que trazem, nutrem sonhos e espanto, e abandonam, na sombra, a cria que não se cria a dor que não dói e mata, a lágrima que não cessa, os nomes que dizem: nada. Na superfície de uma folha branca, rasura-se a grafia dos nomes. Constelações e rotas, mapas refeitos, enquanto se nasce. Obra do acaso ou destino, mal dita a teia em que se estendem, na ponta da língua, os velhos desenhos de rotas (já não servem mais). Enfim nascemos.

7faces – Iza Quelhas │ 41

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©Lúcio Fontana

Page 43: Caderno-revista 7faces 4a edição

Vanice Ricardo Fortaleza, CE

Vanice Ricardo é formada em Letras Português/Literatura pela Universidade Estadual do Ceará (UECE); Bacharel em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e professora concursada desde 2010 pelo estado do Ceará.

Page 44: Caderno-revista 7faces 4a edição

Decrépito Tantas pedras no caminho tantas dúvidas tantas decepções tantos livros não lidos tantas promessas não cumpridas tanto pão digerido tanto ar respirado tanta água derramada tantas contradições realizadas. Hoje decrépito Vejo que pouco falta para pôr fim ao extravio que causei ao mundo.

7faces – Vanice Ricardo │ 44

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Prédicas

Tanta prédica a Deus tanta prédica ouvida Agora o silêncio, nada mais que razão e fé possam brigar.

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Pedro Belo Clara Lisboa, Portugal

Pedro Belo Clara, nascido em Lisboa, é formado em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou com seus trabalhos literários em exposições de pintura e em várias coletâneas de poesia, tendo sido igualmente prelector de sessões literárias. Colunista e membro de portais artísticos, é autor dos livros de poesia A Jornada da Loucura e Nova Era.

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I. Neste monte de elevação, Desbravando as fímbrias várias De um frígido e cortante vento, Cruzando a rasteira vegetação, Em momentâneo miradouro Quedo, emudecido, o olhar que Mira e compreende a vasta visão Que se anuncia com o descerrar De negras e carregadas nuvens. Tanta via que despojada se revela, Abrindo a infértil terra, violada; Tantas rotas janelas, esquecidas, Salpicadas de sonhos extintos, Já fermentados em vagas ilusões; Tantos suspiros em suspenso, Condensados em multiplicidade, Como névoa pairando por aquele Lugar abandonado, bem perto Dos apertos do solitário coração… E, por fim, naquela dista distância, Altivas e sublimas ainda se alteiam As torres de betão, abertas à erosão Das estações e dos dias cuspidos, Sem vestígio algum de miseração Pelas débeis Almas que encarceram… Homem de presença denunciada, Ainda não renegaste a condição De primogénito em tempo sombrio? Árduo será o libertar da amarra Que ornamenta quem não almeja A libertação da ruína que o envolve…

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II. Era meio-dia e o obscurecido sol Soltava seus dedos esguios pelo Amplo campo que de desolação Se adornava com insana vaidade; Era meio-dia e uma sombra corria Por alamedas de secas árvores, Retorcidas pelo Tempo e pelo cheiro De uma década já putrefacta em Tonéis de lenta maturação final, Caminhando em direcção da Cidadela capitulada, extinta; Era meio-dia e anunciou-se a Palidez absoluta, tingindo a luz Fosca que, a custo, iluminava Os espaços então ocultos – eis As grades das celas não visíveis! –, Aqueles que uma sombra inócua Absorvia no imenso turbilhão Que a cada passo crescia em Seu ventre vazio e enegrecido; Era meio-dia e um uivo ecoou, Um grasnar vibrou e um grunhido Atemorizou a moribunda alvura Das coisas simples e leves que Pairavam, intocáveis, quase inertes. Formou-se um túnel e um aspirar Iniciou uma perturbadora melodia, Despertando-lhe os vis encantos – Assim a sombra mergulhou no Imenso lago dos sonhos sombrios.

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III. Passa, atravessa os vastos pântanos Das memórias nunca evocadas, Penetra na penumbra que paira Pela espessa bruma que flutua Sob um rude chão de calcário; Vai, caminha se te atreves! Ou enlouquecido corre como quem Cede ao medo palpitante e oculto… Puxa a tua negra capa para o rosto – Se decidires explorar a floresta Das cabeças empaladas e mirradas –, Puxa-a e cobre o teu olhar perante A presença das aves enfeitiçadas. Esquiva-te do seu ácido regurgitar! Vai, afasta essas rotas cortinas E encara o hálito bafiento que ferve Pelas veredas do Vazio facínora, O fétido sopro do sepulcro inviolável, O aterrador espectro da escuridão E a investida da Mão decepada. Vai, vai se Alma possuíres ainda; Vai que os archotes de pó de súbito Se encarregarão de absorvê-la… Mas, ainda assim, se pulsar o toque De algum notável sentimento, Vai e deixa-te engolir pela imensidão. Só não perturbes o frágil silêncio Na alameda dos mortos olvidados…

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IV. Nesta corte onde o Bobo é Rei, Corre o vinho não fermentado Que corrói a casta flor de lótus, O delicado nenúfar que navega Por rios de estagnada corrente. Esvoaçam sorrisinhos, saudações Causadoras de náuseas pelo Odor da falsidade que delas Se desprende frequentemente; Trejeitos, preceitos que palpitam Ocos, de tão fútil excitação… Corte corrupta esta, quase cómica, Com suas galerias recheadas de Gravuras antigas sobre nobrezas Apenas aparentes – a podridão que Vive no lado oculto da historia… –, Dinastia de coroas enferrujadas, Marionetas daquele cujo rosto Nunca é revelado ou descrito… Há cavaleiros que se debatem Por uma causa deveras ilusória, Um exército siderado pela chefia De um réptil de narinas de fogo, Fidalgos que se comprometem Com belos cadáveres, vulneráveis Às suas vagas promessas, donzelas Saltitantes mergulhadas no volteio De sua insanidade, adornadas pelos Minérios da sua vaidade e pela poeira Da sua desconcertante, louca Era, Nobrezas obesas, prestes a rebentar No auge de todos os seus vícios, Um clero de olhar esbugalhado E de rostos lívidos e esqueléticos. Às refeições, seus cães deliciam-se Com os mais requintados molhos, Enquanto que os restantes sorvem A sopa do vazio e o mosto do ar, Tentando em silêncio saciar uma Fome e uma Sede que amiúde ruge, A única prova de que seus deploráveis Corpos permanecem ainda vivos, Entregues aos comandos de um

Qualquer milenar e infame feitiço.

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V. É gélido o vento que sibila pelas montanhas E que horroriza o mais desprevenido dos olhares… Crescem, selvagens, as sarças em um terreno Entregue aos maldizeres das pérfidas bocas; Crescem e enclausuram o frágil frasco Que protege a derradeira salvação. Ah, quantos múltiplos ângulos se contam Entre a divergência do sonhado e do constatado!... Do negro poço extrai-se o seco e amargo pó, Da pedreira jorra a água da contaminada nascente Que sacia a incessante sede que palpita Nos palatos da decadente civilização. Eles, moldes falantes feitos de cera barata, São a sola que, de tanto usada, de tanto pisada, Molda-se ao formato do pé que a manipula! Seus templos, forrados a chapa metálica E opacos pela monotonia do aço embaciado, Começam por se render às heras que investem Sem piedade pelas colunas electrónicas – No cerne da sua devastação, encerrada E acorrentada ao forte vime que se impôs, Jaz a vontade de um Ideal renegado há muito, A semente de algo tão desejado no outrora, Entregue aos processos da sua putrefacção.

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©Lúcio Fontana

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o objeto do teu amor não existe Ovídio

o mundo desaba, eu me encolho. diante do espelho ainda espero. quis muito escrever assim: desesperada, trágica, dançarina. arquejos são lançados ao rio. a brevidade da paixão é aterradora. por que querer tanto? esta escritura, ditada por ancestrais, é a minha única herança. é tudo o que eu tenho e tudo o que eu sou. quem quebra o meu coração, devolve-me a alma. escrevo só o que a dor dita, barulhentos gatos me acordam. será que deste sofrimento virá a sabedoria? estilhaçada ainda espero. minha vagina dói, desassossegada, feito moça de província traída no último instante. levaram-me coisas preciosas. cólicas enquanto sangro. meu amor, não volte, o que você procura não está aqui fecho a porta e a sua bondade agoniza.

Marize Castro, poço. festim. mosaico

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A (des)construção do"feminino"

entremeio

Edvard Munch – Madonna (1894-1895)

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A (des)construção do “feminino” Por Henrique Marques Samyn com colaboração de Lina Arao

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Um aspecto relevante da obra de Marize Castro, possivelmente ainda não analisado com a devida atenção, é o modo como os aspectos formais de sua poesia refletem questionamentos mais amplos nela abordados. Pode-se, por conseguinte, indagar sobre o modo como essa arquitetura do texto poético se articula com processos críticos que extrapolam os limites do estritamente literário, em particular no que tange à condição da mulher. Seria ocioso realizar aqui uma digressão mais dilatada sobre a inserção histórica das formas e dos modelos poéticos. Evoquemos apenas um par de exemplos. Primeiro, um caso notório e representativo: o sentido teológico subjacente à estrutura formal tripartite da Comedia de Dante Alighieri, sobretudo no que tange ao emprego da terza rima − de tal modo elaborada que o verso inicial de cada estância se reflete no terceiro, numa relação mediada pelo verso intermediário, que opera simultaneamente como elemento de divisão e de união entre aqueles. Há aí tanto um reflexo da própria estrutura da Comedia (em que o Inferno e o Paraíso se opõem simetricamente, mediados pelo Purgatório) quanto uma imagem da marcha da alma a caminho da salvação (numa tríplice estrutura temporal, constituindo o verso intermediário o momento de transição para um futuro antecipado, a partir da transformação do presente como tal no passado, refletida na relação entre o primeiro e o terceiro versos); e, finalmente, uma evocação do pensamento trinitário, em que o Pai gera (primeiro verso), o Filho é gerado (terceiro verso) e o Espírito Santo (segundo verso) é "espirado". Um segundo caso que pode ser evocado é o da balada − forma que, a despeito das variações no que tange à métrica e à estrofação, revela-se como modelo característico da poesia popular medieva, constituindo efetivamente um contraponto pragmático à ética dos épicos e mesmo à consolação religiosa; nesse sentido, a própria diversidade formal reflete uma pluralidade de mundivisões que remetem à mentalidade popular, que registra desde crenças pré-cristãs até notáveis desconstruções das hierarquias medievais. Feita essa breve introdução, passemos a tratar da obra de Marize Castro. Marize inicia sua produção na década de 1980 − portanto, num momento em que a busca pela coloquialização do discurso poético, empreendida pelos autores setentistas, é reelaborado e perspectivado em função da tradição literária; tarefa já iniciada por Cacaso, ainda nos anos 70, e que seria continuado por uma poetisa como Ana Cristina César. Esta a hipótese que apresentaremos, nos parágrafos seguintes: Marize Castro desenvolve uma relação dialógica com esse momento histórico, fazendo-o a partir de um procedimento determinado pela descontrução de topoi consolidados − o que se reflete nas suas opções formais.

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Um exemplo desse procedimento pode ser encontrado em Fenecer, poema de Marrons, crepons, marfins (1984). Já nas estâncias que abrem o poema, deparamo-nos com imagens que remetem a um conjunto de topoi construídos em torno das mulheres:

Feneço na ausência dos homens cor de bronze do prepúcio de púrpura. Quem me lapidou esqueceu de me tirar o veneno. Ateio fogo na minha própria teia. Como quem preserva fortalezas corto minhas/alheias veias.

Na estrofe inicial, assoma a oposição entre a passividade e a entrega (femininas) em contraste com a potência e a virilidade (masculinas). É relevante notar que os homens, cujos atributos corporais são descritos, estão ausentes, o que remete a uma relação de dependência: é em função deles que o feminino se afirma − conquanto esse ato se resuma ao fenecimento, qual consequência imediata de um desejo não proferido. As estrofes seguintes mobilizam um outro topos, não de todo apartado do primeiro: o da mulher como femme fatale − aquela que em sua natureza encerra o perigo, que traz na saliva o veneno e no corpo a cilada. Ainda que "lapidada", disciplinada pelas normas sociais, a mulher mantém intocada sua "essência", qual se sua mera existência implicasse um permanente risco; são como selvagens bárbaras num mundo civilizado pela masculinidade, que inevitavelmente as condena a fenecer. Não obstante, tão intensa é sua destrutividade que acaba por voltar-se contra elas mesmas − o que, aliás, isenta o homem de qualquer ação agressiva. É sempre a mulher quem agride, inclusive a si mesma; é ela quem ateia fogo à própria teia (a mulher como aranha: imagem sempre vinculada à viúva negra, ficção vulgarizada a partir de uma imprudente generalização biológica). O exercício dessa força entrópica tem por efeito a derrocada de tudo o que a cerca: preservar suas fortalezas, assegurar sua própria existência, implica cortar suas veias e as alheias. Na essência feminina, habita a plena destruição. Até esse momento, o que encontramos foi o resgate de um conjunto de tropos costumeiramente associados às mulheres. Está Marize meramente repetindo a tradição? Essa apressada conclusão conduziria a um equívoco fundamental. Eis que a estrofe seguinte, a penúltima do poema, encerra uma inflexão determinante:

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Feneço, infinitivamente, na presença dos homens que têm grandes pés e nenhuma fé. Que me rasgam a carne e me sepultam em suas glandes.

Aqui, a relação é invertida. Retorna a referência ao fenecimento − o que concretiza uma ruptura no poema, como se a poetisa começasse a reescrevê-lo; todavia, se inicialmente os homens eram apresentados como ausentes, agora é a subjetividade lírica que se revela em sua presença, confrontando seus "grandes pés" (a opressão) e sua "nenhuma fé" (o cinismo). Não haveria aqui um gesto que implica o reconhecimento da arbitrariedade dos topoi anteriormente apresentados, condição de possibilidade para sua contestação? Até então, a voz poética absorvera as categorias que lhe eram imputadas; agora, denuncia o próprio processo de categorização: são os homens que lhe "rasgam a carne" e a "sepultam em suas glandes"; são eles, enfim, que promovem a destruição daquela que se submete aos seus desígnios, domando-lhe o corpo e ferindo-lhe a carne. É esse o momento crítico, em que tudo o que antes fora afirmado é posto em xeque, suscitando a pergunta crucial: o que particulariza, enfim, esta mulher, a quem toda categorização só pode ser aplicada de modo opressivo e arbitrário? É dessa indagação que trata a estância final:

Não fosse eu uma pessoa de múltiplos escudos viveria a vida toda com um único vestido de veludo.

Não há aqui uma definição, mas um gesto de absoluta recusa. Alvo de uma rede de poderes que contra ela investem, resta à mulher erguer seus "múltiplos escudos" − não contra os homens ou contra si mesma, mas contra as tentativas de reduzi-la a uma "essência", do que resultaram os lugares-comuns figurados nas primeiras estrofes do poema. Índice dessas categorias é precisamente o "único vestido de veludo" mencionado nos versos finais: aquilo que veda e vela o corpo, impondo uma "natureza" feminina estanque ao que, na verdade, ultrapassa essas expectativas redutoras. O que postulamos, enfim, é que Fenecer trata de um processo de emancipação da mulher que, por uma via negativa − ou seja: recusando toda e qualquer determinação −, reconquista sua liberdade, afirmando sua condição irredutível. Há que se observar, por outro lado, como isso se relaciona aos aspectos estéticos do poema, construído de modo livre, mas não desleixado, como logo demonstra uma leitura que observe suas particularidades formais.

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Edição de Habitar teu nome (2011)

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lgação

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A primeira seção do poema, composta pelas quatro estrofes iniciais, apresenta breves estâncias de três versos, compostas por versos curtos: um quarto deles não ultrapassa as seis sílabas; apenas dois superam essa medida, e há mesmo dois versos compostos por uma única sílaba métrica (o nono e o décimo segundo). Em decorrência disso, esse segmento do poema − que, como vimos, constitui precisamente a parte em que a mulher é definida e categorizada − suscita uma leitura entrecortada, cheia de rupturas abruptas, como a emular a asfixiante situação em que se encontra aquela que é alvo dos dispositivos repressores. Isso é ressaltado sobretudo pelos contrastes entre alguns conjuntos de versos: o par formado pelo quinto e pelo sexto verso (um heptassílabo sucedido por um trissílabo); os três versos que constituem a terceira estrofe (a um dissílabo se segue um hexassílabo, que é sucedido por um monossílabo); e toda a quarta estrofe (em que se observa uma ordem decrescente, formada por um eneassílabo, um hexassílabo e um monossílabo, como a figurar um discurso que se encerra − espelho formal do encerramento dessa primeira seção do poema). Em contraste com isso, observem-se as duas últimas estrofes. Na penúltima, os versos mais curtos são hexassílabos, havendo três versos que superam essa medida. No meio da estrofe, há um decassílabo (até aqui o maior verso do poema); a encerrá-la, um eneassílabo. O ritmo do poema, portanto, se expande, no preciso momento em que emerge o discurso crítico − como a figurar a conquista de um espaço de fala. Já a estância final, em termos métricos, representa uma síntese formal das seções anteriores: conciliando versos curtos (o primeiro e o último) e longos (inclusive um hendecassílabo, o mais longo verso de toda a composição), anuncia a apropriação definitiva do discurso. Não por acaso, à afirmação da liberdade que aqui tem lugar corresponde um rigoroso equilíbrio formal, em que os heptassílabos (antepenúltimo e último versos) constituem um ponto de referência: os versos que abrem e encerram a estrofe possuem, respectivamente, quatro e três sílabas (que, somadas, comporiam o redondilho); e o verso hendecassilábico se situa entre um verso de quatro e um de sete sílabas, em que poderia ser decomposto. Analisemos um segundo poema em que a desconstrução do "feminino", na obra de Marize Castro, surge associada a procedimentos formais específicos. Se antes lemos um poema da obra inaugural de Marize, agora abordemos um de sua produção mais recente: Habitar teu nome (2011), o que nos permitirá vincar a constância dos referidos questionamentos em sua obra poética. Meu coração, poema constante do mencionado volume, já por seu título remete a um dos mais antigos estereótipos relacionados à percepção social da mulher, supostamente mais suscetível à influência dos sentimentos (portanto, menos racional); o que, em particular no que tange à produção literária, condicionou tradicionalmente as mulheres à elaboração de uma literatura confessional e marcada pela emotividade. Evidentemente, essa "literatura feminina", menos rigorosa porque mais próxima do desabafo, acabaria destinada a um lugar menor em oposição à literatura "séria" − a praticada por homens, cuja ponderação estética estaria vinculada à sua natureza. Todavia, o que Marize Castro faz em Meu coração é subverter as expectativas ensejadas pela vinculação do título a essa perspectiva conservadora.

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A estrofe inicial inverte o discurso confessional ao estabelecer um contraste entre sentenças afirmativas e negativas que, de um lado, recusa os atributos da estereotipada "natureza feminina" e, de outro, identifica o coração − fonte e raiz simbólica da afetividade − a signos que representam a impassividade e a ausência de sentimento. O verso que a encerra, por sua vez, enfatiza a oposição à disposição para a entrega que, tradicionalmente, é associada a uma suposta "passividade natural" feminina, e que ecoa no verso isolado que constitui a segunda estrofe, à maneira de uma resistência absoluta:

meu coração não dói meu coração é pedra meu coração não chora meu coração é rocha meu coração não quis não quer

Ao leitor superficial, pode parecer que a terceira estância desdiz o que anteriormente se propusera: ali, o poema adquire um tom que aparentemente se aproxima − embora, como mais à frente veremos, essa semelhança seja ilusória − do discurso tradicional, uma vez que a subjetividade poética associa o coração a um conjunto imagético que enfatiza precisamente a emotividade e o excesso. Não obstante, uma leitura cuidadosa revela a presença de elementos que se opõem à perspectiva conservadora. Analisemos, mais detidamente, essa terfeira estrofe e o verso que a sucede:

meu coração é bomba lacrimejante, andrógina, alucinógena meu coração implode arde explode

Dois aspectos demandam uma leitura mais cautelosa. Em primeiro lugar, o conjunto de símiles presentes no primeiro e no segundo versos não é consistente: se a imagem de um coração "bomba lacrimejante" ou "bomba alucinógena" remetem a uma concepção tradicional da natureza feminina, a "bomba andrógina" − estrategicamente situada como item medial − remete a algo que transcende a oposição entre os sexos; por conseguinte, o que assim se revela é uma subjetividade poética que não é nem feminina, nem masculina, mas uma e outra ao mesmo tempo. Desse modo, o sentimentalismo ("bomba lacrimejante") e a irracionalidade ("bomba alucinógena") não são figurados como atributos do coração feminino, e sim do coração humano. O segundo aspecto é a sequência de versos [implode > arde > explode], indiciador de um processo por meio do qual esse coração de que trata a subjetividade lírica colapsa, de início, para dentro; depois, para fora, num processo de destruição mediado por uma "ardência" que pode ser associada tanto ao vigor vital quanto ao desejo erótico. Esse evento, simultaneamente íntimo (porque implosivo) e expansivo (porque explosivo), é não obstante autodeterminado pelo coração (enquanto bomba), que por sua vez já foi associado à condição humana em si; o que está em jogo, enfim, é o próprio gesto humano de abrir-se

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para o mundo por intermédio da afirmação da emotividade. Temos, portanto, um movimento oposto àquele anunciado nas estrofes iniciais. O sentido dessa contradição será estabelecido nas três estrofes que encerram o poema. Na primeira, surge uma nova tentativa de definição, que novamente agencia três elementos:

meu coração é saga selva, sabre

A desarticulação entre os símiles evocados é, desta feita, mais nítida. Entender o coração como "saga" significa afirmar que possui sua própria história, codificada numa narrativa porventura já expressa nas estrofes iniciais? Entendê-lo como "selva" implica afirmar sua condição selvagem, inexplorável, cerrada, centro de disputas figuradas pelas definições contraditórias anteriormente expostas? Por fim, entendê-lo como "sabre" aponta para sua capacidade de ferir seu portador ou quem dele se aproxima, o que remete à força de letalidade − já antes anunciada pela imagem da bomba? Talvez o único elemento comum a esses três símiles seja o que neles há de periculosidade, para si e para os outros. Nessa medida, lidar com o coração − instável, avesso ao controle − é jogar com o risco. O que nele há de perene é sua condição cambiante, que determina a provisoriedade de qualquer definição. Afirmar o que é o coração, neste momento, é negar o que foi antes ou o que será no momento seguinte. É isso o que reiteram as duas estrofes finais:

sozinho goza é

Se o coração sozinho goza, é porque segue apenas suas próprias leis, estando aí o que o aparta da racionalidade; se o coração goza sozinho, é porque nesse ato realiza a concretização do desejo. Esta, portanto, a única afirmação possível: o coração "é" − para além do que sobre ele pode ser dito. Consideramos, por conseguinte, que Meu coração é um poema que subverte as expectativas associadas à poética de autoria feminina, bem como à figuração lírica da subjetividade da mulher. De um lado, negando os atributos a ela tradicionalmente associados; de outro, enfatizando a emotividade como aspecto constitutivo da subjetividade humana, para além dos condicionamentos associados pela visão conservadora à especificidade feminina, o que enfatiza o poema de Marize Castro é a instabilidade da própria "natureza" humana, bem como a impropriedade de qualquer tentativa de definição estanque. A própria indagação pelo "ser mulher" tem, portanto, esvaziado o seu sentido, o que radicaliza o questionamento que percebemos em Fenecer. No que diz respeito às particularidades formais de Meu coração, note-se que a primeira estrofe, rigorosamente construída sobre a fórmula "meu coração é ...", é composta por hexassílabos, enfatizando o contraste entre as sentenças afirmativas e negativas que o compõem. A segunda estrofe, monóstica, implica uma ruptura, por meio de um verso dissilábico; a seguir, a terceira estância inicia resgatando a forma da estrofe inicial − pela

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medida hexassilábica −, mas a sequência de versos que a completa (um hendecassílabo, um hexassílabo e um monossílabo) instaura a irregularidade que, em termos rítmicos, anuncia a falência das definições. A partir daí, a inconstância se prolonga até o final do poema: há apenas um solitário resgate da medida hexassilábica, no verso inicial da antepenúltima estrofe, o que tem apenas o efeito de enfatizar a impossibilidade da estrutura fixa. O quatro versos finais são, nesta ordem, um trissílabo, um dissílabo e dois monossílabos, o que em termos rítmicos sinaliza o progressivo silenciamento do discurso − que antes ensaiava a definição, mas agora já a percebe impossível. A tensão entre segmentos metricamente regulares, com estruturas rítmicas estáveis, e o emprego de versos que implicam rupturas, instaurando a imprevisibilidade na arquitetura poemática, espelha − no que tange à forma − o processo de desconstrução de estereótipos e construções essencialistas empreendido por Marize Castro em sua poesia. Para além do que diz o poema, o próprio modo como se exerce a dicção poética constitui, por conseguinte, uma instância de contestação, que desestabiliza os discursos consolidados. Isso, evidentemente, não quer dizer que haja uma associação direta entre a regularidade métrica e o conservadorismo; a esse respeito, e para evocarmos outro nome da poesia brasileira contemporânea, é suficiente observar o modo como Glauco Mattoso subverte a forma soneto, utilizando estruturas rigorosamente metrificadas. Tudo está no modo como se conjugam a forma e o sentido. No caso de Marize Castro, o que logo se torna claro é como seu discurso poético dialoga com vertentes do pensamento feminista contemporâneo, herdeiro de pensadoras como Mary Wollstonecraft − que, já no fim do século XVIII, reclamava para as mulheres, no âmbito do pensamento iluminista, uma condição semelhante à dos homens, a quem propriamente de destinavam os novos ideais de liberdade; e, já no Brasil, Nísia Floresta, que traduziu a obra capital da pensadora inglesa, também exigindo para as mulheres o direito a uma educação que não se limitasse às atividades domésticas que tradicionalmente lhes eram ensinadas. Na esteira dessas precursoras, o feminismo moderno emerge como um movimento de explícita contestação das subjetividades estáveis, concebidas ao modo iluminista; em suas modalidades mais questionadoras, acaba por investir contra todo o conjunto de elementos que fixavam a identidade, conduzindo a um pensamento essencialista que determinava, com particular ênfase, o sentido de "ser mulher". Assim, Marize Castro avança incessantemente contra discursos reguladores, (re)visitando livremente o "feminino" de modo a mobilizar, conforme o seu interesse, aquilo que tradicionalmente o constitui − nunca a fim de reiterá-lo, mas sempre a fim de subvertê-lo (invertendo, por exemplo, a relação de poder que condena a mulher a um espaço inferior, de modo a torná-la agente e senhora de sua vontade) ou de desconstruí-lo (levando à ruína o que, ao olhar conservador, se afigura como sendo a "natureza feminina"). Em vez de associar-se a qualquer discurso em torno de formas normatizadas de "ser mulher", o que a poesia de Marize Castro enfatiza é o poder de autodeterminação: cabe à própria subjetividade redefinir sua própria configuração, construindo a cada instante sua liberdade.

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Em meio à telas, espátulas, tintas, pinceis, esponjas e retalhos Mario Teixeira, artista plástico, natural de Belo Horizonte – MG, transgredia a obviedade das brincadeiras na infância. Filho de pintor – autodidata – as primeiras experiências com a pintura, apesar de efêmeras e imateriais, já assinalavam um traço único. Aos 35 anos, Mario Teixeira – cuja formação é Psicologia - desafia a tênue linha entre a figuração e a abstração, através de texturas, contrastes e traços que constituem verdadeiros simulacros de um imaginário inconstante, ácido, crítico e, por que não dizer, efusivamente lírico, em verdadeiras experimentações de óleo sobre tela. Seu estilo – paradoxal e bastante emblemático, para quem dialogo constantemente com a música, com a literatura e, principalmente, com o caos urbano – inspira-se no expressionismo para ressignificar a pintura, através de uma técnica única – de óleo sobre acrílica em tela – que também marcou a obra de seu pai, em quatro décadas. A série que será apresentada a seguir reúne o que há de mais latente na obra do artista – uma densa saturação cromática, fruto dos tons fechados que imprimem o estilo do autor.

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Habitar, parte 2

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Adriano Scandolara Curitiba, PR

Adriano Scandolara (1988) é bacharel em Letras e aluno do mestrado em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná. Trabalha como tradutor freelancer e contribui para o blog de poesia escamandro.

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Camus nos infernos Há muito que as mãos são mordidas pelas bocas que alimentam. Entre as sombras não há nome nem rosto: se cansadas, revezam-se como tratadoras de Cérbero. E fumam nos intervalos, apagando bitucas nos asfódelos, foi para o treino desses momentos que afinal viveram. Feridos, os dedos levam o cigarro aos lábios num fumacento suspiro, sonho invejoso, ser Sísifo.

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Sem pudor A alvorada apaga a noite despe os enfeites e mancha de alvejante o vestido preto decotado levemente levantado. Roma não foi erguida em um dia mas (o que a Aurora não apagou) queimou por toda a madrugada. Com cabeleiras de fogo e fumaça são também marcadas minhas lembranças, ferro na brasa de seus lábios.

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Da procura das razões Talvez ter nascido sob um astro ruim com o diabo no couro, um prato de bile negra, visões de cavalos brancos e manequins quebrados demônios passando trotes telefônicos, toques que ecoam num quarto vazio onde a poeira paira iluminada por um televisor, e a janela dá para um horizonte repleto de construções abandonadas pela metade.

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Imago Morfeu, na minha cara, bateu portas de marfim embotadas. Coxas grossas entreabertas e sangue nos lençóis mão de unha vermelha me oprimindo a garganta, ominosa mariposa contra a parede, o corpo em abluções poluto. Augúrios que me contento em não saber decifrar.

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Vernaide Wanderley Recife, PE

Vernaide Wanderley é paraibana de Patos. Na década de 1960, foi para o Recife, onde reside até hoje. É formada em História Natural/Biologia pela Faculdade de Filosofia do Recife, tem mestrado em Geografia pela Universidade Federal de Pernambuco e Doutorado em Geografia com aporte em Literatura pela Universidade Estadual Paulista de Rio Claro. Participou do grupo que reabriu a União Brasileira dos Escritores em Pernambuco (UBE-PE), em 1985, ficando três gestões consecutivas no grupo dirigente da entidade. Anos antes, entre 1980-83 participou do Movimento Pirata, depois Edições Pirata. Tem publicações em jornais locais e nacionais e tem contribuído para antologias dentro e fora do Brasil. Publicou no gênero poesia Tatuagem (1981), Litorgia ou: poemas com rimas vermelhas (1983), Prêmio Othon Bezerra de Melo e Prêmio Guararapes e Rota dos inocentes (1992).

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©Lúcio Fontana

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A louca Portões abriu desafiando o lacre das ogivas que ornavam a ruína dos casarões. E em seu banho de fogo da estrada afivelou o vento no cano das botas curtas estendendo seus tremores às janelas dos prostíbulos. Desfila hoje como um rio sem batismo desviando-se dos antepassados a recriar castelos que encontrou. Possui a ausência dos véus velando sua noite sem fim e parece mais mesa sempre posta nas infinitas ruas sem casa.

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Liturgia das tempestades Aprendi a caminhar no semicírculo do amor pintar favos de luz nos seus eclipses ser deus com a sabedoria carnal do homem porque o homem é deus quando sobe ao ringue. Aprendi a rasgar os linhos à luz-mormaço porque o dia queima a carne exposta. Não mais que isto – que é dor dobrada e atirada nas curvas da manhã seguinte. Aprendi a fazer dos olhos marcador do tempo acusando ensaios e saídas de cada gesto. Espalhar no vento terminal sementes parcas à liturgia do gozo necessárias. Sou no espaço destes versos um deus febril atravessando amantes com as tempestades que se contorcem nas vigas de meus braços.

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Intern

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Limalhas de sangue Já não pesa para ela o gesto libertário do ritual da posse que prossegue com círios e incensos derramados na alma. Mas o bronze do peito se esfacela a cada orgasmo e as limalhas espalhadas na pele têm a cor das cerejas estragadas cativas do pote.

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Guilherme Gontijo Flores Curitiba, PR

É tradutor e professor na Universidade Federal do Paraná; publicou traduções d’As janelas, seguidas de poemas em prosa franceses, de Rainer Maria Rilke (Ed. Crisálida, em parceria com Bruno D’Abruzzo), e d’A anatomia da melancolia, de Robert Burton (Ed. UFPR, primeiro volume).

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ANTES DO CORPO O OLHO sobrevoando os movimentos da estação – um ramo úmido e negro sem aparição de pétalas – antes do corpo o olho encontra antes do corpo o olho foca antes do corpo o olho antes do corpo vê (não se trata de olho no olho – fique certo – olho no olho não resolve) e assim passado para a mão ela afaga – sim um quase bater – seu afago sutil pelas coxas e passa pelas nádegas pickpocket essa carícia trocada na mesma medida em que não percebida

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ENCONTRAR NA CARCAÇA DUM PÁSSARO destroçada por dois gatos bem nutridos (gratuidade do ato crueldade – palavra inventada humana demais pra contar esse ato – sem pecado sem perdão) encontrar nesse corpo espalhado pela casa enquanto hesita entre uma pazinha ou um papel higiênico enquanto lembra de pegar um saco plástico não muito grande/não aquele azul enquanto afasta os gatos que teimam em brincar com a comida – aliás nem comida enquanto afasta os gatos que teimam em brincar (ponto) encontrar uma réstia de vida não no pássaro morto/destroçado/espalhado pela casa nem nos gatos que de bem nutridos seguem a vida sem procuras uma réstia de vida um soco na cara um beijo por detrás da orelha uma réstia ainda e sempre por se encontrar

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© Regina Gulla. Verbo Azul

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PIVA NO PARADISO do topo dum arranha-céu acinzentado na miséria encarnada enrabo o rabo do cometa

céu acima línguas de estrela em pau-de-arara que me aguarde de sarjeta em riste dentro do meu matulão

as divisórias dementes do cérebro que registra meu delírio de delícias o caminho da infinetesimal virtude celeste atropelado pelo esquema métrico da periferia

anjinhos de rilke tomam sol por baixo dos lençóis catedráticos histéricos do meio dia em mim a noite permanece centro da medula farol que leva a nada apenas mala na mão

visão do paradiso desbunde metafísico do nada onde coxas ardentes lábios de cereja e

rabo louco nos convidam um café com mescalina máquina do mundo descabelada ecce homo depilado em gosto pela algaravia

meninos comentam a ascensão dos escritórios de advocacia meninas preferem colar velcro no canto mais à mostra as velhotas de plantão cochicham beatamente “eis a carne de cristo”

as trombetas ensaiam o bolero do fim dos tempos a morte ensina a um molusco absorto as sentenças do infinito em lastros feitos de alquimia

na indiferença cósmica da escola do suicídio do corpo orquestra desvairada do sucesso

encaro o hápax hediondo a bunda-fera de teresa dávila seus olhos rodopiantes nas trincheiras infantis do caos num misto

na indiferença ela questiona os fundamentos sexuais da caridade a carniçada empalhada o silêncio ofensivo da esperança além da carne a fé cabreira

de resposta selvagem beijos através do vidro heliogábalo concêntrico no olho onde quase existo

alçada em meio aos serafins assexuados nada disso a carne invade todo o empíreo rosa

encarnada inumeração desbotando lentamente a flor celeste-insana do meu cu do meu cu em bandeira

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Carlos Gomes Recife, PE

Carlos Gomes é formado em Letras. Publica no site Outros Críticos e é responsável pela edição do e-zine pq? e pela coletânea Bootleg. Em 2011, lançou o e-book corto por um atalho em terras estrangeiras (contos).

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êxodo, (cantos III, VI e IX) éramos doze cavalos seguíamos distante dos portos não éramos trote, voo ou tampouco xote ainda uma vontade imensa de sonhar essa dança, esse viajar matreiro como iluminação que revela outra atmosfera uma mais tenra, cheia de dentes nas bocas mais alguma coisa de força que não cremos nós corremos nos campos cinzas intuímos que passos preencham gotas de alegria no despertar das sensações que ficam naquele riacho, naquela telha, naquele céu estrelado não podemos levar nossas saudades nas bolsas também não cabem amores adornos nem nas caixas cabem animais de estimação cabe apenas essa garra obscurecida por nossas vistas o que se há de ver? perguntam os mais mortos os vivos, não guardar espírito no peito é o que sugere o corpo por isso esse silêncio de terra esse vento bailando esparso nas ruas descalçadas o uivo dos animais noturnos soa como música quem canta espalha a estória que não vemos se não vemos é como se ninguém houvesse contado e esse sibilar do tempo, santos de milagres nenhuns quem negará a música silenciosa, a música silenciosa? será a lua que range absoluta a música das entranhas? dos homens, dos meninos, das mulheres animais não, animais não que peste é essa que acossa as nossas cabeças? sangrando incólume dentro de nossas almas um pouco antes da alma, na carne que não é carne a fome, palavra encarada na escuridão não é música silenciosa, é peçonha que assombra e as ossadas que nos esperam estão todas por algum por algum motivo à beira da estrada até parece que caem sem desejar barrar a passagem dos cavalos ou deus, dos cavalos ou deus dos andarilhos que não trotam em lamentar sertão éramos onze cavalos ondulando pela estrada fria

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cambaleando a cada novos tortos passos por pedras mas não era a pedra, o sonho coado em peneira era simplesmente um receio de tudo aquilo se acabar ali na estrada onde o morrente quererá encantar as nossas ninhadas bem aqui, esse aqui lugar, para enfim levá-las sem música, sem sonhos tristrada das gentes, dos homens passadas, sim meus, passadas por terras logradas por olhos desolados os nossos os portos são distantes são pertos demais lugares são palmas das mãos dedos indicadores filhos contamos nos dedos os vivos, os mortos de medo, de estrada, de fome desesperança meus passos, sim, meus passos rasteiros, alvos, fortes, velozes fogem da poeira que banha rios, montes, relvas, pedras a mim, a ti, a nós éramos dez cavalos essa proporção seguirá até o tempo que sabe-se lá lá não é perto da nuvem, nem um copo no chão esse que não cata nada até parece que a chuva arrodeia aquele abrigo salivas homens, salivas quais músculos salientes suportarão tal empreitada? palavras de agouro, não vê a mancha negra sobre nós? não é queda de deuses da chuva ou esperança é a morrente, a que vez em quando alimenta crianças tu sabes, crianças e velhos tem preferência nesse mar de intento ser onde os botes cochilam à sombra siga a onda, crianças siga a calda inescrupulosa do destino esse falho a que te levará no relincho de algum homem animal crescentes, os sóis, nutrindo desventuras de margem a margem, a terra

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as doces canções que atordoam a memória durante o vendaval da lua

dormir pouca morte ninguém quer encantar sob a vendavagem sombrio delírio, o que desacelera as incursões sobre a passagem, e as crianças todas em redes de descanso fatigadas incrustadas em paredes transparentes senão invisíveis, os olhos da contemplação um favorecer das estações e frutos, e frutas, e frutos era um não rir, paz de mexer barriga barulhinhos que saltitavam vez em quando trotavam uns animais fossem os homens, simplesmente os senhores ancestrais queimados da pele, queimágoas iam os outros, ser tão outros, outros, rotos e a criança ainda brinca com a fita que era azul que era branca, que era cinza era também uma das estrelas que penteavam os cabelos dela, marronzin, diamanteira preciosa a vi bordando colores e lágrimas, colores e lágrimas colhendo estórias do tempo, siga o vento, ondula ela uma voz miúda, se muito suportando uma sucessão de pancadas todas em uma enorme boca desdente em algum misterioso estômago um seu, um meu um que caiba toda a gente humana as proles não querem ser sacrificadas não nessa estrada que estrada é essa?

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Valdir Azambuja Campinas, SP

Azambuja é de Fortaleza, Ceará. Vinte anos depois mudou-se para Minas Gerais onde cursou Ciências Contábeis, Administração de Empresas, Engenharia Mecânica. Tem trabalhos em poesia e artes plásticas. Da leva de obras publicas, destaque para o livro de estreia Poemas para Grasiela e outros poemas (1982), Azambuja (1984), Sem Nordeste (1987), Até que a morte morra em mim (1991), TU DO EU (1997), Meusamô (2001) e o recente Memórias do futuro (2011).

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Transbordando

Faço versos Me canto Me esvazio Não aguento Ficar assim Cheio de mim Cheio de tudo

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Peitoral

Você entrou nos meus sonhos Fazendo minha emoção Com os seios feito espadas Fincadas nas minhas mãos

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Simone

Enquanto você cai em si Eu caio em mim Aí, fico ilhado Entre dois amores Maravilhado

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Encurralado

Mesmo emparedado Você se aprox-CIMA de mim Sem defesas O sentido perde a razão Aí eu fico No dia-noite do amor Em-cu-ralado

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Emhum

A noite ia indo O dia dormia Só nós dois Indo e vindo A-cor-dando noite a dentro

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Colóquio

No banco de jardim nenhum Com a amada ausente Está o poeta momentâneo Con-versando sozinho...

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A lírica amorosa de Marize Castro*

Por Gilfrancisco Santos

De maneira mais geral, toda sua poesia que fala do amor e seus atropelos, é o ponto culminante de uma tradição que surge no final da Idade Média e que Camões renovaria, influenciando direta ou indiretamente a poesia amorosa de língua portuguesa. Seu impacto ecoou no Barroco, no Arcadismo, no Romantismo e até no Modernismo. ”

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Marize Lima Castro nascida em Natal (1962), formada em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como jornalista trabalhou na editoria durante vários anos do jornal cultural, O Galo, publicação da Fundação José Augusto. Personalidade da vida social, política, intelectual e das artes em geral, Marize Castro é considerada uma das melhores poetas contemporâneas norte-rio-grandense, ganhadora de vários prêmios literários, dentre os quais Prêmio de poesia FJA (1983) e o Prêmio Othoniel Menezes (1998). A conheci na cidade do Sol, em 1989, época em que colaborei com alguns ensaios no jornal natalense, O Galo, e travei os primeiros contatos com a literatura local: Guia Poético da Cidade do Natal, de Manoel Onofre Jr., presente da professora Maria Bethânia Soares, uma preciosidade que me introduziu no universo potiguar. Pareceu-me na época, um tipo de pessoa invulgar, polida, discreta com certas características de gente do interior, qual normalista silenciosa de algum internato religioso. Espirituosa na arte de dizer e falar, encantadora com o seu humor e suas atitudes espontâneas, para não falar do olhar esperançoso verdejante e aquele coração confrangido e cauteloso. Amante das madrugadas, da mesa de bar em companhia de amigos, do bom vinho, da boa prosa e das peixadas bem condimentadas do bar/restaurante “Qualquer Coisa” situado na Via Costeira, centro de reunião de notívagos inveterados, de intelectuais, de políticos, de artistas, de agiotas e de sedutoras mariposas da noite. Foi a partir da sua amizade que conheci João da Rua, J. Medeiros, Francisco Ivan, Anchieta Fernandes, Eulício Farias de Lacerda e reencontrei com o amigo Veríssimo de Melo, de quem havia sido apresentado na Bahia pelo escritor Nélson de Araújo. De suas mãos recebi um exemplar do seu livro de estréia, “Marrons crepons marfins”, com uma dedicatória singela: “eis uma poesia possível. Com carinho e admiração”. Hoje, passado mais de dois decênios, recebo sua mais recente publicação “Esperado ouro”, Natal, edições UNA, (set) 2005, 119 páginas, 52 poemas curtos em sua maioria, capa de Wellington Dantas, com uma inscrição afetuosa: Querido Gilfrancisco, que este ouro te emocione. Com abraço e carinho”. Desde Homero a literatura do Ocidente se tem desenvolvido não por recomeços absolutos, mas por reaproveitamento do material do passado. Esse reaproveitamento contínuo pode ser ilustrado com a figura de um facho que vai sendo sucessivamente carregado por atletas numa corrida. Mesmo as poéticas chamadas de vanguarda, por seu radical projeto de novidade, buscam nas poéticas do passado elementos de inspiração. A esse fenômeno de reimitação e reaproveitamento de uma época por outra se tem dado o nome de tradição literária.

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Edição de Lábios-espelhos (2009)

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De maneira mais geral, toda sua poesia que fala do amor e seus atropelos, é o ponto culminante de uma tradição que surge no final da Idade Média e que Camões renovaria, influenciando direta ou indiretamente a poesia amorosa de língua portuguesa. Seu impacto ecoou no Barroco, no Arcadismo, no Romantismo e até no Modernismo. Poetas como Vinicius de Morais e Carlos Drummond de Andrade, manifestam a herança camoniana. O lirismo é sobretudo a expressão artística das vivências emotivas de um eu manifesto ou implícita que busca exprimir a duração e os contornos de um processo emotivo, principalmente a experiência amorosa. De fato, na relação amorosa as palavras amor, desejo, ternura, coração, alma e mulher apresentam incidência muito forte, freqüenta sua poesia com assombrosa assiduidade e, pode-se dizer, são elas que dão ênfase para a definição do ato amoroso: o amor e atração dos corpos têm seu próprio sentimento de completude. O amor é desejo de algo que se quer e não se tem, como se vê em Platão, ao buscar a definição de amor: Amor é falta, carência, uma espécie de vazio impossível de preencher. Na verdade, o amor e suas várias formas de manifestação percorrem todo o livro “Esperado Ouro”, ora de modo velado, ora de modo ostensivo, multiplicando-se em imagens e figuras de linguagem que lhe dão consistência e permitem descortinar as reações e posições com as quais a poeta Marize Castro constrói; sua visão de mulher e do sentimento amoroso. Vejamos o poema “Com vertigem e perícia” um dos mais significativos de sua obra lírica, onde Marize Castro desvendando-nos toda a sua força expressiva, nos dá uma poesia calcada em elementos de natureza fortíssima, a imagística de seu lirismo amoroso.

Sob as torres de Gaudí, Acredito no amor como acredito em Deus - com vertigem e perícia. Caminho pelos subterrâneos e revejo lendas - fábulas que negros olhos me mostraram. A beleza permanece com as faces lanceadas. Como lhe falar da estupidez humana? Tenho comigo o sudário marinho. É com ele que sou puta e sagrada. Celebro nesta noite uma vida de pontiagudas adagas. Porque estou só nestas ramblas consigo contemplar certos mares e certas sedes escandalosas.

Cultora do verso livre, apesar de travar combate explícito com o pensamento, Marize Castro escreve em linguagem fluente e solta. Extremamente rica, variada e surpreende, muitas vezes, o leitor com profundidade à primeira vista insuspeitada. Suas aspirações, conquistas e desenganos, sempre em busca da autenticidade criativa foram aos poucos se rarefazendo em minha vida, deixando as marcas de sua passagem. Esta poesia que me

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tocou nas primeiras leituras, continua desafiando a crítica, apaixonando intelectuais e leitores, aprimorando sua obra na luta diurna com as palavras. Como toda criação humana o poema é um produto histórico, filho de um tempo e de um lugar. E graças ao tempo cresceu sua obra, lançando-se no espelho da modernidade todos os componentes para elevar à comunicação total, objeto de sua criação poética. Deixando-se arrastar por sua corrente de consciência, a porta-âncora de Esperado Ouro, reinterpreta suas vivências próximas e longínquas, imagens de pessoas e lugares, de tempo que se desdobram em outros tantos tempos, num fascinante jogo de espelhos. Pela totalidade de sua expressão, manifestação de solidariedade (mais que isso:amor) pela vida, a poeta se despe de seus véus espessos com suas zonas de silêncio e ternura, fazendo um contraponto entre a voz autêntica e permanente, para reivindicar para si o que prioritariamente lhe pertence, elevando fatos novos a estado de linguagem poética segundo as suas próprias exigências de configuração. A poeta cresceu infinitamente na estima e na admiração de todos os que lutam pela edificação de um mundo melhor, mais livre e mais justo, onde não haja explorador e explorado e exploradores. Sua criação poética não se prende às próprias condições humanas, às suas limitações, à sua humanidade niilizada. Em busca da luz, não a luz crua dos recriadores de vida, senão a luz mais forte e mais cegante, dos criadores, como a luz do sol sendo a luz da gente, sendo a luz do dia, ou seja aquela luz que irradia a verdade oriunda da arte: “a verdade em beleza” da qual se referiu o crítico Haroldo de Campos, ao comentar sua obra “Marrons crepons marfins”. O livro abre com esses belos versos do poema “Muralha”, com um desafio para os que procuram acompanhar a trajetória atual da poesia brasileira:

Porque me abasteci, estou de volta. Trago comigo coisa abandonadas. Coisas que os homens jogaram fora: placentas, gânglios, guirlandas, guelras. Retorno alimentada. Perigosa. Mais mar. Mais aberta.

Marize Castro tem o poder de levar consigo o leitor para dentro do seu universo poético, para o mundo de sonhos onde o princípio da realidade é dominado pelo princípio do prazer, ganho não previsto. E nessa viagem cada um desses leitores, terá o prazer de descobrir situações e problemas que conduzem direto ao âmago do ser humano. Sempre se renovando e adicionando novas dimensões a sua obra, Esperado Ouro é um livro essencialmente dinâmico, com suas inúmeras estações. Poucos poetas brasileiros conseguiram, como ela, ultrapassar a pauta puramente individual ou local e transformar-se numa intérprete universal do homem. Do homem onde quer que esteja agora, consciente da sua existência, do seu amor existencial, da revalorização totalizante desse próprio homem. Porque o amor se apura com o tempo, sem dúvida o principal motivador de sua poesia. Portanto, estamos, na verdade, em

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presença de uma poeta de carreira, haja vista que há poetas que não faz da poesia um exercício contínuo, uma atividade intelectual permanente. Daí a poeta potiguar abrir as suas formas expressivas para formar o cume significacional e modernizador: o que se quer agora é ir além disso, com a autonomia de cada poema. O que Marize Castro diz só ela diz da forma por que diz. * texto publicado inicialmente em 14 de setembro de 2009 no Informe Sergipe e cedido pelo autor para esta edição.

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Ostras A flor roxa da poesia introduz o hermetismo nas minhas coxas. Resta-me a ironia? Defloro ostras. Marize Castro, marrons crepons.e marfins

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os convidados

Gilfrancisco Santos atua na imprensa baiana e sergipana há 35 anos. Atualmente é professor da Faculdade São Luís de França e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Trabalhou nas sucursais dos jornais Movimento, Em Tempo e Voz da Unidade, no início dos anos setenta, época em que participou das atividades culturais no Estado da Bahia, e passou a integrar o Grupo Experimental de Cinema da Universidade Federal (UFBA). Publicou, dentre outros, Conhecendo a Bahia, Gregório de Mattos: o boca de todos os santos, As Cartas, uma história piegas ou destinatário desconhecido, Ascendino Leite, Crônicas & Poemas recolhidos de Sosígenes Costa, Flor em Rochedo Rubro: o poeta Enoch Santiago Filho, Godofredo Filho & o Modernismo na Bahia, O poeta Arthur de Salles em Sergipe, Imprensa Alternativa & Poesia Marginal, anos 70, Musa Capenga: poemas de Edison Carneiro, Tragédia:Vladimir Maiakósvski, Walter Benjamin: o futuro do Passado versus Modernidade & Modernos; Literatura sergipana, uma literatura de emigrados; A romancista Alina Paim.

Henrique Marques Samyn é Doutor em Literatura Comparada (UERJ, 2010), realiza atualmente estágio de pós-doutoramento na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Ex-articulista do Jornal do Brasil; é atualmente crítico literário do jornal Rascunho. Tem textos publicados nas revistas Grial (Galiza), Dorna (Galiza) e em diversos outros periódicos. Possui graduação em Filosofia (UERJ, 2002), mestrado em Psicologia Social (UERJ, 2005) e mestrado em Filosofia Moderna e Contemporânea (UERJ, 2004). Como escritor, foi um dos autores selecionados para o volume referente aos anos 2000 da coleção Roteiro da Poesia Brasileira (2009), tendo também publicado textos literários no exterior (Galiza e Venezuela). É autor de Alegoria e erotismo na lírica medieval (2010) e os de poesia Esparsa erótica (2008) Poemário do desterro (2005).

Nelson Patriota é jornalista de formação. Na profissão dirigiu cadernos de cultura nos jornais A República, Tribuna do Norte, Diário de Natal, Revista RN Econômico, O Galo, e atualmente é responsável por uma coluna no site Substantivo plural. É escritor e membro-diretor (de divulgação) da União Brasileira de Escritores do Rio Grande do Norte (UBE-RN). Publicou A estrela conta (2003), Antologia poética de tradutores norte-rio-grandenses (2008) e Colóquio com um leitor kafkiano (2009); traduziu Como melhorar a escravidão, de Henry Koster (2003) e A Literatura de Cordel no Nordeste do Brasil, de Julie Cavignac (2006). Organizou várias outras importantes obras como Poemas reunidos de Luís Patriota (2001), Vozes do Nordeste (em pareceria com o Pedro Vicente Costa Sobrinho (2001), Artigos e crônicas de Edgar Barbosa (2010).

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7faces caderno-revista de poesia set7aces.blogspot.com O caderno-revista de poesia 7faces é uma produção semestral independente projetada, diagramada e editada pelo poeta Pedro Fernandes. Organização desta edição Pedro Fernandes Convidados para esta edição Nelson Patriota Henrique Marques Samyn Gilfrancisco dos Santos Colaboradores (por ordem de apresentação) Hernany Tafuri Fabio Aresi Iza Quelhas Vanice Ricardo Pedro Belo Clara Adriano Scandolara Vernaide Wanderley Guilherme Gontijo Flores Carlos Gomes Valdir Azambuja Agradecimentos A todos que enviaram material para a ideia e em especial a Nelson Patriota e Henriques Marques Samyn que se dispuseram a escrever sobre Marize Castro. Agradecimento ainda ao Gilfrancisco Santos pela cessão do texto A lírica amorosa de Marize Castro, apresentado nesta edição. Contato Pelo correio eletrônico do editor, [email protected], ou através do correio eletrônico da redação [email protected] 7faces. Caderno-revista de poesia. Natal – RN. Ano 2. Edição n. 4. jul.-dez. 2011. ISSN 2177-0794

Licença Creative Commons. Distribuição eletrônica e gratuita. Os textos aqui publicados podem ser reproduzidos em quaisquer mídias, desde que seja preservada a face de seus respectivos autores e não seja para utilização com fins lucrativos. Os textos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus respectivos autores e fica disponível para download em set7aces.blogspot.com O editor deste caderno-revista é isento de toda e qualquer informação que tenha sido prestada de maneira equivocada por parte dos autores aqui publicados, conforme declaração enviada por cada um dos autores e arquivadas no sistema 7faces.

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Lucio Fontana (1899-1968) foi pintor e escultor. Nasceu na Argentina, mas radicou-se na Itália, onde integrou o movimento Arte povera. Seu trabalho transita entre o barroco, o cubismo, o futurismo e academismo. Em 1947, publica o Manifesto Blanco que influencia toda uma geração de artistas abstratos a partir da década seguinte. Cria, então o Movimento Espacialista. As obras aqui apresentadas dão contas dessa fase conceitual.

As imagens desta edição foram coletadas da internet e nos casos identificáveis cita a fonte de todas as obras aqui disponibilizadas. Em caso de violação de direitos, mau uso, uso inadequado ou erro entrar em contato; nos comprometemos a atender as exigências no prazo legal de 72 horas contadas do momento em que tomarmos conhecimento da notificação.

Para participar da ideia, deve o poeta consultar o espaço set7aces.blogspot.com, para ler as regulagens e enviar o material; ou solicitar ao editor através do contato [email protected] o envio das regulagens.

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Serpenteando A fúria que há em mim não sacraliza nem ousa. Serpenteia pelos séculos rompendo finas louças.