caderno de textos erem 2012

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Page 1: Caderno de Textos Erem 2012

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Page 2: Caderno de Textos Erem 2012

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Rubén Omar Sosa escutou a lição de Maximiliana num curso de terapia intensiva, em Buenos Aires. Foi a

coisa mais importante que aprendeu em seus anos de estudante.

Um professor contou o caso. Dona Maximiliana, muito alquebrada pelos anos de labuta de uma longa vida

sem domingos, estava há vários dias internada no hospital, e todo dia pedia a mesma coisa:

-Por favor, doutor, o senhor podia medir minha pulsação?

Uma suave pressão dos dedos no pulso, e ele dizia:

- Muito bem. Setenta e oito. Perfeito.

- Está bem, doutor, muito obrigada Agora, por favor, meça minha pulsação?

E ele tornava a medir, e tornava a explicar que estava tudo bem, que melhor, impossível.

Dia após dia, a cena se repetia. Toda vez que ele passava pela cama de Maximiliana, aquela voz, aquele

sussurro, o chamava, oferecia esse braço, esse raminho, uma vez, e outra vez, e outra.

Ele obedecia, porque um bom médico deve ser paciente com seus pacientes, mas pensava: “Essa velha é

uma chata.” E pensava: “Deve estar faltando algum parafuso nessa cachola.”

Levou anos para entender que ela estava pedindo que alguém a tocasse.

(Uma aula de medicina, Eduardo Galeano)

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O que é DENEM?

APRESENTAÇÃO

O primeiro relato de organização do movimento estudantil de Medicina surgiu na metade do século XIX, com a criação de uma sociedade composta por estudantes no movimento pela abolição da escravatura. No século XX, entre as décadas de 20 e 60 surgiram os primeiros Centros Acadêmicos de Medicina e mais precisamente no ano de 1947 aconteceu a primeira semana científica e cultural dos estudantes de medicina do Brasil. No mesmo ano foi criada a UNEM, União Nacional dos Estudantes de Medicina, ligada à

UNE (União Nacional dos Estudantes).

Em 1969, foi realizado o 1º Encontro Científico dos Estudantes de Medicina (ECEM), em Salvador. O evento foi um marco para os estudantes de medicina so Brasil, que se utilizavam do encontro para disccutir questões sobre o ensino médico, universidade, conjuntura polítca do país, democracia e a luta contra a ditadura.

A Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina foi fundada em 1986, na cidade de Fortaleza, durante o XVII ECEM. Naquele momento, vivia-se no Brasil o processo de redemocratização pós-ditadura militar e um

intenso debate sobre o sistema de saúde. A entidade surge como uma forma de melhor organizar os estudantes de medicina, já que a UNE não resolvia mais a necessidade de organização do Movimento Estudantil de Medicina.

Com mais de 25 anos de existência, a DENEM vem desempenhando o papel de entidade representativa dos estudantes de medicina a partir de várias lutas e mobilizações. Durante a década de 90, a pauta da educação médica foi sem sombra de dúvida a mais importante no seio da Executiva. Dentre outras pautas importantes estava a defesa do sistema único de saúde público, equânime e de qualidade.

ORGANIZAÇÃO Para o desempenho de suas atividades, a DENEM divide-se em 8 regionais para facilitar o canal de dialogo entre a entidade nacional e os Centros/Diretórios Acadêmicos, também denominados Coordenações Locais, CL’s.

Cada Regional possui uma coordenação regional que tem a responsabilidade de visitar as CL’s assim como organizar os encontros estudantis de medicina de caráter regional. A nossa regional é a Nordeste-1, a qual abarca 12 escolas médicas.

Além dos Coordenadores Regionais, a DENEM também possui uma sede nacional, composta pelos cargos de coordenação geral, coordenação de comunicação e coordenação de finanças.

As coordenações de regionais, a sede e a coordenação de relações exteriores formam a coordenação nacional, que é a menor instancia deliberativa da DENEM.

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Além da coordenação nacional a DENEM possui outro órgão: o CENEPES – Centro de Pesquisas e Estudos em Educação e Saúde. O CENEPES é composto pelas chamadas coordenações de área, que são as coordenações: de políticas de saúde, de educação em saúde, de políticas educacionais, de extensão universitária, de meio ambiente, de cultura, cientifica, de estágios e vivencia. Além das coordenações, o CENEPES comporta as acessórias de mídias, de planejamento e de resgate histórico do movimento.

ENCONTROS

A DENEM também possui encontros periódicos que constituem os outros espaços deliberativos. Há encontros de âmbito regional e nacional. São eles:

Regionais:

Reuniões de Regional (RR): são as reuniões das Coordenações Locais (CL’s) de cada regional. Encontro Regional dos Estudantes de Medicina (EREM): acontece em cada regional uma vez por

ano. É o maior encontro de âmbito regional, há nele debates políticos, eventos culturais e cientifico. Seminário de Problematização Política (SPP): é um seminário de cujo objetivo é a formação política. Olimpíadas Regionais dos Estudantes de Medicina (OREM): ocorre na regional Nordeste-2 e na

regional SE 1.

Nacionais:

Congresso Brasileiro dos Estudantes de Medicina (COBREM): ocorrem todos os ano nos messes de janeiro. Tem a função de elaborar e aprovar o planejamento da DENEM. É o segundo maior espaço deliberativo da Executiva.

Encontro Cientifico dos Estudantes de Medicina (ECEM): esse encontro ocorre desde 1969, é anterior à DENEM. Tem esse nome para burlar a repressão da ditadura militar. É o maior espaço deliberativo da Executiva, acontece geralmente em cada mês de julho. Além do eixo político, há também na programação eventos culturais e científicos.

Reunião de Órgãos Executivos (ROEX): é a reunião das CL’s do pais inteiro. É o terceiro maior instancia deliberativa da DENEM.

Seminário do CENEPES: Também anual, é o encontro no qual é feito debates e analises sobre algum tema que envolva as coordenações do CENEPES.

Esperamos encontrá-los/as em um desses encontros.

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O que é EREM?

O Encontro Regional de Estudantes de Medicina (EREM) é um espaço destinado a congregar estudantes de

medicina de uma determinada região do país que, no nosso caso, é a Regional Nordeste I (BA, SE e AL) com

o propósito de promover discussões acerca de temas pertinentes ao nosso cotidiano universitário – saúde,

educação, sociedade, ciência, cultura, arte, cidadania – proporcionando também uma maior integração

entre as diferentes escolas e estados.

Com a intenção de fortalecer o Movimento Estudantil de Medicina, o Encontro Regional dos Estudantes de

Medicina – NE I – se faz espaço estratégico de mobilização estudantil e construção de práticas e saberes

que fortalecem a luta em Defesa da Vida entre as CLs envolvidas, além de, através da troca de experiências

e reflexões teóricas, qualificar o trabalho desenvolvido por cada Centro ou Diretório Acadêmico em sua

esfera local de ação.

Acontece no primeiro semestre de cada ano, e é sediado em uma das cidades locais de escola médica

dentro da área da Regional NE I. Em 2011, o evento foi realizado em Salvador-BA e organizado pelos

estudantes da UFBA e da Bahiana. Nesta décima sexta edição, o encontro acontecerá em Aracaju – SE,

tendo o CAMED e a DENEM (representada pela Coordenação Regional NE I) como organizadores.

Público participante do XVI EREM

O XVI EREM visa agregar 12 escolas médicas de 3 estados do Nordeste, que juntas totalizam

aproximadamente 5.000 estudantes.

Bahia – UFBA, FTC, EBMSP (Bahiana), UEFS, UESC, UESB Vitória da Conquista e UESB Jequié Sergipe – UFS São Cristóvão, Unit e UFS Lagarto Alagoas – UNCISAL, UFAL

Cada centro ou diretório acadêmico organiza sua delegação de estudantes para participar do evento. O

evento está organizado para receber cerca de 150 estudantes dessas escolas no XVI EREM, tendo em vista

ser este o público médio dos EREM’s realizados pela Regional DENEM NE I nas últimas três edições.

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Afinal, Quem monta seu

quebra-cabeça?

O ideal de se tornar um profissional completo está, de

fato, na mente de todos os estudantes. Os futuros médicos

em especial estão cada vez mais preocupados em compor

um excelente currículo, com a ideia de que somente com

esse passarão a ser, sem sombra de dúvida,médicos de

qualidade. Levados por esse pensamento, os estudantes

acabam permitindo que sua imagem como médicos seja

construída com base em princípios alheios. Esses, muitas

vezes, desviam o olhar do aprendiz, que passa a acreditar

numa medicina que se resume em estruturas biológicas.

Desse modo, muitos dos estudantes são deixados levar

pela maioria e se esquecem de pensar sobre o que

realmente representa a imagem de um bom médico, ou

seja, qual seria o real critério para definir a qualidade

desse agente do povo. Essa reflexão faz surgir a indagação

sobre quem é o responsável por manipular

ideologicamente a mente dos estudantes, isto é, quem

está montando a atual representação do médico perfeito.

Não há dúvida de que valores mais humanos são

extremamente necessários na nossa carreira. E mais do

que isso, é fundamental que nós analisemos nossos

pacientes sob uma ampla perspectiva, abrangendo desde

critérios biológicos a critérios psicológicos e sociais.

Porém, será que o ensino atual da medicina realmente se

preocupa em relacionar todos esses fatores a fim de garantir o melhor tratamento possível ao paciente,

que no final é uma pessoa inserida num meio social? Ou será que esse ensino está mais preocupado em

atender mais e mais e deixar de lado a história de cada um?

Questionamentos como esses são capazes de nos tocar afundo e nos fazer repensar os rumos e direções

que a medicina vem tomando. E dele retoma-se a pergunta inicial: Quem afinal é o responsável por criar

essa visão distorcida do papel do médico na conjuntura social? De que forma devemos agir diante desse

problema: devemos aceitar calados e nos tornar mais um frio e calculista médico do sistema? Ou devemos

buscar alterar a inculta ideologia que rege a maior parte dos estudantes de forma despercebida e

silenciosa? A solução para tais questionamentos será encontrada por meio de uma análise mais profunda

do panorama geral da educação médica, ou seja , do modo como nossa personalidade profissional está

sendo montada a cada dia de estudo e vivência. Resta a todos nós refletirmos sobre o principal motivo de

termos escolhido a medicina como nossa profissão.

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Programação

1º Dia: Quinta (06/09)

Manhã: Painel 1 – Privatização da Saúde -Valéria Correia (UFAL/Fórum de saúde de Alagoas)

_______________________________________________________________________________________

Tarde: Mesa 1: Os Hospitais Universitários e a

EBSERH no contexto da formação médica

1.Papel dos HU’s na formação médica

Vinícius Ximenes (UFCG-Cajazeiras)

2.Conjuntura atual dos HU’s

Alisson Sampaio (CAMED-UFS/CPS DENEM)

3.A Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares

(EBSERH)

Valéria Correia (UFAL/Fórum de saúde de Alagoas)

_______________________________________________________________________________________

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Noite: Oficinas de Agitação e Propaganda

(AgitProp)

1.Expressão corporal – DAMED

2.Oficina de cartazes e faixas

3.Stencil – Polinômios (CAMED-UFS)

4.Batucada - Vanessa e Vitor (CAMED-UFS)

5.Zine – Bianca e Saionara (DAMED)

2º Dia: Sexta (07/09)

Manhã: Ato Público (junto ao Grito dos

Excluídos): Em defesa dos HU’s, da educação

pública e de uma saúde pública, gratuita, estatal

e de qualidade!

_______________________________________________________________________________________

Noite: Oficinas 1:

1.Gênero e Opressões – DAPS e MMM (Marcha Mundial

de Mulheres)

2.Estágios de vivência – DAMED e Comissão Organizadora

do EIV Sergipe

3.Determinação social do processo saúde-doença – CASH

4.Ato Médico – Alisson (CAMED-UFS)

5.Métodos avaliativos – Marcela Vieira (Coordenadora

Geral da DENEM)

6.Abertura de novas escolas médicas – Bianca (DAMED/CR-NE1)

Page 9: Caderno de Textos Erem 2012

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3º Dia: Sábado (08/09)

Manhã: Painel 2 – O médico no mercado de trabalho –Thiago Henrique (Sindicato dos Médicos de

Pernambuco)

_______________________________________________________________________________________

Tarde: Mesa 2: Transformações na educação

médica – O que tínhamos e o que temos hoje?

1.Histórico das transformação no ensino

médico

Thiago Henrique (Sindicato dos Médicos de

Pernambuco)

2.Reforma curricular – Modelo atual

Marcela Vieira (Coordenadora Geral da DENEM)

3.Perfil, críticas e alternativas ao modelo atual –

Humberto Herrera (UFBA)

_______________________________________________________________________________________

Noite: Oficinas 2:

1.Indústria Farmacêutica – Adriana Freitas (CAMED-UFS)

2.Extensão Universitária – DAMED

3.Exame de Ordem – Jota (DAMED)

4.Serviço Civil/Provab

5.Como Funciona a Sociedade – Jean Prestes (CAMED-UFS)

6.Processo de Tomada de Consciência – Mário Soares

(UFBA)

4º Dia: Domingo (09/09)

Manhã/Início da tarde: Plenária Final e Reunião Regional

Page 10: Caderno de Textos Erem 2012

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Grito dos Excluidos

O Grito dos Excluídos é uma

manifestação popular carregada de

simbolismo. È um espaço de animação

e profecia, sempre aberto e plural de

pessoas, grupos, entidades, igrejas e

movimentos sociais comprometidos

com as causas dos excluídos(as).

O Grito dos(as) Excluídos(as), como

indica a própria expressão, constitui-se

numa mobilização com três sentidos:

denunciar o modelo político e

econômico que, ao mesmo tempo,

concentra riqueza e renda e condena

milhões de pessoas à exclusão social;

tornar público, nas ruas e

praças, o rosto desfigurado dos grupos

excluídos, vítimas do desemprego, da

miséria e da fome;

propor caminhos alternativos

ao modelo econômico neoliberal, de

forma a desenvolver uma política de

inclusão social, com a participação

ampla de todos os cidadãos.

O Grito se define como um conjunto de

manifestações realizadas no Dia da Pátria, 7 de setembro, tentando chamar à atenção da sociedade para as condições de

crescente exclusão social na sociedade brasileira. Não é um movimento nem uma campanha, mas um espaço de participação

livre e popular, em que os próprios excluídos, junto com os movimentos e entidades que os defendem, trazem à luz o protesto

oculto nos esconderijos da sociedade e, ao mesmo tempo, o anseio por mudanças.

As atividades são as mais variadas: atos públicos, romarias, celebrações especiais, seminários e cursos de reflexão, blocos na rua,

caminhadas, teatro, música, dança, feiras de economia solidária, acampamentos – e se estendem por todo o território nacional.

Em 2012 o Grito dos(as) Excluídos(as) traz como tema: “Queremos um Estado a serviço da Nação, que garanta direitos a toda

população!”

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Page 12: Caderno de Textos Erem 2012

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SUMÁRIO

UM POUCO SOBRE A HISTÓRIA DO MOVIMENTO ESTUDANTIL DE MEDICINA............................................13

BRUNA BALLAROTTI

A IDEOLOGIA NOS CURSOS DE MEDICINA.....................................................................................................15

MARCO AURELIO DA ROS

DE QUE MÉDICOS O POVO BRASILEIRO PRECISA?.........................................................................................26

THIAGO HENRIQUE (GAUCHO)

SOBRE A LUTA POR CURRÍCULOS...................................................................................................................28

ARMANDO DE NEGRI

PUBLICO E PRIVADO NA GESTÃO DA SAÚDE..................................................................................................30

RAQUEL TORRES PARA REVISTA POLI

HOSPITAIS UNIVERSITÁRIOS FEDERAIS E NOVOS MODELOS DE GESTÃO: FACES DA CONTRA-REFORMA DO

ESTADO NO BRASIL.........................................................................................................................................38

JULIANA FIUZA CISLAGHI

10 MOTIVOS PARA SER CONTRA A EBSERH...................................................................................................49

PROJETO DO ATO MÉDICO.............................................................................................................................50

ALGUMAS QUESTÕES SOBRE O ATO MÉDICO................................................................................................51

MARCELA VIEIRA E FELIPE XIMENES

CREMESP INSTITUI EXAME OBRIGATÓRIO PARA FORMANDOS EM MEDICINA...........................................52

EXAME DE ORDEM: CARTA DA DENEM (2010)..............................................................................................53

SERVIÇO CIVIL NA MEDICINA – CARTA ABERTA DA REGIONAL SUL 2 DA DENEM........................................58

TRABALHADOR DA SAÚDE: UM OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO.....................................................................60

BRUNO PEDRALVA

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UM POUCO SOBRE A

HISTÓRIA DO MOVIMENTO

ESTUDANTIL DE MEDICINA

Bruna Ballarotti para a edição de Outubro de 2010

do Glasgow 15, jornal do Diretório Acadêmico de Medicina

Francisco Martins Bastos (DAFB) da FURG

Você já deve saber que o Diretório

Acadêmico Francisco Martins Bastos (DAFB) é o

órgão que representa os estudantes de Medicina

da FURG. Pode saber também que

nacionalmente, todos CA/DAs e estudantes de

Medicina do Brasil são representados pela

Direção Executiva Nacional dos Estudantes de

Medicina (DENEM). Mas desde quando surgiu

esse hábito dos estudantes de Medicina se

organizarem? O que motivou e ainda motiva

esses estudantes a se reunirem, se encontrarem e

defenderem

coisas em

comum?

Em

1808, com a

vinda da

Corte Portuguesa para o Brasil, foi fundada a

Escola de Medicina da Bahia, a primeira do país.

No final do século XIX já se tem registro dos

estudantes de Medicina de Salvador se

organizando em Sociedades Acadêmicas, com o

papel de realizar benfeitorias na região e de

debater a qualidade de sua formação. Com o

advento da Universidade, já na década de 1930,

Getúlio Vargas incorpora a estrutura de Centros

Acadêmicos dentro da instituição, numa tentativa

de obter mais controle sobre as diversas mo-

dalidades de organização dos estudantes que

existiam até então. Apesar dessa origem tutelar, a

criação dos Centros Acadêmicos não obedeceu ao

seu suposto futuro de submissão. Pelo contrário,

o feitiço vira contra o feiticeiro, e a criação dos

CAs só faz dar mais organicidade para o

Movimento Estudantil (ME), que não deixou de se

manifestar e de reivindicar suas bandeiras.

É no final da década de 1950 e início da

década de 1960 que o ME amadurece seu

conceito de Universidade. Para os estudantes, a

Universidade deve servir de instrumento para

superar as desigualdades existentes em nossa

sociedade, e deve prover ferramentas para que a

sociedade se mobilize e lute por seus direitos. É

um período onde o país debate as Reformas de

Base do João Goulart, e a UNE, criada em 1937,

alcança grande legitimidade pelos diversos

seminários que realiza e greves que articula, no

sentido de trazer a público a construção sendo

feita pelos estudantes.’

O Golpe Civil-Militar de 1964 interrompe

esse processo. O Regime Militar vai efetuar uma

série de mudanças econômicas, políticas, sociais e

culturais que terão na Universidade e na

organização política um objeto específico de con-

trole. De 1965 a 1968 o Governo Militar vai

aprimorando sua proposta de Universidade. Com

a ajuda da

USAID

(United Sta-

tes Agency

for

International

Development) elabora uma Reforma Universitária

de caráter privatista, que visava sucatear as

universidades públicas através de um drástico

corte de verbas e da inserção do ensino pago

dentro da mesmas. A Reforma Universitária de

1968, que demonstrava ainda mais o autorita-

rismo do Governo Federal e seu controle sobre a

Universidade, faz com que os estudantes, mesmo

proibidos de se manifestar, saiam às ruas em

1967 e 1968, alcançando grande visibilidade e

estabelecendo diálogo com diversos outros

grupos e movimentos sociais, para denunciar o

que estava acontecendo não apenas na

Universidade, mas na sociedade brasileira como

um todo. Em dezembro de 1968 é decretado o AI-

5, que põe fim a qualquer possibilidade de

articulação e mobilização como se conhecia até

então. Muitos grupos nesse momento não vêem

outra opção de combater o regime que não a luta

armada, urbana e rural. O aparelho de repressão

Page 14: Caderno de Textos Erem 2012

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do Regime Militar vai se aperfeiçoando, e até

1972 quase todos os grupos de luta armada

foram dizimados.

Após esse baque do AI-5, na primeira

metade da década de 1970, apesar do aparente

vazio, se ensaia o retorno aos Centros e Diretórios

Acadêmicos. Os estudantes estão vivendo na pele

as conseqüências da Reforma Universitária de

1968 e precisam se organizar... Mas como? A UNE

estava na ilegalidade, os DCEs e DAs sob controle

da Ditadura. É nesse momento que ganha força

uma outra forma de se organizar, o “Movimento

de Área”, onde estudantes do mesmo curso se

encontram pelo Brasil, nos Encontros de Área,

geralmente com um mote acadêmico/científico,

mas que serve para os estudantes se articularem

politicamente. Esse movimento é o embrião,

quando encerra a ditadura, das diversas

executivas de curso que se oficializam ao final da

década de 80. No nosso caso, foram criados os

Encontros Científicos dos Estudantes de Medicina

(ECEMs) em 1969, que acontecem até hoje, há

mais de 40 anos. E no ECEM de 1986 em Fortaleza

é fundada a DENEM, entidade que representa

todos os estudantes de Medicina no Brasil desde

então. São quase 25 anos defendendo uma

Educação Pública, Gratuita e de Qualidade,

defendendo o Sistema Único de Saúde e seus

princípios, defendendo uma formação médica de

qualidade e comprometida com as necessidades

de saúde da população. Bandeiras que surgiram

ainda na década de 1970 e que fazem sentido até

hoje.

Rondó da Liberdade

É preciso não ter medo, é preciso ter a coragem de dizer.

Há os que têm vocação para escravo, mas há os escravos que se revoltam contra

a escravidão.

Não ficar de joelhos, que não é racional renunciar a ser livre.

Mesmo os escravos por vocação devem ser obrigados a ser livres,

quando as algemas forem quebradas.

É preciso não ter medo, é preciso ter a coragem de dizer.

O homem deve ser livre...

O amor é que não se detém ante nenhum obstáculo,

e pode mesmo existir quando não se é livre. E no entanto ele é em si mesmo

a expressão mais elevada do que houver de mais livre

em todas as gamas do humano sentimento.

É preciso não ter medo, é preciso ter a coragem de dizer.

Carlos Marighella

Page 15: Caderno de Textos Erem 2012

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A IDEOLOGIA NOS

CURSOS DE MEDICINA

Marco Aurélio Da Ros

A proposta de redigir um trabalho com

esse título pode apontar diversos caminhos. O

entendimento que tive foi o de que o grande

objetivo deveria ser colaborar para entender os

porquês das dificuldades de introduzir (de fato)

uma mudança na formação dos médicos.

Temos, hoje, o

discurso e prática da

Ministério da Saúde, dos

municípios, e o consenso

dos dirigentes do ensino

de medicina sobre as

necessidades de

mudança. Redes de apoio

do porte da Abrasco

(Associação Brasileira de

Pós-Graduação em Saúde

Coletiva) ou da Rede

Unida também participam

ativamente, e mesmo

assim as modificações são

mais lentas que o

desejado.

Como pano de

fundo para justificar essa lentidão, surge a

pergunta: seria a questão da ideologia na

medicina um determinante? A proposta que me

pareceu mais apropriada foi a de começar a

dissecar isso.

Partindo do princípio de que a ideologia,

se não é a única, representa uma causalidade

muito importante, a abordagem do tema se ateve

à tentativa de: entender um pouco do que

significa ideologia, especialmente numa relação

hegemonia/contra-hegemonia; a história dos

movimentos que caracterizam essa relação, como

determinante do pensar médico; uma pequena

reflexão sobre a forma como se produz o

conhecimento (epistemologia); uma tipificação

caricatural sobre o médico “não mudancista”; e

como podemos pensar em transformação com

esse espectro desenhado. Tento usar uma

linguagem que beira o coloquial, a fim de facilitar

a compreensão do tema, e me parece apropriado

iniciar por ideologia.

Alguns entendimentos sobre ideologia

Da profusão de autores que tratam o

tema, Marilena Chauí me

parece a mais adequada,

por estudar diversos

autores e apontar

alternativas para quem

quer se aprofundar mais

no assunto.

O termo, segundo

a autora, surge em 1801

na França, na tentativa de

justificar a gênese das

idéias no período

napoleônico. A partir daí,

foram surgindo outros

usos e significados para o

termo. Marx, por

exemplo, afirma que o

ideólogo é o que inverte

as relações entre as idéias

e o real; Comte assume novos entendimentos

para embasar o positivismo; Durkheim o retoma

para descrever as regras do método sociológico.

Chauí afirma que:

“Ideologia não é sinônimo de

subjetividade oposta à objetividade (...)

não é um pré-conceito nem pré-noção,

mas um “fato” social, justamente porque

é produzida pelas relações sociais (...)

possui razão muito determinada para

surgir e se conservar (...) é uma produção

de idéias por formas históricas

determinadas das relações sociais.”

Page 16: Caderno de Textos Erem 2012

16

Adota e aprofunda a concepção marxista

de ideologia, afirmando, para explica-la, que a

consciência está indissoluvelmente ligada às

condições materiais de existência e que as idéias

nascem, em última instância, das atividades

materiais. Como cada um dificilmente pode

escapar da atividade que lhe é imposta

socialmente, todo o conjunto de relações sociais

aparece nas idéias como se tivesse origem por si

mesmo, e não fosse conseqüência das ações

humanas. Nasce, assim, a ideologia,

propriamente dita, que é sempre a da classe

dominante:

(...) o sistema ordenado de idéias

ou representações, e das normas e regras

como algo separado e independente das

condições materiais, visto que seus

produtos - os teóricos, os ideólogos e os

intelectuais - não são diretamente

vinculados à produção material das

condições de existência (...) As idéias

aparecem como produzidas somente pela

pensamento (...).

Para relacionar o tema ideologia com a

prática médica e com a sua resistência às

mudanças, ainda tomo as idéias de Chauí, a partir

de Marx & Engels.2 Ela afirma que a ideologia

(entenda-se como dominante ou hegemônica) é

possível em função da alienação:

(...) enquanto não houver um

conhecimento da história real, enquanto a

teoria não mostrar a prática imediata dos

homens. Enquanto a experiência com a

vida for mantida sem crítica e sem

pensamento, a ideologia dominante se

manterá.

Ora, é justamente o que penso que ocorre

com a categoria médica hegemonicamente. Ela

conhece a história da prática de sua profissão (a

não ser para alguns contra-hegemônicos) apenas

como mera sucessão de datas, personagens e

inventos, descontextualizada e sem o

entendimento das condições materiais da

existência dos homens e duas relações naquelas

épocas. Pior ainda: está convencida de que não

tem de entender isso. Que já chegou à verdade

científica. A alienação gerada pela ideologia

dominante a faz pensar que sua vida e sua prática

são dirigidas pela ação de entidades como a

natureza, os deuses ou a razão (como se esta não

fosse histórica também).

Marx & Engels2 dizem que “as idéias da

classe dominante são em cada época as idéias

dominantes (...) e aos trabalhadores é dada a

alienação”. Buss3 confirma a mesma lógica e o

papel do Estado nessas circunstâncias, aplicando-

a aos profissionais de saúde. Ou seja, lhes é dado

a imaginar que é natural e verdadeiro que as

coisas sejam pensadas da forma como são.

É claro que se torna muito determinista e

mecânico imaginar que o pensamento atual do

senso comum, e dos médicos por extensão, seja

dado somente porque é assim que o capitalismo

ou neoliberalismo preconizam (já que é neste

modo de produção que vivemos). Isto seria

reducionismo.

Para entender melhor, Gramsci nos

apresenta o conceito de hegemonia: a forma

como o poder dominante se mantém. Mas isso

não significa homogeneidade. Dialeticamente, há

que pensar na construção de um contrapoder:

noutra forma de pensar, que luta contra aquela e

que desnuda a vida real dos homens. No

neoliberalismo, a contra-hegemonia. 5,6,7

Como não pretendo um tratado sobre a

questão ideologia-hegemonia-contra-hegemonia,

e sim um entendimento com base na prática

médica historicamente localizada, acredito que,

se desvendarmos um pouco da história, do século

XIX para cá, a compreensão do pensamento tanto

hegemônico como contra-hegemônico ficará

mais clara. A construção do pensamento na lógica

interna será exposta no item “Um pouco de

epistemologia”, após o entendimento do que

ocorria na história nessa época (contada com

óculos contra-hegemônicos, é claro).

Page 17: Caderno de Textos Erem 2012

17

O início desta história - século XIX

(...) a prática médica está ligada à

transformação histórica do processo de

produção econômica. A estrutura

econômica determina, como acontece

com todos os componentes da sociedade,

a importância, o lugar e a forma da

medicina na estrutura social.

Esta afirmação de Almeida8 confirma o

que tentava discutir na questão ideológica. Há

que se reportar á história.

No início do século XIX, o capitalismo já

uma forma hegemônica da organização da

produção no mundo desenvolvido da época - o

europeu. E este capitalismo funcionava com uma

superexploração da força de trabalho. Filmes

como Germinal ou Daens mostram a vida do

trabalhador da época. Também Engels9 descreve

jornadas de trabalho de dezesseis horas/dia,

grávidas tendo filhos na fábrica, crianças com

menos de sete anos impulsionando teares em

troca de comida (se chegavam a oferecer tanto).

O exército industrial de reserva era abundante, e

a mortalidade, inimaginável para os padrões de

hoje. Nas fábricas não havia janelas, nem vasos

sanitários. Os trabalhadores comiam no chão. A

idéia era aproveitar até a morte a força de

trabalho, depois... o exército industrial de reserva

os substituiria. Nesse contexto, a teoria

prevalecente da origem das doenças ainda era

algo semelhante a miasmática, que iludia as

questões sociais. Nessas condições, a contra-

hegemonia gesta movimentos de transformação

social, de caráter socialista. No seio desses

movimentos sociais é que os médicos

desenvolvem um novo conceito do processo

saúde-doença. Esse movimento, chamado de

medicina social, acompanha as tentativas de

transformação social entre 1830 e 1870,

tornando-se a explicação hegemônica para a

ciência médica da época.

Em 1848, Virchow - considerado o pai da

medicina social - afirmava que as doenças eram

causadas pelas más condições de vida e, com

Neumann, propõe mudanças nas leis prussianas,

objetivando superar a exploração da força de

trabalho e garantir melhores condições de sua

reprodução, colocando no Estado a obrigação de

suprir estas necessidades. 10 leubuscher e

Villermé, na França, Chadwick, na Inglaterra, e

Grotjahn, na Bélgica, trabalham simultaneamente

com concepções semelhantes.

Entre 1870 e 1900, com o

desenvolvimento de diversos campos do

conhecimento, aparentemente díspares, como

patologia, histologia, química, fisiologia e,

principalmente, microbiologia, eclode verdadeira

revolução no conhecimento médico. A partir daí,

seja por interesse do capital e/ou do complexo

médico industrial, ou porque o conhecimento na

área inicia sua fragmentação de fato, ou porque

as tentativas de transformação social fossem

derrotadas, ou mesmo por todos esses motivos,

perde força, na Europa, o entendimento da saúde

como questão determinada socialmente.

Page 18: Caderno de Textos Erem 2012

18

Behring, em 1898, segundo Rosen10,

sintetiza a ruptura com o modelo de medicina

social, dizendo que, graças à descoberta das

bactérias, a medicina não precisaria mais perder

tempo problemas sociais. A partir desse discurso

de Behring e simultaneamente à teoria dos

germes de Pasteur, a unicausalidade fica

assentada.

A hegemonia, definitivamente, não

gostava das pesquisas e investigações da

medicina social, que apontavam invariavelmente

para mudanças sócias, quer dos capitalistas ou do

Estado que os representava. Teriam que

aumentar salários, conceder direitos sociais aos

menores e às grávidas, diminuir a carga horária

de trabalho, garantir alimento e moradia

decente, saneamento, lazer, etc. Já a

unicausalidade descarregava a culpabilidade do

poder e abria a possibilidade de culpar a vítima -

“não usou equipamentos, não usou sapatos, não

lavou as mãos, etc.” -, abrindo a porta ao

higienismo na saúde pública e ao

desenvolvimento de tecnologia de investigação

para “unicausas” e para os medicamentos que

erradicassem aquela “causa”.

Esta forma parece ser um exemplo típico

de como a hegemonia instala ideologicamente

um jeito de pensar (não se pensa mais na questão

da sociedade). Na Europa, o pensamento

bacteriano convive com o da medicina social em

declínio, mas nos Estados Unidos, por condições

particulares quer da formação social, quer do

modelo médico preexistente, o terreno da

unicausalidade rapidamente se torna

hegemônico. Os médicos norte-americanos,

enfim, faziam as pazes com a ciência. E esta

ciência se pautava na possibilidade de o capital

amealhar grandes dividendos. Instalavam-se as

bases para o chamado complexo médico

industrial:13 de aparelhos de investigação, com

microscópios cada vez mais poderosos, a exames

hematológicos cada vez mais sofisticados; de

medicamentos sintomáticos a antibióticos;

hospitais especializados cada vez maiores e mais

equipados.

Sua base científica era a das ciências

exatas. Abandona definitivamente a possibilidade

de ser também uma arte.11 A medicina sempre

tentou-se valorizar-se como ciência exata.14

Portanto, o biológico era o único pensamento

aceitável enquanto pudesse ser convertido em

dado matemático.11 Nestas condições de

desenvolvimento do capitalismo norte-

americano, de possibilidades de lucro no setor

saúde/doença, com uma teoria que justificava

esta lógica, o terreno era fértil para que

ocorresse uma “revolução científica”, na

linguagem de Kuhn.15

O modelo norte-americano

Em 1910, Flexner, professor da Johns

Hopkins University, financiada pela Rockefeller

Foundation,11 é contratado para realizar uma

investigação sobre o ensino médico nos Estados

Unidos. No início do século XX, havia cerca de 150

faculdades de medicina nos E.U.A., com toda

espécie de ensino e qualidade, mais de vinte

delas ensinando homeopatia, por exemplo.

Flexner produz com sua equipe um relatório

sobre essas faculdades, que aponta um modelo

padrão, o da Johns Hopkins University. Embora

aparentemente fosse um avanço para a época,

mais tarde esse modelo seria caracterizado como

negador de uma forma ampla dos aspectos

psicológicos e sociais.16 Cutulo,17 em sua tese

sobre educação médica, disseca profundamente

o conteúdo desse relatório. Vejamos o que pode

ser um resumo das principais idéias ali contidas:

(...) A ênfase do ensino deve ser

dividida entre básico (dentro do

laboratório) e profissionalizante (dentro

de hospitais) (...) denuncia as chamadas

seitas médicas como a homeopatia (...)

discrimina negros e mulheres (...)

hipervaloriza o ensino de anatomia (...)

não há menção ao ensino de saúde

mental, saúde pública ou ciências sociais.

Page 19: Caderno de Textos Erem 2012

19

A base diagnóstica deverá ser física e

biológica (...), e o melhor ensino é por

especialidades. Sua concepção de ciência

é manifestadamente positivista.

O chamado modelo flexneriano - e chamar

dessa forma é mais um mecanismo ideológico

para alienar - poderia ser chamado de medicina

positivista ou modelo unicausal, ou modelo da

Johns Hopkins, ou modelo da Rockefeller

Foundation, ou modelo norte-americano, ou

modelo da medicina do capital. Consolida-se nos

E.U.A., e culpa-se

hoje um homem,

escondendo de novo,

dessa forma, as

relações sociais e

econômicas

embutidas na

proposta.

Esse modelo

rapidamente torna-

se hegemônico nos

E.U.A., possibilitando

o desenvolvimento

das bases para o

capitalismo auferir

lucros com a doença -

o chamado complexo

médico industrial. Em

poucos anos,

expande-se para as

Américas do Norte e

Central, mas

encontra dificuldades

de hegemonia na América Latina.

O complexo médico-industrial no Brasil e o

Movimento Sanitário

O modelo flexneriano aporta com toda a

força no Brasil em função do golpe militar de

1964. Já andava entre nós desde 1950, mas não

era hegemônico. Nosso país baseava sua

formação no modelo europeu-eclético.

Com o golpe a algumas de suas

conseqüências - como a reforma universitária de

1968, a criação do Inamps, a expansão das

faculdades de medicina (de 26 em 1963, para 56

em 1973) -, com o conteúdo curricular

determinado pelo governo militar, atendendo aos

interesses do capital, com a supressão do ensino

da terapêutica, com a obrigatoriedade do ensino

centrado no hospital, entrávamos, enfim, na

“modernidade”. Era, então, criado o modelo que

formou quase todos os professores de nossos

atuais cursos de

medicina - o

modelo

flexneriano.

O modelo

de saúde imposto

pelo governo

militar restringia

em muito as

verbas para

prevenção (de 8%

do orçamento em

1963, apara 0,8%

em 1973), e sua

ênfase era posta

na atenção à

doença,

privilegiando o uso

de tecnologia.

Financiava-se com

dinheiro público a

construção de

hospitais privados.

Pagava-se por ações realizadas, e, quanto mais

utilizassem equipamentos, melhor pagamento

recebiam. Isso destacava as especialidades de tal

modo que a formação das universidades se

voltava para esse novo mercado. O local de

trabalho dos sonhos passava a ser o hospital,

bem equipado, com muitos laboratórios e

abundância de medicamentos.

Page 20: Caderno de Textos Erem 2012

20

A intervenção era curativa, e o Inamps

privilegiava cada vez mais a compra de serviços

em detrimento dos antigos serviços próprios dos

IAPs (Institutos de Aposentadoria e Pensões).11

Os setores que se devolvem são a Federação

Brasileira de Hospitais, a Abifarma (Associação

Brasileira da Indústria Farmacêutica), a medicina

de grupo (Abrange - Associação Brasileira de

Medicina de Grupo) e os produtores de

equipamentos. Hipertrofiam-se as faculdades de

medicina, onde não se ensina mais terapêutica.

Fragmenta-se o curso em múltiplas

disciplinas/especialidades, as aulas são

ministradas pelo especialista mais atualizado (e

não por quem entende de educação). O

estereótipo do profissional subproduto desse

modelo será visto no item “Um pouco de

epistemologia”. Os antigos trabalhadores dos

IAPs e do Ministério da Saúde reivindicam a volta

de melhores condições de trabalho, exigindo mais

verbas para prevenir doenças e serviços próprios,

gerando movimentos denominados,

respectivamente preventivistas e publicistas. A

estes se somam o renascimento do movimento

estudantil na área da saúde (os ECEM - Encontro

Científico dos Estudantes de Medicina) e os

intelectuais das universidades, que pleiteiam a

democratização do país e desenham modelos

alternativos de saúde, organizando-se em grupos

como o Cebes (Centro Brasileiro de Estudos de

Saúde), de caráter nacional. A eles se juntam o

movimento popular de saúde, capitaneado pela

Igreja, e o nascente movimento de medicina

comunitária (Murialdo, no RS, as experiências de

Londrina) e a organização da categoria médica no

Reme (movimento de Renovação Médica).19,13

O que os irmanava era a luta contra a

ditadura, contra a forma de atenção do complexo

médico-industrial e a necessidade de associar

prevenção com cura em um só ministério.

Na segunda metade da década de 1970,

esses movimentos isolados se unem e constituem

um grande ator social coletivo, chamado

Movimento Sanitário ou Movimento pela

Reforma Sanitária.

As políticas de saúde, a partir daí, são

resultantes do confronto entre essas duas forças

(complexo vs. Reforma), com evidente vantagem

para a política dominante até o fim da ditadura

militar.

Quanto a macrotendências ideológicas na

medicina, o final dos anos 1980 mostra esses dois

blocos: complexo médico-industrial vs.

movimento sanitário.

No governo Tancredo/Sarney, realiza-se a

8ª Conferência Nacional de Saúde - grande palco

para a demonstração de força do Movimento

Sanitário em Brasília. Dela se desenha a

necessidade de construir o SUS e resgatar as

bandeiras do movimento de medicina social

europeu do século XIX - que a saúde fosse direito

de todos e dever do Estado.

Do SUS ao Programa Saúde da Família

A aprovação da nova Constituição em

1988 e das Leis Orgânicas em 1990 garante

legalmente um sistema público de saúde que

deve ter equidade, integralidade, universalidade,

controle social e hierarquização da assistência. A

contra-hegemonia descobre, a duras penas, que a

escrita do texto legal não é suficiente para o

enfrentamento de uma hegemonia sanitária

capitalista. Cada palavra destacada nos remte

pensar na extrema dificuldade de sua

implantação num país sem tradição de cidadania

garantida.

Uma entre as múltiplas constatações é a

de que as universidades têm de formar outro tipo

de profissional. Um profissional que praticamente

inexiste na atenção primária/básica. As filas nos

hospitais são enormes em função disso. E a

leitura que a hegemonia faz é de que devem ser

construídos mais hospitais. O aparato ideológico

tenta demonstrar sempre que o serviço público é

ineficaz, que é só para pobres. As tentativas de

reversão da tendência hegemônica são para

Page 21: Caderno de Textos Erem 2012

21

reforçar o controle social, assumir a

administração de municípios, elaborar portarias e

normas operacionais, criar programas, fomentar

mudanças na trajetória de formação. As histórias

dessas tentativas podem ser simbolizadas pelas

lutas da ABEM desde a década de 1970, mas

muito mais fortemente a partir dos anos 1980. E

1991, cria, com outras entidades, a CINAEM, para

agrupar essa contra-hegemonia na formação e

apontar um modelo formador diferenciado.20

Os anos 1990 trazem perspectivas de

algum grau de mudança, seja pelos dirigentes das

instituições de nível superior na medicina ou por

se iniciar em 1993 (governo Itamar) uma

proposta de ênfase ministerial na atenção

básica/primária/integral da família com a criação

do Programa Saúde da Família (PSF).

A criação e a manutenção do PSF - que

não deveria mais ser chamado Programa Saúde

da Família, mas, sim, de Estratégia de Atenção

Básica, porque é estruturante do SUS - permitem

redimensionar a organização dos serviços de

saúde municipais.

A viabilização de maior aporte de recursos

para o PSF, a partir de 1997, por sobre a verba

irrisória do Piso de Atenção Básica (PAB),

estimula os municípios a contratarem, por salário

mais digno, médicos que tenham alta

resolubilidade e queiram trabalhar oito horas por

dia, em equipe multidisciplinar, promovendo

saúde e trabalhando com grupos terapêuticos nas

comunidades onde se localiza o Centro de Saúde,

fazendo educação e se vinculando a uma

população adstrita.

Pois bem, aí se põe a contradição em

evidência. Os municípios precisam de um

profissional que as faculdades de medicina, na

grande maioria, não estão formando, e não

querem um especialista, nem trabalho no

hospital.

O que nos pode parecer estranho na

verdade tem uma razoável explicação. O

capitalismo internacional, no interesse de

garantir o pagamento de dívidas externas dos

países aos bancos, passa a se interessar por

colaborar com os países que queiram investir em

atenção básica. O entendimento é que esta

atende melhor, com menor custo. Isto permite

que algumas diretrizes do SUS tenham

financiamento internacional. Este fato, associado

à luta do movimento sanitário, começa a criar

outra hegemonia na área da saúde.

Surgem financiamentos internacionais

para garantir um novo modelo de formação de

profissionais de saúde, em especial o médico.

Mas não se pense que o complexo médico-

industrial não luta pela sua manutenção. Ou que

o Banco Mundial e o Movimento Sanitário

pensem da mesma forma.

Ora, se entendemos estes movimentos na

área da saúde, entendemos que cada qual tenta

manter sua hegemonia, impregnar sua ideologia.

Os movimentos que propugnam a

mudança (que também não pensam exatamente

da mesma forma), como ABEM, Rede Unida,

Abrasco e CFM, pressionam o MEC em busca de

mudanças. E estas surgem, como por exemplo, a

aprovação das diretrizes curriculares em 2001,

para modificar os cursos da área da saúde até

2004.

As sucessivas gestões do Ministério da

Saúde aportam mais e mais recursos para

colaborar com a mudança, seja por intermédio do

PROMED ou agora com os Pólos de Educação

Permanente, trabalhando em todos os níveis:

desde parcerias com o serviço às residências ou

mestrados profissionalizantes.

Mesmo assim, nas faculdades de

medicina, a mudança é lenta; com muitas

dificuldades. Parece haver uma tendência a não

mudar, e isto nos remete a pensar nas teorias do

conhecimento.

Um pouco de epistemologia

Fleck,21 médico epistemólogo, ao estudar

estilos/coletivos de pensamento, nos explica

como se dá a instauração de um estilo, como

Page 22: Caderno de Textos Erem 2012

22

dentro de um coletivo ele se mantém e granjeia

novos “adeptos”, e como um estilo tende a

persistir e a não dialogar com os diferentes.

Na gênese da mudança de um estilo de

pensamento, vários autores adotam, na lógica

construtivista, maneiras semelhantes. Já nos

parece suficientemente explicado que a

determinação é externa, social e ideológica; mas

é preciso esclarecer um pouco mais a lógica

interna. Autores como Kuhn,15 falando de

revolução científica para mudança de

paradigmas, Bachelard,22 tratando de rupturas

epistemológicas, ou Piaget,23 dizendo das

desequilibrações para construir um novo pensar,

nos trazem as dificuldades estruturais internas de

mudança no pensar.

Esquematicamente, podemos dizer que há

três níveis de dificuldade para mudança:

a) Estruturais externas - as que envolvem

o capitalismo internacional e nacional. Da

organização Internacional do Comércio ao

complexo médico-industrial. As do governo,

como a estrutura do MEC, a lógica do Ministério

da Ciência e Tecnologia;

b) Estruturais internas - dependentes do

contexto social: como se constrói um estilo de

pensamento;

c) Conjunturais - GED (gratificação das

universidades federais); não-contratação de mais

professores; professores que não acreditam em

educação; falta de disponibilidade horária para

reuniões; não haver dedicação exclusiva; a

estrutura dos guetos departamentais; a não-

prática acadêmica; a separação básico-

profissionalizante; o reconhecimento de liderança

para chamar uma reunião só se for do “seu time”.

O caso que nos interessa examinar neste

trabalho é a existência de dois grande blocos

ideológicos e a diferença entre eles, para tentar

caracterizar as dificuldades estruturais internas. O

agrupamento a seguir radicaliza as diferenças,

mas a partir delas poderemos pensar em

matizes.24

Grosso modo, hoje as tendências

ideológicas podem ser divididas assim:

É claro que são estereótipos, mas servem

como balizamento para entender os grandes

confrontos ideológicos.

Acredito que uma caricatura de um

exemplo prático seja a forma mais fácil de

decodificar como se dá a entrada de um novo

MUDANÇA NÃO-MUDANÇA

Movimento pela Reforma

Sanitária

Atuação/valorização

do complexo médico-

industrial

Verdade como

processo/provisioriedade Verdade absoluta

Valorização da pesquisa

qualitativa

Só interessa a pesquisa

quantitativa

Valorização da psicologia e do

cultural

Valorização da célula e

da química

Valorização da atuação

multiprofissional/interdisciplinar Todo poder ao médico

Valorização da pessoa como um

todo

Valorização do

conhecimento

fragmentado

Permeabilidade/humildade Onipotência

Flexibilidade Rigidez

Pensamento crítico político Alienação

Centro de saúde/comunidade Hospital/indivíduo

Inclui promoção de saúde Só trará o doente

Educação como relação sujeito-

sujeito, na relação médico-

paciente

Educação com o

médico-sujeito e o

paciente como objeto

Flexibilidade para outras

racionalidades médicas

Fechamento para

outras racionalidades

(chamadas de

charlatanismo, etc)

Valorização da saúde pública Negação à saúde

pública

Page 23: Caderno de Textos Erem 2012

23

integrante num estilo de pensamento e como

este vai reproduzi-lo depois. Tomemos um

médico, que trabalha como professor vinte horas

por semana num hospital-escola e outras vinte

horas semanais em seu consultório privado,

numa policlínica, em sua especialidade. Faz dois

plantões em emergência por semana. Fez sua

especialização num hospital em Ohio (E.U.A.),

tendo morado lá durante quatro anos. É

professor há dois anos, e seu salário como tal

beira o ridículo. Um de seus alunos na décima

terceira fase do curso

pergunta sobre um

detalhe anatômico raro

num músculo que só

uma cirurgia

especializada consegue

visualizar. O professor

sabe a resposta,

estudou muito sobre

aquilo (aquele pedaço

do corpo), já salvou

vidas em função disto,

ganha dinheiro com

esse saber, fez um curso

recente de atualização e

aprendeu novos exames

e medicamentos a

recomendar. Ele não

lembra o nome de seu

paciente, também não

sabe se tem família ou

em que trabalha; refere-se a ele como “o do leito

14”. Lembra que suas aulas (quando ainda era

aluno) eram para cem alunos, e ele tinha que

estudar muito em casa para decorar novas

inserções musculares (era isso que caía na prova);

teve de “ralar” muito para conseguir fazer sua

residência; teve de copiar o discurso de seus

professores (estudando por cadernos), se não

“rodava”. Lembra quando o professor disse que,

se não usasse as palavras científicas, não seria

aceito no coletivo. Lembra também quando ouviu

o “rolar protodistólico” no leito 37, que o

professor de semiologia tanto valorizou; seus

colegas não ouviram (Ah! Que satisfação tão

grande ganhar uma competição de

conhecimentos...). Portanto, aprendeu um jeito

de falar, teve reforço psicológico por ouvir de

uma determinada forma, tirou notas boas por

decorar técnicas, e em função disso foi aceito

num coletivo. Acabava, dessa forma, de entrar no

estilo de pensamento hegemônico, sem ao

menos saber o que é hegemonia ou os grandes

blocos históricos.7

Além disso, dentro do estilo de

pensamento gerado, ele só será aceito e

respeitado se cumprir

algumas regras do coletivo,

tais como: nossa verdade

científica não aceita que

possam existir outras

verdades (a isso Fleck

chama de

incongruência/incomensur

abilidade entre estilos de

pensamento); os outros

profissionais da saúde

estudaram menos, sabem

menos, tem menos

responsabilidade, portanto

quem deve tudo mandar é

o médico. E, como

conseqüência, trabalho

interdisciplinar não cabe.

Para manter o monopólio

do conhecimento do

fragmento, deve participar

de muitos congressos de especialidade, onde não

existem questionamentos sobre o caráter

geral/social que a medicina deve ter.

Quando for professor vai fazer uma

“suave coerção”21 para que os alunos tenham os

mesmos rituais de iniciação, falem a mesma

linguagem e reproduzam o estilo de pensamento,

e que construam muros para não deixar entrar

outras idéias “alienígenas”. E entende que, para

ser bom professor, basta aprofundar o

conhecimento técnico da especialidade e

despejar este conteúdo no recipiente vazio, que é

a cabeça do aluno.25

Page 24: Caderno de Textos Erem 2012

24

O objetivo é reproduzir o seu modelo

(considerando que seja bem intencionado), e,

portanto, será o da medicina privada, que lhe dá

dinheiro. Pede muitos exames e receita muitos

remédios porque senão diz que os pacientes não

acreditam nele. E ainda, se não pedir e acontecer

algum contratempo, poderá sofrer uma ação

judicial. Fala uma linguagem de círculo

esotérico/só para iniciados,21 o que lhe dá a

impressão de que os pacientes e os alunos ficarão

embevecidos de ouvi-lo. Tudo o que não esteja

de acordo com o seu pensamento cartesiano é

“falsa medicina”, perda de tempo ou politicagem.

Não conhece o SUS, ou o que seja promover

saúde. Saúde pública é para sanitaristas.

Desconhece ou nega que epidemiologia é a base

de seu raciocínio.26

Acredita que, se a

maioria da categoria

médica pensa de uma

forma, nada vai

mudar nas políticas de

saúde (nem para ele),

por isso não precisa

estar atualizado nelas.

O melhor lugar para

pedir exames é uma

clínica que já tenha

laboratório ou um

hospital. Ah! O hospital!!! Entende que não é

possível saber toda medicina, então se aprofunda

na parte (oportunamente na víscera). Acredita

que sabe tratar prescrevendo: exercício, dieta,

mudança de hábitos, medicamentos e cuidados.

Mas atenção! É aqui que a falácia se estabelece:

- Onde ele aprendeu medicamentos? Na

farmacologia da quarta fase? Como os

representantes de laboratório? Copiando como

verdade o que o professore do leito prescreve?

- O que sabe de dieta, se em seu curso

não gastou mais que (no máximo) vinte horas

estudando alimentos?

- Exercícios adequados ele aprendeu com

fisioterapeuta ou com professor de educação

física? Já que médico tem de ensinar médico,

qual o médico que sabe disso?

- Para mudar hábitos há implicações

pedagógicas. Onde aprendeu educação? Vendo

os seus professores? As propagandas do

Ministério? Já estudou alguma vez Paulo Freire

ou pedagogia problematizadora ou PBL?

Existem, portanto, dois grandes

blocos/macrotendências ideológicas. Dentro

deles, diversas nuanças. O estereótipo acima

pode até nem existir de forma tão radicalizada,

mas... Faz pensar. Como se faz então para que a

mudança, na direção que a contra-hegemonia

deseja, possa acontecer?

As possibilidades de mudança

Se a ideologia está

baseada nas condições

materiais de existência, e

estas produzem o

pensamento hegemônico, a

mudança do mercado de

trabalho é um potente

mecanismo indutor de

mudanças. Com uma nova

lógica de financiamento para a

atenção básica e sendo o grande agente

contratador os municípios - que recebem mais

por terem médicos gerais que promovam saúde -,

há um estímulo para que formação se dê de

forma diferenciada.

Ao lado dessa questão estrutural, as

forças que apostam na mudança têm de investir

numa ruptura epistemológica/revolução

científica/novo estilo de pensamento dentro das

academias. Isso se dá sensibilizando os

serviços/comunidades onde os alunos

começaram a conviver, os diretores das

faculdades e, principalmente, passando pela

ideologia dos alunos e professores dos

departamentos. Aí é que está o nó. Em sua

maioria, os professores não abrem brechas em

Page 25: Caderno de Textos Erem 2012

25

suas muralhas, não querem conversar, são

impermeáveis, boicotam a mudança, pois esta os

deixa inseguros (isso é a incongruência fleckiana

de pensamento).

As possibilidades nas universidades estão

no trabalho interdisciplinar; no ouvir os alunos;

na inserção precoce destes, em contato com as

pessoas das comunidades; na inclusão do

conteúdo educação/pedagogia nos cursos; na

criação de rodas de discussão (no começo só os

permeáveis virão; é necessária a insistência

permanente na abertura aos outros, às

diferenças).

Portanto, ouvir o outro, respeitar opiniões

diferentes, permitir-se considerar que seu

pensamento não está pronto - que não há um

jeito de olhar, que existem possibilidades boas de

atuações diferentes da sua, que as respostas que

temos dado podem ser muito melhoradas.

O problema é que quem admite essas

premissas já está permeável ou em processo de

mudança, pois está construindo o novo modelo.

Os que não aceitam isso é que não querem o

novo modelo.

Para trabalhar a questão, que é

fundamental, temos que entender cada vez mais

como funcionam “as cabeças” dos médicos do

modelo tradicional. Não adianta iniciar as

discussões por filosofia/epistemologia, porque

eles nem virão se o tema for este. Só admitirão

reconhecer esses assuntos como importantes se

sua “verdade médica” for abalada. É o que

Cutulo17 chama de criar ou buscar complicações

para este raciocínio linear do positivismo.

Desestabilizar as “verdades”. Portanto, trabalhar

com o desmonte dessas verdades médicas que

não incorporam o psicológico, o cultural e o

social.27 Desconstruir o “paradigma” biologicista.

Desmascarar as certezas (saber remédios, dietas,

exercícios, cuidados; onde aprenderam?).

Será necessário formar novos

profissionais, mesmo que o grupo contra-

hegemônico seja minoritário, para que estes

sejam os novos professores. O Ministério da

Saúde tem feito a sua parte, estimulando as

rodas de Educação Permanente, também como

fonte de financiamento para projetos. A Portaria

198 do Ministério da Saúde de fevereiro de 2004

(MS-2004) caracteriza a Educação Permanente

como a continuidade da luta pela reforma

sanitária e a ruptura dos monopólios do saber;

não é a academia que tudo sabe, nem o serviço,

porquanto fruto também dessa academia, mas a

interface dos dois, com os atores do controle

social, que pode apontar as verdadeiras

necessidades da população.

Teremos de continuar a pressionar o MEC,

ampliando o número de aliados nesta direção,

para rever sua política de pós-graduação,

compatibilizar as necessidades da população com

as residências médicas (aliás, por que não

multiprofissionais?), contratar novos professores,

mudar a graduação, etc.

Não se trata de abandonar a prática

médica clínica tradicional, mas redimensiona-la,

ressignificá-la, enquadra-la numa prática

humanizada, crítica, reflexiva, que veja a pessoa

como um todo nas suas relações e que amplie as

possibilidades de resolubilidade. Em suma,

contribuir para que o povo reaja às situações de

opressão física, mental e social, e possa ser mais

feliz. E isso inclui as possibilidades para que o

médico também possa ser.

“Quem tem consciência para ter coragem

Quem tem a força de saber que existe

E no centro da própria engrenagem

Inventa a contra-mola que resiste

Quem não vacila mesmo derrotado

Quem já perdido nunca desespera

E envolto em tempestade decepado

Entre os dentes segura a primavera”

Primavera nos dentes – Secos e Molhados

Page 26: Caderno de Textos Erem 2012

26

DE QUE MÉDICOS

O POVO BRASILEIRO

PRECISA?

Por um novo ciclo de lutas pela Educação Médica Brasileira

Thiago Henrique dos Santos Silva

(Gaúcho)

Nestes anos de 2012 nos vemos diante de uma pergunta incômoda: o que de fato mudou nas Escolas de Medicina desde as Diretrizes Curriculares Nacionais de 2001? Será que de fato conseguiu-se imprimir mudança significativa nos currículos médicos? Conseguimos avançar na formação de um profissional ético, humanista e crítico ao mundo que o cerca? Conseguimos construir uma real articulação com o SUS? E essa articulação se dá em que grau? Conseguimos fazer da Educação uma prática de liberdade ou somente implementamos metodologias mais ativas de aprendizagem? Por fim, estamos realmente formando os Médicos de que realmente precisa o Povo Brasileiro? Estas são questões candentes em nosso tempo, e todos e todas que estão envolvidos neste cenário de lutas precisam se debruçar sobre elas. Porém, seria impossível avançar neste debate sem conhecer um pouco da história das lutas pela Educação Médica. No início da década de 90, já no período que marcaria o fim do ascenso da consciência política e de massas na sociedade Brasileira, a categoria médica, organizada em suas entidades representativas, se deparou com o primeiro debate sobre a qualidade da Formação dos Médicos no País. Era a primeira tentativa de impor um Exame de Ordem para os Médicos.

Aliado a isto, as forças progressistas da sociedade tinham em sua agenda política a tarefa principal de efetivar as conquistas da Conferência de 1988, de colocar em cena estas bandeiras democráti cas e de disputa-las com a nossa Elite, que nunca teve interesse em que o Brasil atingisse nem mesmo a Democracia plena, quanto mais uma sociedade justa e igualitária de fato. No grande cenário da Saúde, a tarefa era efetivar o SUS! E no “micro-cenário” da Escola Médica, a tarefa era: formar médicos capazes para atuar bem neste patrimônio do povo Brasileiro, que é o SUS! Neste cenário político, ainda vigoravam à frente destas entidades uma parcela mais progressista da Categoria, que travava

importantes embates com os governos de plantão sobre a necessidade de se avançar na construção do SUS. Diante da crise desencadeada nesta época em que colocava em xeque a formação nas 80 Escolas Médicas e que propunha um exame ao fi nal do curso que penalizava o estudante por toda uma deficiência estrutural da Saúde e Educação Públicas, estas entidades propuseram uma avaliação ampla, aprofundada, que saísse do debate superficial do “erro médico” para chegar às suas causas, e assim trazer à tona quais de fato eram os Determinantes para que a Educação Médica Brasileira

estivesse em crise, e assim expor as fragilidades dos governos que se sucediam desde a reabertura democrática em dar respostas aos anseios da População e para efetivação do sistema único. Assim nasceu o Projeto CINAEM, que atravessou a década de 90 como um espaço de aglutinação de forças em prol de uma Educação Médica a serviço do SUS, e se configurava em mais uma arena de disputa política com os governos de Direita que se sucederam nesta época. CFM, FENAM, Sindicatos, ANDES-SN, DENEM e ABEM (dentre outras) tiveram papel fundamental neste processo, tendo a DENEM durante muito tempo ocupado a vice-presidência de tal comissão.

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Como anteriormente colocado, essas entidades não estão imunes às outras disputas que ocorrem na sociedade. A década de 90 veio e o Neoliberalismo enfraqueceu bastante as forças que se propunham minimamente a divergir do projeto da Elite Brasileira. Com isso, forças conservadoras foram se apropriando das Direções de algumas destas entidades, provocando rachas importantes, o que culminou com o fim da CINAEM no inicio dos anos2000. No ano de 2001, ainda no governo FHC, foram editadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Medicina, com o produto do que ficou da CINAEM. De lá pra cá muita história se passou e se sucederam os programas governamentais afim de “implementar estas mudanças”, tais como PROMED, PRO-Saúde, PET-Saúde, etc. São 11anos de Diretrizes Curriculares e boa parte dos cursos que hoje funcionam são “adequados” às Diretrizes desde seu nascedouro, e outros tantos passaram por processos de Reforma Curricular para se adaptar. Porém, o que se vê na prática é que não se conseguiu mudar o perfil do egresso do curso de Medicina. Existem problemas de ordem estrutural, que saem da esfera da Escola Médica, que os movimentos “reformistas” optaram por não debater, e ao fazê-lo incorreram em erros de análise que fatalmente levaram à ineficácia da ação. A própria CINAEM não pode ser vista do ponto de vista histórico de forma “romantizada”, pois também apresentava vários problemas internos e muitas disputas, uma vez que era composta por diferentes interesses representados pelas diferentes entidades. O que conseguimos constatar é que à semelhança do que vem ocorrendo com muitos dos ideais da Reforma Sanitária Brasileira, a bandeira da Educação Médica de qualidade e voltada para o SUS vem sofrendo o que se pode chamar de “adequação à ordem”. São diversos os fatores que influenciam para este processo, e não nos cabe neste pequeno texto destrinchá-los. Porém, sabendo que este processo existe, abre-se uma bifurcação, na qual temos necessariamente de fazer uma escolha: ou abandonamos a luta neste cenário político (o da Educação Médica) ou nos debruçamos sobre ele de forma responsável e contundente, avaliando dialeticamente as formulações dos períodos anteriores e superando os entraves e as limitações que apresentaram os movimentos que se sucederam ao longo dos anos.

É sabido que os últimos 20 anos de lutas pela

Saúde tiveram como norte uma determinada

estratégia políti ca, de ocupação dos espaços

institucionais, de formação de quadros políticos

para esta disputa, e a DENEM cumpriu papel

importante, tanto como ator político

determinante neste cenário, como formador de

quadros para tais espaços institucionais. Hoje

conseguimos enxergar, cada dia com mais

clareza, os limites da luta por estes meios, e

emerge para esta nova geração uma tarefa difícil,

porém importantíssima: inaugurar um novo ciclo

de lutas pela Educação Médica Brasileira.

Precisamos redesenhar nossas formulações, nos

permiti r ao novo, no dedicar a escrever e a agir

de modo diferente.

O Movimento Estudantil ao redor de todo o mundo tem mostrado que consegue ser a ponta-de-lança, a vanguarda dos grandes processos de mudança. Na luta pelo SUS e por uma Escola Médica de novo tipo o MEM também cumpriu importante papel. Hoje, num cenário privatizante para todos os lados, de ataques à diretos, de “pasteurização” e tecnificação da política, urge formularmos uma militância de novo tipo, uma militância que ousa mais uma vez se levantar contra as opressões de um sistema que deseja sim formar médicos, mas médicos que sirvam de ferramentas pra conter a fúria popular pela falta de seus direitos, e não médicos(como queremos ser) que sirvam de instrumento de transformação deste mundo injusto, médicos dos quais de fato precisa o nosso Povo Brasileiro!

“Tá vendo aquele colégio moço

Eu também trabalhei lá

Lá eu quase me arrebento

Fiz a massa, pus cimento

Ajudei a rebocar

Minha filha inocente

Vem prá mim toda contente

"Pai vou me matricular"

Mas me diz um cidadão:

"Criança de pé no chão

Aqui não pode estudar"

(Cidadão, Zé Ramalho)

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SOBRE A LUTA

POR CURRÍCULOS

Armando De Negri

A luta por transformações curriculares,

historicamente, tem sido uma das grandes

deficiências do movimento estudantil. Seja pela

não compreensão de sua importância, levando a

uma não implantação dessa luta; seja por uma

compreensão equivocada do objetivo e a forma

de trabalhar estas transformações, levando a um

trabalho especifista e infrutífero. Ambas as visões

são danosas ao movimento e ambas devem ser

superadas.

A importância do estudo dos currículos

decorre do seu papel na formação do futuro

profissional. Na universidade brasileira, que é um

aparelho ideológico (instrumento utilizado para

reproduzir um determinado modo de pensar) da

classe economicamente (consequentemente

politicamente também) dominante, os currículos

são organizados de forma a reproduzir as

relações de produção (forma que os homens se

relacionam entre si, para produzir e distribuir as

riquezas) da nossa sociedade, esterilizando e

compartimentalizando o conhecimento,

desvinculando do contexto global. O

conhecimento transmitido hoje nas universidades

visa formar técnicos que sirvam aos interesses da

classe dominante, técnicos que não tenham uma

visão crítica de sua inserção dentro da sociedade.

É assim que os currículos atuais se caracterizam

pela distância da realidade, a ultra-

especializaçãoe a tecnificação e o fracionamento

do conhecimento.

A primeira dificuldade com trabalho de

currículo é definir qual o nosso objetivo (aonde

queremos chegar e aonde vamos mexer). Ao

nosso ver devemos reivindicar a formação de um

profissional para dar respostas a uma

determinada realidade, que deve ser

tecnicamente preparado e politicamente

comprometido com os problemas mais sentidos

da população (aqui não deve haver qualquer

dicotomia entre a competência técnica

profissional e o comprometimento político).

Um grande erro freqüente na maioria dos

processos de reformas curriculares é o de se

limitar a fazer reformas na grade curricular,

retirando disciplinas, adicionando outras, até

integrando algumas. Achamos que esta forma de

trabalhar é equivocada, pois a principal distorção

na formação não é a grade curricular em si, mas

sim o seu marco conceitual (determinado método

utilizado para conhecer uma determinada

realidade) que está implícito neste currículo.

Assim, de nada vale mexer na organização de

uma grade curricular sem mexer na lógica sobre a

qual se encara o conhecimento, que está

implícito nesta organização. É importante

ressaltar que este marco conceitual (no caso

positivista da análise) não está implícito apenas

nas pessoas que elaboram este currículo, mas sim

na maioria absoluta de docentes e discentes. Por

isso, de nada vale mudar a grade curricular,

mudar sua lógica interna (marco conceitual), se

os professores que vão repassar o conhecimento

e os estudantes que vão recebê-lo ainda têm a

mesma lógica de encarar o conhecimento.

O método positivista de trabalhar o

conhecimento faz parte da ideologia burguesa

(que é a da classe dominante no capitalismo), que

não é exclusividade das universidades, mas que

permeia toda nossa sociedade, que recebe esta

forma de pensar através dos meios de

comunicação, das escolas, e até da educação

informal. Sendo assim, a luta por currículos não

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pode ser travada sem uma ligação com as lutas

mais gerais que trazem em si a luta ideológica, a

luta pela conscientização do nosso povo dos seus

reais interesses e dos seus reais inimigos.

Outro erro bastante freqüente nas lutas

pelas reformas curriculares é a tentativa de

viabilizá-las através de discussões dentro dos

órgãos colegiados, que têm uma composição

autoritária muito desfavorável, nos quais os

estudantes, que estão geralmente a frente desses

processos, estão com representação minoritária,

sendo esta correlação desfavorável e uma

barreira histórica nessas lutas.

O movimento deve trabalhar esforços

para buscar espaços onde esta correlação seja

mais favorável a essas mudanças. A organização

de fóruns paralelos onde o conjunto da

comunidade universitária possa discutir, opinar e

deliberar diretamente e universalmente pode ser

uma forma de demonstrar a distância que existe

entre os interesses da comunidade universitária e

dos senhores de paletó que compõe os órgãos

deliberativos da universidade, fazendo com que a

correlação de forças se inverta e que a

organização independente da comunidade faça

valer as suas posições. Mas isto só não basta, pois

existe uma barreira que tradicionalmente entrava

as transformações que é o estatuto da

universidade.

A organização da comunidade possibilita o

desmascaramento do estatuto e ainda favorece a

possibilidade da realização de “pactos” extra-

institucionais, da desobediência que pode ocorrer

independentemente das legislações, pois

sabemos que o que determina, dentro e fora da

universidade, é a correlação de forças entre

segmentos e classes sociais. Assim, pode-se

estabelecer pactos como a não realização de

chamadas, a mudança do método de avaliação

etc. Como vimos, a luta pela transformação

curricular é uma luta fundamentalmente

ideológica, que não está restrita a universidade e

que deve ser travada globalmente,

demonstrando as contradições que existem entre

os interesses da maioria da nossa população e

uma minoria que determina toda a nossa vida

segundo os seus interesses. Sendo assim, esta

consciência vai brotar de todas as lutas que

seremos obrigados a travar e não apenas de uma

isoladamente. Dessa forma, é impossível que nós

consigamos a formação de profissionais

comprometidos e preparados para dar respostas

às necessidades de nosso povo (pelo menos a

maioria dos profissionais egressos da

universidade) nos marcos do sistema capitalista,

mas podemos abrir espaços de contradição

dentro da universidade, inserindo um contato

maior com a nossa realidade, uma abordagem

mais crítica do conhecimento e da profissão.

Esses espaços não são preestabelecidos, mas

dependem do grau de consciência e organização

da comunidade universitária, ou seja, da

correlação de forças dentro da universidade e da

sociedade em geral.

“Uma flor nasceu na rua!

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do

tráfego.

Uma flor ainda desbotada

ilude a polícia, rompe o asfalto.

Façam completo silêncio, paralisem os negócios,

garanto que uma flor nasceu.

É feia. Mas é flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o

ódio.”

(A flor e a náusea, Carlos Drummond de Andrade)

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Público e Privado na

Gestão da Saúde

Raquel Torres para Revista POLI nº 19

(EPSJV/FIOCRUZ)

Diversos modelos para gerir o SUS têm surgido

nos últimos anos. Quais serão suas implicações?

Experimente perguntar por aí quais são os principais problemas do Sistema Único de Saúde (SUS). Provavelmente, dois itens aparecerão em massa nas respostas: financiamento insuficiente e má gestão. A falta de recursos financeiros para o Sistema é alvo de debates desde a sua criação e você os vem acompanhando em diversos números da revista Poli (edições 1, 4, 5, 9, 15).

No caso da gestão, as discussões também são antigas. Desde os anos 1990 têm sido buscadas alternativas ao modelo proposto na Constituição Federal de 1988 - segundo a qual a saúde é um dever do Estado e as instituições pri-vadas podem participar do SUS de forma complementar, tendo como preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos -, sob a justificativa de que é necessário dar agilidade e flexibilidade a uma gestão considerada morosa e pouco eficiente.

Assim, surgiram e se desenvolveram modelos e regimes de que você certamente já ouviu falar muito, como as Organizações Sociais (OS), as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips), as parcerias público-privadas (PPP) e as Fundações Públicas de Direito Privado, que ficaram conhecidas simplesmente como Fundações Estatais.

Mais recentemente, em dezembro do ano passado, houve ainda uma surpresa: no último dia de seu mandato, o então presidente Lula publicou, com o ministro da Educação Fernando Haddad, uma Medida Provisória (MP 520) autori-zando a criação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), voltada para a gestão de hospitais universitários.

Manifestações contrárias a propostas como essas aparecem por todo o país: em diversos estados há fóruns de saúde que têm se

articulado, formando a Frente Nacional contra a Privatização da Saúde. A principal crítica é a de que essas medidas são de cunho privatizante, embora haja quem discorde. Nesta reportagem, você vai entender o que são esses modelos, o que eles implicam e quais são os principais pontos de discussão em cada um deles.

1988: retrocesso?

A possibilidade de administração da ‘coisa pública’ pelo direito privado é antiga na nossa legislação. O decreto-lei 200/1967, que dispõe sobre a administração federal no Brasil, divide essa administração em direta - constituída pelos serviços integrados na estrutura da presidência da República e dos ministérios - e indireta - que compreende as autarquias, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e ainda as fundações públicas, que, segundo esse documento, são dotadas de personalidade jurídica de direito privado.

A partir da Constituição de 1988, muitos juristas passaram a entender que as fundações públicas deveriam passar a ser trabalhadas apenas como de direito público, embora essa nunca tenha sido uma unanimidade. A lei nº 8.080, que regulamenta o SUS, prevê ainda que a participação complementar das entidades privadas só deve ser admitida quando as disponibilidades do SUS não forem suficientes para garantir a cobertura populacional e essa participação complementar deve ser formalizada respeitando as normas de direito público, o que inclui, por exemplo, os processos de licitação.

Mas foi logo na década de 1990, época do avanço do neoliberalismo no Brasil, que começaram a ser pensadas estratégias menos centradas no poder público para gerir áreas como saúde e educação, sob a justificativa de que a legislação “engessava” o aparelho estatal.

Nesse cenário, começou a ser gestado o Plano Diretor da Reforma do Estado, coordenado por Luiz Carlos Bresser-Pereira, ministro de Administração Federal e Reforma do Estado (MARE) no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso. Foi esse Plano que citou as OS, pela primeira vez, como uma saída para melhorar a gestão.

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O documento, de 1995, trazia uma noção de Estado bem diferente daquela concebida na nossa Constituição: um dos itens do Plano se chama justamente ‘O retrocesso de 1988’. O texto aponta, entre os problemas trazidos pela Carta, a “estabilidade rígida” dos servidores civis, o aumento dos gastos com pessoal e a retirada da flexibilidade operacional da administração indireta. Assim, “como resultado do retrocesso burocrático de 1988 houve um encarecimento significativo do custeio da máquina administrativa, tanto no que se refere a gastos com pessoal como bens e serviços, e um enorme aumento da ineficiência dos serviços públicos”, diz o diagnóstico do Plano.

Publicização e privatização

Algumas questões foram pontuadas no documento: o Estado deveria permanecer realizando as mesmas atividades ou algumas poderiam ser eliminadas? Havia atividades que poderiam ser transferidas da União para estados ou municípios, ou ainda para o setor privado ou para o setor público não-estatal? O Estado precisava realmente do contingente de funcionários de que dispunha? As respostas a essas questões, elaboradas ao longo do Plano, apontavam para a estruturação de um Estado responsável não mais por executar políticas pú-blicas, mas apenas por financiá-las e coordená-las. A consequência disso, segundo a professora Maria Inês Souza Bravo, da Escola de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), foi o enxugamento do Estado brasileiro.

“Fizemos nossa reforma no fim dos anos 1980, tentando construir um Estado de direito, na contramão do que estava acontecendo no cenário internacional. As medidas que vieram a

seguir são o resultado de propostas mais conservadoras e, consequentemente, surgiram novos modelos de gestão”, afirma.

O Plano Diretor distinguiu, no aparelho do Estado, quatro setores:

o núcleo estratégico, as atividades exclusivas, os serviços não exclusivos e a produção de bens e serviços para o mercado. E, para cada um desses setores, o controle do Estado deveria variar.

O primeiro - o núcleo estratégico - corresponde aos Poderes Legislativo e Judiciário e ao Ministério Público, além do Presidente da República, os ministros, seus auxiliares e assessores diretos.

Trata-se do “setor que define as leis e as políticas públicas, e cobra o seu cumprimento”.

As atividades exclusivas, por sua vez, são serviços “que só o Estado pode realizar”, porque se exerce o poder de regulamentação, fiscalização e fomentação. É aí que entram a polícia, a cobrança de impostos, a previdência social básica e o serviço de trânsito. De acordo com o Plano, nesses dois primeiros setores, é necessário que o Estado tenha controle absoluto.

No entanto, não é essa a indicação para os dois últimos. Nos chamados serviços “não exclusivos”, em que se encaixam a saúde e a educação, “o Estado atua simultaneamente a organizações públicas não-estatais e privadas” e, segundo o Plano, a propriedade ideal para esses serviços é a pública não-estatal: “As organizações nesse setor gozam de uma autonomia administrativa muito maior do que aquela possível dentro do aparelho do Estado”. É para esses serviços que o Plano propõe a criação das OS, numa estratégia definida como ‘publicização’, que seria a transferência desses serviços para o setor público não-estatal. Assim, o objetivo era transformar as “fundações públicas em organizações sociais, ou seja, em entidades de direito privado, sem fins lucrativos, que tenham autorização específica do poder legislativo para celebrar contrato de gestão com o poder executivo e assim ter direito a dotação orçamentária”.

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Por fim, o setor de produção de bens e serviços para o mercado corresponde à área de atuação das empresas, como o fornecimento de água e luz. Nesse caso, a orientação também era clara: “Dar continuidade ao processo de privatização através do Conselho de Desestatização”.

Grandes marcos

Para Geandro Pinheiro, assessor da vice-direção de desenvolvimento institucional da EPSJV/ Fiocruz, o primeiro grande marco deixado pelo Plano Diretor foi decorrente das próprias proposições do documento, que aponta um Estado fortemente atuante apenas em determinadas áreas. “Tudo o que não foi considerado estratégico ou exclusivo passou a poder ser assumido pela ‘sociedade’ - e a ‘sociedade’ passa então a ser um vernáculo usado para disfarçar o próprio mercado”, diz Geandro.

A partir daí, ocorreram algumas mudanças importantes, como a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (a lei complementar 101/2000); a lei 9.637/98, que instituiu as OS, os contratos de gestão e o programa nacional de publicização; e a lei federal 9.790/99, que instituiu as Oscips.

Geandro considera que a Lei de Responsabilidade Fiscal está na origem de muitas questões na discussão de modelos jurídicos hoje. Isso porque uma das definições dessa lei diz respeito ao percentual da receita corrente líquida que pode ser gasto por cada ente federado com pessoal:

para a União, são 50%, enquanto para estados e municípios são 60%. “Para se adequar à lei, foram criadas verdadeiras cartilhas explicando como municípios, estados e a União deveriam atuar para atingir aquele percentual.

E muitas dessas saídas estavam vinculadas

à terceirização”, explica. A criação de OS e Oscips tem tudo a ver com esse processo, justamente porque permitem contratar pessoal fora da folha direta de pagamento.

Trabalhadores precarizados e ausência de licitações

De acordo com a nossa legislação, o Poder Executivo pode qualificar como OS “pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde”. Essas organizações devem firmar, com o Poder Público, um “contrato de gestão”, para a “formação de parceria entre as partes para fomento e execução de atividades”. É esse contrato que discrimina as atribuições, as responsabilidades e as obrigações de cada uma das partes: ele deve conter metas a serem atingidas e prazos de execução.

Outra característica importante diz respeito à extinção de órgãos públicos, como parte do Plano Nacional de Publicização: todos os órgãos responsáveis por exercer as atividades listadas ali em cima deveriam ser extintos, enquanto essas atividades deveriam ser absorvidas pelas OS. Também ficou prevista a cessão de servidores públicos dos órgãos ou entidades extintos para as organizações.

No mesmo ano em que foi aprovada a lei das OS, deu-se entrada na ação direta de inconstitucionalidade (Adin) 1.923/98, justamente para contestar essas características. Preocupada com a cessão de servidores públicos para instâncias privadas, com o método de qualificação das OS e com a sua aplicação nas áreas de saúde e educação, a Adin não foi votada até hoje.

As Oscips também são pessoas jurídicas de direito privado e sem fins lucrativos, mas estão excluídas do rol de entidades que podem ser qualificadas como Oscips os sindicatos, as instituições religiosas e cooperativas, entre outras. A legislação também define quais devem ser as finalidades das entidades para que elas possam ser qualificadas como Oscips - trata-se de objetivos como a defesa do meio ambiente, a

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promoção da assistência social, do voluntariado, do desenvolvimento econômico, dos direitos humanos e da cultura, por exemplo.

Em vez de contrato de gestão, as Oscips fazem, com o Poder Público, um ‘termo de parceria’, destinado a formar um vínculo de cooperação entre as partes. Assim como o contrato das OS, esse termo discrimina os direitos, as responsabilidades e as obrigações das partes. No entanto, diferentemente do que ocorre com as OS, no caso das Oscips não há a prerrogativa de que devam ser extintos órgãos ou entidades administrativas já existentes.

Tanto as OS quanto as Oscips têm autonomia para definir, em seus regulamentos, os procedimentos que irão adotar para a contratação de obras, serviços e compras, além de seus empregados. Assim, elas podem contratar trabalhadores da maneira que desejarem - como prestadores de serviços ou por meio de cooperativas, por exemplo e estão livres de fazer licitações para a aquisição de bens e serviços.

Além disso, segundo Conceição Aparecida Rezende, especialista em Saúde Pública e em Direito Sanitário, essas organizações não prestam contas a órgãos de controle internos e externos de administração pública. No artigo ‘Modelo de Gestão do SUS e as Ameaças do Projeto Neoliberal’, ela escreve também que “o que ocorreu, de fato, com as terceirizações previstas na Lei das OS foi a transferência, pelo Estado, de suas unidades hospitalares, prédios, móveis, equipamentos, recursos públicos e, muitas vezes, pessoal para a iniciativa privada”.

No fim das contas, contratar OS e Oscips pode sair caro para os entes federados, mas faz com que eles consigam se adequar à lei de responsabilidade fiscal. “É um arremedo. Muitas vezes, sai muito mais caro do que pagar trabalhadores na folha direta de salário, e isso faz bastante diferença no orçamento global. No entanto, esse gasto, que de fato é despesa com força de trabalho, não é enquadrado assim na lei. Muitos municípios gastavam 95% de suas receitas com pessoal e passaram a se adequar à lei fazendo planos de demissão voluntária e contratação por terceirização, por cooperativas, por OS”, conta Geandro.

Para a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutora em saúde pública Ligia Bahia, o exemplo mais ‘acabado’ da financeirização na saúde é o das parcerias público-privadas. “Trata-se de uma parceria com entidades privadas não só na gestão como na construção e na operação. É o que acontece nas estradas, por exemplo, em que há uma concessão do poder público para uma entidade privada, por longos períodos. A entidade investe na constru-ção e na conservação da estrada, conserva e cobra pedágios. Imagine transpor isso para a saúde!”, diz a pesquisadora.

Fundações Estatais

Em 2007, o poder executivo apresentou ao Congresso Nacional o projeto de lei complementar 92/07 para resolver o ‘problema’ das fundações públicas: afinal, quais deveriam ser suas áreas de atuação? E essas fundações deveriam ser regidas pelo direito público ou pelo privado? O projeto diz que, mediante lei específica, pode ser instituída ou autorizada a instituição de fundações sem fins lucrativos, integrantes da administração pública indireta, com personalidade jurídica de direito público ou privado.

A definição da personalidade jurídica deve ser feita com base na atividade a ser desempenhada: para atividades que não sejam exclusivas do Estado - como saúde, assistência social, cultura, desporto, ciência e tecnologia, meio ambiente, previdência complementar do servidor público,

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comunicação social e turismo - elas devem ser de direito privado.

Para muitos pesquisadores e sanitaristas, as Fundações Estatais são vistas como um bom modelo de gestão. O artigo ‘Fundação Estatal e o Fortalecimento da Capacidade de Atenção do Estado’, escrito pelo diretor de Atenção Básica da Secretaria de Saúde da Bahia, Hêider Pinto, pelo professor da UFF Túlio Franco e pelo professor da UFRJ Emerson Merhy diz exatamente isso. De acordo com os autores, a Fundação Estatal “é a combinação de uma autarquia - com todas as vantagens que essa tem em termos de descentralização administrativa e autonomia e agilidade na tomada de decisões operacionais; com uma empresa estatal, buscando nessa a agilidade e autonomia na gestão de pessoal, orçamentária, contábil e relacionada a compras e aquisições”.

Eles explicam que, assim como as empresas estatais, as Fundações Estatais estão subordinadas ao código civil no que diz respeito a compras, contabilidade e gestão de pessoal. E, apesar de estarem subordinadas à lei nº 8.666, que trata das licitações, elas podem também ter um regime próprio e especial para compras, o que traz agilidade.

Divergências

Mas nem todo mundo vê as Fundações Estatais com tanto otimismo, e o projeto da sua criação causou muito rebuliço desde que foi anunciado. De acordo com o jurista Dalmo Dallari, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), o texto se baseia em falsos pressupostos e improbidades conceituais. No artigo ‘Fundações Estatais: proposta polêmica’, ele diz que vem se desenvolvendo um processo que visa a “reduzir a participação do Estado nas atividades sociais, transferindo para a iniciativa privada a atribuição de prestar determinados serviços, tradi-cionalmente qualificados como serviços públicos, como a saúde e a educação”.

Segundo Dallari, um dos motivos para isso é o pressuposto de que “a iniciativa privada é sempre mais competente do que o Estado”, mas, para o jurista, essa premissa não é verdadeira. Além disso, o autor diz que a proposta é inconstitu-cional.

Isso porque a Constituição permite que as leis complementares definam as áreas de atuação das fundações, mas não a sua personalidade jurídica, como quer a proposta.

Privatização?

Como as OS e Oscips envolvem terceirização, há um certo consenso entre os estudiosos do tema de que elas significam a privatização da gestão. Já no caso das Fundações Estatais, formadas dentro do poder público, as opiniões se dividem. Para Maria Valéria Correia, professora da Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), o fato de essas fundações serem regidas por direito privado “encobre a natureza de privatização que tem essa proposta”.

Ela reconhece que existem pontos positivos em relação aos modelos de terceirização - a subordinação à lei de licitações e os contratos feitos necessariamente por meio de concurso público são exemplos disso. Entretanto, Maria Valéria diz acreditar que, mesmo assim, o Estado abre mão de gerir a coisa pública. “Essas melhorias são uma ‘embalagem’: os efeitos são menos nefastos, mas a natureza do projeto continua sendo privatizante”, diz.

Sara Granemann, professora da Escola de Serviço Social da UFRJ, concorda: “O fio condutor que alinhava e torna iguais, na dimensão mais profunda, iniciativas como OS, Oscips e

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Fundações Estatais, é a flexibilização da legislação para poder transferir fundos públicos a capitais privados. Como chamar de fundação estatal algo que é de direito privado? Se é estatal, tem que ser de direito público”, defende.

A jurista Lenir Santos tem uma posição diferente. Em 2005, ela participou da elaboração das Fundações Estatais por uma demanda do Grupo Hospitalar Conceição, de Porto Alegre e, depois disso, foi colaboradora do Ministério do Planejamento quando ele decidiu trazer para si essa discussão.

De acordo com ela, as fundações não podem ser consideradas privatizantes:

“Nada nessas Fundações é privado. O que elas podem é usar elementos do direito privado dentro do público. Elas continuam totalmente públicas, mas com o orçamento desa-marrado e podendo contratar por CLT, por exemplo.

Não se trata de repassar a gestão a uma entidade privada. Privatizante é o que põe para fora, como as OS”, defende.

Ela explica que, em relação à gestão, o modelo das Fundações é igual ao das empresas públicas.

“A única diferença entre empresas públicas e Fundações Estatais é que as primeiras podem explorar alguma atividade econômica ou trabalhar com serviços tarifados.

A Fundação, como não atua com lucro, tem também imunidade tributária”, pontua, acrescentando ainda que o argumento de que as Fundações seriam inconstitucionais, como aponta o professor Dallari, já não são mais verdadeiras, pois o Supremo Tribunal Federal já se posicionou pela sua constitucionalidade.

Para Francisco Batista Júnior, ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde, o fato de as Fundações Estatais estarem sob a responsabilidade do poder público, sem constituírem empresas privadas contratadas, não muda a “lógica” presente no modelo das OS e Oscips. “Isso porque elas permitem, por exemplo, que se nomeiem, para a administração do serviço público, pessoas ligadas a determinados grupos políticos ou corporativos. Essa é a principal denúncia que temos hoje em relação a algumas fundações no país. Acaba-se tendo uma instituição forte, com absoluta autonomia, com orçamento garantido e dominada por um

determinado grupo político”, aponta.

De fato, um dos pontos mais discutidos quando se fala nesses novos modelos é o do controle social, que, segundo os críticos, tem sido desconsiderado. “Nenhum desses modelos traz conselhos paritários”, diz Maria Inês.

Além do mais, a implantação de modelos como OS e Oscips desconsideram as resoluções das últimas Conferências Nacionais de Saúde e do próprio Conselho Nacional de Saúde, que já deliberou contra qualquer forma de terceirização da gestão e contra a proposta das

Fundações Estatais. De acordo com Batista Júnior, em geral as OS, Oscips e Fundações Estatais têm sido criadas sem a aprovação nos conselhos estaduais de saúde. “E ainda por cima a prestação de contas tem sido deixada de lado”, critica.

Força de trabalho

Existe outra questão nas Fundações Estatais que vão contra o que a Frente Nacional contra a Privatização da Saúde defende:

apesar de contratarem trabalhadores por meio de concurso público, o vínculo empregatício é o da CLT. “Defendemos o regime estatutário, mais

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36

estável”, diz Maria Valéria. Sara completa: “As novas formas jurídicas todas identificam, no trabalho estável, o grande problema da gestão. Por trás dessa formulação, existe a reivindicação de se poder contratar e demitir a qualquer tempo e em qualquer circunstância”, critica a professora.

Lenir Santos identifica a questão da força de trabalho como sendo o centro de “toda a briga”:

“No fundo, acredito que o que está por trás das pessoas que são contra as Fundações Estatais é basicamente o regime da CLT. Não vejo essas pessoas olhando se a proposta é boa para a saúde, se vai melhorar, se é bom para o povo. Eles parecem querer saber apenas se é bom para a categoria que defendem”, critica.

Batista Júnior se preocupa com o fato de que a lei estabelece que cada Fundação deva ver seus salários.

“Se há dois hospitais, cada um com sua fundação, cada um vai estabelecer o salário que quiser. Isso significa correr o risco de ter dois enfermeiros trabalhando em hospitais vizinhos, um ganhando três vezes mais que o outro. Situações como essa inviabilizam o SUS. Em vez de batalharmos para criar uma carreira em que todos os profissionais sejam tratados da mesma forma, priorizando a qualificação, a dedicação exclusiva e a estabilidade, estamos aprofundando as dificulda-des que já existem”, diz.

Para Geandro Pinheiro, um ponto importante dessa questão é a necessidade de as fundações se adequarem ao mercado em relação ao pagamento de pessoal. “Diz-se muito que o mercado oferece salários maiores a determinados profissionais, como gestores ou cirurgiões, do que o SUS. E que, para conseguir os melhores profissionais, é preciso poder oferecer maiores salários nesses casos. Isso faz com que toda a luta que temos na área pública de planos de cargos e salários, de um plano de carreira vinculado a critérios de isonomia, vá por terra. Acaba-se criando uma hierarquia de funcionários na instituição - e sob os critérios do mercado, e não das necessidades do SUS”, diz o pesquisador.

Privatização mais tênue

No entanto, existe uma crítica mais profunda que perpassa todas essas ‘saídas’ que vêm sendo apontadas para os problemas de gestão da saúde. “O fato de considerarmos um modelo privatizante se relaciona muito menos ao seu formato propriamente do que ao propósito, ao fim último que esse modelo propõe às instituições. Privatizar não é apenas colocar um serviço nas mãos de uma empresa ou outra entidade privada”, diz Geandro.

De acordo com ele, é preciso ter cuidado tanto ao criticar os novos modelos como ao fazer o que ele considera uma “defesa cega” das autarquias. “Não são apenas as OS, as Oscips, a EBSERH e as Fundações Estatais que privatizam. Sob esse ponto de vista dos propósitos, pode-se dizer até mesmo que há autarquias extremamente privatizadas, pois estamos trabalhando com grupos corporativos ou políticos que fazem com que esses órgãos, de administração direta, atendam e beneficiem a determinados grupos em vez de à população em geral”, afirma o pesquisador.

Assim como Dalmo Dallari, Geandro acredita que os estudiosos que defendem os modelos da empresa ou das Fundações Estatais, por exemplo, estão sendo levados pelo fetiche de que o bom modelo de gerência é aquele vincula-do ao modo privado. “No fim das contas, o que se coloca são modelos de Estado. Há grupos que defendem um Estado forte e público.

Ao mesmo tempo, outros grupos defendem a incorporação de novas modalidades, orientadas para o benefício da sociedade e para a melhoria da qualidade do atendimento ao cidadão, sem que o meio para isso importe muito”, explica o pesquisador. De acordo com ele, quem está no poder tem apostado nessas saídas de novas modalidades jurídicas, quando o que se faz necessário é desenvolver um debate amplo sobre os nós presentes na administração pública.

A reforma necessária

Como o decreto-lei da administração federal é ainda da época da ditadura, Geandro diz que reformá lo é mais do que necessário, mas isso não tem sido pautado pelos governos. “A lei está caduca e precisa ser melhorada. Vemos que há constrangimentos em relação ao orçamento, à gestão dos trabalhadores e dos recursos

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financeiros. O importante é ver que tipo de saídas conseguimos arrumar”, aponta.

E um dos nós que precisam ser desatados é justamente a Lei de Responsabilidade Fiscal. “Ela é um absurdo. Hoje, um prefeito não pode realizar um concurso público se o gasto com profissionais já estiver no teto máximo, mas pode contratar profissionais por terceirização.

Isso precisa ser revisto com urgência”, diz Batista Júnior.

Outro ponto é o fortalecimento e a qualificação da gestão pública.

O CNS tem defendido, segundo Batista Júnior, a profissionalização da gestão em primeiro lugar. “Defendemos a regulamentação de todos os cargos, até o de diretor, com critérios de profissionalização e de avaliação. Queremos que todos os cargos sejam preenchidos por meio da construção de uma carreira profissional”, diz.

Para Geandro, há ainda um outro ponto que merece atenção: o envolvimento e a responsabilização do servidor público no seu trabalho.

De acordo com o pesquisador, não se pode usar o argumento de que a estabilidade dos servidores leva à ineficiência, mas é preciso que os sindicatos e as corporações enfrentem esse problema. “Não defendo que ninguém seja demitido sem razão, e o regime estatutário, como se sabe, proporciona ao servidor um alto grau de defesa. Mas sabemos que quando se identificam casos de corrupção, de falta de responsabilidade, de desrespeito e descompromisso com a coisa pública, há, no direito público diversos instrumentos para substituir o servidor sem arbitrariedades: pode-se abrir inquérito, sindicância, uma série de processos. No entanto, isso não acontece com muita frequência e os casos de substituição são raríssimos.

Mesmo se contarmos apenas os casos de corrupção identificados, vamos verificar que eles não correspondem aos casos de substituição. Isso precisa ser revisto”, acredita.

De acordo com ele, as discussões nos últimos anos têm sido desarticuladas e individuais: cada instituição tem olhado apenas o seu lado,

discutindo modelos para instituições específicas, e não para o Brasil como um todo. Em 2007, o Ministério do Planejamento convocou um grupo de altos juristas brasileiros para discutir os entraves da administração pública e propor uma reforma. O documento final dessa comissão traz um anteprojeto de lei que, entre outras coisas, define as Fundações Estatais e as

‘entidades de colaboração’, termo que abrange entidades não estatais como OS e Oscips. Para Geandro, o anteprojeto merece ser analisado e criticado. “Mas a proposta tem o mérito de trazer uma discussão da administração pública que, ao ir para o Congresso, vai permitir um debate mais amplo da sociedade em relação a isso”, acredita.

Debate mais amplo

Apesar da importância das novas propostas para a gestão da saúde pública, existe um outro fator que, segundo Ligia Bahia, tem sido deixado de lado e que é o verdadeiro ‘vilão’ no que diz respeito à privatização da saúde: “Privatizar a saúde é aumentar os planos privados.

Se observarmos o alcance que têm tido as OS, as Oscips, as Fundações Estatais e até mesmo as parcerias público-privadas, veremos que esse fenômeno é, na verdade, menos importante que a financeirização e a privatização via mercado de planos de saúde”, aponta a pesquisadora.

Na próxima edição da Poli, vamos dar continuidade ao tema da privatização abordando esse lado da história. Além disso, o site da EPSJV (www.epsjv.fiocruz) traz uma série especial de reportagens sobre o assunto. Acompanhe!

Page 38: Caderno de Textos Erem 2012

38

Hospitais Universitários

Federais e novos

modelos de gestão:

faces da

contrarreforma do

Estado no Brasil

Juliana Fiuza Cislaghi

O debate sobre necessidades de mudança na

gestão dos hospitais universitários está

amplamente relacionado a todo o processo de

contrarreformas do Estado implementado em

maior ou menor grau na quase totalidade dos

países do mundo (Behring,

2003). A partir da década de

1970, como resposta a

queda das taxas de lucro, a

perspectiva neoliberal

torna-se hegemônica. A

correlação de forças entre

capital e trabalho passa a

ser amplamente vencido

pelo primeiro com o

fracasso das experiências do

chamado “socialismo real”. Essa retomada das

taxas de lucro exige uma reversão no fluxo dos

fundos públicos, que passam a servir quase

exclusivamente às necessidades de acumulação

do capital, em particular para o capital financeiro

através da dívida pública dos Estados. O Estado

reduz o financiamento público de políticas sociais

para os trabalhadores, reduzindo o campo dos

direitos sociais. Assim, abre-se espaço para a

mercantilização de todas as esferas da vida social,

que passam a ser novos espaços de valorização

para o capital (Harvey, 2008). As políticas sociais

passam a ser direcionadas apenas para a

população mais pauperizada: pontuais, caritativas

e assistencialistas. No Brasil, observamos ao

desmonte das políticas de “espírito welfariano”

inscritas na Constituição de 1988, substituídas

por novas políticas adaptadas a esse novo

contexto, marcadas pelo “trinômio privatização,

focalização/seletividade e descentralização”

(Behring e Boschetti, 2007). Nesse contexto é que

vem se discutindo a necessidade de

“reestruturação dos hospitais universitários”.

A proposta dos organismos internacionais para a

contrarreforma dos hospitais universitários

Uma característica importante do processo de

contrarreformas é que ele tem ocorrido em todo

o mundo em diversos graus e vem sendo

orquestrado por organismos internacionais como

o Banco Mundial, o Fundo Monetário

Internacional e a Organização Mundial da Saúde.

No Brasil, é o Banco Mundial que vem

capitaneando a discussão da

reestruturação

dos hospitais universitários

propondo-se, inclusive, ao

financiamento das

iniciativas de mudanças. Em

março de 2010, ocorreu em

Brasília um evento que

reuniu o Ministério do

Planejamento, da Saúde e

da Educação, os gestores

dos 46 hospitais universitários além do Banco

Mundial e representantes da Espanha, de

Portugal e dos Estados Unidos, expondo seus

modelos locais. No Brasil foram considerados

exemplares as experiências

de São Paulo baseadas em organizações sociais e

do Hospital das Clínicas de Porto Alegre, que é

uma empresa pública de direito privado. Nas

palavras do diretor de Hospitais Universitários e

Residências em Saúde da Secretaria de Educação

Superior do MEC, José Rubens Rebelatto “este

encontro nos indicará caminhos para o processo

de reestrututuração que está em curso”,

referindo-se ao REHUF – Programa Nacional de

Reestruturação dos Hospitais Universitários

Federais. No mesmo evento, anunciou-se o

Page 39: Caderno de Textos Erem 2012

39

empréstimo de 756 milhões103 para

financiamento desde programa, recursos

oriundos do Banco Mundial104, que serão

divididos entre 46 unidades hospitalares no país

até 2012.

Medici (2001)105 em trabalho realizado para o

BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento

–– resume os principais diagnósticos e propostas

sistematizados a partir de Seminário realizado

pela OMS – Organização Mundial de Saúde em

1995 que gerou o texto “The Proper Function of

Teaching Hospitals Within Health Systems”. O

autor chama atenção que, então, o debate acerca

da reforma nos hospitais de ensino só estaria

começando, mesmo nos países desenvolvidos.

O primeiro diagnóstico apresentado é que esses

hospitais seriam caros. Responsáveis por cerca de

10% dos atendimentos na maioria dos países

podem ser responsáveis por desde 9% até 40%

do total de gastos na área da saúde. Segundo

dados da ABRAHUE, Associação Brasileira de

Hospitais Universitários e de Ensino, a realidade

brasileira em 2001 era de que 9% dos leitos, 12%

das internações e 24% dos recursos do SUS

estariam nessas instituições. Essa realidade,

porém, decorre dos altos custos da alta

complexidade dos procedimentos realizados por

esses hospitais. É necessário levar em

consideração que esses hospitais realizaram no

mesmo período 50% das cirurgias cardíacas, 70%

dos transplantes, 50% das neurocirurgias e 65%

dos atendimentos na área de malformações

craniofaciais, o que justifica seu alto custo de

manutenção.

Para resolver essa questão, Médici aponta como

a solução para a OMS, primeiro uma maior

integração as redes locais de saúde, alegando a

possibilidade de um desperdício de recursos no

excesso de uso de tecnologia nesses hospitais,

questão, que apesar de não comprovada, estaria

de acordo com a filosofia do SUS e dos

defensores da saúde pública. Da mesma forma os

documentos apontam a necessidade da formação

dos profissionais de saúde não se dar

restritamente em hospitais de alta complexidade,

o que seria responsável por uma visão e uma

prática hospitalocêntrica hegemônica na

formação. Essa também é uma afirmação comum

aos defensores da saúde pública e do SUS, e que

pode ser resolvida da mesma forma com uma

maior integração entre os hospitais universitários

e a rede de saúde. É sabido, porém, que os

problemas de referência e contra-referência não

se restringem aos HUs e os governos muito pouco

ou nada tem feito para reverter esse quadro,

bastando observar que o atual carro chefe da

política de saúde são as UPAS, unidades de

emergência.

Esse argumento, no entanto, leva o documento

da OMS à outra conclusão qual seja:

“reformular o conceito de ensino em saúde sem

vinculá-lo necessariamente a existência de

hospitais universitários. Neste último caso haveria

abandono da idéia de HU, ainda que pudessem

ser contratados hospitais terciários [...]” (2001,

p.152).

Em outra passagem o autor faz mais uma vez essa

afirmação dizendo que “vem crescendo

rapidamente o número de hospitais e outros

estabelecimentos não universitários que exercem

essas funções (de ensino). [...] HUs não são

imprescindíveis. Ao contrário são cada vez mais

dispensáveis” (2001, p. 153).

No Brasil, a Portaria Interministerial nº 1000 de

15 de abril de 2004, é a primeira que abre

caminho para a extinção dos HUs, conforme

existem hoje. Essa portaria passa a unificar

hospitais universitários (vinculados e geridos por

Page 40: Caderno de Textos Erem 2012

40

universidades), hospitais escola (vinculados e

geridos por escolas médicas isoladas) e hospitais

auxiliares de ensino (hospitais gerais que

desenvolvem atividades de treinamento em

serviço, curso de graduação ou pós-graduação

através de convênio com instituição do ensino

superior) sob a mesma denominação: hospitais

de ensino. Sua regulação e as requisições para

sua certificação também passam a ser iguais. Na

prática isso rebaixou o estatuto dos hospitais

universitários, que na sua relação orgânica com

as universidades reconhecidamente sempre

garantiram melhores condições de formação com

indissociabilidade entre pesquisa, ensino e

extensão.

Outra medida que caminha nessa direção é a

Portaria nº 4 de 29 de abril de 2008, que deu

autonomia na gestão financeira aos HUs federais,

criando unidades orçamentárias próprias107 .

Esse processo, no entanto, não se trata de

autonomia, palavra de conotação positiva sempre

reivindicada pelo movimento organizado da

comunidade universitária. Trata-se sim de uma

extinção dos hospitais universitários, que passam

a ser igualados a qualquer hospital que exerça

atividades de ensino, favorecendo o ensino

privado e abrindo portas para privatização da

gestão por meio dos chamados “novos modelos”.

Médici (2001), entretanto, não acredita na

extinção dos hospitais universitários devido,

segundo ele, às pressões corporativas de

médicos, professores universitários e

funcionários do hospital, mesmo motivo que

dificultaria sua inclusão em sistemas de

referência e contra-referência. Mas uma vez isso

se torna num argumento para uma solução

contrária a defesa da saúde pública. Pois sua

conclusão é que essa dificuldade ocorre onde os

hospitais são financiados pela oferta e, portanto,

esses deveriam ser financiados pela demanda, ou

seja, contratos de gestão e serviços diretamente

pagos, o que, segundo ele, geraria competição

com outras instituições. Em resumo:

“Trata-se nesse caso de desenvolver redes

docentes-assistenciais não universitárias que

respondam às demandas sociais por serviços,

docência e tecnologia, especialmente em

atividades mais ligadas aos níveis primário e

secundário de atenção” (2001, p.155).

O autor segue apresentando um diagnóstico de

deterioração do atendimento tendo como razão

o mau gerenciamento e aponta a necessidade de

mudanças nas práticas gerenciais e de regulação

contra os interesses corporativos, que poderia ser

exercida pelo Estado ou pelo mercado.

Em relação ao financiamento, as conclusões do

documento publicado pela OMS e expostos por

Medici são de que os HUs são 12% mais caros do

que hospitais não-universitários de alta

tecnologia, o que é natural se além de serviços

assistenciais eles também desenvolvem ensino e

pesquisa. Assim, afirma que dificilmente seriam

competitivos ou atrativos para seguros médicos.

Mesmo assim, defende a necessidade de que se

busquem fontes alternativas de financiamento

em relação ao público, sendo elas a “venda ou

asseguramento de serviços de alta tecnologia em

saúde para o Governo, Planos de Saúde e as

pessoas físicas e jurídicas” (2001, p. 154), ou seja,

através da contratualização ou simplesmente da

privatização dos serviços, isso sim de interesse da

iniciativa privada, que não quer arcar com as

necessidades “mais caras”, mas quer usufruir dos

serviços de alta complexidade com qualidade a

preços que garantam seus lucros. Hoje, segundo

Page 41: Caderno de Textos Erem 2012

41

os dados do MEC, 231 dos 10.340 leitos dos HU

federais estão privatizados, o que representa

2,2% do total.

Já é parte da realidade da política de saúde no

Brasil que os planos privados só realizam serviços

de baixa complexidade, deixando os serviços de

maior complexidade e maiores custos para o

setor público. Segundo Salvador (2010, p. 313):

“Na prática essa forma de atendimento é

excludente, reforçando a privatização dos

sistemas de saúde, pois significa dois tipos de

cidadãos: “sem planos de saúde”, que dependem

da restrita oferta de vagas nos hospitais públicos

e que terão atendimento apenas básico na rede

privada; e os “com plano de saúde”, que têm seu

limite de atendimento no limiar da rentabilidade

econômica, ou seja, quando deixam de ser

rentáveis financeiramente são encaminhados

para o hospital público.” (grifo nosso)

Não são melhores as propostas para pesquisas. A

primeira conclusão é de que o papel dos HUs na

pesquisa em saúde vem sendo substituído por

institutos de pesquisa e indústrias farmacêuticas

e de equipamentos médicos, graças à redução do

seu financiamento público. Ora, essa tendência

não é natural e suas conseqüências são perversas

na medida em que significam a privatização e o

aprisionamento em patentes de toda a pesquisa

em saúde que passa a responder às necessidades

do lucro e não da sociedade. A solução, segundo

o autor, seria uma parceria dos HUs com essas

empresas, ou seja, mais uma vez a iniciativa

privada ficando com a melhor parte do bolo, se

utilizando do público para seus interesses.

Problemas de gestão ou subfinanciamento?

Todo o debate atual das contrarreformas nas

políticas sociais termina no embate entre duas

explicações causais para a falência das políticas

públicas: problemas de gestão ou de

subfinanciamento público.

É característica do período neoliberal a redução

dos recursos públicos para políticas sociais. No

caso das universidades, e associadas a elas os

hospitais universitários, o subfinanciamento se

faz sentir desde o governo Cardoso, seguindo no

período do governo Lula. Ainda que se percebam

aumentos nominais nos recursos das

universidades federais, sobretudo após 2006, em

relação ao crescimento do PIB a série histórica é

claramente descendente e mais recentemente

estagnada.

No caso específico dos hospitais universitários, a

realidade demonstra, segundo os próprios dados

do Relatório REHUF, que apenas os HUs federais

acumulam por ano um déficit total de 30 milhões

entre o que é produzido e o que é pago,

problema que se origina nos valores defasados da

tabela SUS, levando a uma dívida acumulada de

425 milhões de reais, mais da metade de todo

recurso emprestado pelo Banco Mundial para o

REHUF.

Além do déficit no pagamento dos

procedimentos a falta histórica de reposição de

pessoal através de concursos leva os hospitais a

utilizarem a maior parte de sua verba de custeio

para a contratação de pessoal terceirizado, em

média 36% no ano de 2001 segundo a ABRAHUE

ou até 45% dos recursos recebidos do SUS em

hospitais de menor porte, segundo os dados do

Relatório REHUF. Durante algum tempo essa

contratação se deu via fundações de apoio ou

cooperativas, sem garantia alguma de direitos

aos trabalhadores e com baixíssimas

remunerações, prática condenada pelo TCU. A

passagem dos contratos para as universidades fez

estourar mais ainda a dívida dos HUs - só na UFRJ

foi de 26 milhões a dívida com pagamento dos

chamados extra-quadros em 2009. A soma da

dívida das universidades e das fundações de

apoio encontra-se no gráfico 2. Já a situação de

precarização da força de trabalho nos HUs

federais pode ser vista no gráfico 3.

Ou seja, os dados do Ministério da Educação

comprovam que a situação da força de trabalho e

o déficit na tabela de procedimentos geraram

imensas dívidas nos HU federais, situação que

Page 42: Caderno de Textos Erem 2012

42

não é diferente nos Estados e que vem sendo

denunciada desde o início dos anos 2000 mesmo

por associações de gestores como a ANDIFES -

Associação Nacional de Dirigentes das

Instituições Federais de Ensino Superior e a

ABRAHUE.

Em documento de 2008, a Comissão de Hospitais

Universitários da ANDIFES afirma que:

“O governo pensa em, nos moldes do REUNI,

elaborar junto com os dirigentes projeto de

reforma com expansão dos HU das IFES, o que

obrigará a transitar um novo modelo, o qual, na

opinião do Dr. Paim [representante do MEC], seria

o de Fundação Estatal. No que diz respeito a

questão de pessoal (...): não se vislumbra, por

parte do governo, solução via contratos de curta

duração (seria necessário contratação temporária

de cerca de 15000 trabalhadores, número

considerado gigantesco pelo governo, que fugiria,

assim do escopo da CTU – Contratação

Temporária da União). Paim voltou a destacar

que a solução para a questão de pessoal só virá

com a adoção de novo modelo, e o governo

trabalha com a idéia de Fundação Estatal.”

Na opinião dos dirigentes da ANDIFES, por sua

vez, há necessidade de um novo modelo de

gestão109, mas não havia consenso sobre qual.

Em documento de 2006, a ANDIFES aponta para

possíveis caminhos: empresa pública (o modelo

do RS), autarquia, fundação estatal, organizações

sociais (o modelo de SP), a oficialização das

fundações de apoio através de mudanças na Lei

das Fundações, transformação das atuais

fundações em OSCIPs também através de

mudanças legais e livre escolha, deixando claro

que a maioria dos dirigentes é a favor de soluções

não autárquicas.

Mesmo sendo a favor de novos modelos de

gestão a ANDIFES é unânime em afirmar que:

“Fica claro que qualquer que seja o eventual

modelo adotado, o mesmo só será factível com

novos recursos orçamentários a serem previstos

para sua implementação!”

Ou seja, mesmo para a ANDIFES o problema do

financiamento é anterior ao do modelo de gestão

que não pode resolver automaticamente os

problemas colocados para os HUs que têm na

falta de recursos financeiros e humanos a

natureza principal de seus impasses, ainda que

possam existir eventualmente problemas na sua

gestão.

A partir da implementação do REUNI, as

universidades federais passaram a ter seu

financiamento não só pelo modelo incremental e

por fórmulas (Matriz ANDIFES). É introduzida na

universidade a lógica dos contratos de gestão.

Esse mecanismo de financiamento é originário da

Reforma do Estado de Bresser Pereira, que inclui

universidades e serviços de saúde, com exceção

dos serviços básicos, no chamado “terceiro

setor”, um setor de serviços não-exclusivos onde

o Estado deve atuar ao lado das “organizações

públicas não-estatais e privadas”.

Esse setor seria idealmente ocupado por

propriedades públicas não-estatais, que são

organizações sem fins lucrativos que, segundo o

documento, apesar de não exercerem o poder de

Estado estariam diretamente orientadas para o

interesse público. Desse debate se origina a

proposta de repassar a gestão tanto de

universidades como de hospitais para

organizações sociais, fundações públicas de

direito privado e, mais recentemente, para

empresa pública. O documento que orienta a

contrarreforma do Estado de Bresser Pereira

chama esse processo de “publicização”. Essas

organizações público/privadas passariam a ter

sua dotação orçamentária atrelada à celebração

de contratos de gestão com o Estado. O objetivo

seria o aumento da eficiência e da qualidade dos

serviços a um custo menor.

A suposta publicização, entretanto, significa

exatamente seu oposto. Na verdade um processo

de privatização que autonomizaria a gestão e

prestação de serviços sociais do âmbito dos

mecanismos de controle democrático

possibilitando contratação temporária,

Page 43: Caderno de Textos Erem 2012

43

inexistência de concursos públicos, inexistência

de licitações públicas, de controle social

democrático sobre gastos e recursos e de

garantia da continuidade dos serviços entre

outras coisas. Uma estratégia que orienta-se

numa perspectiva “desuniversalizante,

contributivista e não constitutiva de direito das

políticas sociais” (Montaño, 2008, p. 46).

O governo Cardoso chega a apresentar o

documento “Etapas para a viabilização da

aplicação da Lei de Organizações Sociais na

recriação da Universidade Pública a ser

administrada por Contrato de Gestão”. Graças à

rejeição da comunidade universitária, a proposta

foi, por ora, deixada

de lado.

Mas durante todo o

governo Cardoso a

proposta de

financiamento por

contrato esteve

presente, atrelada

aos debates sobre a

concepção de

autonomia

universitária, que

substituía a idéia de

autonomia da

gestão financeira

pela de autonomia

financeira, isto é,

responsabilizando a própria universidade pela

captação de seus recursos.

O debate da autonomia universitária é central

para a compreensão crítica do financiamento por

contratos de gestão. A legitimidade da autonomia

na formação da universidade moderna é a

reivindicação da independência do conhecimento

face à religião e ao Estado. No Brasil, a

universidade nunca pode exercer plenamente sua

autonomia, graças às característicascautoritárias

do Estado, que restringiam a autonomia das

universidades em relação a ele (Mancebo, 2006,

p. 20). As políticas de contrarreforma

universitária, marcadas pela redução do

financiamento, têm levado a autonomia

universitária a adquirir novos contornos. O

aumento da autonomia financeira (e não da

gestão financeira) significa, na prática, a

impossibilidade da autonomia didático-científica

e administrativa colocada na Constituição. O

financiamento “autônomo” precisa do mercado e

do próprio governo que atrela as universidades

aos seus interesses exatamente através de

mecanismos como os contratos de gestão.

Segundo Amaral (2003), as iniciativas de

implementação de contratos de gestão estiveram

travestidas de Planos de Desenvolvimento

Institucional e

Contratos de

Desenvolvimento

Institucional, que não

obtiveram apoio das

IFES- Instituições

Federais de Ensino

Superior - no governo

Cardoso. Para o autor

essas ações

constituiriam “uma

verdadeira

‘antiautonomia’

universitária, por

obrigar as

instituições, mediante

contrato de gestão, a

cumprir determinadas

metas definidas numa negociação, em que há

claramente um lado mais frágil no embate com o

governo: as próprias instituições” (AMARAL,

2003, 132). Só no governo Lula, com o decreto

REUNI, a contratualização como mecanismo de

financiamento, consegue ser implementada. Nos

hospitais universitários federais, a lógica do

contrato de gestão se impõe definitivamente a

partir do decreto que instituiu o REHUF.

Reestruturação dos hospitais universitários

federais: o REHUF

Page 44: Caderno de Textos Erem 2012

44

O REHUF, aos moldes do REUNI, foi decretado

pelo governo federal em 27 de janeiro de 2010.

Suas diretrizes são: estabelecimento de um novo

mecanismo de financiamento que será

progressivamente compartilhado entre MEC e

Ministério da Saúde até 2012 (hoje 70% é

garantido pelo MEC), melhoria dos processos de

gestão, adequação da estrutura física,

recuperação e modernização do quadro

tecnológico, reestruturação do quadro de

recursos humanos e aprimoramento das

atividades através de avaliação permanente e

incorporação de novas tecnologias.

As medidas concretas para o alcance desses fins

são extremamente vagas no decreto. O

procedimento a ser adotado era a

obrigatoriedade de apresentação de um Plano de

Reestruturação para cada universidade que

deveria conter: diagnóstico situacional das

condições físicas, tecnológicas e de recursos

humanos e impactos financeiros da

reestruturação além de um cronograma para

implementação do Plano com atividades e metas.

O decreto falava ainda da necessidade de uma

pactuação global de metas anuais de assistência,

gestão, ensino, pesquisa e extensão entre

Ministério da Educação, do Planejamento e da

Saúde, gestores do SUS e hospitais universitários,

de acordo com a lógica do financiamento por

contrato de gestão.

“As disposições necessárias para a

implementação desse decreto, bem como o

cronograma do REHUF”, isto é, a regulamentação

que realmente interessava, só deveria ser

publicada até o final de maio, conforme apontado

no artigo oitavo do decreto REHUF.

O REHUF foi regulamentado, com atraso, pela

Portaria Interministerial n. 883 em 5 de julho de

2010. O disposto deve ser aplicado nos 46 HUs

federais, sendo exceções o Hospital de São Paulo

e o Hospital das Clínicas de Porto Alegre que,

como mencionado, já têm regimes de gestão

público/privados e onde só se aplicará “o que

couber”, segundo a portaria. Sua

regulamentação, entretanto, frustou

expectativas. A ABRAHUE, em carta manifesto em

14 de julho de 2010, protestava sobre a falta de

solução para a questão dos recursos de custeio e

para a contratação de pessoal.

Aonde ia o REHUF, se nos limitássemos ao

decreto e a sua regulamentação, era bastante

nebuloso. Mas, como já dissemos, sempre foi

interesse do governo a adoção de “novos

modelos de gestão” nos HUs. Por isso, a

elaboração de Seminários com o Banco Mundial.

Em 2008, em aguda crise dos HU o governo já

tinha proposto a implementação de fundações,

na ocasião rechaçada pelas comunidades

universitárias.

As brechas da regulamentação do REHUF,

entretanto, só encontrariam solução em 31 de

dezembro de 2010, quando o governo tira da

manga a MP 520. Não há mais argumentos,

então, para afirmar, como faziam alguns reitores,

que o REHUF nada tinha a ver com um novo

modelo de gestão.

Um novo modelo entra em cena: a empresa

pública

No apagar das luzas de 2010, e antes da

implementação efetiva do REHUF, o governo

Lula, como uma de suas últimas ações, assinou

uma medida provisória que autorizava o Poder

Executivo criar a EBSERH – Empresa Brasileira de

Serviços Hospitalares. A “urgência” da medida foi

justificada pela necessidade de resolver o

impasse dos terceirizados dos hospitais

universitários federais visto que o TCU declarou

ilegal a situação dos 26 mil contratados

precarizados e deu um prazo até 31 de dezembro

de 2010 para que o governo resolvesse a situação

(Acórdão 1520/ 2006). Só que essa determinação

do TCU ocorreu em 2006. O governo teve quatro

anos para fazer concursos públicos repondo o

quadro de servidores e não o fez. Confirmava-se,

então, a intenção do governo de retirar a gestão

dos hospitais universitários das mãos das

universidades por meio de um modelo de gestão

de direito privado. Foi escolhido o modelo da

Page 45: Caderno de Textos Erem 2012

45

empresa pública, o que não foi oficialmente

acordado com a ANDIFES, que foi pega de

surpresa pela MP.

A MP 520 previa a criação de uma empresa

pública de direito privado, ligada ao Ministério da

Educação. Apesar da questão da força de

trabalho dos HUs ter sido usada como

justificativa, a MP abria a possibilidade da nova

empresa pública administrar quaisquer unidades

hospitalares no âmbito do SUS.

A MP chegou a ser apreciada e modificada pelo

Congresso Nacional. Contra a proposta da MP

ficaram várias entidades representativas de

trabalhadores como a Associação Nacional de

Docentes do Ensino Superior - ANDES e a

FASUBRA, bem como reitores e Conselhos

Universitários. No dia 05 de junho de 2011 em

conturbada sessão do Senado Federal, o prazo de

votação da MP se encerrou, sem que ela fosse

votada. Com isso restou ao governo recolocar a

MP, agora como Projeto de Lei (PL 1749), o que

foi feito pelo Ministério da Educação junto ao

Ministério do Planejamento, Orçamento e

Gestão. O conteúdo da proposta se manteve.

Algumas modificações realizadas pelo Congresso

foram desconsideradas recolocando-se a

proposta original quase na sua totalidade. Na

próxima seção faremos uma análise, ainda que

preliminar, das implicações (perversas) trazidas

pela EBSERH, caso ela se efetive.

EBSERH: a destruição dos princípios da

Constituição de 1988 e do SUS

A primeira implicação da centralização da gestão

da saúde em uma empresa pública é sua retirada

do capítulo da ordem social na Constituição,

passando a ser regulada pelos critérios da ordem

econômica. Isto é, ainda que pública, uma

empresa como tal, se gere pela finalidade do

lucro.

Mas se as atividades da empresa serão

exclusivamente para o atendimento do SUS como

obter esse lucro? Apresentaremos algumas

hipóteses.

Em primeiro lugar as atividades de assistência à

saúde ocorrerão no âmbito do SUS mas nada é

dito sobre as atividades de ensino e pesquisa, que

seguem podendo ser vendidas a entidades

privadas por meio de “acordos e convênios com

entidades nacionais e internacionais” uma das

fontes previstas de recursos da EBSERH no artigo

8º do PL.

Em segundo lugar o PL prevê o “ressarcimento de

despesas com o atendimento de consumidores e

respectivos dependentes de planos privados de

assistência à saúde” (artigo 3º, § 3º) conforme já

era previsto pela lei nº 9656 de 1998. Essa lei

nunca foi devidamente regulamentada, e as

cobranças nunca realizadas. No entanto nessa

conjuntura, há o risco do ressarcimento ser

entendido como reserva de leitos para planos,

regulamentando a dupla porta. Em SP, a partir de

lei criada no fim de 2010, 25% dos leitos geridos

pelas OSs já podem ser vendidos aos planos.

Discute-se ainda a ampliação da venda de leitos

no Hospital de Clínicas da USP para 12%, prática

também realizada no Hospital de Clínicas de

Porto Alegre, gerido por empresa pública. A

EBSERH criaria assim nova fonte de recursos para

além do orçamento da União.

Page 46: Caderno de Textos Erem 2012

46

Além das possibilidades de lucros, a criação da

EBSERH como sociedade anônima – S. A.- abre o

caminho para a privatização definitiva da saúde,

pela via da financeirização. Essa modalidade de

empresa pública foi colocada na MP 520 e

suprimida quando apreciada pela Câmara de

Deputados que transformou a empresa em

unipessoal, ou seja, necessariamente de

propriedade apenas do Estado, mas recolocada

na PL 1749, demonstrando que é prioridade do

governo sua criação como sociedade anônima.

Essa forma jurídica significa que, apesar da PL

dizer que todas as ações pertencem ao governo,

a qualquer momento isso possa ser alterado,

abrindo seu capital para ser negociado na bolsa,

como ocorre hoje

com a Petrobras.

Mas não se resume a

lógica privatizante o

retrocesso trazido à

saúde brasileira pela

EBSERH. A

centralização de toda

gestão da saúde em

uma empresa e suas

subsidiárias

desmonta a

descentralização

preconizada pela

Constituição de 1988 reconstruindo um órgão

burocrático nos moldes do INAMPS que poderá

gerir também “instituições congêneres”,

entendidas pelo PL como “instituições públicas

que desenvolvam atividades de ensino e pesquisa

na área da saúde e as que prestem serviços no

âmbito do SUS” (artigo 6º, § 3º), ou seja unidades

de saúde e hospitais universitários de nível

estadual e municipal.

Retrocede também o controle social que passa a

ser exercido na EBSERH por Conselho Consultivo,

ao invés dos conselhos deliberativos do SUS, com

composição paritária entre sociedade civil e

Estado, sem qualquer referência a forma como

será eleito .

Para garantir a efetivação de tantos retrocessos é

necessário reduzir as resistências que têm na sua

vanguarda as entidades de trabalhadores do SUS

e das universidades. A serviço desse objetivo está

o fim da estabilidade dos trabalhadores, que

passarão a ser contratados pela CLT. Não

necessariamente com contratos definitivos

assinados em carteira visto que “a EBSERH

poderá celebrar contratos temporários de

emprego” (atigo13º) conforme o previsto pela

CLT, o que favorecerá a regulamentação da

precarização , a rotatividade e a insegurança no

emprego. Fica assim facilitado o avanço da

privatização.

No caso dos HUs,

acaba-se com a

gestão pública das

universidades,

caminho já aberto

com a separação das

unidades

orçamentárias em

2008, e abre-se a

possibilidade do setor

privado usar essas

instituições para

ensino e pesquisa,

além dos serviços, o

que já utiliza. A diferença na qualidade da

formação de força de trabalho para a saúde entre

o ensino público e privado, que é exatamente a

existência dos HUs, acaba, favorecendo as

universidades privadas na competição pelos

alunos. Mais ainda, as universidades privadas

passam a poder comprar espaços de ensino para

seus alunos nos HU, através de contratos com a

EBSERH, que se não são previstos também não

estão proibidos pela nova legislação. Quando os

atuais servidores públicos se aposentarem, os

HUs não terão mais qualquer relação com a

universidade, a não ser por contratos e convênios

para uso dos seus serviços.

Page 47: Caderno de Textos Erem 2012

47

Considerações Finais

Toda a lógica de contratualização definida pelo

REHUF e a lógica privada de gestão, agora

materializada na EBSERH, deriva dos

pressupostos da Reforma do Estado bresseriana,

que defende que serviços não-exclusivos do

Estado só sejam regulados nos seus resultados,

deixando sua execução para entidades

público/privadas prestadoras de serviços.

O argumento ideológico que sustenta essas

propostas é a idéia do mercado e não do Estado

como provedor de bem-estar e de democracia. A

autonomia que deriva dessa concepção significa,

segundo Chauí (1999), “gerenciamento

empresarial da instituição” captando recursos de

outras fontes e fazendo parcerias com empresas

privadas.

Junto à idéia de autonomia acompanha a de

flexibilização: flexibilização de contratos e direitos

trabalhistas, fim de licitações e prestações de

contas, flexibilização de currículos na formação

dos profissionais de acordo com os interesses do

mercado, fim da pesquisa pública. Autonomia e

flexibilização que constam na justificativa da

criação da EBSERH.

A terceira idéia do “léxico da reforma”, conforme

apontado por Chauí, é a de qualidade. Qualidade

que na verdade é produtividade medida por

quantidade: ao invés de o que se produz, como se

produz e para quem se produz, os critérios

passam a ser quanto se produz, em quanto

tempo se produz e qual o custo do que se produz.

Nesses marcos, apesar da verborragia

transformista característica dos ideólogos

neoliberais, o processo a que paulatinamente

passam os HUs em particular, e a saúde pública

em geral, tende a beneficiar, sobretudo, a

iniciativa privada e, portanto, a obtenção de

lucro. O governo criou o problema e agora,

vende, com seus parceiros, uma solução, que vai,

porém, no sentido oposto dos anseios de

usuários, estudantes e trabalhadores destas

instituições. Não se tratam de soluções técnicas,

mas de propostas políticas, caminhos atrelados

ao lugar aonde se quer chegar.

A solução para os problemas dos HUs passa

necessariamente pelo financiamento público,

negado pelos governos neoliberais que

direcionam os recursos do fundo público para o

mercado financeiro, e pela ampliação da

participação da população nos espaços de

controle social podendo, dessa forma, avançar na

solução dos problemas de gestão a seu favor, e

de acordo com os princípios do SUS, e não a favor

do mercado, como propõe o governo com suas

soluções privatizantes.

“Vamos amigo, lute!

Vamos amigo, lute!

Vamos amigo, lute! Uoou!

Vamos amigo, ajude!

Senão

A gente acaba perdendo o que já conquistou...”

Lute – Edson Gomes

Page 48: Caderno de Textos Erem 2012

48

Page 49: Caderno de Textos Erem 2012

49

10 MOTIVOS PARA SER CONTRA A EBSERH

Sem a EBSERH Com a EBSERH 1

A universidade e o serviço de saúde público têm

autonomia 1

A universidade e o serviço de saúde seguem o

interesse de um empresário

2 Estão sob o controle social do SUS 2 Não precisam se preocupar em prestar contas e

seguir o controle social do SUS

3

Não tem interesse de lucro nas suas atividades. O

objetivo é servir bem a população e construir novos

conhecimentos

3

O lucro será o objetivo final. Quem ganhará? A saúde

do trabalhador, a qualidade da assistência? Ou o lucro

do empresário?

4

Os trabalhadores são ligados por diretrizes federais. Tem

sindicatos nacionais que representam seus direitos. Os

avanços e as lutas se fazem para todo o servidor

independente do estado federativo que trabalha

4

Os trabalhadores podem ser fragmentados por seus

estados federativos de origem. Com desigualdades

regionais nos direitos. Dificultando a luta nacional

unificada e aumentando a precarização do trabalho

em saúde

5

Se mantém vivo o sonho e a luta de um SUS 100%

estatal, de qualidade, autônomo ao capital privado e sob

administração direta do Estado

5

Legalizaremos as fundações Estatais de Direito

Privado que já estão implantadas ilegalmente em

alguns estados federativos, bem como, criaremos

outras modalidades privadas de gestão do SUS

6

O servidor tem vínculo RJU e ingressa sob concurso

público, com estabilidade e condições de lutar pelos

seus direitos. Tem condições de pensar no seu futuro e

no futuro do SUS

6

O trabalhador será contratado por CLT. Pode ser

contratado por indicação e demitido a qualquer

momento. Não possui condições de lutar por seus

direitos e pensa no máximo se no mês seguinte ainda

estará empregado

7 A porta de entrada dos usuários é 100% pública 7

A porta de entrada será divida entre quem tem plano

de saúde e condições de pagar e quem não tem.

Aumenta a desigualdade de acesso e rompe com a

universalidade do SUS

8 A pesquisa é de responsabilidade da universidade

pública. O produto das pesquisas também! 8

O EMPRESÁRIO poderá usar os serviços e os

trabalhadores para enriquecer com as pesquisas

feitas nos locais públicos, retirando a autonomia das

universidades Estatais

9 O material comprado e a tecnologia adquirida por

compra ou pesquisa sempre será público! 9

Todo material e tecnologia comprada ou adquirida

por pesquisa durante a gestão da EBSERH será dela.

Permitindo inclusive ao final da gestão O

EMPRESÁRIO levar tudo. Deixando o serviço e o

servidor público em terra arrasada!

10

Os serviços públicos e a pesquisa nas universidades

públicas no Brasil são patrimônio público! Nos permite

lutar por eles e buscar a melhora da qualidade, das

condições e direitos do trabalhador e da saúde do povo

brasileiro!

10

Os argumentos são os mesmos da defesa das

fundações Estatais de Direito Privado. Mostrando e

escancarando a contra-reforma do Estado que está

em curso atualmente.

Entregando aos empresários os serviços públicos,

colocando o lucro em rota de colisão com a qualidade

da assistência, a saúde do povo brasileiro e os direitos

do trabalhador da saúde!

Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde

Page 50: Caderno de Textos Erem 2012

50

Ato médico: Texto

aprovado pela CCJ

em 8 de fevereiro de

2012 (PL 7.703/2006)

Art. 1º O exercício da Medicina é regido pelas disposições desta Lei.

Art. 2º O objeto da atuação do médico é a saúde do ser humano e das coletividades humanas, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo, com o melhor de sua capacidade profissional e sem discriminação de qualquer natureza.

Parágrafo único. O médico desenvolverá suas ações profissionais no campo da atenção à saúde para:

I – a promoção, a proteção e a recuperação da saúde;

II – a prevenção, o diagnóstico e o tratamento das doenças;

III – a reabilitação dos enfermos e portadores de deficiências.

Art. 3º O médico integrante da equipe de saúde que assiste o indivíduo ou a coletividade atuará em mútua colaboração com os demais profissionais de saúde que a compõem.

Art. 4º São atividades privativas do médico:

I – formulação do diagnóstico nosológico e respectiva prescrição terapêutica;

II – indicação e execução da intervenção cirúrgica e prescrição dos cuidados médicos pré e pós-operatórios;

III – indicação da execução e execução de procedimentos invasivos, sejam diagnósticos, sejam terapêuticos, sejam estéticos, incluindo os acessos vasculares profundos, as biópsias e as endoscopias;

IV – intubação traqueal;

V – coordenação da estratégia ventilatória inicial para a ventilação mecânica invasiva, bem como as mudanças necessárias diante das intercorrências clínicas, e do programa de interrupção da

ventilação mecânica invasiva, incluindo a desintubação traqueal;

VI – execução de sedação profunda, bloqueios anestésicos e anestesia geral;

VII – emissão de laudo dos exames endoscópicos e de imagem, dos procedimentos diagnósticos invasivos e dos exames anatomopatológicos;

VIII – indicação do uso de órteses e próteses, exceto as órteses de uso temporário;

IX – prescrição de órteses e próteses oftalmológicas;

X – determinação do prognóstico relativo ao diagnóstico nosológico;

XI – indicação de internação e alta médica nos serviços de atenção à saúde;

XII – realização de perícia médica e exames médico-legais, excetuados os exames laboratoriais de análises clínicas, toxicológicas, genéticas e de biologia molecular;

XIII – atestação médica de condições de saúde,doenças e possíveis sequelas;

XIV – atestação do óbito, exceto em casos de morte natural em localidade em que não haja médico.

§ 1º Diagnóstico nosológico é a determinação da doença que acomete o ser humano, aqui definido como interrupção, cessação ou distúrbio da função do corpo, sistema ou órgão, caracterizada por no mínimo dois dos seguintes critérios:

I – agente etiológico reconhecido;

II – grupo identificável de sinais ou sintomas;

III – alterações anatômicas ou psicopatológicas.

§ 2º Não são privativos do médico os diagnósticosfuncional, cinésio-funcional, psicológico, nutricional eambiental, e as avaliações comportamental e das capacidades mental, sensorial e perceptocognitiva.

§ 3º As doenças, para os efeitos desta Lei, encontram-se referenciadas na versão atualizada da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde.

§ 4º Procedimentos invasivos, para os efeitos desta Lei, são os caracterizados por quaisquer das seguintes situações:

Page 51: Caderno de Textos Erem 2012

51

I – invasão da epiderme e derme com o uso de produtos químicos ou abrasivos;

II – invasão da pele atingindo o tecido subcutâneo para injeção, sucção, punção, insuflação, drenagem, instilação ou enxertia, com ou sem o uso de agentes químicos ou físicos;

III – invasão dos orifícios naturais do corpo, atingindo órgãos internos.

§ 5º Excetuam-se do rol de atividades privativas do médico:

I – aplicação de injeções subcutâneas, intradérmicas, intramusculares e intravenosas, de acordo com a prescrição médica;

II – cateterização nasofaringeana, orotraqueal, esofágica, gástrica, enteral, anal, vesical e venosa periférica, de acordo com a prescrição médica;

III – aspiração nasofaringeana ou orotraqueal;

IV – punções venosa e arterial periféricas, de acordo com a prescrição médica;

V – realização de curativo com desbridamento até o limite do tecido subcutâneo, sem a necessidade de tratamento cirúrgico;

VI – atendimento à pessoa sob risco de morte iminente;

(Rejeitado pelo relator)

VII – a coleta de material biológico para realização de análises clínico-laboratoriais;

VIII – os procedimentos realizados através de orifícios naturais em estruturas anatômicas visando à recuperação físico-funcional e não comprometendo a estrutura celular e tecidual.

§ 6º O disposto neste artigo não se aplica ao exercício da Odontologia, no âmbito de sua área de atuação.

§ 7º O disposto neste artigo será aplicado de forma que sejam resguardadas as competências própriasdas profissões de assistente social, biólogo, biomédico, enfermeiro, farmacêutico, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, nutricionista, profissional de educação física, psicólogo, terapeuta ocupacional, técnico e tecnólogo de radiologia.

(Rejeitado pelo relator)

Art. 5º São privativos de médico:

I – direção e chefia de serviços médicos;

II – perícia e auditoria médicas, coordenação e supervisão vinculadas, de forma imediata e direta, às atividades privativas de médico;

III – ensino de disciplinas especificamente médicas;

IV – coordenação dos cursos de graduação em Medicina, dos programas de residência médica e dos cursos de pós-graduação específicos para médicos.

Parágrafo único. A direção administrativa de serviços de saúde não constitui função privativa de médico.

Art. 6º A denominação de “médico” é privativa dos graduados em cursos superiores de Medicina, e o exercício da profissão é privativo dos inscritos no Conselho Regional de Medicina com jurisdição na respectiva unidade da Federação.

Art. 7º Compreende-se entre as competências do Conselho Federal de Medicina editar normas para definir o caráter experimental de procedimentos em Medicina, autorizando ou vedando a sua prática pelos médicos.

Parágrafo único. A competência fiscalizadora dos Conselhos Regionais de Medicina abrange a fiscalização e o controle dos procedimentos especificados no caput, bem como a aplicação das sanções pertinentes em caso de inobservância das normas determinadas pelo Conselho Federal.

Art. 8° Esta Lei entra em vigor sessenta dias após a data de sua publicação.

Page 52: Caderno de Textos Erem 2012

52

Algumas

questões sobre o

Ato Médico

Marcela Vieira e Felipe Ximenes

O Ato Medico surgiu como uma proposta

lançada no Senado em meados do ano de 2002

com o objetivo de regulamentar a profissão

médica. Entendia-se que os 80 anos de

regulamentação prática da profissão não eram

suficientes e existia uma grande preocupação em

relação à invasão das competências de outros

cursos sobre as da medicina, como diz o próprio

texto do primeiro Ato médico:

“CONSIDERANDO que o campo de

trabalho médico se tornou muito concorrido por

agentes de outras profissões e que os limites

interprofissionais entre essas categorias

profissionais nem sempre estão bem definidos;

CONSIDERANDO que quando do início da vigência

da Lei nº 3.268/57 existiam praticamente só cinco

profissões que compartilhavam o campo e o

mercado dos serviços de saúde, quais sejam, a

Medicina, a Veterinária, a Odontologia, a

Farmácia e a Enfermagem, e que os limites entre

essas carreiras profissionais estavam ajustados

milenarmente em quase todos os casos;

CONSIDERANDO que agora, diferentemente, a

área da saúde e da doença está pletorada de

agentes profissionais sem que haja clara definição

dos limites dos seus campos de trabalho;

CONSIDERANDO a necessidade de haver uma

melhor definição das atividades profissionais

típicas e privativas de cada categoria profissional,

dos limites de cada uma, das relações entre as

atividades limítrofes e das relações de cada uma

delas com a Medicina, por ser, de todas, a mais

antiga e a de campo mais amplo de atuação, vez

que interage com todas as outras;” (CONSELHO

FEDERAL DE MEDICINA, 2001)

Mas, para entendermos o Ato Médico,

bem como a regulamentação das profissões, é

necessário compreendermos algo tão cotidiano à

nossa formação e talvez por isso mesmo pouco

nos perguntemos: O que é Saúde?

O conceito de saúde envolve uma imensa gama

de olhares: a ausência da doença já não é uma

definição mais concebida; hoje se compreende a

necessidade de buscarmos a questão psicológica

e biológica como fatores de adoecimento, mas

sobretudo, o fator social, ou seja, o meio e as

relações de trabalho, como grande causador das

doenças, aquilo que determina a forma como

adoeceremos.

A determinação social do adoecimento nos

coloca a necessidade de nos identificarmos todos

como sujeitos e trabalhadores, todos temos um

papel importante a cumprir diante da realidade

que adoece, e no âmbito da saúde, a

interdisciplinaridade traz a reflexão acerca da

perspectiva integral da saúde, de nos

entendermos como parte importante tanto

quanto todos os demais profissionais da saúde,

de compartilharmos o cuidado.

Trazendo esses conceitos para o tema do Ato

Médico, portanto, percebemos o quanto ele fere

a concepção da saúde uma vez que sequer

esboça a necessidade de buscar junto às demais

profissões da saúde, a construção de uma

Page 53: Caderno de Textos Erem 2012

53

regulamentação geral, de todos que atuam na

área. O médico sanitarista Emerson Merhy define

dois termos que são importantes para a

compreensão da necessidade da

multidisciplinaridade e das diferentes áreas de

atuação das profissões da saúde. Segundo Merhy,

há núcleos de saber, que são atividades

exclusivas de cada profissão e campos de saber,

que são atividades compartilhadas e que

permitem a perspectiva multiprofissional: são

justamente esses campos e núcleos que deveriam

estar sendo debatidos, discutindo a superposição

em determinados momentos e visando sempre o

melhor atendimento da população, mas de forma

coletiva, construída em conjunto.

Entretanto, o PL do

Ato Médico

expressa tão

somente a

regulamentação da

profissão médica,

dos procedimentos

exclusivos e se

esquece do que há

de mais

importante: a

saúde dos

usuários.

O Ato Médico traz

a tona duas

questões que precisamos entender: a inversão de

responsabilidade e o desvio do foco.

A inversão de responsabilidade se dá a medida

em que não é a falta de regulamentação que

prejudica a saúde da população e não será a

regulamentação que a protegerá contra o mal

exercício da profissão. Esse raciocínio nega todos

os problemas da nossa saúde, a exemplo do

subfinanciamento e se esquece que o mau

exercício da profissão é consequência direta da

falta de recursos, da superlotação dos hospitais e

unidades de saúde, da carga horária de

trabalho...e em nenhum momento o Ato Médico

aborda essas questões que dizem também

respeito a regulamentação das profissões da

saúde. Já o desvio de foco ocorre a partir da

inversão da lógica: deixa-se de lutar por melhores

condições de trabalho, estrutura, financiamento

para os serviços de saúde – que para ser posto

em prática exige a unidade dos profissionais da

saúde; e abre-se um profundo fosso entre os

médicos e os demais profissionais da saúde,

pondo em lados opostos aqueles que deveriam

estar juntos na defesa da saúde da população:

priorizam-se os conflitos, em função da disputa

por quem exercerá determinada função no

serviço de saúde, em detrimento da construção

unitária de pautas que de fato incidirão sobre os

serviços de saúde e a assistência.

Um projeto de

regulamentação das

profissões de saúde

poderia sim proteger

a população, caso

houvesse uma

verdadeira

construção coletiva

em um espaço amplo,

como o Conselho

Nacional de Saúde.

Mas se consideramos

o Sistema Único de

Saúde e o alicerce de

multidisiciplinaridade

que fundamentou a sua construção, é

inconcebível nos pautarmos por uma

regulamentação exclusiva de uma área, num

momento em que vivenciamos mais e mais as

perdas de direitos dos profissionais e somente a

união nos fará caminhar. Nós, estudantes de

medicina precisamos nos entender, antes, como

futuros trabalhadores da área da saúde e, se nos

imbuímos do cuidado, da saúde, não podemos

nos perder em meandros que em nada alteram a

situação do SUS e a assistência a população.

Quanto tempo mais perderemos discutindo um

ato médico que não melhora em nada a saúde da

população e assistiremos passivamente às

Page 54: Caderno de Textos Erem 2012

54

sucessivas políticas de terceirizações e

privatizações dentro do SUS?

A saúde realmente precisa de profissões melhor

valorizadas, mas em conjunto.

Para os que virão

Thiago de Melo

Como sei pouco, e sou pouco,

faço o pouco que me cabe

me dando inteiro.

Sabendo que não vou ver

o homem que quero ser.

Já sofri o suficiente

para não enganar a ninguém:

principalmente aos que sofrem

na própria vida, a garra

da opressão, e nem sabem.

Não tenho o sol escondido

no meu bolso de palavras.

Sou simplesmente um homem

para quem já a primeira

e desolada pessoa

do singular - foi deixando,

devagar, sofridamente

de ser, para transformar-se

- muito mais sofridamente -

na primeira e profunda pessoa

do plural.

Não importa que doa: é tempo

de avançar de mão dada

com quem vai no mesmo rumo,

mesmo que longe ainda esteja

de aprender a conjugar

o verbo amar.

É tempo sobretudo

de deixar de ser apenas

a solitária vanguarda

de nós mesmos.

Se trata de ir ao encontro.

(Dura no peito, arde a límpida

verdade dos nossos erros. )

Se trata de abrir o rumo.

Os que virão, serão povo,

e saber serão, lutando.

Page 55: Caderno de Textos Erem 2012

55

CREMESP INSTITUI

EXAME DE ORDEM

OBRIGATÓRIO PARA

FORMANDOS EM

MEDICINA

O Conselho Regional de Medicina do Estado de São

Paulo (Cremesp) tornou obrigatória a participação em seu

exame de todos os médicos recém-formados para adquirir o

registro profissional. A aprovação não é necessária para

adquirir o registro, somente a participação na prova. O

objetivo do Conselho é fiscalizar a qualidade do ensino e

ajudar as universidades a aperfeiçoarem os seus cursos.

Em sete anos de história, o exame constatou que 46,7% dos participantes saíram das faculdades despreparados, sem condições mínimas de exercer a Medicina. “Esperamos que com a divulgação desses resultados, que certamente serão ruins, a sociedade discuta a questão da qualidade do ensino. Estamos fazendo isso em defesa da sociedade. Nenhum paciente merece ser atendido por um médico mal formado”, disse o presidente do Cremesp, Renato Azevedo Júnior.

O conselho apoia e espera estimular a aprovação do projeto de lei 217/2004, do Senado Federal, que cria o Exame Nacional de Habilitação para médicos e o define como pré-requisito para o exercício da Medicina.

Todos os formados em 2012 e os médicos que ainda não tem registro no Cremesp devem fazer a prova. Estão dispensados os médicos que já possuem inscrição em outros conselhos regionais, e que solicitam inscrição secundária ou transferência para o Cremesp; médicos que já possuem inscrição ou pedido de inscrição em andamento.

Será enviado um boletim de desempenho para o participante da prova, com sua nota geral e o desempenho por área da Medicina. As faculdades também irão receber o relatório de desempenho dos seus alunos, comparado com as

notas médias de todos os participantes, mas será divulgado somente o resultado geral.

Novos cursos Em junho deste ano, o Ministério da

Educação (MEC) autorizou a criação de mais 2.415 novas vagas de Medicina em universidades federais e particulares. A decisão foi criticada pelo Cremesp e pelo Conselho Federal de Medicina. “Temos muita preocupação com a abertura indiscriminada de novos cursos, sem nenhuma preocupação com a formação. O Ministério da Saúde tem atuado de maneira demagógica, afirmando que o problema da saúde é a falta de médicos. Essa é uma resposta medíocre”, critica Braulio Luna Filho, primeiro-secretário do Cremesp.

Luna Filho participou de uma Comissão de Supervisão dos cursos de Medicina, formada pelo Ministério da Educação, durante a gestão de Fernando Haddad na pasta. A recomendação da equipe foi o fechamento de cursos e não abertura de novas vagas. “Temos 380 mil médicos no País, mas eles não vão trabalhar onde o governo quer, porque eles pertencem à classe média alta. Não se resolve o problema da distribuição de médicos aumentando o número de profissionais”, afirmou.

O Cremesp é o primeiro conselho regional de Medicina do País a instituir um exame obrigatório para a concessão do registro profissional. Até então, a prova aplicada era opcional e, na última edição, apenas 16% do total de formados participou da avaliação.

A entidade afirma contar com o apoio dos sindicatos, de conselhos regionais, associações médicas e de pelo menos 16 das 28 instituições de ensino superior do Estado de São Paulo que formam médicos neste anos. Outras duas faculdades ainda não formaram turmas em 2012.

Fonte:http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/2012-07-24/cremesp-institui-exame-obrigatorio-para-formados-em-medicina.html

Page 56: Caderno de Textos Erem 2012

56

EXAME DE ORDEM PARA

MEDICINA – CARTA DA

DENEM (2010)

Olá Estudantes de Medicina do Brasil!

O texto abaixo tem a intenção de colocar a

discussão que fazemos sobre o Exame do

CREMESP/Exame de Ordem que muito vem sendo

discutido atualmente pelas diversas entidades

médicas brasileiras. A

implantação de um Exame

de Ordem para os

egressos do curso de

medicina, no estilo do

exame proposto pela OAB

(Ordem dos Advogados do

Brasil), gerou bastante

controvérsia na categoria

e pretendemos abordar

essa discussão abaixo,

dialogando sobre como

esse projeto é inválido e

prejudicial ao ensino

médico.

O Exame de Ordem

A avaliação da

qualidade do ensino

médico nas faculdades de medicina do Brasil é de

extrema importância para a busca da melhoria

desse ensino e da possibilidade de formação de

profissionais capazes de se apropriar de todo o

conhecimento produzido na área. Buscam-se,

dessa maneira, maneiras de se avaliar essas

escolas e os estudantes, objetivando a descoberta

de falhas durante o curso e possível correção

destas.

Um dos maiores projetos que surgiram no

Brasil para a avaliação das escolas médicas foi a

CINAEM (Comissão Interinstitucional Nacional de

Avaliação do Ensino Médico), criada em 1991 e

tendo a participação de inúmeras entidades

(CREMESP, CFM, DENEM, ABEM, FENAN, ANMR,

etc.). Propunha-se a realizar uma avaliação

diagnóstica sobre as escolas médicas brasileiras e

dividiu-se em três fases: as duas primeiras

investigavam as escolas médicas, para realizar

essa avaliação diagnóstica e a terceira fase era de

elaboração de uma proposta. A CINAEM teve

como principal resultado a criação das Diretrizes

Curriculares Nacionais para os Cursos de

Medicina, aprovadas em 2001 e que norteiam as

atuais reformas curriculares que acontecem no

ensino médico no Brasil.

Ao mesmo tempo,

iniciativas de se avaliar o

egresso do curso de

medicina, ou seja, o

estudante que está

concluindo o curso

também vem sendo

pensadas. A idéia de se

realizar um exame de

ordem para os cursos de

medicina no Brasil surgiu

inicialmente, em 1989, e

logo as principais

entidades médicas e o

movimento estudantil da

área (a DENEM)

começaram o debate

sobre o tema, avaliando a

proposta e se posicionando criticamente à

mesma. Nos últimos anos, diversos projetos de lei

vêm sendo encaminhados ao congresso para a

criação de uma avaliação que possa selecionar os

egressos para o mercado de trabalho. Essa

avaliação tem recebido diversos nomes, entre

eles, Exame de Ordem, Exame de Habilitação para

o Exercício da Medicina, Exame Nacional de

Proficiência em Medicina, etc.

O CREMESP como Pioneiro na Proposta de um

Exame de Ordem

Page 57: Caderno de Textos Erem 2012

57

A entidade pioneira na realização e na

defesa da instituição de um Exame de Ordem

para a Medicina é o CREMESP (Conselho Regional

de Medicina do Estado de São Paulo). Desde o

ano de 2005, essa entidade vem realizando

exames terminais não obrigatórios para os

estudantes de medicina do estado de São Paulo

que estão no último ano do curso. Essas provas se

propõem a ser uma experiência para a avaliação

das escolas e dos estudantes, deveria ter durado

o período de três anos, como uma fase de testes;

mas vem se estendendo ano a ano, para outras

localidades do país, objetivando uma possível

instituição de um exame de ordem nacional

parecido com este que é realizado pelo CREMESP,

para a retirada do mercado de trabalho de

profissionais considerados incompetentes por

terem reprovado no exame.

A justificativa daqueles que defendem

esse modelo de avaliação e que se propõe a

organizá-lo é de que é necessário proteger a

população brasileira dos erros médicos e de que é

necessário colocar um entrave para a abertura

indiscriminada de novas escolas médicas de baixa

qualidade. Ambas as justificativas são bastante

discutíveis.

O Porquê de sermos Contra o Exame de

Ordem/Exame do CREMESP

É inegável que o número de erros médicos

tenha aumentado nos últimos. Devemos,

entretanto, questionar-nos se esse aumento de

erros médicos é causado apenas pelos médicos

recém-formados. E aqueles que se formaram há

alguns/muitos anos? Como avaliaremos a

conduta desses profissionais mais velhos? Será

que eles não cometem erros no exercício de sua

profissão? A culpa das condições de saúde em

que se encontra a sociedade seria decorrente

apenas dos médicos recém-formados?

É inegável, também, que houve um

aumento substancial do número de escolas

médicas no Brasil. Mas afirmar que o exame de

ordem seria um entrave para a abertura

indiscriminada de novas escolas é negar a

história, já que há provas de que isso é

amplamente discutível. Estudos mostram que

após a implantação do exame da OAB, o número

de escolas de direito quintuplicou no Brasil em

um período de menos de dez anos; seguindo a

lógica de que existe uma prova que selecionará os

alunos “bons”, excluindo os “ruins” do processo,

não há a preocupação em se criar escolas de boa

qualidade, o que permitiu a criação de mais de

500 escolas de direito no Brasil em curto período

de tempo.

Posicionamos-nos contrários ao Exame de

Ordem por diversos motivos além dos já citados,

que começaremos a discutir com mais

aprofundamento a partir de agora!

Avaliação Terminal, Limitada

O Exame de Ordem é um modelo de

avaliação limitado, constituindo-se por um prova

terminal (no final do curso), aplicado em apenas

um momento da formação. Apenas por isso, já

fica claro que essa prova não permite o

diagnóstico das falhas durante o ensino (que são

seis anos de curso) e, muito menos, permite a

correção dessas falhas. É uma avaliação que não

avalia a progressão do estudante ao longo do

curso, não avalia suas habilidades e, por fim, não

permite um diagnóstico das deficiências ao longo

do currículo médico.

Desresponsabilização da Escola Médica e

Culpabilização do Estudante

Page 58: Caderno de Textos Erem 2012

58

Essa avaliação terminal acaba por

provocar uma desresponsabilização da Escola

Médica na formação do médico, culpabilizando

apenas o estudante pelo seu desempenho final

na prova, já que não possibilita a avaliação de

itens imprescindíveis para uma adequada

avaliação de como anda o curso: a infra-estrutura

do curso (rede de laboratórios, salas de aula,

equipamentos adequados, etc), os campos de

prática (hospitais, ambulatórios, enfermarias,

unidades básicas de saúde), o corpo docente, o

currículo médico. A responsabilidade de se

passar na prova, dessa maneira, fica por conta

apenas do estudante, não sendo uma maneira de

se diagnosticar falhas no ensino e muito menos

de propor correções a estas

Criação de Subprofissão e Agravamento da

Precarização nas Relações de Trabalho

Outra questão importante a ser abordada

sobre esse assunto é: o que o estudante egresso

que não passar no Exame de Ordem poderá

fazer? A resposta para essa pergunta é simples!

Tornar-se-á um bacharel em medicina! Então,

surge outra questão: o que o bacharel em

medicina faz? Resposta: Nada! Ou melhor, não

poderá exercer sua profissão. Esse fato se torna

bastante complicado se analisarmos a questão de

que existe a possibilidade daqueles que não

passarem no exame, entrar no mercado

ilegalmente, criando uma subcategoria de

trabalho e intensificando as relações de

exploração e precarização do trabalho médico.

Reserva de Mercado

Enxergamos, além disso, uma intenção

muito clara daqueles que se propõem a organizar

essa prova de criar uma reserva de mercadopara

o trabalho médico. Mas o que é isso?

A reserva de mercado é caracterizada

como a regulação de vagas para a entrada no

mercado de trabalho de profissionais, visando a

manutenção salarial daqueles que já estão

trabalhando e a estabilidade dos mesmos. É uma

medida totalmente corporativista (já que os

defensores dessa avaliação são médicos já

inseridos no mercado de trabalho) que

pretendem regular a entrada daqueles que

podem e que não podem exercer sua profissão.

Além de ser uma medida absurdamente

corporativa, demonstra um verdadeiro descaso

com a sociedade, já que a reserva de mercado

visa somente atender aos interesses do médico já

empregado, desconsiderando o contexto social

em que esse profissional se insere e podendo até

prejudicar a sociedade.

Rankeamento e Proliferação de Cursinhos

Questionamos a intencionalidade

daqueles que se propõem a organizar essa

avaliação, como o CREMESP, sobre o que será

feito com os dados estatísticos obtidos a partir da

realização da prova pelos egressos. A experiência

nos mostra que esses dados são utilizados apenas

para se fazer um rankeamento das escolas

médicas, propagandeando aquelas aos quais os

estudantes vão bem, e ridicularizando aquelas

aos quais os estudantes não passam. A instituição

de um Exame de Ordem apenas agravaria o que já

Page 59: Caderno de Textos Erem 2012

59

vem acontecendo com

os resultados desse

exame proposto pelo

CREMESP e ainda

tornaria o quadro muito

mais obscuro, já que

ocorreria uma

proliferação dos

cursinhos preparatórios para o exame de ordem

(algo que já ocorre com relação às provas de

residência). Essa proliferação de cursinhos faria

com que o estudante focasse sua graduação no

aprendizado da prova, deixando de lado a

imprescindível formação teórica e prática para

uma adequada prática clínica, o que é um

agravante para a piora do estado em que se

encontra o ensino médico no Brasil.

A Falsa Proteção da População

Surpreende-nos a abordagem feita sobre a

necessidade de se implantar um Exame de Ordem

urgentemente para a proteção da população, que

estaria sujeita a riscos de maior adoecimento

devido a erros médicos. Mas, se estão tão

preocupados com a proteção da sociedade,

porque não lutam pela melhoria da organização

do sistema de saúde? Pela transformação social?

Questões como essas vêm a nossa cabeça no

momento em que se utiliza de argumentação tão

falsa como essa. Precisam entender que há

diversos problemas no nosso sistema de saúde

que impedem o acesso da população ao mesmo,

sendo este fato verdadeiramente preocupante.

Um desses problemas é a questão do

financiamento da saúde. Como se pode querer

promover o acesso de qualidade a toda a

sociedade ao sistema de saúde, se este não tem

um financiamento adequado? Estima-se que o

gasto público com o sistema de saúde (tanto

público quanto privado) seja de 7,6% do PIB

atualmente, muito abaixo daquele previsto pela

EC-29 (emenda constitucional que regulariza o

financiamento do SUS) e extremamente

preocupante para a manutenção do sistema. É só

olharmos para os hospitais de ensino nos quais

atuamos: filas imensas para a realização de

exames, controle do pedido de exames,

tecnologia ultrapassada, etc.

Outro problema bastante relevante e atual

são as privatizações e terceirizações na área da

saúde. Há um movimento cada vez mais amplo de

privatizar a gestão dos hospitais, ambulatórios e

unidades básicas de saúde, com a justificativa de

melhor planejamento e gestão do dinheiro. A

criação de projetos de Organizações Sociais de

Saúde (OS´s) e Fundações Estatais de Direito

Privado (FEDP) são a prova de que os governos

estão cada vez mais preocupados em passar a

responsabilidade da gestão para o setor privado.

Isso faz com que as relações de trabalho sejam

totalmente precarizadas submetendo o

trabalhador a intensa exploração (lembre-se que

você, estudante de medicina, é futuro

trabalhador!!!). Salientamos a falsa idéia de que a

gestão privada é melhor do que a pública: casos

comprovando esse fato estão cada vez mais

aparecendo na mídia ultimamente, como o caso

da Fundação Zerbini – do INCOR – e da SPDM –

Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da

Medicina.

A questão da super exploração do

trabalhador em saúde também é bastante

preocupante, pois o submete a se empregar em

dois ou mais empregos diferentes, saturando-o e

possibilitando o desenvolvimento de diversas

enfermidades psicológicas nesse trabalhador,

tornando seu emprego estressante e sua prática

prejudicial ao paciente.

Concluímos, a partir dessas análises, que a

questão da proteção da população e da garantia

Page 60: Caderno de Textos Erem 2012

60

de uma assistência de saúde de qualidade a

mesma, perpassa por muito mais problemas e

questões sociais do que a capacidade de um

egresso passar em uma prova ou reprovar na

mesma. Precisamos nos atentar para esse debate

sobre a organização da assistência em saúde no

Brasil ao invés de nos preocuparmos apenas em

regular o mercado de trabalho. Questionamo-nos

sobre o porquê de os grandes idealizadores dessa

proposta de exame de ordem não se

preocuparem com o fato de o sistema de saúde

do nosso país estar aos frangalhos e se utilizarem

de uma falsa proteção à sociedade para justificar

a existência de uma avaliação como a proposta.

Falsa Sensação de Segurança

Uma das últimas questões que

gostaríamos de abordar nesse resumido texto é a

falsa sensação de segurança que a instituição de

uma prova como a proposta poderia causar na

sociedade. Segundo o CREMESP, a existência do

Exame de Ordem faria com que os maus

profissionais ficassem fora do mercado de

trabalho e não pudessem exercer sua profissão.

Essa questão abriria uma brecha para que

houvesse uma diminuição da fiscalização e do

acompanhamento das escolas médicas no Brasil

(já que haveria uma “peneira” depois), e

permitiria a abertura indiscriminada de novas

escolas. Isso é um problema bastante grave, e

devemos nos alertar sobre essa falsa sensação de

segurança.

Nossas Propostas

Agora todos devem estar se perguntando:

“Mas e aí, já sabemos que o exame é ruim, mas o

que podemos e devemos fazer?”.

Bom, para todos aqueles que acham que o

movimento estudantil não tem proposta, é só

reler o texto até aqui e perceber que nossas

críticas já estão todas embasadas de propostas

que temos a fazer!

Entendemos que o problema da educação

médica no Brasil é grave e não será resolvido com

uma solução simples e pontual como o Exame de

Ordem. Nós queremos ser avaliados; mas

queremos uma avaliação que contribua para a

melhoria da Escola Médica, que possibilite a

avaliação da infra-estrutura, do corpo docente.

Uma avaliação que avalie o estudante ao longo da

formação e permita a este e à escola, reparar as

deficiências no ensino.

Exigimos melhores condições de trabalho,

cargos e salários dos profissionais médicos.

Lutamos por uma saúde 100% pública, estatal,

gratuita e de qualidade para toda a população.

Exigimos a abertura de novas escolas somente

com qualidade e comprovada necessidade social

Frisamos que não somos contrários a ser

avaliados; pensamos que a avaliação deve ser

seqüencial e deve envolver diversos setores da

sociedade. Queremos debater e chegar a uma

solução em conjunto!

Por isso, nesse ano, junte-se a nós à

campanha “Não ao Exame de Ordem para

Medicina”. Vamos mostrar nossa voz e sermos

ouvidos contra a realização do Exame do

CREMESP.

BOICOTE!

“Se você não apoia, não faça a prova!”

Page 61: Caderno de Textos Erem 2012

61

Carta aberta:

Serviço Civil na

Medicina

DENEM – Regional Sul 2

A Coordenação Regional Sul-2 da DENEM em reunião com os Centros e Diretórios Acadêmicos de São Paulo e Paraná na cidade de Campinas nos dias 15 e 16 de outubro se posiciona em relação à proposta do governo federal que Institui o Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica, estabelecido pela PORTARIA INTERMINISTERIAL Nº 2.087, DE 1º DE SETEMBRO DE 2011.

Reconhecemos a necessidade da

expansão com qualidade dos serviços públicos de saúde e a importância de políticas permanentes de interiorização e fixação dos profissionais de saúde. Compreendemos “a necessidade de valorização, aperfeiçoamento e educação permanente do profissional que trabalha na Atenção Básica” como justificado na portaria supracitada. Entendemos que os profissionais da atenção básica estão extremamente desestimulados devido ao sucateamento das unidades de saúde e a dificuldade de uma atenção integral a população. Assim, justamente por essa sintética análise sobre a necessidade de

mudanças e readequação do serviço de saúde analisamos que a tentativa do governo federal de promover a expansão do acesso da população de maior vulnerabilidade social no país e que habita regiões de difícil acesso não cumpre o seu papel em essência. Apropria-se habilmente de bandeiras históricas de luta dos movimentos sociais pela saúde e as transforma em ações pontuais e superficiais que não agem na raiz dos problemas do sistema de saúde pública no país.

Primeiramente, quando discutimos a questão da interiorização e fixação do médico é importante lembrar que as condições de trabalho e infraestrutura das cidades são questões centrais nesse processo. Desse modo, uma política de estimulo não pode ser pautada, em nossa compreensão, em ações como recompensas a partir de bônus para residências – as quais têm a maioria de vagas concentradas no eixo sul e sudeste – além disso, não pode ser pautada somente por estimulo salarial, pois na atualidade salários muito acima da média são oferecidos em regiões afastadas dos grandes centros econômicos no país e não tem a capacidade de atrair profissionais.

Outro ponto chave nessa avaliação é

desmistificar o discurso de que a política de Valorização do Profissional da Atenção Básica irá trazer incremento na qualidade do atendimento à população. O envio de médicos e demais profissionais de saúde recém formados para áreas onde não há um serviço de retaguarda eficiente com hospitais terciários, serviços secundários e/ou de especialidades, onde a falta de infraestrutura é gritante e onde haverá uma contundente ausência de supervisão acadêmica constante, nos parece uma política panfletária que visa dar uma resposta populista a crise na saúde. Isso fica ainda mais claro quando observamos que um corte de 600 milhões de reais foi realizado no orçamento para a saúde em 2011, assim, é óbvia a falta de perspectivas do governo em investir em infraestrutura e recursos tecnológicos que assegurem de fato uma expansão e interiorização com qualidade dos serviços de saúde.

Page 62: Caderno de Textos Erem 2012

62

Além disso, reforçamos o entendimento de que esse projeto coloca em risco a fixação profissional e o acompanhamento continuado dos pacientes, precarizando os vínculos com os profissionais de saúde e dificultando a implantação de projetos a longo prazo na atenção primária. O envio de profissionais recém formados que não possuem nenhuma experiência em ações de prevenção e promoção de saúde para os rincões do país cumpre claramente o papel de oferecer um atendimento não integrado e que pela ausência de estrutura adequada para acesso dos pacientes aos demais níveis de atenção ficará restrito a ações de medicalização, ou seja, somente as manifestações das doenças serão tratadas deixando-se de lado um processo integral de atenção à saúde. Ademais, o grau de rotatividade de profissionais que será criado, inevitavelmente, nas unidades de saúde que receberão esse projeto impossibilitará, a longo prazo, a criação de vínculos com a população, destruindo, desse modo, um dos eixos centrais da Estratégia de Saúde da Família.

Diante de tudo isso, colocamos novamente a necessidade de um debate franco e aberto sobre os projetos que impactam profundamente na vida social de toda população brasileira. Parece-nos demasiadamente oportuno para o governo federal a aprovação deste projeto de forma rápida, sem discussão ampla e que tem inicio previsto para um ano de eleições municipais. A necessidade de mudanças no sistema de saúde pública é inegável. Vivemos uma crise geral do SUS e os ataques através de privatizações e da falta de verbas são evidentes. Assim, é urgente que o processo saúde doença

seja encarado como reflexo das condições de vida, determinado pelas relações sociais de produção, conduzindo assim o foco neste ponto central. Somente através de uma análise acurada sobre ele encontraremos caminhos para deixarmos esta crise na saúde e em várias outras áreas.

Dessa forma, as ações não podem ser pontuais, mas devem propor uma readequação geral do sistema. Assim, são necessários maiores investimentos em infraestrutura que garantam o acesso da população a todos os níveis de complexidade de atenção à saúde, são necessárias políticas permanentes e sustentáveis de valorização e formação dos profissionais de saúde e é urgente a abertura de universidades públicas gratuitas e de qualidade e especializações em regiões com ausência de profissionais.

“A televisão mostra o que acontece? Em nossos países, a televisão mostra o

que ela quer que aconteça ; e nada acontece se a televisão não mostrar.

A televisão, essa ultima luz quete salva da solidão e da noite, é a realidade. Porque a vida é um espetáculo: para os que se comportam bem,

o sistema promete uma boa poltrona.” (A televisão/2, Eduardo Galeano)

Page 63: Caderno de Textos Erem 2012

63

Trabalhador da

saúde: um operário

em construção

Bruno Pedralva

Toda a riqueza produzida em nossa

sociedade é fruto do trabalho dos trabalhadores.

E satisfazem necessidades humanas, do

estômago ou da fantasia (MARX, 1867). Uma

peça de roupa, os alimentos, uma casa ou um

carro só existem porque os trabalhadores, com

divisão de trabalho, transformaram o minério,

um vegetal e o petróleo em mercadoria, com os

esforços de seus músculos, nervos, energias e

capacidades.

E no setor de saúde não é diferente.

Todos os recursos que utilizamos em nosso

trabalho são fruto do trabalho dos trabalhadores.

O cuidado a uma pessoa só ocorre graças ao

trabalho de um trabalhador. E as determinações

sobre nossas condições de trabalho no setor

saúde, mesmo na assistência, devem ser

compreendidas no contexto geral da compra e

venda da força de trabalho (Girardi, 2011).

Por isso, precisamos entender a história

do povo brasileiro e do capitalismo em nosso país

para desvelar a realidade dos determinantes de

nosso trabalho.

O SUS como vitória do povo brasileiro

Em toda a história do povo brasileiro,

nunca houve um projeto de nação que se

preocupasse efetivamente com a saúde de seu

povo. No período colonial, os coronéis cuidavam

da higienização para garantir a saúde dos

europeus exploradores, com apoio da Igreja. Na

república velha, o sanitarismocampanhista

preocupava-se em banir doenças para garantir a

exportação do café. E no século XX, forjou-se a

indústria médico-hospitalar para garantir o lucro

das corporações privadas ligadas à assistência

médica e das grandes empresas transnacionais de

equipamentos e medicamentos. (Andrade, 2004)

No final dos anos 70, no contexto das

lutas dos movimentos sociais por direitos sociais

e democracia, no meio sindical, popular,

estudantil e camponês, surge o Movimento da

Reforma Sanitária. Sua principal bandeira era a

construção do Sistema Único de Saúde, firmado

na constituição de 1989, que inseriu em lei o

direito à saúde e a determinação social da saúde

e doença. A correlação de forças à época, apesar

de favorável, não garantiu a exclusividade estatal

dos serviços de saúde, permitindo a participação

privada em caráter complementar.

No entanto, no início dos anos 90, o

contexto mundial de hegemonia das idéias

liberais e a crise na alternativa socialista

limitaram a real construção do SUS. E, apesar de

avanços na construção de serviços de saúde, o

povo brasileiro não teve garantidos direitos

sociais básicos, submetido a salários baixos,

condições de trabalho precárias, educação de má

Page 64: Caderno de Textos Erem 2012

64

qualidade, moradias inadequadas, alimentos

insalubres contaminados por agrotóxicos.

Determinantes fundamentais para a saúde de um

povo. E para nós, os trabalhadores da saúde.

Trabalho em saúde no Brasil

A assistência em Saúde no Brasil envolve

4,5 % da população ocupada, 10% da massa

salarial do setor formal, 3,9 milhões de postos de

trabalho, sendo 2,6 milhões formais, 690 mil

informais e 611 mil autônomos. Nos 24 anos de

SUS, observamos a tendência a municipalização e

expansão de estabelecimentos e empregos,

maior participação das mulheres e precarização

das relações de trabalho (Machado, 2010).

Dois elementos centrais na precarização

do trabalho em saúde são o sub-financiamento

crônico e as privatizações.

Apesar da existência do SUS, os sucessivos

governos nos últimos 20 anos não assumiram sua

construção efetiva. Os gastos públicos em saúde

em 2009 representaram apenas 3,8% do Produto

Interno Bruto (PIB), em 2009. E o gasto privado,

investido pelas famílias, chegou a 4,9% do PIB no

mesmo ano. Em países com melhores resultados

em saúde, como Cuba, o investimento chega a

18% do PIB. Em contrapartida, no Brasil, mais de

45% do orçamento da união ainda é gasto com

juros e amortizações da dívida pública.

Outra tendência são as privatizações na

saúde. Nos anos 90, com o avanço do

neoliberalismo na América Latina, os projetos de

privatização do Estado proliferaram. E os

trabalhadores foram submetidos às políticas de

flexibilização do trabalho e terceirizações no

processo de produção. No Brasil, durante o

Governo do PSDB, Fernando Henrique Cardoso,

foi criado o Ministério da Administração Federal e

Reforma do Estado, sob o comando de Bresser

Pereira, com a tarefa de privatizar empresas

estatais e serviços públicos. Os argumentos

principais eram que o Estado deveria ser reduzido

e assumir a tarefa de administração de setores

que envolvem poder de Estado (forças armadas,

polícia, receita federal). A gestão de serviços

públicos para a garantia de direitos sociais

deveria ficar a cargo de empresas privadas e

organizações sociais de direito privado,

coordenadas por agências reguladoras.

Após duas décadas de experiência com

organizações sociais, as conseqüências são

evidentes: aumento da ineficiência dos serviços

de saúde e corrupção através de “caixa dois” e

favorecimentos em licitações. No estado de São

Paulo, as empresas que atuam em 18 hospitais

públicos acumularam déficit de 147 milhões em

2010, enquanto os gastos da Secretaria Estadual

de Saúde com OS saltaram de 910 milhões para

1,96 bilhões entre 2006 e 2009. Outros exemplos

são a denúncia de um ex-secretário de Saúde de

Natal de que a Trade Rio, empresa que

administra ambulâncias do SAMU, tentou lhe

subornar oferecendo o custo da sua campanha

em troca da renovação de contrato. Em Minas

Gerais, a Construtora Tratenge Engenharia

ganhou a licitação para construir o Hospital

Metropolitano e é processada pelo Ministério

Público Eleitoral em 2011 por doação de recursos

para eleições acima do limite legal.

Quantas vezes mais uma pessoa tem acesso a

médicos se estiver na Rede Privada?

Bahia 12 vezes mais

São Paulo 2 vezes mais

BRASIL 4 vezes mais

Fonte CFM, 2011.

Para os trabalhadores da saúde, esse

modelo aumenta a precarização das relações de

trabalho, achata os salários, amplia as políticas de

gestão por metas e aumenta o adoecimento dos

trabalhadores (SANTOS, 2007). Além disso,

Page 65: Caderno de Textos Erem 2012

65

enfraquece a organização sindical, pois o risco de

demissões aumenta e a unidade entre

trabalhadores é fragilizada com diferentes

patrões e vínculos empregatícios.

O que fazer?

As lutas dos trabalhadores da saúde por melhores

salários e condições de trabalho são

fundamentais como ponto de partida. E

possibilitam, com uma direção sindical

comprometida com a Revolução Brasileira, a

superação das lutas econômicas e compreensão

de um projeto de saúde dos trabalhadores para o

povo brasileiro.

Nosso projeto, dos trabalhadores, é claro: saúde

como um direito, determinada socialmente,

possível somente com direitos sociais garantidos

e com serviços públicos de saúde eficientes,

orientados pela atenção primária em saúde. E

somente será possível com um Projeto Popular

para o Brasil.

E o fruto do trabalho, de quem trabalha será!

“E um fato novo se viu

Que a todos admirava:

O que o operário dizia

Outro operário escutava.

E foi assim que o operário

Do edificio em construção

Que sempre dizia "sim"

Começou a dizer "não".

(Operário em Construção, Vinícius de

Moraes)